Caio Prado Jr.: inCômodas ilusões
SECCO, Lincoln. Caio Prado Jr: O sentido da revolução. São Paulo: Boitempo, 2008.
Marcos Silva
Professor titular de Metodologia da História na FFLCH/USP
O livro de Lincoln Secco sobre o historiador Caio Prado Jr. revela cuidado
documental e esforço informativo, articulados por um zeloso trabalho de interpretação. Os trajetos intelectuais (formação, publicações) e políticos (atuação
partidária, intervenções mais gerais na área, experiência parlamentar) de Prado
Jr. merecem especial atenção no volume que não descuida de aspectos íntimos
daquela vida – amores, diiculdades etc. E, para chegar a esses resultados, Lincoln
utiliza fontes diversiicadas: a obra publicada, a correspondência e outros escritos inéditos de seu personagem, materiais da imprensa periódica e bibliograia
analítica, além de depoimentos e diferentes textos de memorialistas.
A contribuição de Caio para a relexão histórica no Brasil é bem estudada
nessa biograia, em diálogo com a fortuna crítica recente do personagem, o que
permite avaliar tanto contribuições tópicas (temas, conceitos, interpretações)
quanto mudanças de estilo na obra ao longo do tempo (ensaísmo inicial, tendência monográica subsequente, dedicação a questões ilosóicas mais gerais
e último ensaísmo), em articulação com o cenário político e social do país.
No plano da experiência pessoal de Caio Prado Jr., o livro traça um panorama do meio social onde ele nasceu e se formou: família rica e prestigiada
(uma árvore genealógica igura no volume), viagens internacionais e também
dentro do Brasil, algumas das melhores oportunidades educacionais na São
Paulo daquele tempo – o Colégio São Luís e a centenária Faculdade de Direito
do Largo São Francisco, que depois se integraria à USP –, temporada de estu-
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dos na Grã-Bretanha. Trata-se de um reinado universo de classe que também
abrigava claras violências contra os pobres, como se observa no registro da
expulsão, pelo prefeito paulistano Antonio Prado (tio-avô de Caio), de negros
do Rosário que ocupavam o espaço central da cidade onde depois se ergueria
a praça batizada com o nome daquele governante (p. 22).
Mas as relações de alguns membros da família Prado com a comunidade
negra paulista podem ter possuído também um viés mais freyreano (cf. Casa
grande & senzala), como se observa em passagem de entrevista que Tarsila do
Amaral concedeu à revista Veja:
Quando o Oswald [de Andrade] tinha uma coisa para dizer, ele não resistia mesmo e aí
falou sobre a dona Veridiana Prado e dizem que ela não era bem ariana, que ela tinha uma
misturazinha lá e o Oswald falou daquela gloriosa mulata que [é] a dona Veridiana Prado.
Ora, o Paulo Prado era parente muito próximo, de maneira que nunca mais falou com o
Oswald (Entrevista de 23/02/1972. Disponível em tigredefogo.blogspot.com/2007/06/
vidas-tarsila-do-amaral.html).
É claro que riqueza familiar, boa escolaridade e inteligência pessoal nada
explicam sozinhas: outros homens e mulheres na mesma faixa social (e também
talentosos, à sua maneira) tiveram trajetos muito diferentes daqueles trilhados
por Prado Jr. Caracterizando seus últimos anos de vida, Lincoln diz que ele
“levava uma vida confortável, bem estabelecida na classe média” (p. 124). Sendo
Caio um empresário (dono de editora), que auferia “algumas rendas” e morava
numa grande casa, dotada de amplo jardim arborizado e situada em travessa
da av. Brasil (zona residencial muito valorizada de São Paulo), torna-se difícil
concordar com aquela classiicação social! A menos que Lincoln retome um
uso da expressão “classe média” próprio ao século XIX, que assim designava
a burguesia para diferenciá-la da nobreza tradicional...
Embora Prado Jr. não fosse um empresário tão rico quanto seu amigo
Amador Aguiar (presidente do Bradesco, proprietário de diferentes grandes
empresas), ele também não se aproximava do padrão de vida de um assalariado
que morasse em apartamento de dois ou três dormitórios, com inanciamento
ainda não quitado. Classe média, no Brasil, é por aí ou menos, de acordo com
a canção “Infelizmente”, de Lamartine Babo e Ary Pavão:
De terno usado, dou uma volta na cidade,
Tomo uma média e vão-se os níqueis miseráveis.
Infelizmente sou da classe média!
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A posição de Caio na estrutura econômica e social brasileira – propriedade de meios de produção, recebimento de rendas, apropriação da mais valia
produzida por outrem, dentro da lei – é a de um burguês clássico! Com a luxuosa
originalidade da autocrítica de classe, dotada de erudição e mesmo destaque na
cultura histórica do país.
Paralelamente, o nível político dessa vida é explorado, com realce para
o ingresso e a atuação no Partido Comunista do Brasil, os desencontros com
algumas linhas partidárias e a permanência na instituição, apesar de restrições
que seus escritos sofreram em meios de esquerda.
São campos biográicos incontornáveis, quando se trata de Prado Jr., e bem
caracterizados por Lincoln. Um risco nesse percurso é se manter apenas no fascínio pela saga do elegante paulistano rico interessado em teoria marxista e prática
política comunista – o elogio da burguesia ilustrada de esquerda. O biógrafo
enfrenta bem esse desaio, trazendo-nos uma dinâmica maior da experiência
histórica de São Paulo e do Brasil – as mudanças e permanências dos anos 1930,
por exemplo. Tal dinâmica é recuperada a partir de uma historiograia próxima
de Prado Jr. (Edgard Carone, dentre outros), explicação mais clássica sobre 1930
sem incorporar um tema como a memória do vencedor, construído pelo historiador Carlos Alberto Vesentini, no livro A teia do fato, e retomado por diferentes
pesquisadores. Diante das opções historiográicas predominantes nessa biograia,
os trabalhadores tenderam a aparecer pouco e continuaram a ser, mais destacados,
agentes como burguesia paulista, oligarquia gaúcha, tenentes (líderes operários
são evocados, nos tempos tenentistas, na “bastilha do Cambuci” – p. 30). É um
contraponto em relação ao espaço ainda restrito que mesmo boa parte da historiograia marxista brasileira tem reservado aos trabalhadores, apesar de algumas
belas páginas sobre o tema em Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, mais seus
desdobramentos na historiograia acadêmica que se inspirou nesses universos.
É assim que a legislação trabalhista aparece descrita como “em grande
medida criada pelo novo governo” (p. 30), sem registro de que ela também foi
expropriada de reivindicações de trabalhadores e a partir de então apresentada
na condição de generosa e moderna doação de governantes. E a complexidade
da estrutura social no Distrito Federal brasileiro dessa época (Rio de Janeiro)
foi mais associada, por Lincoln, à presença de “classe média proissional e burocrática, militares de carreira, alunos da escola militar e estudantes de escolas
superiores” (p. 33), sem ênfase nos trabalhadores pobres como importantes
iguras de tal universo. O registro da exclusão dos imigrantes de “participação
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político-institucional” indou não explorando outras faces de sua presença na cena
pública, como a atuação em movimentos sociais e a formação de novas culturas.
Em relação à imagem de Getúlio Vargas como “o grande defensor dos interesses proletários”, Lincoln lembra a anotação de Prado Jr. em seus diários políticos, de dezembro de 1935: “!?!?!?!?!?!?” (p. 68). Trata-se de importante registro
documental que ajuda a compreender as relações críticas de Caio com esse universo.
O diálogo entre Caio Prado Jr. e alguns de seus contemporâneos mais signiicativos na renovação da historiograia brasileira dos anos 1930 – especialmente
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda – é evocado por Lincoln, mas
pouco explorado no que se refere a aberturas de perspectivas para a pesquisa e
lutuante fortuna crítica. Valeria a pena lembrar que o trio sofreu uma rejeição
feroz nos anos 1970 e 1980 (tratados como banais ideólogos), nem sempre bem
fundamentada. Sua posterior recuperação (tratados como gênios inexcedíveis)
também se deu ao sabor de modismos historiográicos, quase sempre carentes
de uma relexão mais cuidadosa – relexão que a biograia de Lincoln faz no
que diz respeito a Prado Jr. E outros nomes da historiograia brasileira que
contribuíram para aquelas mudanças interpretativas, como José de Alcântara
Machado (Vida e morte do bandeirante) e Luís da Câmara Cascudo (Vaqueiros
e cantadores), não foram registrados pelo biógrafo. Autores um pouco mais
recuados no tempo, como Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, apareceram
apenas no papel de objeto de superação (p. 154), embora o pioneirismo temático
e interpretativo de Capistrano de Abreu tenha sido assinalado (p. 155).
As relações do autor de Evolução política do Brasil com o marxismo tenderam a surgir, nessa biograia, pelo viés difusionista de ideias (leitura individual,
diiculdades no acesso aos textos clássicos de Marx, muito tardiamente editados no Brasil, contatos com materiais soviéticos da era stalinista), com menor
atenção a uma cultura política dos trabalhadores e revolucionários, da qual a
tradição marxista fazia parte, tanto no Brasil quanto noutros países. Embora seja
difícil falar, em relação aos anos 1930 brasileiros, em “marxismo de cátedra”
(mesmo depois, importantes intelectuais marxistas, como os referidos Prado Jr.
e Werneck Sodré, foram mantidos à margem da carreira universitária), Lincoln
reforça, informalmente, uma imagem de “marxismo de leitura individual”,
menos vinculado à relexão geral sobre o trabalho, a revolução no mundo contemporâneo e a superação do capitalismo, esperando por ser associado a práticas
políticas diversiicadas que ultrapassem o monopólio de um partido.
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O subtítulo do volume, O sentido da revolução, foi concebido a partir de
um dos capítulos do clássico Formação do Brasil contemporâneo: “O sentido
da colonização”. Uma diiculdade oferecida por aquele subtítulo é levar o leitor
à equivocada interpretação de que tal sentido emana da obra ou da pessoa de
Caio Prado Jr. Outro risco dessa natureza é supor que a revolução tenha um só
sentido, já oferecido pelo autor de A revolução brasileira (também possível fonte
de inspiração para aquele subtítulo). Talvez seja preferível, então, pensar que
estamos diante de um sentido da revolução, deinido por Prado Jr. em diálogo
com outros pensadores, outros militantes e outros cidadãos.
Lincoln se detém na experiência parlamentar de Caio Prado Jr. (1946/1948,
Assembleia Legislativa de São Paulo), demonstrando sua dedicação a projetos
e debates, além de evidenciar a eloquência dessa participação em diferentes
momentos do mandato, inclusive no discurso de despedida-denúncia, quando da
cassação do registro do Partido Comunista do Brasil e dos mandatos daqueles
que foram eleitos em nome da sigla. Dentre as iniciativas do deputado Prado Jr.,
destaca-se o projeto de uma fundação destinada a incentivar a pesquisa cientíica
e que depois se constituiria na Fapesp, demonstrando uma visão ampla sobre
a importância dos estudos mais especializados para as transformações sociais.
Diferentes propostas do deputado (reforma tributária, levantamento aerofotogramétrico do estado) evidenciam o estudo atento da realidade econômica e
social paulista, sem atenderem apenas a demandas de trabalhadores.
Outra dimensão da vida de Caio que Lincoln expõe detalhadamente é a série
de tentativas para ingressar na docência universitária, desde o concurso para a
Faculdade de Direito (cátedra de Economia Política), em 1956, passando pelo
convite abortado para lecionar no campus universitário isolado de Araraquara
(1963) e chegando à preparação para concurso no Departamento de História
da FFCL/USP, em 1968, que foi cancelado por motivos políticos – ascensão
da pior fase na ditadura de 1964, cassação de professores e cancelamento do
título de livre-docente que Prado Jr. conquistara na área de Direito. É necessário
lembrar esses seguidos equívocos universitários em relação ao importante historiador que algumas iniciativas posteriores (uma sala de aulas no Departamento
de História da FFLCH/USP, desde os anos 1980, leva seu nome) ainda não
compensaram adequadamente. Mesmo seu centenário de nascimento não deu
lugar a atividades de grande porte nessas e noutras unidades acadêmicas. Mas
o escritor mereceu homenagens de estudantes de diferentes áreas de conhecimento (Geologia, Ciências Sociais, Economia, História, Medicina) ainda em
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vida e, ao menos desde os anos 1960, atestando seu reconhecimento ampliado
pela comunidade universitária. E o surgimento de dissertações e teses a respeito
de seus livros ou neles inspiradas desdobra tais homenagens no cotidiano da
produção de conhecimento histórico.
Lincoln justiica o apelo à expressão “raças inferiores”, em livros de Prado
Jr., como algo distinto de racismo, dado seu uso corrente para designar os grupos
sociais dominados (p. 174). Valeria a pena acrescentar que a expressão não se
revestiu de teor explicativo maior nos escritos de Caio e que os africanos até
foram destacados por ele como portadores de técnicas de metalurgia durante a
colonização, à margem das proibições impostas pelo pacto colonial na área. Ao
mesmo tempo, é de se lamentar que, diferenciando-se de seus pares sociais em
tantos aspectos, Prado Jr. tenha preservado aquela formulação vocabular, sem
ao menos a nuançar como raças inferiorizadas, que superaria a condição de um
estado de ser e registraria a existência de outros agentes na inferiorização – os
“superiores”, também raças, mas inferiorizantes...
E a questão reaparece num escrito posterior de Caio, “É preciso deixar o
povo falar”, que não usa a palavra raça:
A massa brasileira foi formada, fundamentalmente, por africanos trazidos para cá como
escravos, quer dizer, como instrumentos de trabalho. Aqui eles perderam a cultura de
origem e não ganharam nada, (...). No sul do Brasil a situação é um pouco diferente por
causa da imigração (p. 231).
Lincoln comenta muito adequadamente: “ninguém perde totalmente sua
cultura original, mesmo os escravizados” (p. 232). Um diálogo maior com os escritos de Freyre faz falta nessa passagem: não houve perda curta e grossa, houve
muita recriação – vide o exemplo da metalurgia, sem esquecer de rituais e tantas
faces do cotidiano. Os indígenas sumiram naquela fala de Prado Jr. e o elogio
da imigração europeia para o sul, similar às digressões de Ernesto Geisel (!) em
suas entrevistas para o CPDOC, silenciou a presença africana naquela região.
O bom historiador, por vezes, derrapava, como qualquer mortal o faz...
Sobre propriedade da terra e relações de trabalho no campo brasileiro,
Lincoln expõe os argumentos de Caio Prado Jr. a respeito do caráter formador
geral do latifúndio e da escravidão e a menor expressão de pequena propriedade
e relações camponesas, donde a atenção do autor de História econômica do
Brasil e A questão agrária no Brasil ao sindicalismo e à regulamentação do
assalariamento naquele mundo, sem desprezar a presença em cena da produ-
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ção familiar. A biograia deixa de explorar, nesse universo, o tema da “brecha
camponesa” (ou mesmo rombo camponês, em análises mais radicais) que setores
da historiograia brasileira e alguns especialistas estrangeiros em história do
Brasil discutiram nas últimas décadas, ultrapassando largamente os exemplos
de pequena propriedade que Prado Jr. registrou, como aqueles das colônias de
imigrantes no sul do país. Mas o livro de Lincoln Secco assinala o reconhecimento, pelo historiador paulista, da pluralidade nesse universo (“várias questões
agrárias”, p. 213), nuançando o debate.
Lincoln encerra o livro com uma bonita síntese sobre seu personagem:
Caio Prado Jr. permaneceu amando a terra em que nasceu, ainda que tivesse um amor
despido de ilusões. Ainal, ele nos deixou um incômodo retrato do Brasil (p. 234).
Essas belas palavras evidenciam o apreço do biógrafo pelo historiador que
ele nos apresentou, ultrapassando a simples admiração intelectual e política para
atingir um patamar até pessoal e afetivo. Elas realçam a perda de vínculos entre
amor e ilusões, justiicando essa situação pelo caráter incômodo do retrato que
Prado Jr. traçou de nosso país.
Quero recuperar possíveis ilusões naquele amor como algo que não é necessariamente
prejudicial ao pensamento. Caio escreveu e viveu em nome de valores – razão, revolução –
que lhe renderam conquistas e derrotas. Não sei se lhe seria possível (nem se seria possível
para qualquer homem ou mulher) ousar lutar e pensar sem algumas ilusões, presentes nos
atos da Aliança Nacional Libertadora (ANL), na Assembleia Legislativa de São Paulo, no
Partido Comunista do Brasil, nas tentativas de ingressar na universidade como docente...
O que ele fez com suas ilusões? Uma obra incômoda! Uma obra que provoca
e exige respostas. Preiro pensar que Caio Prado Jr., como todos os mortais, tinha
algumas ilusões (todo tempo é de alguma ilusão, ao contrário do que supõe o
presentismo) e soube transformá-las em instigantes pensamentos incômodos,
compartilhados em livros, falas e atos – seu maior legado público.
Lincoln Secco, apresentando-nos amorosamente esse universo de incômodas
ilusões, realiza um precioso trabalho de divulgação, digno de nossa gratidão.
Recebido: dezembro/2008 - Aprovado: junho/2009.