Recebido em: 04/08/2015
ApRovAdo em: 16/09/2015
A IMPORTÂNCIA INSTITUCIONAL DA
JUSTIÇA FEDERAL NO SISTEMA DE
JUSTIÇA DOS ESTADOS UNIDOS DA
AMÉRICA
ThE INSTITUTIONAL IMPORTANCE OF FEDERAL JUSTICE IN
UNITED STATES OF AMERICA JUSTICE SySTEM
Paulo Fernando Soares Pereira
Procurador Federal, Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
Paulo Roberto Barbosa Ramos
Promotor de Justiça do Idoso do Ministério Público do Estado do Maranhão
Doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2001) e Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela Universidade de
Granada - Espanha
SUMÁRIO: Introdução; 1 A função da Common
Law na formação do espírito prático dos Sistemas de
Justiça dos Estados Unidos da América; 2 O triunfo do
federalismo e a necessidade de uma jurisdição federal;
3 A formação da Justiça Federal americana e a sua
consolidação institucional; 4 Conclusões; Referências.
184
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
RESUMO: Através do direito comparado, objetiva-se rememorar
a importância institucional da Justiça Federal dos Estados Unidos
da América, desde a época de sua criação, que remonta ao próprio
início da Federação americana, inclusive com a forte contrariedade
dos antifederalistas à ideia de um ramo judiciário independente dos
Estados, até os dias atuais, momento no qual o cenário democrático
demonstrou que as instituições devem estar a serviço dos interesses do
país e de seu povo e não das pessoas que a compõem.
PALAVRAS-CHAVE: Instituições dos Sistemas de Justiça. Direito
Comparado. Justiça Federal dos Estados Unidos. Perspectiva Histórica.
ABSTRACT: The objective of this essay is remind the reader of
the institutional importance of Federal Justice in American Justice
System, through Comparative Law, since its creation, dating back
United States Federation beginnings, including the strong opposition
from non-federalist to the idea of an independent judiciary branch, up
to nowadays, moment when the democratic scenery showed that the
institutions must be in service of nation and citizens interests, not of
justice servants.
KEYWORDS: Institutions of Justice System. Comparative Law.
American Federal Justice. Historical Perspective.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
185
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise histórica a
respeito da Justiça Federal de primeiro e de segundo graus dos Estados
Unidos da América, de sua implantação até os dias atuais, mostrando-se
inclusive as similitudes com a Justiça Federal brasileira (arts. 106 a 110 da
CF)1. O intuito, portanto, é apenas apresentar a relevância institucional
desse órgão em um Sistema de Justiça bastante consolidado.
Assim, inicialmente, cabe destacar que fazer uma análise comparativa
nem sempre é uma tarefa simples, ainda mais quando se consideram as
peculiaridades de dois sistemas jurídicos diferentes, o estadunidense, da
Common Law, e o brasileiro, do Civil Law, por exemplo.
As Instituições dos Sistemas de Justiça brasileiras passam por
um momento de peculiar consolidação, em decorrência do permissivo
democrático após 1988, sendo relevante que o mundo acadêmico nacional
avalie comparativamente outros modelos, com as críticas e ponderações
necessárias.
A razão de escolha do Sistema de Justiça Federal dos Estados Unidos
se deve ao padrão institucional das Instituições dos Sistemas de Justiça
desse país que, após séculos de amplo regime democrático, constituem um
norte para ser analisado ou até mesmo seguido, já que contextos históricos
diferentes nem sempre permitem caminhos institucionais idênticos.
Não se desconhece, por outro lado, as críticas lançadas ao modelo
institucional americano e às tentativas, não raras vezes, sem sucesso,
praticadas pelos países de economia dependente em absorvê-lo. Bruce
Ackerman, em ensaio sobre a teoria constitucional comparada da divisão
de poderes2, já havia questionado se o modelo estadunidense deveria servir
como parâmetro para outros países, questionamento que pode ser aplicado
na presente hipótese.
1
Advirta-se que o trabalho não enfocará o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em
que pese se tratar de um órgão da Justiça Federal. O objetivo é apresentar o histórico da Justiça Federal
de primeiro e de segundo graus daquele país, explicando-se a sua função e relevância institucional. Dessa
forma, as menções à Suprema Corte serão auxiliares e não protagonistas do trabalho.
2
Para Bruce Ackerman, o ‘constitucionalismo democrático liberal’ não é um conceito unívoco, mas um
espaço em que convergem diferentes valores, que coexistem em profunda tensão, com cenários diferentes
que expõem critérios institucionais existentes a diferentes situações de pressão, devendo-se lançar um
olhar crítico sobre o regime existente, em vez de se bancar o profeta. La nueva división de poderes.
México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 18 e 507.
186
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
De se ponderar, ainda, que o direito comparado atual não admite a
existência de direitos positivos intrinsecamente melhores que os demais,
sendo prudente que se fale apenas em direitos historicamente mais ou
menos adequados para a regulamentação de certas relações de produção
e propriedade3.
No ponto acima, o eurocentrismo e o etnocentrismo jurídico nasceram
com a imposição do modelo europeu de desenvolvimento econômico a
países sustentados por economias pré-industriais, sendo inevitável que
se julgassem os direitos locais inadequados (inferiores) em relação àquele
desenvolvimento econômico4. Com o domínio econômico e cultural dos
Estados Unidos sobre os chamados países de economia dependente, essa
ideia etnocêntrica, antes apenas europeia, atravessou o Atlântico e se firmou
naquele país, o que, certamente, refletiu na compreensível admiração que
as Instituições dos Sistemas de Justiça americanas irradiam sobre os
demais países do continente.
No entanto, as críticas acima não desmerecem a pertinência do
objeto do presente trabalho, pois os sistemas jurídicos (a Common Law
estadunidense e o Civil Law brasileiro) guardam similitudes, em especial
quando se analisa a existência de uma Justiça Federal encarregada de
julgar determinados conflitos, o que permite traçar um paralelo, daí a
importância do estudo do direito comparado, de utilidade para se conhecer
e aperfeiçoar melhor o direito nacional, sendo, igualmente, útil para a
compreensão do direito de outros países ou até mesmo para se estabelecer
um regime mais apropriado para as relações internacionais5.
3
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus.
São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 18.
4
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extraeuropeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 18. Além disso, o mesmo autor, op. cit., p. 16-18, adverte que
“a cultura dos europeus difundia-se na esteira de seus navios mercantes e de guerra, testemunho concreto de
uma indiscutível superioridade tecnológica. O direito europeu tinha que ser o melhor, porque se fundamentava
naquela economia superior. Hoje, isso já não é verdadeiro. O mundo multipolar e as comunicações rapidíssimas
obrigam a levar em conta países outrora legendariamente distantes. [...] O estudo dos direitos positivos a
partir de um ponto de vista empírico contribui para remover o etnocentrismo não apenas na exegese de cada
sistema jurídico, mas também na comparação entre institutos provenientes de sistemas jurídicos diferentes. É
muito frequente, por exemplo, negar o caráter jurídico a ordenamentos normativos de sociedades primitivas
tão-somente por compará-los ao direito existente numa sociedade evoluída. Um critério mais concreto de
avaliação consiste, ao contrário, em ver com quais regras certa estrutura social administra suas próprias
relações e em constatar até que ponto tais regras desempenham as tarefas que aquela sociedade lhes impõe:
só assim evitam-se transferências gratuitas de conceitos de uma cultura para outra, como se todas fossem
homogêneas e como se uma fosse melhor que as outras”.
5
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 3.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
187
Não bastasse isso, a análise comparada permite revelar o exagero
de preconceitos, (aliás, muito comuns nos sistemas de justiça brasileiros),
mostrando-se como outras nações aderiram a fórmulas diferentes ou
rejeitaram outras, inclusive algumas falsamente tidas como democráticas
e adotadas pelo direito nacional6.
Não é demasiado recordar que alguns dos problemas que afligem
os Sistemas de Justiça, sejam os da família7 anglo-saxônica ou romanogermânica, têm se mostrado parecidos, haja vista o movimento de
aproximação entre os dois sistemas8, sendo de suma importância a análise da
posição dos tribunais para aqueles que tentam compreender adequadamente
as instituições constitucionais de determinado país, como o caso dos
Estados Unidos, no qual a presença de uma Corte Suprema federal faz
girar todo o sistema constitucional9.
Aliás, os países da família Civil Law e da Common Law tiverem, no
decorrer dos séculos, diversos contatos, fruto da influência moral cristã
e das doutrinas filosóficas em voga, que puseram em evidência, desde o
Renascimento, o individualismo, o liberalismo e a noção a respeito de
direitos subjetivos10.
A Common Law conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da
dos direitos romano-germânicas, mas o papel desempenhado pela lei
foi aí aumentando e os métodos usados nos dois sistemas tendem a
aproximar-se; sobretudo a regra de direito tende, cada vez mais, a ser
concebida nos países de Common Law como o é nos países da família
romano-germânica. Quanto à substancia, soluções muito próximas,
6
DAVID, op. cit., p. 5.
7
Para René David, ibidem, p. 17, “a noção de ‘família de direito’ não corresponde a uma realidade biológica;
recorre-se a ela unicamente para fins didáticos, valorizando as semelhanças e as diferenças que existem
entre os diferentes direitos. Sendo assim todas as classificações têm seu mérito. Tudo depende do quadro
em que se coloquem e da preocupação que, para uns e outros, seja dominante”.
8
Nesse sentido convergem os comparatistas René David, op. cit., p. 20 e 302, e Mario Losano, op. cit., p. 345.
Mario Losano, op. cit, p. 345, afirma que “o Common Law anglo-americano e o direito europeu continental,
que agora regem a maioria da população mundial, tendem a se aproximar: o Common Law está passando
por uma extensão dos statutes e das consolidations em detrimento do puro ‘ judge made law’, enquanto a
jurisprudência vai assumindo importância crescente em muitos países de Civil Law. Por exemplo, naqueles
países que têm um tribunal constitucional, o direito constitucional tende cada vez mais a ser tornar um
direito jurisprudencial”.
9
SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: 1966. p. 160.
10 DAVID, op. cit., p. 20.
188
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
inspiradas por uma mesma idéia de justiça, são muitas das vezes dadas
às questões pelo direito nas duas famílias de direito11.
O comparatista René David12 chega inclusive a falar na tentação de
se ceder a uma idéia de “direito ocidental”, dada à existência de países em
que não é possível definir com certeza a qual das duas famílias pertencem,
já que tendem a tirar seus elementos da família da tradição romanogermânica ou da anglo-americana.
Para fins de sistematização o trabalho aborda, inicialmente, a
importância que teve a Common Law na formação do espírito prático
dos Sistemas de Justiça dos Estados Unidos, para, em seguida, abordar o
triunfo do federalismo e a necessidade de uma jurisdição federal autônoma,
que decorreu do receio que havia em se atribuir à Justiça dos Estados às
causas que envolviam o Governo Central (União), pois se desconfiava
que os Estados não fossem aplicar adequadamente a legislação federal e
a Constituição, finalizando-se com a abordagem a respeito da formação
da Justiça Federal americana e a sua consolidação institucional.
1 A FUNÇÃO DA COMMON LAW NA FORMAÇAO DO ESPÍRITO PRÁTICO DOS SISTEMAS DE JUSTIÇA DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
A Common Law, originária na Inglaterra, teve como fonte principal
do direito a jurisprudência13 e não a lei14, sendo tida como um sistema
marcado pela continuidade histórica, fruto dos Tribunais de Westminster
(common law) e pelo Tribunal da Chancelaria (equity), não tendo sido
perturbada por nenhuma revolução e não tendo conhecido a renovação
do direito romano e tampouco a renovação da codificação, características
dos direitos da família romano-germânica (estes últimos evidenciados por
11 DAVID, op. cit., p. 20.
12 DAVID, op. cit., p. 20. O autor dá como exemplos a Escócia, Israel, a província de Quebec, no Canadá, e as
Filipinas.
13 Os juristas do continente europeu eram educados no culto pela lei e admiravam os códigos. Parecia-lhes
estranho, e quase inconveniente, ver um país altamente civilizado, o maior país comercial do mundo,
rejeitar a fórmula da codificação e continuar ligado a uma fórmula no seu entender ultrapassada, vendo na
jurisprudência a fonte fundamental do direito. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo.
3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 303.
14 A lei inglesa, tradicionalmente, traria apenas corretivos e complementos aos princípios que precisem de
solução ou retifiquem os princípios estabelecidos pela jurisprudência. Entretanto, atualmente, deve-se
abandonar a ideia de considerar a legislação como fonte secundária, já que a mesma alcançou importância
semelhante à jurisprudência. DAVID, René, ibidem, p. 345 e 352.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
189
seu caráter racional e lógico), caracterizando-se, ainda, pelas faculdades de
adaptação, do seu permanente valor e pelas qualidades de seus juristas15.
Nesse sistema, ao contrário dos direitos codificados, houve uma
exigência prática em se organizar a grande quantidade de precedentes e
de normas, exigindo que os princípios fundamentais que lhe servissem
de base fossem identificados e expostos sistematicamente para orientar a
atividade prática dos juristas, o que correspondeu ao que se denominou
Jurisprudence16 .
Em seu processo evolutivo, a Common Law, inicialmente, não se
apresentou como um sistema que visasse realizar justiça, mas como um
conglomerado de processos próprios para assegurar, em casos cada vez
mais numerosos, a solução dos litígios (remedies precede rights)17, daí a sua
característica prática, o que poderia ser muito bem absorvido, em certos
aspectos, pelas Instituições dos Sistemas de Justiça brasileiras, fortemente
apegadas a fórmulas bacharelescas e burocráticas.
O aspecto utilitário desse sistema (Common Law) decorreu da
complexidade e da tecnicidade dos seus processos, que não poderiam ser
compreendidos senão pela experiência, o que pouco teria contribuído uma
formação universitária, baseada no direito romano, que não permitiria
solucionar um simples caso, o que explica o fato de na Inglaterra, juristas
e juízes, continuarem, até hoje, a ser formados essencialmente pela prática,
diferentemente dos países do continente europeu18.
15 O sistema dos direitos românicos é um sistema relativamente racional e lógico, porque foi ordenado,
considerando as regras substantivas, graças à obra das universidades e do legislador. Subsistem nele, sem
sombra de dúvida, numerosas contradições e anomalias devidas à história ou que se explicam por considerações
de ordem prática. Os direitos da família romano-germânica estão longe de uma ordenação puramente lógica
mas realizou-se um grande esforço nesse sentido para simplificar o seu conhecimento. O direito inglês, pelo
contrário, foi ordenado, sem qualquer preocupação lógica, nos quadros que eram impostos pelo processo;
só numa época recente – nos últimos cem anos -, tendo sido abolido o antigo sistema de processo, a ciência
do direito pôde esforçar-se no sentido de racionalizar estes quadros. DAVID, René, ibidem, p. 306.
16 LOSANO, Mario. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São
Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 553.
17 DAVID, op. cit., p. 289-290.
18 O processo inglês não se opunha somente à influência do direito romano; a sua complexidade desencorajava
os juristas a irem receber nas universidades uma aprendizagem de princípios, que não lhes serviria para
nada na prática. Os juristas ingleses nunca foram formados pelas universidades, e, ainda hoje, quando é
obrigatória uma licenciatura para se tornar advogado ou solicitor, esta licenciatura pode ser outra que não
em direito. DAVID, René, op. cit., p. 307.
190
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
É bem verdade, no entanto, que, modernamente, principalmente após
a experimentação do Welfare-State, a Common Law teve que se adaptar às
transformações, aproximando-se da elaboração legislativa e doutrinária
do direito19.
Já nos Estados Unidos, o direito inglês teve influência fundamental,
mesmo após a separação da Coroa inglesa, em 1775, pois as treze colônias,
conquanto independentes, continuaram a ter um uma Common Law de
cunho feudal na aplicação do direito privado. No entanto, as colônias
assumiram uma estrutura constitucional fundamentada no federalismo
e na rígida separação de funções estatais, com diferenças profundas do
modelo praticado na Grã-Bretanha, como as prerrogativas de cada Estado
de ter duas ordens de tribunais, um para os problemas estaduais e outra
para os federais20. E a razão disso não foi em vão, como se verá adiante.
Não se pense que o advento da Common Law nos Estados Unidos
esteve imune a assédios de outros sistemas. A Common Law, graças à
língua e ao povoamento predominantemente inglês, acabou triunfando
nos Estados Unidos. Contudo, a partir da Independência em 1776, a
mesma adquiriu originalidade21, decorrente principalmente da existência
do federalismo, no qual a dualidade na distribuição das competências
fará surgir uma nova espécie de jurisdição: a federal, objeto deste estudo.
Retomando ao ponto inicial, praticidade das Instituições dos Sistemas
de Justiça estadunidenses, é de se lembrar que esse espírito utilitário refletiu
na Constituição, preocupada, eminentemente, com questões constitutivas,
distinguindo aquele país dos demais não por uma ideologia dominante,
mas por um processo de governo, em que a Constituição deve prescrever
processos legítimos e não resultados legítimos22.
Ronald Dworkin23, ao criticar as teorias da decisão judicial, adverte
que essas concepções de Common Law veem as regras do direito costumeiro
como vagas, as quais devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las
19 DAVID, op. cit., p. 300-302.
20 LOSANO, op. cit., p. 345.
21 O direito, nos Estados Unidos como na Inglaterra, é concebido essencialmente como um direito jurisprudencial,
fundado antes de tudo sobre os precedentes e a razão. As leis e regulamentos são observados, segundo a
tradição, como complementos ou corretivos de um corpo de direito que lhes preexiste, o sistema da common
law. DAVID, René, op. cit., p. 368.
22 ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo:
Martins Fontes, 2010. p. 134.
23 Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 128-129.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
191
a casos novos, devendo os juízes criar um novo direito, como se fossem
delegados do Legislativo, promulgando-se lei que, na concepção dos
magistrados, os legisladores promulgariam caso estivessem diante de
determinado caso. Assim, para Ronald Dworkin, “os juízes não deveriam
ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto
de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já
tomadas por outras pessoas”.
Essa suposta delegação legislativa acabou levando os juízes
americanos, em diversos momentos históricos, ora mais ou menos
atuantes, ao ativismo, pois ao tempo em que sustentavam que os tribunais
deveriam aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas,
desenvolveram princípios de legalidade e igualdade, os quais poderiam
ser renovados continuamente conforme a posição moral da magistratura
ao julgar os atos do Legislativo e do Executivo24.
Para Bruce Ackerman25, a Constituição estadunidense leva as
instituições normais a agirem com prudência, não defendendo a sua
autoridade a qualquer preço; elas são explicitamente convidadas a trabalhar
arduamente em uma parceria com as instituições não-convencionais
que representam o povo. No entanto, se as instituições usuais podem
ceder às reinvindicações populares dos ativistas revolucionários em um
momento anômalo, elas continuam a desempenhar um papel estabilizador
essencial, sustentando uma continuidade constitucional significativa
mesmo em momento de ruptura institucional radical. Não é em vão que
os estadunidenses conseguiram transformar momentos de crises intensa
em triunfos democráticos de criatividade constitucional.
Nessa perspectiva, parece residir, aqui, um dos grandes ensinamentos
do cenário institucional americano, que absorveu o que havia de melhor do
espírito prático da Common Law, o que permitiu, em diversos momentos
históricos de tensão, a superação das crises institucionais.
2 O TRIUNFO DO FEDERALISMO E A NECESSIDADE DE UMA JURISDIÇÃO FEDERAL
Os Estados Unidos, no momento inicial de seu federalismo,
enfrentaram forte resistência ao governo central e fraco da União, em
oposição ao poderio dos Estados. A pouca simpatia de determinados Estados
24 DWORKIN, op. cit., p. 215.
25 Transformação do direito constitucional: nós, o povo soberano. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 110.
192
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
pela União se aliava a uma atitude quase generalizada de hostilidade em
relação ao governo26, daí a razão da União se resguardar em relação ao
julgamento das causas nas quais tivesse interesse direto27, a fim de proteger
a infante federação.
O que fazer para sufocar os descontentamentos e manter a
imparcialidade nas causas que envolvessem os interesses da União? A
força moral dos tribunais foi uma estratégia perspicaz. Para Alexis de
Tocqueville28, os governos, em geral, dispõem de apenas dois meios de
vencer as resistências dos governados: a força material que acham em si
mesmos e a força moral que lhe emprestam as decisões dos tribunais, já que
o grande objetivo da ideia de justiça seria substituir a ideia de violência pela
noção de direito, situando intermediários (magistratura) entre o governo
e o uso da força material. O profeta da democracia prossegue dizendo que:
É uma coisa surpreendente o poder de opinião atribuído, em geral,
pelos homens, à intervenção dos tribunais. Esse poder é tão grande
que ainda se prende às formas judiciárias quando a substância não
mais existe; dá à sombra um corpo. A força moral de que os tribunais
são revestidos torna o emprego da força material infinitamente mais
raro, substituindo-se a ela na maior parte dos casos; e, quando afinal
é necessário que esta última entre em ação, ela dobra o seu poder
juntando-se a ele29.
No caso dos Estados Unidos, no momento de sua formação, havia
a necessidade do Governo da União desejar mais do que outro obter o
apoio da justiça, pois ele era tido, pela sua natureza, como frágil, sendo
mais fácil se organizar uma resistência dos Estados contra o mesmo. Para
tanto, Alexis de Tocqueville30 dizia que:
Para fazer os cidadãos obedecerem às leis ou repelir as agressões de que
seriam alvo, tinha pois a União particular necessidade dos tribunais.
Mas, de que tribunais devia ela servir-se? Cada Estado tinha já o
26 RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992. p. 32.
27 RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992. p. 32. A mesma autora, op. cit., p. 77-80, descreve a evolução histórica da
jurisdição dos Tribunais Federais.
28 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1987. p. 110.
29 TOCQUEVILLE, p. 110.
30 Ibidem, p. 111.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
193
poder judiciário organizado no seu seio. Seria necessário recorrer
aos seus tribunais? Seria necessário criar uma justiça federal? É fácil
provar que a União não podia adaptar ao seu uso o poder judiciário
estabelecido nos Estados. Importa, sem dúvida, à segurança de cada
um, e a liberdade de todos, que o poder judiciário seja separado de
todos os demais; mas não é menos necessário à existência nacional
que os diferentes poderes do Estado tenham a mesma origem, sigam
os mesmos princípios e ajam dentro da mesma esfera; numa palavra,
que sejam correlativos e homogêneos. [...]
Os americanos formam apenas um povo, em relação ao seu governo
federal; mas, no meio desse povo, deixaram-se subsistir corpos políticos
dependentes do governo nacional em alguns pontos, independentes em
todos os demais, que têm a sua origem particular, as suas doutrinas
próprias ou os seus meios essenciais de agir. Confiar a execução das
leis da União a tribunais instituídos por esses corpos políticos era dar
à nação juízes estrangeiros. Mas ainda, cada Estado não é apenas um
estranho em relação à União, é ainda um adversário de todos os dias,
pois a soberania da União não poderia perder senão em proveito da
soberania dos Estados.
Fazendo aplicar as leis da União pelos tribunais dos Estados particulares,
entregava-se, pois, a nação, não só a juízes exteriores, mas ainda a
juízes parciais. Aliás, não era apenas o seu caráter que tornava os
tribunais dos Estados incapazes de servir a uma finalidade nacional;
era sobretudo o seu número. [...]
Por isso, concordaram os legisladores da América em criar um poder
judiciário federal, para aplicar as leis da União e decidir certas questões
de interesse geral, que fossem de antemão definidas com cuidado. Todo
o poder judiciário da União foi concentrado num só tribunal, chamado
Suprema Corte dos Estados Unidos. Mas, para facilitar o andamento
das questões, acrescentaram-se a ele tribunais inferiores, encarregados
de julgar soberanamente as causas pouco importantes ou de estatuir,
em primeira instancia, em questões mais graves.
Sobre a criação dos tribunais federais, Alexis de Tocqueville31
recorda que não se podia atribuir tal privilégio às diversas cortes dos
Estados, pois isso representaria, em verdade, a destruição da soberania
constitucional da União por meio de um instrumento normativo inferior
31 TOCQUEVILLE, 112-113.
194
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
(lei), soberania que já havia sido entregue pelos Estados particulares
quando abdicaram da porção de independência. Assim, ao permitir que
se criassem tribunais federais, desejou-se tirar dos Estados o direito de
resolver, cada qual à sua maneira, questões de interesse nacional para se
formar um corpo de jurisprudência uniforme para a interpretação das leis
da União. Os federalistas32, por exemplo, lecionavam que:
Por outra parte, muitas razões se opõem, no meu entender, a que se
faça uma disposição precisa em favor dos tribunais dos Estados. Não
é fácil prever até que ponto prejuízos de localidade podem fazer os
tribunais locais pouco próprios para exercitar a jurisdição nacional;
mas o que não é difícil de ver é que os tribunais constituídos como os
de certos Estados são absolutamente impróprios para esse fim. Juízes
revogáveis à vontade, ou anuais, não podem ser assaz independentes
para que deles se possa esperar a rigorosa execução das leis nacionais
e, pelo menos, se lhes desse a competência em primeira instância,
seria necessário deixar ao direito de apelação maior latitude possível.
Já entre 1895 a 1937, a economia dos Estados Unidos começou a
passar do plano local para o plano nacional, sendo impossível controlar
certas consequências, dentre as quais a extensão do controle da União
sobre matérias até então sujeitas ao controle dos Estados33, o que aumentou
os conflitos envolvendo os interesses da União, que foram repercutir no
Judiciário.
Após a I Guerra Mundial, “o governo controla os preços, as estradas
de ferro, as linhas telefônicas e telegráficas, o comércio marítimo, as
habitações e o trabalho; implanta o racionamento de certos alimentos e
de combustíveis e torna-se o maior empregador do país. A concentração
de poderes no Presidente é acompanhada de considerável alargamento
da autoridade federal”34.
Portanto, a finalidade fundamental da Justiça Federal foi o de
assegurar a interpretação correta e a observância do fiel cumprimento das
leis federais e da Constituição, a fim de evitar a possibilidade de parcialidade
32 HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte: Editora Líder,
2003. p. 477.
33 RODRIGUES, op. cit., p. 126.
34 RODRIGUES, op. cit., p. 126.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
195
pelos Estados, inclusive de causas envolvendo seus próprios cidadãos que,
eventualmente, estivessem litigando com cidadãos de outros Estados35.
Todos esses fatores contribuíram para a criação e consolidação da
Justiça Federal dos Estados Unidos, como um dos órgãos mais fortes no
cenário institucional daquele país.
3 A FORMAÇÃO DA JUSTIÇA FEDERAL AMERICANA E A SUA CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL
O governo de acordo com o consentimento da maioria dos governados
é tido como o cerne do sistema norte-americano, sendo uma tarefa árdua
a maneira de se proteger as minorias da tirania das maiorias sem incorrer
em contradição com o princípio da governança majoritária36.
A formação da Justiça Federal americana, dessa forma, parece
ser um reflexo claro do pensamento de proteção das minorias e de
consequente proteção dos ideários dos teóricos federalistas, ao buscarem
os benefícios que um governo mais efetivo37 e enérgico poderia trazer, já
que pequenas repúblicas seriam vulneráveis38 e poderiam se comportar
como províncias, ter disputas entre si ou ser absorvidas por nações mais
fortes39. Os federalistas defendiam que:
35 CORWIN, Edward S. A Constituição norte-americana e seu significado atual. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
s/d. p. 188.
36 “Nosso país é feito de minorias e, por isso mesmo, nosso sistema depende da capacidade e da disposição dos
diferentes grupos para compreender os interesses coincidentes eu podem uni-los para formar uma maioria em
relação a determinada questão; o preconceito pode nos tornar cegos aos interesses coincidentes que de fato
existem”. ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade.
São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 12 e 204.
37 “A necessidade de submeter os tribunais da União as causas que não podem ser imparcialmente decididas
pelos Estados falam por si mesma. Ninguém pode ser juiz em causa própria ou em causa em cuja decisão
possa ter o mais pequeno interesse; isso basta para que deva ser atribuída aos tribunais federais a decisão das
contestações entre os diferentes Estados e os seus cidadãos, assim como a de certas causas entre cidadãos do
mesmo Estado, como reclamações das mesmas terras concedidas por diferentes Estados em consequência de
pretensões contrárias sobre limites”. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John, op. cit., p. 470.
38 “O mais provável de tudo é que na América, do mesmo modo que na Europa, nações vizinhas, inspiradas
por interesses opostos e por paixões inimigas, abracem partidos diferentes. Enganadas pela distancia que
as separa da Europa, será mais natural que se receiem mutuamente uma das outras, do que temerem nações
distantes, e por isso mesmo é mais de se esperar que formem aliança com os estrangeiros, para se defenderem
contra os inimigos da porta, do que brigar entre si para se defenderem contra os primeiros”. HAMILTON,
Alexander; MADISON, James; JAY, John, op. cit., p. 34.
39 KETCHAM, Ralph. Escritos antifederalistas. Barcelona: Hacer, 1996. p. 25.
196
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
De muitos outros nos tem dado conhecimento a nossa experiência
passada; falo das leis fraudulentas que foram feitas por grande número
dos nossos Estados; e ainda que a Constituição proposta oponha
obstáculos a que se repitam as circunstâncias que a ocasionaram,
sempre é de temer que o mesmo espírito se reproduza com outras
formas que não se podem prever nem prevenir. Tudo o que pode
alterar a harmonia entre os Estados deve ser submetido à vigilância
da autoridade federal40.
Por outro lado, os antifederalistas viam nos ideários federalistas de
crescimento do comércio e do prestígio internacional apenas uma ambição
de alguns homens por um “império esplendoroso” em que o povo se veria
afogado por impostos, o serviço militar obrigatório, dentre outras coisas41.
As 13 colônias, até a Guerra da Independência, tinham vivido de
modo quase inteiramente independente uma das outras, e não tinham
entre si, por assim dizer, nada de comum: nem no que respeita à sua
origem, nem ao seu povoamento, nem às suas convicções religiosas,
nem à sua estrutura e aos seus interesses econômicos. Não existia entre
elas nenhum elo político, independentemente do seu elo comum com a
metrópole, nenhuma instituição comum as reunia antes da Revolução42.
Em relação à existência de uma Justiça da União, dissociada da dos
Estados, os antifederalistas diziam, também, que ela seria outra forma de
submeter o povo a leis duras e arbitrárias, pois consideravam que nenhum
governo que atuasse sobre um território tão vasto como o dos Estados
Unidos poderia ser controlado pelo povo, considerando os amplos poderes
do governo central como uma ameaça familiar aos direitos e liberdades
dos indivíduos43.
A autonomia dos Estados e dos governos locais, portanto, deveria ser
preservada, pois eram vistas como essenciais à manutenção das liberdades
individuais, que poderiam sucumbir diante do despotismo do governo
central da União. Os antifederalistas viam, dessa forma, na ideia de um
Judiciário Federal certa associação com o Executivo, no controle dos atos
do Congresso, tese difundida durante a Convenção Constituinte de 1787.
40 HAMILTON; MADISON; JAY, op. cit., p. 469.
41 KETCHAM, , op. cit., p. 25.
42 DAVID, op. cit., p. 369.
43 KETCHAM, Ralph, op. cit., p. 27.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
197
Nos ensaios denominados Brutus, em especial os de n. I, XI, XII e
XV, os antifederalistas fizeram duras críticas à pretensão de se instituir
uma Justiça Federal, inclusive à existência de uma Corte Suprema44, que
podem ser sintetizadas no seguinte pensamento (Brutus I - Aos cidadãos
do Estado de Nova Iorque, em 18 de outubro de 1787):
O poder judicial dos Estados Unidos se distribuirá desde um Tribunal
Supremo, e desde os tribunais inferiores que o Congresso disponha
e estabeleça periodicamente. Os poderes destes tribunais são muito
amplos; sua jurisdição compreende todas as causas cíveis, exceto as
que surjam entre cidadãos de um mesmo Estado, e alcançam todas as
causas de direito e equidade que surjam abaixo da Constituição. Deve
estabelecer-se pelo menos um tribunal inferior, suponho, em cada
Estado, com os suficientes cargos executivos para seu funcionamento.
É fácil ver que, se tudo segue o seu curso normal, estes tribunais
ofuscarão a dignidade e a respeitabilidade dos tribunais estaduais.
Estes tribunais serão, por si mesmos, completamente independentes
dos Estados, derivando sua autoridade dos Estados Unidos, e receberão
do Governo Central salários fixos, sendo de se esperar que absorvam
todos os poderes dos tribunais dos respectivos Estados45.
O pensamento antifederalista tinha certa razão, pois, em diversos
momentos, efetivamente, os poderes judiciais da União tiveram que se
sobrepor aos interesses dos Estados, sem, no entanto, que se suprimisse
a autonomia judicial dos mesmos, em claro exemplo da maturidade
institucional dos americanos.
Edward S. Corwin46 recorda que não seria de se surpreender que
a presença no mesmo território de duas jurisdições autônomas houvesse
44 Sobre a existência de um Tribunal Supremo, diziam os antifederalistas (Brutus XV, 20 de março de 1788)
que “o poder deste tribunal é, em muitos casos, superior ao do Poder Legislativo. Hei demonstrado, em
um escrito anterior, que este tribunal está autorizado a decidir sobre o significado da Constituição, e não
só com arranjo ao sentido natural e óbvio das palavras, mas também conforme ao espírito e a intenção das
mesmas. O exercício deste poder não estará subordinado ao Legislativo, mas acima dele. [...] O Tribunal
Supremo tem o direito, com independência do Legislativo, de interpretar a Constituição e todas as suas
partes e este sistema não prevê nenhum poder que corrija sua interpretação ou o anule. Se, portanto, o
Legislativo aprovasse leis desconformes com o sentido que os juízes dessem a Constituição, estes últimos
as declarariam nulas e em conseqüência, neste sentido, seu poder é superior ao Legislativo”. KETCHAM,
Ralph, op. cit., p. 347.
45 KETCHAM, op. cit., p. 311.
46 “A cláusula de Supremacia Nacional está prevista no art. VI, 2, sendo considerado o ponto nodal da
Constituição (“the linch pin of the Constitution”), ao combinar o Governo Central e dos Estados numa
organização governamental, um Estado Federal. Segundo esse princípio, o Governo Central deve ser, em sua
198
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
produzido diversos atritos entre as mesmas, tendo a Suprema Corte
aplicado, diversas vezes, a tese do princípio da Supremacia Nacional,
mesmo diante de casos nos quais o Congresso tentou proteger, mediante
leis47, o interesse local.
Em casos de conflito entre as duas jurisdições (estadual e federal), foi
promulgada uma Lei Judiciária de 1789, que estabeleceu o sistema de tribunais
federais, atribuindo à Suprema Corte a competência para julgar certos casos
levados de tribunais federais inferiores e tribunais estaduais, bem como para
ditar a ação dos juízes federais e de quaisquer autoridades federais48.
E como os práticos americanos conseguiram superar as dificuldades
de se ter duas ordens de jurisdição: uma estadual e outra federal? A Justiça
Federal se distinguiu por uma competência que pôde ser sintetizada nos
casos cíveis, nos criminais (que envolvessem a discussão a respeito da
violação de leis emanadas do Congresso ou à Constituição), os casos nos
quais o Governo dos Estados Unidos (União) fosse parte, bem como as
causas cíveis envolvendo cidadãos de Estados diferentes, caso a importância
da questão envolvesse pelo menos U$ 10.000,00 (dez mil) dólares49.
Pela Seção 1 do art. III da Constituição americana, o Judiciário
dos Estados Unidos é exercido por uma Corte Suprema e pelos tribunais
inferiores que o Congresso periodicamente criar e estabelecer50.
maioria, um governo de poderes enumerados, com poderes supremos a quaisquer poderes estaduais conflitantes.
Caso ocorra conflito entre lei nacional e uma estadual, a questão a ser respondida é se a primeira se inclui numa
definição justa dos poderes do Congresso. Ao analisar um conflito, a Suprema Corte analisa se a lei estadual é
compatível com a política expressa na lei federal, sendo que a lei e a política federais primam sobre a lei e a política
estaduais (Sola Electric Co. v. Jefferson Electric Co., 1942). Em Ohio v. Thomas (1899), por exemplo, decidiu-se
que um funcionário federal não estava “sujeito à jurisdição do Estado no tocante às questões de administração
que houvessem sido aprovadas pela autoridade federal”. CORWIN, Edward S., op. cit., p. 188 e 215-216.
47 Em 1793, o Congresso proibiu os Tribunais Federais de conceder ordens de injuction relativas a processos
perante tribunais estaduais, mas a lei estava cravada de exceções. Os Tribunais Federais, também, na
execução criminal, têm interferido na Justiça dos Estados, em função do alargamento do conceito de due
process, com o beneplácito da Suprema Corte, que, de certo modo, tem preferido não se pronunciar sob
o argumento de que “para declinar de sua competência para rever decisões que, por sua opinião, bem ou
mal, não apresentam questões suficientemente graves”, o que fez elevar o número de habeas corpus junto
aos juízes federais de distrito, em nome de pessoas acusadas ou condenadas por crimes nos Estados, sob o
argumento de violação de direitos constitucionais. CORWIN, Edward S., op. cit., p. 188-190.
48 BAUM, Lawrence. A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória e respeitada instituição judiciária
do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 37.
49 Ibidem, p. 21.
50 O Poder Judiciário dos Estados Unidos será investido em uma Suprema Corte e nos tribunais inferiores
que forem oportunamente estabelecidos por determinações do Congresso. [...]
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
199
Portanto, a existência de Tribunais Federais, à exceção da Suprema
Corte, não decorre de criação da Constituição, mas de leis do Congresso,
que, inclusive, pode extingui-los, caso, política e administrativamente,
considere a medida conveniente. No entanto, uma vez, criados, devem
os Tribunais Federais imediatamente ser investidos do poder judiciário
delegado pelo art. III da Constituição51.
Com base no permissivo constitucional antes mencionado, o
Congresso americano criou um sistema de tribunais federais em forma
de pirâmide, muito parecido com o sistema brasileiro, em que a jurisdição
originária é dividida conforme regras de competência territorial do país,
conforme lembrado por Bernard Schwartz52, a saber:
a) Os tribunais distritais federais (corresponderiam as Seções e
Subseções da Justiça Federal brasileira), em primeiro plano, totalizando
94 (noventa e quatro) distritos judiciais, havendo pelo menos um distrito
para cada Estado, inclusive Havaí e Porto Rico, conquanto mais da metade
dos Estados tenha mais de um distrito53.
Nenhum distrito pode ter competência territorial que extrapole mais
de um Estado, sendo que em cada distrito existe um juiz. A composição
dos tribunais, número de juízes, varia conforme a população e tamanho
de sua unidade territorial, entre 01 (um) até 18 (dezoito) juízes, que, em
regra, julgam os casos de maneira singular, podendo haver julgamento
por três membros em casos específicos, como os que envolvem as leis
antitrustes federais.
Os tribunais distritais julgam todas as causas federais, com exceção
daquelas sujeitas a classes especiais (o Tribunal Tributário, O Tribunal
de Comércio Internacional e o Tribunal de Reclamações)54.
b) As Cortes de circuito ou cortes de apelação federais (Courts of
Appeals, corresponderiam aos Tribunais Regionais Federais brasileiros).
Os circuitos são designados por números, totalizando 12, incluindo o
circuito do Distrito da Colúmbia, no qual se concentram as causas da
51 SCHWARTZ, op. cit., p. 162-178.
52 SCHWARTZ, op. cit., p. 162-178.
53 Nova York e Texas, por exemplo, são divididos em quatro distritos.
54 BAUM, Lawrence. A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória e respeitada instituição judiciária
do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 23.
200
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
União, sendo considerada a segunda corte federal mais importante do
país, após a Suprema Corte55.
Os tribunais de circuito têm composição que varia entre três
membros até nove juízes. Constituem-se como tribunais de apelação,
inclusive de decisões administrativas autônomas da administração federal
(do Tribunal Tributário e de outros órgãos administrativos, o que se
mostra interessante), não tendo competência originária, diferentemente
do sistema de justiça federal brasileiro.
Além dos 12 (doze) tribunais de circuito, há 01 (um) tribunal de
apelação especializado em matéria envolvendo propriedade intelectual e
ações de danos contra o Estado, dentre outras matérias.
Quanto ao processo de escolha da magistratura federal, os juízes
federais americanos são nomeados pelo Presidente da República após
confirmação pelo Senado, sendo que interferências políticas acabam
desempenhando certo papel na opção pelos membros da magistratura,
que costumam recair sobre advogados que tenham exercido funções no
Executivo, Legislativo ou junto a docentes das faculdades de Direito56.
Talvez a maior fraqueza, na prática, do sistema de selecionar os
juízes federais nos Estados Unidos se encontre no fato de que,
muito freqüentemente, o poder presidencial de nomear tenha sido
usado para fins políticos. [...] Conquanto se possa condenar o
método de nomeação adotado no sistema judiciário federal, deve-se
admitir que, pelos padrões americanos, não é tão mau como possa
parecer ao estudioso do Direito Comparado. Certamente, o modo
de escolha do Governo federal é bem superior àquele pelo qual os
juízes são selecionados na grade maioria dos estados americanos.
[...] E, mesmo com a tendência já notada de nomear juízes federais
numa base fundamentalmente política, é de surpreender o elevado
gabarito geral do judiciário federal57.
55 TUSHNET, Mark. The Constitution of the United States of America: a contextual analysis. Portland: Hart
Publishing, 2010. p. 129.
56 SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: 1966. p. 167-169; TUSHNET,
Mark. The Constitution of the United States of America: a contextual analysis. Portland: Hart Publishing,
2010. p. 127-128.
57 Ibid., p. 168-170.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
201
Lawrence Baum58 lembra ainda que os interessados em uma nomeação
para os tribunais federais inferiores costumam lançar campanhas bem
ativas, as quais seriam quase uma necessidade para alcançar a magistratura,
procurando-se assegurar apoio das autoridades (lobbyist) que escolhem os
juízes ou daqueles que têm influência sobre as autoridades que as escolhem.
c) A Suprema Corte (U. S. Supreme Court), no vértice da pirâmide, é
o tribunal mais importante do país, sendo o testemunho mais significativo
do Judiciário e das Instituições dos Sistemas de Justiça americanos.
Não custa informar que, o respeito dispensado aos tribunais federais,
em especial à Suprema Corte, não seria menor do que a influência que eles
exercem na vida dos americanos, podendo-se dizer, sem exageros, que a
história americana poderia ser escrita em termos de suas decisões federais
ou que a história dos mesmos seria incompleta se não as levasse em conta59.
Conquanto as decisões de outros tribunais também costumem ser de
grande importância, os poderes da Suprema Corte são elevadamente maiores,
pois aquela tem o poder de revogar até as decisões mais ponderadas e populares
de outros setores do governo, caso as julgue contrárias à Constituição60.
Lawrence Baum61 aponta o critério qualitativo da Justiça Federal,
que concentra os casos mais significativos em termos de relevância jurídica
e política, enquanto a Justiça dos Estados se detém a causas em maior
quantidade, mas de menor relevância. Mesma posição apresenta René
David62, para quem a jurisdição federal tem proeminência por lidar com
questões que estão no primeiro plano da atualidade política, a exemplo
das liberdades públicas, questões envolvendo integração racial, aplicação
das leis anti-trust, direitos de defesa, dentre outras. Essa proeminência da
Justiça Federal, sem desconsiderar outros fatores, pode ser atribuída ao
elevado grau de qualificação da magistratura federal63.
58 A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória e respeitada instituição judiciária do mundo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 61.
59 SCHWARTZ, Bernard, op. cit., p. 160.
60 DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 4.
61 A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória e respeitada instituição judiciária do mundo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 21.
62 Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 386.
63 “Nos Estados Unidos reconhece-se a alta qualificação e integridade dos juízes federais, nomeados pelo
presidente, comparados com os juízes eleitos, ainda que ambos os tipos de funcionários foram selecionados
principalmente por considerações partidárias”. WEBER, Max. O que é a burocracia. Brasília: Conselho
202
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
Como exemplo significativo do critério qualitativo, em um dos
momentos mais cruciais da afirmação institucional americana (1890 a
1937), o Judiciário Federal teve desempenho fundamental na formulação da
teoria do devido processo substantivo e econômico (proteção dos direitos
de propriedade e supervisão da regulação legislativa de negócios), já que
uma parcela desses conflitos se sujeitou à jurisdição federal64, em dos
momentos de maior atividade judiciária.
O papel da jurisprudência e das Instituições de Justiça americanas
foram essenciais no processo acima. No entanto, dado a aproximação que o
sistema Common Law vem tendo da codificação, são cada vez mais comuns
as críticas ao papel da jurisprudência e do papel criador do direito pelos
juízes e tribunais. Jeremy Waldron65, ao tratar do tema, traz a discussão
em torno da figura do juiz e dos tribunais no direito consuetudinário, que,
segundo o autor, fingiriam que estão descobrindo o que a lei é o tempo
todo, em que pese não se apresentarem explicitamente como legisladores.
Entre alguns juristas do direito consuetudinário, essa atitude
cristaliza-se em uma relutância curiosa, quase esnobe, de sequer
considerar a legislação como uma forma de lei. [...] O que pode
significar alguém insistir em que legislação não é direito? No que
tem menos de controvertida, a afirmação incorpora uma dose saudável
de realismo jurídico. Um projeto de lei não se torna lei simplesmente
sendo decretado, ocupando o seu lugar em Halsbury ou no livro de
estatutos. Torna-se lei apenas quando começa a desempenhar um
papel na vida da comunidade, e não podemos dizer qual papel será – e,
portanto, não podemos dizer qual lei foi criada -, até que ela comece
a ser administrada e interpretada pelos tribunais. Considerado como
um pedaço de papel com selo de aprovação do parlamento, um estatuto
não é direito, mas apenas uma possível fonte de direito66.
Federal de Administração, s/d, p. 17; Max Weber faz o mesmo reconhecimento na obra Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. II. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2012. p. 203.
64 As primeiras intervenções dos tribunais federais a respeito do devido processo substantivo e econômico
estadunidense consistiram em interpretações segundo as quais não se poderia tomar a propriedade privada
para fins públicos, salvo mediante uma justa indenização, pois a cláusula do processo devido ordena ao
Executivo que se concedam ao processado os direitos processuais que lhe são devidos por lei, e a cláusula
de indenização justa ordena ao executivo indenizar as pessoas por qualquer expropriação para fins públicos.
Além do mais uma explicação mais adequada para a colocação da cláusula da justa indenização é que tanto
esta como a do devido processo se referem essencialmente a ações do Executivo, não da legislatura. WOLFE,
Chistopher. La transformacion de la interpretacion constitucional. Madrid: Civitas, 1991. p. 205-206.
65 A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 13.
66 WALDRON, op. cit., p. 11-12.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
203
John Hart Ely67 parece comungar de posição semelhante a Jeremy
Waldron, no que diz respeito à depreciação indiscriminada que se faz da
figura do Legislativo68 e a exaltação do Judiciário no sistema Common Law,
pois em que pese os Parlamentos não serem completamente democráticos,
isso não quer dizer que os tribunais sejam mais democráticos que as casas
legislativas.
Ainda, John Hart Ely69 defende que numa democracia representativa,
as determinações de valor devem ser feitas pelos representantes eleitos
que poderão ser destituídos através do voto, caso a maioria desaprove tais
representantes, que funcionarão mal caso obstruam os canais de mudança
política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos
permaneçam onde estão ou caso neguem às minorias a proteção que o
sistema representativo fornece a outros grupos, devido à mera hostilidade
ou à repressão preconceituosa em reconhecer uma comunhão de interesses,
o que dará ensejo à intervenção dos tribunais70, desbloqueando-se os canais
de mudança política.
O espírito democrático, prático e de cidadania, evidentemente,
refletiu nas Instituições dos Sistemas de Justiça e, consequentemente,
na magistratura americana, sabedora de que muitos dos problemas que
afligiam aquele país não poderiam ser resolvidos apenas no âmbito judicial.
O direito constitucional existe em diversos níveis, seja como gerador
de conteúdo político para o povo em geral, como um conjunto positivo de
mandamentos para políticos e burocratas e como um discurso profissional
corrente para a comunidade jurídica71.
67 Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 89.
68 “Se conseguirmos fazer com que nossos legisladores efetivamente legislem, teremos uma compreensão bem
clara de seus objetivos. Não estou afirmando que com isso não teremos mais um bom número de palhaços
no Congresso, mas pelo menos poderemos dizer que, se os legisladores são palhaços, é isso que merecemos”.
ELY, John Hart, ibidem, p. 179.
69 ELY, John Hart, ibidem, p. 137.
70 Para John Hart Ely, ibidem, p. 7-8, os tribunais criam o direito o tempo todo, e ao fazê-lo podem ter a intenção
de inspirar-se nas fontes habituais dos adeptos do não interpretacionismo, como os princípios fundamentais
da sociedade. No entanto, fora da jurisdição constitucional, preenchem as lacunas que o Legislativo deixou
nas leis que aprovou ou tomam conta de uma área que aquele Poder entregou, de caso pensado, ao Judiciário
para que a desenvolvesse.
71 ACKERMAN, Bruce. Transformação do direito constitucional: nós, o povo soberano. Belo Horizonte: Del Rey
2008. p. 520.
204
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
Os juízes podem até transformar, para o bem ou para o mal, a essência
dos direitos constitucionais, mas os mesmos se encontram em precária
situação quando se trata de solucionar questões da estrutura institucional72,
sendo um equívoco pensar que os juristas podem desempenhar um papel
de vanguarda quando o povo silencia, sendo natural que os mesmos
tentem preservar as conquistas do passado73, eis uma das grandes lições
da envergadura institucional dos norte-americanos.
As instituições judiciárias exercem grande influência sobre a vida
das pessoas, por mais que as mesmas não percebam. A maneira como se
dá a organização das mesmas, evidentemente, trará repercussões diversas
na resolução dos conflitos.
Em que pese a dualidade de jurisdições dos Estados Unidos, com
todas as divergências possíveis entre os direitos dos diversos Estados,
prevaleceu entre os americanos uma profunda e fundamental unidade no
direito, derivada de certo número de fatores institucionais, principalmente
do estado de espírito que reina no povo e nos juristas americanos74.
Mais importante que estes fatores institucionais é, sem dúvida, o estado
de espírito que reina entre os juristas dos Estados Unidos. Estes aceitam
bem, desde que certos princípios sejam respeitados, que as leis (statutes)
possam ser diferentes entre os diversos Estados da União; mas não
admitem que uma interpretação diversa possa ser dada à common law75.
O povo dos Estados Unidos, através de instituições transparentes,
por meio da liberdade, combateu o individualismo que a igualdade fazia
nascer. Com essas instituições livres, os estadunidenses possuem direitos
políticos usualmente exercidos, o que faz recordar, em cada indivíduo, que
o mesmo é um cidadão que vive em sociedade, devendo dirigir seu espírito
para a ideia de que o dever e o interesse dos homens seria tornar-se útil
aos seus semelhantes76, pois se a democracia é tida como o primeiro grande
tema do constitucionalismo moderno, a sua limitação é o segundo77.
72 ACKERMAN, 2008, p. 526-527.
73 ACKERMAN, 2008, p. 523.
74 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 375.
75 Ibidem, p. 376.
76 “A princípio, ocupa-se do interesse geral por necessidade, e depois por escolha; o que era cálculo passa a
ser instinto; e, à força de trabalhar para o bem dos seus concidadãos, adquire-se, afinal, o hábito e o gosto
de servir-lhes”. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1987. p. 388-391.
77 ACKERMAN, Bruce. A nueva división de poderes. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 75.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
205
Não é demasiado recordar que Alexis de Tocqueville78, na sempre
mencionada obra A democracia na América, já notava que a relação do
indivíduo com as instituições sempre foi uma particularidade nos Estados
Unidos, pois, de modo algum se pretendeu que o homem, num país livre,
tivesse o direito de fazer tudo; de forma contrária, ao cidadão foram impostas
obrigações sociais das mais variadas formas; em nenhum momento se teve
a ideia de atacar o poder da sociedade no seu principio e de lhe contestar
os direitos, mas se limitou a dividi-lo no seu exercício. Dessa maneira,
procurou-se chegar a tornar a autoridade grande, embora pequeno o
seu agente, a fim de que a sociedade continuasse a ser bem regulada e
continuasse livre.
CONCLUSÕES
O trabalho analisou o papel da Justiça Federal no cenário
constitucional americano. Para tanto, abordou-se o histórico de formação
desse ramo da justiça, que surgiu em importante momento da histórica
daquele país.
A partir da análise formação da Justiça Federal dos Estados Unidos
da América, percebe-se que o histórico de formação de uma instituição é
essencial para compreender o seu comportamento institucional presente,
assim como a sua conduta frente a outras funções estatais, a exemplo da
legislativa e executiva.
O estudo se mostra atual na medida em que se verifica a aproximação
dos dois grandes sistemas jurídicos contemporâneos, a Commow Law e o
Civil Law, movimento que há bastante tempo tem gerado efeitos no direito
brasileiro, principalmente com o crescente ativismo judicial que formou
após a Constituição de 1988.
A aproximação entre os sistemas tem levado a mudanças de
comportamentos entre as instituições. Portanto, para se compreender o
atual protagonismo judicial nos países do sistema Civil Law, a exemplo
do Brasil, há que se perquirir a razão pela qual os agentes jurídicos desses
países têm voltado os olhos para o sistema da Common Law, o que decorre
de um novo contexto político que eles têm vivenciado.
Se antes causava encantamento aos países do sistema Civil Law
o princípio da legalidade, fruto da modernidade, atualmente, a extensão
78 TOCQUEVILLE, op. cit., p. 361.
206
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
da esfera pública para além do parlamento e do executivo, que passa a
protagonizar no Judiciário, causa certa preocupação, pois o domínio da
esfera pública, como poderes mágicos, há que ser utilizado com prudência.
E, nesse ponto, a análise do Sistema de Justiça Federal norte-americano
demonstrou que a retração da atividade judiciária decorreu de uma
necessidade histórica e econômica, comprovando que as instituições são
permeadas por ideologias.
Porém, a contenção do Judiciário Federal americano não se deu
através de um controle político das ideologias de seus agentes, mas como
decorrência de um alto controle da sociedade civil em relação à posição
de tais agentes. As instituições são fortes na medida em que a sociedade
civil consegue dialogar de forma transparente com as mesmas.
O trabalho analisou, para tanto, a origem do sistema Common Law,
na Inglaterra, desde seu início, voltado para a resolução de questões práticas,
sem muita preocupação com burocratismos desnecessários, tão comuns nos
sistemas do Civil Law, altamente apegado a formalismos bacharelescos.
Analisou-se o triunfo do federalismo com uma das razões que fizeram
surgir a Justiça Federal americana. A forte resistência ao governo da União
foi uma das razões básicas para se criar uma Justiça Federal dissociada da
Justiça dos Estados. E foi no plano judiciário que a União foi fortalecida e
consolidou o Federalismo, já que as questões políticas sensíveis eram colocadas
a cargo de um ramo judiciário isento dos provincianismos judiciários.
Sem a existência de uma Justiça Federal, dificilmente as ideias dos
Federalistas poderiam se consolidar, pois não se teria uma instituição
isenta o suficiente para decidir com base na prevalência dos interesses
maiores da jovem nação as divergências locais, tão comuns no início da
história americana.
Em vez de violência para conter os dissensos, o governo dos Estados
Unidos se valeu da Justiça Federal, através dos juízos e tribunais federais,
bem como da Suprema Corte, que se tornou uma das mais respeitadas
instituições daquele país.
O artigo tratou, também, a respeito da formação da Justiça Federal
americana e sua consolidação institucional, exemplos claros de proteção das
minorias e dos ideários federalistas. Nesse sentido, somente a instituição
de uma Justiça transparente e isenta seria capaz de conter os constantes
dissensos dos diferentes povos que iniciaram a colonização.
Paulo Fernando Soares Pereira;
Paulo Roberto Barbosa Ramos
207
REFERÊNCIAS
ACKERMAN, Bruce. Transformação do direito constitucional: nós, o povo
soberano. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.
______. La nueva división de poderes. México: Fondo de Cultura Económica, 2007.
BAUM, Lawrence. A Suprema Corte Americana: uma análise da mais notória
e respeitada instituição judiciária do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987.
BEARD, Charles Austin. A Suprema Corte e a Constituição. Rio de Janeiro:
Forense,1965.
CORWIN, Edward S. A Constituição norte-americana e seu significado atual. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, s/d.
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 3. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_________. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de
constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Belo
Horizonte: Editora Líder, 2003.
KETCHAM, Ralph. Escritos antifederalistas. Barcelona: Hacer, 1996.
LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas
jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema e o Direito Constitucional
Americano. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992.
SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: 1966.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2. ed. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1987.
208
Revista da AGU, Brasília-DF, v. 14, n. 03, p. 183-208, jul./set. 2015
TUSHNET, Mark. The Constitution of the United States of America: a
contextual analysis. Portland: Hart Publishing, 2010.
WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
WEBER, Max. O que é a burocracia. Brasília: Conselho Federal de
Administração, s/d.
______. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol.
II. 4. ed. Brasília: Editora da UnB, 2012.
WOLFE, Chistopher. La transformacion de la interpretacion constitucional.
Madrid: Civitas, 1991.