ISSN
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V.26 - Nº 1
Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 26 n. 1
p.1-524
jan./mar. 2018
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1998 v.7, n.1 (jan/jun)
1998 v.7, n.2 (jul/dez)
1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed.
CDD: 401.05
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Sumário / Contents
Validade empírica das redes de polissemia para o signiicado
preposicional
Empirical validity of polysemy networks for prepositional meaning
Aparecida de Araújo Oliveira
Pedro Ivo Vieira GoodGod ................................................................
11
Exploring content selection strategies for Multilingual
Multi-Document Summarization based on the Universal
Network Language (UNL)
Investigando estratégias de seleção de conteúdo
para a Sumarização Multi-Documento Multilíngue
com base na Universal Network Language (UNL)
Matheus Rigobelo Chaud
Ariani Di Felippo ..............................................................................
45
A Cupópia do Cafundó: uma análise morfossintática
The Cupópia of Cafundó: a morphosyntactic analysis
Anna Jon-And
Laura Álvarez López .........................................................................
73
Áreas lexicais no Centro-Sul do Brasil sob uma perspectiva
geolinguística
Lexical areas in Central-South of Brazil under a Geolinguistic
Perspective
Valter Pereira Romano ......................................................................
103
Retomadas anafóricas de objeto direto em português
brasileiro escrito
Anaphoric direct object in written Brazilian Portuguese
Gabriel de Ávila Othero
Camila Schwanke ..............................................................................
147
Variação e deinição de queda de sílaba: o contexto segmental
em Capivari-SP e Campinas-SP
Variation and Deinition of Syllable Drop: The Segmental Context
in Capivari-SP and Campinas-SP
Eneida de Goes Leal .........................................................................
187
A diacronia e a sincronia dos pronomes de primeira pessoa
do plural Nós e A Gente no português brasileiro
e no português uruguaio
Diachrony and synchrony of irst-person plural pronouns Nós and
A Gente in Brazilian Portuguese and in Uruguayan Portuguese
Cíntia da Silva Pacheco ....................................................................
221
A escrita em bandos atribuídos a Rodrigo Cesar de Menezes –
governador e capitão general da capitania de São Paulo
(1721-1728)
The writing in bandos assigned to Rodrigo Cesar de Menezes –
General Governor and Captain of the captaincy of São Paulo
(1721-1728)
Phablo Roberto Marchis Fachin
Gabriela Lubascher Miragaia ............................................................
255
A formação do glide no alemão padrão
Glide formation in Standard German
Mágat Nágelo Junges
Gean Nunes Damulakis .....................................................................
285
Paragrafação e argumentação em cartas de reclamação escritas
por alunos do ensino fundamental
Paragraphing and argumenting in letters of claim written
by elementary school students
Leila Nascimento da Silva
Telma Ferraz Leal .............................................................................
321
Efeitos da clínica de linguagem em casos de sujeitos
com paralisia cerebral
Language clinic effects in cases of subjects with cerebral palsy
Roseli Vasconcellos ...........................................................................
355
Inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX
Parenthetical insertions in 19th century São Paulo State Editorials
Michel Gustavo Fontes .....................................................................
389
Apropriação da análise de discurso crítica em uma discussão
sobre comunicação social
Appropriation of critical discourse analysis in a discussion
about media
Viviane de Melo Resende
María del Pilar Tobar Acosta .............................................................
421
Mulheres na liderança: discurso, ideologia e poder
Women in leadership positions: discourse, ideology and power
Vicentina Ramires
Dina Ferreira .....................................................................................
455
Presidente ou presidenta? Com a palavra os senadores
e as senadoras da República Federativa do Brasil
Presidente or presidenta? With the word the senators
of the Federative Republic of Brazil
Cássio Florêncio Rubio
Fábio Fernandes Torres .....................................................................
491
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Validade empírica das redes de polissemia
para o signiicado preposicional
Empirical validity of polysemy networks
for prepositional meaning
Aparecida de Araújo Oliveira
Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Minas Gerais / Brasil
cidaaraujo007@gmail.com
Pedro Ivo Vieira GoodGod
Universidade Federal de Viçosa, Rio Paranaíba, Minas Gerais / Brasil
pedro.god@ufv.br
Resumo: O presente artigo avalia a validade empírica de uma rede
de polissemia proposta para a preposição em do português do Brasil,
comparando as perspectivas do linguista e de usuários leigos da língua
sobre categorização. A rede baseou-se no modelo cognitivo de Rede
Esquemática, de R. Langacker (1987, 2008), com relações de esquema/
instância e de extensão semântica, e envolveu 48 frases da internet,
que representavam 24 padrões de uso de em deinidos pelo linguista.
Participaram como sujeitos em um experimento psicolinguístico 32
estudantes de graduação, sem formação em linguística, todos eles falantes
nativos de português do Brasil. Esses sujeitos classiicaram as frases do
corpus segundo semelhanças percebidas no signiicado da preposição. Em
entrevistas individuais realizadas após a tarefa, os participantes relataram
suas estratégias de categorização. Uma matriz de dissimilaridade criada
com base na classiicação feita pelos informantes foi submetida a análises
de agrupamentos pelos métodos de Ward (1963) e de Tocher (apud RAO,
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.11-44
12
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
1952).1 Este revelou sete categorias criadas pelos informantes, quatro das
quais apresentaram motivação semântica mais forte que as outras três. O
número de grupos formados variou entre os participantes, assim como
variou o número de frases nos grupos criados. Além da coerência nas
ligações entre as categorias, os resultados revelaram um nível relevante
de isomorismo entre a rede proposta originalmente e a avaliação dos
informantes, corroborando a estrutura relacional dessa rede e uma
parte signiicativa de sua granularidade. Em geral, este estudo também
comprovou a maior saliência do espaço sobre os demais domínios, assim
como a saliência do tempo entre domínios não espaciais.
Palavras-chave: validade empírica; categorização; rede de polissemia;
preposição; experimento psicolinguístico.
Abstract: This paper evaluates the empirical validity of a polysemy
network proposed for the preposition em in Brazilian Portuguese, by
comparing the linguist’s and the non-specialist language user’s views
of categorization. The network was based on the Schematic Network
cognitive model of R. Langacker (2008, 1987), with scheme/instance
and semantic extension relationships, and involved 48 sentences taken
from the internet, which represented 24 usage patterns of em as deined
by the linguist. Thirty-two undergraduate students with no training in
linguistics, all native speakers of Brazilian Portuguese, took part as
subjects in a psycholinguistic experiment in which they sorted these
sentences according to similarities perceived in the meaning of em.
After completing this task, the participants reported their categorization
strategies in individual interviews. A dissimilarity matrix based on the
participants’ classiication was subjected to cluster analyses by the Ward
(1963) and Tocher (cited in RAO, 1952) methods. The latter revealed
seven categories created by the participants, four of which exhibited
stronger semantic motivation than the other three. Participants differed
in the number of groups they formed, and each participant created groups
of different sizes. As well as coherent connections among categories, the
results showed an important level of isomorphism between the originally
proposed network and the participants’ evaluation, corroborating the
relational structure of the network and a signiicant part of its granularity.
Overall, the study also conirmed the greater predominance of space over
the other domains and of time among non-spatial domains.
1
Rao (1952) é considerado referência original do método de Tocher. Ele expõe a
proposta de K. D. Tocher; porém, não informa a fonte consultada.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
13
Keywords: empirical validity; categorization; polysemy network;
preposition; psycholinguistic experiment.
Recebido em: 20 de maio de 2016.
Aprovado em: 23 de setembro de 2016.
1 Introdução
Além de explicações coerentes para os processos cognitivos
relacionados ao uso da linguagem, a Linguística Cognitiva procura
oferecer conirmações do modelo “baseado no uso”, o qual faz parte de
sua essência. Como mostram Gries et al. (2005) e Gries et al. (2010), nos
últimos anos, pesquisadores desse quadro teórico têm-se empenhado em
validar empiricamente os muitos construtos e princípios que norteiam
esse ramo da Linguística, por meio da metodologia de corpus ou da
experimentação psicolinguística, ou pela conjugação de ambas.
Em particular, os experimentos psicolinguísticos podem revelar
semelhanças e diferenças entre usuários da língua, no acesso ao conteúdo
conceitual. Essas diferenças podem ser descritas como variações entre os
aspectos linguísticos que recebem maior atenção consciente e entre os
níveis diferenciados de prática com a introspecção linguística (TALMY,
2005, p. 2, 11). O presente artigo descreve um experimento realizado
com o objetivo de comparar a análise introspectiva do linguista sobre a
polissemia da preposição em no uso corrente do português do Brasil e
a análise intuitiva de falantes nativos leigos sobre os mesmos dados. O
construto cuja validade se pretende testar é o modelo de Rede Esquemática
de polissemia (LANGACKER, 2008, 1987), descrito a seguir, na seção 3.
As preposições têm sido tema de inúmeras investigações em
Semântica Cognitiva, apoiadas em um ou outro modelo de rede de polissemia,
que, por sua vez, baseiam-se no conceito de categorias prototípicas (ROSCH,
1978). De acordo com essa visão, o polo semântico de uma palavra ou
construção geralmente é formado por um conjunto de sentidos interligados,
dos quais um ou mais se destacam por sua saliência cognitiva. Entre esses
estudos, encontram-se Brugman (1981), Lakoff (1987), Deane (1992),
Cuyckens (1993), Dewell (1994), Vandeloise (1991), Kreitzer (1997),
Teixeira (2001), Tyler e Evans (2003) e Evans e Tyler (2004).
14
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Embora várias dessas pesquisas tenham se baseado no uso real da
língua e empreguem modelos considerados coerentes, Sandra e Rice (1995)
criticam a grande variedade desses modelos e, principalmente, questionam
sua presumida natureza cognitiva. De modo particular, esses autores chamam
a atenção para a pretensa compatibilidade entre a visão do pesquisador e a
do falante leigo. Seu trabalho inspirou a presente investigação.
2 A polêmica sobre as representações mentais
Sandra e Rice (1995, p.100-102) discutem dois componentes
distintos da realidade psicológica dos modelos de rede. O primeiro
diz respeito aos processos mentais envolvidos na categorização como
mecanismo de mudança da língua, os quais podem ser verificados
diacronicamente tanto por meio das relações entre usos mais antigos e
novos usos de um mesmo item quanto pelos estudos sobre a aquisição
da língua. O segundo componente cognitivo refere-se à realidade das
representações mentais. Trata-se do objeto central do referido artigo, que
questiona e avalia o grau de correspondência entre as redes de polissemia
propostas por diferentes pesquisadores e o léxico mental do usuário da
língua.
Uma versão forte de isomorismo assume uma correspondência
total entre os nódulos e ligações na rede e uma representação dessa estrutura
semântica armazenada na memória do falante, hipótese considerada de
difícil comprovação. Entretanto, Sandra e Rice avaliam que a abundância de
conceitos da psicologia na literatura linguística parece corroborar a lógica
das ligações propostas nos modelos de rede mais comuns. Tyler e Evans
(2003), por exemplo, consideram que seu modelo de rede coincide com o
léxico mental dos falantes, porque não inclui certas distinções contextuais,
como ocorre na descrição de over (LAKOFF, 1987):
[…] nem todos os padrões de uso estão contidos na
rede semântica. Enquanto parte da variação em usos
de uma palavra é necessariamente instanciada na
memória de longo prazo e, dessa forma, persiste na
rede semântica, alguns usos são criados on-line, no
desenrolar da interpretação normal dos enunciados.2
(TYLER; EVANS, 2003, p. 7, ênfase e tradução nossas).
“[...] not all usages are contained within the semantic network. While some of the
variation in uses of a word must be instantiated in long-term memory, and hence
2
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
15
Outros teóricos, entre os quais se encontra Langacker (1987),
rejeitam o isomorismo por acreditarem que o nível de aprofundamento
descritivo proposto para as redes pelos linguistas pode não ser percebido de
igual maneira pelo falante leigo. Langacker pondera que algumas distinções
e algumas semelhanças em níveis mais abstratos podem não ser percebidas
pelo falante leigo, porque “alguns domínios são intrinsecamente salientes
e abundantes no processamento cognitivo a exemplo daqueles pertencentes
ao espaço e à visão.” (LANGACKER, 1987, p. 380, tradução nossa).3
Além disso, estruturas pertencentes a domínios muito abstratos são
menos salientes que aquelas pertencentes a domínios ligados à percepção
sensorial. Acredita-se que tal fato se relita na força e amplitude dos
agrupamentos formados pelos informantes do presente estudo.
Entre os pesquisadores que negam o isomorismo entre rede e
léxico mental, Sandra e Rice (1995, p. 103) identiicam dois grupos, com
opiniões distintas. Por um lado, alguns reconhecem o caráter psicológico
da rede nos processos cognitivos envolvidos no surgimento de novos
usos, mas rejeitam a ideia de que padrões de uso sejam representados
no léxico mental dos falantes.
Por outro lado, há os que airmam que algumas características das
redes, tais como seu alto nível de reinamento ou “granularidade”, estão
presentes na memória de longo prazo e que os falantes seriam capazes
de perceber distinções entre categorias mais amplas e entre categorias
mais inas. Entretanto, não necessariamente perceberiam semelhanças
entre grandes categorias, como as que ocorrem entre domínios, porque a
transparência dessas relações se perdeu no tempo. No presente trabalho,
ao se propor a comparação entre o processo de categorização informado
por conhecimentos teóricos e aquele realizado intuitivamente, essa última
visão de isomorismo foi assumida como premissa.
3 Ponto de partida: a rede de polissemia
A polissemia é entendida como um fenômeno no qual dois ou
mais sentidos de uma palavra, relacionados entre si, são associados a
persist in the semantic network, some uses are created on-line in the course of regular
interpretation of utterances”.
3
“Some domains are intrinsically salient and pervasive in cognitive processing (e.g.
those pertaining to space and vision)”.
16
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
uma única forma linguística (SILVA, 2006, p.10) em um processo de
categorização. Por exemplo, o termo “papel” pode designar diferentes
conceitos, como ‘matéria fabricada com ibras vegetais’ ‘documento’,
‘ação, função’. O primeiro desses sentidos é considerado a origem
de extensões semânticas que geram os demais por meio de processos
cognitivos, como a metonímia e a metáfora. Na Linguística Cognitiva, os
diversos sentidos de uma palavra constituem uma categoria prototípica
(ROSCH, 1978), com elementos cognitivamente mais salientes – o(s)
protótipo(s) – e outros mais periféricos. As categorias prototípicas
se organizam por relações de semelhanças de família, à maneira de
diferentes tipos de “jogos” que formam uma única categoria com esse
nome, sem apresentarem uma característica que seja comum a todos
(WITTGENSTEIN, 1999 [1953]). Como Teixeira (2001, p. 61) salienta,
o protótipo é a “estrutura conceptual modelar que, para os falantes,
corresponde prioritariamente a uma determinada conceptualização”.
Não se restringe, portanto, a entidades do mundo físico; explica também
o significado de verbos, preposições, advérbios, enfim, “todas as
organizações mentais linguisticamente traduzíveis”.
A polissemia contrasta, primeiramente, com a monossemia,
que ocorre quando uma palavra ou expressão linguística tem apenas
um sentido, e as diferenças de signiicado, se houver, são elaboradas
pela interpretação do contexto. Esses dois fenômenos distinguem-se da
homonímia, caracterizada pela existência de dois signos linguísticos com
a mesma forma fonológica e/ou gráica, com signiicados distintos não
relacionados. A homonímia ocorre com “calo” (substantivo) e “calo”
(verbo), os quais têm pronúncia e graia idênticas, mas signiicam,
respectivamente, uma ‘região da camada exterior da pele que se encontra
mais espessa e endurecida’ e ‘faço silêncio’. A homonímia pode ser
resultado de uma coincidência histórica, a qual tenha levado duas
palavras de etimologias distintas a assumirem a mesma forma com o
passar do tempo. Sincronicamente, pode ser causada pelo esvaziamento
da relação percebida entre os sentidos de um termo com uma origem
comum (DUBOIS et al. 2009, p. 326-327).
Langacker (2008, p. 37; 1987, p. 74) interpreta o conceito de
categoria prototípica por meio do seu Modelo de Rede Esquemática de
polissemia, o qual é empregado no presente estudo. A Rede Esquemática se
organiza em termos de esquema/instância (padrão mais abstrato/conceito
mais especíico) e em termos de sancionamento de novos usos, alguns
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
17
dos quais podem se tornar unidades linguísticas convencionalizadas. A
esquematização implica a categorização dos usos linguísticos de forma
hierárquica, visto que o usuário da língua percebe padrões de uso e
forma esquemas, que ele organiza em níveis distintos de abstração. Esses
mesmos padrões são usados para incluir (sancionar) novos usos em uma
ou outra categoria da língua.
A natureza prototípica do modelo de Langacker decorre dos tipos
de sancionamento previstos: total ou parcial. Quando o sancionamento
é total, os membros da categoria semântica incorporam perfeitamente
a descrição do esquema ou noção de nível superior que instanciam (ou
elaboram). A noção mais abstrata de localização é compartilhada por
várias outras mais especíicas, tais como os esquemas imagéticos [em
cima de], [dentro de] e [atrás de].
Entretanto, essa mesma noção de localização pode ser estendida
para outro domínio conceitual, como o tempo. Nesse caso, ocorre
extensão semântica com sancionamento parcial, para um domínio sem
as mesmas características do espaço. Do mesmo modo, os conceitos
de especiicação e de localização fazem parte da rede de polissemia
da preposição em, e a relação entre eles é também de sancionamento
parcial. Na perspectiva assumida no presente estudo, e em consonância
com a Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF; JOHNSON, 1980) e
a das Metáforas Primárias (GRADY, 1997), a relação de especiicação
que em evoca em expressões como “especialista em direito trabalhista”
é uma extensão metafórica de um uso espacial dessa preposição, oriunda
de certa consequência funcional de alguns usos locativos de em. Com
a repetição do uso, a preposição passou a ser empregada com o novo
signiicado mesmo na ausência da coniguração espacial motivadora.
Em termos de categorização prototípica, na cultura brasileira,
o esquema de [laranja] é um exemplo mais saliente de [fruta] que o
de [tomate]. O primeiro desses conceitos – e não o segundo – pode ser
então o protótipo da categoria fruta. Igualmente, o sentido espacial de
localização é considerado protótipo na rede de polissemia de em. Isso
ocorre porque esse sentido espacial tem maior saliência cognitiva. Por sua
vez, especiicação constitui um signiicado mais periférico na categoria
por ser mais abstrato e, consequentemente, menos saliente, como explica
Langacker na seção anterior.
A polissemia da preposição em foi analisada originalmente com
base nos seguintes critérios semânticos: domínio conceitual, esquema
18
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
imagético evocado nos usos espaciais ([contentor] e [trajeto]) e suas
subespeciicações em noções topológicas (inclusão, contato, adjacência).
Foram identiicados sentidos esquemáticos – especiicação e localização
– correspondentes a conceitos com um nível de abstração superior,
mais frequentes na rede, que perpassam o signiicado da preposição
em diferentes usos e que são derivados do esquema imagético de
[contentor]. Abaixo desses dois sentidos mais amplos, a maior parte
das distinções é de natureza contextual.
Nessa análise introspectiva, foram considerados locativos
metafóricos os usos temporais de em e aqueles tendo eventos, atividades
e estados emocionais como complemento da preposição, nos quais os
elementos relacionados não são objetos concretos. Nesses casos, a noção
de localização emerge porque os conceitos ligados pela preposição
em, ainda que abstratos, teoricamente são conceitualizados como
objetos metafóricos, o que permite que se estabeleça entre eles alguma
relação locativa (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Por outro lado, usos
de especiicação – portanto, não locativos – também são considerados
metafóricos pelo linguista, mesmo que digam respeito à cor, ao material
ou à forma de objetos concretos, tendo em vista que o conceito de
especiicação, em si, não é espacial, mas relete uma possível restrição
ao signiicado dos objetos especiicados. Como já mencionado, segundo
a concepção teórica adotada, especiicação emerge de um efeito funcional
(GRADY, 1997) do esquema de [contentor], como uma restrição
imposta ao conteúdo.
Na descrição proposta, o antecedente da preposição representa
o trajetor, e o consequente, o marco, conforme Langacker (1987),
representados no exemplo “placatrajetor no acostamentoMARCO”. Essa
terminologia está associada à assimetria igura e fundo, da Teoria da
Gestalt, e implica uma série de distinções na conceitualização dessas
entidades. Talmy (2000a, p. 183-185) deine a igura (trajetor) como a
entidade “potencialmente móvel ou em movimento”, cuja localização
ou trajeto percorrido se discute. O fundo (marco) é a “moldura de
referência ou entidade estática dentro de uma moldura de referência”. Em
virtude dessa função, o marco aparece mais cedo na cena/na memória, é
percebido mais rapidamente, e sua geometria tende a ser mais elaborada
na conceitualização. O marco também tende a ser mais estático e mais
conhecido do falante. Por essas razões, suas propriedades espaciais
tendem a ser mais relevantes para o signiicado da preposição.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
19
4 Análise prévia das frases
As frases empregadas no experimento psicolinguístico foram
adaptadas de usos retirados da internet e representam 24 categorias
semânticas pré-deinidas para o signiicado da preposição em. Das
categorias e subcategorias usadas no experimento, dezessete são
locativas, nove das quais pertencem ao domínio espacial, três, ao
temporal, e cinco, a outros domínios concretos e abstratos. Entre os usos
locativos, foram incluídos dois pares de frases em contexto dinâmico
(com trajetória): um par representando o domínio espacial e outro, um
domínio não espacial. A proporção entre usos estáticos e dinâmicos é
explicada adiante e tem a ver com as categorias obtidas em pesquisa de
corpus realizada anteriormente (OLIVEIRA, 2009). Com o sentido amplo
de especiicação, são testadas sete subcategorias de domínios concretos
e abstratos, consideradas como usos metafóricos emergindo do efeito
pragmático de controle. A maior parte da variação em contextos espaciais
pôde ser explicada pela interpretação (construal, em LANGACKER,
1987) e pela relação funcional Contentor/conteúdo (VANDELOISE,
1991), e os demais, por meio de processos metafóricos e metonímicos.
A escolha das categorias de análise segue certos princípios
teóricos resumidos na sequência. Oliveira (2011) apresenta uma
explicação mais detalhada da rede de polissemia de em no português do
Brasil, por meio do esquema de [contentor].
Sentido esquemático de localização:
1.1 Domínio espacial:
1.1.1 Localização estática no interior de um contentor (o marco da
preposição é conceitualizado como um objeto tridimensional que envolve
o trajetor):
1.1.1.1 Inclusão total:
a) Carregava um pão fresquíssimo no saco de papel pardo.
b) Bebê nasce num carro por falta de ambulância.
1.1.1.2 Inclusão parcial (marco envolve parte do trajetor):
a) O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico.
b) Ainda havia muitos icebergs no mar.
1.1.1.3 Inclusão de um trajetor vazio:
a) O buraco na parede foi feito com dois pedaços de ferro.
b) A miniatura possui um pequeno trincado no parabrisa.
20
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
1.1.1.4 Inclusão em um contentor não canônico:
a) Entenda os protestos do setor rural na Argentina.
b) Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países.
1.1.2 Inclusão em um contentor ao inal de um movimento (inclui a
noção de trajetória):
a) Joguei os livros na bolsa.
b) Você deve colocar pouco ar no balão.
1.1.3 Contato em posição canônica no eixo vertical (trajetor ica acima
do marco, gerando um efeito funcional de suporte):
a) Havia faixas estendidas no gramado.
b) O governo dá incentivo para quem plantar no telhado.
1.1.4 Contato com mudança da ordem dos objetos no eixo vertical ou
da orientação do eixo:
a) Quantos funcionários públicos são necessários para se trocar uma
lâmpada no teto da repartição?
b) O jornalista não pode considerar o Brasil e Minas Gerais como apenas
um retrato na parede.
1.1.5 Localização pontual (trajetor se localiza em um ponto determinado
do marco):
a) O senhor não viu a placa no acostamento?
b) Use um grampo na ponta da linha para facilitar a troca de isca.
1.1.6 Adjacência:
a) Ela estava sentada numa mesa do Café Capricieux.
b) A Pousada Villa das Pedras fica na estrada que liga Brasília a
Pirenópolis.
1.2 Localização metafórica (trajetor e marco abstratos são
conceitualizados como objetos):
1.2.1 Domínio temporal:
1.2.1.1 Coincidência com o intervalo de tempo:
a) Trabalhei nesses 15 anos de pesquisa sem parar.
b) Nesses tempos de globalização, Turquia e Brasil fazem parte da
categoria de países emergentes.
1.2.1.2 Localização pontual no tempo:
a) O Overmundo completou um ano no último dia 7.
b) A chegada da família real no Brasil em 1808 aprimorou o serviço
postal da então colônia.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
21
1.2.1.3 Localização no inal de um intervalo de tempo:
a) Quero te ver em meia hora.
b) Você será redirecionado para a página do Instituto em 5 segundos.
1.2.2 Estados emocionais conceitualizados como contentores:
a) Na angústia, o homem experimenta a initude de sua existência humana.
b) Eu me sentia bem naquela solidão.
1.2.3 Metáfora do conduto (as palavras são contentores com informação
semântica):
a) Um pouco sobre civilização nas palavras de Bertrand Russell.
b) Se quiser continuar comigo é nesses termos.
1.2.4 Atividades são conceitualizadas como contentores:
a) Não há muita perspectiva do Brasil [sic] participar nesses grandes
projetos.
b) Dejetos usados na fertilização degradam microbacias.
1.2.5 Eventos são pontos no tempo:
a) Há esperança de contar com o meia Roger no clássico contra o Santos.
b) Airton enfrenta Alemão no paredão do BBB.
1.2.6 Mudança de estado (a passagem de um estado para outro é um
trajeto metafórico saindo de um contentor para outro):
a) O uso de drogas pode constituir-se em um caso de dependência.
b) Jonas transformou-se no primeiro desaparecido político brasileiro.
2 O sentido esquemático de especiicação (metafóricos não locativos):
2.1 Tipo:
a) É cirurgião-dentista, especialista em Dentística Restauradora.
b) Bem-vindo ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS.
2.2 Meio ou instrumento:
a) Esta página é melhor visualizada em Internet Explorer 5 ou superior.
b) Fala e escreve bem em inglês e francês.
2.3 Material:
a) Abajur decorado em porcelana fria.
b) Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço.
2.4 Estrutura interna:
a) Vendo som completo ou em partes.
b) Os anúncios das seções Imóveis são publicados em subseções.
2.5 Forma do objeto:
a) Robô em forma de lagarta simula os movimentos do bicho.
b) Pesquisador inventou uma bateria que carrega energia em estado
sólido.
22
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
2.6 Forma da atividade:
a) Rodou em círculos, tropeçou e proferiu blasfêmias.
b) O ECA pressupõe um atendimento em rede.
2.7 Cor:
a) A chita ou o algodãozinho estampados nessas cores desbotam
facilmente.
b) Os designers trabalharam para criar um vestido em vermelho vibrante.
Os exemplos 1.1.1.4.a e 1.1.1.4.b apresentam marcos concretos
bidimensionais (Argentina; esses países) que, portanto, não são contentores
canônicos. Entretanto, o fato de apresentarem uma região interior e um
limite que a separa do exterior possibilita sua conceitualização como
marcos delimitados. Tyler e Evans (2003, p. 184) assim justiicam o uso
de in tendo campos, desertos, países, cidades, entre outros como marcos.
Sandra e Rice (1995, p. 110) classiicam esses locais como marcos de
“dimensionalidade desconhecida”.
São apresentados dois tipos de localização espacial, sendo uma
estática e outra dinâmica. Essa classiicação se baseia em Talmy (2000a, p.
180-191). Segundo ele, na conceitualização de cenas espaciais, um objeto
pode se encontrar em duas “disposições espaciais” básicas: ele pode icar
estacionário ou se deslocar em relação ao fundo (movimento translativo).
Isso coloca os conceitos de localização e movimento no centro da
representação linguística do espaço. Como mencionado anteriormente,
na descrição de uma cena espacial, os elementos de classes fechadas
e a estrutura das orações distinguem aquilo que é igura daquilo que é
fundo. Nessa mesma obra, Talmy (2000a, p. 182) associa a disposição
da igura parada à sua localização e a da igura em movimento ao seu
trajeto. Em ambos os casos, é possível que a língua também distinga sua
orientação. Dessa forma, os usos espaciais representados anteriormente
se enquadram em uma ou outra categoria.
Segundo tipologia proposta por Talmy (2000b, p. 221) para a
representação dos eventos de movimento, as línguas “aparentemente se dividem
em [...] duas categorias, com base no padrão característico no qual a estrutura
conceitual do macroevento é mapeada para a estrutura sintática”. (Tradução nossa)4
“The world’s languages generally seem to divide into a two-category typology on the
basis of the characteristic pattern in which the conceptual structure of the macro-event
is mapped onto syntactic structure.”
4
23
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Em linhas bastante gerais, os idiomas que codiicam, no verbo, o esquema
central do movimento (portanto, o trajeto) são chamados “de moldura
de verbo”; aqueles que codiicam o trajeto do movimento fora do verbo,
através de um satélite, são chamados “de moldura de satélite”.
De acordo com essa tipologia, a língua portuguesa compartilha
com as demais neolatinas um padrão de lexicalização predominante
do primeiro tipo (BATORÉO, 2000), como demonstram os exemplos
abaixo, de Silva e Batoréo (2010, p. 242, Figura 13), que comparam os
paradigmas das línguas neolatinas com o das germânicas:
Português
1. O João atravessou o rio a nado. ?? * O João nadou através do rio.
MOVIMENTO+PERCURSO
MODO
MOV+MODO
PERCURSO
Inglês
2. ??(*) John crossed the river swimming. (4) John swam across the river.
MOVIMENTO+PERCURSO
MODO
MOV+MODO PERCURSO
Dessa forma, nos exemplos 1.1.2.a e 1.1.2.b, os verbos (joguei;
colocar) expressam o trajeto do movimento do trajetor em direção ao marco e
a preposição em codiica a localização dessa igura ao inal desse movimento.
O emprego de em é predominante estático no português do Brasil, mas
compete com certos usos da preposição a em contextos dinâmicos. Em
comparação, no português europeu, pode-se exprimir movimento apenas
com a (“ida ao Brasil”), que também codiica localização estática – ‘junto a’
(“o io ao pescoço”). Segundo Batoréo (2000, p. 444), variedades africanas
do português também utilizam em no lugar de a.
As classes 1.1.3 e 1.1.4 representam variações que são
signiicativas para outras preposições do português. Contato é uma noção
frequentemente associada a sobre e a em cima de. Entretanto, apenas
nos exemplos 1.1.3, com objetos dispostos na ordem canônica no eixo
vertical (faixas estendidas no gramado; plantar no telhado), pode haver
troca de em por sobre ou em cima de. A inclusão desses exemplos visava
testar se os informantes levariam em conta essa variação na coniguração
espacial. Vandeloise (1991) discute a relevânvia dessas mudanças na
semântica das preposições francesas sur e sous.
Por im, alguns autores, a exemplo de Tyler e Evans (2003, p.
178-179), sugerem que, na interpretação de determinadas cenas espaciais,
a conceitualização do marco como um ponto unidimensional, servindo
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
como referência de localização, justiicaria certos usos locativos de
preposições como at no inglês. Vandeloise (1991, p. 5-6 e capítulo
11) prefere uma deinição funcional de localização para um marco
adimensional de à do francês, associada à noção de ritual. O objetivo
neste ponto do presente estudo foi testar a possibilidade de a localização
ser interpretada como pontual em função da coniguração do trajetor
(placa) em 1.1.5.a, e em função das conigurações do trajetor (grampo)
e do marco (ponta) em 1.1.5.b.
5 O experimento psicolinguístico
O experimento psicolinguístico baseia-se naquele relatado por
Sandra e Rice (1995) sobre as preposições in, on e at do inglês, e, do
mesmo modo, envolve a leitura de enunciados originalmente produzidos
na modalidade escrita. Porém, diferentemente do experimento de Sandra
e Rice, o presente estudo inclui entrevistas individuais realizadas logo
após a execução da tarefa de classiicação.
5.1 Objetivos, raciocínio e hipóteses
Visou-se descobrir (i) o nível de granularidade que os informantes
pudessem perceber entre sentidos na rede e (ii) a possibilidade de os
informantes perceberem as relações entre categorias de domínios.
Em tarefas de classiicação como a empregada no presente estudo,
os participantes são submetidos a um determinado número de estímulos
(neste caso, frases) para serem agrupados com base em algum princípio
pré-determinado (neste caso, semelhança de signiicado). O raciocínio
por trás do experimento é o de que as eventuais distinções e associações
entre usos, feitas pelos informantes, reletem diferenças contextuais e
algumas representações existentes em seu léxico mental, tais como a
distinção entre o em locativo e o de especiicação e as associações entre
grupos maiores. Entretanto, o experimento revela, principalmente, as
estratégias de categorização empregadas pelos sujeitos.
A hipótese nula admitia duas possibilidades:
1. Os informantes não perceberiam qualquer diferença de
signiicado, no nível das representações mentais ou no das distinções
contextuais, demonstrando uma atitude monossêmica em relação à
preposição. Isso implicaria um único sentido mais vago, porém mais
saliente, que pudesse ser especiicado por outros itens lexicais presentes
na frase, ou mesmo, por elementos extralinguísticos.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
25
2. A maioria dos agrupamentos seria aleatória, visto que os
informantes apenas tentariam cumprir a tarefa de agrupar, sem se
preocupar com o critério deinido. Essa hipótese é testada na entrevista.
Como hipótese de pesquisa, e em consonância com a rede
proposta, acreditava-se que os informantes formassem grupos de maneira
coerente, demonstrando sua capacidade de discriminação, e que haveria
grupos grandes e pequenos. Ainda de acordo com a premissa das redes de
polissemia, esperava-se que as distinções mais inas fossem mais fortes, ou
seja, que mais informantes izessem distinções inas, e menos informantes
izessem distinções entre categorias maiores. Como consequência, os
grandes grupos e os pequenos grupos se formariam em pontos diferentes
da escala de dissimilaridade que constitui o gráico da Figura 1. Também
se esperava que muitos informantes fossem capazes de perceber algum
tipo de semelhança entre grupos menores (estrutura relacional da rede) e
que, provavelmente, poucos percebessem relações entre grupos maiores.
5.2 Participantes, método e conteúdo das frases
A tarefa off-line de classiicação foi proposta a 32 falantes
nativos de português do Brasil, de ambos os sexos, que concordaram
formalmente em participar da pesquisa, autorizando a divulgação dos
resultados. Todos eles eram calouros universitários de cursos variados,
sem formação prévia em Letras, com idade média de 22 anos na ocasião
da coleta. As variáveis extralinguísticas não são consideradas.
Em sessões individuais, cada informante recebeu 48 frases
numeradas aleatoriamente (Figura 1), em tiras individuais de 4 cm X 19
cm, com a palavra em (no, na, naquela, etc.) sublinhadas. Todos foram
informados de que essas frases deveriam ser agrupadas por critério de
semelhança de sentido da palavra sublinhada e de que o número de grupos
e o de palavras em cada grupo seriam de livre escolha do participante,
podendo inclusive haver um só grupo com todas as frases ou grupos
com apenas um elemento. A partir desse ponto, cada um deles dispôs de
tempo livre para executar a tarefa, o que levou entre 30 e 45 minutos.
Para testar o maior reinamento da rede, foram incluídos pares
de sentenças que diferiam de outros por características tais como o tipo
de inclusão (parcial ou total), a natureza do contato entre entidades, o
tipo de localização no tempo e, ainda, pela distinção aspectual pontual/
durativo entre eventos e atividades. Acredita-se que essa última diferença
seja bem menos saliente para o falante leigo que a distinção entre tempo
e espaço, por exemplo.
26
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Por sugestão da Profa. Heliana R. Mello (comunicação pessoal),
foram evitados certos enunciados nos quais a motivação semântica para o
uso sincrônico de em fosse pouco transparente ou a preposição ocorresse
com verbos cuja regência muitas vezes só se consolida na linguagem do
falante por meio do ensino formal.5
5.3 Tratamento dos dados
As respostas de todos os informantes foram tabuladas em matrizes
simétricas individuais com valores binários (0 e 1), nas quais o valor “zero”
signiica diferença, e o valor “um” representa semelhança entre frases. A partir
da soma das trinta e duas matrizes, obteve-se uma matriz de coincidências
(o número de vezes que determinado par foi formado pelos informantes). A
divisão da primeira matriz pelo total de informantes produziu uma segunda
matriz, de frequências relativas, cujo complemento aritmético possibilitou
o cálculo da última matriz, de dissimilaridade, que foi então submetida a
uma análise de agrupamentos, pelo método de Ward (1963). Esse método de
classiicação foi sugerido pelo Prof. Stephan Gries, em comunicação pessoal.
Análise de agrupamentos é um termo genérico para se referir
a procedimentos estatísticos que possibilitam a formação de grupos ou
categorias de objetos e, nesse caso, de frases. Tipicamente, cada objeto
pertence a um único grupo e o conjunto de todos os agrupamentos contém
todos os objetos (EVERITTet al., 2001), como ocorrido no presente estudo.
O método proposto por Ward (1963, p. 236-238) forma grupos
hierárquicos de conjuntos mutualmente exclusivos, segundo o princípio
de se obter o máximo de similaridade possível entre os membros, no
tocante às características medidas. Esse método de agrupamento parte de
n conjuntos, cada um contendo um indivíduo apenas. Considera-se que o
máximo de informação esteja disponível nesse estágio e, portanto, o desvio
dentro de cada conjunto seja igual a zero. À medida que são formados pares
de indivíduos, mantém-se o desvio padrão dentro de cada grupo menor
que aquele entre os grupos. Assim, reduz-se o número de conjuntos (n-1)
enquanto se mantém a perda de informação no valor mínimo possível.
Seguindo esse princípio, esses novos subconjuntos podem receber um novo
membro, ou outro pareamento (n-2) pode ser feito, preservando-se o mesmo
princípio de semelhança ótima dentro de cada grupo. Esse procedimento
Exemplos de usos que não foram aproveitados: Luciano não coniava na esposa. A
declaração do motorista o implicou no caso.
5
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
27
pode ser repetido até que todos os membros, separados individualmente
no início, iquem juntos em um só grupo (n, n-1,..., 1).
Ward denomina o procedimento “agrupamento hierárquico”, em
função dos inúmeros estágios, os quais podem ser representados por um
diagrama bidimensional conhecido como dendrograma, ou diagrama de árvore,
contendo todas as fusões ou divisões ocorridas em cada etapa. O método
também possibilita que seja observada a perda de informação a cada nova
fusão. No presente estudo, pode-se observar a distância entre agrupamentos,
tomando-se por referência a escala na parte inferior da Figura 1.
Na sequência, submeteu-se a mesma matriz de dissimilaridade
ao método de otimização de Tocher (apud RAO, 1952), e o resultado
é apresentado na Tabela 1 e na Figura 2. Conforme descrito por Rao
(1952, p. 363), o método sugerido por K. D. Tocher inicia o processo
de agrupamento com dois objetos muito próximos em termos de
semelhança (que neste estudo, são pares de frases associadas por muitos
participantes). A seguir, o método associa outro objeto com a menor
distância média em relação aos dois primeiros objetos. Depois disso, um
quarto objeto é comparado aos três anteriores de acordo com o mesmo
princípio de menor distância, e assim por diante. Sempre que um novo
objeto entra para o grupo, a distância média de dissimilaridade entre os
membros desse grupo é recalculada. Um novo grupo é formado quando
um objeto apresenta uma distância média maior que a média de distância
entre os membros do grupo pré-existente.
Esse método foi útil na obtenção de um ponto de corte para deinir
o nível de granularidade das escolhas dos informantes.
6 Análise
O dendrograma gerado pelo software Genes (CRUZ, 2006),
apresentado na Figura 1, é o resultado da análise hierárquica sobre os dados
coletados. Sua estrutura relete a força das relações entre as sentenças,
como percebidas pelos informantes, e a escala de valores (0-100) abaixo da
árvore demonstra a proporção dos participantes que agruparam dois usos
pelo critério de semelhança. Cada nódulo representa um agrupamento e o
comprimento dos ramos representa as distâncias nas quais os grupos são
formados. A análise partiu de uma matriz de dissimilaridade e, portanto,
os valores mínimos na escala de distâncias reletem o grau máximo de
semelhança obtido: um grupo que se forma próximo de zero apresenta um
nível muito alto de semelhança. Os rótulos dos objetos analisados (f1=frase
(1); f2=frase (2), etc.) aparecem junto aos nódulos terminais.
28
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Fonte: A pesquisa.
Loc. no interior de um contentor
Marco é contentor não canônico
Contato
Espaço
Localização simples
Localização no final de um intervalo de tempo
Tempo
Localização no tempo
Área do conhecimento ou de atuação
Material
Especificação
Forma
Eventos
Estados emocionais
Locativos não espaciais (exceto F1)
EXTENSÕES SEMÂNTICAS
22. Joguei os livros na bolsa.
47. Você deve colocar pouco ar no balão.
11. Carregava um pão fresquíssimo no saco de papelpardo.
30. O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico.
4. A Pousada Villa das Pedras fica na estrada que liga Brasília a Pirenópolis.
6. Ainda havia muitos icebergs no mar.
17. Entenda os protestos do setor rural na Argentina.
21. Havia faixas estendidas no gramado.
31. ... o Brasil e Minas Gerais como apenas um retrato na parede.
16. O governo dá incentivo fiscal para quem plantar no telhado.
33. O senhor não viu a placa no acostamento?
3. A miniatura possui um pequeno trincado no para-brisa.
39. ... necessários para se trocar uma lâmpada no teto da repartição?
28. O buraco na parede foi feito com dois pedaços de ferro.
8. Bebê nasce num carro por falta de uma ambulância.
14. Ela estava sentada numa mesa do Café Capricieux.
35. Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países.
15. Quero te ver em meia hora.
48. Você será redirecionado para a página do Instituto em 5 segundos.
24. A chegada da família real no Brasil em 1808 aprimorou...
43. Trabalhei nesses 15 anos de pesquisa sem parar.
32. O Overmundo completou um ano no último dia 7.
27. Nesses tempos de globalização, Turquia e Brasil fazem... emergentes.
9. Bem-vindo ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS.
13. É cirurgião dentista, especialista emDentística Restauradora.
20. Fala e escreve bem em inglês e francês.
5. Abajur decorado em porcelana fria.
10. Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço.
37. Os designers trabalharam para criar um vestido em vermelho vibrante...
18 Esta página é melhor visualizada em Internet Explorer 5 ou superior.
29. O ECA pressupõe um atendimento em rede.
38. Pesquisadorinventou uma bateria que carrega energia em estado sólido.
41. Rodou em círculos, tropeçou e proferiu blasfêmias.
40. Robô em forma de lagarta simula os movimentos do bicho.
34. O uso de drogas pode constituir-se em um caso de dependência.
46. Vendo som completo ou em partes.
36. Os anúncios das seções Imóveis são publicados em subseções...
2. Há esperança de contar com o meia Roger no clássico contra o Santos.
7. Airton enfrenta Alemão no paredão do BBB.
12. Dejetos usados na fertilização degradam microbacias.
44. Um pouco sobre civilização nas palavras de Bertrand Russell.
45. Use um grampo na ponta da linha para facilitar a troca de isca.
19. Eu me sentia bem naquela solidão.
25. Na angústia, o homem experimenta a finitude de sua existência humana.
1. A chita ou o algodãozinho estampados nessas cores desbotam facilmente.
42. Se quiser continuar comigo é nesses termos.
23. Jonas transformou-se no primeiro desaparecido político brasileiro.
26. Não há muita perspectiva do Brasil participar nesses grandes projetos.
USOS SANCIONADORES
FIGURA 1 – Dendrograma gerado pelo Método Ward de agrupamento, com os níveis de semelhança obtidos para os
usos de em
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
29
6.1 A coerência das categorizações
Levando-se em conta as deinições de polissemia, monossemia
e homonímia apresentadas na introdução deste artigo, uma visão geral
do dendrograma mostra que a hipótese nula não se conirma em nenhum
de seus aspectos. Primeiramente, a possibilidade de ocorrer monossemia
no sentido forte foi descartada, uma vez que vários grupos coerentes
se formaram em diferentes níveis, isto é, no geral, os informantes não
consideraram que os usos da preposição tivessem um só signiicado. Essa
visão seria conirmada caso a maioria dos nódulos tivesse se formado
próximo ao ponto “zero” da escala (semelhança máxima), na Figura 1,
e se a Figura 2 e a Tabela 1 apresentassem um só grupo.
Nosso resultado é similar àquele observado por Sandra e Rice
(1995, p. 108). Segundo esses autores, seus “sujeitos não produziram
agrupamentos monolíticos”, e, em nosso experimento com em, apenas
uma participante reuniu todas as frases em um único grande grupo. Essa
decisão não foi aleatória, entretanto, e o sentido esquemático encontrado
não foi localização, como pode ser visto na transcrição da entrevista.
Sj15: Olha, eu agrupei todas as frases em um só grande
grupo porque eu acho que toda vez que as... essas palavras
sublinhadas aparecem, acontece uma especificação na
frase. Como se os elementos da frase estivem dentro de uma
categoria. [...] Por exemplo, na frase “Joguei os livros na
bolsa”. “Na bolsa”. Eu poderia ter jogado os livros no chão
ou jogado os livros na mesa. [...] “Robô em forma de lagarta
simula os movimentos do bicho.” É uma especificação
do robô: “em forma de lagarta”. O robô poderia ter outra
forma. [...] “Se quiser continuar comigo é nesses termos”. Se
continuar comigo nesses... poderia ser em outros termos. [...]
“Cirurgião dentista especialista em dentística restauradora.”
Ele poderia ser especialista em... em outra coisa.
Aquilo que a informante denomina especiicação é um valor
semântico único, mais vago, instanciado por usos locativos ou não, nos
diferentes domínios representados no experimento. Portanto, todas as
distinções (localização, especiicação – por forma, material, cor, etc.)
abaixo desse nível são menos salientes para ela.
A possibilidade de os grupos terem sido constituídos aleatoriamente
também não se conirmou, visto que os agrupamentos foram coerentes,
e todas as justiicativas apresentadas nas entrevistas foram igualmente
coerentes, baseadas em critérios semânticos. Por exemplo, Sj6 e Sj19
30
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
usam palavras distintas (sublinhadas) para se referirem à ideia de
localização, mas ambos perceberam esse sentido como uma categoria.
Sj6: O grupo um, é, eu reuni por, por local, com um sentido
de, de lugar que... têm essas frases. Você gostaria que eu
lesse essas frases?
Sj 19: Eu usei o critério de... é... qual... é... qual a outra
palavra que o “em” poderia ser substituído. [...] no grupo
quatro, por exemplo, o “em” pode ser substituído pela
palavra “onde”. [...] E no dois são... sempre vem com
características. É sempre características do... da... do que
foi falado antes. Ouve só: Abajur decorado em porcelana
fria. É uma característica da... da decoração.
Abaixo, a informante Sj7 descreve usos não espaciais da
preposição que ela agrupou em uma só categoria diferente de duas outras
formadas antes. Ela emprega o critério de domínio evocado (por exemplo,
o tempo), mas reserva a noção de localização para usos espaciais. Para
os demais casos, ela procura uma categoria “guarda-chuva”, que possa
incorporar usos em domínios menos salientes. Além disso, Sj7 apoia-se
no marco para decidir sobre o tipo de relação criada a cada vez.
Sj7: A meu ver, esse aqui já não é nem uma coisa [lugar]
nem outra [tempo]. Não tem assim... uma característica
que me chama mais a atenção. [...] Olha, eles dão mesmo
coisas mais vagas. [...] Por exemplo... igual a esse. “Em
rede”. Rede é uma coisa muito ampla. Muito... Não é uma
coisa especíica. Então, eu iz esse grupo assim, de coisas
não especíicas. [...] é uma coisa assim... um caso é uma
coisa vaga, igual essa outra frase. A 34. Um caso é uma
coisa vaga. Entendeu? Então, assim... coisas mais vagas.
[...] “Em partes”, “nas palavras”, “termos”, “círculos”, são
todas coisas mais vagas. Não é uma coisa precisa.
Também se observa que os nódulos do dendrograma distribuemse ao longo da escala na Figura 1, ou seja, nenhum dos 32 informantes
devolveu as 48 sentenças separadas. O mesmo foi relatado por Sandra e
Rice (1995, p. 108) para as três preposições estudadas.6 Entretanto, apesar
6
Em seu artigo (p.108), Sandra e Rice discutem os resultados obtidos para a preposição
in. Entretanto, segundo eles, “exactly the same conclusions apply to the other two
prepositions [at, on] as well”.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
31
das indicações do gráico, não se pode eliminar com certeza a ideia de
homonímia máxima, tampouco airmar que o resultado obtido seja uma
resposta a um componente da tarefa de classiicação. Foi solicitado aos
participantes que agrupassem as frases “de acordo com SEMELHANÇA
DE SENTIDO”, embora as instruções também incluíssem a informação
“sem limite máximo ou mínimo para o número de grupos ou para o
número de frases em cada grupo”.
No dendrograma da Figura 1, a coerência se manifesta na
organização dos grupos. Logo de início, observa-se uma distinção
principal entre usos espaciais e não espaciais. Além disso, a grande
maioria dos usos espaciais está reunida no alto dessa igura, indo de f22
a f35. Esse grupo é seguido por outro menor, de f15 a f27, que incorpora
todos os usos temporais. Mais abaixo, vê-se um grande grupo de usos não
locativos de especiicação, de f9 a f36, com uma única exceção no uso
de estado inal em f34. Essa frase talvez não seja exceção de fato, tendo
em vista que foi associada a grupos de usos com o sentido de forma, e
adquirir uma nova forma é um signiicado possível para “constituir-se
em...”. Por im, surge outro grupo de locativos abstratos, que vai de f2 a
f26, com apenas uma exceção: um uso da categoria cor em f1.
As entrevistas e o gráico na Figura 1 conirmam, assim, a hipótese
de haver coerência na categorização dos signiicados da preposição pelos
informantes. Essa coerência entre os grupos também é demonstrada
pelo método de otimização de Tocher (Tabela 1 e Figura 2). A análise
multidimensional revelou sete diferentes grupos, quase todos com base
em alguma dimensão semântica. O grupo <1> representa majoritariamente
localização espacial; o grupo <2> contém majoritariamente usos de
especiicação; o grupo <3> somente apresenta usos temporais; o grupo
<4> representa majoritariamente estados emocionais. O grupo <5> contém
dois usos locativos abstratos – estado inal e um denominado previamente
metáfora do conduto. Como se observa na Figura 1, os grupos <4> e <5> se
distinguem pela grande saliência da relação entre f19 e f25 em comparação
com f42, que completa o grupo <4> na Tabela1. Essa saliência inexiste no
grupo <5>. É possível que a formação dos três últimos grupos (<5>, com
dois objetos, e <6> e <7>, com um único objeto cada) tenha sido causada
pela maior esquematicidade da relação expressa pela preposição, incluindo
um uso não locativo de cor. Dessa forma, não ica muito clara a motivação
semântica por trás dos três últimos grupos formados pelo método de Tocher.
Contudo, a parte inferior do dendrograma na Figura 1 fornece certa lógica
para esses agrupamentos, que são majoritariamente locativos não espaciais
e menos transparentes que outros locativos.
32
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TABELA 1 – Formação dos agrupamentos pelo método de Tocher
GRUPO
ACESSOS
<1>
22 47 11 6 33 21 16 31 3 4 28 17 14 39 8 30 7 45 2 12
<2>
5 10 37 40 38 41 29 46 36 13 9 20 34 18
<3>
15 48 24 32 43 27
<4>
19 25 42
<5>
23 44
<6>
26
<7>
1
Fonte: A pesquisa.
6.2 Níveis de granularidade
Após se confirmar a capacidade de discriminação e de
esquematização dos informantes, discute-se agora o nível de granularidade
nas suas classiicações e a força de coesão entre os grupos. Como se pôde
observar na Figura 1, os participantes também diferenciaram inicialmente
duas grandes categorias: uma de usos espaciais (que denominamos
“sancionadores”) e outra de não espaciais (que denominamos “extensões
de sentido”). Além disso, dezesseis deles mencionaram o termo
“especiicação” em suas entrevistas.
Entre os grandes domínios mencionados na seção anterior, como
esperado, o espaço foi o domínio mais saliente, seguido pelo tempo,
formando grupos muito nítidos nos dois gráicos. Nas entrevistas, vinte
dos trinta e dois sujeitos izeram menção clara ao domínio espacial, e
dezenove, ao temporal, em contraste com onze que mencionaram os
estados emocionais, e seis, a categoria cor. Na entrevista, alguns chegaram
a assumir a diferença de nível de saliência, como no excerto abaixo:
Sj 29: O grupo quatro eu achei mais fácil que é mais... no
local, em algum lugar.
Quanto às distinções mais inas, alguns grupos menores foram
conirmados por um número maior de informantes e aparecem perto
do zero da escala de dissimilaridade no dendrograma. Esses grupos
pequenos, porém altamente coesos, representam subcategorias do
domínio espacial, do domínio temporal e da categoria especiicação.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
33
O primeiro desses subgrupos pode ser identiicado bem no alto do
dendrograma, separado dos demais usos espaciais. Ele contém exemplos
de inclusão ou contenção, começando com f22 e f47, os quais representam
ações de movimento para dentro de um contentor (31/32 associações),
recebendo depois o uso estático f11 (28/32 associações) e, por im, f30
(22/32 associações). Os marcos tridimensionais bem delimitados – bolsa,
balão e saco de papel – e os trajetores tangíveis resultaram na grande
saliência da noção de contenção. Essa saliência é menor no exemplo f30,
porque o marco – uísque – não apresenta limites claros.
f22. Joguei os livros na bolsa.
f47. Você deve colocar pouco ar no balão.
f11. Carregava um pão fresquíssimo no saco de papelpardo.
f30. O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico.
Embora a geometria do trajetor tenda a ser caracterizada de forma
mais simpliicada que a do marco, distinções mais inas no domínio espacial
foram relacionadas por Sandra e Rice (1995, p. 109-110) não apenas ao
número de dimensões do marco, mas também à natureza tangível do trajetor.
Esse é um resultado que corrobora a premissa das redes de polissemia sobre
a inluência das propriedades dessas entidades na formação dos grupos.
Em seu experimento com a preposição in, as frases 3-5 abaixo formaram
um grupo separado de (6), em que um trajetor “intangível” ou vazio (hole)
ocorre com um marco bidimensional (sweater), e (7), em que as dimensões
do marco (Japan) são “desconhecidas”.
3. Are you putting onions in the stew? [Você vai colocar/está
colocando cebolas no ensopado?]
4. Don’t put that in your mouth. [Não ponha isso na sua boca.]
5. My pen is in the drawer. [Minha caneta está na minha gaveta.]
6. There’s a hole in your sweater. [Tem um buraco no seu blusão.]
7. In Japan, they eat raw ish.[No Japão, eles comem peixe cru.]
Em nosso experimento com em, trajetores vazios, ou intangíveis,
não foram encontrados entre as instâncias prototípicas do esquema de
[contentor]. F3 – trincado no para-brisa– e f28 – buraco na parede
– foram tratados genericamente como outros usos apenas locativos, em
grupos com menor coesão, como se vê no dendrograma. A separação
entre f28 e f31 (retrato na parede) resultou da concretude do trajetor
retrato, já que ambas as frases apresentam o mesmo marco.
34
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
Devido à maior esquematicidade de em comparado às preposições
inglesas in e on, o trajetor concreto de f31 e os marcos bidimensionais
parede e gramado contribuíram para a formação de um segundo
subgrupo com f21 com base nas noções de contato e suporte, com 27/32
associações. Esse subgrupo demonstra que os participantes não levaram
em conta as orientações distintas do eixo sobre o qual se alinham os
objetos, como proposto na análise prévia.
f21. Havia faixas estendidas no gramado.
f31. [...] o Brasil e Minas Gerais como apenas um retrato na
parede.
Os exemplos f16 – plantar no telhado – e f33 – a placa no
acostamento – também foram considerados altamente semelhantes (29/32
associações) e se juntaram ao par f21-f31 no estágio seguinte. Embora
fatores como a centralidade da localização dos objetos no signiicado
de f16 e de f33 possam ter reforçado a ligação entre essas frases, a
proximidade entre os quatro usos na perspectiva dos falantes demonstra
coerência que pode ser atribuída à presença de um marco bidimensional.
Os demais usos espaciais se agruparam próximos do início da
escala, em torno do ponto 10. O alto grau de coesão entre os subgrupos
espaciais e de semelhança entre seus elementos conirma, mais uma vez,
a saliência desse domínio básico em nossa experiência.
Fora do domínio espacial, também foram observados pares com
grande força coesiva. Ainda que não tenha sido mencionada nas entrevistas,
a categoria localização no inal de um período de tempo (f15 – Quero te
ver em meia hora – e f48 – Você será redirecionado para a página do
Instituto em 5 segundos) formou-se em um nódulo muito próximo de zero
na escala de distâncias, com 28/32 associações. Já era prevista essa grande
saliência do tempo, e esse par, especiicamente, é formado por usos que
apresentam a maior semelhança entre si no tocante ao conteúdo temporal,
já que ambas as frases evocam um tempo futuro quase imediato.
Fora dos domínios do espaço e do tempo, é relativamente
saliente (26/32 associações) a semelhança percebida entre f19 – naquela
solidão – e f25 – na angústia –, cujos marcos são estados emocionais. A
associação entre esses usos era esperada porque a emoção constitui um
domínio abstrato que se destaca no cotidiano das pessoas.
No grande grupo de especiicação, duas distinções mais inas
podem ser observadas. A primeira delas é um subgrupo de especiicação
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
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no sentido restrito (f9 – pós-graduação em direito – e f13 – especialista
em dentística restauradora –, com 27/32 associações). Essa categoria,
chamada “tipo” na análise prévia, pode ser justiicada pela estabilidade
da construção em + “área de conhecimento” modiicando substantivos
(e verbos) de um único campo lexical. A segunda distinção inclui as
especiicações em f5 – abajur decorado em porcelana fria – e f10 –
estrutura em tubo de aço –, consideradas semelhantes pela maioria
dos participantes (28/32 associações). Como pode ser observado no
dendrograma, esse último é o subgrupo com a maior coesão dentro
de especiicação. Sem dúvida, mesmo não se tratando de uma relação
espacial, a preposição em introduz uma propriedade muito concreta e
saliente desses objetos, que é o material do qual eles são fabricados.
Por im, os informantes também estabeleceram relações menos fortes
de semelhança dentro de grupos maiores. Um exemplo disso é o par com
nível intermediário de coesão (20/32 associações), formado por f2 – o meia
Roger no clássico contra o Santos – e f7 – Alemão no paredão do BBB –,
cujos marcos são eventos. Outro caso menos saliente (14/32) é a associação
entre os usos f38 a f36, relacionados à forma de entidades e de atividades.
Com força de coesão menor que a existente entre usos nos domínios espacial
e temporal, ainda assim, essas associações se destacam entre categorias não
locativas. Também se observou que certos grupos não locativos com muita
força interna icaram nitidamente separados de outros subgrupos do mesmo
grupo maior. Certamente, esses são domínios com grande saliência cognitiva,
mesmo não representando experiências primárias.
Corrobora-se, assim, a hipótese de que um maior número de
informantes perceberia distinções mais inas entre os grandes grupos.
Da mesma maneira que nos resultados obtidos por Sandra e Rice (1995,
p. 108), conirma-se, no presente estudo, a premissa de que algumas
categorias de usos são mais facilmente distinguíveis que outras.
6.3 A estrutura relacional
A capacidade de os participantes perceberem a estrutura relacional
refere-se à coerência da ligação entre usos de categorias distintas. Menos
intensamente que a relação entre domínios, essa capacidade pôde ser
comprovada pela formação de um grande grupo de locativos e não locativos,
separado dos usos espaciais, por volta do ponto 70 na escala do dendrograma
(Figura 1). Outro exemplo foi a associação de locativos espaciais e não
espaciais no grupo <1> do gráico do método de Tocher (Figura 2).
36
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FIGURA 2 – Representação 3D dos grupos de frases formados pelo método de otimização de Tocher
Gr 2
Gr 7
Gr 4
Gr 5
Gr 6
Gr 3
Gr 1
Fonte: Autores
Fonte: A pesquisa.
Gr. 1: localização espacial
Gr. 2: majoritariamente especificação
Gr. 3: tempo
Gr. 4: majoritariamente estados
emocionais
Gr. 5: estados emocionais e metáfora do
conduto
Gr. 6: atividade
Gr. 7: cor
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37
A elipse pontilhada dentro do grupo <1> contém os usos não
espaciais f2 – no clássico contra o Santos –, f7 – no paredão do BBB –
e f12 – na fertilização –, além do uso espacial f45 – na ponta da linha.
Levando-se em conta que se trata da união de quatro usos, 9/32 é um
número razoável de associações do sentido esquemático de localização
às categorias de atividade e de eventos e, ainda, a localização pontual
no espaço. Essa associação também pôde ser observada no discurso de
alguns informantes:
Sj 19: “Vendo som completo ou em partes”. “Dejetos
usados na fertilização...”, “um pouco sobre civilização
nas palavras...”. Eu caracterizaria como “referencial” do
físico. Um local abstrato, não físico.
Sj30: Aqui é lugar. Igual “na parede”, “no uísque”,
“na mesa”, em vários lugares. E aqui, “visualizada em
Internet”. É o lugar que ela é visualizada. Eu achei que
estava referindo a algum lugar. “nesses países”, “no
paredão do big brother”, “no para-brisa”. Em todas eu
achava que estava relacionada a um lugar.
Outra evidência de que os falantes perceberam relações entre
domínios diferentes é o fato de eles terem produzido um grupo com
vários tipos de especiicação (16/32). Eles associaram instrumento (f20
– em francês) a dois usos bastante claros de especiicação propriamente
dita (f9 – pós-graduação em direito – e f13 – especialista em dentística
restauradora – com 27/32 associações), e, ainda, f5 e f10 (material, 28/32)
a f37 (cor), a associação entre esses três últimos tendo icado em 19/32.
Por outro lado, não se pode airmar com certeza que os falantes
tenham percebido alguma relação entre as categorias maiores ou se houve
inluência do método estatístico. Tome-se como exemplo a separação
total entre os usos do espaço e os demais usos em geral (extensões de
sentido na Figura 1). Os métodos hierárquicos começam sempre com
todos os elementos em um só grupo. A partir daí, inicia-se uma série de
subdivisões, ou então, ao contrário, todos os objetos são considerados
diferentes no início do cálculo e vão sendo agrupados até formarem um
só grupo contendo todos eles. Essa poderia ser a razão para a ausência
de um nódulo uniicador entre grupos maiores dentro dos limites da
escala no dendrograma.
38
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
6.4 Comparação com o modelo de rede proposto
Além dos grandes grupos e dos pequenos subgrupos altamente
coesos (seção 6.2) discutidos até este ponto do texto, que também foram
previstos pelo linguista, as escolhas dos informantes revelaram diferentes
níveis de granularidade, coerência na formação de grupos e identiicação
de uma estrutura relacional. Assim, em grande parte, as respostas no
experimento coincidiram com a primeira proposta de Rede Esquemática,
ainda que certas distinções mais inas não tenham sido reproduzidas
pelos participantes, como já previsto pelo próprio Langacker (2008, p.
37). Essas distinções/não distinções mais inas são discutidas a seguir.
De fato, os informantes não marcaram claramente a diferença entre
inclusão total e parcial. Pouco mais da metade deles (18/32) associaram
f30 – gelo no uísque – a f6 – icebergs no mar –, consideradas usos de
inclusão parcial na análise prévia. A primeira foi associada a usos típicos
de inclusão em um marco deinido, e a segunda icou em um grupo com
marcos que não são contentores prototípicos. O mesmo pode ser dito sobre
f4 – a pousada ica na estrada – e f17 – os protestos na Argentina –, que
apresentam marcos bidimensionais não canônicos (ver seção 4 acima).
Além disso, contraria a análise prévia a associação discutida na
seção 6.2, dos dois usos com trajetores vazios (f3 – o trincado no parabrisa – e f28 – o buraco na parede) a outros tipos de localização espacial
mais vaga. Como consequência, na rede de polissemia, é possível que
os usos 1.1.1.3 e 1.1.1.4 devam ser excluídos da classe de localização
estática em um contentor.
As associações explicadas na seção 6.2, sobre tipos diferentes
de inclusão, de contato e de localização pontual, reletem a tendência
dos informantes de classiicarem esses usos como localização não
especíica, indo de encontro ao nível de reinamento da análise prévia.
Essa conclusão também se apoia em trechos das entrevistas como este:
P: No mar, na estrada, numa mesa, no paredão. Você entende
todas essas aí como dando uma ideia de localização.
Sj21: É isso aí. Com certeza. Então, “O senhor não viu a placa
no acostamento?” Local, lugar. “Airton enfrenta Alemão
no paredão”. “Ela estava sentada numa mesa de café”. “A
pousada ica numa estrada que liga Brasília a Pirenópolis”.
“Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países”.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
39
Para efeito de descrição linguística, a classiicação feita pelos
participantes sugere que os pares 1.1.3, 1.1.4 e 1.1.5, propostos na análise
prévia, possam ser fundidos em uma categoria de usos espaciais de
localização com contato. De fato, nem a língua nem os sujeitos envolvidos
fazem distinção no emprego de em quanto ao eixo de orientação ou quanto
ao tipo de localização (pontual e não pontual).
Não houve associação entre mudanças de estado e alguma
ideia de movimento abstrato. F23 – Jonas transformou-se no primeiro
desaparecido político – e f34 – o uso de drogas pode constituir-se em
um caso de dependência – tiveram apenas 9/32 associações e aparecem
em grupos distintos de acordo com a análise pelo método de Tocher.
Por outro lado, no que diz respeito à distinção aspectual entre
eventos e atividades, 20/32 associações foram feitas entre f2 – no
clássico – e f7 – no paredão do BBB –, que são eventos bem deinidos.
Ao contrário, as atividades, que são durativas e sem limites claros,
apareceram dispersas na parte inferior do dendrograma (f12 – na
fertilização – e f26 – nesses grandes projetos), formando grupos menos
coesos com exemplos de metáfora do conduto (f44) e estado inal (f26).
Dessa forma, também fora do domínio espacial, o mais delimitado
demonstra ser cognitivamente mais saliente.
Como mostra a Figura 2, o domínio temporal formou um grupo
fortemente coeso e também apresentou subdivisões, tais como o subgrupo
de usos temporais previsto na primeira rede, descrevendo eventos em
um futuro próximo, diferenciados de outros usos temporais. Porém, não
houve discriminação entre pontualidade e duração, como o comprova o
considerável grau de semelhança obtido (24/32), neste domínio, entre
f24 – a chegada da família real em 1808 – e f43 – trabalhei nesses quinze
anos. A pontualidade no tempo foi tratada por alguns sujeitos como uma
instância de especiicação geral, como se lê a seguir.
Sj21: ... pra mim, essas palavras dão o sentido de estar
especificando as coisas. Por exemplo, “Bem vindo ao
programa de pós-graduação em direito da UFRGS.”
Então, aqui está especificando. Pós-graduação em. Está
especiicando. “Cirurgião dentista especialista em dentística
restauradora”. “Trabalhei nesses quinze anos de pesquisa”.
Está especiicando. Não foi neste nem naquele. [...] O mesmo
caso aqui. “O overmundo completou um ano no último dia
sete”, “Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço”. Está
especiicando, qual tubo? De aço. Fica um pouco confuso.
40
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7 Comentários inais
O presente artigo apresentou os resultados de um experimento
proposto como segunda abordagem empírica a uma rede de polissemia.
Nele se demonstrou a interpretação intuitiva de 32 falantes leigos nativos
do português do Brasil, em relação aos usos da preposição em. Embora
a negação da hipótese de homonímia possa ter sido enfraquecida pela
inclusão da expressão “semelhança de sentidos” na instrução dada aos
participantes, foi possível descartar a hipótese de monossemia, tendo
sido obtido, neste caso, um resultado muito parecido com aquele relatado
por Sandra e Rice (1995). No todo, observou-se que os participantes
classiicaram as frases de forma coerente.
Levando-se em conta o objetivo (i) – identiicar o nível de
granularidade que os falantes são capazes de perceber entre sentidos na
rede –, observou-se que foi mais forte a distinção entre usos espaciais
(sancionadores) e não espaciais (extensões).
Com relação aos primeiros, icou comprovada a importância das
propriedades físicas dos objetos relacionados, em particular os marcos,
como critérios de classiicação dos usos, mas também dos trajetores
em alguns casos, como observaram Sandra e Rice em seu experimento.
Entidades concretas mais delimitadas reletem mais facilmente efeitos
pragmáticos como contenção e suporte, reforçando as hipóteses de
classiicação dos participantes. Essa informação é ainda mais relevante no
caso da preposição em, cuja semântica é mais vaga que a das preposições
da língua inglesa analisadas por esses pesquisadores. Com relação às
extensões semânticas, os participantes diferenciaram, com maior nitidez,
usos temporais, usos envolvendo estados emocionais e usos não locativos
relacionados à percepção sensorial.
Também icou demonstrada a capacidade dos participantes para
fazer distinções inas, dentro e fora do domínio espacial, embora em
menor grau que na rede proposta originalmente. Entre as distinções feitas
pelo linguista, que não se concretizaram na tarefa, estão inclusão total
versus parcial no domínio do espaço, e aspecto pontual versus durativo,
no tempo.
Com relação ao objetivo (ii) – veriicar se as relações entre
categorias de domínios seriam realmente percebidas –, demonstrouse também que, embora uma noção comum de localização tenha sido
percebida pelos participantes, essa noção foi suplantada pela distinção entre
domínios, especialmente o espaço, o tempo e os usos de especiicação.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018
41
Essas observações confirmam um isomorfismo parcial, em
particular quanto ao padrão de estrutura e das relações típicas do modelo
de Rede Esquemática de polissemia.
Finalmente, acerca dos procedimentos de análise, o ponto de
corte na escala de distâncias do dendrograma é subjetivo, conforme
relatam Everitt et al. (2001). Para obtê-lo, foi de crucial importância o
emprego combinado do método hierárquico de Ward (1963) e da análise
multidimensional de Tocher (apud RAO, 1952), o que possibilitou a
divisão de grupos nos moldes descritos na seção 5.3.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
(FAPEMIG) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) por bolsas de doutoramento e de estágio sanduíche
para a primeira autora.
Aos informantes da pesquisa, alunos da Universidade Federal de
Viçosa (Rio Paranaíba, MG) e da Funedi-UEMG (Divinópolis, MG), e ao
Prof. Maurício J. Faria (Funedi-UEMG), pois, sem eles, nossa pesquisa
não poderia ser realizada.
Aos professores Heliana R. Mello (UFMG) e Stephan Gries
(UCSB) por suas sugestões mencionadas ao longo deste texto. Vale
ressaltar que quaisquer inadequações percebidas pelo leitor nesses pontos
são de inteira responsabilidade dos autores deste artigo.
Aos revisores anônimos, cujas sugestões contribuíram
imensamente para o aprimoramento de nosso texto.
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psicolinguístico para o estudo da linguagem e cognição. Lisboa: Fundação
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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
Exploring content selection strategies for Multilingual
Multi-Document Summarization based on the Universal
Network Language (UNL)
Investigando estratégias de seleção de conteúdo para a
Sumarização Multi-Documento Multilíngue com base na
Universal Network Language (UNL)
Matheus Rigobelo Chaud
Universidade de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil
matheus_chaud@yahoo.com.br
Ariani Di Felippo
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil
arianidf@gmail.com
Abstract: Multilingual Multi-Document Summarization aims at ranking
the sentences of a cluster with (at least) 2 news texts (1 in the user’s
language and 1 in a foreign language), and select the top-ranked sentences
for a summary in the user’s language. We explored three concept-based
statistics and one supericial strategy for sentence ranking. We used
a bilingual corpus (Brazilian Portuguese-English) encoded in UNL
(Universal Network Language) with source and summary sentences
aligned based on content overlap. Our experiment shows that “concept
frequency normalized by the number of concepts in the sentence” is the
measure that best ranks the sentences selected by humans. However, it
does not outperform the supericial strategy based on the position of the
sentences in the texts. This indicates that the most frequent concepts are
not always contained in irst sentences, usually selected by humans to build
the summaries because they convey the main information of the collection.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.45-71
46
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
Keywords: content selection; concept; statistical measure; multilingual
corpus; multi-document summarization.
Resumo: O objetivo da Sumarização Automática Multilíngue
Multidocumento é ranquear as sentenças de uma coleção com ao
menos duas notícias (1 na língua do usuário e 1 em língua estrangeira)
e selecionar as mais bem pontuadas para compor um sumário na língua
do usuário. Exploramos três estatísticas conceituais e uma estratégia
supericial para criar um ranque das sentenças quanto à relevância.
Para tanto, utilizamos um corpus bilíngue (português-inglês) anotado
via UNL (Universal Network Language) e com textos-fonte e sumários
alinhados em nível sentencial. A avaliação indica que a estatística
denominada frequência de conceitos normalizada pelo número de
conceitos da sentença é a que melhor reproduz o ranqueamento humano.
Essa medida, entretanto, não supera a estratégia supericial baseada na
posição das sentenças. Isso indica que os conceitos mais frequentes do
cluster nem sempre estão contidos nas primeiras sentenças dos textosfonte, usualmente selecionadas pelos humanos para compor os sumários
porque veiculam a informação principal da coleção.
Palavras-chave: seleção de conteúdo; conceito; medida estatística;
corpus multilíngue; sumarização multidocumento.
Received on: July 7th, 2016.
Approved on: January 13th, 2017.
1 Introduction
Even though a wide number of news agencies make information
available on the web, it is very dificult to know what is happening in
the World unless an event is tragic enough to catch the attention of the
international media. According to Orasăn and Chiorean (2008), there are
two main reasons for that. First, quite often the news is not in a language
familiar to the reader. And second, even in the cases where the language
does not constitute an impediment, the amount of information available
is quite often so large that it is impossible to read everything published.
Thus, Natural Language Processing (NLP) applications that
address the goal of treating multiple languages in different multidocument summarization tasks are relevant tools to deal with the huge
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
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and overloaded amount of information in multiple languages. One of
these applications is the cross-language summarization, which is the
production of a summary in a language Lx when the cluster (i.e., cluster
of news texts on the same topic) is in a language Ly different from Lx
(SARKAR, 2014).
Another application is called Multilingual Multi-Document
Summarization (MMDS). In a broad sense, the deinition of MMDS is:
“If L is a set of natural languages, MMDS can be deined as a process
that can accept a single document in one language l∈L or can accept a
cluster of related documents in one language or in different languages
selected from L to produce a summary in the same language as the
input or in a language chosen from L by the user (SARKAR, 2014).
In particular, when the input is a cluster of related documents coming
from different languages sources, MMDS is a highly challenging NLP
task, since it requires merging content in different languages as well as
dealing with the classical multi-document issues, such as capturing the
most relevant content, and maintaining summary coherence/cohesion
by treating redundancy. MMDS approaches can be broadly categorized
as language independent multilingual summarizationand language
dependent multilingual summarization. The approaches of the irst
category do not use much semantic or language speciic information.
They can make only some minimal assumptions about the language
(e.g., that the text can be split into sentences and sentences further into
words) and perform equally well on different languages without linguistic
knowledge. These approaches usually have low cost and are more robust,
but they produce poor results. The approaches of the second category
utilize language speciic knowledge such as morphological, syntactic and/
or semantic information, retrieved from lexical resources (e.g., wordnet
lexical databases and thesauri) and parallel corpora. Language speciic
knowledge is necessary for machine translation of documents from one
language to another.
Speciically, the few previous language dependent MMDSmethods
usually consist of two steps: (i) translation of the foreign texts and (ii)
summarization (ROARK; FISHER, 2005; EVANS et al., 2005; TOSTA
et al., 2013). The irst step is performed by some machine-translation
(MT) engine, producing a monolingual multi-document cluster. Then,
an extractive multi-document summarization method is used to build the
summaries, which sometimes treats redundancy. As for the summarization
48
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
step, the extractive methods are predominantly supericial, based on
features such as word frequency and sentence position, which are robust
and have low cost, but produce poor results (KUMAR, SALIM, 2012).
Tosta (2014), whose results were recently published by Di-Felippo et
al. (2016), has proposed the irst MMDS methods exclusively based
on lexical-conceptual knowledge. The methods use the frequency of
the nominal concepts in the cluster to score and rank sentences in their
original languages. If sentences in the foreign language are selected for
the summary, they are automatically translated to the user’s language.
The experiments were performed using a corpus of 20 clusters, and show
that conceptual knowledge improves the linguistic quality of extracts.
Given the promising results of Tosta (2014) and Di-Felippo et
al. (2016), we have explored the potential of 3 concept-based measures
to capture human content selection strategies in MMDS: (i) CF (concept
frequency), (ii) CF*IDF (concept frequency corrected by the inverted
document frequency), and (iii) CF/No. of Cs in S (concept frequency
normalized by the number of concepts in the sentence). The experiment
was performed using 3 clusters from the CM2News corpus (TOSTA,
2014), whose source sentences were manually annotated with UNL
(Universal Network Language) (UCHIDA et al., 1999). To analyze the
measures, we used manual alignment of the texts and human summaries
at sentence level. Speciically, we calculated how many aligned sourcesentences were covered by the top sentences of the ranks built from
each measure and by a sentence position baseline. The experiment
shows that measure (iii) produces the rank with the highest number of
aligned sentences, having thus the best performance in capturing the
human preferences. However, it did not outperform the sentence position
baseline. This indicates that the sentences that convey the most important
information in news texts are, indeed, in the initial positions, and also that
they do not necessarily contain the most frequent concepts. This evidence,
however, needs to be well explored due to our small corpus of work.
In Section 2, we detail researches that address the goal of treating
multiple languages in different multi-document summarization tasks,
especially those that rely on language speciic knowledge. In Section 3,
we describe the corpus that was used, focusing on the pre-processing
step. In Section 4, we present the 3 concept-based measures that we
investigated. In Section 5, we discuss our evaluation, which measures
how the conceptual statistics are able to select the same source sentences
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
49
as humans to compose an extract. Lastly, we provide inal remarks and
directions for further work in Section 6.
2 Related works
Evans and Klavans (2004) have developed a multilingual version
of the Columbia Newsblaster as a testbed for cross-language multidocument summarization. The system collects, clusters, and summarizes
news documents from sources all over the world daily. It crawls news
sites in many different countries, written in different languages, extracts
the news from HTML pages, uses a variety of methods to translate the
documents for clustering and summarization, and produces an English
summary for each cluster.
Sarkar and Bandyopadhyay (2005) presented the architecture
of multilingual summarization system for Indian languages. Basically,
the system has three major components: (i) several monolingual news
clusters, (ii) a multilingual news clusters, and (iii) a news summarizer.
The monolingual news cluster receives a news stream from multiple
online newspapers in its respective language, and directs them into
several output news streams by using events. Next, the multilingual news
cluster matches and merges the news streams of the same event but in
different languages in a cluster. The task for the multilingual cluster is to
align the news clusters in the same topic, but in different languages. The
system summarizes the news stories for each event by creating clusters
of sentences and selecting the representatives from each cluster to form
the inal summary.
Roark and Fisher (2005) take as input a cluster of some machinetranslated and original (written and spoken) texts. The method ranks
all the source sentences based on supericial features, and sets a high
preference for original English sentences. The features are different
versions of the tf-idf, log-likelihood ratio, and log-odds ratio lexical
measures, and position, which increase the weight of sentences near
the beginning of texts. The method was trained on a set of 80 clusters
with translations and original English texts using a machine-learning
algorithm, but there is no detail about the evaluation. One problem with
this method is that, considering machine-translated texts as input, the
summaries might contain ungrammatical sentences, since MT is far
from perfect.
50
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
Evans et al. (2005) present an approach that identifies
similarities and differences across texts written in different languages
for summarizing topically clustered texts from two sources, English and
machine translated Arabic texts. Speciically, they take as input a cluster
with machine-translated and original texts. They only rank translated
sentences, using a combination of deep (i.e., importance-signaling words,
high-content verbs, and dominant concepts) and supericial features.
Besides the sentence position in the source texts, the other supericial
feature for sentence extraction is length, which penalizes sentences
that are shorter or longer than a threshold. The sentences selected from
the rank are replaced with similar ones from the English texts. For
evaluation, they used the DUC 2004 corpus, which contains 24 topics
with Arabic-to-English machine translations and English texts, and 4
human summaries. Using ROUGE (LIN, 2004), the evaluation shows
that the similarity-based approach outperforms a irst-sentence baseline.
This method, therefore, uses some semantic aspects of the input, an
advance over Roark and Fisher (2005), although it is clear that relevant
content that occurs exclusively in the preferred language is not selected
to build the summary.
Wan et al. (2010) present a cross-language multi-document
summarization approach that was evaluated on the manual translated
version of the DUC1 2001 dataset. In this approach, each English
document set is summarized to produce a Chinese summary. The
approach performs three main steps: (i) prediction of the translation
quality of each English sentence in the document set; (ii) selection of
the English summary sentences based on the translation quality and
informativeness, and (iii) translation of the generated English summary
to form the inal Chinese summary.
Tosta et al. (2013) also take as input a cluster with machinetranslated and original texts. The authors have proposed two MMDS
approaches based on supericial features: word frequency and sentence
position methods. And both avoid redundancy applying the word
overlap measure. If an ungrammatical translated-sentence is selected, it
is replaced with a similar sentence from the original text. The methods
were intrinsically evaluated according to the linguistic quality of the
summaries using the criteria of DUC (DANG, 2005): grammaticality,
1
Document Understanding Conference (http://duc.nist.gov/)
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
51
non-redundancy, referential clarity, focus, and structure/coherence. In
the manual evaluation, the sentence position method had better results.
Although the methods avoid the MT problems by applying a latetranslation approach, the content selection still relies on lat features,
which produce summaries with lower linguistic quality.
Tosta (2014) proposed 2 deep methods that take the source texts
in their original language as input. Both methods use the frequency of
the nominal concepts in the cluster to score the sentences, and avoid
redundancy using word overlap. Given the rank, the CF (concept
frequency) method selects the best-ranked sentences to compose the
summary until the desired summary length is achieved. If a sentence
happens to be in the foreign language, it is automatically translated to the
user’s language. The method was proposed under the assumption that the
MT of the selected foreign sentences to the user’s language minimizes the
problems that are caused by full MT of the source texts in the summaries.
The CFUL (concept frequency + user language) method selects the topranked sentences from the text written in the user’s language to compose
the summary, also avoiding redundancy. This approach relies on the
assumption that a summary built exclusively with original sentences in
the user’s language relects the most relevant content of the cluster, since
the concepts that occur in the foreign text are also taken into account
for sentence ranking. For evaluation, the authors used the CM2News
corpus (TOSTA, 2014), which has 40 original news texts grouped by
topic in 20 clusters. Each cluster contains 1 news text in English and 1 in
(Brazilian) Portuguese, and 1 human summary in Portuguese. The goal
was to produce extracts in Portuguese (user’s language). The concepts
were semiautomatically derived from Princeton WordNet. The evaluation
using the DUC criteria showed that the conceptual knowledge improved
the linguistic quality of the summaries, since both methods outperformed
the sentence position baseline (TOSTA et al., 2013). It also showed that
CFUL outperformed CF.
For summary evaluation, DUC was the main evaluation forum
from 2001 until 2007. Nowadays, the Text Analysis Conference
(TAC) provides a forum for assessment of different information access
technologies including text summarization. Out of the past DUC and TAC
editions, only a few have included multilingual text summarization tasks
in the list of oficial tasks. Recently, TAC 2011 Summarization Track had
a task on multilingual text summarization, which is called MultiLing.
52
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
Based on the cited works of the literature, we see that the most
recent language-dependent approaches for determining important content
in MMDS for English and Portuguese languages move towards a shallow
semantic interpretation of summary language.
The lexical-conceptual knowledge has already been used in
single summarization in order to achieve better content selection. Some
methods start by indexing the words of a text to concepts of a domainrelated taxonomy (i.e., hierarchy of concepts) and explore structural
features of the taxonomy (e.g., level) to detect the main subtopics of
the text (e.g., WU, LIU, 2003; HENNIG et al., 2008). Sentences or
paragraphs that are “closer” to the subtopics are selected to compose
the summary. Other approaches rely on the codiication of the source
text into UNL, and the application of different statistics for sentence
scoring, picking the sentences with the highest score to build the summary
(e.g., SORNLERTLAMVANICH et al., 2001; MANAGAIKARASI;
GUNASUNDARI, 2012). Since the UNL is a formalism to express the
propositional content of any sentence, Sornlertlamvanich et al. (2001),
for example, remove redundant words from the selected sentences,
such as modiiers, and combine sentences that cover the same concepts,
producing abstracts. Pandian and Kalpana (2013) proposed an approach
for summarizing documents from the tourism domain. The authors
focused on the generation of summaries for different levels of users.
Martins (2002) and Martins and Rino (2002) developed heuristic rules
for single-document summarization at the intra-sentential level, which
prune unnecessary binary relations from the UNL codiication of a text.
The heavy reliance on language resources, such as WordNet
and UNL formalism, is clearly a bottleneck for the aforementioned
deep approaches, because success is constrained by the coverage of the
resources and the sense granularity stored there. However, the use of
conceptual knowledge generates better results than shallow approaches,
at least in terms of linguistic quality.
Thus, this work focuses on: (i) exploring the potential of 3
concept-based statistics for determining important content in MMDS,
(ii) using all kinds of concepts (not only nominal concepts), and (iii)
evaluating the measures based on the alignments of source texts and
human summaries at sentence level.
Next, we describe the UNL formalism and the pre-processing
of the corpus.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
53
3 The Corpus
3.1 The UNLization: conceptual annotation
Since we sought to investigate how content selection takes place
in MMDS, we have selected the CM2News corpus (TOSTA, 2014; DIFELIPPO, 2016). It has 40 original news texts (a total of 19,984 words)
grouped by topic in 20 clusters. Each cluster is composed of 1 news
text in English and 1 in (Brazilian) Portuguese, both on the same topic,
and 1 human multilingual multi-document abstracts in BP. To produce
the abstracts, the abstract-writers were instructed to produce summaries
of length equal to 30% of the longest article in the cluster (i.e., 70%
compression rate). The clusters cover different domains: world, politics,
health, science, entertainment, and environment. Given the preliminary
and exploratory nature of this work, we have selected only 3 clusters
from CM2News, whose source texts and summaries have different sizes
or lengths (in number of sentences and words) (Table 1).
TABLE 1 – Characteristics of the data collection (CHAUD, 2014)
Cluster
Topic/Domain
C1
Attacks in London
(World)
C2
C9
Gay Kit
(Politics)
Earthquake in
Missouri
(World)
Reference
Document
Qt.
sentences
Qt. words
C1-PT
Source-text
17
518
C1-EN
Source-text
36
788
C1-Sum-ref
Reference summary
9
229
C2-PT
Source-text
11
287
C2-EN
Source-text
13
229
C2-Sum-ref
Reference summary
4
84
C9-PT
Source-text
25
511
C9-EN
Source-text
33
660
C9-Sum-ref
Reference summary
10
198
158
3,504
Total
54
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
The source texts and summaries received a layer of semantic
annotation. In general, semantic annotation is additional information
in a document that identiies or deines the semantics of a part of that
document. In other words, we can say that semantic annotation is about
attaching, for example, sense tags, names, attributes, comments, and
descriptions to a document or to a selected part in a text.
For our annotation, we selected a speciic formalism, called UNL
(UCHIDA et al., 1999), which states that a deep semantic analysis for a
natural language text requires two levels of semantics: lexical semantics
and grammatical semantics. In particular, UNL expresses information
conveyed by natural language (NL) sentences through binary relations
between concepts. Thus, UNL is not different from the other formal
languages devised to represent NL sentence meaning (MARTINS et
al., 2002). The general syntax of the relations is RL(UW1,UW2), where
RL stands for a Relation Label, which signals the semantic relation, and
UWs means Universal Words, which signal the related concepts. RLs are
speciied through mnemonics; they are three-letter symbols that signify
the kind of semantic relationship that ties two UWs in a natural language
utterance, for example, agt for agent, mod for modiier, or obj for object.
UWs may be generic, such as book, or John, or complex, in which case
they indicate meaning variations, for example, in animal(icl>living
thing), icl indicates a hyperonymic relation between animal and
livingthing. UWs can also be annotated by attributes to provide further
information on the circumstances under which they are used (e.g., tense
and aspect). Those are signaled by Attribute Labels (ALs). According to
Cardeñosa et al. (2008), the advantages of UNL are: (i) lexibility and
neutrality, since it is a language to represent any content in any domain
in any language, (ii) generality, since the set of UWs and RLs is suficient
to describe any kind of content expressed in NLs, and (iii) explicitness
and clarity, which are univocal and machine-tractable.
Each cluster was manually annotated by 1 computational linguist
in two-hours daily sessions, during 3 consecutive months, with the
support of a tool called UNL Editor (ALANSARY et al., 2011). The
UNL Editor is a visual tool designed with the intention of providing
full semantic annotation, including the analysis of natural language
texts and the generation of UNL documents. In particular, it provides a
powerful visual interface for working with UNL data both in a textual
and graphical mode with a friendly interface, creating an appropriate
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
55
environment for navigating through the needed steps of providing the
analysis. Most importantly, the UNL Editor’s output offers the necessary
training data for semantic annotation due to the fact that the relations
and concepts used are clearly deined as well as standardized within the
UNL Editor framework. The UNL Editor exhibits enormous lexibility
and opportunities in handling natural language text due to the fact that
it follows a linguistic framework, minding the complexity and richness
of natural language.
Given a text, the editor irstly split it into sentences and thus the
UNLization process follows 3 stages: (i) identiication of concepts or
creation the nodes (Stage 1), (ii) assigning attributes (Stage 2), and (iii)
identiication of relation labels between concepts (Stage 3).
In such process, we see that lexical semantics is expressed through
creating the nodes, a process in which every single or compound word or
rather every concept in the sentence to be analyzed is matched with its
corresponding ID. In the UNLization of the sentence “Seven people have
been rescued from the rubble” (from the English document of the cluster
09), showed in Figure 1, we identiied 4 concepts in the Stage 1, codiied
by the following UWs: “7”, “person”, “rescue”, and “rubble”. Each UW
is thus codiied as a particular node in the graph. The dictionary from
which the UWs (and IDs) are extracted is based on Princeton WordNet
(version 3.0), which stores 155,287 words and expressions organized
in 117,659 synsets (FELLBAUM, 1998). In order to make the process
of selecting the appropriate UW easier and for more clariication to the
concept, the UNL Editor provides to the annotators all information attach
to each concept in WordNet, including gloss (i.e., textual description of
a synset’s meaning or concept) and synsets.
Grammatical or sentential semantics is expressed in Stages 2 and
3, and it is based on the assumption that the syntactic structure of the
sentences overlaps with its semantics. In the UNL Editor, grammatical
semantics is codiied in terms of attributes and semantic relations.
Codifying grammatical categories such as tense, mood, aspect, number,
etc., the attributes correspond to one place predicates. They are mainly
used to convey three different kinds of information: (i) role of the
node in the UNL graph (‘@entry’, for example, indicates the main
(starting) node of a UNL directed graph), (ii) grammatical knowledge
conveyed by closed classes, such as afixes, determiners, adpositions,
conjunctions, auxiliary and quasi-auxiliary verbs and degree adverbs,
56
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
and (iii) subjectivity of sentences, i.e., what is said from the speaker’s
point of view, including phenomena technically called “speech acts”,
“propositional attitudes”, “truth values”, etc. In the annotation of the
sentence in Figure 1, the UW “person”, for example, received the attribute
label “@pl” in Stage 2, which means that there is more than one person
(plural). The UW “rescue” has the ALs “@past”, which indicates that the
event took place in the past, and “@entry”, which means that this is the
main UW of the sentence. The UW “rubble” received the attribute “@
def”, which expresses deiniteness and implies that “rubble” had already
been mentioned before (which is expressed by the deinite article “the”).
For linking the concepts, the UNL Editor provides a super set
of semantic relations, including 45 highly standardized labels. They are
used to describe the objectivity information of the sentences. In the UNL
formalism, relations are normally regarded as representations of semantic
cases or thematic roles (such as agent, object, instrument, etc.) between
concepts. They are used in form of arcs connecting a node to another
node in a UNL graphical representation. In opposition to attributes,
relations correspond to two-place semantic predicates holding between
two concepts or UWs. Since there are similarities between the semantic
relations and syntactic relations in name and function, it may seem that
the labels used for relations are different names for special grammatical
functions (ALANSARY et al., 2011). However, the intention is that
the labels denote speciic ideas rather than grammatical structures.
According to Alansary et al. (2011), the UNL conceptual relations are
more abstract than the grammatical (or syntactic) relations. In general,
relations are always used to describe semantic dependencies between
syntactic constituents.
For example, in the sentence “Seven people have been rescued
from the rubble” of the Figure 1, we identiied the following RLs in
Stage 3: “qua”, “obj”, and “src”. The binary RL “obj” codiies “a thing
in focus which is directly affected by an event or state”. In the example,
“obj” links the concepts “rescue” and “person”. The RL “qua” represents
a quantity of a thing or unit. In Figure 1, “qua” interconnects the UWs
“7” and “person”. And, inally, “scr”, which codiies “initial state, place,
origin or source”, is responsible for linking “rescue” and “rubble”
(CHAUD, 2014).
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57
FIGURE 1 – Sentence UNL encoding (CHAUD, 2014)
Identiication of
concepts/nodes
(Stage 1)
Assigning attributes
(Stage 2)
7
7
person
person.@pl
rescue
rescue.@past.@entry
obj(rescue.@past.@entry,person.@pl)
rubble
rubble.@def
src(rescue.@past.@entry,rubble.@def)
Identiication of relation
(Stage 3)
qua(person.@pl,7)
3.2 The Alignment of Source Texts and Human Summaries
Many authors have used manual alignment of texts and reference
summaries in Automatic Summarization, since it may reveal some of the
human strategies used to produce the summary (e.g. MARCU, 1999;
HIRAO; SUZUKI; ISOZAKI; MAEDA, 2004). In this particular work,
the goal of the alignment was to compare sentences that were aligned
to the summary to sentences that were not aligned with regard to their
conceptual characteristics. As for the annotation, 1 computational linguist
performed the alignment in one-hour daily sessions, during 1 month. The
expert followed the methodology described in Camargo (2013). Thus, the
manual alignment was performed in the summary-to-document direction
and at the sentence level. Moreover, we have followed four general rules.
The rule 1 speciies that a summary sentence must be aligned to a document
sentence based on the content overlapping, not only considering the word
overlapping between them. The rule 2 states that the alignment should
irst be based on the main information overlapping, i.e., the alignment
should be established if the sentences express similar main topics. If this
was not possible, the rule 3 establishes that a summary sentence and a
document sentence may also be aligned based on secondary information
overlapping. Finally, the rule 4 determines that one summary sentence
should be connected to all similar (partial or total) sentences from the
distinct source documents of the same cluster. Consequently, according
to the rule 4, the summary-documents alignments codify one-to-many
relationships. Once a summary sentence SS was linked to one or more
document sentences DS, a manual correspondence between their UNL
representations was also created. Figure 2 illustrates a 1:2 alignment.
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
58
In such example, the SS was aligned to two DSs because they have the
same meaning or express the same topic.
FIGURE 2 – Alignment of summary and document sentences/UNL encodings
Summary sentence /
UNL codiication
Cerca de 100 pacientes tiveram
que ser retirados do centro médico.
[C9_ Sum-ref_S2]
Source sentence /
UNL codiication
Nearly 100 patients at the St John Regional
Medical Center in Joplin were evacuated after
the hospital took a direct hit.
[C9_EN_S30]
Pacientes tiveram que ser retirados
do centro médico. [C9_PT_S9]
obj(remove.@past.@obligation.
@entry,patient.@pl)
mod(center.@def,medical)
src(remove.@past.@obligation.
@entry,center.@def)
qua(patient.@pl,approximately)
bas(approximately,100)
bas(nearly,100)
qua(patient.@pl,nearly)
plc(patient.@pl,St John Regional Medical
Center.@def)
plc(St John Regional Medical Center.
@def,Joplin)
obj(evacuate.@past.@entry,patient.@pl)
tim(evacuate.@past.@entry,after)
obj(after,:01)
aoj:01(direct,hit.@indef)
obj:01(take.@past.@entry,hospital.@def)
agt:01(take.@past.@entry,hit.@indef)
obj(remove.@past.@obligation.
@entry,patient.@pl)
mod(center.@def,medical)
src(remove.@past.@obligation.
@entry,center.@def)
Table 2 shows the distribution of the different alignment types
(1-n) and Table 3 describes the number of alignments where a summary
sentence was aligned to source sentences(s) in just one language
(Portuguese or English) or in both languages. According to the results, we
may see that 8 summary sentences were aligned to only one sentence of
the source texts (1-1), 7 summary sentences were aligned to 2 sentences
of the source texts (1-2), and so on. The alignment illustrated in Figure
2, for example, is 1-2. From the 23 summary sentences, 15 were aligned
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(65,3%) to some source sentence, with the distribution per language as
described in Table 3. This result was expected, since a multi-document
summary could be potentially connected to 2 related source texts of its
cluster. From the 144 sentences in the source texts, 50 (37,4%) were
aligned to some summary sentence, but it does not mean that the sentences
were aligned only once. A sentence of a summary may be aligned to more
than one sentence of the source text, and the sentences of the source
texts may be redundant or even identical. Since the alignments may
indicate total or partial content overlap, whenever a sentence of a given
source text is aligned to a summary sentence, this means that at least part
of the information conveyed by that sentence is also in the summary,
indicating that the sentence brings some content considered relevant
by the human summarizer. However, it is reasonable to assume that, in
general, document sentences that are aligned to summary sentences carry
more relevant information than sentences that are not aligned.
TABLE 2 – Alignment types in the corpus
Types of alignment
1:1
1:2
1:3
1:4
1:5
1:6
1:7
1:8
1:9
1:10
No. of alignments
8
7
4
0
3
0
0
0
0
1
TABLE 3 – Distribution of the alignments per language
Alignment
Summary:
Portuguese
Summary: English
Summary: Both
Quantity
6
6
11
Next, we describe the conceptual measures for content selection
in MMDS.
4 Lexical-Conceptual Measures
Based on the review of the literature, we have selected 3 lexicalconceptual measures that are potentially adequate to capture human
content selection strategies in MMDS: (i) concept frequency, (ii) concept
frequency corrected by the inverted document frequency, and (iii) concept
frequency normalized by the number of concepts in the sentence. Given
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the fact our that corpus is annotated with UNL, we renamed the measures
as follows: (i) simple UW frequency or F(UW); (ii) UW frequency
corrected by inverse document frequency or F(UW)*IDF(UW), and
(iii) UW frequency normalized to the number of UWs in the sentence or
F(UW)/No. UWs in S. Considering the step (ii) of the language-dependent
MMDS methods, which consists in ranking the original sentences and
picking the top scoring sentences to build the multi-document extract,
these three measures capture the content of a multilingual cluster by
counting the occurrences of concept underlying synonyms (i.e., different
words that express the same concept) and equivalences (i.e., expressions
of a concept in different languages).
The selection of the F(UW) measure relies on the assumption
that the most frequent concepts of a cluster express the most relevant
information and, therefore, the sentences that are composed of such
concepts should compose the summary. This measure has already been
applied by Tosta (2014) for multilingual multi-document summarization
involving the Brazilian Portuguese language (and English), only taking
into account the nominal concepts of the cluster. The author showed,
indeed, that selecting sentences based on conceptual knowledge rather
than supericial features improves the linguistic quality of the extracts.
Here, we have considered the frequency of all concepts in the input. The
F(UW) equation is described in (1).
(1)
S(s) =
∑
∀UWi∈s
F(UWi)
where
S
is the sentence scoring function;
s
is the sentence being scored;
F
is the concept frequency; and
UWi is the concept.
The F(UW)*IDF(UW) measure is used to evaluate how
important a concept is to a document in a corpus. The importance
increases proportionally to the number of times the concept appears
in the document, but it is offset by its frequency in the corpus (in this
case, in the 3 clusters). Thus, a higher F(UW)*IDF(UW) score indicates
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61
that a concept is important because it is frequent in the document, but
relatively uncommon in the other documents of the corpus. Although
F(UW)*IDF(UW) was already applied by Sornlertlamvanich et al. (2001)
in automatic summarization, there are no details about the performance
of this measure. Thus, we decided to explore its potential to capture
human content selection preferences in MMDS. The F(UW)*IDF(UW)
equation is deined in (2).
(2)
∑
∀UWi∈s
W(UWi) = F(UWi) *
S(s) =
W(UWi)
(
IDF(UWi) = log
where
s
W
UWi
F
IDF
D(UWi)
d(UWi)
IDF(UWi)
D(UWi)
d(UWi)
)
is the sentence being scored;
is the function that calculates the score of each concept;
is the concept;
is the concept frequency;
is the inverted document frequency;
is the number of documents of the corpus; and
is the number of documents in which the UW occurs.
The F(UW)/No. UWs in S measure was proposed because,
according to Tosta (2014), F(UW) tends to assign better rankings to longer
sentences and worse rankings to short sentences. Thus, we suggested
F(UW)/No. UWs in S, which also involves calculating sentence scores
based on concept frequency, but includes a normalization procedure to
make sentence selection less dependent on their size. The F(UW)/No.
UWs in S equation is described in (3).
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62
(3)
S(s) =
∑∀UWi∈s F(UWi)
n(s)
where
S
is the sentence scoring function;
s
is the sentence being scored;
F
is the concept frequency;
UWi is the concept; and
n(s) is the number of UWs in sentence s.
The application of the measures followed 3 steps: (i) calculation
of the measure of each UW in the cluster, (ii) scoring all the source
sentences according to the value of the measure obtained for their
constitutive UWs, and (iii) ranking the sentences by their score. Thus,
we built three different ranks − one for each measure.
5 Investigation of the measures for sentence selection in MMDS
Given the three different ranks, we sought to identify which of
them was closer to what human summarizers did during summarization.
In order to evaluate the potential of the conceptual measures (and the
supericial strategy) for capturing human content selection preference,
we calculated how many aligned source-sentences were covered by the
top sentences of each rank. Thus, by analyzing whether these measures
are capable of providing ranks in which the sentences aligned to the
summary are ranked irst, it is possible to evaluate whether the content
selected by each measure correlates to the content selection performed
by the human summarizer. Ideally, the sentences ranked irst by these
measures should be sentences that were aligned to the summary, because
this means that they bring information related to the summary (presenting
total or partial content overlap). As for low-ranking sentences, they
should be non-aligned sentences, that is, they should be sentences with
no relation to the summary.
In order to know how many of the top-ranked sentences were
relevant based on the alignment of the human summary and source texts,
we have posed the following question for each source-text: “Out of the n
top-ranked sentences, how many were aligned to the summary?” Since
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63
the source texts vary in terms of size or length, the number of sentences
(n) used for comparison was proportional to the text size. The n value
was empirically deined as 20% of the number of sentences in the text,
rounded down if necessary. For example, the text C1-EN has 36 sentences
(Table 1), thus the 7 top-ranked sentences were used for comparison.
This means that, given the 7 top-ranked sentences, we were interested
in knowing how many of them had been aligned to summary sentences.
We also considered a rank that was built according to the supericial
sentence position strategy.
Table 4 shows the results of the analysis. Figure 3 shows a
graphical overview of the comparison. It can be seen that the measures
have similar performances.
FIGURE 3 – Graphical comparison of the relevance strategies
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64
TABLE 4 – Comparison of concept-based and supericial relevance strategies
F(UW)
F(UW)*IDF(UW)
Source text
F(UW)/No. UWs
in S
Position
Qt.
%
Qt.
%
Qt.
%
Qt.
%
C1_EN
6/7
86%
6/7
86%
6/7
86%
2/7
29%
C1_PT
1/3
33%
1/3
33%
2/3
67%
2/3
67%
C2_EN
0/2
0%
0/2
0%
0/2
0%
2/2
100%
C2_PT
1/2
100%
1/2
50%
1/2
100%
2/2
100%
C9_EN
1/6
17%
0/6
0%
0/6
0%
2/3
67%
C9_PT
1/5
20%
2/5
40%
0/5
0%
4/5
80%
In average, we veriied that the 4 methods selected 48% of
aligned sentences, i.e., 48% of the sentences among the top ranked ones.
Therefore, we may consider a content selection strategy as successful
when more than the average of the sentences selected were aligned to the
summary (i.e., presented relevant content). In this case, if we approximate
the value to 50%, the concept-based method with the best performance
was F(UW)/No. UWs in S, as can be seen in the Table 5.
TABLE 5 – Ranks with at least 50% of aligned sentences in the top positions
Source text
F(UW)
F(UW)*IDF
F(UW)/No. UWs in S
Position
C1_EN
Yes
Yes
Yes
No
C1_PT
No
No
Yes
Yes
C2_EN
No
No
No
Yes
C2_PT
Yes
No
Yes
Yes
C9_EN
No
No
No
Yes
C9_PT
No
No
No
Yes
TOTAL
2
1
3
5
The method F(UW)*IDF was the one that led to the lowest
number of aligned sentences among the top-ranked sentences. This means
that, in our case, it would select very few sentences carrying content that
Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018
65
was considered relevant by the human summarizer. In only 1 of the 6
source-texts the percentage of aligned sentences among the top-ranked
ones was higher than 50% for this method. It is very hard to pinpoint the
speciic reasons for this result. However, the size of our corpus and the
very rationale of the formula for sentence ranking seem to be relevant
factors. According to the F(UW)*IDF equation (2), concepts that occur
in all texts end up with weight equal to zero, which would be a way of
decreasing the inluence of the most common words in the language.
However, in a small corpus, with 2 or 3 texts, for example, the chance
that a UW occurs in every text is still relatively high, and this way of
calculating the importance of a UW would assign weight zero for such
UWs, therefore often disregarding important concepts.
The performance of F(UW) and F(UW)/No. UWs in S was
slightly higher than that of F(UW)*IDF, although it is dificult to establish
the actual signiicance of this difference, given our small corpus. In 3 (out
of the 6) source-texts, the F(UW)/No. UWs in S measure was capable
of generating ranks with more than 50% of aligned sentences among
the top-ranked sentences. This means that, in half of the texts, there was
good correlation between the content considered relevant by the human
summarizer and the content of the sentences selected by the measure. The
F(UW) measure produced ranks with at least 50% of aligned sentences
in the top positions in 2 texts.
If we take a more pessimistic/rigid view and consider that a
method should select 80% of the aligned sentences, the measures F(UW)
and F(UW)/No. UWs in S perform equally (see Table 4).
Comparing the three concept-based relevance measures to the
supericial strategy, we can see that, in 5 of the 6 texts, selecting content
based on sentence position led to ranks in which the top-ranked sentences
were aligned in more than 50% of the cases. In other words, in 5 out of the
6 texts, more than half of the sentences selected based on sentence position
brought relevant content. It is not totally surprising that the sentence
position strategy, particularly with a journalistic corpus, better captures the
human preferences. Camargo et al. (2015) showed that, in a (monolingual)
multi-document scenario, position is one of the main features that
characterize the sentences usually selected by humans to compose a news
summary. Our results seem to indicate that the irst sentences of the texts
did not necessarily contain the most frequent concepts of the cluster. In
several cases, the sentences with the most frequent concepts were in the
middle or at the end of the text.
66
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6 Final Remarks
To the best of our knowledge, this integrated study of statistical
relevance measures over a multilingual multi-document corpus annotated
with UNL is new in the ield of NLP, at least for the processing of
Portuguese.
With regard to the potential of the conceptual-based measures,
we highlight that the best performance of the supericial strategy is
something worth noting. This is an interesting result because it may
relect dissociation between sentences located in the beginning of the
text and sentences with the most frequent concepts. Throughout the
corpus, very often it was noticed that sentences in intermediate or inal
position in the text were the ones bringing the most frequent concepts
of the cluster. If the fact that a text belongs to the journalistic genre
means that its irst sentences bring the most relevant information, and if
its irst sentences do not necessarily contain the most frequent concepts
(as suggested in this study), one can conclude that a relevant sentence
is not necessarily a sentence bringing the most frequent concepts of the
cluster. Therefore, the assumption that relevant concepts tend to appear
repeatedly throughout the cluster perhaps has to be reassessed, or at least
applied with some caution. It is important to keep in mind that this was a
small-scale study and, therefore, deinitive conclusions or generalizations
should be avoided.
Future work may include the study of the measures using a bigger
news corpus or a data collection of a different genre, especially one in
which sentence position would not be a feature so important to indicate
content “relevance”. Of course, these extensions will require semantic
annotation of the corpora, which is a complex and time-consuming
(semiautomatic) task, but necessary for future advances in the ield.
Another possibility is to use more than one manual (or reference)
summary to evaluate the potential of the metrics, since summarization
is a very subjective task and different reference summaries could reveal
different content strategies. Moreover, future work may include the
production of automatic summaries based on the ranks and the manual
evaluation of their linguistic quality following criteria such as those that
were used in DUC.
In addition to allowing deeper investigation on concept-based
measures, a larger corpus annotated with UNL could provide the data
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67
necessary to explore abstractive MMDS strategies, such as those proposed
by Sornlertlamvanich et al. (2001) (e.g., combining sentences that cover
the same concepts) for single-document summarization.
Acknowledgements
The authors thank Coordination for the Improvement of Higher Education
Personnel CAPES, CNPq, and State of São Paulo Research Foundation
(FAPESP) for the inancial support.
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A Cupópia do Cafundó: uma análise morfossintática
The Cupópia of Cafundó: a morphosyntactic analysis
Anna Jon-And
Dalarna University, Falun, Suécia
ajd@du.se
Laura Álvarez López
Universidade de Estocolmo, Estocolmo, Suécia
laura.alvarez@su.se
Resumo: O presente estudo analisa a fala da comunidade rural afrobrasileira de Cafundó, situada a 150 km da cidade de São Paulo. Entre
1978 e 1988, período em que os dados aqui analisados foram coletados,
a comunidade contava com carca de 80 pessoas, descendentes de
duas ex-escravas, irmãs, que herdaram as terras do seu dono. O livro
publicado, em 1996, por Carlos Vogt e Peter Fry (com a colaboração
de Robert Slenes) defende que a variedade denominada Cupópia
apresenta estruturas do português regional e que parte do vocabulário é
de origem Bantu. A análise morfossintática discute os casos de ausência
de cópula, o uso da cópula em lugar do verbo possessivo, a ordem das
palavras incomum no português, os substantivos sem determinante na
posição de sujeito, o uso de artigos deinidos em SNs preposicionais
que correspondem a locuções adjetivas, bem como a concordância
variável no SN e a concordância entre o sujeito e o verbo. Os resultados
indicam que as características gramaticais da Cupópia não coincidem
totalmente com os traços registrados no português falado pelos mesmos
indivíduos, mas que são compartilhadas com variedades linguísticas mais
reestruturadas do que o português falado em zonas rurais do interior do
Estado de São Paulo.
Palavras-chave: Cupópia; Cafundó; português; Brasil; morfossintaxe.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.73-101
74
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
Abstract: The present study analyzes the speech of the Afro-Brazilian
rural community of Cafundó, located 150 km from São Paulo. Between
1978 and 1988, when the analyzed data were collected, the community
had a population of 80 people, descendants of two former slaves, who
were sisters and inherited the lands of their owner. In a book published in
1996, Carlos Vogt and Peter Fry (with the collaboration of Robert Slenes)
argue that the variety denominated Cupópia presents structures of regional
Portuguese, and that part of the vocabulary is of Bantu origin. The present
paper focuses on morphosintactic aspects and discusses copula omission,
the use of copula instead of the possessive verb, unexpected word order
in Portuguese, nouns without determinant in subject position, the use
of deinite articles in prepositional prepositional phrases functioning
as adjectival locutions, as well as the variable agreement in the noun
phrases and the agreement between the subject and the verb. The results
indicate that the grammatical features of Cupopia do not fully coincide
with those observed in the Portuguese spoken by the same individuals,
but are shared with more restructured linguistic varieties than the ones
spoken in rural areas of the interior of the State of São Paulo.
Keywords: Cupópia; Cafundó; portuguese; Brazil; morphosyntaxis.
Recebido em 23 de janeiro de 2017.
Aprovado em 5 de abril de 2017.
1 Introdução
Os trabalhos realizados a partir de 1978 sobre a comunidade
do Cafundó (Salto de Pirapora/SP) ocupam um lugar de destaque entre
os estudos acerca do papel dos falantes de línguas africanas e seus
descendentes na constituição do português brasileiro. As primeiras
investigações na comunidade foram motivadas pela “descoberta” de
uma comunidade que falava uma suposta língua africana, chamada de
Cupópia. Os estudos realizados por uma equipe de pesquisadores da
Universidade Estadual de Campinas, incluindo os Professores Peter
Fry, Carlos Vogt, Robert Slenes e Mauricio Gnerre, levaram à conclusão
de que se tratava de uma “variedade linguística” que fazia uso de um
conjunto de itens lexicais de origem africana, mas tinha o português
regional como sua matriz gramatical (VOGT; FRY, 1996). O material
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75
coletado na época, que abarca cerca de 46 horas de entrevistas com
moradores do Cafundó, é hoje parte do Projeto Cafundó, que integra
o acervo do CEDAE/Unicamp (Centro de Documentação Alexandre
Eulálio).1 2 Em 2012, a comunidade foi reconhecida pelo governo como
remanescente de quilombo com direitos à (parte da) terra onde moram.3
O léxico da Cupópia inclui aproximadamente 160 palavras,
a maioria de origem africana, e a variedade é utilizada em contextos
comunicativos especíicos. Nos trechos em que os falantes alternam
entre Cupópia e Português do Cafundó,4 a tendência é que todos os
substantivos pertençam à Cupópia, bem como a maioria dos verbos e
adjetivos, enquanto os morfemas gramaticais são os do Português.
O presente artigo traz os resultados de um estudo sobre a Cupópia,
baseando-se na análise de uma das entrevistas que compõem o Projeto
Cafundó.5 Iremos apresentar um conjunto de fatos gramaticais que nos
permitem airmar que, na utilização da Cupópia, os habitantes do Cafundó
produzem construções com propriedades que não são usuais na variedade
regional do Português falado pela comunidade.6
1
A entrevista foi realizada por Carlos Vogt em 13 de maio de 1978 em Salto de Pirapora,
São Paulo e faz parte da Coleção Cafundó. Os materiais foram digitalizados em 2013
com o apoio da fundação sueca STINT (the Swedish Foundation for International
Cooperation in research and Higher Education) e podem ser consultados na plataforma
de arquivos sonoros do Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da Universidade
Estadual de Campinas.
2
Atualmente, residem na comunidade apenas duas pessoas que dizem falar a Cupópia.
Conforme Petter (1998, p. 199), só havia adultos que sabiam falar Cupópia na década
de 90. Durante uma visita à comunidade em dezembro de 2014, uma das autoras teve
a oportunidade de conversar com dois moradores que disseram ser os últimos falantes
da ‘língua’.
3
No site da Fundação Palmares, http://www.palmares.gov.br/?p=17733>, a comunidade
do Cafundó é apresentada como uma comunidade quilombola que fala a sua própria
língua, descrita como variedade de língua Bantu.
4
O objetivo do presente estudo é analisar a estrutura da Cupópia e compará-la com
o português usado pelos mesmos falantes. As alternâncias de código, que suscitam
questões interessantes, podem ser tratadas em estudos futuros.
5
Parte dos resultados aqui apresentados foi discutida em Álvarez López e Jon And
(2017).
6
No conjunto total das entrevistas com os moradores do Cafundó, o uso da Cupópia é
bastante limitado. A entrevista escolhida é a que apresenta a maior amostra de uso da
Cupópia nesse conjunto.
76
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O trabalho é dividido da seguinte forma: na seção 2, serão
abordadas as classificações da Cupópia apresentadas em estudos
anteriores; na seção 3, será oferecido um breve panorama dos materiais e
métodos utilizados; na seção 4, descreve-se o contexto sócio-histórico da
comunidade; na seção 5, apresentam-se as análises dos traços gramaticais
que não são encontrados no português falado pelos mesmos falantes
(a ausência de cópula, o uso da cópula em lugar do verbo possessivo,
a ordem das palavras incomum no português, os substantivos sem
determinante na posição de sujeito, o uso de artigos deinidos em SNs
preposicionais que correspondem a locuções adjetivas, bem como a
concordância variável no SN e a concordância entre o sujeito e o verbo).
Em seguida, são apresentadas as considerações inais.
2 Classiicações da Cupópia
A Cupópia, que era usada em contextos comunicativos
especíicos, tem sido classiicada como ‘anti-crioulo’ (COUTO, 1992; cf.
PETTER, 1999), ‘língua mista simbiótica’ (SMITH, 1994, p. 369), ‘língua
especial’ (PETTER, 1998), e crioulo,7 ou simplesmente analisada como
‘prática linguística’ (VOGT; FRY, 1996, p. 26). A rigor, a Cupópia pode
ser incluída entre os códigos secretos de comunicação intragrupal (FRY;
VOGT; GNERRE, 1984; VOGT; FRY, 1983, 1996, 2005; QUEIROZ,
1998; BYRD, 2012; PETTER, 2013), que podem ser encontrados em
várias comunidades afro-brasileiras, apresentando um conjunto limitado
de itens lexicais de origem africana (por exemplo, a ‘Calunga’ falada
em Patrocínio (BYRD, 2012) e a ‘Língua do negro da costa’ falada em
Bom Despacho (QUEIROZ, 1998)).
Couto (1992, p. 75) classiica a Cupópia como um ‘anti-crioulo’,
no sentido de se tratar de uma variedade que combina a gramática da
língua dominante em uma determinada região com o vocabulário de uma
língua de substrato ou língua dominada (neste caso, alguma ou algumas
línguas africanas (COUTO, 1992, p. 75)). Essa deinição pode igualmente
ser aplicada a outras afro-variedades do Português com léxico de origem
Africana, como a ‘Língua do negro da costa’ e a ‘Calunga’, ambas faladas
em comunidades rurais do estado de Minas Gerais.
7
Ver Ethnologue <http://www.ethnologue.com/language/ccd>.
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77
Petter (1999, p. 114) argumenta contra o uso do conceito de
anti-crioulo para classiicar a Cupópia, uma vez que essa variedade
nunca passou por um processo de crioulização. Sugere que a Cupópia
seja classiicada como uma ‘língua especial’, consistindo, assim, em um
código usado, por exemplo, como jargão, por grupos de uma certa idade
ou ocupação proissional. (PETTER, 1998, p. 185). Petter (1998, p. 199)
também airma que as línguas especiais se caracterizam pelo seu contexto
de uso e podem ter a função de língua secreta (1998, p. 199). Estudos
anteriores sobre diferentes tipos de línguas especiais, porém, incluem
aspectos não restritos ao léxico nos casos de códigos secretos que diferem
das variedades que os rodeiam (ACETO, 1995; GOYVAERTS, 1996).
A classiicação proposta por Smith (1994) para a Cupópia é a de
‘língua mista simbiótica’. Nesse caso os falantes formam comunidades
e não se comparam, por exemplo, a um grupo de cientistas que recorrem
a um léxico especializado (SMITH, 2000, p. 123). Smith (2000, p.
122) airma que a língua mista simbiótica nunca é a única língua da
comunidade, podendo, muitas vezes, funcionar como uma língua secreta.
Segundo o autor, uma língua mista simbiótica
combina a estrutura gramatical de uma língua e um número
variável de itens lexicais – desde centenas até milhares –
ora de uma outra língua (muitas vezes a língua original
do grupo) ora de uma gama de fontes diversas, e algumas
palavras serão possivelmente costruídas ou deformadas
deliberadamente. Essas línguas existem em uma relação
simbiótica e de dependência com línguas (dominantes)
não mistas com (praticamente) a mesma gramática e um
léxico da mesma fonte que a gramática (SMITH, 2000,
p. 122, tradução e grifos nossos).8
A definição de língua mista simbiótica pode ser estendida
à Cupópia, embora outras deinições possíveis também possam ser
aplicadas.
8
Combines the grammatical structure of one language, and a varying number of lexical
items – from hundreds to thousands in number – either from another language (often
the original language of the group), or else from a variety of different sources, some
words possibly being constructed or deformed deliberately. These languages exist
in a symbiotic and dependent relationship with (dominant) unmixed languages with
(virtually) the same grammar, and a lexicon from the same source as that grammar.
78
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Álvarez López e Jon-And (2017) descrevem a Cupópia como um
código intragrupal, ou “lexically-driven in-group code”, e airmam que as
etimologias africanas coincidem com os dados históricos e demográicos
da comunidade, indicando que o grupo de falantes de línguas Bantu como
primeira língua ou língua de herança (ou uma coiné de base quimbundo,
quicongo e/ou umbundo), contribuíram com mais itens lexicais que
outros grupos e que os falantes de quimbundo contribuíram com mais
itens lexicais de classes de palavras que não a do substantivo. Um terço
dos africanismos foi identiicado como termos do vocabulário básico,
e uma quarta parte dos vocábulos pertence ao domínio semântico ‘dia
a dia’. Esse resultado pode ser parcialmente explicado pelo fato de a
Cupópia ter a função de código secreto usado no dia a dia para marcar
distância entre os seus falantes e pessoas que não entendem esse código
(ÁLVAREZ LÓPEZ; JON AND, 2017). Nesse sentido, a Cupópia pode
ser entendida como uma prática discursiva:
a forma como os falantes escolhem o que dizem e como
dizem – o que pode ser tão detalhado como uma ingestão
de respiração em um ponto particular da interação – é
interpretada como o uso de dispositivos (indexais) que
informam os ouvintes sobre como ler suas mensagens
projetadas de forma interativa. É através de uma leitura
desses meios que os ouvintes (ou, mais geralmente,
os destinatários) chegam a uma leitura das intenções
do falante e, finalmente, a uma leitura de como eles
apresentam um sentido de quem eles são. (BAMBERG et
al., 2011, p. 182, tradução nossa).9
Outros grupos afro-brasileiros também usam palavras e expressões
das línguas dos seus ancestrais como marcadores de identidade ou língua
secreta (ver, por exemplo, ÁLVAREZ LÓPEZ, 2004; BYRD, 2012). Da
mesma forma que a Cupópia conta com um léxico diferenciado de 160
itens lexicais, o vocabulário da Calunga inclui 307 palavras (BYRD,
9
Speakers, in their choices of how they say what they say – which may be as detailed
as a breath intake at a particular point in the interaction – are interpreted as making use
of (indexical) devices that cue listeners on how to read their messages as interactively
designed. It is through a reading of these means that hearers (or more generally,
recipients) come to a reading of the speaker’s intentions and ultimately to a reading of
how speakers present a sense of who they are.
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79
2012, p. 123), e o da Língua do negro da costa, 176 (QUEIROZ, 1998,
p. 91). Byrd (2012, p. 148) chegou à conclusão de que a Cupópia e a
Calunga compartilham a maior parte do léxico, um total de 42 itens
lexicais. Outra língua deinida como língua mista simbiótica, o angloromani, tem, dependendo da variedade, entre 85 e 350 itens lexicais
do romani (MATRAS et al., 2007, p. 165). As semelhanças entre a
Cupópia e o anglo-romani incluem, além da existência simbiótica com
a língua dominante, a motivação para os empréstimos lexicais de fontes
ancestrais mencionada por Matras: “O anseio pelo idioma antigo apoia
a manutenção de um vocabulário básico, algumas regras produtivas de
formação de vocabulário e algumas expressões fossilizadas” (MATRAS
et al., 2007, p. 149, tradução nossa).10
3 Materiais e método
O corpus do Cafundó é constituído de cerca de 46 horas de
gravações, realizadas por Vogt e Fry entre 1978 e 1980. Nos trechos das
entrevistas em que os falantes empregam a Cupópia, a tendência é que
todos os substantivos pertençam a essa variedade, bem como a maioria
dos verbos e adjetivos, enquanto os morfemas gramaticais são, em sua
totalidade, os do português.
Visto que os dados propriamente da Cupópia são escassos nas
gravações que compõem o Projeto Cafundó, a análise morfossintática que
apresentamos está baseada em uma entrevista da amostra em que cinco
participantes moradores do Cafundó alternam entre a Cupópia e o português,
totalizando cerca de 6.000 palavras, entre as quais cerca de 50011 pertencem
ao léxico da Cupópia.12 Todas as frases com itens lexicais da Cupópia foram
analisadas visando identiicar padrões sintáticos especíicos.
A análise compara estruturas da Cupópia e do português falado
pelos moradores do Cafundó que aparecem na mesma gravação. A questão
norteadora do estudo é se os traços gramaticais especíicos encontrados na
10
A longing for the old language supports the maintenance of a core vocabulary, a few
productive rules of vocabulary formation, and a few fossilized expressions.
11
56 palavras da Cupópia utilizadas 506 vezes no material selecionado.
12
Entrevista realizada por Carlos Vogt em 13 de maio de 1978 em Salto de Pirapora, São
Paulo. Coleção Cafundó, Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Universidade
Estadual de Campinas.
80
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Cupópia aparecem no Português do Cafundó. A comparação é relevante
para poder determinar se a Cupópia é uma variedade do português rural do
interior de São Paulo que abarca um conjunto de empréstimos de origem
africana, ou se apresenta traços gramaticais que não são encontrados
no português falado pelos membros da comunidade. Para os traços que
ocorrem com mais frequência, como a falta de marcas de concordância
internas ao SN e ao SV, foi realizada uma breve comparação quantitativa
que mostra se os fenômenos que ocorrem tanto na Cupópia como no
português da região têm a mesma frequência nas duas variedades.
4 Breve história social do Cafundó
Para reconstruirmos o processo de criação da Cupópia, é
importante considerar o cenário linguístico na época da sua formação.13
Sabemos que os africanos foram introduzidos na região de São Paulo
após 1750, e várias fontes históricas indicam que a língua predominante
entre os cativos era provavelmente o quimbundo (VOGT; FRY, 1996,
p. 181-182). Os primeiros registros escritos dos ancestrais do principal
grupo familiar no Cafundó são de 1803, quando Florinda, a bisavó de
Antônia e Iigênia, foi registrada entre os escravos como crioula de sete
anos (cf. SLENES, apud VOGT; FRY, 1996, p. 56-59). As genealogias
detalhadas apresentadas por Slenes mostram que a situação da família
era estável, o que provavelmente fez com que os pais pudessem passar
as suas tradições de geração em geração (cf. VOGT; FRY, 1996, p. 57).
Sabe-se ainda que o bisavô do dono de Antônia e Iigênia chegou à região
em meados do século 18 e que, na primeira metade do século 19, cerca
de 50% dos escravos da região eram africanos, enquanto o resto tinha
nascido no Brasil (VOGT; FRY, 1996, p. 53, 182).
Com base no acima exposto, podemos assumir que a Cupópia
surgiu após 1750. Parte da população escrava pode ter sido bilíngue e
abandonado as línguas africanas, passando então a falar uma variedade
13
No caso da comunidade do Cafundó, contamos com o trabalho de recuperação da
documentação especíica que fornece detalhes sobre a história da comunidade e a
população da região, realizada pelo historiador Robert Slenes (capítulo 2 do livro de
Vogt e Fry, 1996). Temos acesso, por exemplo, a árvores genealógicas da família das
escravas e dos seus donos. Slenes (2016) apresentou uma relexão sobre esse trabalho,
destacando a forma como a metodologia utilizada marcou os seus trabalhos posteriores.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
81
regional do português no início do século 19. Essa situação é condizente
com o que propõe e Winford (2009, p. 311), para quem, em situações
similares à descrita, o normal é a terceira geração mudar para a língua
dominante em um determinado contexto social. Uma hipótese é a de
que, tendo o Português se tornado língua da comunidade, os itens
lexicais de uma coiné de base Bantu (quimbundo / quicongo / umbundo),
originalmente falada pelos mais velhos, tenham sido incorporados a
um código diferenciado (ÁLVAREZ LÓPEZ; JON-AND, 2017). Nesse
sentido, Vogt e Fry (1996, p. 186) constatam que, no mínimo, 20% do
vocabulário tem “raízes de ampla difusão nas línguas banto.”
A Cupópia seria, nesse caso, o resultado de um processo descrito
por Winford (2005, p. 399, tradução nossa)14 como um “empréstimo
lexical sob agentividade da língua receptora”, o que pode ser comparado
ao caso do anglo-romani, uma outra língua mista simbiótica (SMITH,
1994, 2000). Dessa forma, ao alternarem entre a Cupópia e o Português,
a comunidade pode ter negociado uma identidade de grupo, que, nas
palavras de Smith, “usa tanto a língua dominante como a sua própria
língua secreta” (SMITH, 2000, p. 123, tradução nossa).15
5 Características morfossintáticas da Cupópia
Nos trechos das entrevistas selecionados para a análise, a maioria
dos morfemas lexicais fazem parte do vocabulário especíico da Cupópia
(160 palavras), e todos os morfemas gramaticais provêm do Português.
O léxico se mostra bastante produtivo, havendo expansões semânticolexicais mediadas por processos de metonímia, analogia, homonímia e
uso metafórico da linguagem, além do uso de construções perifrásticas
(VOGT; FRY, 1996, p. 129-134).
Nos trechos analisados, a predominância de itens lexicais da
Cupópia possibilita que a alternância de código entre essa língua e o
Português seja identiicada com facilidade. Todos os substantivos (em um
total de 306 ocorrências) identiicados nos trechos pertencem ao léxico da
Cupópia.16 No que concerne aos verbos, com exceção de cópulas e formas
14
No original: lexical borrowing under RL [Recipient Language] agentivity.
Uses both the dominant language and their own secret language.
16
Para estudos mais detalhados sobre o léxico da Cupópia, ver Vogt e Fry (1996) e
Álvarez López e Jon-And (2017).
15
82
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auxiliares, 80% (157 de 197 ocorrências) pertencem ao vocabulário da
Cupópia, e 20%, ao do Português. Não encontramos adjetivos típicos
do português nos excertos analisados, mas ocorrem alguns adjetivos da
Cupópia. Os itens nani ‘pequeno, pouco, nenhum’ e vavuru ‘grande,
muito’ são usados como adjetivos, advérbios e quantiicadores. Os
termos vimbundo ‘negro’ e olofombe ‘branco’ aparecem como adjetivos
e substantivos. Todos os advérbios, com exceção de nani e vavuru,
quando usados como tais, provêm do português, sendo que dominam
neste grupo os advérbios de localização temporal e espacial, como ‘hoje’,
‘agora’, ‘aqui’, ou ‘lá’. Os verbos auxiliares, cópulas, pronomes, artigos,
conjunções e preposições são, em sua totalidade, formas do português,
assim como todos os morfemas gramaticais desinênciais, como os de
tempo, aspecto e modo (TAM).
Esta seção apresenta, em primeiro lugar, a análise qualitativa de
estruturas gramaticais encontradas em casos particulares (e que não são
generalizadas) na Cupópia (omissão de cópula, uso da cópula em lugar
do verbo possessivo e ordem das palavras incomum no português). Em
seguida, é realizada uma comparação quantitativa da morfologia dos
sintagmas nominais (SNs) e dos sintagmas verbais (SVs) dos trechos
em Cupópia e português produzidos pelos mesmos falantes.
5.1 Omissão de cópula
No material analisado, registramos casos de omissão de cópula
em construções como as que se seguem:
(1) nhacorucoto17 vavuro
(2) nhacorocotu nani
(“a minha cabeça é grande”)
(“a minha cabeça é pequena”)
É possível saber que as traduções dessas sentenças devem
incluir a cópula ser porque as frases foram traduzidas da Cupópia para
O falante que produziu os exemplos (1) e (2) airmou, por um lado, que nhacorocotu
signiica ‘cabeça’ e, por outro lado, traduziu nhacorocotu vavuru como ‘a minha
cabeça é grande’e, nhacorocotu nani como ‘a minha cabeça é pequena’. Com base
nessa informação, não foi possível deduzir se nhacorocotu signiica ‘cabeça’ ou ‘a
minha cabeça’. É possível que nha seja um preixo derivado de ‘minha’. Nha também
é o pronome possessivo da primeira pessoa do singular no crioulo cabo-verdiano
(BAPTISTA, 2002, p. 59).
17
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
83
o português pelo próprio falante que as produziu. A possibilidade de
omissão da cópula não está presente em nenhuma sentença do português
constante da mesma gravação, sendo, além disso, considerada agramatical
no português brasileiro.18
Apesar de não termos encontrado exemplos de omissão da
cópula no Português do Cafundó, trata-se de um fenômeno já observado
em variedades do português afro-brasileiro que passaram por uma
reestruturação gramatical, como no caso da variedade de Helvécia
(LUCCHESI et al., 2009c, p. 93-94). Essas variedades, contudo, carecem
do léxico de origem africana (com exceção, óbvio, dos africanismos que
já fazem parte do português brasileiro) – ver Lucchesi et al., (2009a).
A omissão da cópula, atestada em línguas pidgin e crioulas,
também ocorre em variedades afro-hispânicas, como a afro-cubana,
afro-dominicana, afro-panamenha, e na variedade do Vale do Chota no
Equador (GREEN, 1997, p. 91; LIPSKI, 1989, p. 26; LIPSKI, 2005, p.
1; ORTIZ LÓPEZ, 1998, p. 93; SESSAREGO, 2013, p. 77). De acordo
com Sharma e Rickford (2009, p. 53-54, tradução nossa),19 os estudos
sobre omissão de cópula no Inglês Vernáculo Afro-americano (AAVE)
e em línguas crioulas mostra que
o condicionamento da ausência de cópula na segunda
língua não se assemelha ao padrão do inglês vernáculo
afro-americano e do crioulo. [...] Os achados sugerem que
o padrão do inglês vernáculo afro-americano e do crioulo
derivou de uma tendência geral na aquisição de segunda
língua, e aumentam a possibilidade de que o padrão relita
uma inluência de substrato compartilhado de línguas da
África Ocidental ou outros fatores históricos de contato.
18
A omissão de cópula em orações absolutas só é admitida no português brasileiro na
formação das chamadas small clauses livres, em que o sujeito é realizado em posposição
a um predicado nominal que apresenta um caráter nitidamente avaliativo, como em
Bonito, o seu cabelo e Inteligente, aquela criança. Esse não é o caso das construções
da Cupópia apresentadas em (1) e (2), em que as sentenças copulares estão na ordem
direta, e o predicado é descritivo, e não avaliativo.
19
Conditioning of copula absence in the second language data does not resemble the
AAVE and creole pattern. […] The indings reduce the possibility that the overall
AAVE/creole pattern derives from a general tendency in second language acquisition
and increase the possibility that the pattern relects a shared substrate inluence from
West African languages or other historical contact factors.
84
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
Uma hipótese possível é que os dois casos de omissão da cópula
na Cupópia possam ser explicados pelo fato de o quimbundo, a língua
que mais se destaca como substrato dos itens lexicais de origem africana,
normalmente não expressar o equivalente à cópula ser do Português
(CHATELAIN, 1889, p. 4). Como mencionado em Winford (2009,
p. 320), a omissão variável de cópula costuma ocorrer como um processo
de simpliicação durante a aquisição de segunda língua. Holm (2009,
p. 339), por sua vez, airma que, em casos de omissão, ‘a tendência é
que as variedades parcialmente reestruturadas se tornem mais parecidas
com as suas línguas de substrato’.
A omissão da cópula pode ser rara em variedades do português
brasileiro, mas tem sido atestada, como ressaltamos, em estágios prévios
de variedades rurais afro-brasileiras (LUCCHESI et al. 2009c, p. 94),
podendo, assim, tratar-se de um vestígio da aquisição espontânea do
português por parte da massa de falantes de línguas africanas.
5.2 Uso de cópula em lugar do verbo possessivo
Também encontramos dois casos de uso estendido de cópula em
predicações possessivas, ilustrados nos exemplos 3 e 4:
(3) quantos camanacu o jocorocotu tá (“quantos ilhos o velho tem”)
(4) tatinha é orombongui vavurinho (“o homenzinho tem muitinho
dinheiro”)
Nos exemplos (3) e (4), temos as cópulas estar e ser,
respectivamente. O uso de formas copulares para expressar posse não
aparece nos dados analisados do português falado no Cafundó, bem
como não é usual no português de um modo geral, independentemente da
variedade. O uso estendido de cópulas é restrito a esses dois exemplos no
material analisado e não constitui, portanto, prova de um traço categórico
na Cupópia. Os dois exemplos podem, no entanto, reletir uma tendência
de reestruturação na Cupópia que não se encontra no português dos
mesmos falantes.
É importante observar que as expressões possessivas construídas
com cópulas acompanhadas de preposições (do tipo estar com) no lugar de
um verbo inerentemente possessivo (como o inglês to have ou o português
ter) podem ser encontradas tanto no quimbundo (CHATELAIN, 1889,
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
85
p. 8) como no quicongo (TAVARES, 1915, p. 107). O uso de cópulas para
a expressão da posse, ainda que sem a preposição, pode, dessa forma, ser
explicado pela inluência do substrato ou pelos processos de simpliicação
estrutural na aquisição espontânea de uma língua. A cópula, entretanto,
não aparece junto com preposições nesses casos, diferentemente do que
ocorre nas duas línguas bantas mencionadas.
5.3 Ordem não padrão das palavras
A amostra da Cupópia também revela dois casos em que a ordem
dos quantiicadores equivalentes aos itens ‘nada/pouco’ e ‘muito’ não
segue o padrão esperado para o português. Esses exemplos contêm as
palavras vavuro (‘grande’ ‘muito’) e nani (‘pequeno’, ‘pouco’, ‘um
pouco’, também usado como negação e pronome indeinido negativo). Na
amostra, as duas palavras aparecem em diferentes contextos e parecem
incorporar propriedades de adjetivo, quantiicador ou advérbio. Os
seguintes exemplos mostram os casos de ordem de palavras inesperados:
(5) nani nani do orombongui nani (“nada/pouco dinheiro”)
(6) tatinha é orombongui vavurinho (“o homenzinho tem dinheiro
muitinho/mesmo”)
No exemplo (5), nani é interpretado como ‘pouco’ ou ‘nada’,
sendo repetido antes e depois do SN preposicionado ‘do dinheiro’.
Essa colocação do modiicador não aparece no português do Cafundó
da mesma gravação. Em português, o esperado seria que o modiicador
precedesse a frase preposicional (pouco do dinheiro). A colocação do
modiicador após a frase modiicada (do dinheiro pouco) não é usual.
Uma interpretação possível seria aquela em que a terceira ocorrência de
“nani” cumpre a função de ênfase pragmática, caso em que não seria
claramente um desvio do esperado em português.
No exemplo (6), consideramos duas interpretações alternativas.
Por um lado, vavuro pode funcionar como um quantiicador que indica
uma grande quantidade de orombongui ‘dinheiro’. Em português, o
quantiicador é normalmente colocado antes do substantivo, e não depois.
Por outro lado, vavuro pode ser interpretado como advérbio modiicador
da frase ‘o homenzinho tem dinheiro’ e intensiicando o signiicado do
verbo (o homem tem mesmo dinheiro ou o homem tem dinheiro mesmo).
86
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
Para essa interpretação, a colocação do advérbio é possível em Português,
em que a posição esperada seria diretamente depois do verbo ou no inal
da frase.
Os dois exemplos apresentados do emprego de “nani” e “vavuro”
podem, como mencionado, ter interpretações alternativas que não fogem
ao que se espera no português. Deve-se, no entanto, também considerar
a possibilidade de esses modiicadores seguirem padrões mais livres de
colocação do que os seus correspondentes em português.
5.4 Propriedades morfossintáticas no nível do SN
Quanto às características morfossintáticas, analisamos algumas
propriedades gerais do SN e do SV e comparamos os dados da Cupópia
com o português produzido pelos mesmos falantes. Não estamos
airmando que as caraterísticas em questão não ocorram em outras
variedades do português; queremos dizer que não apareceram na fala
das pessoas entrevistadas. As diferenças encontradas entre a Cupópia e
o português nas mesmas conversas sugerem diferenças estruturais entre
os dois códigos.
Começando pelo SN, os traços analisados são os seguintes:
concordância variável de gênero, marcação variável do plural,
substantivos sem determinante na posição de sujeito e o uso de artigos
deinidos em SNs preposicionais que correspondem a locuções adjetivas.
O número total de SNs e SVs nos materiais não é suiciente para testar a
signiicância estatística das diferenças encontradas entre a Cupópia e o
português produzido pelos mesmos falantes na mesma ocasião. Contudo,
consideramos relevante apresentar algumas comparações quantitativas
das diferenças e semelhanças entre SNs e SVs nas duas variedades
utilizadas nas entrevistas, já que as diferenças chamam a atenção. No
Quadro 1, apresentamos a análise dos SNs.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
87
QUADRO 1 – Sons da Cupópia e do Português do Cafundó
no corpus analisado20
CUPÓPIA
10% (4/41) dos substantivos mostram
concordância de gênero variável:
PORTUGUÊS do CAFUNDÓ
Não encontramos concordância
de gênero variável.20
(7) cuenda cupópia atrás da curima
(“fala (?) cupópia atrás da festa”)
(8) o curima é o curima
(“a festa é a festa”)
Em todos os SNs no plural (28), só o primeiro
elemento leva a marca do plural:
(9) cupópia pro-s tata levar
(“cupópia para os homens levar”)
28% (7/25) dos substantivos na posição de
sujeito não têm determinantes:
64% (7/11) dos SNs no plural levam
marca de plural unicamente no
primeiro elemento.
Não encontramos substantivos sem
determinantes na posição de sujeito.
(10) camanacu tá curirano
(“a criança está chorando”)
Ocorrem frases preposicionais com a função de
locução adjetiva, onde o substantivo é precedido
de um artigo deinido, mesmo quando não é
esperado para o Português:
Não encontramos frases
preposicionais com artigo onde não é
esperado.
(11) agora tem camberere do canguru
(“agora tem carne de porco”)
(12) tava meio ingrimado do anguara
(“estava meio bêbado de cachaça”)
5.4.1 Concordância variável de gênero
Apesar de não termos exemplos de concordância variável de
gênero no português do Cafundó, Petter (1999, p. 112-113) apresenta
exemplos desse fenômeno na mesma variedade. Também Amaral
(1982, p. 70) registrou alguns casos no português ‘caipira’, falado na
mesma região, no início do século 20, uma geração após a abolição da
escravidão. O mesmo traço foi observado na região na década de 1970
No português há substantivos comuns de dois gêneros. Entretanto, essa classiicação
feita para o português não se aplica aos casos da Cupópia aqui apresentados.
20
88
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
por Rodrigues (1974, apud LIMA, 2007, p. 161). Essa característica
é também encontrada em algumas comunidades não deinidas como
afro-brasileiras (LOPES; PAGOZZO, 2014; LIMA, 2007), bem como
em várias comunidades rurais afro-brasileiras (BAXTER, 1998, p. 118119; BYRD, 2012, p. 177-178; CARENO, 1997, p. 90; LUCCHESI,
2009a, p. 305; PETTER; ZANONI, 2005; QUEIROZ, 1998, p. 85) e em
variedades de português e espanhol faladas na África (INVERNO, 2011,
p. 163-165; GONÇALVES, 1997, p. 61-62; LIPSKI, 2004; LUCCHESI
2009a, p. 305). Foi ainda observada em textos literários que reproduzem
a fala de africanos falantes de espanhol e português como segunda língua
(LIPSKI, 2005; ÁLVAREZ LÓPEZ; ALKMIM, 2009) e em variedades
afro-hispânicas faladas na Bolívia, República Dominicana, Equador e
Panamá (GREEN 1997, p. 98; LIPSKI, 1989, p. 18-20; LIPSKI, 2008,
p. 20; LIPSKI, 2015, p. 109-110; SESSAREGO, 2013).
5.4.2 Concordância variável de número
Nos trechos em Cupópia, a marca de plural aparece
sistematicamente no primeiro elemento do SN (ver o exemplo 9 no
Quadro 1). Os 28 SNs no plural contêm 2 elementos: determinante e
substantivo. Em todos os casos, a marca de plural está no determinante.
Os dados sugerem que os substantivos em Cupópia são morfologigamente
invariáveis, já que número e gênero são marcados apenas no determinante.
No português do Cafundó, a mesma estrutura, com marca de plural só
no primeiro elemento do SN, é encontrada em 7 dos 11 SNs no plural.
No entanto, em quatro casos, todos os elementos do SN têm a marca de
plural, o que equivale à marcação padrão.
A concordância variável de número ocorre em todas as variedades
vernáculas do português brasileiro, embora o grau varie dependendo de
fatores sociais, como nível de educação, contextos urbano ou rural, e
faixa etária (BAXTER, 2009, p. 269-293; LUCCHESI, 2009b, p. 526527). Até onde sabemos, o uso categórico e invariável da marcação de
plural no primeiro elemento do SN, tal como na Cupópia, ainda não foi
registrado em nenhum estudo sobre variedades do português brasileiro.
Cabe ressaltar, contudo, que, na maioria dos exemplos apresentados por
Amaral (1982, p. 70-71), Byrd (2012, p. 176-177, 185-186), Careno
(1997, p. 90) e Queiroz (1998, p. 85) sobre variedades rurais do português,
a marcação de plural aparece unicamente no primeiro elemento do SN.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
89
Baxter (2009, p. 278, 293) mostra que a tendência para marcar
o plural só no determinante é forte, mas não categórica no Português de
Helvécia, bem como no Português dos Tongas de São Tomé, e atribui o
traço à reestruturação histórica devida ao processo de aquisição espontânea
da língua por parte de falantes de línguas africanas. A mesma tendência,
embora menos forte, foi observada em outras variedades de Português
brasileiro (GUY, 1981; SCHERRE, 1988, p. 142-241; LOPES, 2001) e
Português de São Tomé (FIGUEIREDO, 2008, p. 30-32), assim como
em variedades de Português moçambicano e cabo-verdiano (JON-AND,
2011, p. 99-100, 123-125). Lipski (2010, 2015, p. 111-112) registrou
uma tendência para marcar o plural no determinante no Espanhol dos
afro-bolivianos, afro-colombianos de Palenque, afro-equatorianos e
afro-paraguaios. Lipski (2004, p. 84-87) também apresentou exemplos
de marcação sistemática do plural no primeiro elemento do SN em um
número de variedades afro-hispânicas e afro-portuguesas e sugeriu que
essa característica tenha sido difundida por meio dos pidgins usados pelos
traicantes de escravos na época colonial. De acordo com Lipski (2015,
p. 111), essa marcação sistemática por meio de um suixo acrescentado
ao primeiro elemento do SN não poderia ter origem nas línguas Bantu
que têm preixos marcadores de classes nominais e de concordância.
5.4.3 Substantivos sem determinantes como sujeito
Nas gravações analisadas, há 9 casos em que ocorrem, na Cupópia,
substantivos sem determinantes na posição de sujeito (ver exemplo 10
no Quadro 1), enquanto nas demais ocorrências, que somam 42 casos,
os substantivos são precedidos por determinantes, como no português
padrão. No português do Cafundó, o comportamento variável não é
observado, já que os substantivos que aparecem são sempre precedidos
por determinantes.
Os substantivos sem determinantes no singular em posição de
sujeito são comuns no português afro-brasileiro (BAXTER; LOPES,
2009, p. 328) e em variedades afro-hispânicas (LIPSKI, 2005, p. 267-268,
2015, p. 112; GUTIÉRREZ-REXACH; SESSAREGO, 2011). Baxter
(2002, p. 31-33) mostrou que os substantivos sem determinantes em
contextos deinidos são comuns no Português dos Tongas em São Tomé
e atribui esse fato à inluência do substrato Bantu.
90
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
5.4.4 Uso não esperado de artigos deinidos
Observamos o uso de artigos deinidos em SNs preposicionados
que formam locuções adjetivas na Cupópia (ver exemplo 11-12 no
Quadro 1). O contexto indica que os substantivos são genéricos, e não
especíicos, o que levaria usualmente à realização de um substantivo sem
determinante em variedades do português brasileiro. Essa estrutura não
foi encontrada no português do Cafundó, nem temos conhecimento de
que tenha sido mencionada em estudos anteriores sobre afro-variedades
de português e espanhol. É possível que a contração da preposição de
com o artigo deinido o (do) tenha sido reinterpretada, em determinados
casos, como uma preposição na Cupópia. No entanto, a preposição de
ocorre de forma independente em outros contextos, e a contração do
aparece em situações nas quais o signiicado original se mantém, o que
requer uma observação mais detida, bem como estudos mais sistemáticos,
para compreender melhor esse uso do artigo.
5.4.5 Marcadores de tempo, aspecto e modo
No SV, os resultados não indicam um nível mais alto de
reestruturação gramatical parcial (no sentido de HOLM, 200921) na
Cupópia, em comparação com o português do Cafundó. A Cupópia
compartilha todas as lexões verbais de TAM do português brasileiro,
como mostram os exemplos (14)-(19) na Tabela 4. Não há contextos nos
quais a lexão de TAM seja omitida no corpus. Os resultados mostram
que os verbos da Cupópia apresentam lexões morfológicas, em contraste
com o que se observa entre os substantivos, que são aparentemente
invariáveis. Para TAM, a Cupópia e o português do Cafundó apresentam o
mesmo comportamento que o português brasileiro padrão. A comparação
entre as características do SV na Cupópia e no português do Cafundó é
sistematizada no Quadro 2.
21
Holm refere-se a reduções morfossintáticas como, por exemplo, a perda de
morfologia verbal e nominal e a ausência de cópula.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
91
QUADRO 2 – Svs da Cupópia e do Português do Cafundó no corpus
CUPÓPIA
Flexões verbais para TAM.
PORTUGUÊS do CAFUNDÓ
Flexões verbais para TAM.
(13) cuendei o tata
(“Fiz (alguma coisa?) ao homem”)
(14) já cuendava o cambererá
(“já pegava(?) a carne”)
(15) coçumbou a cupópia na ambara
(“ouviu Cupópia na cidade”)
(16) o tata vimbundo tá coçumbando
(“o homem negro está ouvindo”)
(17) queria que eu picopiasse
(“queria que eu falasse”)
79% (33/42) de aplicação da regra padrão de
concordância sujeito-verbo.
79% (167/212) de aplicação da regra
padrão de concordância sujeito-verbo.
(18) cupopiamo vavuru
(“falamos muito”)
(19) nós chega lá no injó
(“chegamos lá na casa”)
Para a concordância sujeito-verbo, encontramos variação tanto
na Cupópia como no Português do Cafundó. Em 9/42 casos com verbos
nos quais o sujeito é explícito ou pode ser inferido pelo contexto, o verbo
não concorda com o sujeito.
O padrão de concordância variável sujeito-verbo, tanto na
Cupópia quanto no Português do Cafundó, parece ter sido comum no
Português Caipira estudado por Amaral em 1920 (ver AMARAL, 1982,
p. 72-73). Padrões semelhantes foram observados em variedades afrolatinas (BYRD, 2012, p. 188; CARENO, 1997, p. 91; LIPSKI, 2005,
p. 253; QUEIROZ, 1998, p. 83) e variedades informais de português
brasileiro e africano (LIPSKI, 2004, p. 87-88, 2015, p. 110). Conforme
os estudos quantitativos sobre o português afro-brasileiro e comunidades
rurais isoladas, a porcentagem de aplicação da regra de concordância
é 13% para as mulheres e 19% para os homens (LUCCHESI et al.,
2009b, p. 358). A Cupópia e o Português do Cafundó mostram uma
percentagem muito mais alta de aplicação da regra de concordância
(79%) do que variedades que não têm um léxico especíico de origem
92
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
africana como as descritas em Lucchesi et al. (2009a). Esse resultado está
em linha com a porcentagem de aplicação da mesma regra no português
brasileiro falado no Rio de Janeiro (BRANDÃO; VIEIRA, 2012,
p. 24). A correspondência exata da percentagem de concordância verbal
em ambas as variedades pode ser uma coincidência devida ao número
limitado de SVs analisados. O que se pode constatar, considerando o
nível semelhante de concordância verbal, é que, no tocante ao SV, não
foi encontrada nenhuma indicação de níveis diferentes de reestruturação
entre o português e a Cupópia.
A análise do material ao qual temos acesso sugere que os falantes
produzem padrões gramaticais diferentes na Cupópia e no Português
do Cafundó. A tendência encontrada sugere um nível mais alto de
reestruturação na Cupópia. Algumas das características encontradas
(concordância variável, nomes nus, omissão de cópula, uso estendido
de cópula) podem ser resultados da inluência das estruturas das línguas
Bantu que contribuíram para o léxico da Cupópia. Entretanto, as mesmas
características também podem ser explicadas por meio de mecanismos
de simpliicação devido à aquisição espontânea de uma segunda língua
pelos ancestrais dos falantes da Cupópia, como “Input da língua alvo,
inluência da L1, processos de simpliicação, e mudanças desencadeadas
pela deriva interna” (cf. WINFORD, 2009, p. 317-318, tradução nossa).22
Os padrões de concordância no SN da Cupópia são semelhantes
aos estágios prévios do Português Caipira documentado por Amaral (1982)
no início do século 20. Em consequência, Petter (1999, p. 101) sugeriu
que se tratava de uma variedade semelhante ao Português Caipira descrito
por esse autor. As características gramaticais especíicas observadas no
Português Caipira podem ser explicadas como o resultado de aquisição
espontânea da língua portuguesa por parte dos falantes das línguas Bantu
que foram introduzidos nessa região e por seus descendentes.
Observou-se ainda um nível mais elevado de reestruturação no SN
da Cupópia que no SN do Português do Cafundó para todos os aspectos
analisados (concordância variável de gênero e número e substantivos
sem determinantes em contextos específicos). Contrariamente ao
que foi observado para o SN, o SV da Cupópia parece apresentar um
comportamento semelhante ao do SV do Português do Cafundó, com
TL [target language] input, L1 inluence, processes of simpliication, and internally
driven changes.
22
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018
93
as mesmas lexões verbais e a mesma variação na concordância, o
que corresponde ao esperado para variedades vernáculas do português
brasileiro.
A quantidade limitada de dados não nos permite chegar a
conclusões deinitivas em relação à estrutura da Cupópia. Contudo,
as tendências observadas são suicientemente consistentes para que
os resultados apresentados neste trabalho possam contribuir tanto na
descrição quanto nos debates sobre a sua origem.
A Cupópia compartilha a maioria das suas características com
variedades africanas e latino-americanas de Português e Espanhol, aí
incluído o Português Caipira descrito por Amaral (1920). Por sua vez,
o Português do Cafundó se inclui entre as variedades vernáculas do
português brasileiro e, dessa perspectiva, parece estar se tornando uma
variedade menos reestruturada do que era no século 20 (cf. ÁLVAREZ
LÓPEZ; JON-AND, 2017).
6 Considerações inais
O presente artigo mostra que a Cupópia apresenta padrões
estruturais possivelmente induzidos pelo contato que compartilha com
variedades do português regional faladas na época em que ex-escravos
nascidos na África ainda viviam ali. Além disso, a análise morfossintática
do material sugere que a Cupópia é estruturalmente diferente do
Português falado pelos mesmos falantes e que as diferenças se concentram
no SN, o que talvez fosse esperado já que a maioria das palavras são
substantivos. O nível de reestruturação parece ser mais elevado do que
é esperado para a maioria das variedades de contato afro-latinas, e, no
caso da omissão da cópula, observou-se que há semelhanças com pidgins
e crioulos. Entretanto, o grau de aplicação das regras de concordância
do padrão no SV é mais elevado do que o atestado em outras variedades
de português afro-brasileiro.
Em soma, há pelo menos três explicações possíveis para o grau
elevado de reestruturação observada na Cupópia em comparação com
o Português do Cafundó. Em primeiro lugar, a reestruturação pode ser
uma herança direta das estruturas observadas no Português Caipira do
início do século 20. Não obstante, essa hipótese não explica todas as
particularidades observadas, visto que a Cupópia e o Português Caipira
não parecem compartilhar todos os traços que os distinguem do Português
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brasileiro varnáculo. Ao mesmo tempo, o Português do Cafundó falado
pelos mesmos indivíduos está mais perto das variedades varnáculas do
que a Cupópia. A pergunta é: por que os SNs da Cupópia não mudam na
direção das variedades varnáculas com as quais a língua tem uma relação
simbiótica, já que os SVs parecem estar se encaixando no paradigma do
português vernáculo?
Em segundo lugar, existe a possibilidade de que a reestruturação
gramatical tenha ocorrido em um processo intenso de empréstimos por
parte de falantes que não falavam luentemente a(s) língua(s) fonte(s)
da(s) qual( quais) a Cupópia teria emergido (como Kimbundu, Kikongo,
Umbundu), porém, é difícil provar isso, já que não existem registros
históricos da Cupópia.23
Em terceiro lugar, existe a possibilidade de a reestruturação
gramatical ser o resultado de um grau de flexibilidade mais alto,
característico das línguas mistas simbióticas. Winford (2005, p. 386,
tradução nossa)24 airma que “certas inovações estruturais na língua
receptora parecem ser mediadas por empréstimos léxicos”. Ainda assim,
Winford não fornece uma explicação detalhada de como os empréstimos
lexicais medeiam essa reestruturação. Uma maneira de explicar esse
processo seria comparar a Cupópia com uma língua que apresenta
características lexicais e gramaticais similares, por exemplo, o angloromani.
O anglo-romani se destaca pelo uso de um repertório lexical
de origens ancestrais (o romani), inseridos na estrutura gramatical da
língua maioritária da sociedade e do grupo (o inglês). O anglo-romani,
similarmente às nossas observações sobre Cupópia e o português,
apresenta omissões e reduções gramaticais que não são estruturalmente
compatíveis com o inglês produzido pelos mesmos falantes (MATRAS et
al., 2007, p. 172). Isso é exempliicado, entre outras coisas, pela omissão
do artigo deinido:
23
Certain structural innovations in a RL [Recipient Language] appear to be mediated
by lexical borrowing.
24
Angloromani allows greater lexibility in the omission of overt indications that
information is contextually highly retrievable. […] We suggest that the relative ease
with which overt indication of contextually retrievable information […] is omitted in
Angloromani is indeed connected to the conversational functions of Angloromani, and
thus to the attitudes surrounding it. It is not primarily a means of conveying propositional
content, but is rather a means of emphasizing the emotive aspects of the message.
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95
Kekka pen dovva, rakli’s trash!
‘Don’t say that, [the] girl’s scared!’ (MATRAS et al., 2007, p. 173)
Matraset al. (2007) chamam a atenção para o fato de que, em
comparação com o inglês padrão, o anglo-romani é mais lexível:
O Angloromani permite uma maior flexibilidade
na omissão de indícios abertos de que a informação
é altamente recuperável no contexto. [...] Sugerimos
que a relativa facilidade com que a indicação aberta de
informações recuperáveis contextualmente [...] é omitida
em Angloromani está realmente conectada às funções
conversacionais do Angloromani e, portanto, às atitudes
em torno dela. Não é principalmente um meio de transmitir
conteúdo proposicional, mas sim uma forma de enfatizar os
aspectos emotivos da mensagem. (MATRAS et al., 2007,
p.173, tradução nossa).25
As observações apresentadas no presente estudo sugerem, de
certa forma, essa terceira possibilidade, já que a comparação com o angloromani parece relevante, considerando as semelhanças observadas entre
essa língua e a Cupópia no que concerne às suas estruturas lexicais e
gramaticais, bem como às suas origens. O SN da Cupópia é mais parecido
com o Português Afro-brasileiro que com outras variedades de possíveis
línguas simbióticas com léxico de origem africana no Brasil.
Não conseguimos, com base nas circunstâncias demográicas,
explicar por que uma língua mista simbiótica surgiu nessa comunidade
e não em outras comunidades similares no Brasil. Acreditamos que a
emergência e a manutenção da Cupópia podem ter sido motivadas pelas
intenções e negociações de identidade dos falantes afrodescendentes que
usavam predominantemente o português. Finalmente, consideramos que
as três explicações são possíveis e que não se excluem mutuamente.
Angloromani allows greater lexibility in the omission of overt indications that
information is contextually highly retrievable. […] We suggest that the relative ease
with which overt indication of contextually retrievable information […] is omitted in
Angloromani is indeed connected to the conversational functions of Angloromani, and
thus to the attitudes surrounding it. It is not primarily a means of conveying propositional
content, but is rather a means of emphasizing the emotive aspects of the message
25
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
Áreas lexicais no Centro-Sul do Brasil
sob uma perspectiva geolinguística
Lexical areas in Central-South of Brazil
under a Geolinguistic Perspective
Valter Pereira Romano
Universidade Federal de Lavras, Lavras, Minas Gerais / Brasil
valter.pereira.romano@gmail.com
Resumo: Este trabalho apresenta resultados principais de uma pesquisa
que visa discutir, sob o ponto de vista lexical, a divisão dialetal proposta
por Antenor Nascentes (1953) no que tange à área geográica denominada
pelo estudioso como subfalar sulista. Foram adotados os procedimentos
teóricos e metodológicos da Dialetologia e da Geolinguística e, como
corpus de análise, utilizados os dados do Projeto Atlas Linguístico do
Brasil, correspondentes a 118 municípios brasileiros, totalizando 472
informantes. Quatro questões do Questionário Semântico-Lexical (QSL)
foram selecionadas para validar a hipótese de que a área geográica
investigada é heterogênea linguisticamente. Com base na observação do
comportamento diatópico de algumas variantes lexicais, conclui-se que
a porção setentrional do território investigado apresenta diferenças em
relação à parte meridional, evidenciando a existência de dois possíveis
falares: o paulista e o sulista.
Palavras-chave: Projeto ALiB; subfalar sulista; variação lexical.
Abstract: This work presents the main results of a research that aims to
discuss, under the lexical perspective, the dialectal division proposed by
Antenor Nascentes (1953) with regard to the geographical area called
by the scholar as sulista subspeech. The theoretical and methodological
assumptions of Dialectology and Geolinguistics were adopted and
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.103-145
104
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
the analytical corpus used was the data of the Linguistic Atlas Project
of Brazil corresponding to 118 Brazilian municipalities, totaling 472
informants. Four questions from the Lexical-Semantic Questionnaire
were selected to validate the hypothesis that the geographical area
investigated is linguistically heterogeneous. From the observation of
the diatopical behavior of some lexical variants, it is concluded that
the northern portion of the territory investigated presents differences
in relation to the southern part, showing the existence of two types of
speech: the paulista and the sulista.
Keywords: ALiB Project; Sulista subspeech; Lexical variation.
Recebido em 26 de setembro de 2016.
Aprovado em 24 de abril de 2017.
1 Introdução
Os trabalhos de natureza geolinguística buscam, entre outros
objetivos, apresentar dados que comprovem ou não a existência de áreas
dialetais em determinado território, uma vez que os dados linguísticos
coletados empiricamente são registrados em “mapas especiais”
(COSERIU, 1987).
Embora Amadeu Amaral, em 1920, já chamasse a atenção
para a necessidade de trabalhos empíricos com a inalidade de retratar
“com segurança quais os caracteres gerais do dialeto brasileiro, ou dos
dialetos brasileiros” (AMARAL, 1981, p. 44), as tentativas de divisão
e sistematização de tais ‘dialetos’ vieram a se consolidar na obra O
linguajar Carioca, de Antenor Nascentes (1953), transformando-se na
clássica divisão dialetal do Português Brasileiro (PB), que até hoje é
referenciada, embora apresente algumas inconsistências.
Este trabalho visa discutir a divisão dialetal de Nascentes (1953)
no que se refere à área geográica designada pelo dialetólogo como
subfalar sulista de forma a contribuir para uma possível redeinição dessa
divisão sob uma perspectiva lexical.
Parte-se do pressuposto de que a área geográica estudada,
atualmente, não apresenta homogeneidade lexical; há variantes típicas de
determinadas áreas que evidenciam traços dos processos de povoamento e
ocupação humana. O estudo justiica-se pela necessidade de (i) descrever
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
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a realidade do PB pautando-se em dados empíricos; (ii) preencher a
lacuna existente, na Geolinguística, com um trabalho sistemático de
uma área não contemplada por atlas linguísticos regionais e estaduais
em sua totalidade e (iii) comparar dados da língua oral de estados
pertencentes a regiões administrativas diferentes. Dessa forma, torna-se
possível comparar dados da língua falada no Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Goiás, o que revela semelhanças e diferenças entre as regiões,
bem como alguns traços linguísticos que deinem e caracterizam cada
um dos estados, evidenciando áreas lexicais que extrapolam os limites
administrativos das unidades federativas em questão.
2 Léxico e variação diatópica do PB
A variação diatópica do PB é uma realidade comprovada
empiricamente pelos inúmeros trabalhos dialetológicos e geolinguísticos e
subjaz aos demais tipos de variação. Considerando-se a extensão territorial
do Brasil e os diferentes ‘brasis’ que surgiram em decorrência do processo
de ocupação e povoamento do território (RIBEIRO, 2006), a diversidade
diatópica do PB tem-se revelado como um traço característico dessa língua,
principalmente no que se refere ao léxico, e a sua descrição e análise tem
sido empreendida sob diferentes perspectivas e aportes teóricos.
No que se refere às abordagens dialetais e geolinguísticas, os
dados coletados para a elaboração do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB)
têm contribuído para a descrição do léxico das diferentes regiões do
país. Nessa seara, os trabalhos mais recentes são os de Freitas-Marins
(2012), Ribeiro (2012), Razky (2013), Portilho (2013), Romano e
Aguilera (2014), Romano e Seabra (2014a, 2014b), Romano (2015),
D’Anunciação (2016), Santos (2016), Romano e Seabra (2017), entre
outros. Esses trabalhos destacam as diferenças regionais, ora conirmando
a proposta de divisão de Nascentes (1953), sob a perspectiva lexical, ora
evidenciando particularidades que caracterizam cada região, sobretudo
por inluências sócio-históricas do processo de ocupação e povoamento.
2.1 Áreas dialetais do PB
Na segunda edição da obra O linguajar carioca (1953), Nascentes
discute as primeiras propostas de divisão dialetal que remontam o ano de
1881, como a de Julio Ribeiro. Revisitando outras propostas e fazendo
106
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
ponderações àquelas que sugeriram na primeira edição de seu livro
(1922), o autor reformula seu mapa dialetal do Brasil justiicando que
Hoje que já realizei o meu ardente desejo de percorrer todo
o Brasil, do Oiapoc ao Xuí, de Recife a Cuiabá, iz nova
divisão que não considero nem posso considerar deinitiva,
mas, sim, um tanto próxima da verdade. (NASCENTES,
1953, p. 24)
Em 1953, o estudioso apresenta um novo mapa dialetológico.
Com base em critérios prosódicos e fonéticos – a cadência e a abertura
das vogais médias ([e] / [o]) em posição pretônica, como em p[e]cado/p[E]
cado e c[o]ração/c[]ração – Nascentes divide o PB em seis subfalares,
compreendidos em dois grandes grupos, o do Norte e o do Sul (FIG. 1).
FIGURA 1 – Divisão dialetal de Nascentes (1953)
Fonte: Nascentes (1953)
O falar do Norte engloba o subfalar amazônico e nordestino, e
o falar do Sul contempla o subfalar baiano, intermediário entre os dois
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grupos, o luminense, o mineiro e o sulista. Soma-se a esse conjunto
uma área considerada como Território Incaracterístico que, na época,
era praticamente despovoado.
Essa proposta sedimentou-se entre os dialetólogos, tornando-se
a clássica divisão do PB, conirmada em trabalhos como os de Cardoso
(1986; 1999) sob a perspectiva fonética. Todavia, trabalhos recentes
discutem essa divisão, sob o ponto de vista lexical.
Ribeiro (2012), por exemplo, estudou o subfalar baiano; Portilho
(2013), o amazônico; Romano (2015), o subfalar sulista; e Santos (2016),
o luminense. Essas pesquisas atestam o fato de que esses falares não se
limitam à faixa territorial estabelecida por Nascentes, mas adentram a
outras áreas.
Ao fazer uma retrospectiva das divisões dialetais, já em 2006, Mota
(2006) ressaltara que não fora proposta uma nova divisão, mesmo havendo
um substancial avanço dos estudos dialetológicos e geolinguísticos,
principalmente, em razão da diiculdade de intercomparação entre os
dados dos atlas estaduais e regionais por motivos de ordem metodológica
e temporal. Para a autora, faz-se necessário maior conhecimento das áreas
dialetais brasileiras, “especialmente daquelas que ainda não dispõem
de atlas regionais assim como de uma amostra atualizada, recolhida
simultaneamente, com mesma metodologia e sob coordenação geral em
todo o País” (MOTA, 2006, p. 351). Nesse sentido, atualmente, os dados
coletados para o Projeto ALiB podem contribuir para uma nova proposta
de divisão dialetal cientiicamente justiicável.
Partindo do prognóstico de Mota (2006) sobre a importância do
Projeto ALiB para a delimitação de áreas dialetais do PB, encontramse, atualmente, inúmeros trabalhos com base no corpus do Projeto. Esta
pesquisa vem contribuir ao desenvolvimento do Projeto ALiB, pois traz
uma análise sistemática de dados de uma extensa área geográica que
compreende o denominado subfalar sulista.
3 Materiais e Métodos
O corpus analisado refere-se aos dados inéditos coletados
pela equipe do Projeto em 118 cidades. Em cada uma das localidades,
foram entrevistados quatro informantes, dois homens e duas mulheres,
pertencentes a duas faixas etárias: Faixa I, de 18 a 30 anos, e Faixa II,
108
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de 50 a 65 anos, naturais da localidade e tendo o ensino fundamental
(completo ou incompleto) como grau máximo de escolaridade.1
A área investigada desta pesquisa contempla localidades de nove
estados: Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC), Paraná (PR), São
Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Minas Gerais (MG), Goiás (GO), Mato
Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS). Ela se difere da exata área
demarcada por Nascentes, pois a diiculdade em trabalhar com o mapa
de Nascentes (1953) (Figura 1) foi a imprecisão e a falta de detalhes
nos limites geográicos estabelecidos pelo autor para a delimitação de
cada subfalar.
Sobre os limites do subfalar sulista, o autor descreve que
compreendem os estados de SP, PR, SC, RS, MG, GO e MT, não
apresentando mais especiicações sobre esses limites. Vale notar que
a imagem do mapa do Brasil subdividido em falares não apresenta
elementos geográicos que subsidiem a precisão das fronteiras dos
subfalares.
Desse modo, depois de criterioso estudo do mapa de Nascentes
(1953) e a distribuição da rede de pontos do ALiB por meio do
georreferenciamento, chegou-se a um mapa parecido ao do autor, no
que tange à área geográica do subfalar sulista. Além dessa área, foram
considerados pontos linguísticos adjacentes aos limites desse subfalar,
denominados “pontos de controle”, como já o izeram Ribeiro (2012) e
Portilho (2013).
A rede de pontos do subfalar sulista compõe-se de 108
localidades, às quais foram acrescentados 10 pontos, pois se considera
importante veriicar a fronteira desse subfalar com os outros subfalares
(mineiro e luminense) e também com o território incaracterístico. Assim,
foram incluídas para o estudo duas cidades luminenses – ponto 205
(Barra Mansa) e 206 – Parati; quatro cidades mineiras: 130 (Unaí), 132
(Pirapora), 141 (Formiga) e 145 (São João Del Rei); duas cidades goianas:
118 (Porangatu) e 121 (Formosa) e duas cidades mato-grossenses: 103
(Aripuanã) e 104 (São Félix do Araguaia). Em sua totalidade, o estudo
engloba nove localidades mato-grossenses, seis sul-mato-grossenses,
oito localidades goianas, duas luminenses, 11 municípios mineiros, 38
1
Nas capitais, foram entrevistados, além de informantes de nível fundamental, quatro
informantes de nível superior. Considerando-se os objetivos desta pesquisa, os dados
dos informantes de nível superior não foram considerados.
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cidades paulistas, 17 paranaenses, 10 localidades catarinenses e, por im,
17 cidades gaúchas2.
Foram selecionadas questões que evidenciam diversidade de formas
lexicais, que podem apresentar variantes diatópicas que possibilitem o
traçado de isoglossas e que revelem áreas lexicais no território investigado.
Compreende-se por isoglossa a linha virtual que marca limites
também virtuais de formas e expressões linguísticas em determinada
área geográica (FERREIRA; CARDOSO, 1994). Como este trabalho
se refere ao nível lexical, optou-se pelo termo isoléxica (mesmo léxico)
para denominar as linhas virtuais que evidenciam áreas em que há a
ocorrência de duas variantes ou de uma forma lexical em relação à
ausência de variante. Por extensão ao conceito de heteroglossa, proposto
por Chambers e Trudgill (1994), optou-se pelo termo heteroléxica
(léxico diferente), para denominar as linhas que delimitam áreas de
coocorrência de duas variantes. Reconhece-se, todavia, que os limites
geográicos que deinem a abrangência de uma variante em detrimento
de outra são luidos, sobretudo pela natureza dos dados em análise. Desse
modo, entende-se que as linhas de isoléxicas e heteroléxicas revelam a
“arealidade” de determinada variante, neologismo aqui utilizado para
denominar a distribuição espacial ou areal de uma forma linguística.
Neste artigo, são analisados os dados das seguintes questões do
Questionário Semântico-Lexical (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO
ALiB, 2001):
• Questão 001 – Córrego – “Como se chama um rio pequeno, de uns
dois metros de largura?”, da área semântica Acidentes geográicos;
• Questão 132 – Menino – “Criança pequenininha, a gente diz que
é bebê. E quando ela tem de 5 a 10 anos, do sexo masculino?”, da
área Ciclos da vida;
• Questão 156 – Bolinha de gude – “Como se chamam as coisinhas
redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar?”, da
área Jogos e diversões infantis;
• Questão 177 – Geleia – “Como se chama a pasta feita de frutas para
passar no pão, biscoito?”, da área semântica Alimentação e cozinha.
A rede de pontos linguísticos do Projeto ALiB é identiicada por números. A lista
completa está disponível no site: https://alib.ufba.br/sites/alib.ufba.br/iles/rede_de_
pontos_pdf
2
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Esses dados foram coletados do corpus mediante consulta às
transcrições/revisões e às gravações em áudio. O corpus passou pelo
processo de revisão e posterior armazenamento no banco de dados do
software desenvolvido para agilizar o processo de geração de relatórios
e de cartografia linguística, o [SGVCLin] (ROMANO; SEABRA;
OLIVEIRA, 2014).
4 Análise dos dados
Nesta seção, apresentam-se a descrição e análise das variantes
registradas para as quatro questões supramencionadas. Cada questão
apresenta especiicidades tratadas individualmente, seja com a criação
de rótulos para alguns itens, seja com agrupamento de variantes quando
necessário. A discussão atém-se à distribuição diatópica de algumas
variantes com vistas a discutir as áreas lexicais.
A validade de uma forma lexical considerada ou não como um
designativo para o referente foi pautada nas acepções constantes dos dois
principais dicionários da língua portuguesa, Houaiss e Villar (2001) e
Ferreira (2004), e na descrição do informante, quando questionado sobre
tal designativo. Quanto à etimologia de alguns vocábulos, recorreu-se
ao Dicionário Etimológico de Cunha (2010) e ao Dicionário da Real
Academia Espanhola (2001).
4.1 Córrego
A questão 001 do QSL busca obter as variantes lexicais para “o rio
pequeno de dois metros de largura”. Foram documentados 644 registros,
distribuídos em 25 formas. Diante desse polimorismo, foi necessária
a criação de alguns rótulos bem como o agrupamento de variantes. Os
rótulos, criados com a inalidade de facilitar a compreensão e descrição
dos dados, enquadram-se em três categorias:
• “sugestão na pergunta”: agrupa formas lexicais cujo sema já está
expresso na formulação da questão, por exemplo, as variantes rio,
rio pequeno, rio estreito e rio raso.
• “formas inadequadas”: contempla os itens lexicais que, apesar
de terem traços semânticos comuns ao referente, não designam,
especiicamente, o item buscado, como ocorre em lagoa, lago,
poço, açude. Essas variantes denominam outro referente, que tem
como traço característico a presença de água represada.
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• Sob o rótulo “formas pouco produtivas” estão englobadas as hápax
legomena: bocaina, braço de rio e lajeado que, tanto em Houaiss e
Villar (2001) quanto em Ferreira (2004), iguram com pelo menos
uma acepção análoga ao referente córrego.
Além dos rótulos criados, foram necessários agrupamentos de
variantes morfofonêmicas,3 como é o caso de itens em que houve
i. redução da proparoxítona (córrego > corgo);
ii. formas no diminutivo (corgo > corguinho; riacho > riachinho/
riachozinho; sanga > sanguinha, rego > reguinho, valeta >
valetinha)
iii. formas que apresentam o mesmo radical (valo, vala, valão)
iv. formas compostas (rego d’água > rego).
No caso das variantes de valeta, foram feitos os agrupamentos
considerando-se os critérios (ii) e (iii); para as variantes de rego,
consideraram-se os critérios (ii) e (iv). Realizados os devidos
agrupamentos, os 644 registros estão distribuídos em 14 itens.
As cinco variantes mais produtivas são: córrego e suas variantes
morfofonêmicas (261 ocorrências – 40,53%), riacho e variantes (122
ocorrências – 18,94%), riozinho (82 – 12,73%), ribeirão (38 ocorrências
– 5,9%) e sanga/sanguinha, com 37 registros (5,75%), representando,
juntas, 83,85% das respostas.
Seguem-se a essas formas os itens valeta e variantes (26
ocorrências – 4,04%). As formas contempladas sob o rótulo “sugestão
na pergunta” (rio, rio pequeno, rio estreito e rio raso) apresentam 21
registros (3,26% do corpus). A variante arroio igura com 19 ocorrências
(2,95%), e rego obtém 17 registros (2,64%).
Com menor índice, encontram-se oito “respostas inadequadas”
(lago, lagoa, açude e poço). A variante corixo obteve apenas cinco
registros, representando 0,78% do corpus. Ainda em menor produtividade,
Carreter (2008, p. 281), acerca das variantes morfofonêmicas, airma que “los
fonólogos han propuesto este término para designar ‘la idea compleja de todos los
miembros (dos o más) de uma alternância. Así, en la alternancia que se produce en las
formas alemanas geben-gab-gib, las vocales e, a, i (llamadas alternantes) constituen
uno morfofonema.”
3
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encontram-se canal (0,47%), grota d’água (0,31%) e as hapax legomena
(bocaina, braço do rio e lajeado) que, sob o rótulo “formas pouco
produtivas”, representam juntas 0,47%4.
A Figura 2 apresenta a distribuição diatópica de seis das 14
formas. Embora o [SGVCLin] possibilite a cartografia de até 10
variantes, com a inalidade de facilitar a visualização, optou-se por
representar cartograicamente as seis formas mais produtivas, para evitar
o comprometimento na distinção das cores. As demais variantes estão
agrupadas no item outras, representadas pela cor cinza. Esse item da
legenda contempla o rótulo sugestão na pergunta, rego, arroio, formas
inadequadas, canal, grota d’água e as hápax legomena: bocaina, braço
de rio e lajeado.
Há uma concentração da variante córrego com suas variantes
morfofonêmicas em localidades situadas no estado de SP (não ocorrendo
em cinco dos 38 pontos paulistas), e sua presença é registrada em todos
os pontos selecionados no RJ, MG, MS, MT e GO (FIG. 2). À medida
que se avança no sentido meridional, córrego vai perdendo produtividade,
dando espaço para variantes regionais como valeta, sanga e arroio.
A carta de a realidade gradual de córrego (FIG. 3) ilustra
a distribuição do item considerando-se a produtividade por ponto
linguístico. Observa-se que essa forma lexical, embora esteja amplamente
difundida pelo território, com exceção do RS, apresenta variações quanto
à produtividade na rede de pontos, sendo representativa, sobretudo, em
grande parte do território do Centro-Oeste e no Triângulo Mineiro, onde
a produtividade chega a 100% de incidência. Por outro lado, em SP há
uma oscilação entre os índices de 75% a 25%, e à medida que adentra os
estados da região Sul, sobretudo a partir do centro-sul do PR, o índice de
representatividade não passa de 50%. Há, portanto, um comportamento
heterogêneo de córrego no território do subfalar sulista.
4
Neste artigo, a análise restringe-se ao comportamento diatópico das variantes: córrego,
sanga e arroio.
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FIGURA 2 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 001 do QSL
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
A variante sanga é a quinta mais produtiva entre os informantes
(37 ocorrências), equivalendo a 5,75% do corpus. Apresenta-se em
quatro dos nove estados que compõem a pesquisa: MS, PR, SC e RS,
com diferentes índices de produtividade. A variante é mais produtiva no
RS, onde obtém 27,91% de representatividade (24 ocorrências). No PR,
sanga apresenta 10 ocorrências (9,17%) e, com menor produtividade,
encontra-se em SC, com apenas dois registros (3,82%). No MS, há
somente uma ocorrência (3,03%).
A distribuição de sanga permite o traçado de uma isoléxica (FIG.
4) que contempla grande parte do território do RS, com exceção da faixa
leste do estado (ponto 243 – Porto Alegre, 244 – Osório e 249 – São José
do Norte). Essa área passa por uma localidade catarinense – ponto 229
(Concórdia), até chegar ao sudoeste paranaense (pontos 223 – Barracão e
217 – São Miguel do Iguaçu). Embora não prossiga numa faixa contínua,
sanga ocorre também em uma localidade sul-mato-grossense – ponto
117 – (Ponta Porã). No PR, sanga forma uma segunda área lexical
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(no sentido transversal do Estado) percorrendo um feixe do noroeste
em direção ao sudeste e englobando quatro localidades: 212 – Campo
Mourão, 213 – Cândido de Abreu, 218 – Imbituva e 222 – Lapa. Essas
duas áreas de ocorrência podem evidenciar traços da história social da
região, sobretudo ao se associar esse fato linguístico ao caminho dos
tropeiros, nos séculos XVIII e XIX (ROCHE, 1969).
FIGURA 3 – Arealidade gradual da variante córrego
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Retomando-se aspectos históricos sobre o povoamento da região
Sul, sabe-se que o Tropeirismo consistiu em um importante movimento
econômico e de ocupação humana que contribuiu para o surgimento
de inúmeras cidades (ALMEIDA, 1981). Sabe-se ainda que as tropas
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eram constituídas, em sua maioria, por gaúchos, paulistas, mamelucos
e castelhanos, que deixaram traços de sua cultura por onde passaram. A
ocorrência de sanga nesta região do subfalar sulista (oeste de SC e sudoeste
paranaense) coincide com uma das rotas dos tropeiros (o Caminho das
Missões), aberto no século XIX, depois de expulsos os jesuítas.
Abandona-se o traçado que cortava o Rio Grande
transversalmente (Uruguaiana, Alegrete, Viamão, Santo
Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Bom Jesus,
Vacaria), adotando-se o traçado São Borja, Santo Ângelo,
Cruz Alta, Carazinho, Passo Fundo, Lagoa Vermelha,
Vacaria. Com exceção das duas primeiras que já existiam
como povoações missioneiras, as demais citadas surgiram
como consequência do novo traçado que icou conhecido
como o Caminho das Missões [...]. (BRUM apud ROCHA,
2008, p. 61)
FIGURA 4 – Arealidade gradual da variante sanga
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
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Ferreira (2004), na primeira entrada do verbete sanga para
designar “um pequeno regato que seca facilmente”, traz o vocábulo como
um brasileirismo do RS e de SC cuja etimologia remete ao espanhol
platino zanja. Contudo, tanto em Ferreira (2004) quanto em Houaiss e
Villar (2001), há a indicação de outra possível origem etimológica para
o vocábulo, podendo sanga ter vindo do quicongo ou do quimbundo,
dizanga.
É interessante notar que, apesar de o termo ter duas possibilidades
etimológicas e indicar sua presença na história da língua portuguesa
desde tempos seculares, a distribuição diatópica do item sanga no corpus
investigado parece revelar traços do contato linguístico do português
com o espanhol e acompanha o processo de movimentação interna dos
gaúchos rumo aos estados de SC e PR.
Os dados do Projeto ALiB têm mostrado que sanga não se
restringe ao RS e à SC, mas adentra o PR, ocorrendo, inclusive, em
pontos de passagem de outras rotas dos tropeiros, como em Lapa (ponto
222), situada no antigo Caminho de Viamão. Cabe notar que, apesar de
no corpus do Projeto ALiB encontrar-se o registro de uma ocorrência de
sanga no ponto 117 – Ponta Porã, no Atlas Linguístico do Mato Grosso
do Sul (OLIVEIRA, 2007) e no Atlas Linguístico do Município de Ponta
Porã (REIS, 2006), não se documenta tal variante, o que não possibilita
airmar, por ora, a inluência de gaúchos nessa localidade do MS, pelo
menos no que se refere ao uso de sanga.
O Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), na carta
163, apresenta as isoléxicas das variantes para o “rio pequeno”, e, no
que se refere à variante sanga, nota-se que essa forma lexical ocorre,
principalmente em localidades do sudoeste paranaense, além de outros
pontos em que coocorre com outra variante. O Atlas Linguístico
Etnográico da Região Sul do Brasil (ALTENHOFEN; KLASSMANN,
2011) apresenta a uma carta linguística que documenta as variantes lexicais
para o “rio pequeno”, com destaque ao item sanga, evidenciando que a
forma se registra em localidades do sudoeste paranaense, além de algumas
ocorrências no centro do estado, embora com menor representatividade
da que se encontra no corpus do ALPR e do Projeto ALiB.
Outra variante que também pode evidenciar traços da sóciohistória da região Sul é a variante arroio (FIG. 5), apresentando-se com
19 registros (2,95% do corpus) distribuídos nos três estados da Região
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Sul: RS (12 ocorrências – 13,95%), SC (uma ocorrência – 1,96%) e PR
(seis ocorrências – 5,5%).
FIGURA 5 – Arealidade gradual da variante arroio
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Assim como sanga, arroio é uma palavra de origem hispânica
(HOUAISS; VILLAR, 2001), procedente do latim vulgar arrugiu, no
sentido de “pequeno curso d’água permanente ou não” (FERREIRA,
2004). Observando a área de ocorrência dessa variante na Região Sul,
veriicam-se novamente as marcas deixadas no léxico pelo movimento
dos gaúchos rumo ao PR, possivelmente durante o ciclo do Tropeirismo e,
posteriormente, da reimigração gaúcha de descendentes alemães, eslavos
e italianos (ROCHE, 1969).
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Arroio é uma forma que ocorre no extremo sul do país – ponto 250
(Chuí) – fronteira com o Uruguai, atravessando o interior do estado até
chegar ao norte gaúcho (ponto 237 – Vacaria). No território catarinense,
essa variante volta a ocorrer em Porto União – ponto 224 – já na fronteira
com o PR, por onde se difunde em três localidades do centro-sul do estado
– Lapa (ponto 222), Guarapuava (219), Imbituva (218) e, subindo na
direção norte, chega ao ponto 214 (Piraí do Sul). Ao lado da ocorrência
de sanga, pode-se observar a sobreposição dessas isoléxicas (Figura 6),
o que conirma as premissas aventadas sobre a possível inluência do
movimento do tropeirismo e da situação de contato do português com o
espanhol, formando uma área lexical no território investigado.
FIGURA 6 – Arealidade da variante arroio
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
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Distinguem-se na Figura 6 a variante sanga no oeste riograndense e arroio ao leste. Na região central, há a sobreposição de
formas, revelando áreas lexicais delimitadas por linhas de heteroléxicas.
Nessa carta, é possível visualizar também uma área em SC pela qual se
liga ao PR, denominada área lexical do interior catarinense(ROMANO;
AGUILERA, 2014).5 No PR, as isoléxicas se sobrepõem em Lapa e
Imbituva, pontos 222 e 218, respectivamente. Sanga segue rumo ao
MS, reletindo-se em Ponta Porã – ponto 117 e arroio avança rumo ao
Norte Pioneiro paranaense, chegando até o ponto 214 – Piraí do Sul,
município que fazia parte do antigo Caminho de Viamão durante o ciclo
do tropeirismo. Desse modo, não seriam sanga e arroio itens lexicais que
podem tipiicar um possível falar sulista de inluência sul-rio-grandense
que também evidencia traços do contato do português com outras línguas,
no caso o espanhol? Em busca desse possível falar sulista é que se
empreendem as análises deste trabalho.
Observa-se, diante desse cenário, o polimorismo acentuado para
a questão, do qual se tem uma visão ampla no mapa de sobreposição de
isoléxicas, formando áreas lexicais (FIG. 7).
5
Com base nos trabalhos de Koch (2000) e Altenhofen (2005), os autores analisam a
distribuição diatópica das variantes lexicais para bolinha de gude, considerando-se o
corpus do Projeto ALiB, conirmando três das oito ‘áreas dialetais’ estabelecidas por
Altenhofen (2005), e propõem outras três áreas, entre as quais, a área lexical do interior
central de Santa Catarina, caracterizada pela ocorrência de variantes que revelam o
contato entre os gaúchos e paulistas durante o ciclo do Tropeirismo.
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FIGURA 7 – Arealidade das variantes lexicais córrego, sanga e arroio
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Considerando apenas as variantes córrego, sanga e arroio,
veriica-se que, na área correspondente ao subfalar sulista, os estados
pertencentes ao Sudeste e Centro-Oeste apresentam menor número de
sobreposição de isoléxicas em comparação aos da Região Sul, onde
se observa o maior número de formas regionais e combinação dessas
formas com outras variantes. Ou seja, considerando essas três, a região
do subfalar sulista, de Nascentes (1953), apresenta dois comportamentos:
(i) uma parte setentrional caracterizada pela difusão da variante padrão
(córrego) e (ii) a parte meridional em que ocorre maior número de formas
lexicais, delimitadas por linhas de heteroléxicas, correspondendo em
grande parte aos estados do PR, SC e RS. Neste trabalho, para se referir
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a (i), opta-se pela expressão falar paulista e, quando se tratar de (ii),
falar sulista, sempre grafados em itálico. Salienta-se, todavia, que ao
se referir a toda a área geográica discriminada por Nascentes (1953)
como subfalar sulista, não se utiliza o itálico e o adjetivo sulista sempre
está acompanhado do substantivo subfalar, ou seja, a expressão subfalar
sulista se refere à nomenclatura de Nascentes e, no estudo em tela, designa
toda a área geográica investigada, com exceção dos pontos de controle.
4.2 Geleia
A questão 177 do QSL registra os designativos que recobrem o
conceito da “pasta feita de frutas para passar no pão, biscoito”. Para essa
questão, foram documentados 420 registros, além de 85 abstenções de
respostas. As 420 ocorrências distribuem-se em três variantes: geleia,
chimia/michia e musse, além de itens lexicais agrupados sob três rótulos:
“formas genéricas”: doce, doce de fruta, doce de creme e doce em pasta;
“formas inadequadas”: creme, creme de fruta, melado, patê, patê de fruta
e polpa de fruta; “sugestão na pergunta”: pasta e pasta de fruta.
A forma lexical geleia predomina em 267 das 420 ocorrências
(63,57%), seguida de chimia – 71 registros (16,90%), formas genéricas
(53 – 12,62%) e, em menor produtividade, encontram-se as formas
inadequadas (11 ocorrências – 2,62%), itens em que a própria pergunta
sugere a resposta – 10 registros (2,38%) e, por im, a variante musse,
com oito ocorrências (1,90%). Para essa questão, não é documentado o
polimorismo lexical pelo fato de o índice de abstenção de resposta ser
alto. No entanto, as ocorrências das variantes delimitam áreas lexicais
no território investigado (FIG. 8).
Na carta (FIG. 8), observa-se a maior concentração de geleia
no estado de SP, difundindo-se pelos estados da região Centro-Oeste
e pelo território mineiro. No PR, há uma concentração de formas
genéricas relacionadas à forma lexical doce, enquanto musse se apresenta
signiicativamente em SC, e chimia se difunde pelo RS.
A segunda variante mais produtiva é chimia e a sua variante
morfofonêmica michia. Essas formas representam juntas 16,9% do
corpus, apresentando-se em 71 das 420 ocorrências. De acordo com
Houaiss e Villar (2001), chimia é uma variante fonética de chimiê e
chimíer, caracterizadas como um regionalismo do RS para designar a
“geleia para passar no pão da merenda, chimiê”, e provém do alemão
122
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Schimiere, que significa lubrificante, graxa, proveniente do verbo
schmieren, que quer dizer ‘untar, lubriicar, borrar, sujar’.
Considerando-se a etimologia do vocábulo, bem como a
história social da Região Sul, a presença de chimia evidencia traços de
bilinguismo e empréstimo do português de línguas de colonização. Dos
nove estados contemplados pelo estudo, esse item lexical está presente
em cinco, com diferentes índices de representatividade (FIG. 9).
Observa-se que, no MT e no MS, chimia apresenta baixa
representatividade, igurando como ocorrência única no ponto 117 –
Ponta Porã, localizado no sudoeste sul-mato-grossense e no ponto 105
– Diamantino, situado no centro do MT. Assim, pode-se inferir que não
se trata de uma forma típica desses estados, considerando, inclusive,
relatos dos informantes:
INF.- Ó... a língua do pessoal paranaense que eu já vi de
muito tempo até o meu minino invocô, é ele comia nói
chamava doce ['dosI], né: “ô muié, traiz o doce aí” e a
gente já falava do que que é, traiz o doce de banana ou doce
de mamão, ou doce de abróba, né, que é o jerimum, a língua
certa é o jerimum mesmo, então traiz aí pa nóis aqui. Já na
língua paranaense chama chimia [Si'mi], né, tudo quando
é feito de doce pa passá no pão é chimia.6
6
Informante 3 do ponto 103 (Homem, Faixa etária II, de Aripuanã-MT).
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123
FIGURA 8 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 177 do QSL
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
O próprio informante mato-grossense reconhece que chimia é a
denominação que pessoas da Região Sul, genericamente rotulados como
“paranaenses”, usam para nomear o que, para o informante, é designado
como doce (FIG. 9).
124
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
FIGURA 9 – Arealidade gradual de chimia / michia
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
A distribuição diatópica de chimia (FIG. 8 e 9) revela uma área
que contempla o estado do RS quase em sua totalidade, adentra SC pelo
centro e oeste e, em um feixe lateral, perpassa o oeste paranaense até
atingir uma localidade sul-mato-grossense – ponto 117 (Ponta Porã).
Por im, a variante musse delimita uma área lexical (FIG. 8).
Apesar de obter apenas oito ocorrências (1,9% do corpus), musse
apresenta-se em uma área especíica do subfalar sulista, em cinco cidades
catarinenses: três localizadas no nordeste do estado: pontos 225 (São
Francisco do Sul), 227 (Blumenau) e 228 (Itajaí), na capital – ponto 230
(Florianópolis) e 231 – Lages, no sul de SC. No ALERS, musse ocorre
também no RS e no PR, embora com baixa produtividade.
Para uma visão ampla do comportamento das variantes, a Figura
10 apresenta a a realidade dos três itens lexicais detalhados: geleia,
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
125
chimia/michia e musse. Situação análoga à que foi apresentada na Figura
7 repete-se para os designativos da geleia. Na área correspondente ao
subfalar sulista, os estados pertencentes às regiões Sudeste e CentroOeste apresentam menor número de sobreposição de isoléxicas em
comparação com os da Região Sul, onde se observa maior número de
formas regionais e combinação dessas formas com outras variantes,
formando heteroléxicas. Observando a carta, veriica-se a presença
de uma grande área nos estados de SP, MS, MT, GO, MG e noroeste
paranaense, em que ocorre, exclusivamente, a forma mais difundida do
corpus, geleia, inclusive nas adjacências do subfalar sulista em MG e
GO. A alternância de formas se acentua na Região Sul, que apresenta
maior número de combinação de variantes em áreas de heteroléxicas.
FIGURA 10 – Arealidade das variantes lexicais geleia, chimia,
formas genéricas e musse
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
126
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Considerando essas três variantes, a região do subfalar sulista
novamente apresenta dois comportamentos: (i) a parte setentrional,
caracterizada pela difusão da variante padrão (geleia) e (ii) a parte
meridional, em que ocorre maior número de formas lexicais e áreas de
heteroléxicas, correspondendo, em grande parte, aos Estados do PR,
SC e RS.
4.3 Bolinha de gude
A pergunta 156 do QSL – coisinhas redondas de vidro com
que os meninos gostam de brincar – apresenta 40 formas, incluindo as
variantes fonéticas e morfofonêmicas. Foram necessários agrupamentos
de variantes para o tratamento dos dados, conforme os seguintes critérios:
(i)
Formas no diminutivo: bola/bolinha; bulica/buliquinha; burca/
burquinha;
(ii) As formas compostas: bola de gude/bolinha de gude/gude;
bolinha de clique/clica; bolita de gude/bolita; bolinha de búrico/
búrico, entre outros.
(iii) Formas que apresentam o alçamento da vogal pretônica: bolito/
bulita; bolica/bulica;
(iv) Variantes fonéticas que apresentam a alternância morfofonêmica
da vogal átona inal [o] / [a]: bolito/bolita; búlico/búlica;
(v) Itens em que há alternância da lateral alveolar para vibrante na
sílaba tônica: bulita/burita; biloca/biroca; bilosca/birosca;
(vi) Formas em que há a alternância da lateral para a vibrante na
sílaba pós-tônica: búlica/búrica;
(vii) Formas proparoxítonas e paroxítonas: búlica/bulica;
(viii) Variantes fonéticas que apresentam síncope da sílaba pós-tônica:
búrica/burca/buque;
(ix) Vocábulos que apresentam o fenômeno de suarabácti: clica/
quilica;
(x) Variante em que houve anteriorização da oclusiva velar surda
(posterior) para uma oclusiva bilabial surda (anterior): quilica/
pilica.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
127
Para algumas das formas, utiliza-se mais de um critério. Fez-se
necessária a inclusão do rótulo “formas pouco produtivas” para agrupar
as hápax legomena: biribinha, bili, biroquê, boleja, pelota e pedrinha
de vidro.
Para essa questão, são documentados 663 registros distribuídos
em 11 itens, além de duas abstenções de resposta. A variante mais
produtiva é bolinha de gude (43,44%), seguida por bolita (18,7%),
bolinha de vidro (12,97%) e búrica (12,67%). Com menos de 10%
de representatividade, encontra-se o item biloca (6,94%) e, em menor
índice, encontram-se clica (1,81%), birola (0,90%), fubeca (0,75%),
peca (0,60%) e peteca (0,30%). As hápax legomena, agrupadas sob o
rótulo “formas pouco produtivas”, representam juntas 0,9% do corpus.
A Figura 11 apresenta a distribuição diatópica de sete das 12
formas lexicais. Os itens que representam menos de 1% de produtividade,
na cartograia estão documentadas pelo item outros, que compreende
as variantes: birola, fubeca, peca, peteca. Observa-se que bolinha de
gude e variantes estão amplamente difundidas pelo território do subfalar
sulista e adjacências com diferentes índices de ocorrência. O item é mais
produtivo em seis dos nove estados: GO, MG, PR, RJ, SC e SP, atingindo,
no entanto, em apenas quatro desses, produtividade acima de 50%. Os
estados em que há o menor índice de bolinha de gude são o MT (13,04%),
o MS (20,69%) e o RS (25%), em detrimento da ocorrência representativa
de outros itens, por exemplo, bolita e suas variantes morfofonêmicas.
Bolita apresenta-se em seis estados (RS, SC, PR, MS, MT e
GO) com diferentes índices de produtividade, não ocorrendo na região
Sudeste, sendo representativa no Centro-Oeste e Sul. Bolita predomina,
majoritariamente, em localidades matogrossenses e sul-mato-grossenses.
Em GO, a produtividade de bolita atinge 7,69%. Já na região Sul, SC
apresenta o menor índice de produtividade (6,67%) e, no PR, o item
representa 11,61% das respostas. Nas localidades gaúchas, bolita é a
forma mais produtiva (63,75%). No MS, bolita ocorre em cinco dos seis
pontos (com exceção do ponto 114 – Paranaíba – localizado próximo
à fronteira política do MS com SP, MG e GO). Em GO, a variante é
registrada apenas em um ponto no sul do estado (124 – Jataí) e, em
território mato-grossense, esse item lexical está amplamente difundido,
ocorrendo, inclusive, nos pontos de controle (103 – Aripuanã e 104 – São
Félix do Araguaia), localizados no extremo norte do estado.
128
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
A área correspondente ao uso da variante bolitana, Região
Sul, contempla quase todo o RS, principalmente uma porção central,
adentrando SC e PR pela região oeste desses estados, ou seja, pela área
fronteiriça do Brasil com a Argentina e o Paraguai.
FIGURA 11 – Distribuição diatópica das variantes lexicais
para a questão 156 do QSL
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Ferreira (2004) e Houaiss e Villar (2001) registram bolita como
uma forma vinda do espanhol platino típica do RS na acepção da bolinha
de gude. Entretanto, os trabalhos geolinguísticos têm mostrado que
não se trata de um regionalismo/brasileirismo exclusivo do RS, como
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
129
airmam os lexicógrafos. Na carta linguística 109 do Atlas Linguístico
da Mesorregião Sudeste do Mato Grosso (CUBA, 2009), encontra-se
registrada em 100% das respostas. O Atlas Linguístico do Mato Grosso
do Sul (OLIVEIRA, 2007) também documenta os designativos para o
referente. Observa-se, desse modo, a ampla distribuição desse item pelo
estado, não ocorrendo, nesse atlas, também na área correspondente à
fronteira do MS com MG e GO, assim como no corpus do ALiB (FIG. 11).
Reis (2006), na carta 218, apresenta a distribuição das variantes
para bolita em Ponta Porã/MS, cidade localizada na fronteira do Brasil
com o Paraguai. Nesse trabalho, encontra-se a variante como forma mais
produtiva na maioria dos pontos linguísticos, concorrendo apenas em
três localidades com a variante bola/bolinha de gude.
No Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil
(ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011), a carta linguística 302
documenta as variantes lexicais para a bolinha de gude. Na referida carta,
veriica-se que a área correspondente à bolita coincide, em grande parte,
com a documentada pelo ALiB, sobretudo no que tange à faixa oeste de
SC e PR. Bolita ocorre no centro e oeste do RS, caracterizando-se como
a variante majoritária. À medida que se avança no território de SC e do
PR, a representatividade diminui, igurando na área fronteiriça desses
dois últimos estados com a Argentina e o Paraguai (FIG. 12).
130
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
FIGURA 12 – Arealidade gradual de bolita e variantes morfofonêmicas
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Esse panorama geolinguístico revela traços de empréstimos
lexicais do português com línguas de contato fronteiriço, no caso o
espanhol. No Dicionário da Real Academia Española (2001), bolita
apresenta uma remissão à forma utilizada na Argentina, canica, cujas
acepções são “Juego de niños que se hace con bolas pequeñas de barro,
vidrio u otra materia dura” ou mesmo, “cada una de estas bolas”. De
acordo com o DRAE (2001), o vocábulo canica vem do francês canique,
que, por sua vez, é originado do neerlandês kinniker, derivado do verbo
knikkerr, que signiica quebrar, romper.
Ou seja, a forma bolita no português evidencia traços das
línguas em contato nessa região do país. Nem Houaiss e Villar (2001)
nem Ferreira (2004) apresentam a datação desse vocábulo na língua
portuguesa, porém constata-se que a variante faz parte da norma lexical
da região Sul e dos estados do MS e MT, principalmente na região de
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
131
fronteira desses estados com países latino-americanos, embora também
possa ocorrer em outros estados. No caso do PR, SC e RS, no contato
com a Argentina e Uruguai, e no MS e MT, no contato com a Bolívia
e o Paraguai. A Figura 13 apresenta uma carta linguística em que se
identiicam as áreas de bolinha de gude e bolita.
FIGURA 13 – Arealidade das variantes bola de gude e bolita
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Observa-se uma ampla área lexical para bolinha de gude (e
formas agrupadas), compreendendo a faixa leste do território investigado
correspondente aos territórios de SP, MG, grande parte de GO, noroeste
do MS e grande parte do PR e SC. Já a porção oeste do território apresenta
dois panoramas: (i) uma faixa territorial, correspondente à cor roxa, que
revela linhas de heteroléxica, delimitando a coocorrência das duas formas
(bolinha de gude e bolita). Essas duas variantes são indistintamente
132
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
utilizadas em grande parte do território do MT e MS, no oeste do PR e SC
e no noroeste, nordeste e extremo sul do RS; (ii) áreas que correspondem
às isoléxicas de bolita, ou seja, em que ocorre somente esse item,
compreendendo o RS, numa faixa que percorre do sudoeste desse estado,
adentra o interior e chega ao norte gaúcho. No MS, essa variante restringese às redondezas de Ponta Porã – ponto 117. No MT, apresenta-se em
três regiões: no ponto 111 – Alto Araguaia – fronteira com MS e GO; nos
pontos 108 (Cuiabá) – Centro-sul do estado – e 110 (Cáceres), no sudoeste
matogrossense; e no ponto de controle 103 (Aripuanã), localizado fora
da área do subfalar sulista, no noroeste do estado.
Nos limites deste artigo, não são abordadas as demais variantes,
mas os dados evidenciam heterogeneidade linguística dentro do território
investigado e destacam, novamente, a existência de dois falares: um paulista
(bolinha de gude) e o sulista (bolita). O falar paulista distribui-se na parte
setentrional da divisão de Nascentes (1953). Compreende o estado de SP,
sul de MG, centro e interior de GO, além do noroeste e centro do PR, onde
ocorre, predominantemente, a forma padrão: bola/bolinha de gude. O
falar sulista, por sua vez, está no RS, de onde, por um corredor lateral do
oeste catarinense e paranaense, pode atingir os estados do MS e MT. Essa
distribuição pode ser justiicada pelos luxos migratórios dos gaúchos rumo
às novas fronteiras agrícolas do Centro-Oeste. Para esse item especíico,
esse falar está caracterizado pelo contato do português com outras línguas,
no caso, o espanhol. Os limites desses falares têm-se-mostrado luidos, e
cabe notar que cada um deles apresenta outras áreas lexicais.
4.4 Menino/guri
A questão 132 do QSL, que objetiva documentar as variantes para
a criança de 5 a 10 anos do sexo masculino, apresenta oito variantes,
além de formas inadequadas e abstenção de resposta.
Do conjunto das respostas, são considerados na mesma categoria
os itens correspondentes às variantes com a lexão de diminutivo:
moleque/molequinho; guri/gurizinho, garoto/garotinho, piá/piazinho. As
formas rapazinho/rapazote também correspondem à mesma variante, e
os itens lexicais pirralho, furete e fedelho são considerados como formas
inadequadas, uma vez que iguraram como segunda ou terceira resposta
na fala de quatro informantes e não são difundidas, salvo em situações
de interlocução para acentuar desprezo e características disfêmicas em
relação à criança.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
133
A variante mais produtiva, menino, representa 38,55% do corpus,
seguida por moleque (20,14%), guri (17,15%), garoto (10,47%) e piá
(9,55%). Em menor índice, encontram-se pivete (1,84%), rapazinho
(1,73%) e, com menos de 1% de produtividade, ocorrem “formas
inadequadas” (0,46%) e a hápaxlegomena, bambino, com 0,12% de
representatividade.
A Figura 14 apresenta a distribuição diatópica das nove formas,
mostrando ampla distribuição da variante menino, presente em quase
todas as localidades, com exceção de três cidades gaúchas (ponto 236,
Passo Fundo; 247, Santana do Livramento; e 249, São José do Norte) e
um município mato-grossense: 105, Diamantino. Nesta carta, observa-se
maior concentração de moleque no estado de SP, estendendo-se para MG
e GO. Por outro lado, a forma guri está amplamente distribuída pelo RS,
adentrando o MS e MT. No PR e SC, nota-se maior distribuição de piá.
FIGURA 14 – Distribuição diatópica das variantes lexicais
para a questão 132 do QSL
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
134
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
Quanto à variante moleque, segunda forma mais produtiva,
observa-se que esse item apresenta-se com índices percentuais
diferenciados (FIG. 15), obtendo baixa produtividade no MT e,
principalmente, no RS, aparecendo com maior concentração no território
paulista. Observa-se que o índice de 100% de produtividade esteve em
um ponto do PR (208 – Nova Londrina), em uma localidade mineira
(147 – Poços de Caldas) e em seis localidades paulistas (152 – São José
do Rio Preto, 157 – Ribeirão Preto, 166 – Marília, 177 – Itapetininga,
178 – Sorocaba e 183 – Itanhaém). Na maior parte do território paulista,
moleque igura com 75% atingindo, sobretudo, o noroeste do PR, com o
mesmo percentual, e uma faixa central de SC que vai do ponto 225 (Porto
União) ao 229 (Concórdia). A variante moleque irradia-se também em
uma longa faixa territorial do sul de MG, nos estados do MS e MT com
50% e atinge 25% de produtividade nas regiões mais distantes em relação
ao estado de SP, por exemplo, localidades gaúchas e pontos situados ao
norte do MS, MT e GO.
FIGURA 15 – Arealidade gradual da variante moleque/molequinho
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
135
Nas cartas 270 e 271 do ALERS (ALTENHOFEN; KLASSMAN,
2011), encontra-se moleque como o quarto item da legenda, não se
constituindo como uma forma tão produtiva, o que é compensado pela
ocorrência de variantes regionais nos estados do Sul.
Romano e Seabra (2014a) conirmam que o item lexical evidencia
a inluência das línguas africanas no léxico do português. Cunha (1986,
p. 528) registra que esse vocábulo veio do quimbundo mu’leke, para
designar o “menino”, “rapazote”, com datação na língua portuguesa de
1731. Ferreira (2004) apresenta dez acepções para o vocábulo, entre as
quais igura “Menino de pouca idade” (FERREIRA, 2004). Houaiss e
Villar (2001), por sua vez, apresentam 17 acepções para “moleque”, das
quais 13 são para emprego como substantivo masculino e quatro como
adjetivos. Dessa última obra, merecem destaque as acepções: “1. menino
novo, de raça negra ou mista. 2. garoto de pouca idade. 3. menino criado
à solta; menino de rua. 4. garoto travesso” (HOUAISS; VILLAR, 2001).
A terceira variante mais produtiva é guri, forma majoritária
no RS (48,57%), o que compensa a baixa produtividade de moleque
nas cidades gaúchas. Guri concentra-se, além do RS, nos MS (36%)
e MT37,1%. Nos demais estados, há decréscimo na produtividade da
variante, representando 17,57% das respostas dos catarinenses e 16,45%
dos paranaenses. Em SP, MG e GO, a ocorrência do item é pequena
(abaixo de 5%).
A Figura 16 apresenta a distribuição do item no território,
revelando que essa variante se irradia a partir do território gaúcho, e,
por um corredor oeste catarinense, atinge o MS e o MT e, a partir deste,
chega ao sudoeste goiano reletindo-se em uma localidade do Triângulo
Mineiro – ponto 137 (Campina Verde). No PR, guri está em quase todo o
estado, exceto localidades do noroeste paranaense, região de colonização
mais recente sob inluência de mineiros e paulistas na primeira metade
do século XX.
136
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
FIGURA 16 – Arealidade gradual de guri/gurizinho
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
Por outro lado, essa variante relete-se no estado de SP na região
limítrofe com o PR, além de se difundir para as localidades situadas no
Vale do Ribeira, conforme relatam Romano e Seabra (2014a, p. 485):
a presença da variante “guri” em determinadas localidades
paulistas, tais como Itararé, Itapetininga e Sorocaba, pode
ser explicada pela inluência vinda do sul do país, haja vista
que algumas dessas localidades eram pontos pertencentes
à antiga rota proveniente do Caminho das Tropas, pela
consequência do Tropeirismo.
A presença de guri no MS e no MT, ainda de acordo com esses
autores, revela traços dos movimentos recentes de migração de gaúchos
que deixaram marcas no léxico da região, bem como inluências na
formação da cultura local. Esse movimento decorre das novas fronteiras
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
137
agrícolas na região Centro-Oeste, sobretudo a partir da década de 1970,
com o incentivo governamental.
A variante piá também é mais frequente na Região Sul,
principalmente, no PR. Em SP, MT e MS, a frequência desse item é
pequena, ao passo que, no PR, piá ocorre como variante majoritária
(28,95%), seguindo-se o RS (18,1%) e SC (13,51%). Na Figura 17,
observa-se a distribuição desse item na constituição de uma ampla área
lexical na Região Sul. Entretanto, essa área não contempla algumas
cidades gaúchas: Erechim (235) e Passo Fundo (236), no norte gaúcho,
além dos pontos 245 – Uruguaiana (sudoeste) e 249 – São José do Norte
(litoral sul). Observa-se a ausência de piá no nordeste do estado (ponto
244 – Osório), no litoral catarinense, pontos – 230 (Florianópolis), 232
(Tubarão), 233 (Criciúma), além do ponto 225 (São Francisco do Sul),
no nordeste de SC.
FIGURA 17 – Arealidade gradual da variante piá
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
A distribuição de piá não contempla integralmente o noroeste
paranaense, de colonização mineira, expandindo-se, no entanto, para
uma localidade sul-mato-grossense – 117 (Ponta Porã) e cidades paulistas
localizadas no Vale do Ribeira. Assim como ocorre com a variante guri,
a presença de piá nesta área de SP evidencia traços da história social das
localidades, uma vez que essa forma típica da Região Sul, possivelmente,
teria sido trazida para essa região paulista por meio dos tropeiros, durante
o ciclo do Tropeirismo, persistindo até hoje no vocabulário ativo dos
naturais dessa região paulista.
O ALPR (AGUILERA, 1994) e o ALPR II (ALTINO, 2007)
não apresentam cartas linguísticas que documentem os designativos
para o referente. O ALERS (ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011),
entretanto, registra, nas cartas 270 e 271, as principais variantes e outras
denominações, coincidindo com os dados do ALiB.
Conforme Romano e Seabra (2014a), tanto a variante guri quanto
piá reiteram a inluência das línguas indígenas no português. De acordo
com Cunha (2010), a forma lexical “guri” veio do tupi üï’ri, que designa
o “bagre novo” (tipo de peixe), por extensão de sentido, a criança. O
etimologista remete o usuário ao verbete “guiri - ‘sm bagre’ / curi 1587,
guori datada, aproximadamente, de 1631”. Houaiss e Villar (2001), em
contrapartida, registram a datação de 1890. Para os lexicógrafos, trata-se
de um regionalismo brasileiro para designar o “menino”. Ferreira (2004),
apesar de apresentar a mesma acepção, traz outra etimologia. Segundo
o dicionarista, o vocábulo “guri” também vem do tupi, porém com o
sentido de pequeno, não fazendo alusão ao peixe.
Piá, de acordo com Houaiss e Villar (2001), refere-se ao menino
indígena e, analogamente, é empregado para denominar o menino mestiço
de indígena com branco ou mesmo qualquer criança do sexo masculino.
Segundo esses lexicógrafos, trata-se de um regionalismo de SC e RS
para designar o peão menor de idade que não é de raça branca. Ferreira
(2004) traz para piá a informação de que se trata de um brasileirismo para
designar o índio jovem ou mestiço jovem de branco com índio, remetendo
ao verbete “menino”, o que revela tratar-se, pois, de um sinônimo. Em
SC e RS é uma variante usada para designar “qualquer menor que não é
branco e trabalha como peão de estância” (FERREIRA, 2004), ou seja,
a mesma acepção dada por Houaiss e Villar (2001).
Voltando-se à distribuição diatópica, observa-se uma ampla
área na Região Sul em que ocorrem, indistintamente, as variantes guri
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018
139
e piá (FIG. 18), o que ratiica o caráter regional atribuído a esses itens.
Guri apresenta-se como forma exclusiva em áreas isoladas em SP, MG
e GO. Em grande parte do território do MS e MT, observa-se a ampla
distribuição desse item. Piá, por sua vez, não apresenta distribuição
exclusiva no território, não formando grandes áreas lexicais, uma vez
que ocorre isoladamente em pontos do RS, SC, PR e SP.
Observando-se o comportamento e a distribuição de três variantes
lexicais: moleque, guri e piá, podem-se fazer algumas considerações
acerca das áreas em que ocorrem, caracterizando dois padrões de variação
lexical: um de inluência paulista, denominado falar paulista, em que
se veriica, entre outras variantes, a maciça presença de moleque, que se
expande para outros estados como MG e GO; outro, de inluência sul-riograndense e paranaense, denominado falar sulista, em que se observa a
difusão das formas guri e piá, pela Região Sul, com relexos no MS e MT.
Cumpre airmar que os limites desses dois grandes falares são luidos,
ora apresentando maior número de heteroléxicas, ora menor número.
FIGURA 18 – Arealidade das variantes guri/gurizinho e piá/piazinho
Fonte: Banco de dados do ALiB (2015)
140
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5 O falar paulista e o falar sulista
A análise do corpus dá indícios da existência de dois grandes
falares na área geográica do subfalar sulista: o falar paulista e o falar
sulista, conforme se sintetiza na Figura 19.
FIGURA19 – Localização geográica dos falares sulista e paulista
Fonte: Elaborado pelo autor
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O falar paulista difunde-se a partir do estado de SP, com
inluência na região norte do PR, oeste do MS, sudoeste e interior de
GO, sul de MG e Triângulo Mineiro. Esse falar alcança os pontos de
controle, não se limitando à área geográica do subfalar sulista deinida
por Nascentes (1953) e diferencia-se da região meridional do território.
Portanto, sob o ponto de vista do léxico, considerar o estado de SP e
adjacências no mesmo grupo que o RS, possivelmente seria um equívoco,
tendo em vista aspectos sócio-históricos envolvidos no processo de
ocupação e povoamento do território, o que se relete na variação lexical
das questões abordadas.
Na amostra selecionada, o falar paulista caracteriza-se por
uma maior homogeneidade lexical, revelando um menor número de
coocorrência de variantes. Na área do falar paulista, há o predomínio das
formas mais produtivas: córrego, geleia, bolinha de gude, menino, moleque
que, à medida que avançam para a porção sul do país, apresentam uma
diminuição em sua produtividade. Esse falar paulista, provavelmente, tem
suas origens no elemento bandeirante, homem em geral de origem lusa que,
em processo de miscigenação constante com o índio e, posteriormente,
com o negro, difundiu a língua portuguesa para o interior do país.
Os limites que deinem o falar paulista são virtuais e luidos,
ora alcançando toda a região Centro-Oeste, ora adentrando o PR, e, por
um corredor central em SC (região dos Campos de Lajes), atingindo o
norte do RS e, em alguns casos, expandindo-se ao sudoeste paranaense
e oeste catarinense.
O falar sulista, por sua vez, localiza-se principalmente na porção
meridional do Brasil, contemplando o RS e, por um corredor do oeste
catarinense e sudoeste paranaense, atinge o MS. Esse corredor lateral em
SC e PR já fora identiicado sob o ponto de vista fonético e morfossintático,
inicialmente, por Koch (2000), posteriormente, por Altenhofen (2005)
e, mais recentemente, sob a perspectiva lexical, por Romano e Aguilera
(2014). Trata-se, portanto, de um falar de inluência sul-rio-grandense,
que revela o contato do português com o espanhol em áreas de fronteira,
e também de contato com línguas de imigração, o que se evidencia por
variantes presentes na norma lexical, como sanga, arroio, chimia, bolita.
Esse falar também apresenta variantes que revelam o contato do
português com o tupi, exempliicado por guri e piá. No tocante a esses
itens, o falar sulista alcança o MT e MS, em consequência de correntes
migratórias mais recentes. Os limites desse falar também são virtuais e
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luidos e, além de se expandir para o Centro-Oeste, adentra SC e, por um
corredor central do PR, passando em localidades como Lapa e Piraí do
Sul, atinge cidades paulistas localizadas no Vale do Ribeira até chegar
a Itapetininga e Sorocaba. Essa coniguração diatópica pode evidenciar
traços da história social dessas localidades, uma vez que revela rastros do
tropeirismo, ou seja, os tropeiros gaúchos, além de heranças deixadas na
cultura material de determinadas cidades, deixaram também marcas na
norma lexical que até hoje ecoam no vocabulário ativo de informantes.
Além desses dois falares, há indícios de subáreas lexicais no
território do PR e SC, com a presença de itens como valeta, formas
genéricas para a geleia, musse, clica, búrica, piá, que merecem atenção
mais detalhada. São denominadas subáreas pelo fato de ora se identiicarem
com o falar paulista, ora com o falar sulista, igurando em uma área
geográica comum aos dois grandes falares. Nos limites desta análise, sob
o ponto de vista lexical, este estudo vem ratiicar que, atualmente, o mapa
dialetal do Brasil estabelecido por Nascentes (1953) merece um olhar mais
atento, haja vista a heterogeneidade lexical atestada nessa região do país.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Retomadas anafóricas de objeto direto
em português brasileiro escrito
Anaphoric direct object in written Brazilian Portuguese
Gabriel de Ávila Othero
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS
gabriel.othero@ufrgs.br
Camila Schwanke
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
camilaschwanke@gmail.com
Resumo: Os clíticos acusativos de 3ª pessoa estão em desuso na
fala vernacular em português brasileiro (PB), cedendo espaço para
outras duas estratégias de retomada anafórica na função de objeto
direto: (a) o pronome pleno (‘ele’, ‘ela’) e (b) uma categoria vazia (cf.
DUARTE, 1989, 1993; CYRINO, 1997, 2003). A escolha pela retomada
anafórica de objeto com pronome ou categoria vazia não é aleatória. A
literatura corrente sobre o assunto chama a atenção para o fato de que
há uma tendência forte à ocorrência de um fenômeno de distribuição
complementar, condicionada por traços semânticos do referente sendo
retomado. Há duas hipóteses principais para explicar o fenômeno: (i)
a hipótese dos traços de animacidade e especiicidade do referente
(CYRINO, 1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002, entre outros)
e (ii) a hipótese do gênero semântico (CREUS; MENUZZI, 2004). Com
o objetivo de veriicar se essas estratégias relativamente inovadoras e
mais comuns em língua falada, a saber, pronomes plenos e objetos nulos,
já estão consagradas, ou ao menos presentes de maneira signiicativa em
língua escrita, este trabalho se dedica a uma análise de corpora de jornais
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.147-185
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
populares e de redações escolares. Nossos resultados mostram que o
clítico tem a tendência de se manter no discurso escrito. Com relação ao
uso do objeto nulo, a hipótese do gênero semântico parece promissora,
pois explica o fenômeno de retomada anafórica de uma forma mais
econômica, por meio de um único traço, e de uma forma mais natural,
pois diz respeito a um processo de concordância entre antecedente e
forma anafórica.
Palavras-chave: retomada anafórica; objeto nulo; português brasileiro;
língua escrita.
Abstract: The accusative clitics for the third person have fallen into
disuse in spoken Brazilian Portuguese giving room to two strategies
to recover an anaphoric element in a direct object position for the
third person: (a) the use of the ‘full pronoun’ and (b) the use of an
empty category. The choice of using a pronoun or a null object is not
random. The literature points to the fact that there is a very strong
tendency towards a phenomenon of complementary distribution, which
is constrained by semantic and discourse features of the referent being
recovered. There are two main hypotheses to explain the phenomenon:
(i) the features of animacy and speciicity of the referent (cf. CYRINO,
1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002 among others) and
(ii) the semantic gender feature (CREUS; MENUZZI, 2004).In order to
verify whether these relatively innovative strategies, i.e. full pronouns
and null objects, have already been established, or at least are present
in written standard language in a signiicant way, we analyze corpora
from popular newspapers and from school essays. Our results show that
the clitic pronoun remains in written discourse. When it comes to the
null object, the assumption of semantic gender feature seems promising,
because it explains the anaphoric recovery phenomenon in an economic
way, from a single feature, and in a more natural way, as it concerns an
agreement process between the preceding element and the anaphoric
form.
Keywords: anaphor; null object; Brazilian Portuguese; written language.
Recebido em 18 de janeiro de 2017.
Aprovado em 24 de abril de 2017.
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1 Introdução
Em português brasileiro (PB), a retomada anafórica de um
referente de 3ª pessoa na função de objeto direto pode ser realizada
(i) por pronome clítico (‘o’, ‘a’), (ii) por pronome pleno (‘ele’, ‘ela’) ou
(iii) por uma categoria vazia (um objeto nulo, ON), como demonstramos
nos exemplos a seguir.1
(1) As botas dos meninos não davam conta de protegê-los.
(2) Um ladrão tinha entrado [...] Tranquei ele como a um rato.
(3) Ela mostrou ferimentos no corpo e atribuiu Ø ao marido.
Enquanto a primeira estratégia (a retomada com o clítico) é
marca de discurso monitorado em PB, as duas últimas estratégias são
relativamente inovadoras e mais comuns em língua falada ou escrita não
monitorada (CYRINO, 1994/1997; MONTEIRO, 1994; SCHWENTER;
SILVA, 2002; OTHERO; CARDOZO, 2017). Em estudos diacrônicos do
português, pesquisadores como Tarallo (1983), Duarte (1989) e Nunes
(1996) mostraram que os clíticos estão em desuso e que, em seu lugar,
o ON e o pronome pleno são as principais estratégias para a retomada
anafórica de objeto direto de terceira pessoa na gramática do PB.
Entretanto, a escolha entre objeto nulo vs. pronome não se
dá de forma aleatória. Como diversos trabalhos na literatura sobre
o assunto demonstram (cf. referências citadas no parágrafo anterior,
por exemplo), há uma tendência muito forte de este ser um fenômeno
de distribuição complementar (ou que está se encaminhando para a
distribuição complementar – cf. OTHERO et al., 2016), condicionado
por traços semântico-pragmáticos do antecedente retomado. Na literatura
sobre o ON, encontramos, basicamente, duas hipóteses em relação aos
traços semântico-pragmáticos do antecedente que funcionariam como
condicionadores da escolha entre pronomes vs. ONs na sua retomada
1
Todos os exemplos que apresentamos no texto foram extraídos do nosso corpora.
Estamos considerando aqui apenas a distinção entre pronomes e categoria vazia na
retomada do objeto; um referente pode também ser retomado, evidentemente, por um
SN\DP “completo”, como em “Encontrei a Maria, mas não falei com essa moça sobre
suas faltas” (cf., por exemplo, OLIVEIRA, 2007; VIEIRA-PINTO; COELHO, 2016).
150
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
anafórica, a saber, a hipótese dos traços de animacidade e especiicidade
(DUARTE, 1989; CYRINO, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2003) e
a hipótese do gênero semântico (CREUS; MENUZZI, 2004, PIVETTA,
2015; AYRES, 2016, OTHERO et al., 2016).
A fim de verificar se essas duas estratégias relativamente
inovadoras e mais comuns em língua falada (i.e. ON e pronome pleno
em função de objetos diretos) já estão presentes de maneira signiicativa
em língua escrita padrão, nosso trabalho traz uma análise de corpora
de jornais populares – Jornal Diário Gaúcho e Jornal Massa! – e de
88 redações escolares infantis de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental,
também para investigar como se dá a retomada anafórica no processo
de desenvolvimento do PB escrito e do efeito da escolarização sobre o
processo.
Nossa hipótese é de que o uso de ONs já deve aparecer na escrita,
ainda que os clíticos representem a principal estratégia de retomada
anafórica. Buscamos analisar nossos dados apoiados em duas hipóteses
existentes na literatura sobre o condicionamento da retomada anafórica
de objetos diretos em PB, acreditando que a tese do traço de gênero
semântico deve explicar o fenômeno da distribuição entre categoria
vazia vs. pronome de maneira mais adequada ou mais econômica. Nesse
sentido, quando o antecedente tiver gênero semântico, será retomado
por um pronome; caso contrário, será preferencialmente retomado por
um ON.
Organizamos o texto da seguinte maneira: na seção1,
caracterizamos o objeto nulo e discorremos sobre os tipos de retomada
anafórica de objeto direto de 3ª pessoa em PB. Além disso, apresentamos
as duas hipóteses encontradas na literatura em relação aos traços
semântico-pragmáticos que parecem ser condicionadores da escolha
entre pronomes vs. ONs. Na seção 2, apresentamos os corpora utilizados,
explicamos nossa metodologia e analisamos os resultados encontrados.
Finalmente, dedicamos a terceira seção à discussão de alguns casos
interessantes, que não “se comportam” de acordo com as previsões da
hipótese do gênero semântico e, além disso, observamos princípios
discursivos particulares que exercem inluência sobre essas retomadas
anafóricas. Em seguida, tecemos nossas considerações inais.
151
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
2 Objeto nulo e retomada anafórica
A retomada anafórica ocorre quando fazemos referência a um
elemento do discurso já mencionado previamente. Em PB, a retomada
anafórica de um referente de 3ª pessoa na função de objeto direto pode
ser realizada por pronome clítico (‘o’, ‘a’), por pronome pleno (‘ele’,
‘ela’) ou por uma categoria vazia (um ON), como vimos, anteriormente,
nos exemplos (1) a (3) (ver também observação da nota 2).
Cyrino (1994/1997), em seu clássico trabalho sobre ON em
PB mostrou que, desde o século XIX, podemos atestar uma mudança
diacrônica em relação ao quadro pronominal brasileiro. Os clíticos
acusativos de terceira pessoa (‘o’, ‘a’) estão em um processo de declínio2
e vêm cedendo espaço para os pronomes plenos (‘ele’, ‘ela’) e para a
estratégia de retomada anafórica com objeto nulo.3 Conforme Cyrino,
o objeto nulo, isto é, a possibilidade de realização de um elemento
vazio, foneticamente nulo, na função de objeto, sempre foi possível em
português, mas passou por um crescimento signiicativo nos últimos
séculos, como podemos observar nas seguintes tabelas:
TABELA 1 – Objetos nulos no tempo
1ª metade do 1ª metade do 2ª metade do 1ª metade do 2ª metade do
século XVIII século XIX
século XIX
século XX
século XX
Objetos nulos
(%)
14,2%
Século XVI
41,6%
23,2%
Século XVII Século XVIII
69,5%
81,1%
Século XIX
Século XX
Formas nulas
(%)
10,7%
12,6%
18,5%
45%
79,1%
Formas
Preenchidas
(%)
89,3%
87,4%
81,5%
55%
20,9%
Fonte: Cyrino, 1993, p. 165.
2
3
Cf. também Tarallo (1983).
A esse respeito, ver também Monteiro (1994) e Bagno (2011).
152
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Os dados de Cyrino (1994/1997) foram coletados a partir de
textos escritos de peças teatrais. A autora, com o intuito de procurar
textos que representassem o português oral, optou pelo gênero comédia
ou por autores considerados “populares” pela literatura, visto que suas
obras provavelmente reletiam a linguagem popular da época.4
Como se percebe na Tabela 1 a queda do pronome clítico parece
estar ligada ao fenômeno do objeto nulo, uma vez que as formas nulas na
função de objeto direto cresceram signiicativamente (de 10,7% no século
XVI para 79,1% no século XX), ao passo que as formas preenchidas
caíram para apenas 20,9% no século XX, o que pode ser observado
também no Gráico 1, a seguir.
GRÁFICO 1 – Correlação entre pronomes e objetos nulos ao longo do tempo
Fonte: Cyrino, 1994/1997.
Para Creus e Menuzzi (2004, p. 5), a mudança mais signiicativa
é que os
ONs passaram de praticamente inexistentes a praticamente
categóricos do século XVIII ao XX, período de
reorganização da gramática do PB em relação ao sistema
Constituem o corpus do trabalho de Cyrino as seguintes peças: “Rua Alegre, 12”
(1940), “O Pagador de Promessas” (1959), “Um Grito Parado no Ar” (1973) e “No
Coração do Brasil” (1992).
4
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153
de anáfora pronominal de objeto. O aumento do uso de
objeto nulo como estratégia preferencial de retomada
anafórica indica [...] sinal de reanálise radical num curto
período de tempo.
O fenômeno do objeto nulo, isto é, “o fato de podermos nos
referir a uma categoria apresentada anteriormente na situação discursiva
mediante uma categoria foneticamente nula na posição de objeto”
(MILESKI, 2014, p. 2) é considerado um dos traços que distingue o PB
das demais línguas românicas (cf. CYRINO, 1993; CYRINO; MATOS,
2016, por exemplo).
Poderíamos pensar que as duas estratégias inovadoras de
substituição do pronome clítico (ON e pronome pleno) encontramse em variação livre, mas diversos trabalhos na literatura sobre o
assunto chamam a atenção para o fato de que há uma tendência,
não categórica, mas muito forte, à ocorrência de um fenômeno de
distribuição complementar. Essa distribuição estaria condicionada por
traços semânticos e discursivos do referente retomado. Para alguns
(CYRINO, 1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002, etc.), os
traços de animacidade e especiicidade do antecedente explicariam a
distribuição. Alternativamente há a hipótese do gênero semântico (cf.
CREUS; MENUZZI, 2004) como condicionador do uso de pronomes
plenos e ONs em PB. A seguir, veremos mais detalhadamente esses traços
e as hipóteses relacionadas a eles.
2.1 Os traços semântico-pragmáticos dos antecedentes
Como mencionamos, a escolha do falante entre pronome vs.
objeto nulo não se dá de forma aleatória: os traços semântico-pragmáticos
do referente parecem condicionar o tipo de retomada anafórica utilizado.
A seguir, deiniremos os traços de animacidade, especiicidade e gênero
semântico.
2.1.1 Animacidade e especiicidade
O traço de animacidade é um conceito semântico que diz respeito
ao fato de os referentes serem animados ou não.
154
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Animacidade é uma noção semântica que envolve um
conjunto de elementos agrupados por apresentarem a
característica de serem animados, o que é diferente do
traço humano. O conjunto dos elementos que são animados
inclui, além dos seres humanos, os demais seres, que,
assim como a espécie humana, apresentam algum tipo
de vida, como gatos, cachorros, insetos, peixes, etc.
(CASAGRANDE, 2007, p. 52)
Exemplos:
(4) O cachorro apareceu um dia, sem que ninguém o trouxesse, e
começou a dar voltas por todos os cantos. [+a]
(5) Não deixe água parada em pratos de plantas. Coloque areia ou
troque a água e lave-os com escova duas vezes por semana. [-a]
Já o traço de especiicidade é a propriedade de o referente
ter uma única identiicação no discurso. Conforme Cyrino (c.p. apud
PIVETTA, 2015, p. 57), “um objeto direto é especíico se, de acordo com
a perspectiva do falante, o referente tem uma única identiicação. Caso
não haja um único referente, não é especíico”. Enquanto a animacidade
é uma característica semântica, inerente ao referente, a especiicidade,
por sua vez, é característica “discursiva”, i.e. só conseguimos deinir se
o referente é especíico ou não observando o contexto discursivo:
(6) Ela vê o ilho e corre para ampará-lo. [+e]
(7) A tevê é atrativa e, sabendo usar, pode ter vantagens. [-e]
Para Cyrino (1994/1997), Matos e Cyrino (2001), Cyrino e
Matos (2002) e Schwenter e Silva (2002, 2003), entre outros, os traços
de animacidade e especiicidade são os responsáveis por condicionar o
uso entre pronome e ON na retomada anafórica em função de objeto em
PB, de modo que antecedentes com os traços [+animado] e [+especíico]
tendem a ser retomados por pronomes, enquanto antecedentes com
os traços [-animado] e [-especíico] tendem a ser retomados por uma
categoria vazia (um ON). A interação entre esses traços, i.e. casos [+a,
-e] e [-a, +e], entretanto, costuma ser problemática, com resultados não
polarizados. Voltemos aos exemplos (6) e (7):
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155
(6) Ela vê o ilho e corre para ampará-lo/??Ø. [+animado, +especíico]
(7) A tevê é atrativa e, sabendo usar ??ela/Ø, pode ter vantagens.
[-animado, -especíico]
Em (6), o antecedente é “o ilho” [+a, +e], e, por isso, parece
mais natural retomá-lo utilizando o pronome clítico “lo”;5 já em (7), o
antecedente tem os traços [-a, -e], e a tendência mais natural aqui é, a
nosso ver, a de se fazer a retomada por um objeto nulo.6
Schwenter e Silva (2003) realizaram uma análise do corpus do
PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua)7 a im de testar a
hipótese de que os traços de animacidade e especiicidade inluenciam no
tipo de retomada anafórica de objetos diretos de terceira pessoa. Alguns
de seus resultados principais podem ser visualizados na Tabela 2.
TABELA 2 – Objeto nulo vs. pronome no corpus do PEUL
Traços
ON
Pronomes
Total
+a,+e
50 (28,4%)
126 (71,6%)
176 (100%)
+a,-e
102 (89,5%)
12 (10,5%)
114 (100%)
-a,+e
151 (100%)
--------
151 (100%)
-a,-e
604 (97,9%)
13 (2,1%)
617 (100%)
Fonte: Schwenter e Silva, 2003, p. 108.
Os autores concluem que há uma diferença signiicativa entre os
antecedentes [+a, +e] e os [+a, -e]: 71,6% de preferência por pronomes
5
Na fala, o mais natural seria retomar o referente com um pronome pleno (‘ele’). Mas,
como nosso exemplo é de corpus escrito, o clítico é a opção preferida, como veremos
na próxima seção.
6
Apresentamos, nesses dois exemplos, nosso julgamento de aceitabilidade, com base
em nossa intuição, obviamente. Entretanto, testes de gramaticalidade e aceitabilidade
envolvendo o uso de pronomes e ONs na retomada anafórica já foram empregados
por Creus e Menuzzi (2004) e Othero et al. (2016), e os resultados apresentados ali
conirmam esses julgamentos.
7
Corpus compilado por pesquisadores da UFRJ que reúne ocorrências de português
falado no Rio de Janeiro no início dos anos de 1980. Foram utilizadas 1.250 ocorrências
(cf. SCHWENTER; SILVA, 2003, p. 106).
156
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
contra 89,5% de preferência por ON. Isso pode indicar que o traço
de especiicidade exerce alguma inluência sobre o de animacidade.
Por outro lado, a diferença entre os objetos diretos com antecedentes
[-a, +e] e [-a, -e] não é relevante, sugerindo não haver inluência da
especiicidade nessa distribuição. Assim, ainda segundo os autores, o
traço de animacidade é o principal condicionador a atuar sobre o objeto
direto anafórico, ao passo que a especiicidade, por sua vez, seria um
fator secundário, visto que os resultados não foram tão esclarecedores.
Para Duarte (1989) e Cyrino (1994/1997), o traço de animacidade
do antecedente exerce papel fundamental na distribuição de pronomes
plenos e ONs em PB. Cyrino (1994/1997) sustenta que o traço de
especiicidade também seria relevante, mas é o que menos polariza as
retomadas anafóricas entre ON e pronome, apesar de inluenciar na
escolha entre as duas formas. O fato é que a interação entre esses dois
traços ainda não é totalmente clara. Assim, não temos uma classe natural
opositiva clara, i.e., não podemos opor os antecedentes [+a] aos [-a];
tampouco os referentes com o traço [+e] podem se opor aos referentes
[-e]; nem a combinação entre esses dois traços parece explicar a história
toda.
Para resolver esse aparente problema na hipótese que envolve
os traços de animacidade e especiicidade do referente anafórico, Creus
e Menuzzi (2004) chamaram a atenção para o fato de que uma distinção
com base em um único traço semântico poderia explicar a escolha entre
pronomes e ONs: o traço de gênero semântico. É o que veremos a seguir.
2.1.2 Gênero Semântico
O traço de gênero semântico diz respeito à classiicação que
distingue substantivos que denotam seres sexuados de substantivos que
denotam seres não sexuados; ou, talvez de forma mais precisa, o traço
distingue substantivos que denotam sexo natural aparente, como homem,
mulher, professor, cachorro etc., de substantivos que não denotam sexo
natural aparente, como mesa, livro, vítima, cônjuge, boneco, tartaruga
etc. Referentes inanimados são marcados negativamente para esse
traço;8 substantivos animados, contudo, não têm necessariamente um
gênero semântico especíico: pessoa, habitante, estudante etc. Ou seja,
8
Contudo, como ressalta Ayres (2016), na fala de crianças, referentes inanimados podem
ter gênero semântico, como Barbie vs. Ken, BonecodoWoody, etc.
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157
alguns substantivos têm gênero gramatical, mas não gênero semântico
inerente9.A hipótese de Creus e Menuzzi (2004) é, basicamente, de que o
traço de gênero semântico do referente atua como gatilho essencial para
a retomada anafórica de objetos em terceira pessoa. Para eles,
É claro que, destes dois traços [animacidade e especiicidade], o que tem papel central é o de animacidade, já que
é ele que conigura as generalizações básicas do sistema;
o traço de especiicidade parece ser relevante, na verdade,
apenas para uma classe de antecedentes. Assim, parece-nos
que a explicação do sistema de anáfora de objeto em PB [...]
precisa identiicar no traço de animacidade aquele aspecto
essencial que, ao mesmo tempo que traça as generalizações
básicas, prevê também a possibilidade de alternativa para
os antecedentes animados não-especíicos. A nosso ver, o
aspecto fundamental do traço de animacidade é que ele está
associado com distinções de gênero semântico. (CREUS;
MENUZZI, 2004, p.7)
Assim, um único traço seria suiciente para explicar como ocorre
a retomada anafórica em PB, de maneira que, se o referente tem o traço
[+gs], i.e., tem gênero semântico identiicável, é preferencialmente
retomado por um pronome; caso contrário, a retomada anafórica tende
a ser feita com objeto nulo:
(8) A garota se irritou muito quando a mãe disse que iria levá-la ao
Conselho Tutelar.
(9) Juan teve uma ótima chance para matar logo o jogo, mas
desperdiçou Ø.
Em (8), “a garota” tem o traço [+gs], pois o falante “reconhece”
o gênero sexual a que pertence o ser denotado por esse referente (note
que o referente foi retomado por um pronome). Em (9), “uma ótima
chance” não tem gênero semântico, e a retomada anafórica foi feita por
uma categoria vazia. De acordo com a hipótese do gênero semântico, é
esse traço que determina a escolha entre o pronome e a categoria vazia
na realização do objeto direto anafórico. Do ponto de vista conceitual,
Creus e Menuzzi acreditam que essa hipótese é mais “natural” que a
9
Cf. Câmara Jr. (1959) para uma distinção entre gênero semântico e gênero gramatical.
158
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hipótese de animacidade e especiicidade, pelo fato de a opção entre um
ON e um pronome pleno se dar por uma questão de concordância entre
antecedente e forma anafórica: antecedentes com gênero semântico são
retomados preferencialmente por pronomes porque esses pronomes são
formas anafóricas especiicadas para gênero. Já os antecedentes sem
gênero semântico favorecem a retomada por objetos nulos porque ONs
são categorias não especiicadas para gênero. Dessa maneira, apenas um
traço (e não uma combinação de traços) seria suiciente para explicar
como ocorre a retomada anafórica em PB.
Passemos, agora, à apresentação dos corpora de análise e aos
resultados a que chegamos.
3 Corpora e análise dos dados
Nesta seção, falaremos sobre nossos corpora de língua escrita e
sobre nossa metodologia de análise, para, então, chegarmos aos resultados
obtidos. Dois dos corpora utilizados em nossa pesquisa fazem parte do
Projeto Por Popular, encampado na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), e o terceiro corpus é resultado do trabalho de Oliveira
(2007).
3.1 Corpora
O Projeto PorPopular (padrões do português popular escrito),
coordenado pela Profa. Dra. Maria José Bocorny Finatto (UFRGS), tem
o objetivo de organizar um corpus de jornais populares – destinados a
públicos de menor poder aquisitivo – da região Nordeste e Sul do Brasil
e disponibilizar o material para uso de pesquisadores. Atualmente, o
projeto contém textos do jornal popular Diário Gaúcho (DG) – publicado
em Porto Alegre (RS) – e do Jornal Massa!, o primeiro jornal popular
da Bahia.
Um dos objetivos do nosso trabalho é veriicar se as estratégias
relativamente inovadoras e mais comuns de retomadas anafóricas na
função de objeto direto em PB (pronomes plenos e objetos nulos) já
estão presentes de maneira signiicativa em língua escrita padrão. Por
isso, analisamos 250 textos do Jornal Diário Gaúcho (dos anos de 2008,
2010 e 2013) e 250 textos do Jornal Massa! (de 2012, 2014 e 2015),
totalizando 462 páginas. Nossa hipótese é que, por se tratar de textos com
estilo “popular” (destinado às classes C e D da população), os redatores
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
159
e jornalistas pudessem incorporar alguns elementos não estigmatizados,
mas distintivos da língua falada, tal como a retomada anafórica de objetos
por um elemento nulo ou mesmo por pronome pleno.10
Além disso, utilizamos também o corpus do trabalho de Oliveira
(2007), composto de 88 redações escolares de crianças de 1ª a 4ª série
do Ensino Fundamental de escolas de Curitiba, para averiguarmos como
se dá a retomada anafórica no processo de aprendizagem do português
brasileiro escrito.11 O objetivo de Oliveira (2007, p. 4) foi “abordar as
mudanças ocorridas no português do Brasil, especiicamente quanto à
alteração do paradigma pronominal para a posição de objeto direto”.
Para isso, a autora analisou um corpus de 88 textos escolares escritos por
crianças de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental entre os anos de 2002
e 2006 (22 textos de cada série).
Diferentemente do que foi feito em nosso trabalho, que tratou
apenas das retomadas com pronomes e objetos nulos, Oliveira se
ocupou das seguintes retomadas anafóricas de objeto direto: (i) objeto
nulo, (ii) pronome tônico ele/ela, (iii) SN anafórico pleno e (iv) clítico
acusativo de 3ª pessoa. Além dos traços de animacidade e especiicidade
do antecedente, a autora observou a natureza morfológica dos verbos
(tempos simples ou compostos), a posição do clítico (próclise ou ênclise)
e a série em que as crianças estavam. Seus resultados mostram que o ON é
a estratégia mais comum nas redações das crianças (52% das ocorrências
de retomada anafórica do objeto aconteceram com uma categoria vazia).
Conforme vemos na Tabela 3, o traço de animacidade é relevante
para o condicionamento do ON: 69% das ocorrências de ON aparecem
quando o antecedente apresenta o traço [-animado]. Entretanto, o traço
[+animado] também foi signiicativo nos contextos de ON: em 43% dos
casos de ocorrências de objeto nulo, o antecedente apresenta o traço
[+animado].
10
Cf. Kenedy (2016) sobre características da fala vernacular em PB e sua relação com
a escrita.
11
Agradecemos aqui à Profa. Dra. Maria José Finatto por ter gentilmente nos permitido
acesso ao corpus do projeto PorPopular e à Profa. Dra. Solange Mendes Oliveira por
ter-nos enviado uma lista contendo os dados detalhados de seu corpus.
160
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
TABELA 3 – Distribuição das variantes usadas
segundo o traço semântico do antecedente
Traço
Objeto nulo
Pronome tônico
SN anafórico
Clítico acusativo
Total
ocorrências
%
ocorrências
%
ocorrências
%
ocorrências
%
[+animado]
47/110
43
35/110
32
5/110
4
23/110
21
110
[-animado]
43/62
69
4/62
6
9/62
15
6/62
10
62
[outro]
1/2
50
0
0
0
0
1/2
50
2
TOTAL
91/174
52
39/174
23
14/174
8
30/174
17
174
Fonte: Oliveira, 2007, p. 18 (adaptado).
A pesquisa também mostra que o uso do pronome na função
de objeto começa a aparecer nas produções textuais dos alunos apenas
nas séries inais, indicando que o grau de escolarização da criança e
a normatização podem favorecer o uso de pronomes (especialmente
clíticos) em corpus escrito, como vemos na Tabela 4.
TABELA 4 – Ocorrências de pronomes clíticos de 3ª pessoa
em relação à série da criança
Clíticos acusativos de 3ª pessoa
Série
Nº de ocorrências
1ª
3 (8%)
2ª
8 (16%)
3ª
5 (11%)
4ª
14 (34%)
Total
30 (100%)
Fonte: Oliveira, 2007, p. 17 (adaptado).
Para Oliveira (2007, p. 23),
A quase não-ocorrência dessa variante nos dados da 1ª
série (8%), de crianças com 6 anos de idade, evidencia
que os clíticos de 3ª pessoa realmente não fazem parte
da gramática nuclear da língua e, sim, são adquiridos na
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
161
escola, por meio do ensino formal. Os dados do corpus
sugerem que a manutenção dessas formas no PB atual
deve-se exclusivamente à ação normativa da escola [...]
Isso indica também que o uso dos clíticos acusativos se dá
primeiramente na linguagem escrita, via instrução formal.12
Ainda segundo os resultados da pesquisa, o traço [+animado]
do antecedente favorece o uso do clítico acusativo em 21%, contra 10%
de [-animado]. A ocorrência dessa variante também está relacionada ao
traço [+especíico] do referente, em 18% dos casos.
De qualquer forma, o levantamento dos dados de Oliveira
(2007) indicou que o objeto nulo é a variante mais utilizada na escrita
pelas crianças nas quatro séries investigadas, conirmando sua hipótese
inicial de que esta seria a variante preferida por elas – e corroborando
os achados de outros estudos com dados de língua infantil, como de
Ayres (2016). Além disso, os resultados revelam que, na língua escrita,
há sinais de um processo de aprendizagem do uso de clíticos acusativos
no inal do primeiro segmento da escolarização (4ª série), algo também
observado (ainda que indiretamente) por Bagno (2011) e Kenedy (2016).
Por outro lado,
Esse aprendizado [...] não tem a mesma natureza que a
aquisição de objetos nulos ou de pronomes tônicos em
posição de objeto direto, ou seja, as crianças não precisam
ser formalmente ensinadas para internalizar pronomes
tônicos ou objetos nulos na posição de objeto, enquanto a
aquisição dos clíticos acusativos de 3ª pessoa só se dá via
instrução formal. (OLIVEIRA, 2007, p. 27)
Passemos agora à nossa metodologia: efetuamos a coleta dos
dados, selecionando os objetos diretos anafóricos de 3ª pessoa em três
formas:
12
Concordando com esses resultados, os trabalhos de Casagrande (2007) e de Ayres
(2016) também trazem resultados sobre a generalização do uso das formas nulas na
gramática infantil. Entretanto, esses trabalhos também chamam a atenção para o fato
de que a escolarização do falante não é o único fator que inluencia o uso de clíticos.
Ayres (2016), por exemplo, relata que um falante (de sua pesquisa) em idade préescolar usa mais pronomes clíticos do que tônicos, devido a seu contexto familiar e
sócio-econômico elevado.
162
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
a)
objeto nulo – categoria vazia na função de objeto;
b)
pronome pleno – função de objeto preenchida por um pronome
pessoal reto;
c)
pronome clítico – emprego de um pronome oblíquo átono para a
retomada anafórica de objeto direto.
Coletamos todas as ocorrências de retomada anafórica de objeto
direto de 3ª pessoa e, para cada ocorrência encontrada, buscamos o
referente e analisamos seus traços (animacidade, especiicidade e gênero
semântico), atribuindo um valor positivo ou negativo.
3.2 Análise dos dados e resultados
Nos corpora dos jornais, encontramos um total de 332 ocorrências
de retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa. Desse número, 116
referentes foram retomados por objeto nulo, 208 por pronomes clíticos
e apenas 8 por pronomes plenos. Do total de ocorrências com pronomes,
os clíticos representam 96,3%, enquanto os pronomes plenos somam
apenas 3,7%. Por isso, na tabela a seguir e em toda a análise dos nossos
resultados, juntamos os dois tipos de formas preenchidas na categoria
“Pronomes”.
TABELA 5 – Total de ocorrências de retomada anafórica nos corpora DG e Massa!
Tipo de retomada
Ocorrências
Objeto nulo
116 (35%)
Pronomes
216 (65%)
208 (96,3%) clíticos
8 (3,7%) pronomes plenos
Total
332 (100%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Apesar de haver uma presença signiicativa de objetos nulos, i.e.
um pouco mais de um terço das ocorrências, o pronome clítico ainda é
predominante em língua escrita padrão, mesmo na mídia impressa dita
popular, como são os jornais Diário Gaúcho e Massa!. O Gráico 2, a
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
163
seguir, nos permite visualizar melhor a distribuição entre as formas nulas
e preenchidas nesses dois corpora:
GRÁFICO 2 – Distribuição entre as formas numas e preenchidas
nos corpora analisados
Fonte: Elaborado pelos autores.
Entre o grupo de pronomes, como mencionamos acima, a
predominância é entre os pronomes clíticos de 3ª pessoa, tal como pode
ser visualizado no Gráico 3, a seguir.
GRÁFICO 3 – Distribuição entre pronomes clíticos e pronomes plenos
nos dados totais dos corpora jornalísticos
Fonte: Elaborado pelo autores.
164
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Ou seja, ainda há uma prevalência da norma culta de base
gramatical normativa, mesmo em textos ditos “populares”. Se
observarmos separadamente o número de ocorrências em cada corpus,
notamos que não há diferenças muito expressivas em relação à quantidade
de retomadas anafóricas; por isso, optamos por amalgamar nossos dados
na análise dos dois jornais, como representado na Tabela 6.
TABELA 6 – Ocorrências totais de tipos de retomada anafórica
nos corpora DG e Massa!
Nº de ocorrências
Tipos de retomada
TOTAL
Corpus Diário Gaúcho
Corpus Massa!
ON
72 (37,1%)
44 (31,9%)
116 (35%)
Clíticos
115 (59,3%)
93 (67,4%)
208 (62,6%)
Pronomes plenos
7 (3,6%)
1 (0,7%)
8 (2,4%)
TOTAL
194 (100%)
138 (100%)
332 (100%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Poderíamos pensar que, por nossos corpora jornalísticos serem
de regiões muito diferentes – Sul e Nordeste – haveria uma diferença
dialetal entre eles, principalmente no que diz respeito à conservação dos
clíticos. Entretanto, não é o que acontece: no corpus do Jornal Massa!
há preferência por clíticos (67,4% dos casos de retomada anafórica),
assim como encontramos no corpus do Jornal Diário Gaúcho (59,3%),
de Porto Alegre. A diferença de porcentagem se deve, talvez, à diferença
do número de ocorrências encontradas no total de cada corpus.
Ao analisarmos se a combinação dos traços de animacidade e
especiicidadedos referentes é capaz de explicar a escolha entre ON
e pronome na retomada anafórica de objeto direto em nosso corpus,
encontramos os resultados apresentados na Tabela 7, a seguir.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
165
TABELA 7 – Combinações dos traços [animacidade] e [especiicidade]
e ocorrências objetos nulos vs. pronomes em nossos corpora de jornais
Traço do antecedente
Objeto Nulo
Pronomes
[+a, +e]
2 (1,3%)
153 (98,7%)
[+a, -e]
--
10 (100%)
[-a, +e]
76 (72,4%)
29 (27,6%)
[-a, -e]
38 (61,3%)
24 (38,7%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Por um lado, os resultados mostram que a combinação desses dois
traços não é a melhor hipótese para a explicação da distribuição entre
pronome e ON, uma vez que o traço de animacidade isolado responderia
melhor como se dá o condicionamento da retomada anafórica do que a
combinação entre os dois traços. Ou seja, o traço de especiicidade se
mostrou redundante, e sua inluência não é clara: os referentes com o
traço [+animado] são, majoritariamente, retomados por pronomes (98,7%
na segunda linha e 100% na terceira linha da tabela); já os referentes
com o traço [+especíico], ora são retomados por pronomes (98,7% na
segunda linha), ora, por categoria vazia (72,4% na quarta linha da tabela).
Por outro lado, se levarmos em consideração apenas o traço de
animacidade, os casos [-animados] não são tão claros, uma vez que não
formam uma classe natural opositiva, i.e., não há uma polarização tão
categórica dos resultados. Em referentes [-a, -e], por exemplo, os números
não esclarecem uma preferência por ON ou pronome muito polarizada
(mais de 2/3 das ocorrências se dão com pronomes).
Uma possibilidade – e talvez uma hipótese a ser testada – é que
haja cruzamento de gênero gramatical (antigo sistema dos clíticos) com
gênero semântico (novo sistema do PB falado). Especiicamente, em
antecedentes [+animados], a forma anafórica segue o gênero gramatical
do antecedente; em referentes [-animados], a forma anafórica tende a
ser nula por causa da ausência de gênero semântico. O que acontece
em referentes [-a, -e], em que não há uma preferência clara por objetos
nulos ou pronomes, deve resultar justamente da sobreposição desses
dois sistemas existentes: o antigo sistema de clíticos e o novo sistema
pronominal do PB falado. Isso explicaria se há uma diferença entre
uso de nulos em trechos que reportam fala vs. trechos da “narrativa
166
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
propriamente dita”, mas provavelmente não é aleatório e deve haver
algum fator discursivo intervindo nisso – voltaremos a essa ideia mais
à frente, quando discutirmos os dados com relação ao gênero semântico
do referente.
De qualquer maneira, nossos resultados em relação à combinação
dos traços de animacidade e especiicidade estão de acordo com as análises
mencionadas na literatura, na medida em que o traço de animacidade
do antecedente exerce papel importante na distribuição de pronomes e
ONs em PB, e também pelo fato de que o traço de especiicidade é o que
menos polariza esses tipos de retomada anafórica, apesar de inluenciar na
escolha entre as duas formas (aqui, atua sobre os [-animados]), conforme
se vê no Gráico 4, seguir.
GRÁFICO 4 – Combinações dos traços de [animacidade] e [especiicidade
Fonte: Elaborado pelos autores
É possível observar que a interação entre esses dois traços ainda
não é totalmente clara. Passemos, então, à hipótese do gênero semântico.
A hipótese do gênero semântico como condicionador da escolha
entre ON e pronome parece explicar as retomadas anafóricas em PB
de uma forma mais clara: o maior número de ocorrências de pronomes
acontece quando os referentes têm o traço [+gs], assim como o maior
número de ONs ocorre com antecedentes com o traço [-gs].
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TABELA 8 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes
Traço do antecedente
Objeto Nulo
Pronomes
[+gs]
2 (1,3%)
147 (98,7%)
[-gs]
114 (62,3%)
69 (37,7%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Quando o antecedente tem o traço de gênero semântico marcado
positivamente [+gs], é retomado por um pronome (é o que acontece em
98,7% dos casos); caso contrário, é preferencialmente retomado por
um ON, mesmo que de forma não categórica (62,3% dos casos),como
ilustrado no Gráico 5.
GRÁFICO 5 – Traço [gênero semântico] e ocorrências de objetos nulos vs. pronomes
Fonte: Elaborado pelos autores.
Analisando apenas as ocorrências de ONs, dividindo-as entre
as que se deram com referente com traço [-gs] e [+gs], notamos que a
maioria (98,7% dos casos) de ocorrências de ONs acontece em retomadas
de antecedentes com o traço [-gs]. Nossos resultados, portanto, vão ao
encontro da hipótese de Creus e Menuzzi (2004), uma vez que o traço
168
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
de gênero semântico parece ser condicionador da retomada anafórica
de objeto nulo – ao menos em nosso corpus de língua escrita popular.
Ver Gráico 6.
GRÁFICO 6 – Traço [gênero semântico] e ONs
Fonte: Elaborado pelos autores.
Inversamente, como demonstrado no Gráico 7, ao analisarmos
apenas as retomadas anafóricas feitas por pronomes, percebemos que
eles têm a tendência de recuperar antecedentes com o traço [+gs].
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169
GRÁFICO 7 – Traço [gênero semântico] e pronomes
Fonte: Elaborado pelos autores.
Considerando as duas hipóteses aqui comparadas e os resultados
quantitativos a que chegamos, poderíamos pensar, ainda, que apenas o
traço de animacidade do antecedente explicaria o fenômeno de retomada
anafórica de forma mais clara, pois, como temos alertado ao longo do
texto, esse traço exerce papel de grande importância na distribuição de
pronomes e ONs em PB, conforme demonstrado na Tabela 9.
TABELA 9 – Traço [animacidade] e ocorrências objeto nulo
vs. pronomes nos corpora de jornais
Traço do antecedente
ONs
Pronomes
[+a]
2 (1,2%)
163 (98,8%)
[-a]
114 (68,3%)
53 (31,7%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
De certa forma, o traço de animacidade do referente explica, em
nosso corpus, como se dá a escolha entre os tipos de retomada anafórica
pesquisados, ainda que os resultados não sejam categóricos. Referentes
[+animados] são quase sempre retomados por pronomes (98,8%),
enquanto referentes [-animados] são preferencialmente retomados por
ONs (68,3%), embora, em alguns casos, a retomada ocorra com pronomes
(31,7%). Esses números são muito semelhantes aos que encontramos na
170
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
análise com o traço de gênero semântico, como podemos veriicar na
Tabela 10, repetida a seguir por conveniência.
TABELA 10 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes
Traço do antecedente
ONs
Pronomes
[+gs]
2 (1,3%)
147 (98,7%)
[-gs]
114 (62,3%)
69 (37,7%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os números coincidem dessa forma pelo fato de a maioria dos
antecedentes ser [+a, +gs] ou [-a, -gs]. Temos, em muitos dos casos, uma
quase sobreposição entre esses dois traços: referentes animados, na maioria
das vezes, também são aqueles que têm gênero semântico; por outro lado,
referentes [-animados] são majoritariamente [-gênero semântico].
Entretanto, aqui havíamos nos proposto a comparar as duas
hipóteses correntes na literatura sobre o condicionamento da retomada
anafórica em PB: a hipótese do gênero semântico versus a hipótese do
traço de animacidade em conjunto com o de especiicidade. A partir
disso, se seguirmos o princípio da Navalha de Occam, i.e., se, entre
essas duas teorias que explicam os mesmos fatos, considerarmos a mais
simples como a mais adequada para explicar o fenômeno da retomada
anafórica em PB, a hipótese do gênero semântico (que envolve apenas
um único traço do referente) explica o condicionamento entre objeto
nulo vs. pronomes de maneira mais adequada e econômica.
Também há uma vantagem conceitual para a hipótese do gênero
semântico, uma vez que, como airmam Creus e Menuzzi (2004, p. 7),
estamos diante de um processo geral de anáfora. Em outras palavras,
estamos tratando de um processo de concordância entre forma anafórica
e antecedente: referentes com gênero semântico são retomados
preferencialmente por pronomes porque esses são formas anafóricas
especificadas para gênero (sejam pronomes plenos, ‘ele’/‘ela’; ou
clíticos ‘o’/‘a’). Já os antecedentes sem gênero semântico favorecem a
retomada por objetos nulos porque ONs são categorias não especiicadas
para gênero. Para a teoria baseada em animacidade, há a necessidade de
um empenho maior para explicar o motivo de animados demandarem
pronomes e não animados requererem objetos nulos. E, mais uma vez,
o gênero semântico pode explicar o fenômeno, considerando-se o fato
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
171
de que somente os antecedentes [+animados] podem ser associados a
gênero semântico.13
Passemos à análise das ocorrências que encontramos no corpus de
redações escolares. Encontramos 86 ocorrências de retomada anafórica
de objeto direto de 3ª pessoa, sendo 35 retomadas por ON, 26, por
pronomes plenos, e 25, por clíticos, representadas em porcentagem no
Gráico 8, a seguir.14
GRÁFICO 8 – Distribuição entre ON, pronomes plenos e clíticos
no corpus de redações escolares
Fonte: Elaborado pelos autores.
13
Othero et al. (2016, p. 78-9) chegam, mais ou menos, à mesma conclusão usando o
conceito de marcação. Em suas palavras: “Nossa ideia básica é relativamente simples:
baseamo-nos no fato já bastante conhecido de que o objeto direto prototípico (nas
línguas humanas, de maneira geral) é um referente não animado ou não humano (assim
como o sujeito prototípico é um referente animado). [...] temos em PB uma estratégia
relativamente inovadora [...] para a retomada de objetos (prototipicamente inanimados
e, portanto, sem gênero semântico): a retomada anafórica com uma categoria vazia,
o objeto nulo. Defendemos que essa é a estratégia default, não marcada. Ela é mais
frequente [...], tem menos material linguístico (Ø) e é mais comum na produção de
crianças em fase de aquisição da linguagem [...].Por outro lado, caso o sistema depare
com um caso atípico, i.e., com um objeto direto anafórico cujo referente tem o traço
[+gs], usa-se o pronome. Trata-se da conhecida condição de Else where [...]: o uso de
uma forma mais especíica se aplica antes de uma forma mais genérica (a forma menos
marcada, objeto nulo, sendo a menos especíica)”. Grifos dos autores.
14
Encontramos apenas 9 ocorrências de elipses de VP e optamos por não contabilizá-las
em nossa análise, uma vez que o cerne do nosso trabalho está no fenômeno do objeto
nulo em PB, como já advertimos.
172
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Os dados mostram que o objeto nulo é a estratégia de retomada
preferida pelas crianças – cenário distinto daquele encontrado na escrita
jornalística que pesquisamos, ainda que também distinta dos dados de fala
de crianças, que demonstram ser o ON a principal estratégia de retomada
anafórica do objeto, como mostram, por exemplo, os dados de Ayres
(2016, p. 36), que investigou o fenômeno de retomada anafórica do objeto
em corpus de língua falada infantil: 76,1% ON, 5,6% pronome pleno,
1,8% clíticos. Entretanto, ao agruparmos a classe dos pronomes (plenos
+ clíticos), a situação se inverte. De toda sorte, em termos percentuais,
há mais ONs na escrita infantil do que na escrita jornalística popular.
Também podemos constatar aqui que o traço de animacidade é
relevante para o condicionamento entre ON e pronome (ver Tabela 11). Já
os referentes com o traço [±especíico] ora são retomados por pronomes,
ora por categoria vazia.
TABELA 11 – Traços de [animacidade] e [especiicidade]
no corpus de redações escolares
Traços do antecedente
ONs
Pronomes
TOTAL
[+a, +e]
9 (19,6%)
37 (80,4%)
46
[+a, -e]
1 (25%)
3 (75%)
4
[-a, +e]
15 (71,4%)
6 (28,6%)
21
[-a, -e]
10 (66,7%)
5 (33,3%)
15
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os dados de referentes [-animados] são semelhantes ao
que encontramos no corpus de textos jornalísticos; todavia, com os
referentes [+animados] a situação é bem menos polarizada. Ou seja, se
analisarmos esses dados com base na hipótese dos traços de animacidade e
especiicidade, estaremos recaindo sobre os mesmos problemas já citados
anteriormente, quando analisamos os textos jornalísticos: a interação
entre os dois traços não nos fornece uma explicação clara, nem resultados
categóricos para o fenômeno da retomada anafórica.
Da mesma maneira, se analisarmos o corpus levando-se em
conta a hipótese de gênero semântico, o condicionamento da escolha
entre ON e pronomes ica mais claro: antecedentes com o traço [+gs]
favorecem pronomes, enquanto referentes [-gs] favorecem ONs,
conforme demonstrado na Tabela 12.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
173
TABELA 12 – [gênero semântico] no corpus de redações escolares
Traço do antecedente
ONs
Pronomes
[+gs]
3 (8,6%)
32 (91,4%)
[-gs]
32 (62,7%)
19 (37,3%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Ainda que os resultados também não sejam tão polarizados (em
referentes com o traço [-gs], por exemplo, temos 62,7% de ON vs. 37,3%
de pronomes), a hipótese do gênero semântico continua explicando o
fenômeno de retomada anafórica em PB de uma forma mais econômica,
por meio de um único traço, e, principalmente, de uma forma mais
natural, pois trata-se simplesmente de um processo geral de anáfora, no
qual a forma anafórica (ON ou pronome) concorda com seu antecedente.
Os dados que encontramos ao reanalisar o corpus de Oliveira (2007)
contribuem para nossa pesquisa na medida em que são semelhantes
aos resultados a que chegamos com os corpora do Projeto PorPopular,
indicando que o gênero semântico parece ser o traço condicionador da
retomada anafórica de objeto nulo. (Ver Gráicos 9 e 10)
GRÁFICO 9 – ONs no corpus de redações escolares
Fonte: Elaborado pelos autores.
174
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
GRÁFICO 10 – Pronomes no corpus de redações escolares
Fonte: Elaborado pelos autores.
Além disso, os dados do corpus de redações infantis escolares,
assim como os resultados já apresentados por Oliveira (2007), nos
mostram que o clítico ainda é muito usado pelas crianças como forma
anafórica na língua escrita: seu uso começa a aparecer nos dados
textuais apenas nas séries inais, à medida que o grau de escolarização e
normatização em que a criança está inserida vai aumentando, conforme
se demonstra na Tabela 13.
TABELA 13 – Ocorrências de pronomes clíticos de 3ª pessoa
em relação à série da criança
Clíticos acusativos de 3ª pessoa
Série
Nº de ocorrências
1ª
3 (8%)
2ª
8 (16%)
3ª
5 (11%)
4ª
14 (34%)
Total
30 (100%)
Fonte: Elaborada pelos autores
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
175
Em suma, o papel da escolarização mantêm os clíticos de 3ª
pessoa como parte do quadro pronominal em PB, o que explica o fato
de termos quase ausência de pronomes plenos (em função de objeto
direto) em nossos corpora de jornais (em oposição à larga ocorrência
de pronomes clíticos). Ainda que sejam considerados jornais da mídia
impressa dita “popular”, são, antes de tudo, textos monitorados e
revisados de acordo com a norma gramatical tradicional.
Na próxima seção, veremos os casos de antecedentes [-gs] que
são retomados por pronomes, ou seja, casos de “exceção” às predições
da hipótese do gênero semântico.
3.3 Discussões interessantes
Nesta seção, abordaremos os dados encontrados que não “se
comportam” de acordo com as previsões da hipótese do gênero semântico,
i.e., casos em que antecedentes [-gs] são retomados por pronomes e casos
em que antecedentes [+gs] são retomados por objeto nulo. Muitos desses
“casos destoantes” são retomadas anafóricas inluenciadas por princípios
discursivos particulares outros que não os traços do referente.
3.3.1 Análise dos casos “destoantes” com pronomes
Ainda que tenhamos concluído que a hipótese do traço de gênero
semântico seja a mais adequada para explicar a retomada anafórica de
objeto direto de 3ª pessoa em PB escrito, não encontramos resultados
polarizados, i.e., nossos resultados não nos possibilitaram estabelecer
classes naturais opositivas claras. Isso talvez se deva ao fato de que
encontramos muitas ocorrências de referentes com o traço [-gs] sendo
retomados por pronome, quando o esperado era a retomada anafórica
realizada com objeto nulo.Vejamos a Tabela 10 novamente.
TABELA 10 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes
Traço do antecedente
Objeto Nulo
Pronomes
[+gs]
2 (1,3%)
147 (98,7%)
[-gs]
114 (62,3%)
69 (37,7%)
Fonte: Elaborada pelos autores.
176
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Com o traço [+gs], os resultados são bem polarizados:
98,7% de retomadas feitas com pronomes. Já os referentes [-gs] são
preferencialmente retomados com ONs, mas não encontramos aí um
resultado categórico, visto que, em pouco mais de um terço dos casos,
a retomada anafórica foi realizada com pronome. Se levarmos em
consideração a ideia de que há sobreposição entre dois sistemas no PB,
o grande número de clíticos retomando referentes [-gs] pode indicar
que o antigo sistema ainda está se manifestando em resíduo – ou seja, o
clítico (como forma conservadora de retomada anafórica de objeto) ainda
se mantém. De qualquer maneira, analisando cada caso isoladamente,
chegamos à hipótese de que, nessas ocorrências, a retomada anafórica
foi feita com um pronome devido a questões discursivas particulares.
Organizamos esses casos em três categorias distintas: (i) concordância
ideológica, (ii) referência a grupos (coletivos) e (iii) acessibilidade do
referente.
Concordância ideológica
É o tipo de concordância que se faz pelo sentido e, por isso, é
também denominada “concordância de palavra para sentido” (BECHARA
2009, p. 555). Encontramos três casos de retomada anafórica com
concordância ideológica, todos com referentes [-gs] e retomados por
pronomes, o que nos leva a crer que, nos casos desse tipo de concordância,
a tendência é que o pronome seja mantido.
(10) A Defensoria Pública procurou a família para auxiliá-los nesta
questão.
(11) Prometi que se ele icasse bom, eu faria uma festa no Natal com
a gurizada da vila. [...] Com o tempo e a ajuda de vizinhos e
voluntários anônimos, a festa cresceu. (...) Os doadores não
apareceram. Estou preocupada, mas não vou desistir. Se for
preciso sairei só com o saco vazio para animá-los.
(12) No entanto, contou que pagou R$ 300 pelo revólver calibre 38
na Feira do Pau, há um mês e a deixou guardada.
Em (10) e (11), há concordância ideológica de número: a
informação semântica de plural presente nos antecedentes ‘a família’
e ‘a gurizada’ inluencia na retomada anafórica, acionando o plural na
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
177
retomada com pronome eestabelecendo concordância. Já em (12), a
concordância é de gênero, pois a informação semântica subentendida
em ‘revólver calibre 38’ é a de que este objeto é hipônimo de ‘arma’ e,
portanto, a concordância foi feita com o gênero feminino do hiperônimo
‘arma’.
Grupos (coletivos)
Em nossos dados, seis casos de referentes [-gs] retomados por
pronomes se encaixam nessa categoria, i.e., todos os antecedentes, nesse
caso, fazem denotação a um grupo de pessoas ou coletivos de indivíduos
especíicos:
(13) Dependemos de encontrar médicos [...] mas não conseguimos
atraí-los.
(14) A enfermeira explica que atividades como essa são fundamentais
para trazer alegria aos idosos e também para quem trabalha na
casa.
– Essa tarde deixou eles de alma lavada. E para nós, funcionários,
é como se a gente pudesse se reenergizar.
(15) Conseguimos separar um elenco legal, na parte vocal, e enquadrálo nas vozes de cada personagem.
Em (13) e (14), “médicos” e “os idosos” recebem o traço [-gs]
porque fazem referência a grupos ainda não estabelecidos e que podem ser
formados por homens e mulheres; por isso, não conseguimos identiicar
o sexo natural (gênero semântico) nesses referentes. Também em (15)
temos uma situação semelhante, em que o referente “um elenco geral”
denota o coletivo de atores e, portanto, tem o traço [-gs]. Na verdade,
todos os casos que encontramos (seis casos) desse tipo foram retomados
por pronome (e não ON, como esperávamos). Em todos esses casos,
trata-se de concordância gramatical, o que pode comprovar –caso seja
feita uma análise mais aprofundada – a hipótese de que, em casos de
referentes [+animados], a inluência maior é do gênero gramatical, e
não semântico.
178
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
Acessibilidade do referente
Em 18 ocorrências do corpus, a retomada anafórica de um
antecedente [-gs] foi realizada com pronome por uma questão de
acessibilidade do referente. Em outras palavras, o pronome foi mantido
para identiicar o antecedente correto, por uma questão de distância
entre anáfora e referente ou por competição com outros possíveis
antecedentes. Em (16), por exemplo, a acessibilidade do referente poderia
icar comprometida caso fosse usada uma categoria vazia na função de
objeto (há outros referentes possíveis no meio do período, como ‘o local’
e ‘a prova’).
(16) O participante receberá até 18 de agosto, no endereço indicado
na inscrição, o cartão de conirmação com o local onde fará a
prova. Se não recebê-lo até esta data, o inscrito deverá procurar
os Correios.
O exemplo a seguir é ainda mais claro:
(17) Sempre que vê o celular do pai, o pintor automotivo Seriano
Vargas, 25 anos, dando sopa no bolso da calça, pega-o para jogar
um pouquinho.
A quantidade de informações em uma mesma frase, como
em (16), faz surgir a necessidade de pronome na retomada anafórica,
mesmo que o antecedente seja [-gs]. Amaral (2004) assume a hipótese
da topicalidade discursiva para solucionar os casos “anômalos” de
Schwenter e Silva (2003), em que os referentes foram retomados com
pronomes quando suas propriedades pareciam indicar o uso de ON.
Segundo Amaral (2004, p. 1), os referentes pronominais não se limitam
às características semântico-pragmáticas, mas a estrutura discursiva
também desempenha papel relevante: “as características do discurso
se sobrepõem aos traços semântico-pragmáticos quando a coerência
discursiva está em jogo”.
O grau de coerência discursiva está relacionado à diiculdade
de processamento de um texto. Como certos elementos de um dado
enunciado são mais centrais que outros, se esse elemento central é
tratado de forma diferente no enunciado seguinte, há um impacto na
coerência do discurso, i.e., se o centro do discurso muda, aumenta a
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
179
carga de inferência de que o leitor precisa para processar corretamente
o enunciado (cf. AMARAL, 2004), como em (18).
(18) O João ensina inglês.
Ele é muito bom professor para o Paulo.
Ele explica a matéria com clareza.
Ele está aprendendo muito rápido. (exemplo de AMARAL, 2004,
p. 3)
Até a terceira frase de (18), identiicamos “O João” como o
elemento central. Quando esse centro muda (e, nesse caso, a forma
anafórica continua a mesma), é mais difícil identiicar qual referente é
o foco do discurso; assim, a última frase se torna menos coerente: “a
forma do objeto direto anafórico selecionada pelo falante relete seu
desejo de marcar um determinado elemento como possível tópico do
discurso”(AMARAL, 2004, p. 7).
(19) Soube, tempos depois, que havia perdido uma oportunidade de
emprego devido ao meu cabelo. Mas lembro que, naquela época,
éramos todas contra o alisamento. Naquela época, o corte era
bem deinido. Cortado com precisão. Para penteá-lo, era usado o
chamado garfo.
Em (19), “o meu cabelo” ([-gs]) foi introduzido como tópico
na primeira frase. Depois, a entrevistada pelo jornal comenta sobre os
costumes da época e decide reintroduzir “o meu cabelo” como tópico,
utilizando, para isso, o pronome como forma de retomada anafórica,
em vez do objeto nulo, reforçando o tópico do discurso e facilitando a
acessibilidade do referente. Outro exemplo:
(20) Ao contrário do que as empresas de telefonia airmaram, a AesSul
airma que o poste em questão é, sim, de responsabilidade deste
serviço. O Diário Gaúcho se compromete a procurá-las, para
identiicar quem deve fazer a troca.
Em (20), temos um caso semelhante. Aqui a acessibilidade do
referente icaria comprometida caso tivesse sido utilizada uma forma
nula na posição de objeto, já que há outros referentes possíveis no meio
180
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
do trecho (como “a AesSul”, “o poste” ou “este serviço”). Se o redator
escolhesse uma forma nula, não conseguiria indicar para o seu leitor
a mudança no tópico discursivo, e os sujeitos dos últimos enunciados
seriam mais salientes.
Análise dos casos “destoantes” com ONs
É interessante destacar que 63,8% dos referentes retomados com
ONs estão dentro de alguma fala (no discurso direto), indicando que esse
tipo de retomada anafórica é, realmente, frequente em língua falada (de
todo modo, o ON também já está presente de maneira signiicativa em
língua escrita padrão, pois 36,2% das ocorrências de ON apareceram no
corpo do texto dos jornais).
Encontramos apenas dois casos que consideramos “anômalos”,
em que a retomada de um antecedente com o traço [+gs] foi feita
com objeto nulo, em vez do pronome, como esperado. Novamente,
questões discursivas parecem estar em jogo, e uma análise motivada
pela topicalidade, como propõe Amaral (2004), nos permite chegar a
uma explicação para esses casos.
Se o elemento [+gs] já está estabelecido como tópico do discurso,
i.e., se outros elementos no enunciado asseguram a topicalidade do
discurso, o falante (nesse caso, o redator) pode optar por uma forma
nula sem “dar indicações errôneas ou permitir falsos julgamentos sobre
o centro do discurso” (AMARAL, 2004, p. 7). É o que vemos em
(21), pois “o pequeno Pedro Machado Borgmann” é colocado como o
elemento central e se mantém como tópico do discurso ao longo de todo
o enunciado. Ao inal, é retomado com ON, uma vez que seu status de
tópico já está assegurado.
(21) Quando chega da creche, no inal da tarde, o pequeno Pedro
Machado Borgmann, quatro anos, já tem estabelecida sua rotina:
se divertir com os joguinhos do tablet até a hora da janta.
Em agosto, quando completou quatro anos, Pedro abriu mão
de uma festa de aniversário com o tema do SuperMan para
ganhar o tablet de presente. Teve uma comemoração simples na
creche e, desde então, desliza os polegares e indicadores na tela
do computador portátil. Envolvido com a brincadeira digital,
chega a pedir silêncio à mãe. Ainal, precisa de concentração.
Acha sozinho jogos e aplicativos, vai movendo os personagens,
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018
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derrubando obstáculos. De tão quietinho, quase nem se nota a
presença em casa, e ele nem ouve a mãe chamar Ø.
Para Amaral (2004, p. 7),
Se um elemento anafórico que é tópico do discurso tem
um referente que apresenta as propriedades de um possível
tópico, e se outras características do discurso garantem que
este elemento seja o tópico, o falante pode optar por uma
forma menos marcada para sua realização.
Em (22), vemos que nossa outra ocorrência de referente [+gs]
retomado com objeto nulo parece reforçar essa hipótese. O tópico
central, “Daniel de Moura Ribeiro”, é assegurado por outros elementos
discursivos, como “o menino esperto”, para, então, ser retomado com
uma categoria vazia.
(22) É até difícil de acreditar que Daniel de Moura Ribeiro tenha
apenas quatro anos. Com 41kg distribuídos em seu 1,15m de
altura, o menino esperto preocupa a família pelo excesso de peso.
Em acompanhamento com um pediatra de Viamão, onde mora,
os exames do menino revelam que ele precisa de uma atenção
especial. [...]
Isso está, inclusive, documentado na carteirinha de saúde do
menino. [...] Além do atendimento com um endocrinologista,
Daniel também foi encaminhado, com urgência, no inal de julho,
para uma consulta com neurologista pediátrico. [...]
– Ele tá muito agitado, precisa tomar remédio para dormir. Como
vai ser quando ele tiver de ir para a escola no ano que vem? –
preocupa-se a bisavó.
Conforme a secretária de saúde de Viamão, Sandra Sperotto, e de
acordo com comprovantes enviados ao jornal, o agendamento com
o especialista foi correto. No entanto, o médico teria se negado a
atender Ø.
Assim, nos parece que, além do traço de gênero semântico do
antecedente, questões discursivas e contextuais em que ocorre a retomada
anafórica de objeto direto também são relevantes para explicar como se
dá a escolha entre pronome e ON na escrita em PB.
182
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4 Considerações inais
Neste trabalho, investigamos a retomada do objeto direto de
3ª pessoa em PB, especiicamente em língua escrita, e procuramos
averiguar se as estratégias relativamente inovadoras e mais comuns em
língua falada – pronomes plenos e ONs – já estão presentes de maneira
signiicativa em língua escrita. Para isso, analisamos dois corpora de
jornais populares e um corpus de redações escolares (e classiicamos os
referentes das retomadas anafóricas com base nos traços de animacidade,
especiicidade e gênero semântico).
Buscamos analisar nossos dados considerando as duas hipóteses
existentes na literatura sobre o condicionamento da retomada anafórica
de objetos diretos em PB, a saber, a hipótese dos traços de animacidade
e especiicidade e a hipótese do gênero semântico, para, então, contrastar
os resultados encontrados e chegarmos a uma explicação mais clara para
o fenômeno de retomada anafórica.
Em primeiro lugar, veriicamos que o pronome clítico tem a
tendência de se manter no discurso escrito, ao contrário do que acontece
com a fala vernacular em PB, indicando que o grau de escolarização e
normatização ainda é muito forte na mídia impressa. O clítico também
é bastante usado pelas crianças como forma anafórica na língua escrita,
aparecendo nos dados textuais nas séries inais, à medida que o grau
de escolarização e normatização em que a criança está inserida vai
aumentando.
Ainda assim, quando encontramos ONs, a hipótese do gênero
semântico parece explicar o fenômeno de retomada anafórica de uma
forma mais econômica (em contraste com a hipótese de animacidade e
especiicidade), com base em um único traço (princípio da Navalha de
Occam) e, principalmente, de uma forma mais natural, pois, nesse caso,
estamos diante de um processo geral de anáfora, no qual forma anafórica
ON ou pronome) concorda com seu antecedente.
Por im, discutimos alguns casos que não “se comportam” de
acordo com as previsões da hipótese do gênero semântico, acreditando
que esses “casos destoantes” sejam retomadas anafóricas inluenciadas
por princípios discursivos particulares. Esperamos que nosso trabalho
tenha contribuído para os estudos do fenômeno em PB, principalmente
em língua escrita padrão contemporânea e língua jornalística popular.
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183
Agradecimentos
Agradecemos a Sergio Menuzzi e Mônica Rigo Ayres por terem lido
uma versão prévia deste texto e nos terem fornecido boas orientações
sobre nosso trabalho.
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Variação e deinição de queda de sílaba:
o contexto segmental em Capivari-SP e Campinas-SP
Variation and Deinition of Syllable Drop:
The Segmental Context in Capivari-SP and Campinas-SP
Eneida de Goes Leal
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil
CAPES
eneidaleal@yahoo.com
Resumo: Neste artigo, o objetivo é comparar o nível segmental de
variação de queda de sílaba em duas cidades do interior de São Paulo,
Capivari e Campinas, com base nos resultados da tese de Leal (2012).
Decidiu-se por apresentar exclusivamente os resultados do contexto
segmental porque é nesse nível fonológico que o processo é deinido
(LEAL, 2006, 2007). O trabalho foi fundamentado na geometria de
traços (CLEMENTS; HUME, 1995) e na sociolinguística variacionista
(cf. LABOV, 1972, 1994, 2001), aplicadas a um corpus de 48 entrevistas
(24 em cada cidade). Os resultados revelam que consoantes coronais
favorecem, e nasais desfavorecem o processo, em ambos os dialetos.
No entanto, há uma grande diferença na implementação com dorsais:
o processo é favorecido em Capivari e desfavorecido em Campinas.
Quanto às vogais, pudemos veriicar que há diferenças nas duas cidades,
pois sequências [coronal + coronal] e [dorso-labial + coronal] são
neutras em Capivari e favorecidas em Campinas. Também se constatou
com os resultados que o OCP atua parcialmente no processo, já que
rege a igualdade das consoantes, mas não das vogais. O que parece ser
importante são as características da primeira sílaba – aquela sujeita ao
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.187-220
188
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
apagamento. Finalmente, a análise conclui que a implementação da
queda de sílaba se dá diferentemente nas duas cidades, no que concerne
ao contexto segmental.
Palavras-chave: queda de sílaba; contexto segmental; sociolinguística
variacionista; geometria de traços.
Abstract: The principal aim in this paper is to compare the segmental
context in syllable drop variation (in two cities of São Paulo State
countryside, Capivari and Campinas), a study which is part of Leal’s
(2012) dissertation. We have decided to show exclusively the results
of the segmental context since this is the level in which the process
is defined (LEAL, 2006, 2007). The theoretical background used
was feature geometry (CLEMENTS; HUME, 1995), and variationist
sociolinguistics (cf. LABOV, 1972, 1994, 2001), applied to a 48 interview
corpus (24 from each city). The results show that coronal consonants
favor the process and nasals disfavore it, in both of the dialects. However,
there is great difference with dorsals: it is favored in Capivari and
disfavored in Campinas. With regard to vowels, there are differences
in the two cities, since [coronal + coronal] and [dorso-labial + coronal]
sequences are neutral in Capivari and favored in Campinas. The results
also revealed that OCP acts half way in the process, since it woks for
consonants identity, but not for vowels. What seems to be relevant is
the characteristics of the irst syllable – the one that undergoes deletion.
Finally, we conclude that syllable drop is different in the cities.
Keywords: syllable drop; segmental context; variationist sociolinguistics;
feature geometry.
Recebido em 28 de setembro de 2016.
Aprovado em 02 de dezembro de 2016.
Introdução
Neste artigo, tratamos do contexto segmental na variação de
queda de sílaba (como sândi externo) em duas cidades do interior paulista,
Capivari e Campinas. Os resultados aqui apresentados fazem parte da
pesquisa de Leal (2012), tese de doutorado em que, a im de comparar
as interferências e características de queda de sílaba nas duas cidades,
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foram consideradas 14 variáveis internas e externas.1 Dessas variáveis,
limitamo-nos a apresentar exclusivamente os resultados do contexto
segmental, o que se justiica pela importância desse nível fonológico:
é nele que o processo é deinido2 (cf. seção 2). Dessa forma, podemos
discutir esse nível fonológico com um detalhamento maior.
Entendemos que o termo ‘queda de sílaba’ pode ser usado como
um hiperônimo, pois engloba outros dois processos: a elisão silábica e
a haplologia, que serão deinidos na seção 2.3
A organização do artigo foi feita da seguinte forma: na seção
1, apresentamos as bases teóricas; em 2, está a literatura sobre a queda
de sílaba no português brasileiro; na seção 3, a metodologia; na seção
4, estão os resultados e a discussão, comparando-se as duas cidades;
na quinta seção, estão as considerações inais, seguida das referências
bibliográicas utilizadas.
1 O quadro teórico: pontos de diálogo
Com o objetivo de veriicar se a regra de queda de sílaba é a
mesma em Capivari e Campinas, trabalhamos com a teoria gerativa, mais
especiicamente, com a geometria de traços (CLEMENTS; HUME, 1995),
e com a sociolinguística variacionista (cf. LABOV, 1972, 1994, 2001).
Os pontos de diálogo entre os dois modelos são interpretados de
acordo com a tendência (favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento)
1
Na tese, foram utilizados 4 grupos de fatores linguísticos do contexto segmental
apresentados neste artigo (cf. seção 3), mais outros 5 grupos de fatores linguísticos
(Estrutura Silábica, Métrica, Prosódia, Número de Sílabas e Frequência de Uso de
Palavras) e 5 grupos de fatores sociais (Escolaridade, Gênero, Faixa Etária, Informante
e Cidade) – cf. Capítulo IV de LEAL (2012).
2
Outros níveis fonológicos da queda de sílaba podem ser veriicados em LEAL (2012).
3
A escolha de Capivari foi feita com base nos resultados obtidos na dissertação de
mestrado de LEAL (2006, 2007): o contexto segmental de queda de sílaba é mais
abrangente (em termos de traços fonológicos) nessa cidade do que aqueles reportados
na literatura (cf. ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004, 2005; SIMIONI;
AMARAL, 2012; PAZ, 2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013; TENANI, 2002). E Campinas
foi a segunda cidade eleita porque ambas estão próximas (54 quilômetros), e os
informantes apresentam o fenômeno nos moldes em que ele é descrito pela literatura,
o que possibilitou a comparação (cf. detalhamento do estudo piloto com falantes de
capivarianos e campineiros na subseção 5.1 de LEAL, 2012).
190
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
e à produtividade (expressos via frequência de aplicação e peso relativo)
dos diferentes contextos possíveis das regras (deinidos pela fonologia
gerativa, isto é, igualdade na cavidade oral – cf. seção 2). Para que a
comparação fosse feita de forma objetiva, seguimos estes critérios para
interpretar os resultados nas duas cidades:
•
Iguais: são fatores que têm a mesma tendência nas duas cidades, e
a diferença entre os pesos relativos são pequenas – isto é, há uma
mesma tendência e produtividade da regra;
•
Semelhantes: dentro de uma mesma variável, há um fator (es) com
comportamento (s) idêntico(s) nas duas cidades (o que signiica
ter uma mesma tendência), mas a produtividade é diferente, ou
seja, pode ser que um fator seja aplicado mais vezes numa cidade
do que na outra; e
•
Diferentes: são os fatores com tendências diferentes nas duas
cidades (por exemplo, favorecimento versus desfavorecimento,
desfavorecimento versus neutralidade, favorecimento versus
neutralidade etc.) e, consequentemente, a produtividade também
é diferente. Adicionalmente, consideramos diferentes as variáveis
que foram selecionadas numa cidade e não em outra, dado que,
se uma variável é selecionada, podemos interpretar que aquela
variável condiciona o processo e, de modo contrário, uma variável
não selecionada indica que um conjunto de fatores não exerce
qualquer efeito no processo.
Com base em Leal (2006, 2007), os traços mais importantes
para a deinição do processo aqui em estudo (cf. seção 2) são os nós
irmãos Ponto de C e [contínuo] das consoantes, ambos dominados pelo
nó Cavidade Oral (cf. representação arbórea em CLEMENTS; HUME,
1995, p. 276). Assim, a queda de sílaba deve “olhar” internamente para a
Cavidade Oral das consoantes para identiicar a igualdade entre os traços
internos nas consoantes; se houver semelhança, a queda de sílaba pode
ser aplicada, isto é, há variação do processo.
A principal justiicativa para se utilizar a geometria de traços
como base de análise da queda de sílaba é a possibilidade de se descrever
consoantes e vogais de um mesmo modo, pois esses dois segmentos
contêm os traços [coronal], [labial] e [dorsal]. Assim, será possível
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191
veriicar se um mesmo traço tem um comportamento semelhante para a
queda de sílaba nas duas cidades.
Uma vez apresentado o quadro teórico e as questões que
buscamos, na seção a seguir, apresenta-se a literatura de queda de sílaba.
2 A literatura sobre a queda de sílaba e a deinição do processo4
Os estudos sobre a queda de sílaba no português brasileiro
(PB) não são novos. Sá Nogueira (1958), por exemplo, já apresenta
deinições desse processo fonológico; ainda, uma das referências mais
constantes neste trabalho é de mais de 30 anos (cf. ALKMIM; GOMES,
1982). De modo geral, a queda de sílaba é deinida como um processo
fonológico em que a adjacência de duas sílabas com unidades internas
iguais ou semelhantes resulta em apenas uma delas no output. Segundo
Leal (2006), a depender de quão semelhantes são as unidades internas,
a expressão “queda de sílaba” pode ser usada como um hiperônimo,
pois engloba outros dois processos fonológicos: a elisão silábica e a
haplologia. O primeiro é um processo mais abrangente (em termos de
traços fonológicos) do que a haplologia, mas, já que há mais trabalhos
sobre esse último processo, iniciaremos as deinições por ele. Observe
os exemplos a seguir:5
(1)
/t + d/
na fren(TE) DE casa
~
na frenTE DE casa
(2)
/t + t/
quan(TO) TRAbalho
~
quanTO TRAbalho
Os exemplos (1) e (2) são canônicos, pois todos os autores de
que tenho ciência (ALKMIM; GOMES, 1982; BISOL, 2000; TENANI,
2002; BATTISTI, 2004, 2005; PAVEZI, 2006; LEAL, 2006, 2007, 2012;
MENDES, 2009; SIMIONI; AMARAL, 2011; OLIVEIRA, 2012; PAZ,
2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013; OLIVEIRA; VIEGAS, 2013) concordam
que o contexto consonantal com /t/ ou /d/ é favorável à aplicação de
queda de sílaba – ou seja, deve ser um dos contextos /t + t/, /t + d/, /d +
4
As referências aqui apresentadas dizem respeito ao português brasileiro; para o
processo em outras línguas, cf. referências no Capítulo III em LEAL (2012).
5
Seguimos o IPA (International Phonetic Alphabet) para as transcrições, os parênteses
assinalam apagamento de segmento(s), e os contextos de queda de sílaba estão marcados
em maiúsculas.
192
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
d/ ou /d + t/. Uma vez que a única diferença entre as consoantes em (1)
é [vozeamento], há possibilidade de haplologia; em (2), as consoantes
são idênticas /t + t/, e o processo também pode ser aplicado. Ambos os
exemplos (1) e (2) são casos de haplologia, uma vez que a diferença
máxima entre as consoantes está no traço vozeamento.
Alkmim e Gomes (1982, p. 51) propõem os seguintes critérios
segmentais para que haja a possibilidade de apagamento da sílaba:6
(3)
Contexto segmental da haplologia para Alkmim e Gomes (1982):
(i)
a primeira e a segunda consoantes devem ser coronais [-contínuo,
oral] (ou seja, são necessariamente /t/ ou /d/);
(ii) a primeira vogal deve obrigatoriamente ter o traço [+alto]; e
(iii) a segunda vogal e seus traços internos não importam.
Alkmim e Gomes (1982) explicam que se as consoantes forem
diferentes de /t/ e /d/, um processo possível é a elisão vocálica, e nunca
a haplologia, exempliicado pelas autoras com saBE BEIjar (ALKMIM;
GOMES, 1982, p. 48):
(4)
a) elisão vocálica: saB(E) BEIjar
b) adjacência de Cs: saBBEIjar [ˈsab:ejˈʒa]
(5)
haplologia: *sa(BE) BEIjar *[ˈsabejˈʒa]7
Por ser diferente de /t, d/, o único processo possível em (4) e (5)
para Alkmim e Gomes (1982) é o apagamento da primeira vogal (cf.
(4) a), o que acarreta a adjacência de duas consoantes iguais, que icam
alongadas no output (cf. (4) b); com esse contexto consonantal /b + b/, a
haplologia é bloqueada, como se vê em (5). Esse ponto de vista de que a
haplologia só é possível com contextos consonantais /t, d/ é sustentado
também por Tenani (2002), Battisti (2004, 2005), Simioni e Amaral
(2011), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013).
6
Alkmim e Gomes apresentam outras restrições que não estão apresentadas aqui porque
não são sobre contexto segmental (cf. ALKMIM; GOMES, 1982, p. 51).
7
Usamos o asterisco para indicar a agramaticalidade da sentença ou do sintagma (neste
artigo, “agramatical” signiica “categórico para não ser aplicado”).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
193
O primeiro trabalho que apresenta contextos consonantais de
haplologia diferentes de coronais [-contínuo] é Bisol (2000). Como o
intuito da autora é veriicar a relação entre ritmo e processos fonológicos,
ela não trata de contextos segmentais, mas apresenta o seguinte exemplo
de haplologia (p. 409):
(6)
/k + k/
O macaCO COmeu todas as bananas > maca(CO) COmeu
Como vemos em , há a possibilidade de queda de sílaba com
o contexto consonantal /k + k/ para Bisol (2000), ou seja, um contexto
diferente da deinição de Alkmim e Gomes (1982).
Nos exemplos abaixo, estão outros estudos que apresentam
resultados com características consonantais diferentes de Alkmim e
Gomes (1982) e as respectivas cidades estudadas.
(7)
/n + n/
pisci(NA) NO verão (PAVEZI, 2006) São Paulo-SP
(8)
/v + v/
ica(VA) VIAjando (LEAL, 2006, 2007) Capivari-SP
(9)
/p + p/
uns tem(POS) PRA cá (MENDES, 2009) B. Horizonte-MG
(10) /g + k/
meu cole(GA) QUE não ia (OLIVEIRA, 2012) Itaúna-MG
Nos exemplos (7)- , as consoantes de cada contexto têm, no
máximo, a diferença no traço de [vozeamento], o que caracteriza a
haplologia – nesses casos, os contextos são diferentes de /t, d/, e o
processo pode ser aplicado.
Como dito anteriormente, a haplologia é um processo muito
estudado na literatura e é mais especíico do que a elisão silábica, já que,
naquele processo, a diferença máxima entre as consoantes deve ser o
traço [vozeamento]. Para a elisão silábica, observe os exemplos a seguir.
(11) /t + n/
de jei(TO) NEnhum
~
de jeiTO NEnhum
(12) /z + ʒ/
bele(ZA) GIgantesca
~
beleZA GIgantesca
Em (11), o contexto /t + n/ é formado por duas consoantes
coronais [-contínuo, +anterior, -distribuído], em que a primeira é um
segmento oral [-vozeado], e a segunda é uma nasal [+vozeado], e a
194
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
queda de sílaba pode ser aplicada.8 No contexto /z + ʒ/ em (12), há duas
coronais [+contínuo, +vozeado], e há aplicação do processo, mesmo
que /z/ seja [+anterior, -distribuído] e /ʒ/ seja [-anterior, +distribuído].9
Contudo, a elisão silábica não é um processo fortuito, já que o contexto
consonantal é deinido. Observe os exemplos a seguir de Leal (2006):
(13) /k + p/
*mole(QUE) POderoso
(p. 90)
(14) /s + d/
*crian(ÇA) DIfícil
(p. 85)
(15) /d + v/
*pare(DE) VERmelha
(p. 93)
Em casos como (13), há dois segmentos [-contínuo] /k + p/,
mas o ponto de C das consoantes é diferente (há uma dorsal seguida de
uma coronal); em (14), há duas coronais /s + d/, sendo que a primeira é
[-vozeado, +contínuo, +anterior, -distribuído], e a segunda é [+vozeado,
-contínuo, +anterior, -distribuído]; inalmente, no exemplo (15), há
diferenças tanto no ponto de C quanto em [contínuo] nas consoantes, já
que /d/ é uma coronal [-contínuo] e /v/ é uma labial [+contínuo]. Nos
três exemplos (13)-(15), apagar a sílaba torna o sintagma agramatical
em Capivari (LEAL, 2006, 2007).
Até o momento, apresentamos as características das consoantes
da queda de sílaba e, para as vogais, também não há consenso na
literatura: Alkmim e Gomes (1982, p. 50) airmam que somente há
haplologia se a primeira vogal do contexto tiver o traço [+alto]. Assim,
para as autoras, nos contextos segmentais abaixo, há possibilidade de
aplicação de haplologia.
(16) /e + e/ > [i + i]
limiTE DE palavra > limi(TE) DE palavra
(17) /o + e/ > [u + i]
calDO DE cana
> cal(DO) DE cana
Como se observa em (16) e , a representação do contexto vocálico
de Alkmim e Gomes (1982, p. 48) é feito foneticamente, com vogais que
8
Observe que as nasais são [+contínuo] na cavidade nasal, mas, na oral, são segmentos
[-contínuo].
9
Veja que os traços [±anterior, ±distribuído] se aplicam somente às coronais, já que
são nós irmãos dependentes do traço [coronal], que está abaixo desse nó na geometria
(cf. CLEMENTS; HUME, 1995, p. 292).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
195
carregam o traço [+alto] nesse nível. No exemplo a seguir, a aplicação
de haplologia é agramatical segundo as autoras (p. 50), já que a dorsal
/a/ tem o traço [+baixo]:
(18) comiDA DO Líbano > *comi(DA) DO Líbano
Entretanto, Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007) encontraram em
seus resultados aplicação de haplologia tanto com vogais altas quanto
com vogais baixas, como se observa nos exemplos a seguir.
(19) /a + a/
esca(DA) DAniicada
(PAVEZI, 2006, p. 116)
(20) /a + e/
estra(DA) DE terra
(LEAL, 2006, p. 101)
Como podemos notar nesses exemplos (19) e , para Pavezi
(2006) e Leal (2006, 2007), a queda da sílaba é possível em contextos
em que a primeira vogal é uma dorsal, diferentemente do que airmam
Alkmim e Gomes (1982).
Há ainda dois aspectos que devem ser considerados sobre a
queda de sílaba. O primeiro é distinguir esse processo do truncamento:
nesse último, a perda de segmentos e/ou sílabas pode acontecer
independentemente de contexto segmental, e a palavra pode ser reduzida
mesmo quando produzida antes de pausa, como nos exemplos (Parque
da) Redenção >Redença, feijoada>fejuca. Dessa forma, queda de sílaba
e truncamento são processos fonológicos distintos, como exempliicado
a seguir.
(21) a) aplicação de elisão silábica → faculda(DE) NO centro
b) aplicação de haplologia → faculda(DE) DO centro
(22) aplicação de truncamento
→ faço facul //
(23) bloqueio de elisão silábica → *faço faculda(DE) //
Em (21), há variação de queda de sílaba porque os contextos
consonantais a) /d + n/ e b) /d + d/ são favoráveis ao apagamento: em
(21) a), há duas coronais [+vozeado, -contínuo] e, em (21) b), há duas
coronais [+vozeado, -contínuo], sendo que a primeira é oral e a segunda
é nasal; no exemplo (22), o processo é o truncamento, mesmo que depois
196
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
da redução haja uma pausa (indica por // nos exemplos); e, em (23), a
elisão silábica é categórica para nunca acontecer, uma vez que há uma
pausa depois de faculdade, o que impede o apagamento da sílaba.
Um segundo aspecto sobre a queda de sílaba, com opiniões
divergentes na literatura, diz respeito à natureza do processo. Bisol
(2000), Oliveira (2012) e Oliveira e Viegas (2013) defendem que a
aplicação de haplologia se dá em duas partes, seguindo-se Sá Nogueira:
Os fenômenos de haplologia consideram-se em regra casos
de síncope de uma sílaba.
Isto, porém, salvo erro, não é certo: na realidade não há ali
uma supressão pura e simples de uma sílaba; o que há é
uma síncope [...] do vogal [sic] da primeira de duas sílabas
iguais ou semelhantes, seguida da geminação de dois
consoantes [sic] que passam a icar em contacto, os quais
se mantêm geminados ou se fundem num só.
Na pronúncia despreocupada do vocábulo ilologia, por
ex., ouve-se umas vezes il-lo-gia, e outras ilogia.
Na de Campo Pequeno também se ouve umas vezes camppequeno, e outras campequeno.
De saudadoso deve ter-se passado primeiro a saud-doso
e daqui a saudoso. (SÁ NOGUEIRA, 1958, p. 180, grifos
do autor).
Assim, há duas etapas na haplologia: na primeira, há elisão da
vogal; e, na segunda etapa, por estarem adjacentes, as consoantes podem
geminar. Então, a haplologia teria uma natureza tanto de apagamento (da
vogal), quanto de coalescência (de consoantes).
Por outro lado, Alkmim e Gomes (1982), Tenani (2002), Battisti
(2004, 2005), Pavezi (2006), Mendes (2009), Leal (2006, 2007, 2012),
Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) airmam que ocorre o apagamento da
primeira sílaba. Seguimos, neste artigo, essa segunda interpretação, ou
seja, de que há apagamento da sílaba toda, fundamentada nos resultados
Battisti (2005).10 Além desse trabalho, entendemos que há casos em que
a coalescência da primeira e da segunda sílabas parece não se revelar
no output, como no exemplo a seguir, bastante comum na literatura (cf.
10
A análise de haplologia de Battisti (2004) foi feita com base na Teoria da Otimalidade
(PRINCE; SMOLENSKY, 1993), e seus resultados mostram que há apagamento da
primeira sílaba, desencadeado pelo OCP.
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197
BATTISTI, 2004, p. 31; BATTISTI, 2005, p. 81; LEAL, 2006, p. 62;
MENDES, 2009, p. 25; OLIVEIRA; PAZ, 2013, p. 78; PAVEZI, 2006,
p. 33; PAZ, 2013, p. 30-31):
(24) /tr + d/
denTRO DE... > den(TRO) DE...
Em (24), só pode haver apagamento da primeira sílaba: esse é
um dos exemplos que, como airma Battisti, mostra “claramente que o
material fonológico que se realiza no output é o da sílaba da direita.”
(BATTISTI, 2004, p. 32). Entendemos que o problema de se considerar
a haplologia como coalescência se explica pelo fato de esse processo
indicar a convergência de unidades linguísticas, originalmente separadas,
que antes podiam ser distinguidas (CRYSTAL, 2003 [1985], p. 49, 123).
Por exemplo, na palavra /eu/ropa, em alguns dialetos brasileiros, as
vogais /eu/ podem se fundir, formando um único segmento [o] no output,
[o]ropa. Podemos observar que, no resultado da fusão [o], há traços de
ambos os segmentos subjacentes /e/ e /u/:
(25) Fusão entre /e+u/ > [o]
ant.
alto
post.
/i/ •
• /u/
médio /e/ •
baixo
• /o/
/e/ [anterior, médio] + /u/ [posterior, alto]
resulta em:
[o]: [posterior, médio]
/a/ •
Dessa forma, assumimos que a queda de sílaba se dá por
apagamento, e não por fusão de unidades fonológicas; um resultado de
coalescência entre as consoantes /tr/ e /d/ no exemplo (24) deveria levar
em conta também os traços de /r/ do ataque ramiicado, do mesmo modo
como se considerou /eu/ropa >[o]ropa.
Em vista dos exemplos apresentados em (1) e (2) e em - desta
seção, podemos concluir que, segmentalmente, a diferença entre a
haplologia e a elisão silábica é que, no primeiro processo fonológico, as
consoantes do contexto podem ser iguais ou semelhantes (e, nesse caso,
a diferença é, no máximo, no traço [vozeamento]), enquanto que, no
segundo, as consoantes podem ser diferentes também nos traços [anterior,
distribuído] e [nasal] (cf. LEAL, 2006, p. 161).
Ainda que os traços internos às consoantes possam dividir a queda
de sílaba em haplologia e elisão silábica, ambas são tratadas neste artigo
198
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
como um único processo, já que têm as mesmas propriedades segmentais
(cf. LEAL, 2006, 2007 e o estudo piloto realizado no corpus de LEAL,
2012), prosódicas e métricas (ver LEAL, 2006) – e usamos “queda de
sílaba” como um hiperônimo de “elisão silábica” e de “haplologia”.
A deinição geral de aplicação de queda de sílaba é a seguinte:
as consoantes do contexto devem ter o mesmo ponto de C e o mesmo
valor para o traço [contínuo] (cf. LEAL, 2006, p. 165).
Na próxima seção, apresentamos a metodologia empregada nesta
pesquisa.
3 Metodologia
No corpus, há 48 gravações11 de 1 hora cada, com 24 informantes
de Capivari e 24 de Campinas.12 Foram utilizados 50 minutos de cada
gravação, e a obtenção de todos os dados foi feita diretamente no Praat
(BOERSMA; WEENINK, 2010); a frequência default de visualização dos
sons foi 6 kHz (variando, por exemplo, com as fricativas, vozes femininas),
e a resolução na tela variou de 0,5 a 1 segundo, aproximadamente. A
cada contexto de queda de sílaba, a janela era diminuída para a faixa de
0,5 a 1 segundos, e foram marcados nos arquivos de text grid o tempo
da ocorrência e também os segmentos relevantes. Portanto, todos os
11
Nas entrevistas, os diálogos foram conduzidos de tal forma que as conversas se
dessem de maneira informal, e os tópicos das entrevistas foram, basicamente, cinco:
infância, adolescência, namoro/casamento, trabalho, ponto de vista do informante com
relação à sua cidade natal (como era, como está hoje em dia), buscando-se o vernáculo
(LABOV, 1972, p. 208).
12
Para extrair os dados do corpus, foram feitas as seguintes restrições: 1) deve haver
pelo menos uma consoante no ataque das sílabas, já que contextos V # V podem
produzir outros processos fonológicos, como em gaTA EScura>gaT[I]Scura (nesse
exemplo, o processo aplicado é a elisão vocálica); 2) empréstimos foram codiicados de
acordo com a fonologia do português, como em internet> /̩interˈnɛte/; 3) os contextos
segmentais têm uma mesma cavidade oral para as consoantes, uma vez que, se forem
diferentes, a aplicação é categórica (cf. seção 2); 4) a primeira sílaba deve ser fraca (cf.
TENANI, 2002) computamos somente falas neutras (hesitação, ênfase; momentos em
que o informante riu não foram computados); 6) a frase entonacional (cf. NESPOR;
VOGEL, 1986) foi usada para limitar uma ocorrência; e 7) casos de apagamento do
clítico não foram analisados, como no exemplo posTO DE SAúde, que foi realizado
como pos(TO DE) saúde, por uma falante capivariana.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
199
contextos de queda de sílaba da tese foram checados nos espectrogramas
(cf. metodologia ao veriicar se toda a sílaba foi elidida ou parte dela em
Leal (2012, p. 79-81).
A variável dependente analisada é binária, com as variantes
aplicação e não aplicação do processo. 13 Quanto às variáveis
independentes do contexto segmental,14 foram 4 conigurações estudadas:
Igualdade de Segmentos, Cavidade Oral das Consoantes, Cavidade Oral
das Consoantes com Distinção do Traço [nasal] e Cavidade Oral das
Vogais.
Para Igualdade de Segmentos nas Sílabas CV,15 os fatores
estão apresentados a seguir, com um exemplo de aplicação de queda de
sílaba em cada um deles16 (os símbolos à esquerda são utilizados para
apresentar os resultados nas tabelas e gráicos da seção 4).
1. C=V=
Cs iguais, Vs iguais
apren(DE) DEsenho
2. C=V#
Cs iguais, Vs diferentes
apareci(DA) DO norte
3. C#vozV=
Cs diferentes em [vozeamento], Vs iguais
ajudan(TE) DE pintor
4. C#vozV#
Cs diferentes em [vozeamento], Vs diferentes mui(TO) DIfícil
5. C#nasalV= Cs diferentes em [nasal], Vs iguais
conversan(DO) NO telefone
6. C#nasalV# Cs diferentes em [nasal], Vs diferentes
chegar nu(MA) POsição melhor
7. C#distr.
Cs diferentes em [anterior, distribuído]17
...laçar cabe(ÇA). JÁ vamo?
A primeira hipótese para essa variável tem como base o Princípio
de Contorno Obrigatório (OCP – Obligatory Contour Principle):18 na
13
A análise dos dados foi feita com a ferramenta estatística GoldVarb X (cf. SANKOFF;
TAGLIAMONTE; SMITH, 2005).
14
Cf. nota 2
15
Para essa variável, não foram computadas estruturas diferentes de CV; a estrutura
silábica foi uma variável controlada à parte (cf. LEAL, 2012).
16
Apresentamos apenas aplicações do processo nos fatores, mas trata-se de variações
com cada um dos contextos apresentados. Os exemplos nesta seção são todos de Leal
(2012).
17
Neste fator, não distinguimos as vogais porque os dados não tiveram uma distribuição
ortogonal (consoantes diferentes em [anterior, distribuído], com vogais iguais, N= 2/28;
com vogais diferentes, houve knockout, N= 0/27).
18
O OCP foi primeiramente proposto por Leben (1973), em estudos de línguas tonais, e
muitos outros autores trabalham com o princípio (cf. McCARTHY, 1979, GOLDSMITH,
200
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
queda de sílaba, se houver duas sílabas idênticas, o princípio é acionado,
e o apagamento da primeira delas resolve a questão. Então, a expectativa
é que, quanto mais parecidas segmentalmente forem as sílabas, maior
é a probabilidade de aplicação do processo. Nos fatores apresentados
anteriormente, a hipótese é que haja maior propensão à queda de sílaba
nos fatores 1, 3 e 5 (já que as vogais são idênticas) se comparados com
2, 4 e 6, com vogais diferentes.
Outras hipóteses dizem respeito aos traços internos às consoantes:
para [vozeamento], a expectativa é que esse traço não tenha interferência
na haplologia (cf. ALKMIM; GOMES, 1982, TENANI, 2002, BATTISTI,
2004, PAVEZI, 2006; e LEAL, 2006) e nem mesmo na elisão silábica
no sentido de bloquear o processo (cf. LEAL, 2006). Dessa forma, se
[vozeamento] atuar na queda de sílaba, haverá uma diferença na tendência
entre os fatores 1 e 2 e também entre 3 e 4; se esse traço não interferir,
a tendência entre os fatores 1-2 e 3-4 deve ser a mesma. A terceira
hipótese diz respeito ao traço [nasal],19 em que pode haver aplicação de
queda de sílaba com nasais, com base em Pavezi (2006) e Leal (2006);
adicionalmente, isolamos esses segmentos a im de observar como eles
podem inluenciar na aplicação do processo. A quarta hipótese está
relacionada aos traços que estão abaixo de [coronal], com o propósito de
investigar como os traços [anterior, distribuído] interferem no processo.
Com relação às vogais, a cada especificação diferente de
consoantes, propusemos também vogais iguais e diferentes, a im de
examinar se as vogais também intervêm no processo.
O segundo grupo de fatores proposto foi Cavidade Oral das
Consoantes, codiicando-se a primeira e a segunda consoantes de acordo
com suas cavidades orais (ponto de C e valor para [contínuo]). A hipótese
criada para essa variável é que haja uma maior tendência à aplicação
com coronais, uma vez que essas consoantes são subespeciicadas em
diversas línguas (cf. PARADIS; PRUNET, 1991; FIKKERT; LEVELT,
2006) e, especiicamente no PB, estudos reportam que é com /t/ e /d/ que
1990). McCarthy (1988, p. 88) reformulou-o do seguinte modo: “Elementos idênticos
adjacentes são proibidos” (Adjacent identical elements are prohibited). Assim, essa
reformulação dá conta de traços, segmentos, tons, sílabas, etc.
19
Lembramos que, para haver variação, o contexto consonantal deve ter uma mesma
cavidade oral; assim, todos os contextos nasais neste artigo são formados por consoantes
que têm um mesmo ponto de C e um mesmo valor para [contínuo].
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
201
a queda de sílaba ocorre (ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004,
2005; SIMIONI; AMARAL, 2011; PAZ, 2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013;
TENANI, 2002). Foram propostos os seguintes fatores:
1. t+t
duas Cs coronais [-contínuo]
faculda(DE) DE letras
2. s+s
duas Cs coronais [+contínuo]
a polí(CIA) CHEgou
3. p+p
duas Cs labiais [-contínuo]
tem(PO) PRA aposentadoria
4. f+f
duas Cs labiais [+contínuo]
não ta(VA) FAzendo nada de errado
5. k+k
duas Cs dorsais
20
lógi(CO) QUE não
A terceira variável investigada foi Cavidade Oral das
Consoantes com Distinção de [nasal] com os seguintes fatores:
1. t+t
duas Cs coronais orais [-contínuo]
2. s+s
duas Cs coronais orais [+contínuo]
3. p+p
duas Cs labiais orais [-contínuo]
4. f+f
duas Cs labiais orais [+contínuo]
5. k+k
duas Cs dorsais
6. n+n
uma ou duas Cs nasais (com mesma cavidade oral)
Os fatores 1-5 são os mesmos daqueles apresentados na variável
Cavidade Oral das Consoantes, e a única diferença é que nasais foram
separadas no fator 6, como em va(MOS) MARcar? e deita(DO) NO hão.
Decidimos analisar o comportamento das nasais com base em Pavezi
(2006) e Leal (2006), para quem há possibilidade de queda de sílaba
com esses segmentos. Não temos uma hipótese formulada para essa
variável que vá além daquela apresentada na subseção anterior (por
sua subespeciicação, as coronais são as consoantes mais elididas), mas
pretendemos veriicar como se comportam também as nasais, assim como
20
Todas as consoantes dorsais encontradas no corpus são [-contínuo] – /k/ e /g/. Nas
duas cidades, o /r/ forte em rato pode ser produzido como [h], uma laringal [+contínuo,
-vozeado], como em [h]ato; ou como [x], uma dorsal [+contínuo, +vozeado], como
em [x]ato. No entanto, esse tipo de contexto /r + r/ forte não foi encontrado no corpus.
Assim, já que a outra possibilidade de dorsais [x] para o português brasileiro [+contínuo]
não apareceu no corpus, deste ponto em diante, o valor de [contínuo] para dorsais não
será mais indicado – será sempre uma dorsal [-contínuo].
202
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
veriicar qual das conigurações de consoantes (sem separar as nasais
ou colocando-as num fator à parte) é mais relevante para a aplicação do
processo.
A última variável criada para observar o contexto segmental na
queda de sílaba foi Cavidade Oral das Vogais. Como visto na seção
2, a regra de haplologia de Alkmim e Gomes (1982) tem os segmentos
consonantais e vocálicos deinidos diferentemente: as autoras interpretam
que as consoantes devem ser coronais [-contínuo, oral], isto é, utilizam
a fonologia autossegmental (cf. GOLDSMITH, 1976, 1990); para as
vogais, usam a fonética, já que esses segmentos devem ter o traço
[+alto]. Em outras palavras, a representação do contexto consonantal é
fonológica e, para o contexto vocálico, é fonética. Neste artigo, utilizamos
a geometria de traços, o que signiica que tratamos do nível fonológico
dos segmentos, como se observa nos fatores a seguir.
iguais
1. e+e duas vogais coronais
cida(DE) DE Porecatu
2. o+o
acontecen(DO) NO centro da cidade
duas vogais dorso-labiais
3. a+a duas vogais dorsais
chama(DA) DA unicamp
4. e+o coronal + dorso-labial
cida(DE) DO porto
5. e+a coronal + dorsal
tes(TE) NA ponte
6. o+e dorso-labial + coronal
calça(DO) DE sola bem grossa
7. o+a dorso-labial + dorsal
advogaDO DA mãe
V1: coronal
V1: dorso-labial
8. a+e dorsal + coronal
ca(NA) DE açúcar
9. a+o dorsal + dorso-labial
estra(DA) DO ribeirão
V1: dorsal
Considerando essa variável, a hipótese que surge é que a sílaba
pode ser apagada sem importar o contexto vocálico, com base nos
resultados de haplologia de Pavezi (2006) e de queda de sílaba de Leal
(2006, 2007), isto é, não há uma sequência vocálica que bloqueie o
processo (nem mesmo /a/, como defendem Alkmim e Gomes 1982).
A segunda hipótese para o contexto vocálico é investigar como os
pontos de C das vogais podem agir na queda de sílaba. Assim como
foi feito para as consoantes, levantamos a hipótese de haver vogais que
são subespeciicadas no português. Entre outros argumentos sobre a
subespeciicação das vogais, Mateus e D’Andrade (2000, p. 31) explicam
que, em geral, esse segmentos têm uma maior propensão à neutralização
e à epêntese. Na neutralização, as vogais tônicas [e, o], [ɛ, ɔ] e [i, u]
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
203
alternam com [i, u] átonos no português (como em sirvo> s[i]rvo, serve>
s[ɛ]rve e servir> s[e]rvir); no entanto, nunca há neutralização com /a/, pois
essa vogal é sempre realizada como [ɐ] em posição átona. Com relação à
epêntese, [i] e [e] são os elementos acrescidos em palavras no português
(como em advogado>ad[e]vogado ou ad[i]vogado), enquanto que [a]
nunca aparece em epênteses. Assim, com base em Mateus e D’Andrade
(2000), a expectativa é que haja um favorecimento na aplicação de queda
de sílaba com vogais coronais /e, i/ e as dorso-labiais /o, u/ subjacentes.21
Outra hipótese para esse grupo de fatores diz respeito a contextos
com vogais iguais: Battisti (2004, 2005) veriicou em seus dados de Porto
Alegre que sílabas com vogais iguais favorecem a haplologia. Em outras
palavras, a hipótese é que o OCP age também nas vogais.
Com base nessas 4 variáveis, foram feitas 3 grandes rodadas (a
geral – com as duas cidades; a rodada de Capivari; e a rodada de Campinas),
alternando-se o contexto segmental, como está resumido a seguir.
Resumo das rodadas22
Rodada 1: todas as 4 variáveis do contexto segmental, outras 5
variáveis linguísticas e as 5 variáveis sociais;
Rodada 2: variável Igualdade de Segmentos nas sílabas somente com
estruturas CV, outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis
sociais;
Rodada 3: Cavidade Oral das Consoantes, outras 5 variáveis
linguísticas e 5 variáveis sociais;
Rodada 4: Cavidade Oral das Consoantes com distinção de [nasal],
outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis sociais; e
Rodada 5: Cavidade Oral das Vogais, outras 5 variáveis linguísticas
e 5 variáveis sociais.
Na próxima subseção, estão os resultados para as 4 variáveis do
contexto segmental nas rodadas de Capivari e de Campinas.
21
A primeira vogal do contexto, ou seja, aquela sujeita ao apagamento é também o último
segmento de uma palavra, como em tapeTE DA sala>tape(TE) DA sala (primeira vogal
/e/ + segunda vogal /a/). Palavras terminadas em /-i/ e /-u/ átonos no português não são
produtivas: de fato, foram encontradas apenas 16 palavras no corpus com terminação
em /-i/ e 7 terminadas em /-u/.
22
Ver nota 2.
204
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
4 Resultados e discussão: Comparações entre as duas cidades
Nesta seção, comparamos os resultados obtidos para Capivari e
para Campinas, de modo a veriicar se a queda de sílaba tem as mesmas
características nas duas cidades ou se as regras são diferentes para a
aplicação do processo.
Foram computados 5.628 tokens na fala de 48 informantes, cuja
distribuição está apresentada na tabela 1.
TABELA 1 – Resultados gerais de aplicação de queda de sílaba
cidade
N
%
total
%
Capivari
449/2150
17,3
2599
46,2
Campinas
737/2292
24,3
3029
53,8
Total
1186/4442
21,1
5628
Fonte: Leal (2012)
O total de aplicação da queda de sílaba nas duas cidades foi
21,1%, com 17,3% de aplicação de queda de sílaba em Capivari, e
24,3%, em Campinas.23 As frequências das cidades do interior paulista
apresentadas são condizentes com resultados encontrados em trabalhos
sociolinguísticos: Battisti (2004, 2005) encontrou 21% em Porto Alegre;
os dados de Oliveira (2012) resultaram em 22,7% de apagamento na
cidade mineira de Itaúna; Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) obtiveram
15% de haplologia nas cidades paraenses de Belém e Itaituba.24 É
23
Os resultados das frequências de aplicação foram inesperados, já que a expectativa
era que o processo fosse mais aplicado em Capivari do que em Campinas – há mais
contextos de aplicação entre capivarianos (com base nos resultados de LEAL, 2006)
do que em outros dialetos (cf. ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004; PAVEZI,
2006, para haplologia). Esses resultados imprevistos foram atribuídos à variável
Informantes (4 campineiros favoreceram excessivamente o processo, e 3 capivarianos
desfavoreceram, isto é, 4 “empurram para cima” o favorecimento em Campinas, e 3
“puxam para baixo” o desfavorecimento em Capivari.
24
Houve dois trabalhos com frequência divergente: Simioni e Amaral (2012)
encontraram 40% de haplologia em 10 entrevistas (em Bagé-RS), e airmam que
esse resultado deve ser revisto “com um número maior de informantes [...]” (p. 65);
Mendes (2009) encontrou 64% de haplologia em Belo Horizonte, mas a autora não faz
comentários a respeito da frequência encontrada.
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205
interessante notar que as frequências nesses trabalhos são consistentes,
ainda que haja diferenças: (i) no contexto segmental: Battisti (2004,
2005), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) trabalharam com contextos
constituídos de /t, d/, enquanto que Leal (2012) e Oliveira (2012), com
contextos consonantais mais amplos; e (ii) nos dialetos: os autores
trabalharam com dialetos de lugares diferentes (e distantes) no Brasil
– Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013), com o dialeto paraense; Battisti
(2004, 2005), com o dialeto gaúcho; Oliveira (2012), com o dialeto
mineiro; e Leal (2012), com o dialeto paulista. A esse respeito, adotamos
a airmação de Battisti:
Os resultados do estudo realizado conirmam expectativa
inicial: haplologia é regra variável de condicionamento
interno, abaixo do nível da consciência, o que parece não
ser peculiar apenas ao corpus analisado, mas generalizável
ao português brasileiro como um todo. (BATTISTI, 2005,
p. 86)
Assim, um trabalho interessante seria veriicar a relação entre a
queda de sílaba, saliência e consciência, examinando-a como um processo
abaixo da consciência dos falantes.
Uma vez apresentadas as frequências gerais de aplicação de queda
de sílaba, passamos aos resultados das variáveis do contexto segmental
que foram iguais (como em Cavidade Oral das Consoantes, cf. 4.1),
similares (Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] e
Cavidade Oral das Vogais, ver 4.2) e diferentes (Igualdade de Segmentos,
cf. 4.3) em Capivari e em Campinas. Incluímos nessas subseções, além
de tabelas, também gráicos para facilitar a visualização dos resultados.
4.1 Resultados iguais
A variável Cavidade Oral das Consoantes não foi selecionada
em nenhuma das rodadas. Pode-se considerar que foi um resultado igual
nas duas cidades. Portanto, a cavidade oral não interfere na queda de
sílaba em Capivari e nem mesmo em Campinas. E esse é um resultado
inesperado, uma vez que é a cavidade oral das consoantes o nó que
determina se há contexto para a queda de sílaba (isto é, se há variação ou
se o processo é categórico). A solução para essa contradição foi veriicada
no grupo de fatores Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de
[nasal], apresentado na próxima subseção.
206
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
4.2 Resultados similares
Consideramos que duas variáveis tiveram resultados similares
em Campinas e Capivari: Cavidade Oral das Consoantes com Distinção
de [nasal] e Cavidade Oral das Vogais.
Apresentamos os resultados dos fatores de Cavidade Oral das
Consoantes com Distinção de [nasal] das rodadas de Capivari e de
Campinas na tabela 2 e no gráico 1 a seguir.25
TABELA 2 – Comparação de Cavidade Oral das Consoantes
com Distinção do Traço [nasal] em Capivari e Campinas
Capivari
Campinas
N
%apl
p.r.
N
%apl
p.r.
1. t+t
305/1164
26,2
0,653
521/1399
37,2
0,644
2. s+s
31/182
17
0,626
44/203
21,7
0,652
3. p+p
14/51
27,5
0,777
4/37
10,8
0,225
4. f+f
4/60
6,7
0,378
10/59
16,9
0,605
5. k+k
21/89
23,6
0,584
24/129
18,6
0,343
6. n+n
74/1053
7
0,3
134/1202
11,1
0,33
Fonte: Leal (2012)
Nos gráicos, os números que aparecem abaixo dos contextos segmentais (entre
vírgulas) correspondem aos totais em cada cidade – em Capivari e em Campinas,
respectivamente.
25
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
207
GRÁFICO 1 – Comparação da Cavidade Oral das Consoantes
com Distinção do Traço [nasal] em Capivari e Campinas
Fonte: Leal (2012)
Observando primeiramente os fatores com resultados iguais nas
duas cidades, temos que as variantes das coronais (orais) favorecem a
queda de sílaba, e os pesos relativos estão muito próximos (cf. contextos
1. p= 0,653, com coronais [-contínuo], e 0,64426 e 2. p=0,626 e 0,652, com
[+contínuo]), o que corrobora a hipótese inicial de subespeciicação das
coronais. Quanto às nasais, há um desfavorecimento do processo (ver 6.
p= 0,3 e 0,33). Assim, esses resultados revelam que, para nasais e coronais
orais, as duas cidades têm preferências (quase que) idênticas: coronais
favorecem, e nasais inibem. No entanto, não podemos considerar que
essa variável atua na queda de sílaba de modo idêntico nos dois diletos
porque as dorsais interferem no processo de modo oposto: Capivari
favorece o processo nesse contexto, enquanto que Campinas desfavorece
(cf. 5. p= 0,584 e 0,343). Dos contextos 3 e 4, com labiais, não podemos
tirar conclusões, na medida em que não houve uma quantidade coniável
de dados nas três rodadas (tanto na rodada de Capivari quanto na de
Campinas). Esses resultados mostram que pode haver aplicação de queda
26
Deste ponto em diante, o primeiro peso relativo que apresentamos refere-se a Capivari,
e o segundo, a Campinas.
208
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
de sílaba com consoantes diferentes de /t/ e /d/ – ratiicando Pavezi
(2006); Leal (2006, 2007); Bisol (2000); Mendes (2009); Oliveira (2012).
Interessantemente, a Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de
[nasal] foi selecionada nos dois dialetos, um resultado que pode ser
considerado idêntico e signiica que Cavidade Oral das Consoantes com
Distinção de [nasal] interfere na aplicação de queda de sílaba nas duas
cidades, diferentemente de Cavidade Oral das Consoantes (sem separar
segmentos [nasal]).
Outro resultado semelhante nas duas cidades foi obtido na
variável Cavidade Oral das Vogais, como apresentamos na tabela 3 e
no gráico 2.
TABELA 3 – Comparação de Cavidade Oral das Vogais em Capivari e Campinas
Capivari
Campinas
N
%apl
Capivari
N
%apl
p.r.
1. e+e
72/379
19
0,519
126/440
28,6
0,571
2. o+o
46/211
21,8
0,605
75/249
30,1
0,571
3. a+a
25/236
10,6
0,408
35/261
13,4
0,308
4. e+o
18/106
17
0,383
24/110
21,8
0,46
5. e+a
54/220
24,5
0,633
59/220
26,8
0,569
6. o+e
106/621
17,1
0,501
234/763
30,7
0,593
7. o+a
83/347
23,9
0,649
120/394
30,5
0,63
8. a+e
32/302
10,6
0,373
49/391
12,5
0,328
9. a+o
13/177
7,3
0,29
15/201
7,5
0,226
Fonte: Leal (2012)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
209
GRÁFICO 2 – Comparação da Cavidade Oral das Vogais em Capivari e Campinas
Fonte: Leal (2012)
Da variável Cavidade Oral das Vogais, podemos considerar
semelhantes quatro contextos: coronal seguida de dorsal (cf. sequência 5.
p= 0,633 e 0,569), em que há um favorecimento à queda de sílaba nos dois
dialetos, e o favorecimento é maior em Capivari; os outros três contextos
dizem respeito a sequências com uma dorsal na primeira posição, em
que o processo é desfavorecido nas duas cidades (ver 3. p= 0,408 e
0,308; 8. p= 0,373 e 0,328; e 9. p= 0,29 e 0,226), mas podemos notar
que esses contextos são mais aceitos em Capivari do que em Campinas.
Anteriormente, vimos que o ponto de C [dorsal] das consoantes favorece
a queda de sílaba em Capivari e desfavorece em Campinas. Assim, ao
utilizar a geometria de traços na queda de sílaba, foi possível veriicar
resultados de consoantes e vogais com um mesmo comportamento: o
traço [dorsal] interfere no processo de modo a favorecer em Capivari
e a desfavorecer em Campinas, isto é, há uma aceitabilidade maior de
apagamento com esses segmentos em Capivari.
No que concerne às diferenças entre as duas cidades, nas
sequências com duas coronais (ver contexto 1 no gráico 2) e com uma
dorso-labial seguida de uma coronal (cf. 6, com p= 0,501 e 0,593), as
tendências são diferentes: esses contextos são neutros em Capivari, mas
favorecem a queda de sílaba em Campinas.
210
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
Do contexto de uma coronal seguida de uma dorso-labial (cf. 4.
N=106 e N=110), nada podemos concluir, em consequência do baixo
número de tokens nesses fatores para as duas cidades.
Esses resultados conirmam a primeira hipótese, já que o contexto
vocálico não importa para a implementação da queda de sílaba no sentido
de bloqueá-la em Capivari e em Campinas, incluindo vogais dorsais
na primeira sílaba – corroborando Pavezi (2006), Leal (2006, 2007) e
Oliveira (2012), e vai de encontro à proposta de Alkmim e Gomes (1982).
Na seção 3, levantamos a hipótese de que o OCP pode atuar
nos contextos vocálicos, de modo a favorecer o processo se houver
identidade das vogais. Essa hipótese foi refutada, como podemos observar
nos contextos com duas vogais iguais: o fator 1 com duas coronais é
neutro em Capivari e favorecido em Campinas; o contexto 2 com duas
dorso-labiais favorece o processo em ambas as cidades; e o fator 3 com
duas dorsais desfavorece o processo, também em ambas as cidades. Os
resultados com vogais diferentes também conirmam que o OCP não rege
a queda de sílaba: nos contextos com uma coronal na primeira posição
(como em 1. p= 0,519 e 0,571; e 5) e naqueles com uma dorso-labial
na primeira sílaba (sequências 2, 6 e 7. p= 0,649 e 0,63), a queda de
sílaba é favorecida; nos contextos com uma dorsal na primeira posição
(3, 8 e 9. p= 0,29 e 0,226) há desfavorecimento do processo. A exceção
a esse padrão é na sequência 4 com uma vogal coronal seguida de uma
dorso-labial porque seu número de tokens foi baixo, com um total de
N=42/216 nas duas cidades. Assim, esses resultados de contextos com
vogais iguais e vogais diferentes indicam que o importante é o ponto de
C da vogal sujeita à queda (isto é, da primeira sílaba).
Podemos, portanto, airmar que a igualdade das vogais não é
uma característica importante para a queda de sílaba, e o OCP não atua
em nenhum dos dialetos, resultado que vai de encontro aos de Battisti
(2004, 2005), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) e corrobora os de
Oliveira, que explica:
[...] o apagamento da vogal seguida de consoante está
associado à altura da vogal, sendo as vogais mais altas as
mais apagadas por serem mais reduzidas do ponto de vista
articulatório. (OLIVEIRA, 2012, p. 171)
Concluímos que a variável Cavidade Oral das Vogais atua na
queda de sílaba de modo similar nas duas cidades: são diferentes nos
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
211
fatores 1 e 6 (são contextos neutros em Capivari e favorecedores em
Campinas); semelhantes em contextos 5 (há favorecimento nas duas
cidades, sendo um pouco maior em Capivari) e semelhantes também
em contextos com dorsais (desfavorecem, com uma aceitação maior
entre os capivarianos do que entre os campineiros); e as sequências 2 e
7 são iguais nas duas cidades (há favorecimento do processo, com pesos
relativos próximos).
Finalmente, o que parece ser relevante para o processo é o ponto
de C da vogal sujeita ao apagamento, e não a igualdade desses segmentos:
(i)
Com coronais na primeira sílaba, o contexto 1 mostra neutralidade
entre capivarianos e favorecimento entre campineiros; o fator
5 favorece a queda de sílaba em ambas as cidades; e nada
concluímos com o fator 4, devido ao baixo número de dados.
(ii)
Para dorso-labiais na primeira sílaba, o fator 2 favorece o processo
nas duas cidades; no fator 6, há neutralidade em Capivari e
favorecimento em Campinas; há favorecimento nos dois dialetos
com o fator 7.
(iii) Com dorsais na primeira sílaba, há desfavorecimento da queda
de sílaba nos três fatores 3, 8 e 9.
Assim, pode haver favorecimento ou neutralidade com vogais
coronais e dorso-labiais na primeira sílaba, enquanto que as dorsais nessa
posição desfavorecem o processo nas duas cidades.
4.3 Resultados diferentes
A variável Igualdade de Segmentos só foi selecionada em
Campinas, o que signiica que a igualdade entre os segmentos nas sílabas
não é importante para Capivari. É por essa razão que os resultados de
Capivari aparecem com preenchimentos diferentes para indicar que a
variável não foi selecionada na rodada 1, mas, sim, na rodada 2, conforme
demonstrado na tabela 4 e no gráico 3.
212
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
TABELA 4 – Comparação de Igualdade de Segmentos em Capivari e Campinas
Capivari
Campinas
N
%apl
p.r.
N
%apl
p.r.
1. C=V=
34/120
28,3
0,619
60/130
46,2
0,644
2. C=V#
105/445
23,6
0,609
153/443
34,5
0,572
3. C#vozV=
37/157
23,6
0,556
59/166
35,5
0,495
4. C#vozV#
91/348
26,1
0,633
141/410
34,4
0,499
5. C#nasalV=
9/66
13,6
0,363
11/88
12,5
0,372
6. C#nasalV#
29/453
6,4
0,282
52/506
10,3
0,455
7. C#distr.
1/24
4,2
0,299
1/29
3,4
0,1
Cs iguais
[voz]
[nasal]
[ant,dist]
Fonte: Leal (2012)
GRÁFICO 3 – Comparação da Igualdade de Segmentos em Capivari e Campinas
Fonte: Leal (2012)
Nos resultados para Igualdade de Segmentos expostos na tabela
4 e no gráico 3, podemos observar que o processo é favorecido com
sílabas idênticas (cf. contexto 1. p= 0,619 e 0,644), em ambas as cidades;
também há favorecimento no fator com consoantes iguais e vogais
diferentes em ambas as cidades (cf. 2. p= 0,609 e 0,572). Em outras
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
213
palavras, se as sílabas tiverem as mesmas consoantes, sendo as vogais
iguais ou diferentes, não há mudança na tendência. Assim, a hipótese
de o OCP regular a queda de sílaba foi conirmada em parte: sílabas
iguais favorecem o processo, porém sílabas com consoantes iguais, mas
com vogais diferentes também favorecem. Dessa forma, os resultados
revelam que as consoantes são regidas pelo OCP, diferentemente das
vogais, como foi visto na variável Cavidade Oral das Vogais. Para o
traço [vozeamento], os fatores 3 (p=0,556 e 0,495) e 4 (p=0,633 e 0,499)
indicam favorecimento em Capivari e neutralidade em Campinas. Quanto
aos contextos nasais, há desfavorecimento nas duas cidades, tanto com
vogais iguais quanto com vogais diferentes (5. p=0,363 e 0,372; e 6.
p=0,282 e 0,455). Finalmente, no que concerne às diferenças consonantais
nos traços [anterior, distribuído], nada podemos concluir, uma vez que
o número de tokens desse fator foi muito baixo (7. N=24 em Capivari e
N=29 em Campinas).
Ao comparar os três pares (1, 2) (indicados por Cs iguais na tavela
4 e no gráico 3); (3, 4) [voz]; e (5, 6) [nas], observamos que, em Capivari,
os pares Cs iguais e [voz] favorecem o processo, enquanto que o par
[nas] desfavorece; em Campinas, Cs iguais favorecem o processo, o par
[voz] é neutro, e o par [nas] desfavorece. Assim, as tendências mostram
que as vogais parecem inertes ao processo, mas os traços [vozeamento]
e [nasal] interferem de modo diferente em Capivari e em Campinas.
Mesmo que os resultados de Igualdade de Segmentos tenham
poucas diferenças entre as cidades, chamamos a atenção para o fato de
que essa variável só foi selecionada em Campinas e concluímos que
ter sílabas segmentalmente iguais ou diferentes não é relevante para
a aplicação do processo em Capivari. Assim, a variável Igualdade de
Segmentos tem efeitos diferentes nas duas cidades.
4.4. Duas cidades, duas regras?
O principal ponto que buscamos investigar foi se as propriedades
de queda de sílaba são iguais ou diferentes em Capivari e Campinas.
Um resultado igual nas duas cidades foi na variável Cavidade
Oral das Consoantes, que não foi selecionada em nenhuma das rodadas
– ou seja, se separadas somente pela cavidade oral, as consoantes não
interferem no processo, tanto em Capivari quanto em Campinas. Já
que o ponto de C e o valor para [contínuo] (isto é, a cavidade oral das
214
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
consoantes) determinam qual é o contexto de queda de sílaba, esse
resultado foi inesperado. Entretanto, pudemos observar que, se a variável
Cavidade Oral das Consoantes nunca foi selecionada, é importante
separar as nasais. Desse modo, a variável Cavidade Oral das Consoantes
com Distinção de [nasal] passou a ser selecionada.
Com relação a resultados semelhantes, houve duas variáveis: na
Cavidade Oral das Consoantes com distinção do traço [nasal], foi
visto que há tendências e produtividades praticamente idênticas para
coronais orais e para nasais: o primeiro tipo de segmento é favorecedor,
e o segundo, desfavorecedor. No entanto, as tendências são opostas
para dorsais: há favorecimento em Capivari e desfavorecimento em
Campinas, o que indica duas regras distintas. A segunda variável que
teve resultados semelhantes nas duas cidades foi Cavidade Oral das
Vogais, em que veriicamos: (i) igualdades, com favorecimento nos
contextos [dorso-labial + dorso-labial] e [dorso-labial + dorsal], fatores
que têm uma mesma tendência e produtividade; (ii) semelhanças, como
nos contextos com uma [dorsal] na primeira sílaba e contextos [coronal +
dorsal], casos que desfavorecem o processo, isto é, a tendência é a mesma,
mas a produtividade é diferente; e (iii) inalmente, os contextos [coronal
+ coronal] e [dorso-labial + coronal] são diferentes nas duas cidades,
uma vez que há uma neutralidade em Capivari e um favorecimento em
Campinas. Observando-se (i), (ii) e (iii), concluímos que Cavidade Oral
das Vogais tem efeito diferente nas duas cidades.
Quanto a diferenças, a variável Igualdade de Segmentos é
distinta nas duas cidades, já que foi selecionada somente em Campinas.
Concluímos que há duas restrições segmentalmente distintas de
queda de sílaba para as cidades de Capivari e Campinas.27
De modo geral, a queda de sílaba pode ser implementada do
seguinte modo, de acordo com Leal:
(26) A queda de sílaba se dá se as consoantes envolvidas no processo tiverem
o mesmo ponto de C e o mesmo valor para o traço [contínuo] (LEAL,
2006, p. 165).
27
Oliveira (2012) defende que a haplologia e a elisão silábica são um mesmo fonológico.
Essa questão, que vai de encontro aos resultados de Leal (2006, 2007, 2012) e deste
artigo, será tratada em trabalhos futuros.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
215
Com relação a essa regra, Oliveira questiona:
[...] para a haplologia, importa o compartilhamento dos
traços terminais do nó cavidade oral (como propõe LEAL,
2006) ou no nó raiz? Caso o nó relevante seja o nó cavidade
oral, os traços [sonoro] e [nasal] não deveriam interferir no
processo. (OLIVEIRA, 2012, p. 215)
Essa airmação de Oliveira (2012) mostra que ainda restam
questões muito complexas a serem investigadas a respeito da queda de
sílaba. E optar pelo nó de cavidade oral ou pelo nó de raiz não soluciona
a questão sobre qual é o lugar dessa regra (cf. subseção 9.4 de LEAL,
2012).
Uma possibilidade para resolver essa questão foi proposta em
Leal (2012) do seguinte modo: enquanto pontos de C e/ou [contínuo]
diferentes bloqueiam o processo, uma diferença em [±vozeamento] ou
a presença de [nasal] não bloqueia o processo, apenas desfavorece-o ou
mantém-no neutro. Assim, uma forma de dar conta tanto de dados quanto
de teoria seria interpretar que há, pelos menos, duas “fases” na queda de
sílaba: 1a fase: deve-se certiicar que a cavidade oral das consoantes, isto
é, o ponto de C e [±contínuo], é a mesma; 2a fase: eleva-se novamente
ao nó de raiz, para que [nasal], [±vozeado] e [coronal, dorsal e labial]
possam atuar com favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento.
Ainda segundo Leal (2012), há dois problemas teóricos nessa
interpretação de duas “fases”: (A) contraria o princípio de que regras
fonológicas executam uma única operação (CLEMENTS; HUME, 1995:
250), uma vez que, primeiramente, deve-se identiicar a cavidade oral (o
local da regra); em seguida, sobe-se novamente ao nó de raiz, para que
os traços ditem favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento. (B)
Vai de encontro também ao princípio de que, se um processo fonológico
é aplicado num determinado nó, aplica-se também a todos os seus nós
dominados (cf. CLEMENTS; HUME, 1995, p. 251); na segunda fase,
em que o processo “retorna” ao nó de raiz para determinar a tendência
do processo, deve-se ignorar [±contínuo], pois esse traço determina a
possibilidade de aplicação ou o bloqueio – nunca a tendência.28
28
Neste artigo, não apresentamos uma formalização da regra de queda de sílaba (com
base na geometria de traços) em consequência da diiculdade que ainda parece existir em
capturar a regra. Agradeço ao parecerista anônimo por nos chamar a atenção a esse fato.
216
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
De forma resumida, podemos interpretar que há duas grandes
restrições para a implementação do processo: (i) primeiramente, o nó
cavidade oral deve ser o mesmo, isto é, ponto de C e [contínuo] devem
ser os mesmos; de outra forma, há bloqueio; (ii) num segundo momento,
os traços [nasal], [vozeado] e, novamente, o ponto de C ditam a tendência
da regra.
Em vista do que apresentamos nesta subseção, vemos que há
ainda uma grande diiculdade em capturar a queda de sílaba. Por outro
lado, estudos sobre esse processo fonológico podem contribuir para a
teoria fonológica.
5 Considerações inais
O principal objetivo neste artigo foi veriicar se a queda de
sílaba tem características segmentais iguais ou diferentes nos dialetos
de Capivari e de Campinas.
Observamos que há possibilidade de aplicação do processo com
segmentos diferentes de /t/ e /d/, corroborando Pavezi (2006), Leal (2006,
2007), Mendes (2009) e Oliveira (2012), diferentemente do que airmam
Alkmim e Gomes (1982). Ainda para as consoantes, constatamos que
capivarianos e campineiros têm tendências muito parecidas para coronais
orais e para [nasal]: as coronais favorecem o processo (conirmando a
subespeciicação das coronais), enquanto que nasais desfavorecem –
ainda, encontramos resultados de que pode haver aplicação com nasais;
novamente, esses resultados corroboram Pavezi (2006), Leal (2006,
2007), Mendes (2009) e Oliveira (2012). Vimos ainda que as cidades
preferem uma coniguração em que os segmentos nasais são levados
em conta, já que só foram selecionadas as variáveis em que esse traço
foi examinado em separado. Entretanto, as cidades divergem no traço
[dorsal]: há um favorecimento do processo para capivarianos e um
desfavorecimento para campineiros.
Quanto ao traço [vozeamento], observamos que esse traço não
bloqueia o processo, o que ratiica Alkmim e Gomes (1982), Tenani
(2002), Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007); se as consoantes forem
idênticas, isto é, com um mesmo [vozeamento], o processo é favorecido;
e se as consoantes forem diferentes nesse traço, há uma neutralidade ao
processo.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018
217
Para as vogais, pudemos observar que não há bloqueio com
dorsais, o que corrobora Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007) e vai de
encontro a Alkmim e Gomes (1982); interessantemente, esses contextos
de bloqueio para as autoras desfavorecem o processo em ambas as cidades.
Outros resultados para vogais mostraram que houve: (i) diferenças, com
coronais e com dorso-labial seguida de coronal, há um favorecimento
em Campinas e uma neutralidade em Capivari; (ii) semelhanças: uma
coronal seguida de uma dorsal favorecem o processo nos dois dialetos;
outra semelhança é com vogais dorsais, já que há um desfavorecimento
nas duas cidades; e (iii) igualdades: com duas dorso-labiais e com dorsolabial seguida de dorsal, há favorecimento, com pesos relativos próximos,
em ambas as cidades.
Concluímos que as cidades de Capivari e de Campinas têm regras
diferentes de aplicação de queda de sílaba, no que concerne ao contexto
segmental.
Agradecimentos
Agradeço aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões. Os
problemas remanescentes são de minha responsabilidade. Agradeço ainda
à CAPES e à FAPERGS pelo auxílio inanceiro – no doutorado, à CAPES,
e no pós-doutorado, à CAPES e FAPERGS, com uma bolsa DOCFIX).
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A diacronia e a sincronia dos pronomes de primeira pessoa
do plural Nós e A Gente no português brasileiro
e no português uruguaio
Diachrony and synchrony of irst-person plural
pronouns Nós and A Gente in Brazilian Portuguese
and in Uruguayan Portuguese
Cíntia da Silva Pacheco
Centro Universitário de Brasília, Brasília, DF / Brasil
Universidade de Brasília, Brasília, DF / Brasil
cintialetras@yahoo.com.br
Resumo: É importante analisar o percurso histórico da expressão lexical
a gente até sua gramaticalização em pronome, com base na descrição
diacrônica e sincrônica dos pronomes nós e a gente. Por isso, este estudo
explica brevemente a origem do pronome a gente no latim e no português
arcaico, estabelece uma comparação entre as gramáticas tradicionais e
as descritivas, no que se refere à abordagem de nós e a gente, e explica
sucintamente o funcionamento dos pronomes de primeira pessoa do
plural no português brasileiro atual, no português uruguaio e no espanhol
uruguaio, para que possamos entender melhor a complexidade desse
fenômeno em termos de semelhanças e diferenças entre essas variedades
linguísticas.
Palavras chave: variação nós e a gente; português brasileiro; português
uruguaio.
Abstract: It is important to analyze the historical trajectory of the lexical
expression a gente until its grammaticalization as a pronoun, from the
diachronic and synchronic description of the pronouns nós and a gente.
For that reason, we briely explain the origin of the pronoun a gente, in
Latin and in archaic Portuguese, we compare the approach of nós and a
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.221-253
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gente presented on traditional grammars and descriptive grammars, and
we succinctly explain the current functioning of the irst-person plural
pronouns in Brazilian Portuguese, Uruguayan Portuguese and Uruguayan
Spanish, so we can better understand the complexity of this phenomenon
in terms of similarities and differences among these linguistic varieties.
Key words: nós and a gente variation; Brazilian Portuguese; Uruguayan
Portuguese.
Recebido em 7 de dezembro de 2016.
Aprovado em 13 de janeiro de 2017.
1 Introdução
Com base nos poemas a seguir, nota-se que o uso de a(s) gente(s)
impessoal, com ou sem o traço de número, também foi registrado no
português africano de Moçambique de Noémia Soares,1 em 1949 (século
XX), e no português europeu de Luis de Camões,2 em 1595 (século
XVI). Essa característica impessoal, ainda presente no espanhol, é um
traço arcaico do português de maneira geral (MATTOS E SILVA, 2006).
Poema a Jorge Amado
O cais...
O cais é um cais como muitos cais do mundo...
As estrelas também são iguais
as que se acendem nas noites baianas
de mistério e macumba.
(que importa, ainal, que as gentes sejam
moçambicanas
ou brasileiras, brancas ou pretas)
Jorge Amado, vem!
Aqui, nesta povoação africana
o povo é o mesmo também
é irmão do povo marinheiro da Bahia,
1
Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares foi escritora moçambicana e escreveu
esse poema, em 1949, em homenagem a Jorge Amado. O livro Sangue negro foi
reeditado em 2001, pela Associação dos Escritores Moçambicanos.
2
Luis Vaz de Camões foi um importante escritor português e escreveu esse poema
em 1595. O livro Obra completa foi reeditado em 2003, pela Editora Nova Aguilar.
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223
companheiro Jorge Amado,
amigo do povo, da justiça e da liberdade.
(SOARES, 2001, p. 136-137)
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor?
(CAMÕES, 2003, p. 70)
Em toda a obra Os Lusíadas, a gente ou as gentes são empregados
como sintagmas de terceira pessoa, indeinidos. Na própria antologia do
autor, segundo Bechara e Spina (apud Camões 1999), há uma referência
ao emprego da expressão a gente com o mesmo valor do português
contemporâneo, extensão de sentido que é de “o ser humano” (p. 31).
Encontram-se exemplos no singular:
Vedes agora a fraca geração
Quem dum vassalo meu o nome toma,
Com soberbo e altivo coração
A vós e a mi e o mundo todo doma.
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.
[...]
(CAMÕES, 2003, p. 174)
224
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Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam.
(CAMÕES, 2003, p. 89)
É importante, pois, analisar a diacronia do sintagma nominal a
gente até sua pronominalização no português. Posto isso, analisamos
a origem do pronome a gente no latim, no português arcaico e em
outras línguas românicas; a alternância de nós e a gente nas gramáticas
tradicionais, nas gramáticas descritivas; o funcionamento desses
pronomes de primeira pessoa do plural no português brasileiro, no
português europeu e no português uruguaio, para que possamos entender
melhor as semelhanças e diferenças entre essas variedades linguísticas.
1 Nós e a gente no latim, no português arcaico e em línguas românicas
Na época do latim vulgar, houve mudanças morfológicas na
estrutura da língua com a criação de novos indeinidos, ou com a
extensão do sentido já existente. Entre eles, segundo Ilari (2006, p. 96),
“unus assume, além de seu papel de numeral, também as funções de
pronome adjetivo/indeinido; com nec, forma nec unus (nem um), que
substitui o antigo indeinido negativo, nullus.” O autor também registra o
desaparecimento de alguns termos da classe dos indeinidos, como omnis.
No espanhol, italiano e francês (línguas românicas) e no inglês
(língua germânica), respectivamente, ainda mantém-se o uso de uno
como pronome indeinido, diferentemente do português que utiliza o
se, como é possível observar nos exemplos a seguir, de autoria própria.
Uno no debe juzgar tan rápidamente.
Uno non deve essere troppo rapido per giudicare
On ne doit pas être trop rapide pour juger
One shouldn’t be too quick to judge
Não se deve julgar com tanta rapidez.
Na gramática de Hermoso, Cuenot e Alfaro (2006, p. 62), o
pronome uno é analisado como um dos pronomes indeinidos que
“constituem uma classe de palavras com valor de adjetivo, pronome
ou advérbio, que dão nome ao que qualiicam ou substituem um valor
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225
indeterminado: quantitativo, qualitativo ou intensivo” (tradução nossa).3
Nesse caso, uno expressa quantidade ou intensidade.
No português brasileiro atual, o se pode funcionar como índice
de indeterminação nesses casos exempliicados, mas, segundo um
estudo de tradução do francês para o português, de Aguiar (2002,
p. 87), não há um correspondente para on no português e, por isso, essa
expressão francesa ora é traduzida como primeira pessoa do plural ora
como terceira pessoa do plural. Assim, on pode designar uma ou várias
pessoas determinadas no discurso.
No francês, o pronome indeinido on corresponde a uma pessoa,
cada um ou se e precede o verbo na 3ª pessoa do singular: on dit (dizse). Os indefinidos com sentido negativo requerem o advérbio de
negação ne antes do verbo. Em línguas germânicas, como o alemão, o
pronome indeinido deve ser traduzido por man, seguido também pelo
verbo na terceira pessoa do singular: man sagt (diz-se) (DICIONÁRIO
MULTILÍNGÜE, 1998, p. 367 e 427).
Já no português arcaico, de acordo com Lopes (2003), o vocábulo
homem era usado como substantivo e pronome indeinido.
As línguas românicas herdaram o uso indeterminado de
homem, presente já no baixo latim e atestado nas variantes:
hombre/ome (espanhol), uomo (italiano), homem/ome
(português), omul (valaquio), om/hom (provençal) e on
(francês): este último mantém até hoje esse valor. Em
português, entretanto, a partir do século XVI, o vocábulo
homem deixa de ser usado como pronome, interrompendo
aparentemente o processo de gramaticalização do
substantivo. Outro item lexical – a forma a gente – parece
começar a preencher esse espaço vazio deixado no sistema
pronominal. (LOPES, 2005, p. 1)
Segundo Mattos e Silva (2006, p. 160), o pronominal homen,
próprio ao período arcaico (com o mesmo sentido do on francês),
frequentemente expressa a indeterminação do sujeito. Para Lopes (2005,
p. 7), não houve a pronominalização completa do homo como uma
mudança linguística no português, diferentemente do on no francês. Ainda
“constituyen uma classe de palavras com valor de adjetivo, pronombre, o adverbio,
que dan al nombre al que caliican o sustituyen un valor indeterminado: cuantitativo,
cualitativo o intensivo” (HERMOSO; CUENOT; ALFARO, 2006, p. 62),
3
226
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assim, no período arcaico, houve coexistência de homem (e variantes)
como nome e pronome indeinido, conforme exemplos:
E portanto as homen cree por mais verdadeiras quanto el
foi mais presente.
Ca naquel logar so homen ouvir falar de pescado.
De cincoenta anos adeante vai ja homen folgando e
assegando e quedando das tentações.
Ainda segundo Mattos e Silva (2006, p. 160), também é possível
constatar um exemplo de alternância entre homen e a passiva sintética,
ambos em contexto de indeterminação do sujeito:
A quinta he Geometria que fala dos contos e das medidas
per que homen pode saber as canteas e os espaços da terra;
a sexta he a música que fala em como se devian mudar e
mesurar as vozes.
Dias (1959, p. 94), apud Mattos e Silva (2006, p. 169-170), relata
que o pronome utilizado, na época, era homem, com as alomorias omê
e ome. (H)omen, como sujeito indeterminado, é recorrente do período
arcaico até o século XVI. Ainda assim, há resquícios desse uso atualmente
no Nordeste brasileiro.
Para Teyssier (2001, p. 83-84), a obra do dramaturgo Gil
Vicente, representada de 1502 a 1536, documenta a constituição de uma
língua clássica. O caso de homem com sentido indeterminado aparece
em suas peças como arcaísmos característicos de certos personagens,
particularmente de camponeses e mulheres do povo. Era a prova de que
esses traços eram marcados ou estigmatizados pelo público da Corte.
Teyssier (2001, p. 82-83) conirma que essa indeinição era
representada até então pela palavra homem, com o mesmo sentido do on
francês, que desapareceu na época da formação do português clássico,
até o im do século XVI. Assim, a mudança linguística de homem não
foi implementada e inalizada no português, pois o item lexical a gente,
como indeinido ou genérico, entrou primeiramente na língua para ocupar
a lacuna pronominal do sistema linguístico desde a evolução do latim,
uma vez que a gente passou a indicar neutralidade.
Por isso, o processo de gramaticalização de homem foi
interrompido no século XVI. Nessa mesma época, os traços de número
começam a desaparecer do nome (a) gente, o que pode ter interferido
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na pronominalização de homo, uma vez que a gente tornou-se forte
concorrente para substituir a vaga deixada pelo homem indeinido. “O
emprego de homem, no português arcaico, está diretamente relacionado
com a perda da referência do nome que, ao ser utilizado como pronome,
pode admitir uma leitura impessoal (referência zero)” (LOPES, 2005,
p. 8). A perda da referência também é sinal de que a expressão estava
deixando a classe dos nomes, uma vez que a propriedade semântica é
inerente aos nomes (LOPES, 2005, p.7).
Assim, a emergência de a gente se gramaticalizando é um
novo processo depois da variação homem~home. Primeiro a referência
é indeinida com sentido original de povo, depois torna-se genérica
(ZILLES, 2007, p. 31).
A partir do século XVI, a ausência de traço plural para o
substantivo gente, que perde propriedades nominais, ultrapassa 70%. A
pronominalização do substantivo gente foi um processo lento e gradual,
que passa da referência indeterminada, determinada até chegar ao
contexto mais especíico, que é a referência a eu.
Há registros de a gente como pronome já no século XVIII.
Anteriormente partiu de uma expressão substantivada para ambiguidade
interpretativa entre sinônimo de pessoas ou de nós desde o século XVI,
época em que o substantivo começa a perder suas propriedades de
número, mas é no século XIX que a ambiguidade deixa de existir, e a
gente passa a ser usado apenas como pronome no singular, dando início
à fase da gramaticalização (LOPES, 2005, p. 4-6).
Séc. XVI:
Quanto mais se chega a im do mundo, a todo andar, tanto a gente
é mais ruim!
Séc. XVII:
[...] E os tigres, em tanta cantidade (por não haver descampados),
que, em se metendo | a rês no mato, não sae, e o mesmo risco
corre a gente, se não anda acompanhada, e pelos rios e lagos dos
jaguarés...
Séc. XIX:
Rosinha – A prima Maricota disse-me que era uma coisa de pôr
a gente de queixo caído.
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Para Lopes (2005, p. 6), essas ocorrências icaram frequentes a
partir do século XVI, pois eram mínimas no português arcaico. O sentido
de a gente passou a incluir todas as pessoas, inclusive o pronome de
primeira pessoa do singular eu.
No período arcaico, coexistia o emprego de homem (e variantes)
como nome e como pronome indeinido. Com o desaparecimento de
homem como pronome indeinido, o substantivo gente emerge como
pronome. Assim, o processo de gramaticalização de itens lexicais passa
por três usos funcionais, tais como substantivo, “interpretação ambígua”
e pronome indeinido (LOPES, 2005, p. 7, 8).
Exemplo de a gente como substantivo e, portanto, como terceira
pessoa
No que o moço cantava | o judeu meteu mentes, e levó-o a ssa
casa,| poi se foram as gentes (LOPES, 2005, p. 4).
Exemplo de interpretação ambígua (pode ser substantivo ou
pronome indeinido)
Rosinha – A prima Maricota disse-me que era uma coisa de pôr
a gente de queixo caído. (LOPES, 2005, p. 5)
Vianna (2011, p. 95 e 102), que analisou a alternância pronominal
nós e a gente no português europeu, airma que, diferentemente do
português brasileiro, ainda há atualmente exemplos ambíguos no
português europeu, nos quais não se pode airmar se o próprio falante
se inclui ou se são somente as outras pessoas.
as coisas para nós são mais complicadas... muito mais
complicadas...nós tamos muito mais... a gente da
hotelaria nunca se ganhou tanto ou tão pouco não é tanto
tanto pó mais é pó menos... nunca se ganhou tão pouco
como agora... (Amostra Cacém: dado 580, MB1)
tá muito melhor agora porque naquele tempe para se vir
ao Funchal gastava-se três horas... hoje em dia onde eu
faço em meia hora de tempo _ para vir a gente ao Funchal era a quase d’ano a ano ou quande se... (Amostra
Funchal: dado 309, FC1)
A ambiguidade entre nomes e pronomes tem semelhanças
porque também exercem a mesma função sintática. A diferença é que
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os pronomes não podem ser antecedidos de determinantes e funcionam
isoladamente como núcleo do sujeito. A própria ausência de determinante
signiica mais indeterminação (LOPES, 2005, p. 9). A referência genérica
e a posição isolada foram condicionantes linguísticos semelhantes para
homem e a gente, já que, “na pronominalização dos nomes, o item lexical
passa a ocupar posições gramaticais mais ixas, tipicamente pronominais,
podendo assumir um caráter mais genérico e indeterminado” (LOPES,
2005, p. 11).
Também com sentido impessoal, a expressão toda a gente era
variante da expressão todo mundo. Esse uso era visto como brasileirismo
pertencente ao português do Brasil, de acordo com Teyssier (2001,
p. 106).
A forma la gente ou a gente tem a mesma origem latina (gens,
gentis) no português e no espanhol. O percurso diferente é que no
português, após o processo de gramaticalização, o pronome a gente
passou a designar algo indeterminado e genérico. No espanhol, a
correspondência de la gente seria ellos (MAIA, 2008, p. 2659-2660).
Maia (2008, p. 2664-2665) ressalta alguns fatos curiosos sobre
o uso de la gente, num estudo diacrônico desde o século XII até o
período contemporâneo: (i) la gente também está se especializando na
posição pronominal, ou seja, antes do verbo (posições mais ixas); (ii)
há muita ocorrência de la gente com determinação de toda; (iii) a forma
singular está ocorrendo com mais frequência; (iv) la gente não aceita
mais outro termo no meio da expressão, como la vil gente. Assim, a
forma la gente parece estar, portanto, gramaticalizando-se como forma
pronominal de indeterminação, visto que os ambientes favoráveis a essa
gramaticalização são os de referência indeinida.
A expressão lexical plena a gente, ao longo do tempo, passou
a equivaler a nós, tanto no português brasileiro quanto no português
uruguaio. De acordo com Faraco (2005, p. 39-40), esse tipo de mudança
linguística é conhecido como gramaticalização, ou seja, é quando um
elemento lexical (uma palavra) ou uma expressão lexical plena se
transforma em um elemento gramatical, como pronome ou preposição.
2 Nós e a gente nas gramáticas tradicionais
A variação pronominal de primeira pessoa do plural, como
a maioria dos fenômenos linguísticos variáveis, não é devidamente
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registrada nas gramáticas tradicionais. Algumas delas sequer registram
o uso, e outras registram o pronome ainda com certa cautela.
Bechara (2004, p. 166) já cita o pronome a gente, mas associando
seu uso aos contextos de informalidade:
O substantivo gente, precedido do artigo a e em referência
a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta
sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem
cerimoniosa. Em ambos os casos o verbo ica na 3ª pessoa
do singular.
A linguagem cerimoniosa é, certamente, a linguagem mais
formal. O que o gramático não percebe é que o uso de a gente extrapola
os contextos orais e mais informais, chegando até mesmo a contextos mais
monitorados e formais como se pode observar na fala e em produções
textuais de alunos desde o nível fundamental (BRUSTOLIN, 2010) até o
nível superior (SANTOS; COSTA; SILVA, 2011), além de vários outros
tipos de manifestação linguística. Também há exemplos midiáticos, como
o caso notório da própria chamada da Rede Globo A gente se liga na
Globo ou A gente se liga em você. Na escrita, o aparecimento de a gente
está mais vinculado ao gênero textual, como o da propaganda, que mais
se aproxima do interlocutor.
Assim, segundo Zilles (2007, p. 39-41), a gente parece não ser
estigmatizado porque tem uma frequência alta de uso no Brasil (até 80%),
pode ser identiicado em práticas sociais ligadas a determinados gêneros
textuais, como literatura infantil, na voz de crianças, textos publicitários,
correspondência comercial, dicionários, e, geralmente, não tem inluência
da escolaridade.
Em outra gramática tradicional, a de Cunha e Cintra (2001),
o pronome a gente aparece como uma fórmula de representação da 1ª
pessoa. O gramático restringe seu uso aos contextos coloquiais, tanto
na variação com nós como na substituição por eu (CUNHA; CINTRA,
2001, p. 296). Essa expressão pronominal também é interpretada como
equivalente a eu (Se a gente ganhar a luta, tudo na minha vida será
diferente – disse o pugilista) em Faraco e Moura (2002, p. 287).
Ainda em Faraco e Moura (2002, p. 287), o a gente também
aparece como impessoal ou indeterminado (Eu sabia os riscos que
estava correndo. A gente sempre pensa: comigo não vai acontecer. Aí
aconteceu, diz.). No entanto, ao analisar o contexto discursivo, nota-se
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
231
também nesse dado que a gente está em um contexto de primeira pessoa
do singular, com a presença do pronome pessoal reto eu e do pronome
pessoal oblíquo comigo.
Em Almeida (1999, p. 172), há apenas uma breve menção ao
pronome a gente como pertencente ao grupo dos pronomes de tratamento,
ou seja, aqueles que substituem a terceira pessoa gramatical. Assim,
nota-se que o gramático não considera o uso de a gente como primeira
pessoa do plural, mas apenas o uso indeterminado.
Como as gramáticas tradicionais prescrevem normas e não
descrevem propriamente a língua falada, é preciso buscar gramáticas
descritivas e pesquisas linguísticas que expliquem melhor como
funcionam os pronomes de primeira pessoa do plural no português
brasileiro, sobretudo o pronome gramaticalizado a gente.
3 Nós e a gente nas gramáticas descritivas e na gramaticalização
Nessa nova era de gramáticos linguistas, selecionamos dois
autores, Neves (2000, 2008, 2009) e Castilho (2010), para ilustrar como
o fenômeno nós e a gente é analisado do ponto de vista da gramática
descritiva, que, em sua maioria, tem como base a realidade linguística
do português culto brasileiro4 e o processo de gramaticalização.
Da mesma forma que nós, a expressão a gente também pode
se referir ao indivíduo que fala (a gente=eu) (NEVES, 2008, p. 529).
Segundo Neves (2008, p. 509, 521), a propriedade geral dos pronomes
pessoais é a de serem palavras (i) fóricas – quando assumem referência
4
Lucchesi (1994, p. 18-26) propõe três conceitos de norma: norma padrão, norma
culta e norma popular. A norma padrão é a norma ideal, sem falantes, prescrita pela
gramática tradicional. A norma culta é de fato a língua utilizada pelos falantes cultos
de nível superior completo e antecedentes biográico-culturais urbanos dos segmentos
mais favorecidos da sociedade. A norma vernácula seria a língua falada pelas classes
dominadas, estigmatizadas e não escolarizadas. Bagno (2005 e 2003) faz uma releitura
dessa e de outras terminologias em sua tese de doutorado, publicada como livro em
Dramática da Língua Portuguesa (2005), utilizando uma longa resenha de textos
que tratam desse tema. Para Bagno (2005, p. 141-156) e (2003, p. 51-70), a divisão
seria entre norma padrão (que não é variedade linguística e, portanto, não é falada
por ninguém), variedades cultas e variedades populares e, posteriormente, variedades
prestigiadas e estigmatizadas, que reletem mais as características sociolinguísticas de
uma comunidade.
232
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
no uso, retomando passagens do texto ou demonstrando traços especíicos
de fala – e (ii) exofóricas ou dêiticas, quando é preciso recorrer à situação
extralinguística, de quem é a fala e para quem a fala está sendo dirigida.
As duas grandes funções são interacional e textual.
Neves (2009, p. 39-40) explica a variação pronominal de primeira
pessoa do plural por meio da gramaticalização, que é um processo da
mudança linguística, ou seja, um processo em andamento. Para isso,
utiliza exemplos diferentes do uso de a gente:
• O primeiro, historicamente “legítimo”5
Diligente e decidida é quase toda a gente desta região, mas
também é um tanto intolerante, ainda pouco civilizada.
• O segundo, hoje, “tolerável” na linguagem coloquial
Bem, a gente depois combina.
• E o terceiro, ainda “proscrito”
Eu disse: a gente podemos enforcar, que isso não vale nada.
É perceptível que a expressão lexical a gente originalmente
significasse uma terceira pessoa e a referência fosse totalmente
indeterminada (“legítimo”). Posteriormente houve uma mudança
linguística em que a gente transformou-se em pronome de primeira
pessoa do plural (“tolerável”), ainda não totalmente gramaticalizado,
principalmente se levarmos em consideração que a expressão a gente
podemos é estratiicada socialmente no português brasileiro e, portanto,
não é um traço gradual das variedades linguísticas do Brasil. Esse caso
é mais estigmatizado e menos recorrente no português brasileiro do que
no português europeu (“proscrito”).
A terminologia traços graduais e traços descontínuos é de
Bortoni-Ricardo (1998, p. 102), que caracteriza, em verdade, dois tipos
de regras variáveis; regras descontínuas, “que deinem uma estratiicação
descontínua” e regras graduais, “que deinem uma estratiicação contínua”.
Os traços graduais são exempliicados pelo uso de a gente juntamente
com a concordância padrão (a gente vai), e os traços descontínuos são
exempliicados pelas expressões a gente vamos e nós vai, já que há estigma
5
As aspas são da própria autora talvez pelo fato de as expressões serem até pejorativas
no caso de “tolerável”.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
233
por parte do falante e é resultado de uma estratiicação social maior. Em
suma, traço gradual indica um uso mais geral e uma menor estratiicação,
e o traço descontínuo indica uma maior estratiicação e um uso mais
especíico por alguns grupos de falantes ou membros da comunidade.
Voltando ao percurso diacrônico de a gente, é importante entender
alguns princípios da gramaticalização, propostos por Neves (2009,
p. 39-40):
• Persistência – na ocorrência tolerável, “permanecem vestígios
de signiicado lexical original” de terceira pessoa com sentido
genérico.
• Descategorização – “perda ou neutralidade dos marcadores
morfológicos e das características sintáticas próprias das
categorias plenas (como os substantivos)”. A variação
morfológica desconsidera “o estatuto de terceira pessoa de a
gente (um sintagma nominal): trata-se de uma lexão, para efeito
de concordância, em primeira pessoa do plural, concordância
necessariamente ligada a uma categoria pronominal, não
substantiva”. Acredito que nessa categoria se enquadre o exemplo
a gente vamos que passa a concordar também com a primeira
pessoa do plural, e não somente com a terceira do singular.
• Divergência e estratiicação – “coexistência dos dois
diferentes modos de concordância com a forma quasepronominal a gente – uma na terceira pessoa do singular e
outra na primeira pessoa do plural – e, ao mesmo tempo,
mantém-se vivo o uso original do sintagma nominal a gente.”
• Especialização – diferentes níveis de funcionalidade e de
valorização sociocultural para cada realização linguística.
São diferentes escolhas para diferentes ins.
Nesse sentido, mesmo com a expansão do uso de a gente no
português brasileiro, há algumas posições em que o pronome não ocorre,
como a possibilidade de deinir a cardinalidade (quantos indivíduos) para
nós, diferentemente de a gente. (Exemplo: Todos nós. *Todos a gente.
(NEVES, 2008, p. 517-518). A nosso ver, a agramaticalidade do exemplo
*Todos a gente é uma evidência de que o pronome a gente ainda não está
totalmente gramaticalizado no português brasileiro, como os exemplos
“nós quatro” e “*a gente quatro”.
234
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
Com relação aos possessivos no sintagma nominal (SN), também
é possível a combinação de o ou um como demonstrativo juntamente
com o possessivo. Exemplo: Esse nosso cineminha/Agora vamos para
o nosso outro assunto (NEVES, 2008, p. 577 e 579). Novamente o
possessivo correspondente ao pronome a gente (da gente) não ocorre em
contexto de sintagma nominal com artigos o ou um, ou seja, o pronome
a gente ainda não está completamente implementado, mas em processo
de gramaticalização no português brasileiro, seguindo todos os cinco
princípios descritos por Neves (2008).
Zilles (2007, p. 32-33) também trata da gramaticalização com
uma mudança linguística em que se atribui o status gramatical a um item
lexical, mas subdivide os princípios em quatro, a saber:
• Dessemantização: redução semântica, bleaching, perda
de conteúdo semântico. A gente perde o traço de povo,
porém mantém o de pessoa.
• Extensão: generalização contextual, uso em novos
contextos; Quando se percebe o uso de a gente, na função
de sujeito, aumentar, de 1970 para 1990, e expandir para
contextos além do genérico, como a referência mais
especíica. Seria o equivalente à persistência de Neves
(2008, p. 39-40).
• Descategorização: perda de propriedades morfossintáticas
características das formas-fonte, incluindo a perda do status
de palavra independente própria da cliticização e da aixação.
Quando gente está em estruturas ixas como boa gente e perde o
plural gramatical e o gênero feminino ao longo do tempo. Seria
o equivalente à descategorização de Neves (2008, p. 39-40).
• Erosão: redução fonética, perda de substância fonética.
Quando a gente adquire novas pronúncias como: A gente,
a hente, a’ente, ‘ente.
Nesse sentido, para Zilles (2007, p. 28-29, 34), o feixe de
mudanças está inter-relacionado com o sistema pronominal e com a
concordância dos pronomes nós e a gente, e você e tu. Assim, a inserção
de a gente e você no português brasileiro atinge o parâmetro do sujeito
preenchido, que se tem tornado frequente como resultado da redução do
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
235
paradigma verbal. Há também o impacto da redução fonética de você
para cê da mesma forma que de a gente para a hente, a’ente,‘ente.
Além de Neves (2008), Castilho (2010, p. 207 e 439) também
descreve esse fenômeno linguístico em sua gramática e airma que há
substituição de nós por a gente tanto no português brasileiro popular
como no português brasileiro culto. Mais adiante (2010, p. 477) ressalta
que a gente comuta com nós nos mesmos contextos. E na página seguinte
(2010, p. 478), de fato, traz os dados da pesquisa de Omena (1978) para
delimitar as variáveis propícias para o uso de a gente.
Dessa forma, Castilho (2010, p. 477) fornece resultados
variacionistas que contribuem para a discussão de que não se trata de
uma mera substituição de uma forma por outra, mas, sim, de variação
linguística condicionada por fatores linguísticos e sociais. Assim, a
expressão a gente aparece junto com os outros pronomes pessoais numa
reconiguração do quadro pronominal brasileiro, ainda que seja registrada
apenas como pertencente ao português brasileiro informal quando já se
sabe que o a gente também exista no português mais formal.
Com base nessa concepção de variação linguística, sintetizamos
a seguir pesquisas variacionistas no âmbito do português brasileiro e
do português europeu sobre a alternância nós e a gente como pronome
de primeira pessoa do plural.
4 Nós e a gente no português brasileiro e no português europeu
Desde a década de 1980, inúmeros estudos variacionistas têm
sido realizados sobre a variação pronominal de primeira pessoa do plural
na variedade do português brasileiro. Por isso, faz-se necessário reunir
alguns trabalhos para identiicarmos a frequência em cada localidade e em
cada região do Brasil, que servirá para compararmos com os resultados
do português brasileiro da fronteira e do português uruguaio.
No português uruguaio, não se tem estudos variacionistas acerca
desse fenômeno linguístico. No português europeu, os estudos são poucos
(RUBIO, 2012 e VIANNA, 2011), se comparados ao português brasileiro,
mas já revelam que, em Portugal, a tendência maior é o uso do pronome
nós (RUBIO, 2012, p.355); o a gente é utilizado com concordância
no plural em 1/4 das ocorrências (RUBIO, 2012, p. 18); o PE tem
comportamento mais conservador, e a variação é estável com mudança
geracional, ao passo que, no PB, o comportamento é mais inovador, e a
236
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
mudança está em curso (VIANNA, 2011, p. 202-204 e RUBIO, 2012,
p. 356); a faixa etária não é selecionada no PE, mas a frequência de uso de
nós é maior entre os jovens, enquanto no PB a faixa etária é selecionada
com os jovens favorecendo mais a gente (RUBIO, 2012, p. 358).
Para analisarmos as diferenças e semelhanças da variação
de primeira pessoa do plural no Brasil e em Portugal, é interessante
comparar, minimamente, as frequências de nós e a gente no português
brasileiro como um todo e no português europeu conforme a Tabela 1.
A ordenação dos dados é feita com base na porcentagem de a gente por
ser a variante inovadora e o foco da investigação.
TABELA 1– Percentagem global das variantes nós e a gente
no português brasileiro e no português europeu6 7 8 9 10
Variedade
Autor
Oliveira, 2008
85%
15%
João Pessoa – Projeto VALPB6 – PB
Fernandes, 1999
79%
21%
Rio de Janeiro – Amostra Censo de 2000 – RJ
Omena, 2003
79%
21%
Rio de Janeiro – Amostra Censo de 1986 – RJ
Omena, 2003
78%
22%
Pelotas – Projeto VARX7 – RS
Borges, 2004
78%
22%
Goiás – GO
Mattos, 2013
77%
23%
Norte luminense – RJ
Machado, 1995
73%
27%
73,8%
26,2%
Rubio, 2012
8
Florianópolis – Projeto VARSUL – SC
Seara, 2000
Vitória – Projeto PORTVIX9 – ES
Mendonça, 2010
72%
28%
70,8%
27,3%
Rio de Janeiro – RJ
Jaguarão – Projeto BDS Pampa10 – RS
Omena; Braga, 1996
70%
30%
Borges, 2004
69%
31%
Porto Alegre – RS
Zilles, 2007
69%
31%
Curitiba – PR
Borba, 1993
64%
36%
NURC – RJ
Silva, 2010
63%
37%
Projeto VALPB – Variação Linguística no Estado da Paraíba.
Projeto VARX – Banco de dados por classe social de Pelotas.
8
Projeto VARSUL – Variação Linguística na Região Sul do Brasil.
9
Projeto PORTVIX – Português Falado na Cidade de Vitória.
10
Projeto BDS Pampa – Banco de dados sociolinguísticos.
7
Nós
Caimbongo – Cachoeira – C. rural afro-brasileira
– BA
Interior Paulista Iboruna – SP
6
Agente
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237
11 12 13 14 15
Piabas – C. rural de Anselino da Fonseca – BA
Sampaio e Lopes, 2009
62%
38%
Blumenau – SC
Tamanine, 2002
60%
40%
Rio de Janeiro – Projeto NURC
Lopes, 1998
59%
61%
Lages – SC
Tamanine, 2002
58%
42%
Cinzento – C. afro-brasileira – Projeto Vertentes12
– BA
Antonino; Bandeira, 2011
56%
44%
Brasilândia – C. de Periferia – SP
Coelho, 2006
53%
47%
Blumenau – SC13
Silva, 2004
51%
49%
Concordia – SC
Franceschini, 2011
50%
50%
Chapecó – SC
Tamanine, 2002
48%
52%
Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador – Projeto
NURC14
Lopes, 1998
42.2%
57.8%
11
CRPC15 – Portugal
Rubio, 2012
42%
58%
Ponta Porã – C. de Assentados – MS
Muniz, 2008
39%
61%
Salvador – Projeto NURC
Lopes, 1998
37%
63%
Porto Alegre – Projeto NURC
Lopes, 1998
28%
72%
Funchal – Portugal
Vianna, 2011
26%
74%
Cacém – Portugal
Vianna, 2011
22%
78%
Oeiras – Portugal
Vianna, 2011
9%
91%
Em termos de frequência geral do fenômeno, de 59% a 85%,
são estes os estados que mais utilizam o pronome a gente: Bahia
(comunidade isolada), Paraíba, Rio Grande do Sul (Pelotas), Goiás, São
Paulo (interior), Santa Catarina (Florianópolis) Espírito Santo, Rio de
Janeiro (de 59% a 78%). De 58% a 69%, os estados são: Rio Grande
do Sul (Jaguarão, Porto Alegre) e Santa Catarina (Curitiba, Blumenau,
Lages) e a comunidade rural de Piabas (Bahia). De 48% a 56%, temos a
comunidade afro-brasileira (Bahia), São Paulo (periferia), Santa Catarina
(Blumenau, Concórdia e Chapecó). Abaixo de 42 % de uso de a gente,
ou seja, favorecendo o uso de nós, cita-se o trabalho de Lopes (1998),
11
Projeto NURC – Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro.
Projeto Vertentes – Português Popular do Estado da Bahia.
13
As entrevistas foram feitas com proissionais da saúde, em sua grande maioria,
graduados, e obtidas por meio de entrevistas do Programa do Jô.
14
Projeto NURC – Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro. Esses são os resultados
das três localidades juntas.
15
CRPC – Corpus de Referência do Português Contemporâneo.
12
238
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
que mostra resultados conjuntos para Rio de Janeiro, Porto Alegre e
Salvador (Projeto NURC). Em amostras separadas do português culto,
Porto Alegre (28%) e Salvador (37%) permanecem com percentuais
baixos. Em outras amostras do RJ, registra-se que a frequência de uso
do a gente chega no mínimo a 59% (para essa amostra do NURC, ou
seja, apenas de falantes cultos), 63%, 70%, 73%, 78% e no máximo de
79%, enquanto em Porto Alegre é bem mais alta, com 69% quando não
se trata somente de falantes cultos.
O Brasil é um país continental e, justamente por conta da sua
grandeza, os estados de uma mesma região não exibem um comportamento
linguístico idêntico, haja vista que o uso de a gente no Rio Grande do
Sul, por exemplo, ocorre desde 78% (Pelotas) até 69% (Jaguarão e Porto
Alegre); no Paraná é de 64% (Curitiba); e em Santa Catarina, por sua vez,
a frequência é de 72% (Florianópolis), 60% (Blumenau), 58% (Lages) até
48% (Chapecó). De uma forma geral, o português brasileiro privilegia o
uso de a gente em detrimento de nós, exceto em Chapecó (SC). Até mesmo
em comunidades mais isoladas (53%, 56%, 62% e 85%) o a gente já está
presente majoritariamente, exceto em Ponta Porã (39%), talvez pela situação
fronteiriça com o Paraguai, ainda que não tenha acidente geográico.
Interessante também observarmos os resultados de Jaguarão
(Brasil) que faz fronteira ao Sul com Rio Branco (Uruguai). Nessa
localidade, o uso de a gente é de 69% contra 31% do uso de nós. Jaguarão
é uma fronteira com acidente geográico, ou seja, seu limite é estabelecido
isicamente por meio de uma ponte. Essa comunidade fronteiriça exibe
resultados semelhantes à maioria do Brasil quanto ao uso crescente do
pronome a gente.
Entre os grupos de fatores sociais que normalmente são relevantes
para o fenômeno (tabela 1), podem-se citar, em ordem de recorrência:
(v) faixa etária, (vi) sexo; (vii) escolaridade; e (viii) localidade. Entre
os grupos de fatores linguísticos, praticamente em todos os trabalhos,
podem-se elencar, em ordem de importância: (i) paralelismo formal e
discursivo; (ii) traço semântico do referente ou tipo de referência; (iii)
tempo verbal; e (iv) saliência fônica.
Sobre o português europeu, Vianna (2011), na análise da
alternância pronominal de três cidades de Portugal, obteve valores
diferentes para cada uma das comunidades (26%, 22% e 9% de uso do
a gente, respectivamente, para Funchal, Cacém e Oeiras). Assim, Vianna
(2011, p. 90) conclui que
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
239
a forma inovadora ‘a gente’ é a estratégia preferencial no
desempenho oral dos entrevistados brasileiros; ao passo
que, entre os portugueses que compõem a amostra, é a
forma padrão ‘nós’ que se destaca como a mais produtiva
na indicação da primeira pessoa do plural.
Em termos de comparação dos trabalhos sobre português europeu,
os percentuais de Vianna (2011) e Rubio (2012) são bem diferentes. As
três comunidades do português europeu obtiveram 74%, 78% e 91% de
uso do nós, respectivamente, para Funchal, Cacém e Oeiras. Os resultados
de Rubio (2012) são de 58% para o uso de nós no Corpus de Referência
do Português Contemporâneo de Portugal.
A diferença dos dois trabalhos reside nas diferentes opções
metodológicas escolhidas que interferem, sobretudo, nos resultados
percentuais. Rubio (2012) considera apenas os casos de sujeito explícito
e sujeito não explícito que apresentam em contextos anteriores as
formas nós e a gente. O emprego de –mos sem referente explícito
não é considerado dado, tanto nos casos isolados como nas primeiras
referências, pois não é possível saber se o sujeito nulo é nós ou a gente,
porque “no PE, tanto a forma nós como a gente são candidatas potenciais
a ocorrer com verbos lexionados em 1PP”.
No entanto, Vianna (2011) considera esses dados, o que altera
seu resultado geral com a frequência alta do pronome nós. Assim, os
resultados de Vianna (2011) para o pronome nós estão vinculados às
ocorrências de verbos com desinências de 1PP sem referente explícito,
ou seja, os casos de zero nós. Nesse sentido, a proposta da pesquisa de
Rubio (2012) tem como um dos focos a análise da alternância pronominal
entre nós e a gente, e não a representação do sujeito em 1PP do discurso
(RUBIO, 2012, p. 227-230).
Neste trabalho, assim como em Vianna (2011), consideramos
todos os dados de sujeito implícito com a desinência de primeira pessoa
do plural como sendo nós, porque não há nenhum dado de sujeito explícito
com o pronome a gente e desinência -mos nas entrevistas de Aceguá,
fato que conirma o uso menos encaixado na fronteira. Nesse sentido,
toda vez que aparece essa desinência e o sujeito implícito/não expresso,
consideramos que se trata do pronome nós, assim como Vianna (2011).
Rubio (2012) airma que, tanto no português brasileiro quanto no
português europeu, há variação pronominal de primeira pessoa do plural
e de concordância verbal de primeira pessoa do plural. No português
240
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
europeu, a frequência de uso do pronome a gente é de 42%, enquanto
no português brasileiro do interior paulista é de 73.8%. No português
brasileiro, quatro variáveis linguísticas (paralelismo discursivo, saliência
fônica, grau de determinação do sujeito e tempo e modo verbal) e duas
extralinguísticas (escolaridade e faixa etária) foram selecionadas. No
português europeu, uma variável linguística (paralelismo discursivo) e
duas extralinguísticas (escolaridade e sexo) foram selecionadas. A faixa
etária não foi selecionada para o português europeu, mas a frequência
mostra que quanto maior a idade, maior o uso de a gente.
Para Rubio (2012, p. 357) “o fenômeno variável se sujeita às
mesmas “pressões” formais, ainda que os pronomes exerçam funções
diferentes em cada uma das variedades”, porque paralelismo discursivo
é semelhante nas duas variedades, e também em Aceguá, como teremos
oportunidade de ver, mas traço semântico do sujeito e tempo e modo
verbal são diferentes. Deve-se levar em conta também que a produtividade
de a gente é menor em Portugal e no Uruguai do que no Brasil.
Uma diferença importante, segundo Rubio, é que, no português
europeu, o pronome a gente é estigmatizado, por isso as mulheres e os
mais escolarizados tendem a evitar seu uso. No português brasileiro e
no português uruguaio de Aceguá, o pronome a gente é inovador, mais
urbano e mais prestigiado. Essa provável ausência de estigma, segundo
Zilles (2007, p. 37), justiica-se pelo caráter crescente do uso da forma
inovadora a gente na fala de todo o país, o que chega a quase 80%.
Na variedade portuguesa, a concordância verbal com nós é
categórica, mas com a gente é variável. A frequência da concordância
verbal de primeira pessoa do plural ica em torno de 24,5% para a gente
vamos e 75,5% para a gente vai, percentuais mais altos que no português
brasileiro (RUBIO, 2012, p. 361-362). O emprego da primeira pessoa do
plural junto de a gente é consequência direta da diminuição das idades e
da escolaridade, o que sugere mudança linguística em progresso como
também airma Omena (1996, p. 192).
Rubio (2012), ao fazer uma comparação entre a variedade
brasileira do interior paulista e a variedade europeia, traz argumentos
em defesa de uma origem em comum e da deriva natural das línguas,
adicionando evidências para a hipótese de Scherre e Naro (2007).
Em suma, com base nos trabalhos do português brasileiro e
do português europeu, pode-se ter uma visão panorâmica da variação
linguística de nós e a gente em contextos de primeira pessoa do plural e de
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018
241
como esses resultados são importantes para o entendimento do fenômeno
em geral, das suas inluências, das semelhanças e diferenças entre o
português do Brasil e de Portugal. No português europeu, mesmo com
pesquisas metodologicamente diferentes, o uso de nós é mais frequente
do que no português brasileiro. Nesse sentido, o pronome a gente está
mais avançado no português brasileiro de maneira geral. Para a maioria
das amostras, a frequência de nós em Portugal, tomando Rubio (2012)
como referência (58%), apenas não é maior do que os dados do NURC
(57,8%) e os dados de Ponta Porã (61%).
5 A variação de nós e a gente na fronteira
No livro Nós falemo brasileiro (1987), especialmente na parte
que versa sobre os fenômenos linguísticos que os autores Elizaincín,
Behares e Barrios (1987, p. 85) encontraram no português uruguaio da
década de 70, não há menção à alternância nós e a gente. Segundo os
autores, o uso de a gente do lado uruguaio não tem o mesmo signiicado
do português brasileiro, diferenciando-se da primeira pessoa do plural,
além de o seu uso não ser sistemático e regular.16
No uso de a gente, observamos que não há a tendência
(como em P brasileiro) de substituir sistematicamente o
pronome “nos”, pelo contrário, quando aparece, mantém o
sentido impessoal “restrito”, diferenciando-se claramente
da quarta pessoa. Por outro lado, somente a encontramos
consignada em Vichadero/Minas de Corrales (V/MC)
e Aceguá e Isidoro Noblía17 (A/IN); ainda que nestas
localidades seu uso não seja sistemático. (ELIZAINCÍN,
BEHARES E BARRIOS, 1987, p. 85, tradução nossa).18
16
Fato semelhante foi descrito por Carvalho (2003b), ao constatar variação na pronúncia
do lh, tanto como palatal lateral quanto semivogal, contrariando a airmação de Rona
(1965) de que a vocalização era categórica na fronteira.
17
As localidades por extenso foram acrescidas por mim. Os exemplos encontrados
nessas localidades são: (i) A gente passa pelo ovo; (ii) A gente ica u charque; (iii) Se
frita como a gente quiser. (ELIZAINCÍN, BEHARES, BARRISO, 1987, p. 85). Os
exemplos dos autores foram transcritos de acordo com a norma ortográica vigente, e
não com a norma fonética.
18
“En el uso de a gente observamos que no se tiende (como en P brasileño) a reemplazar
sistemáticamente al pronombre “nos”; por el contrario, cuando aparece, conserva el
242
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Para os autores, o pronome a gente não é utilizado como variante
de nós, mas é encontrado em Aceguá, o que não quer dizer que ocorria
nos dados dos autores de maneira variável. Na concepção de Elizaincín,
Behares e Barrios (1987, p. 81-85), o pronome a gente era uma das
diferentes formas de expressar impessoalidade nos Dialetos Portugueses
do Uruguai (DPU).
Elizaincín, Behares e Barrios (1987, p. 13-14) descrevem o
falar da fronteira como dialetos mistos de base preponderantemente
portuguesa. Assim, as estruturas impessoais estariam relacionadas ora
com o português, ora com o espanhol. Essa explicação é baseada em
uma coleta de dados aleatórios sem o devido controle das variáveis
linguísticas e sociais. Por isso, aparentemente, não se tem regularidade
linguística. Os resultados são demonstrados com poucos dados e por
meio de frequências relativas (apenas percentagens), sem uma maior
sistematização da variação linguística. De qualquer forma, isso não os
impediria de encontrar a gente como pronome alternado com nós, se
fosse o caso.
Um exemplo dessa “mistura” a que os autores se referem são as
expressões impessoais utilizadas pelos falantes da fronteira, tais como o
verbo haver e ter; os verbos fazer e dar; o sujeito genérico; a partícula
se e os pronomes ou as expressões indeinidas (uno, a gente). Elizaincín
(1992, p.135-136), em obra posterior, ainda acrescenta outras estruturas
impessoais formadas pelos verbos fazer/hacer19 “faz dois anos”; chamar/
decir “A lechuga, que le chaman/ En Uruguay dicen de un cavalo”.
No entanto, com uma pesquisa de campo mais criteriosa, levando
em consideração a língua falada de ambas as comunidades, facilmente
se percebe que não se trata de “mistura” de línguas, porque os exemplos
dos verbos haver, ter, fazer, dar, do sujeito genérico e da partícula se são
todos variáveis na língua portuguesa.
A única forma espanhola (expressão indeinida uno) aparece em
pouquíssimos dados de Elizaincín (1992) e do nosso corpus e, por isso,
deveriam ser considerados casos de interferência gramatical, uma vez
sentido impersonal “estricto”, diferenciádonse claramente de la cuarta persona. Por
otro lado, solo la encontramos consignada en Vichadero/Minas de Corrales (V/MC)
y Aceguá e Isidoro Noblía (A/IN); aun en estas localidades no es sistemático su uso”.
(ELIZAINCÍN, BEHARES E BARRIOS, 1987, p. 85)
19
Não há exemplos com o verbo hacer.
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243
que não se trata de variação linguística entre as duas formas semelhantes,
mas formas completamente distintas. Um exemplo típico do que se
ouve muito em Aceguá ocorre nas situações em que alguém pergunta o
preço de algo, e a pessoa responde que “dá unos quantos” ou a forma
aportuguesada “dá uns quantos”, o que de fato mostra a indeterminação do
valor monetário em questão. Para o uso de um como pronome indeinido
em Aceguá, tanto no português brasileiro quanto no português uruguaio,
registramos pouquíssimos dados. Essa forma também é consequência
direta do contato linguístico na fronteira.
Enquanto uno é indeinido, a gente se gramaticaliza e começa
a ser utilizado como primeira pessoa do plural no português uruguaio.
Em nossas entrevistas, há pouquíssimos dados com os verbos espanhóis
haber, hacer, decir e outros, mas todos são considerados interferências
e não misturas. As interferências, por sua vez, também podem ser
sistematizadas e situadas contextualmente.
Como se pode notar em Elizaincín (1992, p. 81-85, 135-136), a
gente é sempre vinculado à impessoalidade ou à terceira pessoa do plural.
De fato, no português brasileiro, há esse uso impessoal ou genérico,
mas não se pode esquecer que a gente também ocorre em contextos de
referência especíica e, portanto, referência restrita a primeira pessoa
do plural e até a primeira pessoa do singular. Os contextos de produção
de cada variante fazem parte da análise variacionista, que controla os
diversos tipos de ocorrências. Embora haja a conotação genérica de a
gente, é importante observar que ainda há indícios de primeira pessoa
do plural no a gente indeterminado.
Em suma, no caso do português, o uso de a gente como indeinido
ou referência genérica ocupa a lacuna do sistema linguístico desde
a evolução do latim, uma vez que passou a indicar indeterminação.
Provavelmente, houve um estágio no português uruguaio e no português
brasileiro em que o uso de a gente era apenas indefinido, depois
passou a coexistir também como uso pronominal até chegar à mudança
completa variando apenas com o pronome nós de primeira pessoa do
plural. Atualmente, o a gente brasileiro também se propaga e se realiza
no português uruguaio, mas a hipótese é que no português brasileiro a
mudança estaria mais avançada do que no português uruguaio, em termos
de frequência de uso do pronome.
Sobre a outra variante pronominal, Elizaincín (1992, p. 117-118)
apenas menciona a existência do pronome nós e nosotros nos DPUs.
244
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Nas entrevistas, no que se refere ao português de Aceguá, o pronome
nosotros não foi considerado dado de análise e, portanto, foi retirado da
análise de pesos relativos, uma vez que se trata de uma interferência do
espanhol, e não propriamente de alternância pronominal.
Em seguida, Elizaincín (1992, p. 136) constata a existência de
a gente em variação com o nós, mas apenas no português brasileiro de
uma forma geral, excluindo os DPUs:
O uso de “A gente” em P substitui o pronome nos,
agregando este valor ao de impessoalidade antes referido.
Este não é o caso nos DPU. Por outro lado, o recurso parece
apenas em duas localidades da amostra: V-MC e A-IN20.21
Em Aceguá, de fato, existe o uso pronominal de a gente, mas
em Isidoro Noblía, outro bairro uruguaio, provavelmente não, porque,
enquanto aquela é praticamente bilíngue, esta é basicamente monolíngue
em espanhol. Como Elizaincín apresenta sempre os resultados em
conjunto para Aceguá e Noblía, não há como saber realmente de onde
foram retirados os poucos exemplos com a gente em primeira pessoa
do plural.
No entanto, em praticamente todas as entrevistas que realizei do
lado do Uruguai, há vários dados com o uso de a gente como primeira
pessoa do plural, apesar de ser em menor proporção que o uso brasileiro.
Do ponto de vista social, os uruguaios favorecem o emprego do pronome
a gente apenas com a retirada dos dados categóricos de nós (Tabela 2).
Foram entrevistados 38 colaboradores, 19 uruguaios e 19 brasileiros.
“El uso de “A gente” suele en P sustituir al pronombre nos, agregando este valor
al de impersonalidad antes referido. No es este el caso en los DPU. Por otra parte, el
recurso parece solo en dos localidades de la muestra: V-MC e A-IN” (ELIZAINCÍN
1992, p, 136).
21
As localidades referidas são Vichadero e Minas de Corrales (V-MC), e Aceguá e
Isidoro Noblía (A-IN). Isidório Noblía é uma comunidade uruguaia e situa-se a 15km
de Aceguá-Uruguai. A abreviação “P” signiica português.
20
245
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TABELA 2 – Frequência geral dos colaboradores de Aceguá
Com todos
Colaboradores
Brasileiros e uruguaios
Uruguaios
Brasileiros
Sem os categóricos
A gente
Nós
A gente
Nós
45,1%
452/1002
54,9%
550/1002
58,3%
452/775
41,7%
323/775
29,3%
135/461
70,7%
326/461
49,1%
135/275
50,9%
140/275
58,6%
317/541
41,4%
224/541
63,4%
317/500
36,6%
183/500
Fonte - Pacheco (2014)
A frequência de a gente no português brasileiro de Aceguá
(58,6% ou 63,4%) encontra-se mais avançada do que no português
uruguaio (29.3% ou 49,1%), respectivamente na análise com todos os
colaboradores ou na análise sem os casos categóricos de nós. Ao que
tudo indica, a entrada desse pronome é recente no português uruguaio e
não se realiza em todas as funções sintáticas, sendo mais produtiva na
posição de sujeito, como no exemplo a seguir:
Entrevistado: Isso aqui, a cultura é mais ou menos a
mesma, de toda A GENTE se confunde. Pra NÓS, Ø22
NÃO NOTAMOS... vocês que vêm de longe podem
notar a diferença, mas pra NÓS, A GENTE criou um
dialeto pra falar, A GENTE fala portunhol, Ø NÃO FALA
nem espanhol nem português. Eu, por exemplo, hoje, não
consego escrever nenhuma das duas línguas de forma
correta. Eu não escrevo nem português correto, nem
espanhol. Eu faço uma mistura, eu troco o C pelo Z, eu
troco... NÓS no espanhol não TEMOS Ç.
(ALE, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino médio)
Esse entrevistado é homem, uruguaio de Montevidéu, tem mais de
50 anos, e trabalha no Brasil. Sua mulher é uruguaia de Melo e trabalha
no Uruguai. O casal airmou que só conversa com os ilhos em espanhol
para não haver “mistura”, porque eles são inseguros linguisticamente
quanto ao uso do português. Entretanto, o casal de ilhos também fala
22
O símbolo Ø representa a ausência do pronome de primeira pessoa do plural na
função de sujeito.
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português e estuda na escola brasileira, porque os pais acham que a
educação brasileira é melhor que a uruguaia.
O exemplo dessa família, como de tantas outras, apenas
corrobora a integração total entre os dois lados da fronteira e o quão os
relacionamentos são imbricados. Além disso, os moradores, em maior
ou menor grau, se conhecem porque, em alguns momentos de suas vidas,
estão unidos por laços familiares, de amizade, de trabalho.
Em termos linguísticos, identiicamos apenas o primeiro exemplo
(de toda a gente se confunde) como impessoal, de acordo com o uso
espanhol, principalmente porque há concordância de gênero entre o
quantiicador toda e o a gente em função de substantivo. Percebe-se, pois,
que o sentido é genérico, de terceira pessoa do plural, podendo o exemplo
ser reescrito como se fosse “a cultura de toda pessoa se confunde” ou
“a cultura de qualquer pessoa se confunde”.
Todavia, o falante, nos demais dados de a gente (A GENTE
criou um dialeto pra falar/ A GENTE fala portunhol), se inclui nessa
coletividade expressa pela primeira pessoa do plural ou quarta pessoa,
da mesma forma que ocorre com os dados de implícito com nós (Pra
NÓS, não Ø notamos...) e de implícito com a gente (A GENTE criou um
dialeto pra falar, A GENTE fala portunhol, Ø NÃO FALA nem espanhol
nem português). Nesses exemplos, é nítido que se trata de um fenômeno
variável entre nós e a gente, que signiica a extensão da inovação além
das fronteiras nacionais.
Segundo Tagliamonte (2006, p. 96), “In the ideal situation you
will ind a ‘super token’: alternation of variants by the same speaker in the
same stretch of discourse”. Ou seja, em uma situação ideal, é importante
encontrar um ‘super dado’: alternância de variantes pelo mesmo falante
em uma mesma parte do discurso, o que ocorre nesse exemplo, já que
há dados de nós e a gente implícito e de nós e a gente explícito com o
mesmo valor de verdade.
Em nosso corpus, foram encontrados 10 dados de a gente com
sentido de terceira pessoa ou até mesmo ambíguo, no português uruguaio
de Aceguá, e três dados no português brasileiro de Aceguá, como se ainda
fosse um vestígio histórico dessa expressão:
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Isso aqui, a cultura é mais ou menos a mesma, de toda A
GENTE se confunde.
(ALE 23, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino
médio)
HIL: não, é lindo, A GENTE aqui toda, a vizinhança é boa.
(HIL, mulher, acima de 50 anos, brasileira, ensino médio)
Eu não gosto porque eu acho, uma coisa que, não gosto
de tanta gente ali esperando um piquete ali, esperando um
prato de comida, fazendo... eu vou, se há alguma pita eu
logo vou e volto pra trás. Não sou de passar ali, e passar
horas. Não gosto de estar dependiendo de ver A GENTE
FAZENDO, cola DIZEMO no, a que hora se me escapo,
você, como dise. Estoy esperando sim. Como se dizem lá,
quando tu tá num banco, como é?
(CAR, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino médio)
Nos dois primeiros exemplos, a referência parece ser mesmo à
terceira pessoa, até mesmo pelo quantitativo toda concordando em gênero
e número. Já no terceiro caso, há maior ambiguidade porque não se sabe
ao certo se o falante se inclui juntamente com as pessoas que fazem ila
para comer nos piquetes em dias de Semana Farroupilha.
Até então, não havia registros de a gente como primeira pessoa
do plural na fronteira, justamente porque la gente no espanhol tem
uma conotação mais indeinida e de terceira pessoa do plural. Nosso
trabalho demonstra, pois, que o a gente no português uruguaio (falado
por uruguaios bilíngues) da fronteira também está no mesmo processo de
gramaticalização que no português brasileiro de forma geral. A diferença
maior deve ser de frequência, uma vez que parece ser mais recente no
português uruguaio.
No espanhol, a expressão la(s) gente (s) permanece com o mesmo
sentido de todo mundo ou todas as pessoas da época do português arcaico.
Já no português brasileiro e uruguaio, atualmente, prevalece o uso de a
gente como primeira pessoa do plural, tanto em contextos de referência
genérica quanto em contextos mais especíicos, ou como primeira pessoa
do singular, em um contexto máximo de especiicidade.
23
Para manter o sigilo dos entrevistados, utilizamos apenas as três iniciais de um nome
ictício em cada exemplo.
248
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6 Considerações inais
Sobre a deinição de a gente, segundo Lopes (1996), as gramáticas
tradicionais são controversas ao classiicar a gente ora como pronome
pessoal, ora como forma de tratamento, ora como pronome indeinido.
Nesse artigo, considera-se a gente um pronome pessoal, porque é
uma categoria pronominal, e não um sintagma nominal composto
de determinante mais nome. A gente passou de nome que indica
indeterminação a pronome de primeira pessoa do plural, fazendo parte
do quadro pronominal do português brasileiro e, também, do português
uruguaio.
O pronome a gente, amplamente utilizado no Brasil e na zona
urbana, chega ao Sul do país e atravessa a fronteira. Assim, essa categoria
gramatical como primeira pessoa do plural passa a ser variável também
no português uruguaio.
Diacronicamente, no caso do português brasileiro, o seu uso
como indeinido ou referência genérica entrou no lugar da expressão
arcaica homen, enquanto no espanhol houve a inserção do termo uno
ou una como indeinido.
Sincronicamente, a expressão lexical plena a gente passou a
equivaler a nós, tanto no português brasileiro quanto no português uruguaio,
sendo utilizada como primeira pessoa do plural, independentemente de
ter a referência genérica ou especíica. Mesmo existindo, na língua
espanhola, o correspondente nosotros para a primeira pessoa do plural, os
bilíngues vêm utilizando o pronome a gente, que é totalmente diferente
do uso de la gente em espanhol.
No caso do português brasileiro de Aceguá (Rio Grande do Sul),
a frequência de uso é de 58,6%, na análise com todos os colaboradores,
e 63,4% na análise sem os casos categóricos. Por isso, acompanha os
altos índices de a gente na região Sul do Brasil, como Pelotas (78%)
e Florianópolis (72%), Jaguarão (69%), Porto Alegre (69%), Curitiba
(64%) e Blumenau (60%). Além da região Sul, o português brasileiro
de Aceguá, na análise sem os categóricos, também se aproximou dos
falantes do Rio de Janeiro (de 79% a 59%), na região Sudeste.
O resultado do português uruguaio com todos os colaboradores
(29,3%) se assemelha, em termos de distribuição, ao português europeu,
com menos de 26% (VIANNA, 2011). O resultado do português uruguaio
sem os casos categóricos em nós (49.1%) se aproxima mais da variedade
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de Santa Catarina em Blumenau (51%), Concordia (50%) e Chapecó
(48%) e também do português europeu (42%) (RUBIO, 2012). Além da
região Sul, a frequência de 49,1% do português uruguaio da fronteira se
aproxima de comunidades mais isoladas e rurais como Brasilândia – SP,
no Sudeste, (53%) e Cinzento – BA, no Nordeste, (56%). Ao mesmo
tempo, Ponta Porã – MS, no Centro-Oeste, tem frequência ainda inferior,
de 39%, e Piabas-BA, no Nordeste, tem a maior frequência de todas essas
comunidades mais isoladas, com 62%.
Percebe-se, portanto, que o português uruguaio e o português
brasileiro são distintos entre eles em termos de distribuição dos dados.
Os percentuais de Aceguá chegam a 63,4% na análise brasileira e a
49,1% na análise uruguaia, o que revela a proximidade do português
brasileiro de Aceguá (63,4%) com a maioria das variedades do português
brasileiro, que estão utilizando cada vez mais o pronome a gente como
primeira pessoa do plural. Na maior parte da região Sudeste, Sul,
Nordeste e Centro-Oeste, o uso de a gente está acima de 70%. Já no
português uruguaio, (com no máximo 49,1%), a expansão do a gente é
mais comedida.
Em outras fronteiras do Rio Grande do Sul, como o caso de
Flores da Cunha (italiano-português), Panambi (alemão-português) e
São Borja (espanhol-português), nota-se que as comunidades bilíngues
acompanham mais lentamente a mudança com relação à inserção de a
gente no sistema pronominal, ainda que a tendência seja na direção do
uso dessa forma inovadora (ZILLES, 2007, p. 36). Pelotas e Jaguarão,
fronteiras com Uruguai, também compõem localidades menores, mais
rurais e, portanto, com mais contato linguístico e/ou bilinguismo, o que
deixa o ritmo da mudança mais lento (ZILLES, 2007, p. 37).
Partimos do pressuposto de que a inserção ou aquisição do
pronome a gente como primeira pessoa do plural no português uruguaio
pode ser consequência do contato linguístico com o português, porque
esse pronome só existe na variedade brasileira dessa língua, e, por isso,
quanto maior a proximidade com o Brasil maior a frequência de a gente.
Percebe-se, portanto, que, ao se distanciar da fronteira, indo mais para o
interior do Uruguai, os falantes já não utilizam o português como língua
materna, uma vez que são monolíngues e, provavelmente, deixam de usar
ou usam menos a gente como primeira pessoa do plural.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
A escrita em bandos atribuídos a Rodrigo Cesar de Menezes –
governador e capitão general da capitania de São Paulo
(1721-1728)
The writing in bandos assigned to Rodrigo Cesar de Menezes –
General Governor and Captain of the captaincy
of São Paulo (1721-1728)
Phablo Roberto Marchis Fachin
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP / Brasil
phablo@usp.br
Gabriela Lubascher Miragaia
Universidade de São Paulo, São Paulo, SP / Brasil
gabriela.miragaia@usp.br
Resumo: O artigo apresenta os resultados de estudo sobre práticas de
escrita administrativa em manuscritos produzidos ao longo do século
XVIII, no Brasil colonial, especiicamente na capitania de São Paulo,
durante o governo de Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1728). Trata-se,
com base em dados documentais e metodologia ilológica, da utilização
de manuscritos com rigor cientíico. A importância do estudo reside no
fato de que há escassez de informações a respeito do processo de produção
documental no Brasil colonial, assim como da sua circulação e difusão.
Cabe destacar também que, além dos aspectos relacionados à escrita em
bandos setecentistas, a pesquisa também traz contribuição para a história
social da capitania de São Paulo, uma vez que, ao levantar os destinatários
dos documentos e a sua temática, traz à luz as ordens e a quem se referiam,
possibilitando ampliar o estudo realizado com o intuito de entender a
lógica administrativa, a composição e organização da sociedade da época.
Palavras-chave: história da língua portuguesa; Rodrigo Cesar de
Menezes; edição de manuscritos coloniais.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.255-283
256
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
Abstract: This article presents the results of study on administrative
writing practices in manuscripts produced during the eighteenth century,
in colonial Brazil, speciically in the province of São Paulo, during the
government of Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1728). It is presented,
based on documentary evidence, discussion on the use of manuscripts
with scientiic certainty. The importance of research lies in the fact that
there is limited information about the document production process in
colonial Brazil, as well as their circulation and diffusion. It is worth
mentioning that in addition to aspects related to writing, the survey also
brings contribution to the social history of the captaincy of São Paulo,
since, to raise the addressees of the document and its thematic, brings to
light the orders and to whom it was related, allowing expand the study
in order to understand the administrative logic and how they composed
and organized the society of the time.
Keywords: history of the portuguese language; Rodrigo Cesar de
Menezes; edition of colonial manuscripts.
Recebido em 24 de junho de 2016.
Aprovado em 13 de janeiro de 2017.
1 Introdução
O estudo da língua portuguesa e da sua história com base em
fontes manuscritas apresenta duas características primordiais: por um
lado, por se tratar de trabalho que tem como base o levantamento de dados
linguísticos concretos, extraídos de documentos manuscritos, na maioria
das vezes heterogêneos, de diversas épocas da sua história, pratica-se
o estudo das transformações pelas quais a língua passou ao longo de
sua trajetória sócio-histórico-cultural, documentando-as; por outro, na
medida em que se vai às fontes, realiza-se importante função do trabalho
ilológico, de acordo com Spina (1994, p. 82), a transcendente , “em que
o texto deixa de ser um im em si mesmo da tarefa ilológica para se
transformar num instrumento que permite ao ilólogo reconstituir a vida
espiritual de um povo ou de uma comunidade em determinada época”.
Tarefa nem um pouco simples. Além de complexa, muito
morosa, dependente de paciência e persistência do ilólogo na busca da
documentação necessária ao seu estudo, criteriosa e de muito rigor na
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realização da edição que conserva o estado de língua testemunhado pelo
manuscrito. A airmação de Castro reforça essa assertiva:
Para o linguista usufruir das reais vantagens do texto
não-literário, que lhe permitem saber como uma pessoa
identiicada escrevia (e talvez falasse) em determinado
ponto do tempo e do espaço, precisa de se inteirar primeiro
das circunstâncias históricas em que o texto foi escrito. É
esse o campo de intervenção de uma série de disciplinas
auxiliares da História e da Filologia, equipadas com
metodologias próprias que podem atingir apreciável
soisticação – a paleograia, a diplomática e a codicologia,
antes de mais, mas a crítica textual também (CASTRO,
2004, p. 3).
Nesse contexto de busca e edição de manuscritos para a realização
de estudos sobre a história da língua portuguesa, o pesquisador depara
com documentos de naturezas diversas, originais, textos autógrafos,
cópias, textos apógrafos, ideógrafos, vias, entre outros. Em meio a esse
leque de opções, precisa lançar mão de mecanismos que garantam a
idedignidade do texto e o conhecimento real de sua história. Não se trata
apenas de um trabalho técnico de leitura e transcrição, adequação de um
texto manuscrito, em letra antiga, muitas vezes de difícil decifração, para
caracteres tipográicos, ao alcance de um público mais amplo. Trata-se de
um trabalho que leva o ilólogo a conhecer o documento, a sua história,
todas as implicações relacionadas ao seu corpo, conteúdo, hábitos gráicos,
estilo e autoria, principalmente autoria.1 Nas palavras de Fachin,
relativamente à tradição documental, a necessária distinção
entre original e cópia nem sempre é isenta de questões. [...].
No caso das práticas administrativas coloniais, era muito
comum a autoridade superior apenas assinar o documento
enquanto secretários, escrivães e outros proissionais da
escrita os escreviam. Dessa forma, estudos que não levam
“Nesse contexto, várias possibilidades estão em jogo: manuscritos escritos pela mão
do próprio autor (autor material e intelectual); acompanhados pelo autor intelectual, mas
pela mão de terceiros (autores materiais); reproduzidos, mais ou menos integralmente,
por cópias. Consequentemente, nem sempre a datação, assim como a assinatura do
documento e os dados gráicos ali presentes, correspondiam realmente ao seu contexto
de produção”. (FACHIN, 2014, p. 221)
1
258
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
isso em consideração acabam resultando em atribuição
equivocada de autoria documental (FACHIN, 2014, p. 222).
Levando esses fatos em consideração, apresentam-se, neste
artigo, os resultados de estudo sobre práticas de escrita administrativas
em manuscritos produzidos ao longo do século XVIII, no Brasil colonial,
especiicamente na capitania de São Paulo. O corpus consta de bandos
produzidos por Gervasio Leyte Rebello, secretário do governador e
capitão general Rodrigo Cesar de Menezes, cuja autoria é atribuída a
este, embora materialmente tenham sido escritos por aquele, fato que
pode ter inluência no resultado gráico do documento e, por essa razão,
é de suma importância para pesquisas que tenham como objetivo estudos
linguísticos do período.
Trata-se de cuidado metodológico que deve ser levado em
consideração para evitar resultados equivocados por conta
da falta de critérios no tratamento das fontes. Veja-se, por
exemplo, o caso da Publicação Oficial de Documentos
Interessantes para a História e Costumes de São Paulo correspondência interna do Governador Rodrigo Cesar
de Menezes ---1721-1728. Na edição dos documentos
que compõem a obra, ao inal sempre aparece a indicação
do nome do governador em itálico, como uma espécie
de assinatura, atribuindo a ele, de certa forma, a autoria
dos textos. Ao observar, porém, originais manuscritos
desses documentos, veriica-se que, embora a assinatura
faça parte de quase todos eles, a caligrafia do resto do
texto não é a mesma, apresentando-se com diferentes
formas, o que indica diferença de punhos; portanto outras
pessoas foram as responsáveis pela sua produção material.
Consequentemente havia diversidade de hábitos e escolhas
gráicas, principalmente num período em que a escrita
apresentava pluralismos gráicos (FACHIN, 2014, p. 222).
O artigo também tem como objetivo apresentar discussão, com
base em dados documentais e metodologia ilológica, sobre a utilização
de manuscritos com rigor cientíico. A importância do estudo reside no
fato de que há escassez de informações a respeito do processo de produção
documental no Brasil colonial, assim como da sua circulação e difusão.
Embora se observe que é crescente o número de edições com ressaltado
rigor na busca de exatidão e idelidade, esse aspecto ainda carece de
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
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cuidado ilológico. Os trabalhos no campo da Filologia e ciências ains,
com “tendência nitidamente marcada pela preocupação em não se deixar
perder nenhum dos traços da fonte primária no ato de transcrição, diria
mais: mesmo as anotações à margem ou nas entrelinhas, bem como
informações consideradas alheias ao conteúdo do texto” (MEGALE,
1998, p. 3), também devem levar em conta o contexto de produção dos
documentos selecionados para o trabalho, assim como a sua forma de
transmissão e circulação. Portanto, em meio a esse contexto, a falta de
cautela no tratamento das fontes, por conta da ausência de critérios ou
do desconhecimento das circunstâncias de produção, pode acarretar
problemas sérios de interpretação ilológica e linguística.
Cabe ainda destacar que, além dos aspectos relacionados à escrita,
o estudo contribui para a história social da capitania de São Paulo,
onde os documentos foram escritos. Ao levantar os destinatários dos
documentos e a sua temática, traz à luz as ordens e a quem se referiam,
possibilitando ampliar a pesquisa realizada, com o intuito de entender
a lógica administrativa, a composição e organização da sociedade da
época. Como exemplo, veriica-se o comportamento dos escravos quanto
a jogos; de religiosos, quanto ao seu dia a dia, como também em relação
aos índios e seus costumes.
2 Metodologia
Este artigo tem caráter ilológico e apresenta metodologia cuja base
é ir às fontes e ao estudo do texto (MEGALE, 1998). Além de levar em
consideração a explicação dos testemunhos e de sua história, preocupa-se
com problemas de outra ordem, que não estão neles, “mas se deduzem
deles: a sua autoria, a sua datação e a sua importância (valorização)
perante os textos da mesma natureza” (SPINA, 1994, p. 76). Para isso,
o seu plano de trabalho foi composto por 5 etapas: 1) levantamento dos
cargos da administração colonial ligados à prática de escrita do século
XVIII, na capitania de São Paulo; 2) levantamento dos correspondentes
envolvidos na documentação que compõem o corpus; 3) comparação dos
dados levantados com o intuito de identiicar o contexto de produção e
circulação dos documentos; 4) análise das assinaturas e o tipo de letra dos
documentos para identiicar questões de autoria; 5) veriicação, com base
nas etapas anteriores, do quanto esses fatores poderiam auxiliar no estudo
das práticas de escrita setecentista no contexto administrativo colonial.
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Para a realização da primeira etapa do trabalho, levantamento dos
cargos da administração colonial ligados à prática de escrita no século
XVIII, na capitania de São Paulo, utilizou-se, além dos documentos
que compõem o corpus do projeto, o livro Fiscais e meirinhos – a
administração no Brasil colonial, coordenado por Salgado (1985).
Os dados identificados foram distribuídos em tabela para melhor
visualização, organizados da seguinte maneira: cargo, página, termo ou
expressão relacionado à escrita. Posteriormente, foram comparados com
os encontrados nos manuscritos para veriicar as suas compatibilidades.
O resultado da segunda etapa do plano de trabalho – levantamento
dos correspondentes envolvidos na documentação que compõe o corpus
– também foi organizado em tabela, com a seguinte ordem: datação,
destinatário, cargo do destinatário, autor material, cargo do autor material,
assinatura, cargo de quem assinou o documento, autor intelectual e
cargo do autor intelectual. Essa tabela é baseada no corpus do estudo –
Bandos – encontrados nos volumes XII, XIII e XXXII dos Documentos
Interessantes. A terceira etapa – comparação dos dados coletados com o
intuito de identiicar o contexto de produção e circulação dos documentos
– foi realizada cotejando-se os dados das duas tabelas das etapas anteriores
a im de identiicar o contexto de produção e circulação dos documentos.
Com base nesses resultados, realizaram-se as duas últimas: 4) análise das
assinaturas e caligraias dos documentos para identiicar questões de autoria;
5) veriicação, com base nas etapas anteriores do quanto esses fatores
poderiam auxiliar no estudo das práticas de escrita dos escribas da época.
3 O corpus e suas implicações
O corpus está composto de uma tipologia documental
denominada bando, que cobre todo o período do governo de Rodrigo
Cesar de Menezes (1721-1728). Ao todo são 86 documentos, localizados
no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Como exemplos, seguem
(FIG.1 e 2) as imagens de documento escrito em São Paulo em 18 de
setembro de 1721, com autoria intelectual atribuída a Rodrigo Cesar
de Menezes e material de Gervasio Leyte Rebello. Trata-se da versão
manuscrita que consta de livro de registro do Arquivo Público do
Estado de São Paulo e da versão impressa encontrada no volume XII
dos Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo
(APESP, 1901). Acompanha também a lição transcrita do documento,
com indicação das diferenças entre as versões.
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FIGURA 1 – Fac-símile do bando (versão manuscrita) encontrado
no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Caixa 48. Ordem 406.
Fonte: APESP, 1901.
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FIGURA 2 – Fac-símile do bando (versão impressa) encontrado
no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Caixa 48. Ordem 406.
Fonte: APESP, 1901.
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263
Transcrição conservadora do bando, realizada de acordo com
o manuscrito, sem qualquer tipo de acréscimo, respeitando o estado de
língua do documento, inclusive as abreviaturas, a ordenação das linhas
e a fronteira de palavras:
Rego.dehumbandoqSemandouLançar naVilla
deSantos, pa ossoldados fugidos
RodrigoCezardeMenezes etcPormeconstarqasComp.as pagas dapraçadeSantos seachaõ m.to demenutas, porcauzadadeserçaõ dossoldados, e
pellasContinuas trocas qContinuamte seestaõfazendo, perdendosoldados veteranos; emetendo nellas eenseuLugarosqnaõ temCapacid.e
nemSegurança p.a poderemprezestir noserviço deS.Mag.de Ordeno
qtodoosoldado qseachar auzente, eserestituir aCompa.emqserviu
dentro emtrintadias, serâ admetido, eperdoado, equandoonaõfaça
será trateado NestaCid.e p.a onde virâ remetido, easim todooqdaqui
pordiante seauzentarsemLicença dos seus oficiaes rubricadapormy
emCorrerâ namesmapenados tratos, enocazoqqualqr: morador
oConsinta emsuaCaza ou fazenda terá vinte dias deprizaõ
nafortalezadaBarra, paguando Cincoentamil rs
ametade p.aafaz.a real, eaoutrap.a q.m deNunciar, epa qchegue
anoticia detodos, enaõpossaõ allegar ignorancia sepublicarâ
estebandopellas ruas publicas dapraçadeSantos, aSomdeCx.as
edepois deReg.o navedoria seixarâ noCorpodaGuardadad.a praça
deqMemandarâCertidaõ oGov.or delladeq asim seexecuta
eseregistraránosLos daSecretr.a desteGoverno Dadonesta
CidedeSaõPaulo nos 18 de Setr.ode1721. OSecretario
doGov.o Gervasío LeyteRebelloafes// RodrigoCezardeMenezes
O cotejo entre as versões impressa e manuscrita revela diferenças
nos seguintes aspectos: troca de palavras, pontuação, fronteira de palavras
e, às vezes, acréscimo de marcas não presentes no documento. Seguem
alguns exemplos:
264
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
TABELA 1 – Comparação de alguns casos entre as versões manuscrita
e impressa do bando.
Manuscrito
Impresso
Lição Corrigida
noCorpodaGuardadada.
Menezes etcPor
trateado
Fonte: Documentos que compõem o corpus da pesquisa realizada.
O fato de se constatarem equívocos de leitura da versão impressa e
de haver uma versão manuscrita (presente em livro de registro de cópias)
do documento não possibilita a exclusão da impressa, uma vez que não
se determinou ainda se a manuscrita serviu de base para a primeira, o
que sugere pensar que ambas as versões podem contribuir para o estudo
da escrita do Governo de Rodrigo Cesar de Menezes.
Em relação à espécie documental bando, de acordo com Bellotto
(2002, p. 50-51), apresenta a seguinte estrutura: “Protocolo inicial: nome
e qualiicação do autor (autoridade delegada). Texto: a ordem objeto do
bando. Protocolo inal: datas tópica e cronológica. Subscrição com o
nome do autor”. Pela análise, o texto é composto de uma justiicativa da
razão do bando e da sua ordem e o protocolo inal, da advertência sobre
a sua divulgação e o encerramento com as datações. Essa estrutura pode
ser observada pela tabela que segue.
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265
TABELA 2 – Estrutura padrão do bando aos soldados fugitivos
do volume XII dos Documentos Interessantes.
Protocolo
Inicial
Rego.dehumbandoqSemandouLançar naVilla
deSantos, pa ossoldados fugidos
RodrigoCezardeMenezes etc
Texto
PormeconstarqasComp.as pagas dapraçadeSantos seachaõ m.to demenutas, porcauzadadeserçaõ dossoldados, e
pellasContinuas trocas qContinuamte seestaõfazendo, perdendosoldados veteranos; emetendo nellas eenseuLugarosqnaõ temCapacid.e
nemSegurança p.a poderemprezestir noserviço deS.Mag.de
Ordeno
qtodoosoldado qseachar auzente, eserestituir aCompa.emqserviu
dentro emtrintadias, serâ admetido, eperdoado, equandoonaõfaça
será trateado NestaCid.e p.a onde virâ remetido, easim todooqdaqui
pordiante seauzentarsemLicença dos seus oficiaes rubricadapormy
emCorrerâ namesmapenados tratos, enocazoqqualqr: morador
oConsinta emsuaCaza ou fazenda terá vinte dias deprizaõ
nafortalezadaBarra, paguando Cincoentamil rs
ametade p.aafaz.a real, eaoutrap.a q.m deNunciar,
Protocolo
Final
epa qchegue
anoticia detodos, enaõpossaõ allegar ignorancia sepublicarâ
estebandopellas ruas publicas dapraçadeSantos, aSomdeCx.as
edepois deReg.o navedoria seixarâ noCorpodaGuardadad.a praça
deqMemandarâCertidaõ oGov.or delladeq asim seexecuta
eseregistraránosLos daSecretr.a desteGoverno
Dadonesta CidedeSaõPaulo aos 18 de Setr.ode1721.
OSecretario doGovo. Gervasío LeyteRebelloafes// RodrigoCezardeMenezes
Fonte: APESP, 1901, p. 9.
Por se tratar de documento diplomático lavrado em contexto
administrativo, o bando mantém sua estrutura em todo o corpus. Isso
ocorre mesmo diante de diferentes destinatários. No caso analisado,
consideram-se índios, proprietários de índios, negros e seus proprietários,
soldados, outros tipos de pessoas, além de religiosos. A variação gráica
encontrada, portanto, não teria inluência desse aspecto diplomático. As
suas particularidades estão relacionadas possivelmente à prática de escrita
do escriba ou da tradição administrativa em questão. A estrutura padrão
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
e a sua autoria material limitada a um número reduzido de autores, no
entanto, não garantem a regularidade gráica da escrita do corpus, fato
demonstrado pela análise gráica realizada. Ao longo do corpus, em
bandos datados para os anos de 1721 – 1728, pode-se veriicar variações
de ordens diversas.
Na época em que foram produzidos, a Administração Colonial
era composta de diversos setores. Para sua governança, a produção de
documentos ocupava um papel de destaque, uma vez que, por meio dela,
leis e outras ordens chegavam a diversos destinatários, independentemente
do setor, ultrapassando obstáculos ambientais da natureza colonial.
Muitas vezes, determinados documentos eram produzidos para outro
tipo de destinatário, isto é, para aqueles que não estavam na esfera
administrativa ou por algum motivo se encontravam afastados dela.
Nesse contexto, o documento intitulado bando se destacava por sua
funcionalidade e alcance público, como pode ser observado na descrição
tipológica de Bellotto.
Ocorre apenas na administração colonial. É a ordem
ou o decreto, em geral, dos governadores e capitães
generais, proclamada(o) oralmente em pregão público ou
aixada(o) em lugar ou veículo de circulação pública. O
mesmo que édito ou mandato proibitório. Era utilizada(o)
para questões cotidianas relacionadas ao cumprimento
de ordens pontuais. Muitas vezes, funcionava como
documento de correspondência, isto é, para que se
cumprisse em jurisdição mais limitada, uma ordem mais
ampla de origem superior (BELLOTTO, 2002, p. 50-51).
A importância desse documento para a administração colonial
pode ser constatada pela frequência com que era produzido e pelos
destinatários a que se referia. Em oito anos de governo, foram encontrados
oitenta e seis bandos nos documentos que compõem o corpus, sem
contar os testemunhos perdidos que não constam das obras levantadas.
Em média, a sua produção era mensal, e ordens pontuais faziam parte
do contexto administrativo. Entre os seus destinatários, estavam todas as
camadas que compunham aquela sociedade setecentista, como soldados,
religiosos, donos de negros e índios e forasteiros.
Nos volumes XII e XIII dos Documentos Interessantes, veriicouse que os remetentes eram o Secretário do Governador, Gervasio Leyte
Rebello, e o próprio Governador e Capitão General, Rodrigo Cesar de
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
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Menezes. Isso se deve ao fato de que esses volumes tratam especiicamente
dos Bandos e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. Já no volume
XXXII da publicação do APESP, Correspondências e Papéis Avulsos
de Rodrigo Cesar de Menezes, havia outros cargos também ligados a
remetentes, tais como Capitães (por exemplo: Capitão-Mor, Capitão Geral,
Capitão General), Ouvidores e Governadores de outras capitanias. Entre os
destinatários encontrados nos bandos que compõem o corpus, há Soldados,
Índios, Negros, as Minas de Cuiabá, Postos de Guerra e Auxiliares,
Companhia da Ordenança e Auxiliares, Forasteiros e Pessoas no geral. Ao
analisar o mesmo fator no livro Fiscais e Meirinhos – a administração
no Brasil Colonial, sob coordenação de Salgado (1985),2 encontrou-se
uma variedade de cargos que exerciam fortemente essa função, tais como
Juízes ( Juízes Ordinários, Juízes dos Órfãos, Juízes de Alfândega, Juiz
dos Feitos da Coroa, entre outros), Ouvidores ( Ouvidor Geral do Cível,
Ouvidor Geral do Crime, Ouvidor de Capitania, entre outros), Provedores (
Provedor e Escrivão do Registro, Provedor dos Feitos da Coroa, Provedor
da Minas, entre outros) e, principalmente, Escrivães.
A grande diversidade de destinatários dos bandos se deve ao
fato de que esse tipo de correspondência era a própria ordem ou decreto.
A frequente ocorrência de seus relatos no livro de Washington Luís,
Capitania de São Paulo – Governo de Rodrigo Cesar de Menezes,
mostra-nos a importância e a relevância para a Administração Colonial
desse documento. Exemplo disso, no volume XXXII, é representado
pela contenda entre o governador e os famosos irmãos Lemes, iguras
importantes desse governo, mortos a mando de Menezes, o qual ordenou
a ixação de um bando, dizendo que todo aquele que ajudasse a capturar
os Lemes, vivos ou mortos, seria beneiciado, mas todo aquele que os
ajudasse a se salvar pagaria o preço. Observa-se que, por meio de um
documento, o governador acabou por colocar a capitania inteira de São
Paulo contra os irmãos, sob pena de traição à coroa, conisco de bens e
mais penas que, em semelhantes casos, eram impostas, infundindo uma
espécie de “regime do terror”. Isso fazia as pessoas se sentirem livres
para cometer crimes, inclusive os escravos, caso viessem a matar seus
senhores, pois, se pegassem os irmãos Lemes, estariam salvos pelo crime
cometido.
2
Obra com relação sistemática de cargos e órgãos da política administrativa do Brasil
colonial.
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Abaixo segue tabela com a indicação dos bandos que compõem
o corpus do estudo, com a informação sobre a razão de terem sido
produzidos.
TABELA 3 – Lista com todos os bandos do corpus
Volume XII
Datação
Temática
1721, Setembro 18
bando que se mandou lançar na Vila de Santos para os soldados fugidos
1721, Setembro 21
bando que se lançou nesta cidade para que toda pessoa que vier de fora venha
dar parte ao General
1721, Outubro 7
bando que se lançou nesta cidade para se quintar o ouro que também se lançou
em Santos, Itu e Sorocaba
1721, Outubro 8
bando sobre os Soldados da Praça de Santos que andam fugidos e índios desta
cidade que andam ausentes
1721, Outubro 9
bando para os Índios que estiverem fora de suas aldeias serem repostos nelas
1721, Outubro 26
bando sobre o tesoureiro dos novos direitos restituir aos providos o que lhe
levou demais
1721, Novembro 23
bando para se abrir o caminho para as Minas de Cuiabá em direitura para o
Sertão
1722, Janeiro 12
bando que se lançou para se não tirar ouro nem abrirem Minas no Paranaguá
1722, Fevereiro 5
bando que se lançou para os negros não jogarem nesta cidade
1722, Fevereiro 17
bando que se mandou lançar na Villa do Rio São Francisco para se não tirar
ouro
1722, Março 1
bando sobre as companhias da ordenança e dos Auxiliares entrarem de guarda
as portas das Igrejas pelas endoenças.
1722, Março 18
bando para tirarem licença os que forem para Cuiabá e para não levarem sem
licença os índios das aldeias
1722, Março 27
bando para ninguém abrir caminho novo para as Minas do Cuiabá nem ir a
Vacaria.
1722, Março 28
bando para que ninguém vá faiscar as terras que estão por detrás da que cobre
a Marina e costa do Mar
1722, Abril 24
bando que se lançou para os soldados que fugirem da Praça de Santos
1722, Maio 05
bando para que ninguém tenha em sua casa negros ou escravos fugidos e os
prenda logo
1722, Maio 12
bando para que os forasteiros que vierem a esta cidade e quiserem passar para
Cuiabá venham à presença do general
1722, Junho 14
bando sobre se proibir nesta cidade que não haja jogos de parar
1722, Julho 15
bando sobre o gado vacum que nesta capitania se furta e mata
1722, Julho 31
bando sobre se poder usar de armas de fogo, curtas e compridas
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
269
1722, Setembro 13
bando para não haver atravessadores de farinha nesta cidade
1722, Setembro 15
bando que se mandou lançar para que todas as pessoas providas de postos
de guerra, ordenanças, e auxiliares, e em ofícios de justiça, e da fazenda
apresentem suas patentes e proissões na Secretaria deste Governo.
1722, Setembro 16
bando que se lançou sobre as armas
1722, Outubro 21
bando para que ninguém traga negro em sua companhia com a espada debaixo
do braço ou na mão
1722, Dezembro 31
bando sobre se manifestar o ouro que vier das Minas Gerais na casa da oicina
1723, Fevereiro 02
bando para as pessoas que tiverem terras na estrada que vão para Santos
apresentarem os títulos
1723, Fevereiro 02
bando que se lançou para tirar passaporte as pessoas que embarcarem na Vila
de Santos
1723, Fevereiro 14
bando para não assistirem nesta capitania religiosos que não tiverem
conventual idade
1723, Março 07
bando para as companhias da ordenança e dos auxiliares entrarem de guarda as
portas das Igrejas
1723, Março 12
bando sobre a proibição dos capuzes de capote metidos na cabeça
1723, Abril 11
bando sobre as pessoas que houverem de ir para as novas Minas de Cuiabá
1723, Julho 02
bando sobre não passarem mulheres ao novo descobrimento das Minas de
Cuiabá
1723, Agosto 08
bando sobre os quintos do ouro que vierem das Minas de Cuiabá ou de outras
quaisquer
1723, Setembro 15
bando que se lançou na Vila de Itu e Sorocaba para acudirem todos para
prenderem ou matarem Lourenço Leme da Silva e João Leme da Silva
1723, Setembro 23
bando que se mandou lançar nas Minas de Cuiabá para prenderem ou matarem
os dois Régulos Lourenço e João Leme da Silva e se sequestrarem seus bens
Volume XIII
Datação
Temática
1723, Outubro 19
bando para se pagarem os quintos do ouro nesta cidade
1723, Novembro 01
bando sobre se fundir e embarretar o outro em pó que vier das minas nesta
Capitania
1723, Dezembro 03
bando sobre os soldados que assistirem nesta cidade não tomarem nada sem o
pagarem
1724, Fevereiro 20
bando para os forasteiros virem a presença do General
1724, Março 29
bando que se lançou para não entrarem negros nesta cidade sem serem
visitados pela saúde
1724, Abril 15
bando que se lançou nesta cidade sobre a ponte em que se hão de curar os
bexiguentos
1724, Abril 30
bando para partirem as tropas para as Minas de Cuiabá dia de São João
270
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
1724, Junho 25
bando que se lançou nesta cidade, e nas Vilas de Itu e Sorocaba
1724, Agosto 8
bando que se lançou para as luminárias pelo nascimento do sereníssimo Senhor
Infante Dom Alexandre
1724, Agosto 15
bando sobre se pagarem os quintos do ouro e se fundir em barras e se marcarem
com as armas reais
1724, Agosto 21
bando para se registrar o ouro que vier de Minas Gerais na Vila de Guaratinguetá
1724, Dezembro 28
bando sobre as pessoas que vierem das Minas Gerais para as do Cuiabá
apresentarem passaporte
1725, Março 17
bando que se lançou para que os índios e índias que não tiverem administrador
vão para as aldeias
1725, Março 19
bando que se lançou sobre o ouro das Minas de Cuiabá que se tem quintado
1725, Abril 01
bando sobre o socorro que se manda ao Sertão de Guaiases
1725, Maio 13
bando para quem for para Cuiabá
1725, Maio 25
bando que se lançou para partirem as tropas para Cuiabá e se despacharem
1725, Junho 04
bando sobre sal que há de repartir com os moradores desta cidade e sua comarca
1725, Agosto 11
bando que se lançou nas Vila de Itu, Sorocaba e Parnaíba sobre o que levarão
os oiciais que foram a cobrança dos quintos reais do ouro que veio de Cuiabá
1725, Setembro 03
bando sobre os bexiguentos desta cidade
1725, Outubro 08
bando sobre se poder mandar gados para as Minas de Cuiabá e levar da Vacaria
1725, Novembro 30
bando para os forasteiros virem declarar para que Minas querem ir, de Cuiabá
ou Guayazes.
1726, Março 03
bando sobre tirarem despacho as pessoas que forem para Cuiabá e não irem
mulheres de suspeita
1726, Março 17
bando sobre não partirem ninguém para Cuiabá primeiro que o General na
monção presente
1726, Abril 09
bando para partirem as tropas para as Minas de Cuiabá sem embargo do bando
acima
1726, Abril 21
bando sobre os índios e índias que se acharem fora de seus administradores
apresentarem os despachos
1726, Abril 24
bando sobre os forasteiros que estiverem nesta cidade para irem a Cuiabá virem
a esta secretaria
1726, Maio 05
bando sobre os serventuários dos oiciais não pagarem a terça parte de seu
rendimento
1726, Maio 19
bando para as pessoas que tiverem terra no caminho que vai de Jundiaí para os
Guaiases apresentem os títulos
1726, Junho 19
bando que se lançou sobre os Carijós e bastardos que se livrarem da administração
1726, Dezembro 02
bando que se lançou nestas Minas sobre os negros não venderem ouro e se lhe
não poder comprar
1727, Janeiro 01
bando sobre os negros fugidos e se açoitarem os que forem rebeldes
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
271
1727, Janeiro 01
bando sobre os bastardos e índios se conservarem com seus administradores
1727, Janeiro 10
bando sobre se não fazerem execuções de dividas particulares em quanto se
cobram os reais quintos
1727, Janeiro 18
bando para ninguém ir ao rio dos perrudos ao gentio sem entrar Antonio Borralho
primeiro
1727, Janeiro 22
bando para não irem negras de tabuleiro vender mantimentos as Lavras, etc
1727, Janeiro 22
bando para se não darem tiros de monte
1727, Janeiro 25
bando para não estarem negras forras e escravos em Tavernas e ranchos sem os
Senhores ou brancos
1727, Fevereiro 22
bando sobre as pessoas que pagassem quintos demais das Lagos os tornarem
a cobrar
1727, Fevereiro 23
bando sobre tirar licença nesta secretaria quem quiser ir para povoado
1727, Fevereiro 29
bando sobre os ourives de ouro destas Minas fecharem as tendas e não trabalharem
1727, Março 07
bando sobre os descobrimentos de ouro
1727, Abril 13
bando sobre se fazerem descobrimentos de ouro
1727, Maio 07
bando sobre os contratadores dos dízimos não cobrarem as suas dívidas
executivamente e só os dízimos
1727, Setembro 15
bando sobre as penas que se impõem aos que jogarem nesta minas jogos de parar
1727, Setembro 18
bando sobre os negros e negras não irem vender as lavras e não haverem fornos
fora da Vila
1727, Dezembro 12
bando sobre se não venderem nesta Capitania os índios que vierem do Sertão
1727, Dezembro 14
bando sobre os negros não usarem de armas proibidas de porretes e capotes
nesta minas
1727, Dezembro 28
bando sobre os índios assistirem em casas de seus administradores e irem para
as aldeias
1728, Janeiro 05
bando sobre os escravos destas minas
Volume 32
Datação
Temática
1724, Abril 28
bando relativo aos irmãos Lemes
1724, Abril 29
bando referente aos irmãos Lemes
4 Análise das assinaturas e tipo de letra dos documentos – a questão
da autoria
Todo pesquisador interessado no contexto colonial setecentista
e que tem em seus objetivos o estudo do governo de Rodrigo Cesar de
Menezes e a escrita do período depara primeiramente com o conjunto
de publicações do Arquivo Público do Estado de São Paulo intitulado
272
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
Documentos Interessantes, especiicamente os volumes XII, XIII, XX e
XXXII, ou então documentos avulsos localizados em instituições públicas
e privadas brasileiras e portuguesas, entre as quais está o Arquivo Histórico
Ultramarino, onde se encontra grande parte da correspondência produzida
no Brasil Colonial. O desaio passa por dois caminhos: primeiro, veriicar
a relação de idedignidade entre a versão impressa do Arquivo com o
original manuscrito, uma vez que há muitos casos de lição deturpada.
Segundo, e mais coerente, seria a busca pelas fontes primárias, ou seja,
os originais manuscritos produzidos pelo punho ou pelo menos pela
supervisão de Rodrigo Cesar de Menezes, atividade que implicaria ter
domínio ilológico e paleográico para a sua leitura e transcrição.
A publicação do APESP atribui a autoria documental a Rodrigo
Cesar de Menezes. Citações como correspondência do Rodrigo Cesar de
Menezes ou documentos do governador são muito comuns nesse tipo de
publicação. Embora não haja dúvida da autoria intelectual por parte do
governador, essa situação adquire determinada complexidade à medida que
se lê o documento impresso e veriica-se que há destaque para o nome de
Menezes, aparecendo esse, na maioria das vezes, em itálico, como se valesse
como assinatura. Esse fato pode levar a equívocos de atribuição de autoria
e relações falhas quanto aos dados linguísticos encontrados, principalmente
quanto à caracterização da prática de escrita em questão, relacionando-a
à do governador e à sua história “escolar” e não ao seu próprio produtor
material, de um outro estrato social e histórico, no caso o seu secretário.
Ao voltar os olhos para os documentos manuscritos, veriica-se
que o itálico dado ao nome do governador, na versão impressa, resulta
de escolha subjetiva do editor, pois não há diferença gráica entre a letra
que compõe a mancha do documento e a utilizada na assinatura, levando
a acreditar que se trata de um conjunto de cópias, principalmente por
estarem reunidos em um único livro de registros, lembrando uma espécie de
cartulário. Ou, então, seria a versão impressa realizada com base em outra
documentação manuscrita, cuja relação, até o momento, não se alcançou.
No contexto de produção desses documentos, como já
mencionado, não há como negar a responsabilidade de Rodrigo Cesar
de Menezes como autor intelectual de toda a documentação. Como
governador e capitão general, era responsável pela administração da
capitania de São Paulo e, como se sabe, essa atividade, muitas vezes,
era realizada por meio da escrita. A análise das assinaturas e do tipo
de letra dos bandos possibilita a veriicação desse fato por encontrar
seu nome ou a indicação do seu nome em quase todos os documentos.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
273
Do ponto de vista material, a responsabilidade estava relacionada com
outros cargos, principalmente o de secretário do governo, sob a igura
de Gervasio Leyte Rebello.
FIGURA 3 – Trecho retirado do bando da versão publicada
pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo
Fonte: APESP, 1901.
Esses dados, no entanto, não são suicientes para esgotar a
questão autoral da documentação em questão. Pode-se pensar também,
pelo número de produções da secretaria da capitania em geral, que
poderia haver outros proissionais da escrita responsáveis por essa
função, como, por exemplo, escrivães e tabeliães, cargos relacionados
em Salgado (1985) à prática de escrita administrativa colonial. Essa
hipótese parte de indicações à margem de determinados documentos
com a letra diferente da utilizada ao longo do livro de registro. Nestes
trechos, retirados do manuscrito que se refere aos soldados fugitivos,
cuja transcrição se encontra neste artigo, pode-se veriicar uma diferença
nas assinaturas em relação ao traçado do “R” na palavra “Rebello”.
À esquerda, a escrita da margem; à direita, a do documento.
FIGURA 4 – Trechos de bando sobre soldados fugitivos,
presentes no volume XII dos Documentos Interessantes
Fonte: APESP, 1901, p. 9.
O estudo constatou, portanto, que a documentação manuscrita dos
bandos, com exceção das escritas marginais, tem apenas um tipo de letra, a
mesma utilizada no registro da assinatura do governador. Por estar presente
274
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
em livro de registro de secretaria, o punho nesse material apresenta
algumas oscilações, provavelmente próprias do processo de cópia, além
da variação gráica proveniente do seu autor material original. Já na
publicação do APESP, a assinatura de Menezes, na edição dos bandos,
apresenta-se sempre em itálico, com destaque. Pelo que foi veriicado,
o esforço material empregado na composição documental estava, em
grande parte, a cargo do secretário Gervasio Leyte Rebello, com autoria
apenas intelectual de Rodrigo Cesar de Menezes, sem a possibilidade de
se veriicar como se realizava a supervisão dessa produção.
5 A escrita dos bandos
Com apenas um escriba como autor material reconhecido, o
secretário Gervasio Leyte Rebello3 (outros ainda precisam ser estudados),
o esperado seria uma prática de escrita com poucas oscilações, com
escolhas gráicas sem muitas alternâncias, apenas com hábitos de escrita
particulares ao conhecimento da língua portuguesa do secretário e da sua
prática de escrita proissional. Embora fossem comuns as variações no
mesmo punho à época, não se pode descartar a hipótese de que o fato de
haver dois autores nesse caso, o autor material, na igura de Rebello, e
o intelectual, na do governador Menezes, pode ter inluência na escrita
dos manuscritos e, portanto, no estado de língua testemunhado. A análise
apresentou os seguintes resultados quanto à escrita do corpus:
a) Duplicação do <l>: há alternância na escrita de palavras que
apresentem <l> na posição medial. Às vezes, elas são grafadas
com apenas um <l>; às vezes, a mesma palavra é grafada com o
<ll> duplo. Como por exemplo, a palavra “alegrar”. Nos anos de
1721, 1722, 1724 (v. XIII), ela aparece com o <ll> duplo: allegrar.
Entretanto, nos anos de 1726 e 1724 (v. XXXII), aparece com um
<l> apenas: alegrar e alegres, respectivamente. No ano de 1728, só
foram registradas palavras com o uso do <ll> duplo, como ocorre
em: alleguem, pellas, nellas, villa;
A conirmação do punho do secretário foi estabelecida com o cotejo de cartas escritas
por Gervásio Leyte Rebello, localizadas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa,
pertencentes ao Catálogo do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”. Para mais
informações, consultar Fachin (2014).
3
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
275
b) alternância de <i> e <y>: uma mesma palavra pode ser escrita com
<i>, com <y>, ambos em posição medial. Como ocorre com o nome:
Silva. Nos anos de 1723 e 1724 (v. XXXII) o nome foi escrito com
<i>: Silva. Já no ano de 1725, ele foi escrito com <y>: Sylva. O
mesmo ocorreu com a palavra: debaixo. Em 1724 (v. XXXII), foi
grafado usando o fonema <i>: debaixo. Entretanto, em 1727, a
mesma palavra foi registrada com <y>: debayxo. Outras palavras
grafadas com <y> foram: leyte (1721, 1722, 1723, 1724 – v. XIII–
1725, 1726, 1727 e 1728); Cuyaba (1723, 1724, 1727,1728); mayor
(1727); alheyos (1728), arrayal (1724 – v. XXXII). Foi encontrado
apenas um caso de uso do <y> em posição inal: mandey (1727);
c) alternância de <e> e <i>: quando se refere ao uso do <e> e do <i>,
pode-se observar predominância pelo uso do <e>. Veja os exemplos:
admetido, officiaes, demenutas (1721); destricto, ouvedoria
(1722), quaesquer, demenutas (1723), delligencia (1725), destricto
(1726), oficiaes, admenistrado (1728). Registros de palavras
com <i>: primeiras (1722), mineiros, principal, impostas (1723),
impedimento (1726);
d) duplicação do <f>: são estes alguns dos casos de duplicação:
oficiaes (1721), eficas (1723), oficiaes, refferidas (1728);
e) duplicação do <n>: a duplicação só ocorreu em palavras com inal
“–ano”. Como em: anno (1724, 1725, 1726,1728), annos (1724, v.
XXXII) e danno (1728). Outras palavras com “n” foram grafadas
com apenas um. Como ocorre em: minas, bando, grande (1724),
continuando, destinava (1725), penas, diante, mando (1728) e
bando (1724, v. XXXII);
f) alternância de <s> e <z>: neste caso, também ocorre de uma mesma
palavra ser grafada com <s> e <z>. São os casos das palavras: fez,
mês e casa. O verbo é grafado com <z> no bando correspondente
ao ano de 1721. Mas nos outros anos, ele é grafado com <s>: fes.
O substantivo “mês” é grafado com <s> no bando correspondente
ao ano de 1724, mas nos bandos correspondentes aos anos de
1722, 1727 e 1728, tal substantivo é grafado com <z>: mez, mezes,
mezes. O mesmo processo se dá com o substantivo “casa”. No
bando correspondente ao ano de 1721, ele é escrito com <s>: casa.
Entretanto, nos bandos correspondentes aos anos de 1723, 1727
276
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
e 1728, encontra-se o registro deste substantivo com a letra <z>:
caza e cazas. Outras palavras grafadas com <z> encontradas foram:
cauza, auzente, dezerção (1721), razões, fazendo, preza (1722),
prezumir, dezemcaminhão, dezembarcar, dezejava, prezente (1723),
prezença (1724), rezoluto (1725), cazados, preza, prezente (1726),
prezos (1727), couza, auzentarem, prezumir, prezos (1728). Outras
palavras encontradas grafadas com <s> foram: caso (1721), mais
(1722, 1723, 1724, 1725), eficas (1723), tres (1724, 1726);
g) alternância de <s> e <ç>: há predominância de registro de palavras
grafadas com <ç>. Exemplos: praça, serviço (1721), conservação,
condição, lançar, praça (1722), lançar, cobrança, lançado (1723),
praça, monção, prezença (1724, v. XIII), monição, praça, lançar,
serviço (1725), praça, monção, fação, petição (1726), praça, roças,
lançar (1727), lançou, segurança, roças, lançar (1728), lançou,
lançar, Março (1724, v. XXXII). Aqui também ocorre o caso de uma
mesma palavra ser grafada com <s> e <ç>, como ocorre no caso da
palavra: terça. No bando correspondente ao ano de 1726, tal palavra
é grafada com <ç>: terça. Entretanto, no bando correspondente ao
ano de 1727, esta mesma palavra é grafada com <s>: tersa. Outras
palavras grafadas com <s> são encontradas no bando de 1727,
asoutes e, no de 1728, consentisse e observância;
h) uso de <x>: O uso do <x> é basicamente igual ao uso atual, portanto
sem casos de oscilação com <s> ou outros elementos. Exemplos:
ixaraõ (1721), ixara, ixandosse (1722), ixara (1723, 1724,
1725,1726, 1727, 1728), ixou (1724, v. XXXII), trouxessem (1723),
próxima (1724), experimentaõ (1728);
i) alternância de <s> e <ss>: novamente ocorre o caso de uma mesma
palavra ser grafada com <s> e <ss>. É o caso da palavra: assim.
Grafada com os dois “s” nos bandos correspondentes aos anos de
1721, 1724,1725. É grafada com um “s” só no ano de 1728: asim.
Outras grafadas com <ss>: possão (1721, 1722, 1724, v. XIII, 1728),
pessoa, ixandosse (1722), pessoa, passagem, pagassem, assistisse,
trouxessem, quintassem (1723), assistirem, passada (1724), pessoas,
passarão (1725), sessenta, pessoas, passão (1726), consistisse,
passou, mandassem, devessem (1728). Como se pode ver, os verbos
no tempo Pretérito Imperfeito, no modo Subjuntivo, são grafados
com <ss> assim como se faz de acordo com o português atual;
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
277
j) uso de <c> e <ç>: é basicamente o mesmo que se usa atualmente.
Veja os exemplos com <ç>: segurança, faça, licença (1721),
conceição (1728). Agora, exemplos com <c>: denunciar, noticia,
ignorancia, licença (1721), falecer, ignorancia, principais (1723),
procedera, parecer, ignorancia (1724), ignorancia (1726),
consideravel (1727), ignorancia, observancia, conceição (1728);
k) O uso do <h>: ao observar os bandos pode-se veriicar o uso do
“h” nos seguintes casos: hali, húa (1723), hir, hirem, ha (1725),
prohibe, he (1726), húa, hum (1727) hum, sahir, prohibidas (1728).
O verbo “haver” foi escrito com o <h> assim como se escreve de
acordo com o português atual. Veja os exemplos: haverem (1725),
havendo (1726), havendo, haverem (1727), haver, houve, havendo,
houver (1728);
l) Troca de vogais: ao observar os bandos em questão, veriica-se uma
troca de vogais. Esta pode ser entre <i>/<u>; <o>/<u>; <e>/<a> e
<e>/<i>, como se mostrou anteriormente. Casos encontrados de <i>
e <u>, há: outavas, asoutes (1727), noute, couza (1728). Casos de
<o> e <u>, temos: logar (1722), lugar (1723), monição, descuberto
(1725). Como se pode ver, ocorrem casos de uma mesma palavra
ser escrita com uma ou outra vogal, como ocorre em logar e lugar;
m) O uso do <th>: foram encontrados dois casos com uso de <th>,
ambos na palavra teor. Veja: theor (1722, 1725);
n) casos particulares: ao observar os bandos em questão, nota-se a
ocorrência de casos particulares como: <y> e <im> – my (1721),
<m> e <~> – nenhuã (1722), <m> e <´> – algúas (1723), <s> e
<c> – conciderava (1723), <v> e <b> – sorocava (1723), <m> e
<n> – promptas (1725) e <s> e <sc> – recolhescem (1728);
o) outros casos: 1721 – acháo, continuam, prezestir, emcorrerâ,
cincoenta; 1722 – detreminação, destricto; 1723 – emcorrerâ;1724
(v. XIII) – menhãa, aribarão; 1724 (v. XXXII) – regulos, treslado;
1725 – polvra, promptas, socorrerse; 1726 – homê, destricto;1727
– cadea, castigalos, darem-lhe; 1728 – cadea, emcorrerão;
p) pontuação: a vírgula, nos bandos selecionados para análise, é
usada frequentemente. Seu uso varia tanto em contexto de vírgula
quanto como ponto inal e parece não seguir uma regra. Veja alguns
278
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
exemplos: “Ordeno, e mando q’ todas as pessoas, q’ quiserem hir
a elle fazer serviço a S.Mag.de q’ D.s g.e se ponham promptas, p.a
irem para a tropa, que se há de expedir, ...”. (1725), “ordeno, q’ todo
o soldado q’ se achar auzente, e se restituir a comp.a em q. serviu
dentro em trinta dias, será admetido, e perdoado, e quando o não
faça será trancado nesta cid.e p.a onde virâ remetido, e assim todo
o q’ daqui por adiante se auzentar ...”(1721).
Quanto ao ponto inal, não há praticamente seu uso nos
bandos em questão. A vírgula, na maioria das vezes, toma seu papel
e, por conta disso, não há períodos, e, sim, um grande parágrafo.
Entretanto, ao inal de quase todos os bandos usou-se o ponto inal
para encerrar o assunto. No bando correspondente ao ano de 1728,
foi encontrado o ponto inal no meio da correspondência, com a
função de ponto no inal de frase. Foi a única vez que se encontrou
esse uso. Veja no trecho a seguir: “... e me constar q’ não houve a
devida observância. Ordeno e mando q’ daqui em diante...”. No
mesmo bando, encontra-se no trecho “... oficiaes de justiça. ou
guerra...” o ponto inal sendo usado no lugar da vírgula. Por conta
da escassez do uso do ponto inal, a leitura dos bandos se torna
mais complicada.
Em bandos datados com os anos de 1721,1722, 1723, 1728,
observa-se o uso dos dois pontos (:). Nos três primeiros anos, os
dois pontos foram usados antes da palavra “ordeno”. Exemplo:
“... no serviço de S.Mag.de: ordeno q’ todo soldado...” (1721).
De acordo com a gramática do português culto do Brasil, os dois
pontos deveriam vir depois da palavra “ordeno” e não antes. No
bando do ano de 1728, esta pontuação foi usada no trecho: “... por
outro bando, q’ já se lançou: e p.a q’ chegue a noticia de todos...”.
A última pontuação encontrada nos bandos separados para
análise foi o ponto e vírgula (;). Seu uso aparece nos correspondentes
aos anos de 1721, 1722, 1725 e 1726. Veja um exemplo: “...
perdendo soldados veteranos; e metendo nellas em seu lugar...”
(1721). Nesse trecho, seu uso ocorreu no lugar da vírgula;
r) uso de maiúsculas:
No início de parágrafo: em todos os bandos selecionados
para análise, ocorreu o uso de letra maiúscula nessa posição.
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279
Datas oiciais: “S. Paulo aos 18 de Setr.o de 1721”,
“Villa Real do Bom Jesus do Cuyabâ aos cinco de Janr.oe
Anno de 1728”.
Títulos: S.Magde, Gov.or, Gov.o(1721), Sarg.to Mor,
or
Prov. (1723), Capp.m (1725), Capp.es Mores (1726), Senhores
(1727), S.res, S.r(1728), Guarda Mór, Mestre de Campo, Ex.mo
S.r, Cap.m General (1724, v. XXXII). Entretanto, no bando
correspondente ao ano de 1722, o título “Oiciais da Câmara”
aparece em letra minúscula: off.es da Camr.a.
Nome próprio: Rodrigo Cesar de Menezes (1721,
1722, 1724, v. XXXII), R.o Cesar de Menezes (nos demais
anos), Santos, (1721), Minas (1722), Rio, Cuyaba, Sorocava,
Silva Monteiro, Minas, João Miz’ Claro (1723), Cuyaba
(1724, v. XII), Bueno da Sylva, Certtão dos Guayazes (1725),
Cuyaba, Nova Colonia, Março, São Paulo (1726), Minas
(1727), Lavras de Ribeirão (1728), Balthazar Ribeiro, Março,
Minas Alegres (1724, v. XXXII). Entretanto, no bando de
1723, ocorre do nome próprio “Sorocaba” ser grafado com
minúscula: sorocava. E, no bando correspondente ao ano de
1724, aparece: Rio grande, com apenas o primeiro nome em
maiúscula.
Logradouros públicos: na maioria dos bandos
selecionados para análise, ocorreu a utilização da letra
maiúscula quando se tratava de nomes de logradouros
públicos. Veja os exemplos: Barra (1721), Villa de Pernangóa
(1722), Villa de Ontû, Villas de Santos (1723), Villas (1725),
Villas (1726), Villa, Villa do Real do Bom Jesus do Cuyabá
(1727), Villa (1728).
Outras ocorrências: A letra maiúscula é usada em
algumas situações de meio de frase. Exemplos: “...assim
todo o q’ daqui por diante se auzentar sem Licença dos seus
oficiaes...” (1721), “...na paragem mais publica do dito
Arrayal, e por passar o referido na verdade...”, o mesmo
arraial é grafado em minúscula algumas linhas antes deste
trecho citado acima (“...o qual se lançou neste arrayal a
som...”);
280
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s) abreviaturas: encontram-se quatro tipos no corpus. Levando-se em
consideração a classiicação de Costa (2006): 1) abreviação por
sinal geral, composta de um signo abreviativo, no caso dos bandos,
por apóstrofo (’), indicando a falta de uma ou mais letras. Esse tipo
ocorre, por exemplo, em q’ = que (presente em todos os bandos em
questão, exceção feita ao bando correspondente ao ano de 1724,
v. XXXII) e Porq’ = Porque (1726 e 1727); 2) abreviação por
contração ou síncope, deinida pela supressão de letras no interior
da palavra, como em rs = reis (1721 e 1726); 3) abreviação por
suspensão ou apócope, por meio da supressão de elementos inais
da palavra: q. = que (1721); 4) abreviação por letra sobreposta,
constituída pela sobreposição de uma ou mais letras que compõem
a parte suprimida da palavra. Esse tipo de abreviação está presente
em todos os bandos selecionados para análise, sem exceção. Veja
alguns exemplos: mto= muito; continuam.te= continuamente; L.os=
Livros (1721), Capp.nias= Capitanias; qualq.r= qualquer; Mag.
de
= Magestade (1722), Outr.o= Outubro; q.tos= quantos (1723),
Gov.o= Governo; Fevr.o= Fevereiro (1724, v. XII), descobrim.to=
descobrimento; Primr.o= Primeiro (1725), Prez.te= Prezente; reg.to=
regimento (1726), Janr.o= Janeiro (1727), S.res = Senhores; Capp.
es
= Capitães (1728), Ex.mo= Excelentíssimo; S.r= Senhor (1724, v.
XXXII);
t) acentuação: encontraram-se três tipos de acentuação ao analisar
os bandos em questão. São eles: til (~), acento agudo (´) e acento
circunlexo (^). Seus usos são às vezes distintos do sistema atual
em relação aos acentos agudo e circunlexo. Quanto ao til, seu
uso é basicamente o mesmo em relação ao sistema atual. No caso
do agudo, os exemplos aparecem em contexto de til (~): acháo,
registrará, estáo (1721), nenhúa, pubicará (1722), húa (1723),
atenderá, dará, publicará, ixará (1725), húa (1727), terá, será,
publicará, ixará (1728). Veja os exemplos de acento circunlexo
(^): serâ, publicarâ, mandarâ (1721), registrarâ, serâ, passarâ,
publicarâ (1722), Ontû, Cuyabâ (1723), Cuyabâ, publicarâ,
procederâ, ixarâ (1724, v. XIII), Cuyabâ, homês (1726), Cuyabâ,
dê (1728). Veja os exemplos de til (~): certidaõ, dezerçaõ (1721),
razões, conservaçaõ, condiçaõ, possaõ, mandaraõ (1722), declaraõ,
naõ (1723), façaõ, faraõ, naõ (1726), entre outros.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018
281
Dado o exposto, pode-se perceber que os acentos
agudo e circunlexo se confundem. Ora uma mesma palavra
é grafada com o acento agudo, ora com o circunlexo. É o que
ocorre, por exemplo, em: publicará e publicarâ. Ambos os
acentos foram usados para marcar a sílaba tônica da palavra.
O mesmo ocorre com a palavra “será”, ora grafada com um
acento, ora grafada com outro.
6 Conclusão
Embora a publicação do Arquivo Público do Estado de São Paulo
traga em seu título a atribuição autoral a Rodrigo Cesar de Menezes dos
diversos documentos editados, e isso se reira a uma prática comum na
administração colonial, ou seja, a autoridade superior normalmente não
era o responsável material pela composição documental, a análise do
corpus demonstrou que é necessária a diferenciação entre autoria material
e autoria intelectual. A implicação dessa necessidade se dá por duas
razões: primeiro, por destacar que os hábitos gráicos dos documentos
podem pertencer, em diferentes níveis, ao governador e ao seu secretário,
Gervasio Leyte Rebello, ambos provavelmente com histórias de vida
e de contato linguístico díspares; segundo, por talvez representar uma
prática de escrita pertencente a uma tradição administrativa mais antiga,
não pertencente nem ao governador nem ao secretário, mas às exigências
diplomáticas da própria espécie documental em questão, como se o
documento, na sua composição, exigisse o uso de certos hábitos de
escrita, além das fórmulas utilizadas ao longo do texto, no protocolo
inicial e inal, fator que ainda precisa compor o objeto de estudo de
muitas pesquisas ilológicas.
Nesse contexto, apesar da estrutura fixa – por se tratar de
documento diplomático – veriicada em todos os testemunhos, há
diversos casos de variação gráica. Trata-se de um estado de língua que,
para ser registrado, oferecia dúvida até para um proissional da escrita
de tão larga experiência como o secretário Gervasio Leyte Rebello. Com
uma escrita alternante, resultado da mescla de hábitos gráicos do escriba
com o que escrevia de ouvido ou por meio de cópia, transmitido pelo
autor intelectual dos documentos, é fundamental a identiicação detalhada
de como se operacionalizava esse processo.
282
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No governo de Menezes, as ordens do cotidiano, os bandos,
por exemplo, assim como todos os trâmites de escrita, emanavam
diretamente da igura do governador e capitão general, materialmente
compostos em sua maioria pelo seu secretário. Em estudos posteriores,
pode-se chegar a um quadro sistematizado das variações encontradas,
classificadas e categorizadas, que podem demonstrar o estado de
uso da língua portuguesa numa tradição administrativa que, embora
com estruturas ixas, poderia apresentar também formas livres, muito
dependentes do grau de conhecimento linguístico do escriba em questão
e independentes do tipo de documento. Esse tipo de resultado pode
contribuir signiicativamente com os trabalhos ilológicos e de linguística
histórica, já que, entre as suas preocupações, está a identiicação de
testemunhos idedignos, genuínos, autênticos e de como efetivamente a
língua portuguesa era utilizada. Nesse sentido, será de suma importância
o cotejo com diferentes documentos, sob responsabilidade de Menezes,
e bandos pertencentes a outros governadores de capitania, para ampliar
o conhecimento a esse respeito.
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DOCUMENTOS Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo:
Bandos e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. Arquivo Público do
Estado de São Paulo (APESP). São Paulo: Typographia Aurora, 1895.
v. XIII.
DOCUMENTOS Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo:
Correspondência interna do Governador Rodrigo Cesar de Menezes
1721-1728. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). São
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DOCUMENTOS Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo:
Correspondências e Papéis Avulsos de Rodrigo Cesar de Menezes 17211728. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). São Paulo:
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
A formação do glide no alemão padrão
Glide formation in Standard German
Mágat Nágelo Junges
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina / Brasil
magat.nj@hotmail.com
Gean Nunes Damulakis
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil
damulakis@gmail.com
Resumo: Este artigo discute a formação do glide [j] na estrutura
silábica do alemão padrão. Para isso, apresentam-se teorias fonológicas
que dão conta da sílaba, desde a Fonologia linear, passando pela Não
linear, e chegando a uma análise otimalista. Neste trabalho, leva-se
em consideração o ‘princípio da escala de sonoridade’ (doravante,
SSP) como possível parâmetro de compreensão para a análise do glide
[j] em investigação, tal como a exigência de onset. Reanalisamos as
possibilidades de ordenação do glide [j] na estrutura silábica interna do
alemão padrão, de acordo com modelos teóricos recentes, sobretudo os
não lineares, como as teorias autossegmental e métrica, e investigamos
como isso poderia ser acomodado em um modelo fonológico que exclui
(ou reduz) a derivação, como a teoria da otimalidade. Concluímos
que na representação subjacente não é necessário especiicar o status
de glide [j], mas apenas de vogal alta, podendo uma hierarquia de
restrições determinar sua posição na sílaba, sobretudo respeitante à sua
nuclearidade.
Palavras-chave: glide [j]; estrutura silábica do alemão padrão; Teoria
da Otimalidade (TO).
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.285-319
286
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
Abstract: This paper discusses the glide [j] formation in the syllabic
structure of Standard German (Hochdeutsch). For that, a discussion
about phonological theories on the syllable was raised, from Linear
Phonology and Non Linear Phonology to Optimality Theory (OT).
In this paper, the Sonority Sequencing Principle (SSP) was taken into
account as a possible parameter in order to comprehend the glide [j]
under investigation, as well as the demand for onset position. Sequence
possibilities of the glide [j] onto the internal syllabic structure of German
were reanalyzed, according to recent theories, mainly the not linear ones
as Autosegmental and Metrical. Furthermore, an investigation on the
glide [j] formation in a phonological model that excludes (or reduces)
the derivation – as the Optimality Theory – was carried out. Hence, the
results have shown that it is not necessary to specify the glide [j] status
in the underlying representation, but only that of high vowel. This way, a
constraint hierarchy can determine its position in the syllable, especially
its nuclearity.
Keywords: glide [j]; syllabic structure of Standard German (Hochdeutsch);
Optimality Theory (OT).
Recebido em 9 de abril de 2017.
Aprovado em 25 de agosto de 2017.
1 Introdução
Neste trabalho, investigamos a formação do glide [j] na sílaba
do alemão padrão. A ideia de se trabalhar com o glide é motivada
pelo fato de que esse segmento (de articulação dúbia entre vogais e
consoantes) parece, ainda, não ser completamente bem deinido na
estrutura fonológica do alemão padrão (doravante, AP). Buscamos dar
nova interpretação para uma adequação do glide na estrutura fonológica
dessa língua, contrapondo exemplos de teorias fonológicas derivacionais
e acomodando a análise nos pressupostos da TO, segundo a qual a
divergência entre input e output se deve à avaliação de um conjunto de
restrições hierarquizadas.
O AP conta com um inventário fonético de 17 sons vocálicos (se
considerarmos a duração) e cerca de 30 sons consonantais (DAMULAKIS,
2008, p. 63-64). Desses sons, o único exemplo no alemão de aproximante
é a palatal [j], como em: [j]a ‘sim’, [j]ugend ‘juventude’ (Ib., p. 64).
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287
Segundo Damulakis (2008), o segmento é visto como uma consoante,
subjacentemente no AP.
O termo “glide” foi introduzido, pela primeira vez, por Sievers
(1881), na sua teoria das três fases, sendo elas: on-glide, posição
articulatória e off-glide. Sievers partiu da suposição de que os articuladores
levam um tempo t mensurável na sua posição neutra (“de descanso”) até
se movimentarem fundamentalmente sobre o menor e menos audível
glide para o próximo som. Essa teoria foi abandonada no início do
século 20. Menzerath e Lacerda (1933, p. 58) estabelecem que a fala é
um movimento de duração e que os articuladores, excepcionalmente, na
maioria das vezes, permanecem por um tempo t determinado na mesma
posição (apud MÜCKE, 1997, p. 02).
Tendo em vista essa descrição acústico-articulatória dos glides,
interessa-nos, por outro lado, investigar a maneira como podem ser
classiicados na estrutura silábica do AP e a abordagem teórica fonológica
que consegue dar conta, de maneira mais apropriada, do lugar dos glides,
já que há glides pré- e pós-vocálicos no AP.
O modelo silábico proposto por Kahn (1976) compreende a sílaba
como uma unidade, cujos segmentos encontram-se ligados diretamente
ao nó silábico, enquanto o modelo silábico hierárquico, formulado por
Selkirk (1982) e Harris (1983), considera-a em uma estrutura hierárquica
interna. Optamos por considerar, neste trabalho, que a sílaba tem uma
estrutura interna. Além disso, para darmos conta de nosso objetivo,
lançaremos mão do “princípio da escala de sonoridade” (doravante, SSP)
e seu papel importante, visto que os glides têm, em algumas propostas
de escala, a mesma sonoridade que uma vogal.
Dividimos este artigo nas seguintes seções: seção 2, na qual a
sílaba é apresentada como estrutura fonológica universal; seção 3, em
que se apresentam as principais deinições dos glides e indica-se, no item
3.1, a representação do glide [j] no alemão padrão baseada no modelo
fonológico métrico de Selkirk (1982) e Harris (1983); seção 4, na qual se
analisa o glide [j] na sílaba do alemão, e seção 5, que trata da formação
do glide com base na Teoria da Otimalidade (OT).
2 A sílaba como estrutura fonológica universal
Sabemos que não há língua natural sem sílaba. O uso da sílaba
para um falante nativo parece ser bastante intuitivo, e ela pode ser
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empregada em versos, rimas e canções, por exemplo. Algumas análises
experimentais mostram, por exemplo, que a realidade cognitiva da sílaba
é mais robusta que a de segmentos, uma vez que a alfabetização costuma
aumentar a consciência de segmentos, ao passo que a sílaba pode ser
considerada menos atrelada à alfabetização. Segundo Morais et al. (1979),
embora não seja difícil levar analfabetos à consciência de segmentos,
aqueles são tipicamente inconscientes da existência dessas unidades.
Do ponto de vista fonológico, a sílaba representa uma estrutura
que ocorre em ambientes de regras fonológicas, tanto para derivar alofones
quanto em alternância morfofonêmica. As sílabas também são consideradas
unidades que contêm o acento tônico e que servem de base para tons em
sistemas tonais, bem como para a entonação1 (HAYES, 2009, p. 250).
Para Carr (1993, p. 195 apud BROCKHAUS, 1999, p. 170), a
estrutura silábica é considerada indispensável para se expressar muitas
generalizações fonológicas. Com base nessa constatação, Kenstowicz
(1994, p. 250) enumera três argumentos2 para a sílaba como um conceito
útil em fonologia (tradução nossa):
a) (A sílaba) é um domínio natural para a explanação de muitas
restrições fonotáticas.
b) Regras fonológicas são frequentemente expressas de maneira mais
simples e mais razoável se elas se referirem, explicitamente, à sílaba.
c) Vários processos fonológicos são mais bem interpretados como
métodos para assegurar que a cadeia de segmentos fonológicos seja
dividida em sílabas.
“Looking within Phonology itself, we find that syllables frequently appear in
environments of phonological rules, both for deriving allophones and in morphophonemic
alternation. Syllables also are the units that bear stress and serve as the ‘anchor points’
for tones in tonal systems and in intonation. It is hardly surprising that phonologists have
often made use of syllables in phonological theory.” (HAYES, 2009, p. 250)
2
The main arguments which have led to this position are conveniently summarized in
Kenstowicz (1994, p. 250) and can be stated as in (1).
(1) The syllable is a useful concept in phonology, for three main reasons:
a. It is a natural domain for the statement of many phonotactic constraints;
b. Phonological rules are often more simply and insightfully expressed if they
explicitly refer to the syllable.
c. Several phonological processes are best interpreted as methodes to ensure that
the string of phonological segments is parsable into syllables.
1
289
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
Outras compreensões acerca do assunto tomam a sílaba como
uma “unidade bem reconhecida na análise linguística, que explica muito
bem o número de unidades rítmicas que serão perceptíveis numa palavra
ou numa elocução longa. Esse número é geralmente igual ao número
de vogais da elocução.”3 (MADDIESON, 2001, p. 1). Também se pode
dizer que a sílaba é uma unidade fonológica que organiza as melodias
segmentais em termos de sonoridade (BLEVINS, 1995). De acordo
com as deinições acerca da sílaba, depreende-se que ela tem um papel
fundamental para a estrutura prosódica de toda língua natural. No entanto,
como podemos representá-la?
Como bem lembra Collischonn (2001, p. 91-92), há basicamente
duas teorias a respeito da estrutura interna da sílaba: a teoria autossegmental
e a teoria métrica da sílaba. De acordo com a primeira, pressupõem-se
camadas independentes na estrutura silábica. Segundo Cristófaro Silva
(2011, p. 111-117), essa proposta teórica tem o objetivo de integrar
vários níveis da descrição do componente fonológico. É representada,
abaixo, em (a). Já a Fonologia Métrica se dedica a analisar fenômenos
suprassegmentais, especialmente a respeito da atribuição do acento no
nível da palavra. Essa teoria defende que as sílabas são estruturadas
como representado em (b), conforme Selkirk (1982), baseando-se em
propostas feitas anteriormente por Pike e Pike (1974) e Fudge (1969).
A Figura 1, a seguir, mostra as representações silábicas em ambas
as teorias:
FIGURA 1 – Representações da sílaba
(a)
(b)
A
n
k
R
Nu
Co
Fonte: Colischonn, 2001, p. 91.
“The syllable is a well-recognized unit in linguistic analysis which explains quite well
the number of rhythmic units that will be perceived in a word or longer utterance. This
number is usually equal to the number of vowels in the utterance.” (Chapter Syllable
Strucutre: http://wals.info/chapter/12)
3
290
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A constituição da sílaba tônica [nk] da palavra “connective”
do inglês é exibida, acima, em 1(a), Figura 1, na estrutura arbórea,
indicada em Hayes (2009). Como podemos observar, a letra grega
sigma σ é empregada para a representação da sílaba. Por outro lado,
na representação presente em Collischonn (2001) – reproduzida em 1b,
podemos observar a divisão hierárquica na estrutura silábica em ataque
(A) ou onset (posição ocupada por consoantes) e rima (R) (dividida em
núcleo (Nu) e coda (Co)).
De acordo com Maddieson (2015, p. 2), os “modelos silábicos
canônicos são, na maioria das vezes, representados por um feixe de
consoantes (C) e vogais (V) […]”. A sílaba canônica, que se considera
a sílaba leve e simples e que está presente potencialmente em todas as
línguas naturais é a sílaba CV4 (core syllable), que, em termos otimalistas,
equivale ao padrão silábico não marcado. Por exemplo, línguas como o
havaiano (Havaí) e o Adamawa-Ubangiã (República Democrática do
Congo) só têm esse tipo de sílaba. Em Maori (Nova Zelândia), por sua
vez, há sílabas CV, além de V somente. Se a sequência silábica CV for
acrescida de consoantes, obtêm-se sílabas mais elaboradas do tipo CVC e
CCV. Além dessas possibilidades, há também sistemas silábicos complexos
moderados, nos quais se permite somente uma única C depois da vogal ou
duas C antes dela. Um exemplo de língua como essa é o Darai, falado na
região indo-ariana e no Nepal, na qual uma amostra dessa estrutura seria
o vocábulo /bwak (CCVC) “seu pai”. Outra ocorrência de tipo silábico
nas línguas naturais se dá no inglês, em que sequências de sistemas
silábicos complexos são permitidos. Por exemplo, no vocábulo [strENkTs]
(CCCVCCCC) strengths (Ib., p. 2-3). De maneira geral, quando uma
língua permite complexidade (CCV[C] ou [C]VCC) e não canonicidade
silábicas (V[C]), ela também tolera simplicidade (CV[C]) e canonicidade
(CV). O oposto não é verdadeiro. Dito de outra forma: a) a presença de
codas é universalmente marcada, e a falta de onset também o é; b) esses
constituintes tendem a ser simples, universalmente (KAGER, 1999).
Em se tratando da complexidade silábica, conceito importante é
o de sequência de sonoridade, considerada uma das condições universais
para a formação da sílaba. O que ocorre, de fato, é que o elemento mais
sonoro irá sempre ocupar a posição de núcleo, e os elementos menos
4
CV (CV syllable), sílaba constituída por consoante e vogal. É tida como sílaba
universal, pois é a única que ocorre em todas as línguas naturais. (Ib., p. 85)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
291
sonoros ocuparão ataque e coda. O SSP (Sonority Sequencing Principle
– Princípio de sequência de sonoridade), baseado em Sievers (1881)
e Jespersen (1904), advoga que há uma “escala de sonoridade” para a
sílaba, que cresce do seu início até o seu pico e decresce do pico até a
coda. Esse princípio opera por meio das línguas naturais, com algumas
exceções. Segundo Clements (1990, p. 19),
as sílabas são normalmente caracterizadas por um aumento
e uma diminuição na sonoridade, que se refletem nos
valores da escala de sonoridade, caracterizando cada
um de seus segmentos. As sequências de sílabas exibem
um aumento e uma diminuição quase periódicos em
sonoridade, cada um repetindo uma porção a qual pode ser
chamada de ciclo de sonoridade. É possível ajustar uma
curva ou delineá-la sobre tais representações que reletem
esse aumento e essa diminuição, como apresentado na Figura
2, consistindo de dois ciclos:5
FIGURA 2 – Escala de sonoridade (vocábulo ‘template’, do inglês),
de acordo com os traços soante, aproximante, vocoide e silábico
Fonte: Clements, 1990, p. 20: Ilustração 12.
Segundo o autor (1990, p. 20), o número de ciclos, cujo pico
decresce da linha do topo ([silábico]) deste diagrama, corresponderá
“[…] syllables are normally characterized by a rise and fall in sonority which is
relected in the sonority scale values characterizing each of their segments. Sequences
of syllables display a quasiperiodic rise and fall in sonority, each repeating portion
of which may be termed a sonority cycle. It is possible to it a curve or outline such
representations which relects this rise and fall, as shown in (12), consisting of two
cycles.” (CLEMENTS, 1990, p. 19)
5
292
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exatamente ao número de sílabas, exceto o de um patamar ao longo da
linha do topo (representando uma sequência de vogais) que pode ser
analisada como uma sequência de picos silábicos.6 Observamos, assim,
alguns vocábulos do alemão padrão, cuja segunda vogal é omitida do
núcleo silábico, quando produzida (representada pelo diacrítico :
Exemplos:
können [knn] ‘poder/ser apto a’;
wollen [voln] ‘querer’ vs. Köln [kln] ‘Colônia’ (cidade).
Clements (1990, p. 20) propõe, então, o “Princípio da
Silabiicação do Núcleo” (The Core Syllabiication Principle, CSP),
partindo do exemplo ‘template’ apresentado. Baseado em Kahn (1976),
o autor airma que, para o traço [+silábico], os segmentos são deinidos
por uma língua natural em questão, e introduz um nó silábico sobre esse
traço. Esse passo pressupõe que os elementos silábicos já constam da
representação, a esse ponto, se criados por uma regra ou por subjacência
(no caso de línguas que têm distinções imprevisíveis entre glides e vogais
ou outros segmentos que se diferenciam somente em silabicidade, como
o francês, por exemplo).
Esse princípio é apresentado por Clements (1990, p. 20-21) da
seguinte maneira:
Princípio da Silabiicação do Núcleo7 (CSP):
a. Associa-se cada segmento [+silábico] a um nó silábico.
“The number of cycles whose peaks fall on the top ([syllabic]) line of this diagram
will correspond exactly to the number of syllables, except that a plateau along the
top line (representing a sequence of vowels) may be persed as a sequence of syllable
peaks.” (CLEMENTS, 1990, p. 20)
7
(13) The Core Syllabiication Principle (CSP):
a. Associate each [+syllabic] segment to a syllable node.
b. Given P (an unsyllabiied segment) preceding Q (a syllabiied segment),
adjoin P to the syllable containing Q iff P has a lower sonority rank than Q.
(iterative)
c. Given Q (a syllabiied segment) followed by R (an unsyllabiied segment),
adjoin R to the syllable containing Q iff R has a lower sonority rank than Q.
(iterative)
CLEMENTS (1990, p. 20-21)
6
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293
b. Dado P (um segmento não silabificado) precedendo Q (um
segmento silabiicado), junta-se P à sílaba contendo Q, se P tem
uma classiicação sonora mais baixa a Q. (iterativo)
c. Dado Q (um segmento silabiicado) seguido de R (um elemento
não silabiicado), junta-se R à sílaba contendo Q, se R tem uma
classiicação sonora mais baixa a Q. (iterativo)
Wiese (1998, p. 91 apud RAMERS, 1998, p. 94), por sua vez,
sugere para o AP, conforme mostrado na Figura 3, a seguinte escala de
sonoridade da sílaba para a fonotática dessa língua:
FIGURA 3 – Escala de sonoridade para a sílaba no alemão com aumento
de sonoridade da esquerda à direita
Sonoridade crescente
Plosivas
Fricativas Nasais
/l/
/r/
Vogais altas
Vogais
Fonte: Ramers, 1998, p. 94: Ilustração 4-34, tradução nossa.
Uma escala desse tipo tem traços universais, entretanto está
relacionada à sua forma detalhada e especíica a uma língua em
particular (note-se, por exemplo, que, na escala da Figura 3, as vogais
altas estão separadas das demais vogais; isso é importante para o
que defendemos aqui). A correlação entre a escala de sonoridade e a
fonotática é apresentada por Selkirk (1984a, p. 116 apud RAMERS,
p. 94) por meio da ‘generalização da sequência de sonoridade’
(Sonority Sequencing Generalization): “Em qualquer sílaba, há um
segmento constituindo um pico de sonoridade que é precedido e/ou
seguido por uma sequência de segmentos com valores de sonoridade
progressivamente decrescentes”.8
“In any syllable, there is a segment constituting a sonority peak that is preceded and/
or followed by a sequence of segments with progressively decreasing sonority values.”
(SELKIRK, 1984a, p. 116)
8
294
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3 Os glides
A questão do u consoante e do u vogal, do i consoante
e do i vogal é absolutamente dependente da questão da
sílaba. Quem professa uma opinião determinada sobre u
consoante e u vogal, sem ter visão perfeitamente clara e
precisa sobre a sílaba, fala ao acaso. (SAUSSURE, 2002
[1916], p. 209)
Observamos, com base no que airma Ferdinand de Saussure,
no que se refere ao i-j, u-w e à teoria natural da sílaba, que os glides já
eram tema de discussão para a análise linguística que foi trilhada pelo
autor, a saber: a denominação empregada por ele classiica-os como “i
consoante/i vogal” e “u consoante/u vogal”. Para nós, o “i consoante
e u consoante” dizem respeito, a priori, aos glides ou semivogais, ou,
também, denominados pelo autor (2006, p. 71-72) de fonema de abertura
4, ao ponto que “i vogal e u vogal” dizem respeito às vogais, naturalmente,
ou soantes, como Saussure mesmo as denomina.
Antes de apresentar o glide no sistema silábico do alemão, com
base na fonologia métrica, que também será apresentada, é necessário
deinir as compreensões que se tem desse tipo de segmento.
Uma deinição para glide9 pode ser observada em Cristófaro Silva
(2011), segundo a qual se compreende o termo como
segmento que apresenta características articulatórias de
uma vogal, mas que não pode ocupar a posição de núcleo
de uma sílaba. Diz-se que o glide é uma vogal assilábica,
ou seja, uma vogal que não pode ser o núcleo de uma
sílaba. Portanto, um glide não pode receber acento. É
indicado com o símbolo de uma vogal acrescido do
Por meio dessa deinição, alguns exemplos de vocábulos do português brasileiro
(doravante, PB) são apresentados, a seguir, pela autora: em ditongos centralizados:
o glide pode ser um schwa como, na palavra bola, pronunciada como b[@^]la. Glides
sempre ocorrem precedendo – nac[^]nal – ou seguindo – c[aU^]sa - uma vogal. Quando
são seguidos de uma vogal, formam um ditongo crescente: nac[^]nal. Quando são
precedidos de uma vogal, formam um ditongo decrescente: c[aU^]sa. Geralmente,
os glides se manifestam com características articulatórias de vogais altas anteriores
ou posteriores. Outras denominações para glide são semivogal e semiconsoante
(CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 127).
9
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295
diacrítico [ ^]. Tipicamente, os glides ocorrem nas línguas
naturais como vogais altas assilábicas. (CRISTÓFARO
SILVA, 2011, p. 127)
Do ponto de vista acústico-articulatório acerca dos glides, podese airmar que
um tipo de som que apresenta propriedades de ambas
consoantes e vogais é denominado glide. Os glides podem
ser pensados como vogais ligeiramente articuladas,
devido à impressão auditiva que eles produzem. Os
glides são pronunciados com uma articulação de uma
vogal. Entretanto, eles se movimentam rapidamente para
outra posição articulatória, como acontece nos glides
iniciais em yet ou wet, ou que rapidamente acabam
no fim de vocábulos como em boy e now, no inglês.10
(DOBROVOLSKI; KATAMBA, 1990, p. 23)
Na compreensão de Clements e Hume (1995), os glides [j] e
[w e as vogais altas [i e [u não são distinguíveis por traços, sendo
suas diferenças apenas contextualmente deinidas: diferem entre si pelo
fato de as vogais altas poderem ser núcleos de sílaba, ao passo que os
glides apenas podem ocupar as margens da sílaba. Dessa forma, esses
elementos compartilham igualmente dos valores de traços de raiz no
sistema proposto pelos autores: [+soante], [+aproximante] e [+vocoide].
Há propostas alternativas na Geometria dos Traços. Como veremos mais
adiante, seguimos, por exemplo, Padget (2008), que defende que haja
distinção entre [i, u] e [j, w] no que se refere ao traço [vocálico]: os dois
primeiros são valorados positivamente quanto a esse traço, ao passo que
[j, w], negativamente.
Mesmo tendo articulação de vogais, os glides não se comportam,
na estrutura silábica, prototipicamente como estas. Eles apresentam
propriedades de consoantes e de vogais, por isso os termos semiconsoante
“A type of sound that shows properties of both consonants and vowels is called a
glide. Glides may be thought of as rapidly articulated vowels – that is the auditory
impression they produce. Glides are produced with an articulation like that of a vowel.
However, they move quickly to another articulation, as do the initial glides in yet or wet,
or quickly terminate, as do the word-inal glides in boy and now.” (DOBROVOLSKI;
KATAMBA, 1990, p. 23)
10
296
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e semivogal podem ser empregados intercambiavelmente com o termo
glide. A sequência de vogal e glide costuma resultar no que chamamos
tradicionalmente de ditongos. De acordo com Seara, Nunes e LazzarottoVolcão (2011), observa-se, sobretudo, que
os ditongos constituem-se de dois segmentos vocálicos.
Há, no entanto, duas possibilidades de sequência em
uma mesma sílaba: vogal semivogal ou semivogal vogal.
As sequências finalizadas por semivogal são sempre
inseparáveis e são chamadas de ditongos decrescentes,
pois terminam pela vogal com menor proeminência
acentual [ou seja, a semivogal]. Na sequência, semivogal
e vogal, chamada de ditongo crescente, já que é inalizada
pelo segmento de maior proeminência (a vogal), há a
possibilidade de esses dois segmentos constituírem sílabas
separadas. (SEARA; NUNES; LAZZAROTO-VOLCÃO,
2011, p. 42)
Essa deinição de ditongos está ancorada na estrutura silábica
do português brasileiro e trata o glide como um elemento vocálico. O
ditongo pode ser, grosso modo, analisado como um deslizamento de um
alvo articulatório para o outro, tratando-se de vogal e semivogal e/ou
semivogal e vogal. É dessa maneira que Clark e Yallop (1995), abordam
os ditongos, que, segundo os autores,
são definidos como movimentos articulatórios,
particularmente da língua, que ocupam uma porção
substancial de um ditongo, e que podem ser definidos
em termos de dois alvos vocálicos que determinam a
extensão e a direção do glide entre eles. Os ditongos
podem ser mapeados no diagrama das vogais cardinais, e
são transcritos por um diagrama composto de um símbolo
com duas vogais que melhor representam os dois alvos.11
(CLARK; YALLOP, 1995, p. 35)
“[...] Articulatory movement, particularly of the tongue, occupies a substantial portion
of a diphthong, which can be deined in terms of two vocalic targets that determine
the range and direction of the glide between them. Diphthongs may be mapped on a
cardinal vowel diagram, and are transcribed by a digraph consisting of the two vowel
symbols which best represent the two targets.” (CLARK; YALLOP, 1995, p. 35)
11
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297
A representação dos glides proposta pelos autores é mostrada
na Figura 4 a seguir.
FIGURA 4 – Exemplos de vogais onglide e offglide
Fonte: Clark; Yallop, 1995, p. 35.
Em uma abordagem acústica, observamos, no trabalho de D.Kent
e Read (2015), a seguinte consideração sobre ditongos:
Os ditongos são uma outra classe de sons relacionados a
vogais. Os ditongos são como vogais pelo fato de serem
produzidos com um trato vocal relativamente aberto e
uma estrutura formântica bem definida e de servirem
como núcleo de uma sílaba. Os ditongos são diferentes
das vogais, pois eles não podem ser caracterizados por
um formato único de trato vocal ou um padrão formântico
único. Os ditongos são sons dinâmicos, em que o formato
articulatório (e, portanto, o padrão formântico) muda
vagarosamente durante a produção do som. (D.KENT;
READ, 2015, p. 226)
Na Figura 5, a seguir, são exibidos os valores formânticos para
os ditongos /a/, // e /aU/. De acordo com D.Kent e Read (2015, p.
227), “Cada ditongo pode ser representado nos eixos F1-F2 por uma
trajetória que começa com as frequências dos formantes do onglide e
termina com as frequências dos formantes do offglide” (as pontas das
lechas indicam a direção da mudança de frequência). O gráico abaixo,
diferentemente do que é rotineiro à visualização acústica, apresenta F1
no eixo horizontal e F2 no eixo vertical:
298
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FIGURA 5 (igura 4.16, original) – Trajetórias F1-F2
para os três ditongos /a/, //, /aU/
2000
1600
a
F2
1200
aU
800
300
500
700
F1
Fonte: D. Kent e Read, 2015, p. 227.
Uma vez deinido o glide, parte-se, portanto, para a sua inserção
na estrutura silábica do alemão, proposta pelo modelo da fonologia não
linear.
3.1 Representação do glide [j] no alemão padrão baseada no modelo de
Selkirk (1982) e Harris (1983)
Como apresentamos na Introdução, a sílaba pode ser representada
por dois modelos fonológicos: o autossegmental e/ou o métrico. O
segundo tem a vantagem de dar conta da divisão silábica da estrutura
interna perante o tipo de segmento em questão (os glides, ou semivogais,
ou semiconsoantes), como mostraremos a seguir.12A representação do
glide na divisão interna da estrutura da sílaba faz-nos assumir a posição
de que os elementos têm certo tipo de relação entre si. Segundo Cristófaro
Silva (2011, p. 117), o modelo métrico é “toda proposta teórica que
assume que a organização fonológica se dá em camadas hierarquicamente
Referimo-nos à representação em “x” em vez de CV, pois os glides podem apresentar
comportamento tanto de vogal quanto de consoante (articulatoriamente são vogais,
fonologicamente são consoantes). (MATEUS ; D’ANDRADE, 2000, p. 54).
12
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299
ordenadas e que a sílaba é uma importante unidade na representação
fonológica”.
A estrutura da sílaba do alemão pode ser exempliicada, na Figura
6, pela divisão silábica do vocábulo krank ‘doente’, em alemão, proposta
por Ramers (1998):
FIGURA 6 – Estrutura do vocábulo monossilábico krank,
de acordo com o modelo de constituintes
Fonte: Ramers, 1998, p. 98-99; Imagem 4-41.
Nessa representação esqueletal do alemão, veriicamos a divisão
interna da sílaba em Ansatz/Onset e Reim/Rima, que, por sua vez, dividese em núcleo (Kern/Nukleus) e coda (Koda). O ataque (ou onset) da sílaba,
que possui dois constituintes /k/ e /r/, é, portanto, ramiicado, bem como
a coda em /N/ e /k/, permanecendo o núcleo com a vogal baixa /a/.
Delattre (1964, p. 94), por sua vez, ao comparar as vogais do
inglês, alemão, francês e espanhol, em sua obra, chama a atenção para
um fator fundamental: o primeiro concerne à diferença entre ditongo x
ditongação (por exemplo, quando o inglês ditonga seus monossílabos),
ou seja, segundo o autor, o alemão (e o espanhol) têm ditongos, mas não
300
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ditongam perceptualmente seus vocábulos monossílabos (como o inglês
americano o faz), com exceção da variante bávara do vocábulo gut [U
at],
cuja realização é de ditongo. (BRENNER; HUSKZA; MARINKÁS,
2006, p. 69)
Ainda com relação à estrutura dos ditongos, Brenner, Huszka
e Marinkás (2006) frisam que o ponto de partida dos movimentos
articulatórios não deve coincidir automaticamente com o ponto de partida
do primeiro elemento do ditongo, bem como a extremidade (também)
não deve coincidir com a extremidade do segundo elemento do ditongo.
Segue avante a explanação dos mesmos autores:
De acordo com o movimento da língua na cavidade oral
distinguem-se, em geral, dois tipos de ditongos: 1. Fechado
(ou crescente) e 2. Aberto (ou decrescente). Na variedade
da língua alemã padrão, só existem ditongos crescentes
(ou fechados). (BRENNER; HUSZKA; MARINKÁS,
2006, p. 69)
Cabem, ainda, alguns esclarecimentos a respeito da classiicação
em “ditongo crescente/decrescente” (steigend/fallend, em alemão),
dependente da posição do glide na sílaba do alemão. Basendo-nos em
critérios fonológicos, essa divisão na classiicação dos ditongos referese a um parâmetro acústico-auditivo pelo qual se percebe o glide, isto
é, se o glide ocupar a posição pós-vocálica no núcleo silábico, ele será
considerado assilábico (unsilbisch, em alemão). Por essa razão são
considerados ditongos decrescentes.
A seguir, são arrolados os três ditongos existentes no alemão,
segundo os autores Brenner, Huszka e Marinkás (2006, p. 70-71),
mantidas as representações originais:
[aU]:
representado pelo grafema <au>, como no vocábulo auf
‘preposição’, esse ditongo ocorre no início, meio e im da
palavra e, na maioria das vezes, em posição tônica. O ditongo
[aU] compõe-se de diversos elementos do [a] e do [U], isto
é, de movimentos de deslizes (glides) associados juntamente
à articulação. O primeiro componente do ditongo não é
arredondado, já o seu segundo componente é arredondado.
[aI]:
representado pelos grafemas <ei>, <ai>, <ey> e <ay>,
como nos vocábulos eins ‘um, uma’, Mai ‘maio’, Meyer
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301
‘sobrenome’ e Bayer ‘bávaro’, que sempre ocorrem nas
posições iniciais, médias e inais, em sílaba tônica. O ditongo
[a] compõe-se de diversos elementos do [a] e do [], isto
é, da passagem luída junto à articulação.
[OI]:
representado pelos grafemas <eu>, <äu>, <oi> e <oy>,
como nos vocábulos Äußerung ‘expressão’ e Eule ‘coruja’,
que sempre ocorrem nas posições iniciais, médias e inais.
O ditongo [O] compõe-se de diversos elementos do [O]
e do [], isto é, da passagem luída junto à articulação. O
primeiro componente do ditongo é arredondado, já o segundo
componente, não.
Esses ditongos são apresentados, a seguir, por Delattre (1964),
na Figura 7, e por Ramers (1998), na Figura 8, respectivamente:
FIGURA 7 – Os principais ditongos do alemão em relação
à sua coniguração acústica
Fonte: Delatre, 1964, p. 81; German.
302
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FIGURA 8 – Os ditongos no alemão padrão
Fonte: Ramers, 1998, p. 36; Abbildung 7.
Nessas duas imagens, podemos visualizar que, nos ditongos [a] e
[], há movimento em direção à posição com alvo acústico-articulatório
da vogal alta anterior não-arredondada (distendida) []. Já no ditongo
[aU] há movimento para a posição posterior do trapézio vocálico,
alcançando o alvo acústico-articulatório da vogal alta posterior [U].
Em vocábulos como “Spanien [Espanha], Linie [linha], Studium
[curso superior] e Grobian [grosseiro]” (RAMERS, 1998, p. 37), é
recorrente a realização com glide [j] + vogal silábica, dependendo
principalmente da velocidade de fala. Junto a essa realização, também
observamos a realização da variante silábica [] + vogal silábica – a
distribuição das vogais em duas sílabas separadas, formando, portanto,
um hiato, que costuma ser evitada em muitas línguas. Analogamente,
os exemplos apresentados pelo autor, “manuell [manual], Linguistik
[Linguística], Ritual [ritual], Kloake [cloaca]”, com a realização ‘glide [w]
+ vogal silábica’ co-ocorre com a variante ‘vogal silábica + vogal silábica’.
Essa variação parece sugerir que subjacentemente se trata de vogais altas,
que podem oscilar com realizações de glides, sobretudo em fala rápida.
Podemos concluir, brevemente, que os glides no AP parecem
ocorrer categoricamente como tal apenas em posição de ditongo
decrescente, isto é, são recorrentes nessa posição. O fato de não poder
haver alongamento vocálico em um contexto como esse parece indicar
que esse elemento faz parte do núcleo silábico. Voltaremos a essa questão
mais adiante. Vejamos, na próxima subseção, como podemos analisá-los
na estrutura silábica do alemão.
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4 Análise do glide [j] na estrutura silábica do alemão padrão
Na Seção 1, apresentamos a representação da sílaba nas línguas
naturais. Nela, a posição central da Rima (R) é o núcleo (N), que é
governado pela primeira. Para podermos tratar dos glides na estrutura
silábica do alemão, devemos, primeiramente, compreender como o núcleo
da sílaba funciona nessa língua.
Assim, devemos nos atentar para o fato de que existem algumas
restrições na posição de núcleo (Nukleus: Kern) em alemão: somente
elementos com o traço [+soante] são permitidos nele, ou seja, vogais,
glides e demais soantes (nasais e líquidas), enquanto as obstruintes e
laringais podem permanecer somente na posição de onset ou de coda.
Essa constatação valida, sobretudo, a divisão entre núcleo e coda. Para
sequências no núcleo, valem as seguintes restrições de competição: após
vogais na primeira posição do núcleo, somente os glides [j] e [w] são
permitidos (como podemos observar nos ditongos [aj], [aw] e []), além
do r-vocalizado, transcrito foneticamente como [6^]. Em contrapartida,
após vogais no núcleo, qualquer consoante pode ocorrer na posição de
coda (RAMERS, 1998, p. 102).
A análise de Ramers (1998), entretanto, ao menos no tocante ao
r-vocalizado, não nos parece apropriada, pois esse elemento pode aparecer
depois de vogais longas, diferentemente dos glides (ver a discussão em
Mücke (1997), a seguir). Se adotarmos a concepção de que o núcleo do
alemão tolera até duas moras, o que a inexistência de glides seguindo
vogais longas parece indicar, ao r-vocalizado apenas sobra a coda.
A seguir, ao se tratar da quantidade de posições esqueletais
no núcleo da sílaba do alemão, como já apresentamos, somente dois
elementos são permitidos, segundo Ramers (1998). As exceções, nesse
caso, dizem respeito possivelmente às sequências [jaj] e [jaw], em
vocábulos como jein (cruzamento vocabular de ‘ja’ e ‘nein’) e jaulen
‘ganir’, quando o primeiro segmento [j] tem valor de glide (no núcleo)
e não como fricativa [] (no ataque silábico).
Novamente, discordamos da posição de Ramers (1998), pois,
na nossa visão, o glide à esquerda da vogal ocupa o lugar de onset. Para
defender essa posição, temos pelos menos dois argumentos fonológicos:
1) o cruzamento de ja e nein resulta em jein, o que indica que o j ocupa
a mesma posição do n em nein, ou seja, o onset; 2) se o onset não
fosse ocupado em palavras como jaulen e jein, haveria a propensão
304
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para a oclusão glotal, fenômeno bastante recorrente em sílabas alemãs
desprovidas de onset (acht ‘oito’, por exemplo), sobretudo as iniciais,
mas que não ocorrem nesses contextos: *?jaulen, *?ja. Isso sugere que
em jaulen e ja o onset já esteja ocupado.
A Fonologia CV (CV Phonology), desenvolvida por Clements e
Keyser (1983), apresenta um tratamento que se distancia da visão de Kahn
(1976), no sentido de que aqueles propõem uma camada intermediária
que governaria os segmentos ailiados à sílaba. Nesse modelo, segundo
Clements e Keyser (1983, p. 8), introduz-se “uma terceira camada na
representação da sílaba que intermedeia a camada da sílaba e a camada
segmental”13 (tradução nossa), que os autores chamam de camada CV.
Os elementos nessa camada diferenciam picos (núcleos) silábicos de
elementos das margens: segmentos dominados por V são interpretados
como núcleos silábicos; aqueles dominados por C, como não nucleares
(onsets e codas). Uma das consequências dessa análise é a possibilidade
de descartar o traço [±silábico], que, na análise linear de SPE,14 era o
responsável pela silabicidade (ou assilabicidade) dos segmentos, ou seja,
pelo status desses de serem núcleo ([+silábico]) ou margens ([-silábico])
da sílaba.
Considerando isso, tendo como base a análise proposta por
Mücke (1997), a posição dos glides na estrutura interna da sílaba do
alemão padrão sugere discussão. Ainda segundo Mücke (1997, p. 80),
admitindo-se a posição dos subconstituintes do núcleo silábico, resultam,
dessa maneira, dois problemas a respeito dos glides no alemão:
–
Primeiro problema: o núcleo tem, no máximo, duas posições: o
alemão não tem tritongos. Assim, os glides não ocorrem antes de
vogais no núcleo ou após ditongos ou vogais longas. Se há ou não
glides precedentes de vogais, isto ainda não se sabe; a duração
subjacente de algumas vogais deve ser, portanto, neutralizada
antes da posição do glide-/r/ para que não se exceda a restrição da
quantidade do núcleo. (MÜCKE, 1997)
“[we introduce] a third tier in syllable representation which mediates between the
syllable tier and and the segmental tier [and which we call the CV-tier].”
14
Sigla para The Sound Pattern of English, Chomsky e Halle (1968).
13
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–
305
Segundo problema: o valor diverso dos glides pré- e pós-vocálicos
na estrutura da sílaba. Posto que o glide pós-vocálico está associado
ao subconstituinte obrigatório – o núcleo – então ele não pode
ocupar mais a posição da borda da extremidade (a posição da coda
silábica) e contará para o núcleo da sílaba. No entanto, não é claro,
ainda, o motivo pelo qual um glide pré-vocálico deve pertencer ao
onset da sílaba e, em contrapartida, o glide pós-vocálico à posição
de núcleo. Isso representa um peso desigual dos segmentos de
mesma sonoridade. O vocábulo <jein>, apresentado abaixo, na
Figura 9, serve de exemplo.
FIGURA 9 – <jein>
Fonte: Mücke, 1997, p. 81; Ilustração 58(a)).
Na representação desse cruzamento vocabular de ja ‘sim’ + nein
‘não’, formando, portanto, o vocábulo “jein”, podemos visualizar o glide
/j/ em posição de onset (ataque silábico), precedendo a vogal /a/, em
posição de núcleo da sílaba, juntamente com a vogal alta assilábica //.
Consequentemente, devido ao fato de a sílaba, na estrutura fonológica
do AP, permitir somente dois elementos na posição de núcleo, torna
fonologicamente inaceitável introduzir o glide /j/ na posição pré-vocálica
de núcleo silábico. Haveria, com isso, uma posição de núcleo vocálico
composta, exclusivamente, de três elementos (CVC).
Essa assimetria, exposta por Mücke como o primeiro problema
para a posição dos glides, não nos parece algo de difícil solução.
Considerando que o AP seja uma língua que requer onset em sua
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estrutura silábica, qualquer glide à esquerda estará mais propenso ao
onset. Comportamento distinto terá o glide à direita, pelo que teremos
uma segunda mora associada ao núcleo silábico, algo suportado pela
estrutura silábica do AP.
Na Figura 10, abaixo, podemos veriicar o vocábulo ‘Fjord’, na
estrutura hierárquica da sílaba do alemão. Nela, observamos que o glide
/j/ aparece na posição de ataque silábico após a fricativa labiodental surda
/f/. Já na posição de núcleo silábico, há a vogal posterior //, seguida da
vogal central baixa /6/ (r-vocalizado), em posição pós-vocálica de núcleo
silábico. Por im, ocorre a realização da consoante plosiva /t/em posição
da coda simples, como se pode observar:
FIGURA 10 – <Fjord>
Fonte: Mücke, 1997, p. 81; Ilustração 58(b)).
Segundo Mücke (1997), a vogal central baixa /6/ está na segunda
posição (C) de um núcleo complexo, como podemos visualizar acima.
A análise alternativa seria inseri-lo na posição de coda complexa,
precedendo, assim, a consoante plosiva /t/. Argumentos para uma ou outra
análise estão fora do escopo deste trabalho. Teríamos, por conseguinte,
outra representação silábica hierárquica para o mesmo vocábulo, que
também não feriria a escala de sonoridade. Já em relação à “abertura
da sílaba”, por assim dizer, baseando-se em Neef (1996, p. 66 apud
MÜCKE, 1997, p. 86), somente o elemento mais sonoro pode iniciar a
posição de núcleo da sílaba em alemão (consequentemente, isso faz os
glides pré-vocálicos serem “movidos” para a posição de ataque silábico).
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Essa característica é, para nós, resultado da obrigatoriedade de onset no
AP. Wiese (1996, p. 236 apud Ib., p. 81), por sua vez, airma e reforça,
também, o seguinte: “[...] todos os on-glides são consoantes, assim como
obstruintes e algumas soantes, ao passo que os off-glides são vogais.”15
Além desse exemplo, exibido na Figura 10, retirado de Mücke
(1997), traremos à discussão vocábulos como Spanien ‘Espanha’, Italien
‘Itália’, Brasilien ‘Brasil’, Linie ‘linha’. Esses vocábulos apresentam certa
peculiaridade, pois têm a vogal alta //, antecedendo uma vogal não alta.
As divisões silábicas propostas pelo Dicionário Duden (2015)16 online,
para ‘Spanien’ e ‘Italien’, por exemplo, são ‘Spa.ni.en’17 e ‘Ita.li.en’,18
embora a mesma fonte forneça as seguintes transcrições: [an^@n] e
[ital^@n], respectivamente.
Apesar de a separação vocabular apresentada pelo Duden sugerir
a existência de três sílabas nessa palavra ([an@n]), de acordo com
a transcrição fonética apresentada pelo mesmo dicionário, existem
apenas duas sílabas em ‘Spanien’: [a] e [n^@n], fato indicado pela
assilabicidade da vogal alta.19 Nessa transcrição, podemos observar que
a vogal alta é interpretada como vogal assilábica e, por estar precedendo
o Schwa [@], só pode estar na posição pré-vocálica de núcleo silábico (do
contrário, ela não poderia ser vogal assilábica). Parece-nos que temos
um paradoxo aqui: como uma vogal transcrita assilabicamente pode
constituir núcleo silábico?
Nossa proposta seria a possível transcrição fonética [anj@n]
com apenas duas sílabas, isto é: [a] e [nj@n], na qual o glide [j] ocorre
na posição de segundo elemento de um onset complexo. Essas transcrições
podem parecer não muito diferentes entre si em suas realizações fonéticas,
mas sugerem relações distintas entre os constituintes silábicos. Em outras
palavras, não seriam meramente variantes notacionais, mas indicariam
como o AP se estrutura silabicamente.
Wiese (1996, p. 236 apud MÜCKE, 1997, p. 81): “In other words, all on-glides are
consonants, some obstruents and some sonorants, while all off-glides are vowels.”
16
http://www.duden.de
17
http://www.duden.de/rechtschreibung/Spanien
18
http://www.duden.de/rechtschreibung/Italien
19
É provável que haja variação em termos de assilabicidade da vogal alta e,
consequentemente, no número de sílabas, mas não trataremos dessa variação aqui.
15
308
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O mesmo podemos dizer dos vocábulos Brasilien, Linie etc.,
estando o glide na fronteira da segunda para a terceira sílaba. E, por
im, como Mücke (1997, p. 74) reforça: “Os glides não são, somente
foneticamente, vogais breves e assilábicas. Eles podem, também
fonologicamente, ser derivados, com base no modelo derivacional, das
suas respectivas vogais altas, como exempliicado, a seguir, em Wiese
(1996) e Hall (1992)”:20
(1)
[j] respectivamente [I^] como variante do //
/a/ > [a^] respectivamente /a/ > [aj]
Veriicamos, por conseguinte, pela representação acima, que a
mesma vogal assilábica [^] parece ser intercambiável com o glide [j].
Isso nos permite airmar que, na estrutura fonológica subjacente, não
haveria o glide, mas a vogal alta [] breve.
Essa solução é muito mais corriqueira, se pensarmos na
situação do glide fonético à direita da vogal. Entretanto, mais algumas
considerações devem ser feitas acerca da vogal alta/glide à esquerda,
para sondarmos a possibilidade de eliminarmos o glide da subjacência.
É isso que veremos na próxima Seção.
5 O glide na sílaba do alemão: uma análise pela TO
De maneira geral, diz-se que o glide faz parte do sistema
fonológico do alemão (RAMERS, 2007). A pergunta que se coloca é se
haveria necessidade de postular subjacentemente esse elemento como
um glide/ aproximante ou se é uma vogal com saída fonética de glide.
Investigamos, nesta Seção, se é possível dar conta, em uma
análise otimalista, da diferença em alemão entre um input vocálico e
um output glide e sua posição na sílaba, ou seja, como resultado de um
ranqueamento de restrições. Diferentemente de modelos predecessores, a
Em alemão: “Nicht nur phonetisch sind ‘Glides’ kurze, nichtsilbische Vokale.
Sie können auch phonologisch im Rahmen von derivationellen Theorien von den
entsprechenden hohen Vokalen abgeleitet werden, wie beispielweise bei WIESE (1996)
und HALL (1992).” (MÜCKE, 1997, p. 74):
(44) [j] bzw. [^] als Variante von //
/a/ > [a^] bzw. /a/ > [aj]
20
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
309
TO prevê um modelo de gramática, na qual operam restrições universais,
cuja importância – expressa pela hierarquia – é particular de línguas
individuais. A TO não faz asserções especíicas sobre os formatos da
sílaba, por exemplo, utilizando-se, nesse particular, dos achados e
discussões encontradas em outras teorias. Em relação a essas teorias,
costuma diferir basicamente pelo fato de que regras e princípios, como
tais, são abandonados em razão de restrições.
Retomando algumas discussões realizadas anteriormente,
podemos investigar primeiramente se é possível considerar que o glide
pré-nuclear seja subjacentemente uma vogal. Assim:
(2) /ia/ [ja]21
Antes de prosseguirmos com essa discussão, vale ressaltar que,
conforme já dissemos, consideramos que o glide pré-nuclear, como
em ja ‘sim’, está na posição de onset, não se tratando de um elemento
nuclear. Para essa assunção, arrolamos dois argumentos. O primeiro é
que, no AP, em sílabas como a única de acht ‘oito’, desprovidas de onset,
ocorre a epêntese glotal [?axt]; o mesmo não ocorre com palavras como
jacht ‘iate’, que é realizada como [jaxt], não *[?^axt]). Sendo assim,
podemos dizer que há, no AP, uma restrição alta que proíbe realizações
sem onset. Outro argumento vem do cruzamento vocabular de ja ‘sim’ +
nein ‘não’ = jein. O resultado desse cruzamento é a realocação de [j] no
lugar de [n], este último indiscutivelmente onset. Se o [j] izesse parte do
núcleo, o cruzamento deveria ser *njein [nja^n] (ou *[n^a^n]), o que não
ocorre. Acrescentamos também que nossas representações nos tableaux
utilizados nessa Seção demonstram a silabação (.), mas a constituição
da sílaba indica se o glide está no onset ou no núcleo (formando ditongo
crescente), assim:
Em nossa representação, o glide [j] é um elemento de função consonantal, igurando
na borda da sílaba, ao passo que o símbolo [] representa uma vogal alta pré- ou pósnuclear, em um núcleo dominado por uma vogal de maior sonoridade. Vale lembrar
que o mapeamento de uma vogal alta anterior e um desses elementos não coniguram
violação de idelidade, uma vez que suas conigurações apenas se referem à sua posição
na sílaba, não à qualidade do segmento em si.
21
310
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(3) Representações silábicas de Jacht:
a)
b)
R
R
O
O
N
^
C
a
x
N
t
j
a
C
x
t
A seguir, fazemos uma análise otimalista sobre a formação
do glide e sua posição na estrutura do AP, a partir de uma vogal alta
subjacentemente, testando a viabilidade dessa hipótese, em uma
abordagem baseada em restrições. Como em ja o glide está na posição
de onset, podemos pensar nas seguintes restrições que atuariam nessa
conformação silábica:
(4)
onset: assinale violação a cada sílaba desprovida de onset
(PRINCE; SMOLENSKY, 1993).
(5)
sonfall: dada uma sequência tautossilábica, bimoraica de
segmentos, atribua uma marca de violação caso a sonoridade
do segmento mais à direita seja maior do que a do segmento
mais à esquerda. (cf. ROSENTHALL, 1994; CARVALHO,
2014).
(6)
complexonset: assinale uma violação a onsets com mais de
um segmento (KAGER, 1999).
(7)
dep-IO: todo segmento no output tem um correspondente no
input; proibida a epêntese (McCARTHY; PRINCE, 1995).
(8)
ident [voc]: assinale marca de violação caso haja discrepância
referente ao valor do traço [vocálico] (seguindo McCarthy
(2008)).
311
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Nesse caso, seguindo Padget (2008), estamos considerando que
há distinção entre [i, u] e [j, w] no que se refere ao traço [vocálico],22
sendo os dois primeiros valorados positivamente quanto a esse traço, e
os últimos, negativamente. Isso signiica que a restrição ident [voc] é
dominada no AP, conforme veremos adiante.
A seguir, vemos um tableau combinados23 para o input /iaxt/
‘iate’, que apresenta status de vogal (ou seja, [+vocoide]) para o segmento
em análise aqui; na sequência, vemos um tableau combinado para /
ird/ ‘iorde’.
(9) Tableau combinado para /iaxt/ Jacht ‘iate’
/iaxt/
jaxt
onset
a i.axt
**W
b.^axt
*W
sonfall
*componset
*W
*W
c.?^axt
dep-io
ident(voc)
*
L
*
*W
*
(10) Tableau combinado para /ird/ Fjord ‘iorde’24
ird
fjrt24
a. fi.rt
b. f^rt
c fi?rt
onset
sonfall
dep-io
*W
*W
*W
*componset
*
L
L
L
ident[voc]
*
*L
*
Como lembra Padgett (2008), essa restrição conlita com a restrição *P/j, que
proíbe que glides sejam núcleos de sílaba, havendo mesmo a necessidade de postular
a dominância *P/j>>Ident (voc) como universal.
23
O tableau combinado (McCARTHY, 2008) é uma junção do tableau avaliativo
tradicional e o comparativo (PRINCE, 2002); este nos indica argumentos para
o ranqueamento de restrições. O W no tableau indica que a restrição favorece,
comparativamente ao candidato na mesma linha, o candidato selecionado (ou Winner,
‘ganhador’); o L indica que aquela restrição favorece o perdedor (ou Loser). De modo
geral, um W à esquerda de L indica a dominância entre as restrições nas respectivas
colunas.
24
Não é parte da discussão nesse texto, mas o desvozeamento inal de obstruentes em
línguas como o alemão (e holandês, russo, polonês, entre outras) pode ser analisado,
em uma abordagem otimalista, como decorrente da relação de dominância *VoicedCoda>> Ident-IO (voz). Ver Kager (1999, p.40-41).
22
312
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
A restrição Dep-IO milita contra a epêntese. Sabemos que a
epêntese (da oclusiva glotal) pode ocorrer no AP para providenciar
onset em sílabas desprovidas desse elemento, fato demonstrado, por
exemplo, pelo mapeamento /axt/[axt] ‘oito’. Por conta disso, temos
como dada a relação de dominância onset >> Dep-IO (ALBER, 2001).
A restrição sonfall evita ditongos crescentes, o que está de acordo
com a inexistência de epêntese glotal em palavras como ja e Jacht. O
candidato a comete duas violações de onset. Note-se que essa formação
seria a preferida por falantes de Português Brasileiro, por exemplo (como
é o caso da adaptação de yatch (ing.), em boa parte dos dialetos do PB:
[i.a.t]). Um item como b em (9) violaria não apenas sonfall, como
também onset. Note-se também que o hiato é a forma preferida para a
adaptação do item fjord (norueguês) no PB: [fi.]rde. Pelo que podemos
ver aqui, é possível dar conta da posição do glide pré-nuclear na estrutura
silábica do alemão, considerando que ele seja subjacentemente uma vogal
alta /i/ em casos como em Jacht e Fjord, resultando na superfície glides
em onset. Como dito anteriormente, uma das principais evidências para
essa assunção é a inserção de epêntese glotal para sílabas desprovidas
de onset.
No tableau (9), podemos ver as relações de dominância onset,
sonfall >> ident(voc). Já no tableau (10), vemos que Dep-IO, onset
e sonfall devem dominar *componset. Não há motivos para hierarquizar
onset e sonfall, o que nos leva a crer que devam estar no mesmo
patamar hierárquico.
Para mostrar que a ortograia pode ser um complicador nesses
casos, vamos analisar itens grafados na ortograia oicial com a vogal
alta, como os já citados anteriormente Italien, Spanien e Brasilien.
(11) Tableau combinado para Spanien ‘Espanha’
/ani@n/
a[nj@n]
ons
a a[ni@n]
b. a[n^@n]
*W
c a[ni?@n]
sonfall
dep-io
*W
*W
*componset
*
L
ident(voc)
*
L
*
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313
Em (11), nota-se, a partir de Ws à esquerda de Ls, que as restrições
onset e sonfall devem dominar *componset. Em outras palavras, é
melhor incorrer em violação da complexidade em onset que ter um
ditongo crescente ou ter um hiato. De fato, o alemão é uma língua
bastante permissiva quanto à formação de clusters, quer em onset, mais
fortemente, quer em coda.
Sendo assim, é possível detectar convergência nos tipos abordados
e oferecer tratamento uniicado de uma vogal alta subjacente ser realizada
foneticamente como glide, avaliada como estando na posição de onset
– simples ou complexo. Para isso, é necessário admitir que a hierarquia
de restrições seria onset, sonfall >> dep-io >> *complexonset,
ident(voc). Em outras palavras, o mapeamento de /i/ [j] é tolerado
no AP para uma vogal alta que anteceda outra de maior sonoridade, uma
vez que essa língua requer onset (e tolerando-o complexo), como forma
de evitar a epêntese, e proíbe o ditongo crescente.
Ressalte-se que, como dito, consideramos que a ausência de
epêntese de glotal em itens como Jacht seja evidência de que a o glide
esteja em onset. Embora não seja tão evidente se em itens como Spanien
o glide seja parte de um onset complexo ou forme um elemento prévocálico dentro do núcleo, a nossa assunção de que seja a primeira
situação decorre do fato de que o alemão é uma língua muito permissiva
ao onset complexo. Essa assunção também dá um tratamento uniicado
à formação do glide e sua posição na sílaba do AP. Experimentos e o
comportamento em jogos linguísticos poderiam indicar se as previsões
dessa assunção estão corretas.
Com relação às vogais altas /i/ e /u/ pós-nucleares, a restrição
sonfall não as proíbe como participantes do núcleo, o que permite a
existência de ditongos decrescentes no AP. Por im, colocamos um tableau
avaliativo, mostrando a hierarquia.
(12) Tableau avaliativo para /iaxt/ Jacht ‘iate’
/iaxt/
a. jaxt
b. i.axt
c. ^axt
d. ?^axt
onset
*!*
*!
sonfall
dep-io
*!
*!
*
*componset
ident[voc]
*
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
(13) Tableau avaliativo para /fird/ Fjord ‘iorde’
fird
a. fjrt
b. firt
c. f^rt
d. fi?rt
onset
sonfall
dep-io
*componset
*
ident[voc]
*
*!
*!
*!
No tableau avaliativo (12), para Jacht, podemos ver que o candidato
a é o único que respeita as duas restrições mais altas da hierarquia, onset
e sonfall, apesar de violar a restrição que milita contra a discrepância
entre input e output, no que se refere ao traço [±vocálico]. Ainda nesse
tableau, sonfall parece não desempenhar papel relevante, uma vez que
o candidato d já estaria barrado por dep-io e c, por onset. Quanto ao
item Fjord, no tableau (13), não há fortes evidências para a opção entre
[fj]rd e [f^]rd (essa barrada exclusivamente por sonfall), que vão
além de uma abordagem uniicada entre itens como Jacht e Fjord e a
grande tolerância do AP à complexidade em onset. Em um diagrama de
Hasse, teríamos:
(14) Hierarquia (em diagramas de Hasse)
Diagrama de Hasse (I)
315
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
Diagrama de Hasse (II)
Nos diagramas de Hasse apresentados acima, vemos duas
possibilidades. No primeiro diagrama, vemos a hierarquia sem sonfall.
Essa hierarquia dá conta do fato de que o glide se realize no onset em
itens como Jacht ‘iate’ e ja ‘sim’. Em outras palavras, sonfall não
desempenha papel importante para esse caso. No caso de itens como
Fjord ‘iorde’, temos a possibilidade de interpretar o glide como:
(a) elemento pré-nuclear ou (b) integrante do onset complexo. Caso
sonfall seja admitida na hierarquia na posição que indicamos aqui, o
glide será avaliado como (b); caso contrário, seria possível ser avaliado
como (a). Defendemos que sonfall integra esse ponto da hierarquia,
sobretudo porque (1) essa análise assegura a alta tolerância do AP ao
onset complexo; além disso, (2) haveria uma abordagem uniicada para
itens como Jacht e Fjord.
6 Considerações inais
Defendemos, neste artigo, a retirada do status do glide anterior na
representação subjacente do alemão. No lugar desse segmento, haveria
apenas a vogal alta equivalente. A ocorrência de glides na superfície
deve ser atribuída à hierarquia, resolução de conlitos entre restrições
violáveis, como prevista em uma análise otimalista. A formação do glide
e a consequente posição dessa vogal alta na sílaba também é determinada
por essa hierarquia.
316
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
Em relação aos problemas citados por Mücke (1997),
reproduzidos anteriormente, podemos dizer que, em relação ao primeiro
problema, glides pré-vocálicos são pertencentes ao onset, não ao núcleo,
o que exclui a possibilidade de existência dos assim chamados tritongos
no AP. Glides pós-vocálicos fazem parte do núcleo, a menos que este
já tenha dois elementos, como podemos ver pelo fato de vogais longas
serem evitadas antes de glides.
Em relação ao segundo, a assimetria em relação à posição dos
glides pré- e pós-vocálicos – o primeiro fazendo parte do onset e o
segundo, do núcleo – decorre da alta posição na hierarquia da restrição
que requer onset no AP e à proibição de dois elementos no núcleo, sempre
que a sonoridade do primeiro elemento for menor que o seguinte. No
que se refere à marcação de constituintes silábicos, essa assimetria pode
ser decorrente da assimetria existente entre esses constituintes: o onset
(exigido em muitas línguas; proibido por nenhuma) e a coda (proibido
em muitas línguas).
Também defendemos aqui que o glide à esquerda da vogal ocupa
o lugar de onset. Para justiicar essa posição, trouxemos à baila duas
evidências fonológicas: 1) o cruzamento de ja ‘sim’ e nein ‘não’ resulta em
jein (cruzamento vocabular de ‘sim’ e ‘não’), o que indica que o j ocupa a
mesma posição do n em nein, ou seja, o onset (*njein); 2) se o onset não
fosse ocupado em palavras como Jacht, jaulen e jein, haveria a propensão
para a oclusão glotal, fenômeno bastante recorrente em sílabas alemãs
desprovidas de onset (como em acht ‘oito’ [?axt]), sobretudo as iniciais,
mas que não ocorrem nesses contextos: *? jaulen, *? ja. Isso sugere que
em jaulen e ja o onset já esteja ocupado. Esse fato pode ser atribuído à alta
posição, em AP, da restrição onset. A grande tolerância à complexidade
em onset no alemão nos leva a postular que a restrição componset seja
dominada por sonfall. O AP tolera epêntese para o preenchimento
do onset (onset >> dep-IO), mas não se houver a possibilidade de ser
providenciado onset a partir de segmento subjacente, mesmo que o onset
se torne complexo; por esse motivo dep-IO>>componset.
Considerando que a distinção entre [j] e [i] (e entre [w] e [u])
pode ser o traço [vocálico], seguindo Padgett (2008), em línguas como o
alemão apenas emergem segmentos com o traço [-vocálico] (glides), por
conta de a restrição ident(voc) ser dominada por onset e por sonfall.
Defendemos que sonfall atue no AP, sobretudo porque (1) há forte
tolerância do AP ao onset complexo e porque, com isso, (2) atinge-se
uma abordagem uniicada para itens como Jacht e Fjord.
317
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018
Agradecimentos
Agradecemos às sugestões enriquecedoras dos pareceristas anônimos.
Os erros residuais são de nossa responsabilidade.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
Paragrafação e argumentação em cartas de reclamação
escritas por alunos do ensino fundamental
Paragraphing and argumenting in letters of claim
written by elementary school students
Leila Nascimento da Silva
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, Pernambuco / Brasil
leilansufrpe@gmail.com
Telma Ferraz Leal
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco / Brasil
tleal@terra.com.br
Resumo: Neste artigo, busca-se veriicar como a paragrafação e a
argumentação se realizam em diferentes etapas do ensino fundamental.
Participaram da pesquisa cinco turmas do ensino fundamental (3º, 5º e 7º
anos), da Rede Pública de Pernambuco, que vivenciaram uma sequência
didática relacionada ao gênero “carta de reclamação”. Analisaram-se 37
textos produzidos ao inal das atividades. Os textos foram agrupados pela
relação entre a paragrafação e a argumentação. Os resultados sinalizaram
que os alunos são capazes de construir parágrafos e atribuir um sentido
lógico a essa divisão. Em relação à argumentação, muitos conseguiram
produzir justiicativas e alguns até chegaram a contra-argumentar. No
entanto, até mesmo aos alunos que já tenham um domínio maior nessa
esfera – de forma intuitiva ou não – a escola precisa garantir um tempo
pedagógico para ajudá-los a avançar em seus conhecimentos e a superar
suas diiculdades.
Palavras-chave: paragrafação; argumentação; cartas de reclamação.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.321-353
322
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
Abstract: In this article we to verify how the paragrafation and the
argumentation take place in different elementary school. Five classes of
elementary school (3, 5 and 7 years) of Pernambuco’s Public Network
attended this research and experienced a didactic sequence involving
gender “letter of complaint”. 37 texts produced at the end of the activities
were analyzed. We grouped the texts by the relationship between the
paragraphing and argumentation. The results signaled that the students
are able to construct paragraphs and assign a logical sense of this division.
Regarding the argument, many are able to produce justiications and
some of them even to argue. Even the students demonstrating to possess
such knowledge, either intuitively or unconsciously, the school needs
to ensure a teaching time to help them advance in their knowledge and
overcome their dificulties.
Keywords: paragraphing; argumentation; complain letter.
Recebido em 30 de novembro de 2016.
Aprovado em 19 de abril de 2017.
Há muito se tem discutido a importância de um trabalho mais
sistemático com textos em sala de aula. Essa sistematização passa a ser
considerada como ponto de partida para que os alunos sejam estimulados a
reletir sobre vários aspectos referentes a sua língua materna, importantes
na formação de bons leitores e produtores de textos. Assim sendo, todas
as dimensões textuais que fazem parte das ações de linguagem – entre
elas, a paragrafação – precisam ser objeto de estudo na escola.
De acordo com os estudos desenvolvidos por Bessonnat (1988),
o parágrafo em si não é considerado, por muitos estudiosos, como uma
unidade semântica pertinente do texto que teria seu lugar na hierarquia
canônica (palavra-frase-texto). Por isso, quando as gramáticas de texto
sentem a necessidade de tomar uma unidade maior que a frase, geralmente
acabam não usando a noção de parágrafo, mas determinam unidades mais
largas como sequências, macroestrutura ou episódio.
Por outro lado, quando o parágrafo é tomado para análise, airma
o supracitado autor, quase sempre é tratado isoladamente, gerando um
problema de articulação do texto. Mesmo assim, “o parágrafo parece ser
um dado textual aceito por todos e raramente questionado em si mesmo.”
(BESSONNAT, 1988, p. 81).
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Por considerarmos a habilidade de paragrafar relevante, buscamos
veriicar como a paragrafação e a argumentação se realizam em diferentes
etapas do ensino fundamental. Na primeira parte do texto, discutiremos
a paragrafação. Logo em seguida, o foco será a argumentação, mais
especiicamente o gênero argumentativo “carta de reclamação”. Por im,
apresentaremos informações metodológicas da pesquisa realizada e os
principais resultados da análise realizada.
1 Estudos sobre paragrafação
Para melhor discutirmos o tema do nosso artigo, buscamos
nos apoiar em estudos teóricos e práticos que pudessem contribuir, de
alguma forma, para compreendermos como a paragrafação se caracteriza,
qual a relação entre a habilidade de paragrafar e o desenvolvimento da
competência leitora e a formação de escritores experientes e como a
paragrafação é apropriada pelas crianças. Essas relexões iniciais nos
permitem também tecer algumas breves considerações sobre o ensino
da paragrafação.
Assim, no primeiro movimento de escrita desta seção discutiremos
as possíveis relações entre leitura, escrita e paragrafação. Em seguida,
apresentaremos dados de pesquisas que nos ajudam a melhor compreender
a apropriação da paragrafação pelas crianças e a pensar sobre seu ensino.
1.1 Estudos sobre paragrafação na leitura e na escrita
Ao ler um texto, o leitor tem o desaio de tentar desvendar o
sentido pretendido pelo autor e, com base nisso, estabelecer suas próprias
relações, construindo outros sentidos possíveis. Nesse movimento, o
texto, material concreto dessa interação, terá grande relevância. Para Kato
(1995, p. 72), “o texto-produto é visto como um conjunto de pegadas
a serem utilizadas para recapitular as estratégias do autor e através
delas chegar a seus objetivos”. Assim, entender o porquê de o autor ter
organizado o texto de determinada forma, descobrir as relações que ele
quis estabelecer entre as partes do texto, perceber o encadeamento das
ideias conseguido é fundamental nessa construção de sentidos.
Notamos, portanto, que há uma íntima relação entre parágrafo
e leitura. Bessonnat (1988) argumenta que há ao menos três funções
básicas do parágrafo, e todas elas estão relacionadas à leitura. São elas:
1) facilitar a leitura; 2) programar a leitura; 3) dialogar (escritor e leitor).
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Sobre a primeira função sinalizada, Bessonnat (1988, p. 85)
esclarece:
A distribuição em parágrafos é um instrumento que facilita a
leitura:
– A alínea assinala ao leitor que este acaba de tratar de uma
unidade de sentido e que vai passar a uma próxima unidade .
– A alínea permite ao olho descansar e gravar as informações
contidas no parágrafo anterior antes de tratar do conjunto seguinte.
Assim, os parágrafos ajudam o leitor na tarefa de descobrir as
unidades de sentido de um texto, de armazenar as informações e, ainda,
proporcionam uma pausa (pequena) para descanso durante a leitura.
A segunda função – programar a leitura – se coniguraria como
um meio de quebrar a organização linear do texto (leitura frase por
frase): “no quadro de uma progressão temática derivada, os parágrafos
se constituem em muitas gavetas sucessivas, anunciadas pelo tema
geral inicial, autorizando uma leitura tabular e não simplesmente linear”
(BESSONNAT, 1988, p. 85). É preciso, então, entender esses blocos de
sentidos e relacioná-los. Essa divisão do texto e o estabelecimento de
ligações entre suas partes não se dá de forma aleatória. O leitor/escritor
precisa encontrar uma lógica para tudo isso, conforme salienta também
Abarca e Rico (2003):
Para que o processo de ligação se realize adequadamente, o leitor/
escritor não deve ligar as frases do texto de qualquer maneira,
mas deve-se ligá-las de forma que se vá construindo ao mesmo
tempo o que Van Dijk e Kintsch (1983) chamam de macroestrutura
do texto, isto é, uma estrutura hierárquica a partir das relações
semânticas entre as ideias do texto (p. 142).
Como é possível perceber, todo esse movimento é, sobretudo,
dialógico, fruto de uma negociação entre escritor e leitor. Acreditamos
que, ao elaborar um texto, o escritor lança mão de vários recursos para
indicar possíveis sentidos textuais que precisam ser construídos pelo
leitor. O leitor, por sua vez, apoia-se nas pistas deixadas pelo autor do
texto para fazer essa construção. Por isso, atualmente, segundo Yunes, a
leitura é considerada um processo interativo entre leitor e escritor:
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Cada texto constitui uma proposta de signiicação que não se acha
fechada e inteiramente concluída, porque se destina ao outro, no
caso, o leitor. O sentido se dá no encontro dos olhares de um e
outro, autor/leitor e leitor/autor. Porque cada um carrega seus
acervos e repertórios que vão se cruzar e atualizar no ato da leitura
(YUNES, 2009, 53).
A terceira função de um parágrafo, destacada por Bessonnat
(1988), é justamente a de favorecer o diálogo entre esses sujeitos da
interação. Apoiando-se nas ideias de Bakhtin, o referido autor comenta
que os parágrafos seriam como respostas sucessivas aos questionamentos
do interlocutor (ictício) do texto. Para reforçar sua posição, ele recorre
a esta citação de Bakhtin (2002, p.141):
Indo cada vez mais na essência linguística dos parágrafos, nós
nos convenceremos de que, em alguns de seus traços essenciais,
eles são análogos às replicas de um diálogo. São, de uma certa
forma, diálogos enfraquecidos e transformados em enunciaçõesmonólogos. Na base da divisão do discurso em partes, denominadas
parágrafos na sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às
reações previstas do ouvinte ou do leitor. Quanto mais fraco o
ajustamento ao ouvinte e a consideração das suas reações, menos
organizado, no que diz respeito aos parágrafos, será o discurso.
Fortalece-se, portanto, a ideia de que um texto paragrafado
colabora com o leitor, uma vez que permite um melhor acompanhamento
do desenvolvimento das ideias, em seus diferentes estágios. Os
parágrafos, então, podem ser entendidos como prateleiras que dividem
uma sequência de informações, organizando-as de forma lógica.
Da mesma forma que encontramos contribuições importantes
para o leitor, compreender o papel do parágrafo também se torna
fundamental para o escritor. Como já ressaltamos anteriormente, sempre
escrevemos pensando em veicular determinado sentido para nosso texto
e, para tanto, tomamos diversas decisões, inclusive em relação à melhor
forma de organizá-lo. Schneuwly (1988), ao formular sua teoria sobre os
processos de produção textual, trata dessas tomadas de decisões e sobre
as operações mentais envolvidas no ato de escrever um texto.
Para esse autor, a paragrafação seria uma habilidade relacionada
ao processo de textualização, responsável pela progressão do conteúdo
temático do texto e pela construção das relações de continuidade, de
ruptura ou de contraste dentro deste.
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Seriam três tipos de operações que fazem parte da textualização
e que visam estabelecer as articulações hierárquicas de um texto: as
operações de coesão, as de conexão/segmento e as de modalização.
Interessa-nos, aqui, destacar as operações de coesão e de conexão/
segmentação, pois elas estão intrinsecamente ligadas ao nosso objeto
de estudo.
Essas operações seriam relativas justamente às estratégias de
segmentar o discurso em partes, o que também pode ser reconhecido
como uma operação de articulação, pois, ao segmentarmos as partes,
salientamos unidades a serem articuladas.
Para esclarecer um pouco mais o que seriam essas operações de
conexão/segmentação, Schneuwly (1988, p. 40) comenta:
A característica comum das operações de conexão/segmentação
é, por um lado, “pontuar” o discurso, dividi-lo em partes e, ao
mesmo tempo, funcionar como “cimento” que rejunta as unidades
atomizadas resultantes da referenciação; por outro lado, articular
essas unidades ao contexto. Sua característica formal é de agir
sobre os núcleos predicativos, distribuindo-se, em consequência,
no nível predicativo.
Para o supracitado autor, existem diferentes tipos de marcas
para separar as unidades/partes do texto. Inicialmente, ele faz referência
às marcas que separam grandes blocos de enunciados, tais como os
subtítulos, os boxes, a mudança de página. Depois, cita também as marcas
que separam as unidades menores do texto (pontuação, marcadores
gráicos diversos, operadores argumentativos), assim como os processos
de subordinação e coordenação entre proposições.
Bessonnat (1988, p. 93) também fala sobre essas relações de
conexão/segmentação do texto, mas relete especiicamente sobre o
papel dos parágrafos para essa articulação. Para ele, temos dois níveis
de análise:
a articulação local: ou como se opera a passagem de um parágrafo
para o outro.
– apertando – ou alargando o tema.
– com ruptura ou reprise do tema
– conforme uma estrutura de questão – resposta, de oposição, de
paralelismo...
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a articulação global: ou como se opera a distribuição geral do
texto em parágrafos
– o grau de segmentação do texto
– a distribuição dos parágrafos em função da progressão temática.
Outro aspecto importante referente às operações de conexão/
segmentação é a estreita ligação entre a divisão do texto em parágrafos
e o ato de pontuar. Schneuwly (1988) lembra que essas duas ações têm
o objetivo de delimitar ou segmentar as unidades textuais. É importante
lembrar que a utilização do sistema de pontuação e a organização do texto
em parágrafos funcionam em dependência estreita com outros níveis
e tipos de operação. Ao pontuar e construir parágrafos, o escritor leva
em conta o possível destinatário de seu texto e o objetivo da atividade
de linguagem em curso, o gênero discursivo adotado para a situação
interativa, o planejamento geral do texto e, inalmente, o sentido que
pretende dar ao seu escrito.
Constatamos, portanto, que a paragrafação é uma habilidade
importante que precisa ser apropriada pelas crianças paralelamente ao
estudo dos diversos gêneros textuais. No tópico a seguir, discutiremos
os dados de pesquisas que nos trazem informações pertinentes sobre o
desenvolvimento das crianças em relação à paragrafação.
1.2 Investigações sobre a paragrafação na escrita da criança
Conhecer o processo pelo qual passam as crianças com relação
ao ato de paragrafar torna-se um instrumento valioso para o professor
na busca por realizar mediações pertinentes. Constatamos, no entanto,
que são poucos os estudos que se dedicaram a estudar essa questão.
Aqui, apresentaremos os dados de algumas pesquisas cujos resultados
se convertem em informações importantes sobre as capacidades das
crianças relacionadas à paragrafação.
Um dos estudos que encontramos foi o realizado por Moraes
(1999), no qual a autora realizou uma intervenção pedagógica e
acompanhou o desenvolvimento dos alunos, ao longo desse processo. O
foco do trabalho foi nos textos narrativos (ênfase nas histórias, contos e
lendas). Especiicamente, a autora buscou caracterizar os diferentes modos
de marcação gráica, identiicar os marcadores sintáticos mais usuais no
encadeamento dos parágrafos e promover relexão sobre a eicácia de
um modelo pedagógico que priorize o texto, sua análise e construção.
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Participaram como sujeitos vinte e oito alunos de uma escola
pública do Recife, que frequentavam uma 2ª série. Tratava-se de uma
turma bastante heterogênea, com alunos entre 9 e 16 anos e boa parte
repetente. Desses, sete alunos estavam em níveis não alfabéticos, onze
conseguiam ler apenas palavras de estrutura silábica simples (Consoante
+ Vogal), e dez alunos liam frases e pequenos textos, mas apresentavam
diiculdades de compreensão. A intervenção realizada ocorreu durante
o ano letivo de 1998 e os primeiros meses de 1999. Havia um trabalho
sistemático de leitura e produção de textos, além de um trabalho voltado
para a apropriação do sistema de escrita alfabética.
Nas aulas, eram analisados com os alunos os elementos que
compõem os textos, os efeitos de sentido, as ideias-chave e os marcadores
coesivos presentes na superfície textual. Também eram realizadas
perguntas relacionadas à paragrafação, tais como: “Por que o autor
começou a escrever afastado do início do texto? É preciso colocar um
ponto no im de cada parágrafo? Quais palavras iniciam cada parágrafo?
Todos os parágrafos têm o mesmo tamanho? O autor dá sempre a mesma
informação em todos os parágrafos?” (MORAES, 1999, p. 40). Além disso,
houve vários momentos de produção nos quais os alunos reescreveram
histórias, lendas e contos trabalhados em sala pela pesquisadora.
Os textos escolhidos para análise foram construídos em seis
atividades diferentes de produção textual. Moraes fez uma análise mais
minuciosa das produções de quatro alunos e pôde acompanhar de perto
sua evolução.
Como principais resultados, a autora pôde ratificar que a
constância e a diversiicação de textos, em sala de aula, assim como a
exploração de elementos que os compõem são, sem dúvida, relevantes
para o amadurecimento cognitivo do aprendiz em relação à produção
de textos.
Também pôde veriicar que, após a intervenção, algumas crianças
passaram a compreender o parágrafo como unidade de composição
do texto. No início, o aluno 1 não conseguiu escrever nada; o aluno
2 produziu um texto ilegível; o aluno 3 escreveu um pequeno texto,
sugeriu um título e iniciou a escrita afastada da margem esquerda,
porém não utilizou nenhuma pontuação e apresentou problemas de
hipossegmentação (palavras escritas juntas, sem o devido espaçamento);
o aluno 4 também apresentou esse problema, mas conseguiu igualmente
produzir um texto.
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No inal da intervenção, os avanços foram nítidos e signiicativos.
Os alunos 1 e 2, inalmente, conseguiram produzir textos legíveis.
O primeiro escreveu um texto sem marcação externa do parágrafo
(alínea) e em bloco único, porém “com coerência e exposição de mais
de uma ideia, que se apresentaram sequenciadas e interligadas entre
si” (MORAES, 1999, p. 51). O segundo aluno também teve avanços
importantes: conseguiu fazer uso do discurso direto em seu texto,
com pontuação apropriada e introduziu estratégias argumentativas. Os
alunos 3 e 4 foram os que mais avançaram, porque, na verdade, eram
os que já conseguiam produzir textos, mesmo com muitas diiculdades.
Esses alunos, ao inal do processo, “demonstraram ter se apropriado do
signiicado e do registro do parágrafo” (MORAES, 1999, p. 52). Ambos
dividiram seus textos em partes de forma pertinente e com o recuo da
margem esquerda, conforme é convencional.
Muitas hesitações, porém, foram frequentes ao longo da
intervenção, e a pesquisadora veriicou a existência de etapas na evolução
das crianças.
Em relação à formatação textual interna do parágrafo, Moraes
(1999, p. 54) concluiu que as crianças experimentaram algumas hipóteses.
Foram elas:
1) inexistência de blocos de ideias, ou seja, o aluno não dividiu
o texto em partes;
2) formatação de parágrafos com ideias inconclusas, isto é, o
aluno sabia que era preciso fazer a marcação do parágrafo,
mas não inalizou a ideia iniciada;
3) tentativas de marcar o parágrafo por meio de quantidades
semelhantes de linhas escritas: o aluno estabelece uma
quantidade X de linhas para cada bloco e, independentemente
de a ideia ter sido ou não concluída, ele fecha o parágrafo,
ao chegar nessa quantidade.
4) agrupamento de ideias associadas num mesmo parágrafo,
que seria a marcação aceita pela norma culta.
No tocante à formatação externa, Moraes (1999, p. 54 e 55) pôde
perceber que as crianças também diversiicaram as formas de marcação.
Alguns usos interessantes foram observados, como:
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
1) travessão no início de cada linha escrita;
2) ponto inal antes de bloco de linhas, cujas apresentações
estão numa mesma proporção;
3) travessão antes de cada grupo de linhas escritas, geralmente
de extensão semelhante;
4) recuo da margem esquerda apenas na primeira linha, e todo
o restante do texto sem esse afastamento.
Como foi visto, à medida que as intervenções ocorriam, os
alunos icavam mais desenvoltos na escrita, estabelecendo uma marcação
paragráica no texto mais próxima da convencionalmente aceita, tanto
em nível externo (recuo da margem esquerda) como em nível interno
(agrupamento de ideias ou blocos).
Outro estudo que também realizou intervenções foi o de Brande
(1999). A pesquisa teve como intuito analisar, antes e após intervenção,
a evolução da escrita dos textos de trinta e três crianças da segunda série
do ensino fundamental. Foi possível veriicar que, no início (diagnóstico
inicial), a maioria dos alunos apresentava diiculdades em escrever textos
com parágrafo e pontuação adequados. Onze escreveram textos muito
confusos ou sem uma lógica na organização das informações. Além
disso, foi notada uma repetição excessiva dos conectivos “e” e “daí” e
dos pronomes pessoais ele/ela.
No decorrer do ano letivo, a pesquisadora realizou várias
atividades com o objetivo de contribuir com o desenvolvimento da escrita
das crianças. Após esses momentos, aplicou um diagnóstico inal e pôde
perceber avanços. Vinte e sete alunos passaram a escrever textos com
paragrafação e pontuação adequadas, além de apresentarem coerência
e organização.
As pesquisas de Moraes (1999) e Brande (1999), portanto,
podem comprovar que é possível alunos das séries iniciais avançarem
na questão da paragrafação textual por meio de um trabalho sistemático
com os textos. Porém, acreditamos que esse avanço pode ser ainda mais
signiicativo se forem acrescidas a esse trabalho relexões ainda mais
especíicas sobre a paragrafação em diferentes gêneros textuais.
A pesquisadora Rocha (1996) realizou um estudo que nos trouxe
contribuições importantes para entendermos a relação entre a pontuação
e a formatação gráica do texto. Participaram da pesquisa 115 crianças
de 1ª a 3ª série do ensino fundamental de duas escolas (uma pública
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e uma particular) de Fortaleza – Ceará. Foi solicitado que as crianças
recontassem, por escrito, a história de Chapeuzinho Vermelho. Após dois
meses da coleta, a pesquisadora realizou também 29 entrevistas com as
crianças agrupadas em dupla. Nesses momentos, elas repontuaram dois
trechos do diálogo entre o lobo e Chapeuzinho (um apresentado em um
único bloco, e o outro, paragrafado).
Antes de apresentarmos os resultados, é preciso salientar que,
para a autora, a habilidade de paragrafar está intimamente relacionada
à formatação do texto, uma vez que é um dos aspectos relevantes da
organização textual.
Segundo Rocha (1996), existe dois tipos de formatação: a externa
– “apresentação do texto de forma corrida ou segmentado em blocos de
signiicação (parágrafos), utilizando adequadamente ou não o espaço das
linhas do papel” (p. 8) – e a interna – “apresentação, ou não, dos diferentes
atos discursivos do texto em sua forma típica de apresentação” (p. 8).
Como principal resultado, a pesquisadora pôde veriicar que
o domínio da pontuação ocorre paralelamente ao domínio do formato
gráico (interno e externo). Os dados mostraram que as crianças que
escreviam textos sem pontuação ou com pouca pontuação também
não apresentavam organização gráico-espacial do texto (ausência de
paragrafação). Mais ainda, foi possível perceber que “a formatação do
texto tende a seguir uma linha evolutiva, do mesmo modo que a pontuação
em geral: ausência quase total de formato gráico na 1ª série, surgimento
gradativo na 2ª série e consolidação na 3ª série” (ROCHA, 1996, p.10).
Ainda foi visto que essa evolução da formatação e da pontuação
parece ocorrer de “fora para dentro”: o formato global (externo) antecede
o formato interno, assim como a pontuação externa antecede a interna.
A estudiosa sistematizou essa evolução em quatro níveis:
1) indiferenciação total: no caso das crianças que já utilizavam
parágrafos para marcar os episódios da narrativa, mas ainda
mantinham o diálogo inserido na narrativa, não conseguindo
marcá-los de forma convencional.
2) 1ª diferenciação (sem formato gráfico convencional):
os diálogos começam a ser diferenciados da narrativa,
aparecendo em linhas diferentes, mas ainda sem pontuação
adequada.
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3) 2ª diferenciação (sem formato gráico convencional): há
um pouco mais de diferenciação dos diálogos. Já aparece
pontuação adequada, mas não está consolidada.
4) diferenciação total (com formato gráico convencional): as
formas da narrativa e dos diálogos diferenciam-se plena e
sistematicamente.
É possível perceber que as estratégias de pontuação mais
evoluídas estavam presentes nos textos das crianças que conseguiam
organizar melhor (em partes) as informações.
Na atividade de repontuar trechos de diálogos, a hipótese inicial
da estudiosa era a de que as crianças repontuariam mais facilmente o
diálogo que se encontrava paragrafado, pois, visualmente, isso ajudaria
a perceber os locais para inserirem a pontuação. No entanto, não foi o
que aconteceu com as crianças que inseriram poucos sinais de pontuação
em seus textos. Na hora de revisar, elas acrescentaram um pouco mais
de sinais no texto não paragrafado, contrariando a hipótese.
Para Rocha (1996, p. 18), esses resultados talvez indiquem que,
para as crianças que se apercebem pouco da pontuação, a
organização gráico-espacial do texto acaba sendo indiferente.
Ou talvez, justamente por não atentarem suicientemente para a
disposição do texto na página impressa, também pontuem pouco.
Embora tenha havido certo equilíbrio na frequência da pontuação nos dois trechos, é preciso ressaltar que houve outras evidências
que podem ratiicar a importância dos aspectos gráico-visuais, como
pistas essenciais para a pontuação do texto. Uma das evidências foi o
fato de a maioria dos sujeitos ter airmado ser mais fácil pontuar o texto
formatado, em comparação com o texto escrito em bloco único.
A conclusão, segundo Rocha (1996, p.25), é a de que, para
pontuar o texto, sobretudo em seus limites externos (inal de frase e
parágrafos), as crianças apelam para indícios gráico-visuais e para a
disposição espacial do texto. E esse conhecimento funciona não só como
im, mas também como meio para orientar a distribuição da pontuação.
Com base nesse estudo de Rocha, notamos como a aprendizagem
da habilidade da paragrafação pode contribuir para outras aprendizagens,
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como a da pontuação, por exemplo, o que a torna fundamental para a
formação de um bom escritor.
A pesquisa realizada por Andrade (2010) revela aspectos que
merecem ser discutidos, no que se refere ao olhar das crianças para a
paragrafação. Ela não tinha a intenção de investigar, especiicamente,
as capacidades das crianças em dividir seus textos em parágrafos, mas
pôde veriicar que, na hora da revisão textual, esse aspecto (assim como
outros também relacionados aos conhecimentos linguísticos) foi pouco
modiicado.
A pesquisa em questão buscou conhecer o que os alunos do 4º
ano do ensino fundamental são capazes de revisar quando estimulados a
reletir sobre o gênero textual “carta de reclamação”, em uma sequência
didática, e, assim, veriicar o que os estudantes consideram relevante e o
que são capazes de fazer no momento da revisão de seus textos.
De forma mais aprofundada, Andrade (2010) investigou
quais marcas de revisão textual podem ser encontradas nas cartas de
reclamação escritas pelos alunos e se estas se referiam ao conteúdo, à
coesão textual, à paragrafação, à pontuação, à ortograia, à caligraia ou à
concordância. Também buscou veriicar os tipos de mudanças realizadas
durante a revisão dos textos (exclusão, acréscimo, substituição, mudança
de posição) e analisar se, no processo de revisão textual, as crianças
modiicam os textos quanto à dimensão argumentativa.
Participaram da pesquisa professoras e alunos de duas turmas de
1° ano do 2° ciclo (4º ano do ensino fundamental) de escolas da Rede
Municipal de ensino da cidade do Recife. Para isso, foi solicitado aos
alunos produzir uma carta de reclamação para o Prefeito da cidade do
Recife, expondo a situação precária dos brinquedos e das praças do bairro
em que as escolas estavam situadas. Foram realizadas mais três revisões
desse texto, duas individuais e uma em duplas de trabalho.
Foram selecionados 20 alunos, sendo 10 de cada turma. A análise
se deu por meio da comparação entre as diferentes versões dos textos
dessas crianças.
Os resultados revelaram que a grande maioria das mudanças
realizadas nos textos dos alunos dizia respeito ao conteúdo (54,5%),
sendo o acréscimo o tipo de modiicação mais frequente. O segundo
aspecto que mais recebeu atenção nas revisões foi a ortograia, com uma
porcentagem de 24,3% do total das modiicações.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
Atrás dos aspectos relacionados a conteúdo e ortograia, vieram
as seguintes dimensões textuais: pontuação (8%); coesão (5,8%);
concordância (4,7%); paragrafação (2%) e caligrafia (0,7%), que
receberam a atenção das crianças, quando revisaram suas cartas, porém
com baixa frequência. Entretanto, o que mais chamou a atenção da
pesquisadora foi o fato de essas revisões estarem em função da revisão
dos conteúdos.
Segundo Andrade (2010), esses dados contrariam os
resultados de outros estudos (GÓES, 1993; FLOWER; HAYES, 1980;
SCARDAMALIA; BEREITER, 1992), que defendem que as revisões
de textos feitas por crianças icam circunscritas a questões de ordem
ortográica e/ou alterações supericiais, que não afetam o signiicado
do texto.
A hipótese levantada pela pesquisadora para seus resultados se
sustenta no fato de as crianças terem sido estimuladas a reletir sobre
a adequação de seu texto à inalidade da interação (reclamar para o
prefeito). Ou seja, o tipo de intervenção realizada e o contexto de
produção foram fatores decisivos para direcionar o olhar das crianças
para outros elementos que vão além da superfície textual.
Como foi possível observar, a paragrafação foi poucas vezes alvo
de reescritas, com apenas 2% dos episódios. Esse dado pode ser relexo da
falta de um ensino mais sistemático dedicado a essa habilidade. Ou ainda
relexo da ênfase dada pela docente nas questões relativas à adequação de
seu texto à inalidade da interação, o que pode ter direcionado a atenção
dos alunos para essas questões, fazendo-os “esquecer” de outros aspectos.
O fato é que não podemos deixar os alunos sozinhos na tarefa de aprender
a paragrafar seus textos. Cabe ao professor promover situações de ensino,
bem como orientar a paragrafação nos momentos de escrita.
Em Bessonnat (1988, p. 82), encontramos algumas situações
didáticas que seriam potencialmente interessantes para um trabalho
relexivo com a paragrafação, entre as quais destacamos as seguintes:
comparação de três versões de um texto paragrafado de formas diferentes,
para que os alunos selecionassem a versão que lhe parecessem mais bem
organizada; entrega de um texto lacunado, em que faltava um parágrafo,
para que os alunos formulassem hipóteses referentes às informações que
estariam faltando; recomposição de um texto cujos parágrafos tiveram
sua sequência alterada, possibilitando ao professor explorar a relação da
segmentação com a articulação lógica do texto.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
335
É possível perceber que as atividades sugeridas, de fato,
contribuem para o desenvolvimento da habilidade de paragrafar.
Algumas, por exemplo, vão focar mais os critérios de organização,
outras, a articulação interna dos parágrafos. O que o docente precisa
entender, porém, é que somente um tipo de atividade não será suiciente
para uma real apropriação da paragrafação pelos alunos. Será necessário
que conjugue várias atividades e, assim, realize um trabalho sistemático
e relexivo.
Parece-nos pertinente, ainda, destacar que essas situações
de ensino estejam atreladas ao trabalho com os gêneros textuais.
Consideramos que, para organizar o texto em partes, o escritor mobiliza
estratégias aprendidas por meio do contato com textos diversos. Assim,
tende a usar critérios comumente relacionados aos gêneros textuais
adotados na situação de escrita. Como sabemos, os textos que circulam
socialmente têm certas regularidades que contribuem para que o escritor
lance mão das experiências anteriores para a elaboração de novos textos.
Na maior parte das vezes, essas regularidades não implicam regras
rígidas; são estratégias comuns à escrita de textos que circulam em uma
determinada esfera social para atender a determinadas inalidades.
Por acreditarmos nesse ensino pautado nos gêneros, resolvemos,
em nossa pesquisa, focar nas habilidades de escrita das crianças ao
escreverem cartas de reclamação. Na próxima seção, abordaremos
esse gênero (conceito e movimentos), buscando compreender suas
características composicionais e discursivas e assim perceber suas
possíveis regularidades.
2 A argumentação e a carta de reclamação
De acordo com os estudos realizados por Schneuwly e Dolz
(2004), o gênero textual “carta de reclamação” estaria dentro da ordem
do argumentar, uma vez que o mesmo apresenta uma predominância de
sequências tipológicas argumentativas. Os textos da ordem do argumentar
teriam a função primordial de convencer o leitor de algo. São exemplos: as
cartas ao leitor, os textos de opinião, as resenhas críticas, as dissertações,
entre outros...
No texto predominantemente argumentativo, uma questão
primeira emerge: a relevância do ato de argumentar naquela determinada
situação. Para que haja a necessidade de argumentar é preciso que exista
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
um assunto que dê margens a um debate, proposições que justiiquem
e/ou refutem a declaração, enim, alguém apresentando resistências.
Essas características gerais tipiicam os textos da ordem do argumentar
de uma maneira geral. No entanto, cada gênero tem especiicidades, que
são historicamente construídas.
Silva e Leal (2007) realizaram uma pesquisa na busca por
encontrar elementos característicos do gênero em foco. Para tanto, as
pesquisadoras analisaram vinte (20) cartas de reclamação de circulação
social. Os resultados encontrados trouxeram informações bastante
relevantes e também ajudaram a perceber como comumente é construída
sua cadeia argumentativa. Foi possível identiicar sete componentes
textuais que possivelmente conigurariam uma carta de reclamação. São
eles: 1) indicação do objeto alvo de reclamação; 2) justiicativa para
convencimento de que o objeto pode ser (merece ser) alvo de reclamação
3) indicação de sugestões de providências a serem tomadas; 4) justiicativa
para convencimento de que a sugestão é adequada; 5) Indicação das
causas do objeto alvo da reclamação; 6) Contra-argumentação relativa ao
objeto alvo de reclamação; 7) Contra-argumentação relativa às sugestões.
Nas cartas de circulação analisadas, os componentes 1 (indicação
do objeto alvo de reclamação) e 2 (justiicativa da reclamação) foram os
que apareceram em todas as cartas. Dessa forma, para reconhecermos que
uma carta é uma “carta de reclamação” parece ser primordial observarmos
se ela traz a indicação de objeto(s) alvo(s) da reclamação e o movimento
de justiicação da relevância de tal indicação.
Em seguida, foi encontrado um amplo uso do componente 3, a
indicação de sugestões tendo em vista a resolução do problema, que teve
doze aparições (60%). Esse componente estava muito presente nos textos
analisados, constituindo uma estratégia para mostrar ao destinatário a
queixa de que era possível resolver o problema descrito.
O movimento de justiicar a(s) sugestão(ões) dada(s), na tentativa
de convencer o leitor da sua adequação e pertinência (componente 4),
também foi utilizado em várias cartas (em 8 das 20 cartas – 40%). Do
mesmo modo, foi encontrada em oito cartas a tentativa de citar e explicar
as possíveis causas da ocorrência do problema em foco. (componente 5).
Outros movimentos, no entanto, tiveram baixa incidência. Foi
o caso da contra-argumentação relativa ao objeto alvo de reclamação
(componente 6) e da contra-argumentação relativa às sugestões
(componente 7); ambas tiveram apenas três aparições (15%). As
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
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pesquisadoras ressaltam, porém, que essa baixa incidência não pode ser
interpretada como indício de que tais componentes são irrelevantes. Eles
são fundamentais em situações em que as partes envolvidas já estejam
em processo de negociação e não haja um consenso sobre quem é o
culpado. As análises das cartas de circulação social mostraram, portanto,
que quanto maior for o uso desses diversos componentes, maiores são
as chances de o texto ter uma cadeia argumentativa apropriada para as
inalidades previstas.
3 Metodologia
Participaram da pesquisa alunos de cinco turmas (duas turmas
do 3º ano, uma do 5º ano e duas do 7º ano) que estudavam na Rede
Pública de Ensino de Pernambuco. Os alunos vivenciaram uma mesma
sequência didática relacionada ao gênero “carta de reclamação”, com o
intuito de contribuir para que eles pudessem ativar seus conhecimentos
prévios e construir representações/conhecimentos sobre esse gênero.
Com a intervenção, procuramos apenas diminuir os efeitos do possível
“desconhecimento” do gênero, facilitando a produção da carta e não
“bloqueando” uma possível organização dos textos em partes. Essas
sequências foram mediadas pelas docentes regentes da turma, sem
intervenções das pesquisadoras durante a vivência.
No inal da sequência, coletamos 151 cartas elaboradas pelos
alunos. Para essa pesquisa, analisamos 37 textos. Excluímos da amostra
todos os textos produzidos por alunos que apresentavam distorções idade/
ano, textos escritos de forma não convencional (ilegíveis) e os que não
produziram o gênero solicitado (carta de reclamação). Mesmo adotando
esses critérios, tivemos um número maior de textos, então, realizamos
um sorteio.
Para responder a nossa questão de pesquisa, ou seja, “como a
paragrafação e a argumentação se realizam em diferentes etapas do
ensino fundamental”, analisamos as estratégias de organização dos textos
em partes, na intenção de veriicar quais foram pertinentes. Depois,
mapeamos o desenvolvimento da cadeia argumentativa, ou seja, o uso
dos componentes textuais próprios ao gênero “carta de reclamação”. De
posse dos dados, agrupamos os textos pela relação entre a paragrafação
(adequada ou insuiciente) e a argumentação (consistente ou com fraca
consistência).
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Consideramos como boa paragrafação dois casos: quando os
textos eram escritos em bloco único e realmente não precisavam ser
paragrafados, por trazerem poucas informações e serem mais concisos; ou
quando os textos eram divididos em parágrafos, e cada um destes trazia
um objeto alvo de reclamação, seguido de argumentação, ou quando
cada parágrafo trazia um elemento dessa argumentação desenvolvido.
Já a paragrafação insuficiente era aquela em que o texto
apresentava um grande número de informações agrupadas em bloco
único ou em um mesmo parágrafo, sendo necessário outra organização
textual para que o texto icasse mais claro para o leitor.
Em relação à argumentação, veriicamos se a cadeia argumentativa
foi desenvolvida, de forma que o texto trouxesse uma justiicativa em
relação à relevância da reclamação feita, assim como um movimento
de contra-argumentação. Na ausência desses elementos, consideramos
o texto com fraca consistência argumentativa.
Na seção 4 (itens 1 a 4), apresentaremos detalharemos essa
categorização, exempliicando por meio do movimento de escrita dos
textos o que foi considerado uma paragrafação boa ou insuiciente e uma
argumentação consistente ou com fraca consistência.
4 Resultados e discussão
4.1 Uma categorização para os textos produzidos: as estratégias de
paragrafação adotadas pelas crianças e suas relações com a cadeia
argumentativa
Após análise dos textos quanto à paragrafação e à argumentação,
chegamos a quatro categorias: cartas com boa paragrafação e consistência
argumentativa; cartas com boa paragrafação, mas com lacunas na
consistência argumentativa; cartas com paragrafação insuiciente e boa
consistência argumentativa; cartas com paragrafação insuiciente e fraca
consistência argumentativa. A seguir, apresentaremos cada um desses
agrupamentos.
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4.1.1 Cartas com estratégias de paragrafação adequadas ao texto e boa
consistência argumentativa
Encontramos cartas de reclamação cuja paragrafação e
argumentação foram bem desenvolvidas. Contabilizamos os casos e
vimos que 18,9% do total de cartas de reclamação pertencem a esse grupo.
Não é um número alto, mas indica que há alunos que conseguem articular
a habilidade de paragrafar e argumentar em seus escritos. Inserimos neste
grupo os seguintes casos descritos:
• textos escritos em bloco único com apresentação de um único
objeto de reclamação acompanhado de vários componentes
textuais (justiicativa do objeto alvo de reclamação e/ou
sugestões e/ou, justiicativas das sugestões e/ou contraargumentação);
• textos com parágrafos, com apresentação de um objeto de
reclamação, acompanhado de cadeia argumentativa: cada
parágrafo é um componente argumentativo (justiicativa do
objeto de reclamação, sugestões, justiicativa das sugestões,
contra-argumentação);
• textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos
de reclamação, acompanhados de cadeia argumentativa: cada
parágrafo é um componente argumentativo (justiicativa do
objeto de reclamação, sugestões, justiicativa das sugestões,
contra-argumentação);
• textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos
de reclamação, acompanhados de cadeia argumentativa:
cada parágrafo é uma reclamação diferente, acompanhada
de argumentação referente à reclamação alvo do parágrafo.
Para ilustrar, selecionamos uma das cartas pertencentes a essa
categoria:
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
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Eu, aluna do _______, queria lhe informar; que não só eu como
todos os alunos dessa escola queríamos que o senhor nos atendesse
com atenção.
Por que passamos por certa diiculdade muito grande em ir ao
banheiro dessa escola; precisamos de mais higiene, pois o mal cheiro
e a desorganização é insurpotável.
Por exemplo: O banheiro dos professores é linpo, cheiroso,
na cerâmica; E por que o nosso não pode ser?
O senhor pode até pensar que os alunos que não preserva, mas
para o banheiro ser limpo, o senhor tem que agir com moral!
Também tendo essa oportunidade de mim informar com você
queria lhe dizer um grande problema que passamos agora: É a água;
muitas vezes não só eu como muitas de minhas amigas, chegamos
em casa e icamos com problema na saúde, tudo isso pelo efeito da
água que nos trás o prejuízo.
As pessoas podem até pensar que é brincadeira, mas eu não
estou escrevendo para brincar, e sim para falar sério.
7º ano, sexo feminino, 12 anos.
O texto acima foi classiicado como pertencente ao tipo “textos
com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação”,
acompanhados de cadeia argumentativa. Notamos que a criança reclama
de mais de um problema na escola (a má situação do banheiro e a falta
de água potável para beber).
Cada parágrafo ela dedica a apresentar um componente textual,
dividindo sua reclamação em vários blocos. No primeiro parágrafo
do texto, ela faz uma introdução; no segundo, apresenta o que seria
o primeiro problema. Em seguida, no terceiro parágrafo, traz uma
justiicativa para convencer o responsável a consertar os banheiros
(professores e alunos têm o mesmo direito). No quarto parágrafo, a aluna
parece reproduzir uma possível fala do diretor da escola contra a sua
reclamação, na qual contestaria a reclamação airmando que não há por
que investir no conserto dos banheiros se são os próprios alunos que não
preservam. Em seguida, ela refuta essa ideia dizendo que se os alunos
não preservam é porque ele (o diretor) não age com moral. No quinto
parágrafo, há a apresentação do segundo objeto alvo de reclamação e,
por im, no último parágrafo, realiza-se o fechamento do texto, buscando
sensibilizar o leitor para a seriedade da carta.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
Embora o texto apresente problemas na escolha dos recursos
coesivos para iniciar e retomar os parágrafos, o que daria uma maior
unidade ao texto, pode-se dizer que a carta cumpriu com sua inalidade
de escrita.
Assim como a aluna citada, outros estudantes também evidenciaram
ter estratégias eficientes para organizar a cadeia argumentativa,
segmentando o texto de modo a auxiliar o leitor a entendê-la. As crianças
autoras dessas cartas conseguiram escolher acertadamente a melhor forma
de dividir o seu texto. Se a carta trazia apenas um objeto, preferiram
desenvolvê-lo em um único parágrafo ou, então, dividir os componentes
que formavam a cadeia entre os blocos, de modo que cada qual icasse
em um parágrafo diferente. Se na carta estavam sendo explicitados vários
objetos de reclamação, os sujeitos, então, relacionavam os objetos aos
blocos (cada parte tratava de uma reclamação) ou então agrupavam os
componentes por parágrafo (exemplo: todas as justiicativas dos objetos
apresentados icavam em um só bloco).
Todas essas estratégias colaboram com o leitor, e, de fato, esses
textos podem ser considerados bem paragrafados.
4.1.2 Cartas com estratégias de paragrafação adequadas ao texto, mas
com lacunas na consistência argumentativa
Nessa categoria estão presentes os textos cuja divisão colaborou
com o trabalho do leitor. Trata-se de textos bem paragrafados, mas que
apresentam lacunas na argumentação, seja por não desenvolver os objetos
de reclamação apresentados, seja por desenvolver apenas alguns deles.
De todas as cartas de reclamação analisadas, 37,8% foram entendidas
como pertencentes a este segundo grupo. Eis os casos:
• textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos
de reclamação, sem cadeia argumentativa: cada parágrafo
é uma reclamação diferente, sem justiicativas.
• textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos
de reclamação, alguns dos quais acompanhados de cadeia
argumentativa: cada parágrafo é uma reclamação diferente,
acompanhada ou não de justiicativa referente à reclamação
alvo do parágrafo;
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• bloco único em textos com apresentação de vários objetos
de reclamação, sem outros componentes textuais (só
apresentação das reclamações sem argumentação relativa a
elas).
Nesses casos, novamente julgamos que a paragrafação foi
adequada ao texto construído. Por exemplo, na escrita do texto em bloco
único, as crianças não desenvolveram a cadeia argumentativa, e, por isso,
seus textos não precisavam ser divididos em parágrafos. Se assim fosse,
as cartas icariam muito fragmentadas, e os parágrafos iriam parecer mais
tópicos do que um encadeamento de ideias.
Nos demais casos incluídos nesse grupo de cartas, as crianças
relacionavam cada parágrafo a uma reclamação. Essa estratégia permite
ao leitor visualizar bem quais são os problemas vivenciados. No entanto,
tais reclamações – ou pelo menos parte delas – não foram desenvolvidas.
Para ilustrar, selecionamos umas das cartas pertencentes a essa categoria:
nós da escola municipal ________ nos queremo que você
fale com o prefeito para ele colocar uma biblioteca na nossa escola?
todo os dia que nos chegamos na Escola que os alunos vão
no banheiro o banheiro esta sujo e também esta sem papel jienico?
fale com o prefeito para ele manda colocar câmera na Escola e
guardas na Escola
3º ano, sexo masculino, 8 anos.
A carta foi organizada em três paragrafados. A estratégia utilizada
foi a de apresentar um objeto alvo de reclamação por bloco. No primeiro, a
reclamação é referente à falta de biblioteca na escola; no segundo, o aluno
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relata o problema da sujeira no banheiro; e, no terceiro, ele usa o pedido
como forma de denunciar a falta de segurança na escola. Consideramos
que essa divisão do texto favorece a compreensão leitora. Contudo, o
aluno não dedicou esforços para convencer os responsáveis a solucionar
os problemas. Por que esses problemas estão afetando os alunos? Por
que devem ser resolvidos?
A tarefa de argumentar não é fácil. O locutor, para produzir
o sentido que pretende, precisa refletir sobre o que seus possíveis
interlocutores podem pensar a respeito do texto. A presença do “outro” o
fará perceber que apenas expor seu ponto de vista já não é suiciente. É
necessário ainda justiicá-lo e até expor contra-argumentos, para evitar seu
enfraquecimento. Os alunos que escreveram cartas categorizadas como
pertencentes a esse grupo 2 demonstraram bem essas diiculdades. Cerca
de um terço dos alunos conseguiu sinalizar os problemas que afetavam
as escolas, mas os textos careciam de aprofundamento por falta de
argumentos que justiicassem a relevância de sua reclamação e convencesse
o responsável pelo problema da necessidade de resolução deste.
Dominar as estratégias argumentativas não acontece ao natural,
espontaneamente. Por isso, é necessário um trabalho sistemático com
textos dessa ordem na escola, tal como é o caso da carta de reclamação.
No entanto, Leal (2003) constatou que os textos argumentativos aparecem
com pouca frequência na sala de aula e, quando são objetos de ensino,
raramente são exploradas as estratégias argumentativas, tão importantes
para a compreensão e a produção dos textos dessa ordem.
Atividades como ler um artigo de opinião e destacar os
argumentos do autor, realizar um debate oral em sala de aula sobre tema
controverso, após momentos de estudo sobre o tema e levantamento de
argumentos e contra-argumentos para lançar no debate, são exemplos
de situações didáticas que favorecem o desenvolvimento da habilidade
de argumentar dos alunos.
4.1.3 Cartas com paragrafação insuiciente, mas com boa consistência
argumentativa
Na terceira categoria, estão os textos nos quais, ao contrário dos
dois outros apresentados, a estratégia de organização dos parágrafos
não foi bem sucedida ou então não são possíveis de ser percebidas.. As
crianças, autoras dos textos aqui agrupados, mesmo sem paragrafarem
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bem, conseguiram desenvolver de forma consistente a argumentação,
defendendo a relevância de suas reclamações. Identiicamos que 27%
das cartas pertencem a essa categoria. Eis os casos:
• bloco único em textos com apresentação de vários objetos
de reclamação acompanhados de vários componentes
textuais relativos a cada uma das reclamações (justiicativa
do objeto de reclamação e/ou sugestões e/ou justiicativas
das sugestões e/ contra-argumentação);
• Cartas em que aparentemente não há uma divisão lógica
dos blocos (textos com parágrafos), mas apresentam uma
boa consistência argumentativa. A seguir apresenta-se um
exemplo:
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Tia _______ lhe escrevo está carta para lhe comunicar o que
está prejudicando eu e meus colegas nós gostaríamos de lhe dizer o
que prejudica eu e meus colegas é: o que a gente não gosta na escola
é da professora Lúcia ela gosta muito de mandar na gente, e quando
teve a primeira literarte nós falamos sobre monteiro Lobato foi a quarta
da manhã com a da tarde ela só fazia tirar foto dos alunos dela invés
de ela mandar os alunos dela ajudar a gente a explica quem explicou
tudo só foi os alunos da tarde e nenhum dos alunos dela ajudou e
ainda mais quando as mães iam ver eu e meus colegas apresentando
ela tira as mães e mandava elas ver fantoches que era da sala dela Os
ventiladores nem si fala era para tar os quatro ventilador esses dois e
um calor danado ninguém suporta. A quadra está mau cimentada e tem
muitas pedras e vidros e sem falar quando a gente vai brincar lár não
presta não só faz a gente se machucar e também tinha que aumentar o
muro da quadra. E o campinho de aréa tem que potar mais aréia tirar
o pote e aumentar o muro. E a horta que esta caindo os pedaços e tem
que botar serca, o que eu quero que faça na escola também incruindo
aqui nesse texto. Quero também que almente o salario das professora
e potar piros e cadeiras mais confortaves, tem que ter uma sala de
computação para que a gente poder pesquisar na internet não gosto das
brigas e a falta de respeito com as professora e fucionarios. Aumentar
a biblioteca e botar mais livros. Ter mais segurança na escola. Não
deixar a turma da manhã rasgar nos cartazes e trabalhos. Também a
falta de caderno, lápis, borracha, cola, lápis de pau para pintar, lapis
de sera, a nossa porta que esta com a fechadura quebrada e a porta
com furos tem que conserta. Pinceis, tintas, itas coloridas, cartolinas,
folha de ofícios, ita dures, pilotos e cola colorida.
5º ano, sexo feminino, 11 anos.
Como vemos, o texto foi escrito em bloco único com vários
objetos de reclamação explicitados. A sobrecarga de informações é
grande. A melhor estratégia, nesse caso, seria relacionar os blocos aos
objetos de reclamação, ou seja, apresentar cada reclamação em um
parágrafo. Isso contribuiria com a leitura e entendimento das questões
expostas. Outras crianças tiveram o mesmo tipo de produção.
Também classificamos nessa categoria as cartas nas quais
não foi possível perceber os critérios adotados para dividir os blocos:
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nem separavam cada reclamação em um parágrafo nem separavam os
componentes textuais próprios do gênero solicitado, mas tinham cadeias
consistentes relacionadas a essas reclamações.
Ao lermos as cartas do primeiro grupo, foi possível perceber
o quanto algumas crianças e alguns adolescentes se esforçaram para
dar uma lógica coerente à organização de seus escritos. Eles pareciam
reconhecer que a divisão do texto em partes não podia ser aleatória, ao
livre arbítrio do escritor. No entanto, no caso das cartas agrupadas nesse
terceiro grupo, não parecia haver uma lógica clara para a organização
do texto em partes, ou seja, não foi possível identiicar quais foram os
possíveis critérios utilizados na paragrafação. Além disso, outras crianças
tinham claramente uma estratégia argumentativa bem articulada, mas
optavam por segmentações nem sempre úteis aos seus propósitos, ou
seja, poderiam aprimorar suas próprias estratégias. É o caso da carta
utilizada como exemplo acima.
4.1.4 Cartas com paragrafação insuficiente e fraca consistência
argumentativa
No último agrupamento, classiicamos todas as cartas cujos
autores não escolheram uma paragrafação adequada ao texto construído.
Nelas, também se viam argumentações pouco consistentes. Os objetos
eram apresentados sem desenvolvimento da argumentação. Algumas
vezes chegavam apenas a acrescentar sugestões. Cerca de16% das cartas
de reclamação foram categorizadas como pertencentes a esse grupo.
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Eu sou ______, aluna do 6ºA, eu vou reclamar dos ploblemas
da escola.
Ela esta com muito defeito, o banheiro das meninas e dos meninos
é muito nojento, a água e da torneira, as cadeira tem que ser igual,
a quadra esta feia, não tem espelho no banheiro e ne água, a comida
não é muito boa, tem lampâdas queimada, no telhado tem algumas
pingueiras, os ventiladores estão quebados e etc.
Eu quero que o banheiro seja limpos e bonito, os ventiladores
funsione bem, comida boa, água mineral, a quadra perfeita é assi
outra coisa seja resolvido.
Espero que esse ploblema seja rezolvido em brevi.
7º ano, sexo feminino, 14 anos.
A aluna deixa claro quais os problemas denunciados, contudo
não aprofunda suas reclamações, ou seja, não as justiica nem contraargumenta a seu favor. Depois de elencar os problemas, passa a dar
sugestões de possíveis soluções (exemplo: a água deveria ser mineral).
Em relação à paragrafação, não foi possível identiicar uma estratégia
lógica na organização. Os parágrafos não foram construídos para separar
nem os objetos alvo de reclamação nem os componentes textuais.
4.2 Comparando os textos escritos por crianças de diferentes anos de
escolaridade
Deinidas essas quatro categorias que sistematizam, de forma
mais evidente a relação entre a paragrafação e a construção da cadeia
argumentativa, partimos para entender como se processa tal relação entre
o nível de escolaridade e as turmas. Nossa intenção foi veriicar se havia
diferenças entre as turmas de diferentes anos de escolaridade e entre
as turmas do mesmo ano, no que se refere à presença em uma ou outra
categoria. Contabilizamos primeiro os dados por ano de escolaridade,
conforme tabela 1 a seguir.
349
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TABELA 1 – Relação entre a paragrafação (adequada ou insuiciente) e a
argumentação (consistente ou com fraca consistência)
por ano de escolaridade
Categorias
3º ano
5º ano
7º ano
Freq.
(%)
Freq.
(%)
Freq.
(%)
1) Cartas com paragrafação
adequada e boa consistência
argumentativa
3
27,2
2
20
2
12,5
2) Cartas com paragrafação
adequada, mas com fraca
consistência argumentativa
5
45,4
4
40
5
31,2
3) Cartas com paragrafação
insuiciente e boa
consistência argumentativa
1
9,09
4
40
5
31,2
4) Cartas com paragrafação
insuiciente e fraca
consistência argumentativa
2
18,1
-
-
4
25
11
99,8
10
100
16
99,9
Total
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Observando os números, nota-se que as turmas do 3º ano
obtiveram índices melhores do que turmas do 5º e 7º anos. Ou seja,
alunos com menor tempo de escolaridade se saíram melhor do que os
de anos mais avançados. No entanto, ao observar melhor os dados por
turma veriicamos que o melhor desempenho ocorreu, especiicamente,
em uma das turmas do 3º ano e não em ambas. Por exemplo, enquanto
todas as cartas de reclamação dos alunos da turma 1 foram escritas em
bloco único, na turma 2, a grande maioria organizou seu texto em dois
ou mais parágrafos.
São duas realidades distintas que nos fazem crer na possibilidade
de turmas do 3º ano conseguirem dividir seus textos de forma semelhante
à turmas de anos mais avançados, como também foi constatado no estudo
de Moraes (1999).
Os dados da tabela 2 ratiicam essa diferença entre as turmas.
350
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
TABELA 2 – Quantidade de textos por turma com paragrafação
adequada e argumentação consistente
3º ano
Categorias
5º ano
7º ano
Turma 1
Turma 2
Turma 4
Turma 5
Turma 6
(%)
(%)
(%)
(%)
(%)
20,0
33,3
20,0
9,09
20,0
Cartas com paragrafação
adequada e consistência
argumentativa
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Como vemos, ao compararmos os dados das turmas de diferentes
anos, de forma separada, constatamos que uma turma do 7º ano (turma
5) demonstrou apresentar mais diiculdades para paragrafar e argumentar
do que uma turma do 3º ano.
Uma hipótese levantada para esse resultado é a possível inluência
do tipo de trabalho pedagógico desenvolvido com esses alunos ao longo
do 3º ano, ou mesmo dos anos antecedentes, relativo à consistência das
atividades propostas dentro da sequência didática sobre o gênero carta de
reclamação. Além disso, observações informais realizadas mostraram que
a docente da turma parecia desenvolver um trabalho bastante sistemático
com leitura e produção textual. Acreditamos que em suas aulas eram
criados diversos momentos de contato com textos e, possivelmente,
relexões sobre os gêneros textuais e/ou organização textual, o que, de
fato, colaboraria para um maior desenvolvimento dos alunos.
Nas turmas do 7º ano, entretanto, as aulas em que a sequência
didática foi desenvolvida se deram de forma mais aligeirada, pois as
professoras das turmas só dispunham de uma hora e meia de aula, em
razão de o horário ser dividido com outras disciplinas. Notamos também
que vários aspectos relativos ao gênero estudado foram pouco explorados,
tais como as relexões sobre as características sociodiscursivas da carta
de reclamação.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
351
5 Considerações inais
Acreditamos que a primeira contribuição da pesquisa está na
própria abordagem do tema, uma vez que esse assunto, como pudemos
acompanhar ao longo do referencial teórico, é pouco discutido entre os
estudiosos da área. Com base nesse trabalho, aprofundamos o estudo
sobre a paragrafação e compreendemos melhor, por exemplo, a relação
entre a construção de parágrafos e os gêneros textuais, em particular o
gênero carta de reclamação.
É preciso reconhecer, no entanto, que não é possível identiicar,
com clareza, as especiicidades em relação à organização dos parágrafos
em todos os gêneros. Há gêneros que são mais luidos e variam mais
em relação à sua organização, de modo que é difícil estabelecer
especiicidades em relação à construção dos parágrafos.
No caso da carta de reclamação, pudemos veriicar que as
principais estratégias de paragrafação constituíram-se de formas
diferentes de se escrever esse gênero textual: 1) com um parágrafo de
abertura e/ou fechamento e um parágrafo contendo toda a reclamação;
2) com parágrafos relacionados aos componentes textuais (objeto
alvo de reclamação, justiicativa, sugestão para resolver o problema,
indicação de possíveis causas, entre outros) 3) relacionadas aos objetos
alvo da reclamação; 4) com parágrafos ora relacionados aos objetos de
reclamação ora aos componentes textuais.
Os resultados mostraram ainda que alunos dos anos iniciais do
ensino fundamental já são capazes de construir parágrafos e atribuir
um sentido lógico a essa divisão. Em relação à argumentação, muitos
conseguem produzir justiicativas e alguns até chegam à contra- argumentar.
Mesmo havendo alguns alunos que já demonstravam certa
desenvoltura nessas habilidades, constatamos que havia casos de alunos
que, apesar de paragrafarem de maneira adequada, não conseguiam
desenvolver bem sua argumentação.
Vemos, portanto, que as estratégias para satisfazer as condições
do contexto de produção e organizar o texto, de maneira a ajudar o leitor
na compreensão, não é algo adquirido espontaneamente, mas construído
por meio da mediação de escritores mais experientes, como o professor.
Por isso mesmo, os nossos alunos precisam de mediadores nessa tarefa de
se apropriar da paragrafação, pois, enquanto alguns, mais observadores,
constroem suas hipóteses, outros passam mais tempo vivendo a angústia
de não entenderem as razões para terem de fazer tal divisão.
352
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018
É necessário deinir boas estratégias didáticas para ensinar as
crianças a paragrafar os textos. Contudo, reconhecemos que o professor
dispõe de poucos materiais que o orientem na condução desse ensino.
Esse talvez seja um dos aspectos que pode gerar um trabalho assistemático
com a paragrafação. Também há escassez de momentos de relexão sobre
o tema em sala de aula.
Os resultados de nossa pesquisa reforçam o fato de que mesmo
demonstrando possuir tais conhecimentos, seja de forma intuitiva ou não,
a escola precisa garantir um espaço pedagógico para ajudar os alunos a
avançarem em seus conhecimentos e superarem suas diiculdades.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
Efeitos da clínica de linguagem em casos de sujeitos
com paralisia cerebral
Language clinic effects in cases of subjects with cerebral palsy
Roseli Vasconcellos
Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo / Brasil
roselivasconcellos@fclar.unesp.br
Resumo: O presente artigo remete à tese Organismo e sujeito: uma
diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS, 2010),
com iliação teórica no Interacionismo Brasileiro (DE LEMOS, 1992,
2002, 2006, 2007, entre outros) e em seus desdobramentos no Projeto
Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, coordenado por Maria
Francisca Lier-DeVitto e Lúcia Arantes (LAEL/PUC-SP). Nela e no
presente trabalho, procurou-se aprofundar uma discussão interessada nos
efeitos de um corpo pulsional, apesar dos entraves que dizem respeito à
condição orgânica de sujeitos com paralisia cerebral que não oralizam,
com vistas a demonstrar a viabilidade de uma Clínica de Linguagem
não conduzida por um raciocínio centrado nas diiculdades motoras
desses sujeitos. O corpo-orgânico da Medicina foi abordado por meio
de um diálogo com a Neurologia, a im de se estabelecer sua distinção
do corpo pulsional, enfocando-se os mais novos achados (técnicas
de neuroimagem) e suas relações com o mais antigo (airmações de
Freud acerca da natureza das paralisias cerebrais), que sugerem forte
convergência. A diferença, tanto teórica quanto clínica, introduzida na
tese, é iluminada pelos efeitos dessa clínica que inclui a Comunicação
Suplementar e Alternativa com seus sistemas de símbolos gráico-visuais,
que viabiliza a materialização do signiicante pela via do empréstimo
do corpo e da voz do outro-terapeuta. Os dados analisados, dialógicos e
coletados na clínica, falaram a favor da presença de um corpo-linguagem
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.355-387
356
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
e remeteram a heterogeneidades em seus efeitos promovidos nessa
clínica, que suscitaram considerações sobre o prazer que acompanha
a emissão de certas produções orais, em dois casos, e, em outro caso,
conlito e angústia.
Palavras-chave: paralisia cerebral; linguagem; fonoaudiologia; clínica
de linguagem; comunicação suplementar e alternativa.
Abstract: This article stems from the thesis Organism and subject:
a sensitive difference in cerebral palsies (VASCONCELLOS, 2010)
theoretically based on the Brazilian Interactionism (DE LEMOS, 1992,
2002, 2006, 2007 among others) and its consequences for the Acquisition,
Pathologies and Language Clinic Integrated Project coordinated by
Maria Francisca Lier-DeVitto and Lúcia Arantes (LAEL/PUC-SP). Both
in the thesis and in this article the aim was to deepen a discussion that
pointed out to pulsional body effects, despite obstacles concerning the
subjects with cerebral palsy organic condition who do not speak, aiming
to demonstrate the viability of a Language Clinic therapy conducted
without a focused reasoning on these subjects’ motor difficulties.
Medicine was approached from a dialogue with Neurology, aiming to
establish its distinction of the pulsional body, focusing on the newest
indings (neuroimaging techniques) and their relations with the oldest
(Freud’s claims about the nature of cerebral palsy) which suggest strong
convergence. The difference, both theoretical and clinical introduced in
the thesis for the treatment of such subjects, is highlighted by these clinic
effects including Augmentative and Alternative Communication and
their graphic-visual symbols systems that enable the materialization of
the signiicant, which is done by way of loaning the therapist’s body and
voice. Patient data analyzed were collected in dialogic clinical situations,
referred to the presence of a “body-language” and to the heterogeneities
in their effects promoted in this clinic, which raised considerations about
the pleasure accompanying certain vocalized speech productions in two
cases and conlict, in another one.
Keywords: cerebral palsy; language; speech language and hearing
sciences; language clinic; augmentative and alternative communication.
Recebido em: 2 de setembro de 2016
Aprovado em: 24 de abril de 2017
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
357
1 Introdução
O presente artigo remete à tese de doutorado Organismo e sujeito:
uma diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS,
2010) e tem o objetivo de aprofundar uma discussão que aponte para os
efeitos de um corpo pulsional, apesar dos entraves inerentes à condição
orgânica de sujeitos com paralisia cerebral (PC) que não oralizam.
Tanto na tese quanto no presente trabalho, buscamos enfrentar alguns
mistérios que envolvem não a “paralisia motora” de um organismo,
mas o “movimento” de sujeitos na linguagem e as particularidades de
suas produções no que concerne à linguagem por meio da Comunicação
Suplementar e Alternativa (CSA).1
Uma concisa revisão dos estudos médicos atuais sobre a PC foi
realizada com vistas a situar o leitor quanto à natureza desse distúrbio
de ordem neurológica e, ao mesmo tempo, iluminar a diferença, tanto
teórica, quanto clínica, introduzida na tese relacionada ao tratamento de
pessoas com esse acometimento neurológico, na Clínica de Linguagem.
Para tanto, fomos ao NINDS (2016) − National Institute of Neurological
Disorders and Stroke.
Um diálogo tão necessário quanto o realizado com o campo da
Neurologia foi estabelecido na tese com a área da CSA. Abordamos
brevemente a sua introdução, bem como a consolidação de sua utilização
em nosso país, por meio do emprego dos Símbolos Bliss2 e do PCS
Segundo Tetzchner e Jensen (1997), “a Comunicação Suplementar e Alternativa
envolve o uso de meios não orais para suplementar ou substituir a linguagem falada”
(TETZCHNER; JENSEN, 1997, p.1) e compreende recursos de comunicação face
a face (TETZCHNER; MARTINSEN, 1992) que possibilitam a comunicação para
pessoas que apresentam prejuízos orais e/ou na escrita.
2
No início da década de 70, os Símbolos Bliss aparecem como precursores dos
sistemas gráico-visuais que iguram entre os Sistemas Suplementares e Alternativos
de Comunicação (SSAC). Esse Sistema leva o nome de seu idealizador, Charles Kasiel
Bliss (1897-1985), que o produziu entre 1942 e 1965. Antes do Bliss, os programas
com foco nas necessidades comunicativas de sujeitos com PC que não oralizam partiam
de habilidades de leitura e escrita ou de atividades limitadas baseadas em iguras (Mc
NAUGHTON, 1978). O Bliss foi concebido como um sistema de escrita ideográico
que reúne símbolos básicos que podem ser combinados para gerar novos símbolos.
Para mais informações sobre o Bliss, ver www.blissymbolics.org.
1
358
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
(Picture Communication Symbols),3 sistemas gráico-visuais de maior
repercussão em nível mundial e também no Brasil. Pontuações sobre
sua importância e forma de inclusão na Clínica de Linguagem foram
realizadas, levando-se em conta as concepções de linguagem e de sujeito
assumidas na tese. Trabalhos representativos desse campo, em nível
nacional e internacional, que possam interessar à Clínica de Linguagem
com pacientes com PC, foram apresentados e discutidos naquela pesquisa.
A im de empreender a discussão que nos propusemos a realizar,
partimos de uma iliação teórica ao Interacionismo Brasileiro, tal como
formulado por De Lemos, cuja proposta deine a aquisição de linguagem
como “um processo de subjetivação conigurado por mudanças de
posição da criança numa estrutura em que la langue e a parole do
outro, em seu sentido pleno, estão indissociavelmente relacionados a
um corpo pulsional, i. e., à criança como corpo cuja atividade demanda
interpretação” (DE LEMOS, 2006, p. 28).
A sustentação teórica presente no Interacionismo de De Lemos
pode iluminar discussões sobre a Clínica de Linguagem. As noções
de interpretação e as ideias de interação e de mudança, forjadas no
Interacionismo, abrem questões sobre a Clínica de Linguagem (conforme
proposta pelo Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de
Linguagem, sob a coordenação de Lier-DeVitto e Arantes no LAEL-PUC/
SP), que possibilitam pensar a clínica com sujeitos com PC impedidos
de oralizar.
Para falar em corpo, não o corpo-orgânico da Medicina, fomos a
Freud (1893c) que, partindo dos estudos da anatomia do sistema nervoso
central, contrapõe o sintoma presente na histeria às condições que regem
a sintomatologia na PC e conclui que corpo é expressão irredutível a
organismo. Uma vez introduzida a dimensão do corpo, trouxemos à
discussão a questão das pulsões e do corpo pulsional com base em Freud
(2004) e Lacan (2008).
3
O PCS (Picture Communication Symbols) reúne desenhos lineares, originalmente
desenvolvidos por Johnson em 1981, com o objetivo de serem utilizados como um
SSAC. Trata-se de um conjunto de símbolos basicamente pictográicos, para quem um
nível simples de expressão seja aceitável. O sistema tem um vocabulário limitado, mas
possibilita a inclusão de outros desenhos e fotos (sobre o PCS, ver Fernandes (2001)
e www.clik.com.br). O PCS é o sistema gráico-visual suplementar e alternativo de
comunicação de maior alcance em termos mundiais, tendo sido traduzido para 40
línguas diferentes.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
359
As interlocuções realizadas na tese e o arcabouço teórico que
arregimentamos nos permitiram idealizar uma Clínica de Linguagem
destinada a sujeitos impedidos de oralizar que se distancia de outras
clínicas e técnicas dirigidas a esses pacientes, uma vez que privilegia
suas possibilidades no que tange à linguagem e não seus impedimentos
de ordem neuromotora. Propomos a esses sujeitos que não oralizam
uma clínica viabilizada pela CSA e os sistemas gráico-visuais que se
incluem entre essas possibilidades de comunicação: o PCS e os símbolos
Bliss. Entretanto, afastamo-nos dos planos de implementação da CSA
fundamentados no par ensino-aprendizagem ou daqueles que adotam a
concepção de sujeito psicológico, calcados em pressupostos cognitivistas
ou nos sociointeracionismos. Diferentemente, na clínica que temos
proposto, a implementação da CSA é entendida a partir do Interacionismo
Brasileiro, como possibilidade de abertura de um canal com o outroterapeuta que viabiliza a produção de falas-escritas de sujeitos em suas
singularidades, via materialização do signiicante,4 que é lido e registrado
pelo “outro-terapeuta”.
A possibilidade de um encontro entre falas de terapeuta e de
paciente abre-se para esses sujeitos como resultado do empréstimo do
corpo do terapeuta e, assim, efeitos podem ser apreendidos na linguagem
do paciente.
2 Da “paralisia” orgânica e de seus efeitos
De acordo com o NINDS5 (National Institute of Neurological
Disorders and Stroke), as paralisias cerebrais são causadas por
anormalidades no cérebro, que impedem o controle do movimento e da
postura (NINDS, 2006) e que, na maioria das crianças, já estão presentes
desde antes do nascimento, apesar de poderem ser detectados apenas
após algum tempo de vida, ao longo de seu desenvolvimento neuromotor.
Ressaltamos que o emprego de técnicas de neuroimagem nos dias
atuais contribui tanto para a compreensão da etiologia da PC quanto para
o redirecionamento das pesquisas que inclui, entre outros, o campo da
genética e o da farmacologia (NINDS, 2006). Assinalamos que, mesmo
com o advento de técnicas bastante avançadas, a investigação da PC no
4
5
O termo “signiicante” aqui remete à teoria saussureana.
<www.ninds.nih.gov/disorders/cerebralpalsy/detailcerebralpalsy.htm>.
360
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
campo médico revela, menos do que certezas, mistérios, mesmo quando
é possível poder contar com importantes avanços nesse âmbito, não só
na área do conhecimento como da tecnologia.
De todo modo, no campo da Neurologia, a PC caracteriza-se
como uma entidade nosológica que, com relação à existência detectável,
sinaliza a certeza de uma lesão irreversível que promove um prejuízo
neuromotor permanente.
Para Freud, que cunhou a expressão “Paralisia Cerebral” quando
recebia pacientes com distúrbios neurológicos em sua clínica, outros
problemas acompanhavam frequentemente a PC (retardo mental, problemas
visuais, e convulsões), que teria sido provocada durante o desenvolvimento
do cérebro, ainda na fase intrauterina. Freud observou que “partos difíceis,
em certos casos, são meramente um sintoma de efeitos mais profundos
que inluenciam o desenvolvimento do feto” (NINDS, 2006).
Apesar das observações de Freud, a crença de que complicações
ao nascimento causariam a maior parte dos casos de PC foi, de fato, a
hipótese mais difundida nas pesquisas médicas até muito recentemente.
De acordo com o NINDS (2006), nos anos 1980, cientistas analisaram
mais de 35 mil nascimentos e se surpreenderam ao descobrir que
apenas menos de 10% dos casos poderiam ser relacionados a problemas
no nascimento. Na verdade, não se pode precisar a causa da maioria
das ocorrências de PC. Esses achados recentes puseram em xeque as
teorias médicas acerca das causas da PC e, ao mesmo tempo, levaram
pesquisadores a investigar outros fatores que, acreditam eles, pudessem
estar associados com essa desordem neurológica. Os estudos mais
recentes sobre a PC não diluem mistérios e impasses na determinação
dessa etiologia orgânica.
3 Da possibilidade de “movimento” na linguagem via Sistemas
Suplementares e Alternativos de Comunicação − SSAC
Temos implementado a CSA nos casos em que a oralização
encontra-se impedida ou comprometida devido à lesão neuromotora desde
o início de nossa prática clínica. Esses recursos podem ser introduzidos
para crianças em aquisição da linguagem, bem como para pessoas cuja
fala se encontra comprometida temporária ou permanentemente. A CSA
está presente nas esferas educacionais, clínicas e hospitalares e envolve,
portanto, proissionais de diversas áreas.
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361
A CSA inclui o uso integrado de recursos (sinais manuais e
gráicos) e de estratégias e técnicas diversas que podem ser muito
simples ou envolver o uso de baixa e de alta tecnologia.6 Os sistemas de
sinais gráicos podem incluir desde fotograias e desenhos, até escritas
ortográicas tradicionais ou combinações entre esses diferentes tipos
gráicos. O sistema gráico-visual mais empregado no Brasil é o PCS.
O Bliss é empregado em escala bem menor.
A introdução do Bliss, pioneiro entre os SSAC, foi uma revolução,
não somente porque tornou a linguagem expressiva acessível a pessoas
com diiculdades neuromotores e a não leitores com “boa compreensão
da linguagem falada”, mas também porque inaugurou o uso sistemático
dos sistemas de sinais gráicos em geral, asseguram Tetzchner e Jensen
(1997, p. 7).
Segundo Mizuko (1987), muitos estudos têm considerado o PCS
como o mais transparente dos sistemas. Na literatura sobre a CSA, um
sistema é transparente se a forma, o movimento ou a função do referente
estão representados de maneira que o signiicado do símbolo seja
rapidamente evocado na ausência do referente (MIZUKO, 1987). Como
se vê, no campo dos Sistemas Gráico-Visuais – principalmente quando
se trata do PCS, que se apoia em desenhos−, a questão do signiicado
e da signiicação ica atrelada, sem exceção, à determinação precisa
de uma relação de correspondência entre referente (coisa no mundo)
e representação (sua forma, movimento ou função). Mesmo no Bliss,
esse é o caso, já que a linguagem, concebida como nomenclatura, tem a
função de fornecer símbolos que designem coisas no mundo e possam
representar o pensamento. Dessa forma, sua função não difere daquela
desempenhada por iguras e desenhos. Aliás, Charles K. Bliss pretendeu
mesmo conter a pluralidade dos sentidos e forjar uma língua em que
só houvesse positividade − uma coleção de “símbolos satisfatórios”
− quando da elaboração dos símbolos que levam o seu nome. Bliss
almejava uma língua como nomenclatura (VASCONCELLOS, 1999,
p.65-66; VASCONCELLOS, 2010, p. 28). Seguindo de perto esse
ideal, os símbolos do PCS pretendem ser ainda mais simples ou “mais
transparentes” do que os símbolos Bliss.
6
Para uma descrição crítica desses sistemas de comunicação, remeto o leitor interessado
nessa discussão a Vasconcellos (1999, 2010).
362
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018
Temos proposto outra leitura e outro entendimento sobre a
implementação dos sistemas gráico-visuais de comunicação considerando
os efeitos de sua utilização em nossa clínica e o compromisso que
assumimos com a desnaturalização da linguagem. Do contrário, não
parece haver mesmo porta de saída de uma ideia de linguagem como
representação/comunicação e de sujeito como suporte de conteúdos
perceptuais analíticos inatos (ANDRADE, 2003).
Saussure está no pano de fundo da posição que assumimos para
discutir o que é linguagem. Segundo Saussure (1989), a língua “não
oferece unidades perceptíveis à primeira vista” (SAUSSURE, 1989,
p.124). Desse modo, diferentemente do que almejam os estudiosos
dos SSAC e alegam ser sua qualidade especial, a posição teórica aqui
assumida sustenta que, sendo a língua concebida como um sistema de
relações em que operações precedem as unidades, não há como delimitálas antes do recorte que essas operações promovem.
Saussure propõe que se aborde o problema da delimitação das
unidades pela “noção de valor” (SAUSSURE, 1989, p. 128) e passa, com
isso, da deinição da língua como “sistema de signos” à de língua como
“sistema de valores puros” (SAUSSURE, 1989, p.130). O conceito de
valor é entendido por Saussure como o resultado das relações no sistema da
língua. Portanto, o que determina unidades é o jogo entre os agrupamentos
associativos e os tipos sintagmáticos. Assim, o signiicado de um signo
é efeito da relação que ele estabelece com os demais, em uma cadeia.
Sustentamos na tese (VASCONCELLOS, 2010, p. 29) o que
airmamos em trabalho anterior: “os símbolos dos sistemas gráicovisuais não são instrumentos de representação do mundo e não
podem ser utilizados como tais” (VASCONCELLOS, 1999, p. 69-70;
VASCONCELLOS, 2006, p. 298). Isso signiica dizer que a percepção
não é via de acesso direto seja a símbolos, seja ao mundo: a percepção é,
também, um efeito (ANDRADE, 2003; DE LEMOS, 1992). Os chamados
sistemas gráico-visuais nada mais são do que um amontoado de sinais
que não se articulam como “sistema”. Sua eicácia “resulta do fato de
serem signiicantes, de poderem operar como entidades linguísticas ao
serem submetidos ao trabalho da língua num texto” (VASCONCELLOS,
1999, p. 70-71).
Temos afirmado que esses sistemas de comunicação não
constituem uma língua: seus símbolos são marcas, traços, desenhos, que
exigem interpretação, ou seja, necessitam do concurso da língua para
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363
serem erigidos como signiicantes – eles devem ser movimentados na
fala do outro, na escuta e na escrita dos pacientes para que venham a
signiicar (VASCONCELLOS, 1999, 2006, 2010).
Na tese a que nos remetemos aqui, trouxemos à discussão as
diferentes formas, propostas por autores, de se conceber o papel da
CSA em sujeitos impedidos de se comunicar oralmente de modo eicaz,
tanto na literatura estrangeira quanto na brasileira. Em seguida, izemos
algumas pontuações sobre sua importância e forma de inclusão na
Clínica de Linguagem e assinalamos o distanciamento de outras formas
de introdução desses instrumentos nessa clínica, distanciamento que se
deve às concepções de linguagem e de sujeito assumidas na referida tese.
Naquele trabalho, procuramos tomar distância da perspectiva
orgânica quando se trata de sujeitos com PC e considerar a dimensão do
sujeito que habita esse organismo prejudicado, pois, sob a perspectiva do
organismo, se se fala em “paralisia”, pode-se apreender mobilidade na
linguagem quando se abre a escuta para sujeitos com PC. Afastamo-nos
também da concepção de sujeito psicológico7 presente nas considerações
sobre a clínica fonoaudiológica com sujeitos com PC, mesmo quando se faz
valer da CSA, por assumirmos outra concepção de sujeito e de linguagem.
A noção de sujeito que acolhemos em nosso trabalho harmonizase com pressupostos da Linguística Cientíica que expulsa o sujeito “em
controle da linguagem” do coração da língua. O referencial teórico de
que nos aproximamos tem iliação no Interacionismo Brasileiro, que
relete sobre a articulação criança-língua-fala e assume posição crítica
em relação ao sujeito psicológico do qual se distancia quando introduz a
noção de assujeitamento ou de captura do sujeito por um funcionamento
linguístico-discursivo.
Do ponto de vista da clínica com pacientes com PC, inquietações
provocadas pela certeza da patologia orgânica não anulam ou impedem
as manifestações incontestáveis de um sujeito, certeza que tem-nos
acompanhado desde o início de nosso atendimento clínico. Temos
atestado que os olhares e gestos desses pacientes, mais do que movimentos
incoordenados, dizem de uma presença viva que convoca o outro: um
corpo como gesto, como presença na linguagem − um corpo atravessado
pelo linguístico (VASCONCELLOS, 1999, 2006).
7
Referimo-nos aqui às teorizações de cunho interacionista e sociointeracionista e às
teorias discursivas baseadas na intersubjetividade.
364
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Entendemos que o fato de não oralizar a fala, não exclui o sujeito
com PC de uma relação com a linguagem. Além de ouvir, esses sujeitos
escutam (ANDRADE, 2003). Desse modo, indicamos que a barreira
motora que prejudica o organismo não impede que se realize nele uma
“apreensão qualitativa” do som, que implica “a esfera de onde se ouve
falar” (DE LEMOS, 1995, p. 244; PARRET, 1993) – situação que torna
possível “passar do ouvir para o escutar e para o escutar-se” (DE LEMOS,
1995, p. 244).
A im de situarmos nosso trabalho em relação a outras pesquisas
bastante atuais que envolvem a clínica fonoaudiológica com sujeitos com
PC, apresentamos aqui, muito brevemente, alguns trabalhos.
Cesa, Ramos-Souza e Kessler (2010a) analisaram, por meio
de entrevistas, as percepções de mães de crianças com PC que não
oralizam sobre o uso das pranchas de comunicação, numa perspectiva
Winnicottiana, e os efeitos de uma clínica concebida, com base numa
orientação Bakthiniana, e concluíram que, nos casos em que houve o
debate sobre o uso familiar da prancha, o processo de intersubjetividade
do sujeito sem oralidade foi favorecido. Os pesquisadores propõem uma
“clínica da subjetividade” em que se aborde a relação mãe-ilho em
conjunto com questões de linguagem.
Em outra pesquisa, Cesa, Ramos-Souza e Kessler (2010b)
buscaram propor diretrizes na intervenção e na pesquisa na área da
CSA por meio de artigos de periódicos indexados em bases de dados
eletrônicas internacionais, abrangendo diferentes tipos de trabalhos que
incluem sujeitos com PC ou com problemas neurológicos não deinidos
e/ou com retardo mental. Os artigos foram agrupados em categorias e
foi elaborada uma síntese dos aspectos considerados relevantes para
uma adequada implementação dos recursos de CSA. Concluiu-se que a
individualização das práticas e o processo de inclusão da família e demais
parceiros conversacionais são fundamentais ao sucesso na intervenção,
generalização e manutenção de uso da prancha de CSA em contextos
formais e informais.
Cesa, Ramos-Souza e Flores (2009) propuseram uma análise
do funcionamento linguístico da CSA à luz da teoria enunciativa
de Bakthin, utilizando-se de exemplos de situações clínicas, e
confrontaram sua proposta com trabalhos ancorados no interacionismo
e no sociointeracionismo. Consideraram que sua relexão possibilitou
observar que conceitos como o do caráter polissêmico do signo e de
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365
intersubjetividade no funcionamento linguístico podem ser fundamentais
para acessar as possibilidades de criatividade do usuário ao utilizar
a prancha de CSA. Concluíram que o estudo da linguagem nessa
perspectiva pode resultar em uma melhor abordagem clínica desses
sujeitos. Também enfatizaram a importância da escuta do clínico e dos
interlocutores a esses sujeitos. Consideraram que as teorias interacionista
e sociointeracionista parecem insuicientes para abordar o aspecto da
articulação da forma linguística com o uso entre interlocutores.
Passos (2007) abordou a importância da linguagem nas
intervenções clínicas com sujeitos com PC pelas perspectivas Vygotskiana
e Bakhtiniana com vistas a redimensionar a atuação com a CSA. Foram
analisados recortes clínicos de episódios interativos entre uma criança
com PC e a pesquisadora, que referiu que os dados revelaram a atividade
interpretativa do outro no contexto discursivo como aspecto fundamental
para a inserção do sujeito na linguagem por meio da CSA, evidenciando
a sua função mediadora e favorecedora da subjetividade e possibilitando a
abertura para a escuta do momento e para a imprevisibilidade da linguagem.
Brancalioni et al. (2011) estudaram a evolução linguística de um
sujeito com síndrome não esclarecida, com prejuízos motores e ausência
de fala, por meio da introdução da prancha de CSA em uma perspectiva
dialógica Bakthiniana, buscando uma hipótese de funcionamento da
linguagem. As pesquisadoras referiram que, tanto na família quanto
na escola, foi possível perceber boa incorporação do uso desse recurso
considerando tal perspectiva teórica, que resultou na possibilidade
de circulação de sentidos múltiplos associados aos sinais e em boa
generalização de uso do recurso, o que permitiu avanços linguísticos no
caso estudado.
Nos trabalhos citados anteriormente, destaca-se o privilégio
conferido à dialogia e à intersubjetividade, pontos de partida diversos
dos adotados em nossa proposta de iliação, a saber: a língua em seu
funcionamento como um terceiro na relação entre a fala e o falante, em
que o outro é lugar de funcionamento da língua constituída (Outro).
Diferentemente dos trabalhos anteriores, em uma teorização que
inclui o sujeito da psicanálise, porém diversa da que temos proposto,
Castellano e Freire (2014) abordaram a clínica fonoaudiológica de
portadores de PC apoiados na psicanálise lacaniana, no intuito de abrir
a escuta do corpo falante dando voz a esse corpo via interpretação de
formas alternativas de fala. Propuseram-se a estabelecer um diagnóstico
366
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diferencial de uma adolescente com base nos dados do diagnóstico
médico, entrevistas e fragmentos de sessões clínicas, nas quais foi
utilizada a CSA. Esses dados foram analisados com base no Modelo de
Organização dos Sintomas de linguagem de Gouvêa, Freire e Dunker
(2011), visando à indicação da direção do tratamento. Segundo as
autoras, a avaliação fonoaudiológica da adolescente indicou que os seus
sintomas operaram sobre o estrato da escrita e sobre o estrato da língua,
sustentando a hipótese de que o problema estrutural estaria na ordem da
fala e sugerindo que a terapêutica fonoaudiológica privilegiasse a sanção
como permissividade, como posição diante da lei, e a sanção sobre o
sujeito, como operação de transliteração. A análise das transcrições das
situações levou a considerar que o diário e a prancha de CSA podem se
constituir como meios de sancionar a fala sintomática de portadores de
PC ao passarem de um sistema de escrita de traços para um sistema de
escrita alternativo, que possa ser interpretado pelo outro.
A pesquisa de Castellano e Freire (2014), descrita anteriormente,
toma um rumo diverso daquele que temos proposto como ponto de
partida teórico, pois, apesar de calcada na psicanálise lacaniana, adota
uma terapêutica clínica distinta da que temos desenvolvido no Grupo
de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, atualmente
liderado por Lier-DeVitto e Arantes.
4 Da ancoragem teórica
A questão que nos inquietava em nossa prática clínica e que
enunciamos como argumento clínico encontrou espaço de discussão na
Clínica de Linguagem, no Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e
Clínica de Linguagem liderado por Lier-DeVitto e Arantes,8 que tem laço
de iliação com o Interacionismo Brasileiro,9 proposto por De Lemos,
8
O Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem tem sido liderado
por Lier-DeVitto desde 2000 e, mais recentemente também, por Arantes, vinculado ao
Departamento de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
9
O Interacionismo Brasileiro em Aquisição de Linguagem de De Lemos iniciou-se
como vertente teórica na Unicamp no inal da década de 1970 e passou por diferentes
fases. Dele tomaram parte, em seu percurso de doutorado, Ester Scarpa, Maria Cecília
Perroni, Rosa Attié Figueira e Maria Fausta Pereira de Castro, que vem liderando o
Projeto desde o início do século atual.
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367
vertente teórica iniciada na Unicamp, no inal da década de 1970. No
Interacionismo de De Lemos, fala-se em “captura” do sujeito pela
linguagem (e não de “apropriação” da linguagem pela criança). Pode-se
entender, assim, que o outro da criança seja visto como outro-falante:
como lugar de funcionamento da língua constituída (DE LEMOS, 1992)
e não como outro-social (LIER-DEVITTO, 1996, 1998).
O fato de suster a impossibilidade de homogeneização da fala
da criança e de projetar sobre ela o saber da Linguística possibilitou
ao Interacionismo sustentar a sua “indeterminação categorial” (DE
LEMOS, 1982) e irmar posição contra a Psicologia do Desenvolvimento
(CASTRO, 1992). Se essas falas de crianças são indeterminadas do ponto
de vista categorial, elas não o são do ponto de vista dialógico. Segundo
De Lemos (1992), elas são compostas de fragmentos da fala do outro
que são movimentados, articulados pelas operações internas da língua.
Assinalamos que essas discussões foram e são da maior importância para
o trabalho que temos desenvolvido.
No Interacionismo, o diálogo foi assumido como unidade de
análise, e o erro, como dado de eleição. O ponto de apoio da teoria é o
constante refazer do enigma na fala da criança, tomando-a na “resistência
que ela impõe ao investigador que dela pretenda fazer uma simples
empiria a ser descrita pela Linguística” (DE LEMOS, 2002, p. 41).
A partir de 1992, as mudanças na fala da criança são assumidas como
estruturais. A teoria é redimensionada pela necessidade da articulação
entre língua-fala-falante. Acrescenta-se a diiculdade de relacionar
processos de subjetivação e processos de objetivação da linguagem. A
“subjetividade” implicada no trabalho de De Lemos não é outra senão
aquela introduzida pela Psicanálise. A autora, de fato, desloca a concepção
de criança e de mudança vigente no campo da Aquisição da Linguagem e
sustenta que a criança está numa estrutura e é concebida como vir-a-ser,
falada pelo outro-falante (instância da língua constituída) e, portanto,
pelo Outro. Essa “criança falada” é entendida como corpo pulsional10 e
não como organismo ou sujeito psicológico.
Desdobramentos importantes do Interacionismo explicitados
anteriormente têm ocorrido no âmbito das discussões sobre as
patologias e a Clínica de Linguagem no Grupo de Pesquisa Aquisição,
Patologias e Clínica de Linguagem. Conforme Lier-DeVitto (2006),
10
Conceito que será abordado no tópico a seguir.
368
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categorias ou operações nodais do Interacionismo proposto por De
Lemos foram mobilizadas para analisar questões suscitadas por “falas
sintomáticas” e pela clínica que as acolhe. Trata-se de pensá-las como
“diferença”, portanto. Assim, interação, mudança, erro, heterogeneidade e
interpretação deveriam, diz a pesquisadora, adquirir tonalidades próprias
e bem especíicas na Clínica de Linguagem.
Há, portanto, que se empreender uma aproximação ao
Interacionismo, levando-se em conta que “outro”, “erro” e “interação”
devem ganhar contornos particulares: outro = terapeuta; erro = sintoma,
interação = relação clínica (LIER-DEVITTO, 2006). Lier-DeVitto (2006)
demarca, assim, o que designa como uma aproximação ao Interacionismo,
que deve ser caracterizada como um “diálogo teórico” (LIER-DEVITTO,
2006, p.184). Para sustentar uma posição frente ao acontecimento na
Clínica de Linguagem é preciso ter uma escuta instrumentalizada por
questões teóricas. Pode-se dizer que a diferença e as conquistas do
Grupo de Pesquisa estão relacionadas ao compromisso assumido com
a teorização sobre as patologias de linguagem e com a heterogeneidade
das manifestações sintomáticas.
Interessou-nos, no âmbito dessas discussões, enfocar a Clínica de
Linguagem com sujeitos com PC e discutir, ao lado das heterogeneidades/
particularidades da linguagem desses sujeitos, as heterogeneidades/
particularidades da clínica dirigida a pacientes com PC. O que procuramos
foi aprofundar a questão de que, apesar de todos os entraves que dizem
respeito a uma condição orgânica, quando estão em jogo pacientes com
PC, há ali um corpo pulsional que torna possível pensar em presençassujeito particulares na linguagem.
Lier-DeVitto (2003, p.238) faz menção à PC e airma que há
sempre um excesso que ultrapassa a lesão, mesmo quando ela impede o
movimento de um corpo. Trata-se de “excesso” que transborda, inclusive,
do silêncio verbal de um sujeito, em expressão mínima: num olhar, num
pequeno gesto, num choro, num sorriso. Esses “excessos” dizem de um
corpo falado/investido que investe na parcela que resta de “vivo”, de
“não paralisado” em seu organismo prejudicado (VASCONCELLOS,
1999). Esse corpo-fala desprendido, que não se confunde com o corpo
orgânico, insiste como linguagem, signiica e demanda interpretação.
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369
5 Da distinção organismo/corpo pulsional
“O que é corpo?” – é pergunta que importa para tecer
considerações sobre a Clínica de Linguagem com sujeitos com PC. E,
para tratar dessa questão com outro olhar que não o da Medicina e da
doença, recorremos a Freud mais uma vez. As condições da descoberta
do inconsciente e a ‘invenção’ da Psicanálise estão em relação direta com
os estudos sobre a histeria, que faz aparecer, para ele, um corpo que não
se confunde com o corpo orgânico.
As paralisias orgânicas foram pesquisadas por Freud entre 1885
e 1886, num estudo comparativo com as paralisias histéricas, com a
esperança de que esse estudo pudesse revelar algumas características
gerais da neurose (FREUD, 1893c). Em sua pesquisa, Freud destacou
algumas características das paralisias orgânicas, que ele considerava
serem de aceitação geral, e airmou que a neurologia clínica reconhece
dois tipos de paralisia motora: paralisia periférico-medular ou (bulbar) e
PC (FREUD, 1983c). Ao investigar a anatomia do sistema nervoso, Freud
pôde discernir diferenças entre esses dois grupos. Segundo Freud (1893c),
diferentemente das Paralisias Cerebrais, a lesão, nas Paralisias Histéricas,
deve ser vista como completamente independente da anatomia do sistema
nervoso, pois as paralisias manifestas na Histeria comportam-se como
se a anatomia não existisse ou como se não tivessem conhecimento
desta (FREUD, 1893c). Em se tratando de Histeria, Freud mostra que há
modiicação funcional sem lesão orgânica concomitante. A lição deixada,
portanto, pelas Paralisias Histéricas é a de que nelas há “outra anatomia”,
diferente daquela que orienta a prática médica.
Assim, desde Freud, corpo é expressão que não pode ser reduzida
a organismo vivo. Freud propõe a noção de “conversão histérica”, que
pode ser tomada como representante primeira da problematização do
estatuto do corpo na teoria e na Clínica Psicanalítica. Nota-se que, na
Histeria, o corpo é o lugar da manifestação de um sintoma psíquico que,
para Freud, é “sexual”. Lacan articulará, depois, corpo e linguagem. O
corpo do bebê é superfície em que incidirá a linguagem, pela via do outro
materno – trata-se aqui do corpo pulsional.
A expressão “corpo pulsional” está no pano de fundo de nosso
trabalho, e essa noção o movimenta. “Corpo pulsional” é expressão que
indica e distingue o estatuto de um corpo atravessado pela linguagem
(LEITE, 2003, p. 81). Diz a autora que “nada é mais natural para aqueles
que trabalham com o texto freudiano do que implicar o conceito de pulsão
370
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para abordar as articulações entre corpo, linguagem, afeto e sentido”
(LEITE, 2003, p. 81-82). Freud (2004, p. 148) entende ser a pulsão
um conceito–limite entre o psíquico e o somático, como
o representante psíquico dos estímulos que provêm
do interior do corpo e alcançam a psique, como uma
medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico em
consequência de sua relação com o corpo.
Lacan (2008), com base em Freud, dirá que, “em relação à
instância da sexualidade, [os sujeitos] só têm a ver com aquilo que passa
da sexualidade para as redes de constituição subjetiva, para as redes
do signiicante” (LACAN, 2008, p. 174), o que nos remete ao fato de
que a sexualidade está relacionada com as incidências signiicativas e
signiicantes do outro sobre a superfície do corpo do bebê: “graças à
introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece” (LACAN, 2008,
p.179). Vemos que, com Lacan, entra em jogo uma explicação que
envolve o outro e a linguagem. Trata-se de uma relação objetal em que
ambos (bebê e outro) são, ao mesmo tempo, sujeito e objeto.
Assim, tornar-se mãe é uma condição que se consolida na relação
com o bebê, que, por sua vez, humaniza-se nessa relação. A linguagem
é “alteridade radical” em relação ao ser vivo e à ordem simbólica.
Portanto, já existe antes do bebê, que, sem ela, não pode viver. O outro,
que signiica a criança, é também heterogêneo em relação a ela, mas a
criança se serve de seu corpo: provoca interpretação e coloca o outro
frente a uma incógnita: quem é esse ser? A mãe recalca esse mistério e
faz da criança o objeto do seu desejo: ela é quem encarna o sujeito que
ica entre o orgânico e o psíquico. É o jogo do signiicante que constitui
o sujeito e destitui o ser (do ponto de vista do organismo). Dessa forma,
a linguagem coloca o bebê numa cadeia: só assim é possível fazer sua
história (VASCONCELLOS, 2010, p.72-74).
O investimento da mãe ou do agente materno no corpo do ilho
é decisivo, como procuramos mostrar. No caso de um bebê que nasce
e de pronto é encaminhado para cuidados especiais, necessariamente,
efeitos serão produzidos na mãe. O “real” incide no sujeito com PC
antes mesmo de que se possa falar em “sujeito”. Pelas exigências e
necessidades incontornáveis de seu organismo, estabelece com o outro
uma relação particular. Essa relação implica, naqueles casos em que a
gravidade motora é signiicativa, uma dependência que não determina,
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371
contudo, uma atitude homogênea por parte do outro. O imaginário do
outro (pais, familiares, cuidadores e proissionais) simboliza o corpo
dessa criança de maneiras distintas: como um sujeito que pode/deve ser
institucionalizado, marginalizado, infantilizado, doente e até como uma
pessoa com uma vida a ser vivida.
Fato é que a heterogeneidade imprevisível dos efeitos da “paralisia
motora permanente” sobre pessoas com PC não permite que se obscureça
o fato de que elas são “seres de linguagem” (VASCONCELLOS, 1999,
2006). De outro lado, não se pode ignorar, como indicamos anteriormente,
os efeitos reais dessa condição neurológica sobre o sujeito e o outro.
Deve-se perguntar, então, sobre sua incidência – “onde é que ela incide? ”
– e sobre os limites que ela determina: “para quem esse limite se impõe?”.
É certo que, além de afetar o sujeito de formas diversas, a restrição motora
e seus efeitos afetam também pais e proissionais. Interessou-nos, na tese,
tentar apreender como é que se dão os efeitos entre esse sujeito e seu
terapeuta em uma clínica que tem contornos singulares por privilegiar a
linguagem e o sujeito em sua complexidade e heterogeneidade.
6 Material e método
Procuramos, na tese, dar visibilidade à pluralidade vivida na
clínica e dizer de seus efeitos e da heterogeneidade desses efeitos na
relação de seis pacientes com a linguagem.
Os sujeitos da pesquisa foram selecionados por se apresentarem
de maneiras diversas na linguagem, por meio de uma proposta clínica
que buscou implementar a CSA em seu atendimento clínico. Os seis
sujeitos selecionados apresentam quadros de PC quadriplégica grave,
sem a possibilidade de marcha e impedidos de oralizar, com idades que
variam entre 6 e 19 anos, tendo sido, no período em que os dados foram
colhidos, introduzidos ou reintroduzidos (no caso de S. e de C.)12 à CSA.
11
11
Essa pluralidade faz alusão à diversidade de maneiras de estar na linguagem por meio
da introdução aos SSAC e da interpretação do clínico às produções dos pacientes, o que
produz efeitos de prazer, num encontro (ainda que rudimentar) com a fala oralizada,
no caso de F. e de J., ou de angústia, que resulta de impasses e diiculdades de chegar
a um dizer em B.
12
Nos casos de S. e de C., uma reintrodução ao Bliss foi realizada, uma vez que esses
pacientes interromperam o trabalho de implementação do Bliss iniciado em ocasião
anterior, em outras situações clínicas e com outros proissionais.
372
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Os dados da pesquisa são provenientes de situações dialógicas
e monológicas colhidas na clínica com esses pacientes e transcritas à
medida que se davam, pois a gravação de sons não se aplica nesses casos
− à exceção de um fragmento de J., após quatro anos de terapia, em que
uma fala passou a ser notada e foi “ganhando corpo”.
À medida que a avaliação e o início do atendimento se deram,
esses pacientes foram introduzidos ao PCS ou ao Bliss, de acordo
com os efeitos que a apresentação a eles desses diferentes conjuntos
de símbolos pôde ser apreendida pela terapeuta. Particularidades com
relação à possibilidade de seleção e indicação dos símbolos, bem como
ao tamanho de apresentação deles, foram levados em conta de acordo
com a singularidade de cada caso. Discutimos, no presente trabalho,
dados de sessões clínicas de três desses sujeitos: F. e J., introduzidos ao
PCS, e B., introduzido ao Bliss, e abordamos os efeitos produzidos entre
“falas” de paciente e terapeuta nesses casos.
A questão dos efeitos nos casos de S., C. e G., que remetem a
singularidades da escuta desses pacientes e da transferência, foi tratada
em Vasconcellos (2013).
7 Resultados e discussão: da heterogeneidade e da pluralidade dos
efeitos na clínica
Com base na discussão de seis casos atendidos, abordamos
alguns efeitos da relação de sujeitos com PC com a linguagem, a im de
dar visibilidade à pluralidade desses efeitos, vivida por eles na clínica.
Situações dialógicas e monológicas foram registradas e analisadas,
e as particularidades que essa clínica entretém com pais e pacientes
em situações de entrevistas e de atendimento foram discutidas.13 A
heterogeneidade dos efeitos desses atendimentos, apreendida na discussão
dos dados clínicos da tese, suscitaram pontuações sobre a escuta, sobre
a transferência e sobre o prazer ou conlito que acompanham a produção
de vocalizações e até de fala, no caso de alguns desses pacientes. Nessa
clínica, o corpo falado aparece como falante na heterogeneidade de suas
produções com símbolos, na escrita alfabética e até mesmo numa fala
13
Esclarecemos que o Comitê de Ética da PUC-SP aprovou a documentação relativa
aos consentimentos livres e esclarecidos dos sujeitos implicados na presente pesquisa.
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que irrompe, surpreendendo esses pacientes (VASCONCELLOS, 2010,
2013).
Dos efeitos particulares que pudemos apreender nos atendimentos
com nossos pacientes sujeitos da tese, trazemos, primeiramente, neste
artigo, a ocorrência de vocalizações ou de fragmentos de fala que
irrompem de forma inesperada nos casos de F. e de J. e surpreendem o
próprio paciente, como em F. Em seguida, focalizamos a angústia que
acompanha os impasses e a diiculdade de B. chegar a um dizer que possa
ser interpretado pela terapeuta.
Ressaltamos aqui que esses fragmentos de fala produzidos por
alguns pacientes são efeitos de uma clínica em que o investimento na
linguagem do paciente é central, diferentemente do que ocorre em um
atendimento guiado por técnicas isioterápicas que busca como resultado
único aquilo que o paciente não pode mesmo fazer: oralizar, concebendo,
portanto, a oralização como decorrência natural de conquistas motoras.
Ora, uma vez que, de maneira diferente, focaliza-se a linguagem,
oralizações podem até surpreender o próprio paciente que as produz, já
que o foco não está em “fazer falar” por meio de manobras e técnicas sobre
o aparato motor oral. Essas produções orais que pudemos surpreender
em dois dos sujeitos de nossa pesquisa, apesar de conferirem prazer
aos nossos sujeitos, não chegam a ser fala e não dispensam, portanto,
o emprego dos sistemas gráico-visuais de comunicação ou da escrita
alfabética, uma vez que esses fragmentos só puderam ser apreendidos
e interpretados em algumas situações dialógicas naquele texto clínico
especíico.
Trazemos aqui o caso de F.14 que, aos sete anos, em diálogo com
a terapeuta, responde à pergunta “O que você fez na feira?”.
14
F. apresenta uma PC quadriplégica do tipo distônica. Essa criança foi introduzida a
símbolos do PCS e, com o dedo indicador da mão direita, seleciona-os em uma prancha,
acoplada à sua cadeira de rodas.
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Segmento 1 − F. [7 anos]
(As verbalizações aparecem sublinhadas. Em itálico, estão os símbolos
do PCS).
[...]
T. O que você fez na feira?
F. Eu
comer
pastel iéu
F. aponta os símbolos eu, comer e pastel, nessa sequência, em sua
prancha. Essa indicação vem acompanhada do fragmento sonoro “iéu”.
Com surpresa, a terapeuta diz: “F., você falou pastel!” . F., aparentemente
incrédulo, olha ao redor, como que procurando localizar a fonte daquela
produção (que a terapeuta disse ser dele).
Em situação clínica anterior a esta, a terapeuta lê parte do texto
do inal de semana de F. escrito por sua mãe. Em itálico aparecem
as palavras correspondentes aos símbolos do PCS e, sublinhadas, as
produções orais de F.
Segmento 2 − F. [6 anos e 7meses]
(1) T. Aí, aí, ó ... no domingo, a mamãe contou que vocês foram
conhecer um shopping novo. Vocês foram no shopping?
(2) F. É poi
(3) T. Quem foi? Foi todo mundo?
(4) F. (aponta para si, levando a mão com o indicador estendido em
direção ao peito).
(5) T. Você... Só você?
(6) F. mãe
pai
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(7) T. A mamãe; o papai também? Todo mundo?
(8) F. irmão (aponta o símbolo e mostra a língua, ao mesmo tempo)
(9) T. O M.? O M. que mostra a língua? (risos). O M. continua
malcriado, mostrando a língua? É?
(10) F. É
(11) T. Com quem o M. briga bastante, hein?
(12) F. irmã
(13) T. Mais com a L.?
(14) F. Uhm...
(15) T. E com você?
(16) F. Não eu
(17) T. Não com você, mais com a L.
(18) F. (grita como que dramatizando a briga) bábé ... mãe
(19) T. Ele briga, ele mostra a língua prá mãe também?
(20) F. bábábábábábábábá (gritando)
(21) T. Tá bom, péra lá!
(22) F. Abá
(23) T. Deixa eu acabá!
(24) F. Abá
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No segmento 2 acima, F. responde por meio da indicação de
símbolos em sua prancha, mas também com fragmentos de palavras e
de sons que são especulares, como em: “É poi”→ É, foi ou “Abá” →
Acabá. Note-se a pergunta da terapeuta: (1) “vocês foram ao shopping?”
e a resposta do menino: (2) “É poi”. Da mesma forma, à questão da
terapeuta: (15) “E com você?”, F. responde: (16) “Não eu”. Observe-se
a não coincidência dessas produções de F. com a fala da terapeuta: há,
entre (1) e (2) alteração de terceira pessoa do plural (foram) para terceira
do singular (“poi”) e entre (15) e (16), inversão pronominal (não eu).
Esses enunciados de F., que destacamos, iluminam a presença de um
“eu” no dizer, que pode ser apreendido na entonação e nas manifestações
corporais. Não se pode, porém, na maioria dos sons produzidos, apreender
palavras do português. Mesmo assim, as respostas de F. não são meras
emissões sonoras sem relação com a fala do outro: a criança espera sua
vez, ou seja, reconhece o outro a quem endereça sua fala – ela “respeita”
a cadência dos turnos do diálogo.
Em (18), (20), (22) e (24), as produções de F. estancam num gesto
motor em torno da oclusiva /b/, que dão a elas um aspecto de “lalação”15 −
lembram o balbucio da criança que ainda não fala. Se no caso de crianças
que ainda não falam a lalação é “som separado do sentido”, mas não
separado do estado de contentamento (SOLER, 2007, p. 27), no de F.,
o “contentamento” é inequívoco, mas sua “lalação” não está desligada
de um sentido: está vinculada e emana de um corpo prejudicado que
viveu uma cena, mas não pode dizê-la. Segundo Soler (2007), a lalação
evoca “o escutado da língua falada, antes da linguagem” (SOLER, 2007,
p. 27). Não se trata, no segmento acima, de um “antes da linguagem”,
mas de um obstáculo à materialização da fala que está na escuta e que
é impedida de aparecer pelo “real” da PC que F. apresenta, “real” que
impõe limites à expressão de um sujeito por meio da fala.
F. está numa espécie de “água da linguagem” (de acordo com
Lacan, em Mais, ainda (1972-1973), quando faz referência ao luido
continuum do escutado, de onde unidades acabarão se isolando. Nos
segmentos apresentados, unidades irrompem, mas elas não tomam corpo,
não caminham, não se expandem, não se articulam. É como se la langue
se instalasse sem promessa de futuro para uma fala que se estenda, que
No texto original, Soler (2010, p. 27), “lalação” é “banho de linguagem” (bain de
langage).
15
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seja “comunicativa”. É importante, ainda, não esquecer o efeito de prazer
e de surpresa proporcionados ao sujeito por esses pedaços de fala que
ele pode realizar (sem se empenhar).
Lacan (1972-1973, p. 62), lembra que uma fala sustenta o gozo
daquele que fala, seu gozo do blábláblá, quer dizer, da fala que afeta
o corpo que fala. No caso de pacientes com obstáculo real para sua
manifestação, pode-se avaliar o efeito de surpresa que vem conjugado
com o de prazer. O sujeito é surpreendido por fragmentos sonoros que
partem dele: falas (signiicantes e sentidos) de que está “impregnado”
(LACAN, 1972-1973, p. 50).16 Trata-se de expressão de Lacan, que
acentua a pertinência desse termo porque ele exclui a maestria, a
apropriação ativa da linguagem pelo sujeito. No caso de F., pequenas
verbalizações vêm à tona e persistem croniicadas, seja como pedaços
reconhecíveis de palavras e de sequências, seja como uma espécie de
lalação. Parece-nos que há, nessa insistência, algo da ordem de um efeito
no próprio sujeito. Efeito que parece vir da gratiicação de “falar” mesmo
que sua fala não vá muito além de uma reduplicação de fragmentos
sonoros. Não é de se admirar, contudo, que esses efeitos gratiicantes
impulsionem F. a prosseguir.
Freud (1905), ao abordar os chistes, airma que deles advém um
prazer que remonta à economia psíquica. Nas crianças, sugere Freud,
o jogo com palavras poderia ser assumido como “chistes inocentes”
(FREUD, 1905, p. 63). Não há jogo de palavras nas produções de F: sua
fala é “endurecida”, mas suas produções inesperadas partilham com os
chistes essa característica e, assim como com eles, o sujeito obtém uma
pequena produção de prazer da simples atividade de nosso aparato mental,
desimpedida de qualquer necessidade (FREUD, 1905, p. 84). Pensamos
que bastaria substituir, em Freud (1905), a ideia de “aparato mental” por
“aparato de linguagem” para nos aproximarmos das ocorrências relatadas
anteriormente.
Sobre a impregnação do sujeito pela linguagem: “a linguagem [...] é tal que, a todo
instante, como vocês veem, nada posso fazer senão tornar a escorregar para dentro
desse mundo, desse suposto de uma substância impregnada da função do ser” (LACAN,
1972-1973, p. 50).
16
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Abordamos, em seguida, um segmento de J.17 Os dados de J.
foram os únicos que puderam ser gravados entre os dos sujeitos da tese.
J. chegou à clínica com aproximadamente 10 anos. Depois de quatro anos
de atendimento, passou a produzir uma fala. J. apontava os símbolos na
prancha e podia realizar gestos articulatórios. Assim como no caso de
F., temos um sujeito que pode apontar e produzir fragmentos de fala.
Em itálico estão grafadas as palavras que correspondem aos símbolos
do PCS e, grifadas, as produções orais de J., que aponta os símbolos em
sua prancha com o indicador da mão direita.
Segmento 3 − J. [19anos]
[...]
(1) T. Que mais que cê quer contar?
(2) J. avó M.
(3) T. A vovó?
(4) J. férias
(5) T. Nas férias?
(6) J. éa
(7) T. Ãhn...
(8) J. viajá (fala e indica o símbolo)
17
J. apresenta um quadro de PC quadriplégica atetóide. Realiza indicação direta de
símbolos do PCS em sua prancha acoplada à cadeira de rodas adaptada.
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(9) T. Viajar? Cê vai viajar nas férias lá prá tua vó? .........
(10) J. (SI)18
(11) J. ou...
(12) T. E onde é que a tua vó mora mesmo? É no Nordeste, né? ...
J. (SI) T. Que lugar que é?....... J. (SI)
(13) T. Aqui? Ãhn... eu lembro que é no Nordeste, me conta...
(14) J. PIAUÍ (palavra previamente escrita na prancha)
(15) T. Ah, no Piauí...
(16) J. pi
(17) T. Quê que cê vai comer lá de bom? Ai, aqui tem umas coisas
boas que tem lá ó ... vai comer...Quê que tá escrito aqui, sabe?
Cuscuz (palavra previamente escrita na prancha).
(18) J. cu...cuz
(19) T. (ri) Gostoso, né?... Deitar na redi...
(20) J. êdi (e aponta o símbolo rede)
(21) T. Ãnh?
(22) J. na êdi
(23) T. Deitar na rede... (risos)
(24) J. i êdi
(25) T. Tá bom J.
Observe-se que, no segmento anterior, de J., diferentemente do
que ocorre no segmento 2, de F., não há, propriamente, uma alternância
dialógica: os fragmentos de fala de J. são incorporados, sem dúvida, dos
enunciados da terapeuta, mas num tempo diferente daquele de F. Há uma
espécie de precipitação, de pressa, nas produções de J. – no momento da
transcrição desse material a impressão que se tinha era de que as falas de
T. e de J. eram concomitantes. As incorporações da fala da terapeuta por
J. sugerem que ela como que saboreia sua possibilidade de oralização.
18
SI é abreviação para segmento ininteligível.
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É que, assim como no caso de F., há, segundo Lacan (1972-1973), um
gozo que vem associado a essa possibilidade de oralizar também nessa
sequência de J.
A seguir, trazemos à discussão um segmento de B.19, que chega
à clínica com aproximadamente 13 anos de idade, sendo essa a primeira
vez que frequenta uma escola. Na clínica, B. é introduzido tanto à escrita
alfabética quanto ao Bliss. Menos do que usufruir da parcela de prazer que
poderia retirar de uma produção de pedaços de fala, B., à diferença de F.
e de J., deixa aparecer uma “quota de desprazer”, que nos pareceu emanar
do impasse dialógico e da impossibilidade de chegar aos signiicantes
responsáveis pelo sentido do que ele queria dizer. O impasse, que veremos
no segmento abaixo, remete a conlito e angústia: o que B. produz e escuta
não pode por ele ser reformulado. B. não pode, igualmente, fazer reparos
às tentativas da terapeuta de apreender e dizer a cadeia que ele espera
que seja materializada. As palavras correspondentes ao Bliss aparecem
em itálico; sublinhada, está grafada a fala de B., e, em maiúsculas, as
letras que B. indica por meio do olhar.
Segmento 4 − B. [17 anos]
(1) B. EU sentimento
(2) T. Sinto?
(3) B. É
(4) T. Uhm... eu sinto...
(5) B. muito co
(6) T. Com?
(7) B. É
(8) T. Uhm...
19
B. apresenta um quadro de PC quadriplégica do tipo espástico. Comunica-se
indicando símbolos Bliss, números e alfabeto em sua prancha (acoplada à cadeira de
rodas adaptada) por meio do olhar, que guia a terapeuta.
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(9) B. COFAESI (Erguendo a cabeça)
(10) T. Cofaési (lendo a escrita de B.)
(11) B. (Repete o mesmo movimento de corpo e de olhar na direção
de T.).
(12) T. Eu sinto muito com ...cofaési. Esse “com” é separado?
(13) B. É
(14) T. Continua, depois a gente lê tudo.
[...]
(15) T. Co, fa, é... (Volta ao escrito acima, silabando)
(16) B. Nã (olha para cima)
(17) T. Você olhou prá cima... morte? co... fa...ê... confusão?
(18) B. Faecimem...
(19) T. Falecimento! Com o falecimento...
(20) B. DI EOA
De maneira geral, podemos dizer, com base nesse segmento,
que B. sustenta o texto: ele diz “é” e “não” aos enunciados oferecidos
pela terapeuta. Contudo, quando procura tomar a palavra, segmentos ou
sequências breves precipitam-se em sua voz, criando uma zona de não
sentido – uma ocorrência estranha ao português: COFAESI. Note-se
que, a partir de (9), instala-se um desencontro: do lado da terapeuta, o
desacordo vem pela leitura da “não palavra” escrita por B. Apenas quando
o bloco “cofaesi” é dissolvido e fragmentado em elementos que ganham
nova sonoridade ao serem lidos isoladamente: “co” leva a confusão e “é”
(que estava na leitura de T. em cofaési) se transforma em “ê”. A relação
entre “fa ... ê” aparecerá na fala de B: “faecimen”, momento em que um
signiicante brota do não-sentido.
O segmento acima nos permite falar de conlito e angústia na
relação com o outro. De Lemos, com Lacan, lembra que a angústia “dá
sinal de alarme diante do desejo do Outro” (DE LEMOS, 2007, p. 117).
A angústia e o conlito, que aparecem no diálogo de B. com a terapeuta,
mostram que há resistência ao outro – o sujeito não cede às diiculdades
do diálogo, e isso porque, como assinalamos, há escuta, há Outro. É
preciso lembrar, porém, que a rede de inibições da linguagem, que incide
sobre o ser vivo, encontra, no “real” do corpo, um limite: a implantação
do signiicante não pode fazer B. falar/verbalizar – a materialização de
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articulações signiicantes icou barrada pela patologia orgânica. Disso
resulta uma profunda e permanente dependência em relação ao corpo
do outro, dependência que se pode constatar nos casos dos seis sujeitos
de nossa pesquisa.
8 Conclusões
Procuramos mostrar neste artigo que remete à tese Organismo e
sujeito: uma diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS,
2010), a viabilidade de uma proposta clínica destinada a pacientes com PC,
que se caracteriza por seus contornos singulares e pela atenção dirigida a
questões suscitadas pela relação desses pacientes com a linguagem. Nessa
clínica, o corpo falado aparece como falante na heterogeneidade de suas
produções com símbolos e escrita alfabética e até mesmo numa fala que
irrompe surpreendendo esses pacientes.
Destacamos que, no caso de pacientes introduzidos à CSA, a
fala-escrita que produzem só pode ser apreendida e atestada devido à
possibilidade de materialização dessas marcas, por meio da voz ou por
meio do gesto de escrita emprestado pelo terapeuta ao paciente. Só assim
um registro pode ser lido como signiicante. Queremos dizer, com isso,
que, no caso desses pacientes, suas sinalizações ganham corpo no corpo
do outro. Do lado do paciente, assinalamos que apenas um corpo falado
e falante tem escuta e pode, por isso, ser afetado pela fala do outro. A
implementação da CSA, além de ser ponto de abertura da possibilidade
de materialização de uma fala contida pelo “real” da patologia no caso
desses pacientes, é também ponto de encontro entre o paciente (aquele
que não fala, mas escuta) e o terapeuta (que se coloca em posição de
escuta das manifestações signiicantes e signiicativas de seu paciente).
O reconhecimento que essa clínica dá à linguagem e ao sujeito marca
diferença em relação a outras clínicas e técnicas de tratamento especíicas
para esses pacientes, pois é outro o desejo do clínico de linguagem frente
a seu paciente com PC.
Os dados de F. e de J. mostraram efeitos possíveis dessa clínica,
qual seja, o surgimento de vocalizações ou de fala propriamente dita,
acompanhados de um efeito de surpresa e de prazer nesses casos, que
vem da gratiicação de falar, mesmo que essa fala não vá muito além da
reduplicação de fragmentos sonoros. B., à diferença de F. e de J., deixa
transparecer, por sua vez, um tanto de desprazer que se atribui a uma
diiculdade de chegar aos signiicantes responsáveis pelo que busca dizer
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de forma a materializar esse dizer em uma cadeia. De todo modo, os dados
de B. atestam que esse sujeito tenha sido capturado pela linguagem e
“arrancado à sua imanência vital” (LACAN, 1966, p.72) pela linguagem,
já que há escuta para a fala e impulso na direção de espaços em que o
jogo entre alienação e separação pode ocorrer.
Os dados dos sujeitos da tese indicam que alguns conseguem
caminhar com a fala, outros encontram um caminho na escrita, e outros
ainda conseguem menos e icam nos símbolos e em fragmentos de
escrita e/ou de fala. De todo modo, parece-nos equivocado supor que
“separação”20 − entendida na sua relação à “alienação” ao campo do
Outro − nesses casos, anularia a dependência do corpo do outro. É que a
rede de inibições da linguagem que incide sobre o ser vivo encontra um
limite no “real” do corpo, ou seja: a implantação do signiicante não pode
fazê-lo falar porque está barrada pela patologia orgânica. Disso resulta
uma profunda e permanente dependência do corpo do outro. Talvez se
possa dizer que nos casos de F. e de J., em que o comprometimento motor
é menor, “a rede de inibições da linguagem” se faça notar.
Pode-se concluir que os materiais clínicos da tese abordados neste
trabalho falam a favor da airmação que fazemos de que não há mesmo
correspondência entre organismo e sujeito, corroborando o objetivo
deste artigo e da tese de oferecer indícios e aprofundar uma discussão
que evidenciasse os efeitos de um corpo pulsional, apesar dos limites
impostos por sua condição orgânica.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
Inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX
Parenthetical insertions in 19th century São Paulo
State Editorials
Michel Gustavo Fontes
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas, Mato Grosso do Sul / Brasil
michelfontes2002@yahoo.com.br
Resumo: A proposta geral deste trabalho é analisar, com base nos
princípios teórico-metodológicos da Gramática Textual-Interativa (cf.
JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), o processo de Parentetização
em Editoriais paulistas do século XIX. O objetivo é descrever a
coniguração formal e as funções textual-interativas das inserções
parentéticas encontradas nesse gênero. Os resultados revelam que,
por um lado, a materialidade escrita dos Editoriais determina o modo
como se formalizam as inserções parentéticas; por outro, alguns traços
composicionais desse gênero em circulação no século XIX determinam
a ocorrência predominante de algumas classes e/ou funções parentéticas,
como esclarecimento, ressalva e manifestação atitudinal do escrevente.
Palavras-chave: construção do texto; inserções parentéticas; editorial.
Abstract: Based on a textual-interactive perspective (cf. JUBRAN;
KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), this paper aims to analyze Bracketing
in Editorials published in a São Paulo state newspaper throughout the
19th century. Its main goal is to describe the formal conigurations and
the textual-interactive functions of the parenthesis found in this speciic
genre. The results point out that (i) the written materiality of Editorials
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.389-420
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
determines the way parenthesis are formalized, and (ii) compositional
features of Editorials in 19th century determines the occurrence of some
kinds and functions of the parenthesis.
Keywords: text-structuring; parenthetical insertions; editorial.
Recebido em 27 de setembro de 2016.
Aprovado em 12 de janeiro de 2017.
1 Considerações iniciais
As análises e os resultados aqui apresentados desenvolvemse no interior do subprojeto Processos de construção textual: uma
abordagem diacrônica, que se vincula ao Projeto de História do Português
Paulista, em sua segunda fase de execução (PHPP – Projeto Caipira
II). O objetivo mais geral desse subprojeto é analisar, sob perspectiva
diacrônica, processos de construção textual em diversos gêneros textuais
do português paulista, traçando uma comparação entre o funcionamento
desses processos no século XIX e o seu funcionamento no século XX.
Recortando esse âmbito maior de investigação, este trabalho se
dedica ao estudo do processo de Parentetização em Editoriais paulistas do
século XIX. Com base nos princípios teórico-metodológicos da Gramática
Textual-Interativa (cf. JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), o
objetivo geral é descrever a coniguração formal e a funcionalidade das
inserções parentéticas dos Editoriais paulistas oitocentistas, ou seja,
busca-se, especiicamente, (i) caracterizar o modo como se materializam
os parênteses nos Editoriais analisados e (ii) delimitar suas funções
textual-interativas nesse gênero especíico.
A proposição desses objetivos se articula a duas hipóteses: (i)
primeiramente, acredita-se que a materialidade escrita do gênero Editorial
inlui sobre o modo como se formaliza, no texto, a Parentetização, isto
é, governa, de alguma maneira, a coniguração formal das inserções
parentéticas; (ii) em segundo lugar, prevê-se que alguns traços
composicionais dos Editoriais oitocentistas, como sua funcionalidade
sociocomunicativa, determinam a ocorrência de alguns tipos de
parênteses e de algumas de suas funções textual-interativas.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
391
Para atender a tal proposta, este artigo está estruturado em
duas seções. A primeira seção discorre sobre os fundamentos teóricometodológicos do trabalho, ou seja, trata (i) dos princípios da Gramática
Textual-Interativa, (ii) da noção de Parentetização aqui assumida, e
(iii) da seleção de material e de parâmetros para a análise. A segunda
seção sistematiza os resultados, descrevendo a coniguração formal dos
parênteses nos Editoriais analisados, assim como sua funcionalidade. As
considerações inais encerram o trabalho.
2 Fundamentos teórico-metodológicos
2.1 A Gramática Textual-Interativa
Partindo de uma visão de língua/linguagem enquanto instrumento
de interação verbal, a Gramática Textual-Interativa (doravante GTI)
elege, como objeto de análise, o texto. Especiicamente, a GTI preocupase, conforme Jubran (2006a), com o funcionamento da língua em
contextos reais de uso e com a atualização da atividade discursiva em
textos. Para tanto, a GTI busca apoio no tripé Pragmática / Linguística
Textual / Análise da Conversação.
A Linguística Textual contribui com a GTI na coniguração
e/ou definição de seu objeto de estudo: o texto. Pautada por um
enfoque linguístico-pragmático, a GTI concebe o texto como unidade
resultante da interação verbal e, assim, como unidade globalizadora
e sociocomunicativa, que se constitui como tal no interior de um
processo interacional (cf. JUBRAN, 2006a, p. 30). Decorre disso um
princípio norteador da abordagem da GTI: “os fatores interacionais são
constitutivos dos textos e inerentes à expressão linguística” (JUBRAN,
2007, p. 315).
Sob a ótica da Pragmática, a GTI sustenta a primazia de uma
dimensão comunicativo-interacional na descrição dos dados linguísticotextuais (cf. JUBRAN, 2006a, p. 29). Na visão da GTI, determinações
de ordem pragmática, como as condições enunciativas que sustentam a
interação verbal, não são desligadas da estrutura do texto, ao contrário,
elas são vistas como integradas a eles; mostram-se no texto por meio das
escolhas comunicativamente adequadas às situações interacionais feitas
pelos usuários da língua. Admite-se, com base nessa concepção, uma
sistematicidade da atividade discursiva a ponto de deinir regularidades
e princípios para o processamento de estruturas textuais.
392
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
Finalmente, é por meio da Análise da Conversação que a GTI
complementa seu quadro teórico para a descrição de textos falados.
Segundo Jubran (2006a, p. 30), é no exame da oralidade e na abordagem
de questões mais amplas a respeito da língua falada que a Análise da
Conversação contribui com a GTI. Essa preocupação em buscar um
quadro teórico-metodológico que fundamente a análise de textos falados
toca os trabalhos reunidos em Jubran e Koch (2006), o que não é o caso
deste artigo, que estuda um gênero escrito.
Com base nesses princípios, a GTI investiga a construção do
texto sem dissociar “suas características estruturais da dinâmica dos
processos formulativo-interacionais sistematicamente envolvidos
em sua produção” (JUBRAN, 2006a, p. 31). O foco de análise recai,
portanto, sobre processos textual-interativos constitutivos do texto,
como a Organização Tópica, a Referenciação, o Parafraseamento, a
Parentetização, a Repetição e a Correção.
É importante salientar que a GTI prima pelo “estabelecimento de
classes não-discretas de elementos, baseado no reconhecimento da luidez
de limites entre elas, em virtude do equilíbrio instável das conigurações
discursivas” (JUBRAN, 2007, p. 317). Além disso, essa abordagem
reconhece o princípio de gradiência no estabelecimento de funções
textual-interativas de mecanismos e estratégias de construção do texto,
segundo o qual um determinado fato textual ou processo constitutivo
do texto pode desempenhar uma função interativa sem necessariamente
deixar de desempenhar uma função textual; o que é cabível dentro dessa
abordagem é que um fato textual ou processo constitutivo do texto
desempenhe mais uma função do que outra, mas jamais elas serão vistas
como excludentes entre si.
A GTI, com base nesses princípios e objetivos, deine uma
unidade de análise de estatuto discursivo e compatível com esses
fundamentos teóricos estabelecidos: o tópico discursivo. Segundo
Jubran (2006a), ao estudar a macroestrutura textual, vê-se que o
processo básico de construção do texto é o da topicalidade: “ao longo
de um evento comunicativo, os interlocutores centram sua atenção
sobre determinados temas, que se constituem como foco da interação
verbal” (JUBRAN, 2006a, p. 32). Assim, o tópico discursivo se deine
a partir de duas propriedades: centração e organicidade. A centração
corresponde à “propriedade de concentração da interação verbal em um
determinado conjunto de referentes concernentes entre si” (JUBRAN,
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
393
2006b, p. 302), e a organicidade, por sua vez, manifesta-se nas relações
de interdependência entre tópicos, estabelecidas nos planos hierárquico
e linear.
2.2 A Parentetização: processo constitutivo do texto
Para Jubran (2006b), durante a construção de um tópico
discursivo, variados elementos podem ser inseridos ao longo dessa
unidade textual, mesmo não sendo coerentes a ela. Há dois tipos possíveis
de inserções: (i) uma de maior extensão textual e com estatuto tópico,
já que instaura uma nova centração dentro do segmento tópico em que
ocorre, o que se chama de tópico inserido, e (ii) uma de menor extensão
textual, que não adquire o estatuto de tópico discursivo por não projetar
uma nova centração e, assim, não projetar e desenvolver um outro tópico
discursivo dentro daquele que vinha sendo desenvolvido.
Os parênteses integram-se nesse segundo grupo,
constituindo-se como uma modalidade de inserção,
deinida como breves desvios de um tópico discursivo, que
não afetam a coesão do segmento tópico dentro do qual
ocorrem. (JUBRAN, 2006b, p. 303)
A propriedade deinidora de uma inserção parentética é, dessa
forma, o desvio tópico: “um encaixe em um segmento tópico de elementos
não-concernentes ao tópico discursivo desse segmento” (JUBRAN,
2006b, p. 305). O exemplo em (1), retirado de um Editorial do corpus, traz
duas inserções parentéticas que evidenciam essa propriedade deinidora
dos parênteses.
(1)
A missão que nos impuzemos é escabrosa, bem o | sabemos;
tanto mais quando o nosso objectivo de es- | tudos – a
sociedade brazileira actual em seu con- | juncto – conta
elevadissimo deicit no balanço de mi- | nimas e isoladas
prosperidades com que confronta o | grosso peculio de
calamidades a avultar por todos os | lados do horisonte e nos
mais importantes centros da vitalidade nacional. (A Província
de São Paulo, janeiro de 1875)
394
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
Em (1), o tópico discursivo centra-se sobre a missão e os objetivos
de estudos do jornal A Província de São Paulo.1 Ao avaliar a missão
que o jornal assume, o escrevente encaixa um primeiro segmento não
muito concernente com o tópico relevante do segmento-contexto (no
caso, bem o sabemos), já que desloca a atenção do tópico para a face do
próprio escrevente, isto é, desvia-se da centração do tópico discursivo ali
desenvolvido para focalizar o escrevente do Editorial, que, pelo uso da
primeira pessoa, igura como o jornal na condição de instância veiculadora
de informações. Por outro lado, o segundo segmento parentético (no
caso, a sociedade brazileira actual em seu conjunto) é encaixado dentro
do tópico discursivo de modo a esclarecer a referência construída pelo
sintagma objetivo de estudos, o que confere a esse segmento um baixo
grau de desvio tópico, mas o caracteriza como uma breve suspensão,
centrada no conteúdo do segmento-contexto.
Na visão de Jubran (2006b), a propriedade do desvio tópico
se dá em termos graduais, ora desviando-se muito pouco do segmento
tópico, ao ressaltar aspectos do próprio conteúdo tópico, como o segundo
parêntese em (1), ora desviando-se bastante do tópico discursivo, ao
inserir no texto instâncias da enunciação, como seus participantes (locutor
ou interlocutor) e a situação comunicativa em si, como o primeiro
parêntese em (1).
Se, por um lado, os parênteses se definem como desvios
tópicos, por outro, eles também podem ser deinidos por sua dimensão
pragmática, de natureza também gradual e variável. De acordo com
Jubran (2006b, p. 307-308), os segmentos parentéticos, atuando sobre a
dimensão ideacional do texto, podem sinalizar relações interpessoais e
materializar, no texto, a atividade interacional, contextualizando o texto
construído na situação de enunciação. Em (1), por exemplo, a primeira
inserção parentética marca a voz coletiva que se instaura num texto como
o Editorial e qualiica essa voz coletiva para discorrer sobre o tópico,
conferindo maior coniabilidade à qualiicação ali descrita a respeito da
missão do jornal; já a segunda inserção parentética, mesmo que pouco
1
A referência ao jornal A Província de São Paulo materializa-se pela presença de
marcas da primeira pessoa do plural (como, nos impuzemos e nosso objectivo). A
primeira pessoa do plural coletiviza o escrevente do editorial, não colocando nesse
papel um único sujeito, mas todo o jornal. Trata-se, de fato, de um mecanismo de dar
voz ao jornal enquanto meio de veiculação de informações e de formação de opiniões.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
395
desviante do tópico discursivo do segmento-contexto, colabora na
inteligibilidade do texto, especiicando o referente trazido para aquele
texto, e, assim, diz respeito à cooperação entre participantes na interação
para a construção de signiicados.
Partindo dessa variabilidade do grau de desvio tópico e da
manifestação de fatores pragmáticos, Jubran (2006b; 2007) estabelece
quatro classes de parênteses, gradualmente ordenadas de modo a reletir
o grau de proximidade da inserção parentética ao tópico discursivo e
o grau de inserção de elementos da situação interativa em que o texto
é produzido: (a) parênteses focalizadores da elaboração tópica, cuja
atenção se volta para três aspectos relacionados ao desenvolvimento
do tópico discursivo: o conteúdo tópico, a atividade de formulação
linguística ou a estruturação do tópico; (b) parênteses com foco no
locutor, que materializam a presença do locutor ou escrevente no texto que
produz, marcando seu posicionamento e as representações de seu papel
discursivo; (c) parênteses com foco no interlocutor, que materializam a
presença do interlocutor no texto, pela referência a seu papel discursivo e
ao seu envolvimento não só com o escrevente/locutor, como também com
o assunto em curso; (d) parênteses focalizadores do ato comunicativo,
que, integrando a classe de parênteses que promovem um grau máximo
de desvio tópico, provocam uma suspensão do tópico discursivo para
focalizarem o ato comunicativo que está em processamento.
Assim, enquanto a classe (a) apresenta um grau maior de
proximidade ao tópico discursivo e menor explicitação verbal da
pragmática do texto, a classe (d) apresenta um afastamento tópico
máximo e uma maior aproximação do ato interacional, isto é, uma maior
explicitação das condições pragmáticas envolvidas na construção textual.
A cada uma dessas classes, correspondem funções textual-interativas
especíicas, representadas, com base em Jubran (2006b, p. 327), no
quadro 1.
396
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
QUADRO 1 – Classes e funções dos parênteses
Classe dos parênteses
– foco no
conteúdo
tópico
(a) parênteses
focalizadores
da elaboração
tópica do texto
– foco na
formulação
linguística
– foco na
estrutura
tópica
(b) parênteses com foco no
locutor
(c) parênteses com foco no
interlocutor
Funções textual-interativas dos parênteses
(a) exempliicação
(b) esclarecimento
(c) ressalva
(d) retoque
(e) correção
(a) explicitação do signiicado de palavras
(b) indicação de mudança de registro
(c) verbalização da atividade formulativa
(d) sinalização de busca de denominações
(e) solicitação de colaboração do interlocutor na seleção
lexical
(a) marcação de subdivisões de um quadro tópico
(b) marcação de retomada do tópico
(c) marcação do estatuto discursivo de um fragmento do
texto
(a) qualiicação do locutor para discorrer sobre o tópico
(b) manifestação de interesse ou desinteresse pelo tópico
(c) indicação de desconhecimento do tópico
(d) manifestações atitudinais do locutor em relação ao
tópico
(e) indicação da fonte enunciadora do discurso
(a) estabelecer inteligibilidade do tópico
(b) evocar conhecimento partilhado do tópico
(c) testar a compreensão do locutor
(d) instaurar conivência com o interlocutor
(e) chamar a atenção do interlocutor para um elemento do
tópico
(f) atribuir qualidades ao interlocutor para a abordagem
do tópico
(a) sinalização de interferências de dados externos ao ato
comunicativo
(d) parênteses focalizadores do (b) estabelecimento da modalidade do ato com.
ato comunicativo
(c) estabelecimento de condições para realização/prosseguimento do ato com.
(d) avaliação do ato comunicativo
(e) negociação de turnos
Fonte: Jubran, 2006b, p. 327
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
397
2.3 Deinição do material e dos parâmetros de análise
O material de análise deste trabalho constitui-se de Editoriais
publicados no jornal A Província de São Paulo (denominado, a partir
de 1889, de O Estado de São Paulo), no período de 1875 a 1893, e
organizados por Lopes-Damasio e Jubran (2015) para integrar o corpus
do Projeto Caipira em sua segunda fase de execução.2 Do conjunto de
Editoriais reunidos pelas autoras, selecionamos quarenta, que incluem,
pelo menos, dois editoriais de cada ano nesse período (entre 1875 e 1893).3
Desse conjunto de quarenta Editoriais, foram coletadas 132
ocorrências de inserções parentéticas, numa média de três por Editorial
analisado. Esses dados de parênteses são analisados adotando-se alguns
parâmetros deinidos com base no trabalho de Jubran (2006b). Os
três primeiros buscam descrever a coniguração formal das inserções
parentéticas, isto é, o modo como se materializam os parênteses nos
Editoriais paulistas do século XIX; para tanto, analisam-se (i) as marcas
formais da inserção parentética, (ii) as fronteiras de ocorrência dos
parênteses e (iii) a constituição formal dos parênteses.4 Os dois últimos
investigam as classes e as funções textual-interativas das inserções
parentéticas, na tentativa de averiguar quais delas predominam nos
Editoriais paulistas oitocentistas.
Como se intenciona sistematizar o que é predominante e
mais frequente na formalização e no funcionamento do processo de
Parentetização nesses Editoriais, utiliza-se o programa estatístico
do pacote GOLDVARB para auxiliar na apuração das frequências e
dos percentuais. Embora este trabalho não se paute por um interesse
variacionista, recorrer aqui a essa ferramenta estatística se justiica
exclusivamente pelo fato de ela constituir uma garantia de que todas as
ocorrências serão analisadas qualitativa e quantitativamente à luz dos
mesmos critérios estabelecidos.
2
Lopes-Damasio e Jubran (2015) reúnem um conjunto de 204 Editoriais publicados
no período de 1875 a 1893, no jornal A província de São Paulo, atual O Estado de
São Paulo (cf. LOPES-DAMASIO; JUBRAN, 2015).
3
Em dois anos, os de 1879 e 1891, selecionamos três Editoriais, o que nos levou ao total
de quarenta Editoriais. A opção por selecionar três Editoriais para esses dois anos em
especíico se deu pela escassez de dados nos dois Editoriais inicialmente selecionados
para esses dois anos.
4
Trataremos mais detalhadamente de cada parâmetro na seção de análise.
398
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
3 As inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX
3.1 Formalização das inserções parentéticas nos Editoriais paulistas do
século XIX
O objetivo desta seção é entender como se materializam, na
superfície textual dos Editoriais analisados e no processamento de sua
estrutura textual, as inserções parentéticas. Um primeiro aspecto a se
observar são as marcas formais de inserção parentética, que, segundo
Jubran (2006b), funcionam, ao lado da propriedade de desvio tópico,
como critério para o reconhecimento de inserções parentéticas.
No interior do segmento parentético, Jubran (2006b) registra,
como marcas da inserção parentética, (i) a ausência de conectores lógicosemânticos e (ii) alguns fatos prosódicos, como pausas e alterações na
pronúncia. Como o trabalho da autora tem como foco os textos falados,
o critério (ii) se mostra bastante produtivo e altamente fundamental para
a identiicação de parênteses. Para este trabalho, entretanto, devido à
materialidade escrita dos textos analisados, essas marcas prosódicas
não podem ser observadas, o que faz a atenção se voltar para outro tipo
de marcação, além da presença/ausência de conectores prefaciando
o segmento parentético: as marcas gráicas que contribuem para a
delimitação dos fatos parentéticos, como vírgulas, travessões e parênteses.
Nos Editoriais paulistas do século XIX, predominam segmentos
parentéticos não prefaciados por conectores (79 ocorrências; 59,8% dos
dados). Em (2a), por exemplo, o escrevente suspende o tópico discursivo
para manifestar sua franqueza em relação ao tópico discursivo; tal
segmento parentético não é prefaciado por nenhum tipo de conectivo.
Ocorrências de parênteses com partículas conectivas representam 40,2%
dos dados (53 ocorrências): em (2b), por exemplo, o escrevente suspende
o tópico discursivo para mostrar que encara com naturalidade o conteúdo
do tópico discursivo em andamento; tal segmento parentético é prefaciado
pelo conectivo como.
(2) a)
Nada temos, portanto com as conjecturas | do nosso collega
da Germania e, permitta- | nos a franqueza, com as suas
considerações | sobre a preferencia dos professores allemães
| ou de outra qualquer nacionalidade. (A Província de São
Paulo, janeiro de 1886)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
399
b) Os | fretes são extraordinariamente caros e | matam o
commercio, que se desforça, | como é natural, com a alta dos
generos. (A Província de São Paulo, março de 1893)
Embora haja um predomínio de ausência de conectores
introduzindo os fatos parentéticos, não se pode negar que é considerável
(e, talvez, relevante) a frequência de ocorrências parentéticas introduzidas
por esses elementos linguísticos. Esse resultado contraria uma tendência
apontada por Jubran (2006b): a de que a ausência de conectivos
prefaciando o segmento parentético, e, assim, a ausência de qualquer
mecanismo de articulação entre esse segmento e o segmento-contexto é
uma evidência da propriedade de desvio tópico.
Prefaciando os segmentos parentéticos dos Editoriais analisados,
encontramos: (i) preposições, como de, com, sem e por, (ii) conjunções
como se, embora e como, (iii) pronomes relativos e (iv) marcadores
discursivos, como aliás, e, isto é, mas e mesmo.
O uso de preposições (cf. (3)) parece atender mais à estrutura
sintático-semântica interna do segmento parentético e não necessariamente
vincular esse segmento ao enunciado em que se encaixa (ao segmentocontexto).
(3)
Cumpre que os poderes publicos to- | mem providencias, que
hoje se apresen- | tam com caracter de innegavel urgen- | cia,
para acompanharem de perto, com | protectora vigilancia,
esse progresso ex- | traordinario. (A Província de São Paulo,
março de 1890)
Em (3), o segmento parentético com protectora vigilancia
suspende o tópico discursivo em andamento para ampliar a referência
do que se deve compreender por acompanhar de perto. Esse segmento
parentético constitui-se, na verdade, de um sintagma preposicionado,
e a preposição com contribui, de certa forma, para a funcionalidade
do parêntese enquanto elemento de esclarecimento, ou melhor, como
porção informacional que elucida e detalha alguma informação tópica,
o que auxilia na clareza do enunciado e na cooperação entre escrevente
e destinatário(s) na interação mediada pelo Editorial.
Desse modo, acredita-se que a ocorrência de preposições no
início de parênteses não interfere na propriedade de desvio tópico por
400
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
dois motivos: (i) primeiramente, porque os parênteses prefaciados por
preposições constituem, no geral, segmentos tópicos que se voltam para
a própria elaboração tópica do texto, especiicamente para o conteúdo
tópico, o que evidencia que o uso de preposições se dá no contexto de
parênteses com baixo grau de desvio tópico; (ii) em segundo lugar,
porque seu uso traz contribuições de ordem discursiva para o processo
de Parentetização, isto é, para o funcionamento textual-interativo
do parêntese; em (3), por exemplo, o signiicado de modo/maneira
veiculado pela preposição com colabora com o funcionamento da inserção
parentética enquanto segmento que esclarece, ao destinatário/leitor, o
que o escrevente deseja evocar com o sintagma de perto.
O mesmo se aplica aos casos de parênteses introduzidos por
conjunções adverbiais. Em (4), a conjunção condicional se não instaura,
necessariamente, uma articulação de base condicional entre orações; ela
mais reforça o caráter hipotético da objeção/correção que o segmento
parentético ali insere.
(4)
O anno de 1875 abre-se, pois, conservando, se não
| augmentando, em muitos espiritos, justas e sérias
ap- | prehensões quanto á felicidade d’esta grande nação.
(A Província de São Paulo, janeiro de 1875)
A oração destacada em (4), mesmo prefaciada pela conjunção
condicional se, não se integra estruturalmente a outra, mas mantém uma
relação adverbial com o discurso precedente. De acordo com a proposta
de Decat (2001), essas orações são desgarradas, já que constituem
unidades informacionais independentes. Esse traço de independência ou
de desgarramento, em termos estruturais, revela que orações como (4),
mesmo introduzidas por conjunções, constituem segmentos parentéticos.
Segundo Stassi-Sé (2012), estruturas independentes ou
desgarradas como a de (4) apresentam um funcionamento textualinterativo que revela certo grau de desvio tópico, o que torna possível
caracterizá-las como inserções parentéticas. Assim, para a autora,
estruturas “autônomas/desgarradas” prefaciadas pela conjunção
condicional se (cf. (4)) funcionam como salvaguardas: estruturas com as
quais o escrevente busca preservar sua face ao inserir (e, assim, desviarse do tópico discursivo em desenvolvimento) uma informação da qual
não tem plena certeza.
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401
Essa análise também se aplica aos segmentos parentéticos
iniciados por pronomes relativos (cf. (5)), que são, na verdade, orações
adjetivas apositivas ou explicativas (cf. DECAT, 1999; 2001).
(5)
No dia em que a Gazeta de Notícias | publicou aquelle artigo
O que anda no | ar, que já resumimos nesta folha, o Dia- | rio
do Commercio, que vive na intimida- | de do governo, dizia,
em artigo de [ilegível], que o Brasil está sendo ludibriado:
não | querem uma republica que se governe, | e por isso
tractam de restaurar um re | gimen que os faça governar.
(A Província de São Paulo, novembro de 1891)
Em (5), o segmento parentético que vive na intimidade do
governo desvia a centração do tópico discursivo para detalhar o
referente anteriormente exposto, Diario do Commercio, trazendo novas
informações relevantes para o esclarecimento do que se expõe no tópico
discursivo. Segundo Decat (2001), orações adjetivas apositivas, como
a de (5), constituem unidades de informação à parte e, dessa forma,
constituem orações desgarradas; podem ser consideradas, portanto, fatos
parentéticos.
Por im, em (6), são trazidas algumas ocorrências de fatos
parentéticos prefaciados por marcadores discursivos.
(6) a)
b)
c)
O que não fazemos, e nunca faremos, é da imprensa | um
poste para os adversarios e altar para correligio- | narios por
mais peccadores que elles sejam. (A Província de São Paulo,
janeiro de 1879)
E em bem da probidade do tribunal, mas | não tanto em
hora do dever de alta magis- | tratura, a causa attribuida é
a pressa no jul- | gamento que obriga os juizes a examinarem
| pouco os documentos e a adoptarem os funda- | mentos do
juiz de direito. (A Província de São Paulo, janeiro de 1884)
Da população em edade de freguentar es- | colas, orçada em
108,799 tambem sómen- | te um oitavo, isto é, cerca de 20
mil, fre- | quenta escolas, deixando de frequental-as | quase
150 mil! (A Província de São Paulo, janeiro de 1876)
402
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
d)
Em escripto de maior folego seria isso a liquidação |
philosophica e politica do passado e a denuncia pre - | vidente
do porvir. Nessas rapidas linhas só póde ser | opportuno esboço
para que melhores espiritos, na cal- | ma da consciência e no
remanso do gabinete , com- | pletem a obra, aliás patriotica e
capaz de fecundo en- | sinamento e urgentissimos conselhos
á sociedade em | geral e aos proprios Palinuros do Estado.
(A Província de São Paulo, janeiro de 1875)
Em (6a), por exemplo, o segmento parentético e nunca faremos
vem ampliar a abrangência da airmação anteriormente estabelecida,
reforçando que a declaração de não fazer da imprensa um poste para
os adversários estende do momento presente (fazemos) a momentos
posteriores, futuros (faremos). Trata-se, portanto, de um parêntese de
ordem mais textual, com foco no conteúdo tópico, especiicamente uma
ressalva; pode-se, entretanto, visualizar uma atuação interacional desse
parêntese, que, ao menos, age na preservação da face do escrevente,
adiantando e bloqueando qualquer suposição do(s) destinatário(s) a
respeito do conteúdo tópico abordado. Nesse sentido, o e introduzindo tal
segmento não só atua num plano textual, no sequenciamento da unidade
parentética, como uma partícula de adição, mas, principalmente, constitui
um mecanismo de conferir ênfase ao segmento parentético, atuando,
assim, num plano mais interativo (cf. PENHAVEL, 2006).
Já em (6b), o segmento parentético mas não tanto em hora do
dever de alta magistratura traz uma ressalva em relação ao conteúdo
expresso pelo sintagma em bem da probidade do tribunal. O que se nota
é que, assim como e em (6a), o marcador mas não se presta somente
à função de articulação ou de conexão, mas age sobre a conectividade
discursiva, sustentando o caráter contrastivo do segmento parentético de
forma a evidenciar seu estatuto de ressalva.
Em (6c) e (6d), por im, os segmentos parentéticos detalham dados
expostos no tópico discursivo, funcionando como esclarecimentos. Os
marcadores discursivos isto é e aliás são, de certa forma, sequenciadores
tópicos e contribuem para o signiicado particularizador associado aos
parênteses que introduzem.
Explorar cada um dos tipos de conectivos lógico-semânticos que
prefaciam as inserções parentéticas encontradas no corpus demonstra
que, independentemente de sua natureza relacional, esses conectivos não
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
403
interferem na propriedade de desvio tópico e, dessa forma, segmentos
por eles introduzidos podem constituir parênteses (cf. STASSI-SÉ,
2012). Entre as 53 ocorrências de parênteses prefaciados por conectivos,
37 (praticamente 70% dos dados) são casos de parênteses com foco
no conteúdo tópico, ou seja, são parênteses com um grau mínimo de
desvio tópico, e alguns constituem casos de desgarramento (cf. DECAT,
1999; 2001). Além disso, é importante a contribuição desses conectivos
para a signiicação e a funcionalidade textual-interativa dos segmentos
parentéticos.
Essa análise, no geral, faz visualizar também que a considerável
frequência de elementos conectivos entre os dados de parênteses coletados
se deve ao tipo de interação em que circula o Editorial, uma interação
que, distante da conversação face-a-face, não se apoia nas circunstâncias
contextuais imediatas do aqui-e-agora. Os conectivos, assim, constituem
suportes para o funcionamento das inserções parentéticas.
Em relação às marcas gráicas, ajudam a delimitar as inserções
parentéticas, essencialmente, vírgulas (123 ocorrências, o que representa
93,2% dos casos). Há alguns casos de parênteses (2 ocorrências; 1,5%)
e de travessão (6 ocorrências; 4,5%) e um único dado em que aparece
ponto-e-vírgula associado a travessão (0,8%).
(7) a)
b)
c)
O serviço que desagrada e levanta re- | clamações não é mal
feito por má vonta- | de dos empregados, justiça se lhes faça,
| mas por deiciencia de pessoal. (A Província de São Paulo,
janeiro de 1886)
Quanto á demora da viagem das mer- | cadorias nas poucas
estradas que temos, | porque não adoçou a pilula da censura |
(até certo ponto justa), fazendo-nos ver | que essa demora,
afinal, é uma conse- | quencia do nosso extraordinario e ines- |
perado progresso nestes ultimos annos? (A Província de São
Paulo, março de 1893)
Entretanto−dóe-nos o dizel-o, mas a | verdade acima de
tudo−o serviço de ex- | tincção, ha tanto tempo organisado,
ain- | da é a mesma cousa rudimentar e im- | prestavel de ha
muitos annos atraz. (A Província de São Paulo, março de
1890)
404
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d)
Fallou depois o sr. Albuquerque | Lins que desenvolveu alguns
longos | apartes 15 que havia dado nos dias ante- | riores. Fez
a historia do abolicionis- | mo para dizer que o partido liberal
e | a illustre familia Queiroz são abolicio - | nistas e mais, que
o partido conserva- | dor e outros pretendem esses fó- | ros
com menos civismo ;–aquelle ci- | vismo a que se referiu o
sr. Augusto | Queiroz. (A Província de São Paulo, março de
1888)
Em (7), diferentes fatos gráicos contribuem na delimitação
dos parênteses. Em (7a-b), a suspensão do tópico discursivo para que
o escrevente demonstre sua atitude/crença de justiça em relação ao
conteúdo desse tópico se delimita pelo uso das vírgulas (cf. (7a)) e
dos parênteses (cf. (7b)). Já em (7c), o segmento parentético, também
revelador da atitude do escrevente em relação ao tópico discursivo,
delimita-se por meio dos travessões. Por im, em (7d), combinam-se
ponto-e-vírgula e travessão para delimitar a inserção parentética que
esclarece a referência de um elemento do tópico discursivo.
Outro ponto que diz respeito à materialização do processo
de Parentetização é a fronteira de inserção do segmento parentético.
Jubran (2006b, p. 310) considera que qualquer fato parentético ocorre
na fronteira entre constituintes (cf. (8a-b)) ou unidades frasais (cf. (8cd)), de forma que se possa segmentar o trecho em que ocorre a inserção
parentética da seguinte maneira: E1 = segmento anterior ao parêntese,
E2 = o parêntese e E3 = segmento posterior ao parêntese. As ocorrências
em (8) seguem esse padrão.
(8) a)
b)
A approximação dos dous grupos | monarchicos,
apparentemente diver- | gentes, explica a declaração do
voto | do sr. Almeida Nogueira, na questão | de coniança 40
politica no actual gabi- | nete. (A Província de São Paulo,
agosto de 1889)
Cumpre que os poderes publicos to- | mem providencias, que
hoje se apresen- | tam com caracter de innegavel urgen- |
cia, para acompanharem de perto, com | protectora vigilancia,
esse progresso ex- | traordinario. (A Província de São Paulo,
março de 1890)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
c)
d)
405
Nessa occasião o sr. visconde do Rio Branco | prestou um
grande serviço ao paiz, é verda- | de, mas dahi não lhe veio
gloria por não | ter s. exc. tido a iniciativa da idéa. (A Província
de São Paulo, agosto de 1879)
Si esta idéa fôr levada a effeito—e não | cremos que encontre
tropeços—icará a | S. Paulo a glória de se ter lembrado, pri- |
meiro entre todos os Estados da nação,de | commemorar os
grandes homens que por | seus feitos e por suas obras bem
mere- | ceram do seu paiz. (A Província de São Paulo, agosto
de 1893)
Em (8a), o parêntese se insere entre o SN sujeito (a approximação
dos dous grupos monarchicos) e o SV (explica...); já em (8b), o parêntese
se insere entre o SN (providencias) e a oração que o completa (para
acompanharem de perto, com protectora vigilancia, esse progresso
extraordinario). Por outro lado, em (8c), o parêntese se encontra entre
as duas orações articuladas pela adversativa mas; em (8d), o parêntese
se insere entre a oração condicional e a sua principal.
Quando interrompem a adjacência entre constituintes ou entre
unidades frasais, como em (8), os fatos parentéticos suspendem o
processamento do tópico sem nenhum corte sintático, e, entre E1 e E3,
não há qualquer tipo de descontinuidade sintática. Em casos como (8c),
no segmento E3, há a presença de um conectivo ou de um marcador
discursivo para retomar o tópico suspenso pelo parêntese e progredir
com o tópico discursivo a partir de E1.
De certa forma, essa sistematicidade na marcação da inserção
parentética está intrinsicamente ligada à materialidade escrita do gênero
Editorial, que, de certa forma, envolve um planejamento de sua atividade
formulativa. O gênero Editorial, sendo um gênero escrito, é altamente
planejado e elaborado, o que possibilita que se controle o modo como
se formalizam suas inserções parentéticas, evitando-se, assim, inserções
que interrompem, com rupturas ou cortes sintáticos, o processamento do
tópico discursivo, como ocorre em (9).
(9) L1 – de vez em quando aparecem as riscas no chão marcando o
início de pista...mas...na maioria das vezes tao todas apagadas
o que () terrivelmente em dirigir principalmente à noite.
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
L2 – isso é um problema econômico é o mesmo caso agora vai
entrar o técnico pra dar a/ a satisfaçao...acontece o seguinte
a sinalizaçao...é um/ uma etapa cara da estrada...mas...é
indispensável à segurança de tráfego... (JUBRAN, 2006b,
p. 316, grifos do autor)
Em (9), ocorrência de um texto falado, o segmento parentético
agora vai entrar o técnico pra dar a/ a satisfaçao... gera um corte
sintático no tópico discursivo em desenvolvimento, de forma que há
um reprocessamento da informação anterior ao segmento parentético
por meio de uma estratégia de reformulação textual. Esse tipo de
ocorrência não foi identiicado nos Editoriais analisados, o que, a nosso
ver, decorre da atividade altamente planejada e elaborada envolvida em
sua construção.
As inserções parentéticas, nos Editoriais analisados, podem
também ocorrer no início (cf. (10a)) ou no im de unidades frasais (cf.
(10b)).
(10) a) Em boa politica, á parte as ques- | tões de personalidades, e
esquecidas | as queixas partidarias, o ministerio 7 | de Junho
devia ser sustentado pelos | conservadores evolucionistas. Era
o | que a situação reclamava; infeliz- | mente, porém, estes
soffrem crúa | guerra do governo e o novo partido, | apezar da
sua largueza de vistas, é | obrigado a negar apoio antecipado
| ao ministerio 7 de Junho, tão con- | servador ou tão liberal
como o 10 de | Março.
A dizer a verdade, não sabemos em | que se differenciam
quanto aos prin- | cipios os srs. Affonso Celso e Pauli- | no de
Souza, os srs. A. Prado e | Saraiva embora este seja federalista
| que não conhece bem a distincção dos | dous programmas
liberaes,o da maio- | ria do Congresso e o do sr. Ruy Bar- |
bosa. (A Província de São Paulo, agosto de 1889)
b) O domingo entre nós já se vae tornando | um perigo sério
para os que atrevem-se a | pôr pé na rua, principalmente das
4 horas | da tarde ás 10 ou 11 da noite, se é que não | correm
egual perigo mesmo as familias que | limitam-se a vir á
janella. (A Província de São Paulo, fevereiro de 1876)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
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Em (10a), o segmento parentético em negrito encontra-se no
início de um parágrafo do Editorial. Trata-se de uma inserção parentética
se considerarmos a sequenciação desse parágrafo introduzido pelo
parêntese em relação ao parágrafo anterior e, além disso, se tomarmos
em conta que esse segmento parentético é bastante desviante da centração
do tópico discursivo pois foca a imagem do escrevente, manifestando
sua atitude em relação ao tópico que está sendo desenvolvido.
Por outro lado, em (10b), o segmento parentético em negrito
reformula uma informação tópica precedente. Seu grau de desvio tópico
é bem menor se comparado ao de (10a), porém podemos considerá-lo
uma inserção parentética.
A maioria dos segmentos parentéticos encontrados se interpõe na
fronteira entre unidades linguísticas, conigurando a sequência E1-E2-E3.
São 86 ocorrências de parênteses entre constituintes da frase (65,2 % dos
dados) e 24 de parênteses no limite entre duas unidades frasais (18,2 %
dos dados), o que totaliza 110 parênteses rompendo a adjacência entre
constituintes ou entre unidades frasais (83,4 % dos dados). Parênteses
no im de frase ou de parágrafo totalizam 21 ocorrências (15,9% dos
dados), e há uma única ocorrência de parêntese no início de parágrafo
(0,8% dos dados). De certa forma, esses dados estatísticos revelam que
a posição prototípica de segmentos parentéticos é na fronteira/adjacência
de unidades linguísticas.
Por im, em relação à sua constituição formal, Jubran (2006b)
airma que os parênteses são, no geral, de curta duração e podem ter as
seguintes conigurações formais: (i) marcadores discursivo; (ii) sintagmas
nominais; (iii) frases simples; (iv) frases complexas e (v) pares adjacentes.
Constituições formais como (i) e (v) não foram encontradas
entre nossos dados. Jubran (2006b), em seu estudo de textos falados, cita
parênteses constituídos predominantemente de marcadores discursivos
orientadores da interação, como claro?, entendeu? e digamos assim.
Em textos como os Editoriais, de um discurso planejado e elaborado,
em que o “modus sintático prevalece sobre o pragmático” (JUBRAN,
2006b, p. 301), não é muito fácil encontrar parênteses constituídos por
esses marcadores. Assim também ocorre com parênteses constituídos
de pares adjacentes, como o par dialógico pergunta-resposta, típicos de
situações conversacionais, em que predomina uma interação face-a-face.
Dessa forma, nos Editoriais paulistas analisados, os parênteses
encontrados se constituem formalmente como sintagmas (cf. (11a-c)),
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
frases simples (cf. (11d-e)) e frases complexas (cf. (11f-g)). No que se
refere aos parênteses de estrutura sintagmática, Jubran (2006b), em seu
corpus de textos falados, identiica somente parênteses constituídos por
sintagmas nominais; já nos editoriais analisados, além dos sintagmas
nominais (cf. (11a)), encontram-se parênteses constituídos por sintagmas
adjetivais (cf. (11b)) e por sintagmas preposicionados (cf. (11c)).
(11) a) No 2º escrutinio do 1º e 7º districtos venceu | a opposição,
sendo eleito naquelle o sr. dr. An- | tonio Prado, candidato
conservador, e neste o | sr. dr. Campos Salles, candidato
republicano. (A Província de São Paulo, 03/01/1885).
b) A opposição, assim constituida, ha | de muitas vezes unir-se
e embaraçar | actos menos regulares do partido domi- | nante.
(A Província de São Paulo, 11/01/1887).
c) O chefe do estado despediu os seus minis- | tros conservadores
e chamou outros, de po- | litica diversa, representantes
dos matizes do | liberalismo. (A Província de São Paulo,
12/01/1878).
d) Necessitamos de uma politica practica, é certo, | mas cujos
actos sejam inspirados por um ideal de- | terminado, claro e
concludente (A Província de São Paulo, 04/01/1875).
e) O que não fazemos, e nunca faremos, é da imprensa | um
poste para os adversarios e altar para correligio- | narios por
mais peccadores que elles sejam. (A Província de São Paulo,
04/01/1879).
f) Coniamos muito no criterio dos membros | da commissão,
entre os quaes se acha um | que tambem se corresponde
com sabios es- | pecialistas da Europa, para darmos a
pater- | nidade de actos bons sómente ao sr. D. Pe- | dro II.
(A Província de São Paulo, janeiro de 1886)
g) O mais operoso, o mais assiduo e o | mais brilhante redactor
do Commercio | de S. Paulo, o illustre sr. José Julio Ro- |
drigues–a quem enviamos cordiaes cum- | primentos,
por que é a primeira vez que | nos encontramos–acaba de
publicar, na- | quella folha, um artigo que não deve | circular
sem alguns comentarios. (A Província de São Paulo, março
de 1893)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
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Para Jubran (2006b, p. 356), algumas conigurações formais (e
até mesmo funções) dos parênteses são especíicas de textos falados,
por conta das circunstâncias de processamento da fala, que diferem das
da escrita. A autora reconhece que textos escritos prototípicos, que são
altamente planejados e lapidados, não abrigam as descontinuidades que
os parênteses provocam nos segmentos tópicos de textos falados, e nem
mesmo as conigurações formais veriicados em textos falados.
Esta seção, enim, elucida bem essa airmação da autora em
dois pontos: (i) um texto escrito como o Editorial, que ocupa um pólo
extremo no contínuo fala-escrita (cf. MARCUSCHI, 2001), altamente
planejado e elaborado, não apresenta parênteses que, inseridos na
fronteira entre constituintes ou entre unidades frasais, interrompem a
estrutura sintática da sentença e, assim, provocam descontinuidades no
texto, e (ii) a materialidade escrita do texto também inlui nas marcas
de inserção parentética, deixando proeminente a função de conectivos
lógico-semânticos na introdução desses segmentos e, além disso, fazendo
uso de diversas marcas gráicas na sua delimitação.
3.2 Funcionalidade das inserções parentéticas em Editoriais paulistas do
século XIX
Predominam, nos Editoriais paulistas do século XIX, duas classes
de parênteses: a classe (a), especiicamente os parênteses com foco sobre
o conteúdo tópico (cf. (12a)), com 97 ocorrências (73,6% dos dados), e
a classe (d), parênteses com foco sobre o escrevente (cf. (12b)), com 32
ocorrências (24,3% dos dados).
(12) a) O anno de 1875 abre-se, pois, conservando, se não |
augmentando, em muitos espiritos, justas e sérias ap- |
prehensões quanto á felicidade d’esta grande nação.
(A Província de São Paulo, janeiro de 1875)
b) Nada temos, portanto com as conjecturas | do nosso collega
da Germania e, permitta- | nos a franqueza, com as suas
considerações | sobre a preferencia dos professores allemães
| ou de outra qualquer nacionalidade. (A Província de São
Paulo, janeiro de 1886)
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
Em (12a), o segmento se não augmentando focaliza o conteúdo
tópico do segmento-contexto e, dessa forma, guarda uma proximidade
com o tópico discursivo em desenvolvimento. Sua função, portanto, é
mais textual, reformulando a informação tópica precedente. Ele não deixa,
entretanto, de ter uma natureza interacional, ainda que pouco evidente:
esse parêntese, ao menos, cumpre com a questão da informatividade,
acrescentando, ao destinatário, uma nova informação em relação ao
conteúdo tópico. Já em (12b), é por meio do segmento permitta-nos
a franqueza que o sujeito escrevente se introjeta no texto que produz
e traz para ele uma representação a respeito de seu papel discursivo.
Sua função, portanto, é de natureza mais interacional, uma vez que o
escrevente manifesta, para o destinário, sua atitude em relação ao tópico.
A predominância de segmentos parentéticos com foco no
conteúdo tópico evidencia a condensabilidade do Editorial, um dos
atributos fundamentais desse gênero, segundo Beltrão (1980). O Editorial,
frente a tal propriedade, deve focalizar e desenvolver um único tópico
ao longo do texto. Como os parênteses da classe (a) se orientam quase
que exclusivamente para o tópico em desenvolvimento no texto, seu
predomínio nos Editoriais paulistas do século XIX reduz a materialização
e a explicitação, ao longo do texto, das circunstâncias situacionais de
interlocução, o que garante a focalização apenas no conteúdo a ser
abordado pelo Editorial.
Os parênteses com foco no conteúdo tópico encontrados nos
Editoriais analisados apresentam quatro funções diferentes no sentido
de caracterizar um referente do conteúdo tópico: esclarecimento (cf.
(13a-b)), ressalva (cf. (13c-d)), retoque (cf. (13e)) e correção (cf. (13f)).
(13) a) A independente e activa provincia de S. Paulo, juiz | de nossa
conducta nas lides da imprensa, dirá se te- | mos concorrido
para seu engrandecimento e se esta | folha corresponde a uma
necessidade relativa ao seu | progresso e nobres aspirações.
(A Província de São Paulo, 1879)
b) Ainal o passageiro, aflicto e maldizen- | do do serviço e
da Companhia, corre por | sua vez a procurar a familia para
acom- | modal-a. (A Província de São Paulo, 1882)
c) Duplo motivo – o novo anno e o início de nossa | carreira –
convida-nos a não deixar passar o momen- | to sem algumas
relexões, genericas embora, sobre a | actualidade do paiz.
(A Província de São Paulo, 1875)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
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d) Quanto á parte que nos diz respeito, não | podemos acceitar
como procedentes as alle- | gações do illustrado contemporaneo.
Não | tratamos de professores allemães nem de | preferencias
pelos inglezes ou americanos : | apenas extranhamos que, com
a responsabi- | lidade do illustre presidente da commissão |
do plano de ensino, se désse autoridade ao | imperador para
intervir na execução da nova | lei provincial e se attribuisse
aos dous, sem | duvida cavalheiros muito distinctos,
uma | providencia que estava determinada na mes- | ma lei.
(A Província de São Paulo, 1886)
e) O domingo entre nós já se vae tornando | um perigo sério para
os que atrevem-se a | pôr pé na rua, principalmente das 4 horas
| da tarde ás 10 ou 11 da noite, se é que não | correm egual
perigo mesmo as familias que | limitam-se a vir á janella.
(A Província de São Paulo, 1876)
f) Tendo obtido por favor do sr. Saraiva, e | não por inluencia
propria, um logar na lis- | ta tríplice da Bahia, era decoroso
e de boa | lealdade que o sr. Zacharias não procurasse |
açodadamente empalmar a senatoria por | meio da empalmação
do ministerio. (A Província de São Paulo, 1880)
Parênteses de esclarecimento, como em (13a-b), tem por inalidade
(i) detalhar a referência de algum elemento trazido anteriormente, como
em (13a), em que o aposto juiz de nossa conducta nas lides da imprensa
torna clara a referência evocada pelo sintagma nominal a independente
e activa provincia de S. Paulo, ou (ii) elucidar dados que contribuem
para a clareza dos conteúdos ali presentes, como em (13b), em que o
sintagma aflicto e maldizendo do serviço e da Companhia particulariza
uma informação do contexto descrito para atender a um propósito maior
do jornal, o de denúncia das condições dos serviços prestados pela
companhia de trem.
Já parênteses de ressalva, como em (13c-d), servem como
observações do escrevente a respeito da abrangência referencial de
elementos ou conteúdos do enunciado, cumprindo, desse modo, um
papel mais textual. No âmbito interativo, sua contribuição é mais
restrita, já que servem, ao menos, a uma estratégia de preservação da
face do escrevente, que, antecipando possíveis conclusões de seu(s)
destinatário(s) a respeito da temática do tópico, já as nega. O parêntese
412
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em (13c), por exemplo, opera uma redução da abrangência das relexões
trazidas naquele Editorial sobre a atualidade do país: o escrevente sinaliza
para o destinatário que as relexões devem ser encaradas como genéricas;
esse movimento de ressalva é uma forma de o escrevente manter sua
autoimagem, uma vez que ele próprio adianta a seu(s) destinatário(s) que
as relexões tem caráter genérico. Em (13d), por outro lado, o movimento
é contrário: o parêntese sem duvida cavalheiros muito distinctos opera
uma ampliação na abrangência referencial de os dous, acrescentando
qualiicações como cavalheiros e muito distinctos; a ressalva, de certa
forma, atende à preservação da face do escrevente ao trazer, para o texto,
uma possível conclusão que forma parte do conjunto de conhecimentos
do(s) destinatário(s).
Por im, parênteses de retoque (cf. (13e)) e de correção (cf. (13f))
são meios de reformulação textual. O parêntese de retoque reformula uma
informação tópica, acrescentando elementos diferentes a ela; em (13e),
por exemplo, o segmento parentético reformula a informação sobre o
perigo de estar à rua no horário entre quatro da tarde e dez ou onze da
noite ao inserir a informação de que igual perigo podem estar passando
as famílias que permanecem à janela. O parêntese de correção, por outro
lado, anula a informação sobre a qual recai a correção, como em (13f),
em que se anula a informação de que se teria obtido o lugar na lista
tríplice da Bahia por inluência própria.
Entre os parênteses focalizadores do conteúdo tópico,
predominam, nos Editoriais, os parênteses de esclarecimento e
de ressalva. Estes representam 36,4% dos dados, num total de 48
ocorrências, enquanto aqueles representam 31,8% dos dados, num
total de 42 ocorrências; juntos representam 68,2% dos dados.5 Essa
predominância evidencia o caráter não só informativo do Editorial,
mas também seu caráter opinativo. Ao trazer novos elementos para a
construção de um referente ou de uma informação, os esclarecimentos,
além de colaborarem com a informatividade e a clareza do texto, operam
na construção de um posicionamento opinativo do jornal em relação
a tal informação ou referente. Os parênteses de ressalva, ao restringir
ou ampliar a abrangência referencial de uma determinada informação,
5
Tais porcentagens levam em conta a totalidade de dados encontrados nos Editoriais
analisados, no caso 132 ocorrências de inserções parentéticas.
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413
veiculam avaliações sobre essas opiniões, o que materializa o ponto de
vista do jornal em relação ao fato relatado.
Se, conforme expõe Jubran (2006b, p. 328), parênteses de
esclarecimentos e de ressalva, na função de parênteses focalizadores do
conteúdo tópico, asseguram a inteligibilidade e a aceitabilidade do texto
e contribuem para a caracterização de um referente ou de algum elemento
informacional do conteúdo tópico, sua predominância nos Editoriais
analisados está relacionada ao propósito comunicativo mais geral do
gênero Editorial: a defesa de um posicionamento crítico do jornal,
conforme lembra Zavam (2009, p. 182). O gênero Editorial, segundo
a autora, “ocupa um lugar discursivo assegurado para a manifestação
axiológica da empresa jornalística” (ZAVAM, 2009, p. 182). A esse
propósito mais geral, está, então, articulado um conteúdo mais geral:
manifestar opiniões acerca de um tema, sobre o qual o Editorial irma
seu posicionamento (cf. ZAVAM, 2009, p. 182).
Os parênteses com foco no escrevente, por sua vez, apresentam
duas funções no sentido de manifestar um posicionamento da voz coletiva
do jornal em relação ao conteúdo tópico: (i) qualiicação do escrevente
para discorrer sobre o tópico (cf. (14a)), e (ii) manifestações atitudinais
do escrevente em relação ao tópico (cf. (14b)).
(14) a) Para saudar essa victoria do novo partido, | para a qual
tambem concorremos, intervindo | como elemento de
formação da opinião, abri- | mos aqui espaço ao nosso illustre
collega do | Paiz. (A Província de São Paulo, 1885)
b) O serviço que desagrada e levanta re- | clamações não é mal
feito por má vonta- | de dos empregados, justiça se lhes faça,
| mas por deiciencia de pessoal. (A Província de São Paulo,
1882)
Parênteses como o de (14a) suspendem o tópico discursivo
em curso para que o escrevente insira um comentário avaliativo de
sua competência para desenvolver esse tópico; no exemplo em (14a),
a suspensão do tópico é operada para que o escrevente do editorial
qualiique positivamente a imagem do jornal como participante das
eleições e elemento de formação de opinião. Jubran (2006b, p. 341) prevê
que essas avaliações podem ser positivas (autoqualiicação) ou negativas
(autodesqualificação). Entre as 132 ocorrências coletadas, apenas
414
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
quatro (3% dos dados) coniguram-se como parênteses qualiicadores
do escrevente para discorrer sobre o tópico, e todas manifestam uma
autoqualiicação do escrevente para discorrer sobre o tópico discursivo
em curso.
Esse resultado revela traços da autoria do Editorial em jornais
paulistas do século XIX. Zavam (2009) airma que a autoria dos Editoriais
cearenses ao longo dos séculos XIX e XX é bastante institucionalizada, de
modo a se atribuir a responsabilidade discursiva à instância empresarial
ou política dirigente do jornal. Segundo a autora, o uso da primeira
pessoa do plural, como ocorre em (14a), conigura um mecanismo de
impessoalização, tipicamente encontrado em Editoriais cearenses do
século XIX. Assim, um dado como (14a), em que se expressa uma
autoqualiicação e se faz uso da primeira pessoa do plural, marca essa
autoria institucional a que se refere Zavam (2009), em que “o editorialista,
que não responde diretamente às intervenções dos leitores e é contratado
para manifestar opiniões que a empresa espera que sejam manifestadas,
goza de prestígio.” (ZAVAM, 2009, p. 192)
Já parênteses como o de (14b) exprimem “o modo pelo qual o
signiicado dos enunciados tópicos é qualiicado, de forma a reletir o
julgamento do falante sobre a probabilidade de serem verdadeiras as
proposições expressas por ele” (JUBRAN, 2006b, p. 343). Em (14b),
por exemplo, o sujeito da enunciação se envolve com o enunciado ali
instaurado de modo a fazer justiça, ou ser justo, com a airmação inserida
naquele tópico discursivo, e a suspensão do tópico do enunciado se opera
de modo a manifestar essa modalização do escrevente em relação a seu
enunciado. O predomínio desse tipo de parênteses (25 ocorrências entre
as 132 totais, o que representa 18,7% dos dados), entre os parênteses que
focam o escrevente, é compatível com a parcialidade e a subjetividade
características do Editorial, uma vez que esse gênero, longe de ser
imparcial e objetivo, intenciona, de fato, reproduzir um posicionamento
discursivo do jornal sobre a temática abordada.
Os dados em (15), junto a (14b), ajudam a perceber como os
parênteses que focalizam o escrevente colaboram na construção de um
posicionamento político e opinativo dos Editoriais paulistas oitocentistas.
Além disso, esses dados mostram como os Editoriais aqui analisados
detêm uma motivação político-partidária, o que se conforma a uma
tendência assinalada por Zavam (2009) em relação aos jornais cearenses:
segundo a autora, questões político-partidárias motivavam fortemente
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
415
a circulação dos jornais cearenses do século XIX e do início do século
XX; os Editoriais desses jornais coniguravam instrumentos de ataques,
por parte de seus redatores, a adversários políticos.
(15) a) Fez-se, ainda ha pouco, a eleição para | deputados e senadores
ao Congresso Na- | cional: e, sem que desejemos atirar uma
| censura aos directores dessa eleição, não | podemos deixar
de reconhecer que elles | não conseguiram dar ao seu grande e
| inegavel triumpho material a força mo- | ral que era precisa
na primeira mani- | festação da vontade popular dentro do |
regimen republicano. (A Província de São Paulo, outubro de
1890)
b) Não julgamos a idéa contraria á politica | conservadora e, si
não nos enganamos, os | conservadores de Pernambuco não
lhe são | adversos e antes a defendem. (A Província de São
Paulo, fevereiro de 1879)
Em (15a-b), os fatos parentéticos, ao manifestarem no texto uma
atitude subjetiva do escrevente, ajudam a reforçar seu direcionamento
crítico e político-partidário. Em (15a), por exemplo, ao discorrer
sobre a eleição para deputados e senadores ao Congresso Nacional, o
jornal, instituído no segmento parentético pelo uso da primeira pessoa
(desejemos), não somente informa sobre os fatos levados a cabo pelos
diretores da eleição, mas envolvem-se subjetivamente com esse conteúdo
tópico, atacando a imagem desses diretores. Já em (15b), o segmento
parentético si não nos enganamos modaliza o posicionamento do jornal
(novamente presente, de forma institucional, pelo uso da primeira pessoa
do plural), manifestando seu descomprometimento com a veracidade do
que ali está sendo relatado.
Por im, em (16), dispõem-se parênteses de baixa ocorrência no
corpus, que correspondem a três classes distintas: parênteses com foco
no escrevente (cf. (16a)), parênteses com foco no interlocutor (cf. (16bc)) e parênteses focalizadores do ato comunicativo (cf. (16d)).
416
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
(16) a) O sr. conselheiro Carrão deputado por | S. Paulo, apreciando as
theorias do sr. Za- | charias, chegou a afirmar que o Brazil se
| achava em circumstancias em que o poeta | latino descreveu
os Gregos:
<<Quidquid delirant reges plectuntur Achivi.>>
<<Declaro, dizia o illustre paulista na ses- | são de 8
de Julho de 1864, que não compre- | hendo bem qual é a
politica do governo, não | comprehendo quaes são suas idéas.
(A Província de São Paulo, 1880)
b) Passando a ser | propriedade da Companhia Impressora, | O
Estado de S. Paulo, como terá obser- | vado o publico, não
abdicou as suas tra- | dicções de independencia, de liberdade,
| e de insubmissão a quaesquer interesses | particulares
contrários aos da collectivi- | dade paulista; conserva-se como
o dei- | xou o seu patriotico fundador. (A Província de São
Paulo, janeiro de 1891)
c) O acto hoje violentamente estygmati- | sado não é senão a
conseqüência daquel- | le que, sem um unico motivo, tirou o
| governo de S. Paulo de seus legitimos | depositarios;
O dr. Jorge Tibiriçá tinha por si a | adhesão unânime dos
paulistas;
O dr. Americo Brasiliense é um sim- | ples detentor do governo
de S. Paulo;
Cabe-nos uma grande parte da vergo- | nha que actualmente
pesa sobre o Es- | tado.
Tudo isto— se assim o querem— é: | pura verdade.
(A Província de São Paulo, agosto de 1891)
d) O mais operoso, o mais assiduo e o | mais brilhante redactor
do Commercio | de S. Paulo, o illustre sr. José Julio Ro- |
drigues–a quem enviamos cordiaes cum- | primentos,
por que é a primeira vez que | nos encontramos–acaba de
publicar, na- | quella folha, um artigo que não deve | circular
sem alguns comentarios. (A Província de São Paulo, janeiro
de 1893)
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018
417
O parêntese em (16a), tipo muito pouco frequente entre os dados
coletados (três ocorrências no total, o que representa 2,3% dos dados),
indica de quem é a autoria de alguma informação referida no texto e,
assim, conigura um segmento parentético com a função de indicar a
fonte enunciadora do discurso.
Já em (16b), o parêntese em negrito evoca um conhecimento
partilhado entre escrevente e destinatário(s), isto é, entre os envolvidos
no ato comunicativo. Trata-se de um mecanismo de dar como consenso
o conhecimento do tópico, o que se atesta pela presença explícita,
materializada no sintagma nominal o público, do destinatário do Editorial.
Por outro lado, em (16c), ao focar também os destinatários do Editorial,
o escrevente deseja envolvê-los em seus comentários e avaliação a
respeito do assunto abordado. No parágrafo anterior ao segmento E1E2-E3, o escrevente do Editorial atribui a culpa da situação política
relatada à população de um modo geral, o que se evidencia pelo uso do
pronome clítico de primeira pessoa do plural (nos) junto ao verbo caber.
O segmento parentético se assim o querem, além de marcado por um
caráter hipotético pela conjunção se, faz uso da terceira pessoa do plural,
que, excluindo o eu da enunciação, no caso o escrevente, traz para o texto
a presença dos destinatários do Editorial.
Por im, em (16d), o parêntese em negrito dá sinais, no texto, da
interferência de dados externos ao ato comunicativo. De certa forma,
ele materializa a presença do escrevente pelo uso da primeira pessoa do
plural (enviamos) e particulariza um potencial destinatário do Editorial (o
sr. José Julio Rodrigues), fazendo referência a um evento externo ao ato
comunicativo que constitui o Editorial (o de enviar cordiais cumprimentos).
Inserções parentéticas como (16b-d) ocorrem uma única vez,
cada uma, entre todos os dados coletados. Seguindo Zavam (2009),
essas inserções podem ser consideradas mecanismos que, ao lado dos
parênteses focalizadores do escrevente exempliicados em (14) e (15),
marcam a subjetividade e a parcialidade que fogem ao controle do
editorialista. Nas palavras de Zavam (2009, p. 190):
Se quem escreve o editorial é um sujeito (entidade física,
e não a instituição, entidade abstrata), que tem a tarefa
de tomar partido sobre um fato da atualidade políticoeconômica e assim “aconselhar e dirigir a opinião dos
leitores” (BELTRÃO, 1980, p. 60), inevitavelmente seu
discurso será atravessado pela subjetividade e parcialidade
[...].
418
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Em síntese, no tocante a sua funcionalidade, a Parentetização
está associada a dois principais aspectos da constituição do gênero
Editorial: (i) a representação de um posicionamento crítico do jornal e
(ii) a institucionalização de uma autoria, que representa a voz do jornal,
e não uma voz particular.
4 Considerações inais
Este artigo toma como proposta central oferecer uma análise
textual-interativa das inserções parentéticas encontradas em Editoriais
paulistas do século XIX. Para atender a esse objetivo mais geral, seguemse duas etapas de investigação: (i) descrição do modo como se coniguram
formalmente as inserções parentéticas nos Editoriais analisados, e (ii)
caracterização da funcionalidade textual-interativa dos parênteses nesse
gênero especíico.
Em relação a (i), este trabalho evidencia que a materialidade
escrita do tipo de gênero analisado inlui na coniguração formal dos
parênteses: por um lado, o uso de conectivos e de marcas gráicas na
delimitação dos parênteses chama a atenção para um traço que parece ser
típico de modalidades textuais mais próximas ao pólo da escrita (dentro
de um contínuo fala-escrita, conforme estabelecido em Marcuschi, 2001);
por outro lado, a ocorrência de parênteses em fronteiras de constituintes da
frase ou entre unidades frasais não implica rupturas ou descontinuidades
sintáticas. Esses aspectos estão intrinsicamente relacionados à atividade
de planejamento envolvida na formulação e na construção de um texto
escrito prototípico, o que se sumariza nas seguintes palavras de Jubran
(2006b, p. 357):
Pelo fato de que na escrita o modus sintático prevalece
sobre o pragmático, nela não é de se esperar a ocorrência
de parênteses que promovam cortes sintáticos, nem que
se intercalem em determinadas fronteiras em que uma
inserção poderia romper estruturas canônicas.
Além disso, os dados analisados apontam para uma revisão
(ou implementação) em relação à proposta de Jubran (2006b) de que
a ausência de partículas conetivas prefaciando os parênteses é uma
evidência da propriedade de desvio tópico. A análise aqui apresentada
possibilita concluir que os conectivos funcionam como suportes para o
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funcionamento textual-interativo das inserções parentéticas e não afetam
o seu desvio tópico, já que muitas de suas construções são estruturalmente
independentes ou desgarradas.
Já em relação a (ii), é possível traçar uma correlação em três
vias entre traços composicionais do gênero Editorial (em circulação no
século XIX em São Paulo) e a ocorrência predominante de determinadas
classes e funções de parênteses: (a) o predomínio da classe parentética
com foco no conteúdo tópico está relacionado a um dos atributos
fundamentais do Editorial, a condensabilidade (BELTRÃO, 1980); (b)
entre os parênteses com foco no conteúdo tópico, a alta frequência das
funções esclarecimento e ressalva se articula à inalidade comunicativa
do Editorial, no caso a defesa de um posicionamento crítico do jornal; (c)
a ocorrência, mesmo que baixa, de parênteses com foco no escrevente,
com foco no interlocutor e com foco no ato comunicativo, além de dar
indícios de uma autoria, contribui para a construção da parcialidade e
da subjetividade do Editorial.
Enim, a análise do processo de Parentetização nos Editoriais
do corpus selecionado mostra que esse processo é ocorrente e que suas
funções se mostram signiicativas para a caracterização desse gênero
à medida que contribuem com o propósito comunicativo central do
Editorial: informar sem a preocupação de ser imparcial e objetivo, mas,
ao contrário, ao trazer a informação, marcar o posicionamento do jornal
em relação ao que se está informando.
Referências
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LOPES-DAMASIO, L. R.; JUBRAN, C. C. A. S. (Org.). A província
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ZAVAM, A. S. Por uma abordagem diacrônica dos gêneros do discurso
à luz da concepção de tradição discursiva: um estudo com editoriais de
jornal. 2009. 420 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de PósGraduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza,
2009.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
Apropriação da análise de discurso crítica
em uma discussão sobre comunicação social
Appropriation of critical discourse analysis
in a discussion about media
Viviane de Melo Resende
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF / Brasil
CNPq
resende.v.melo@gmail.com
María del Pilar Tobar Acosta
Instituto Federal de Brasília (IFB), Brasília, DF / Brasil
UnB
acosta.pilar@gmail.com
Resumo: Com o intuito de entender a forma como os street papers
representam a situação de rua e em que medida oferecem espaço para
pessoas nessa situação se autorrepresentarem, realizou-se uma pesquisa
qualitativa em que foram analisados cinco jornais e revistas publicados no
Brasil e em Portugal. Para este artigo, foi composto um corpus documental
formado por cinco volumes consecutivos do jornal O Trecheiro. Com base
na Análise de Discurso Crítica, este trabalho investiga a maneira como
se deu a representação da situação de rua nesses volumes do periódico,
explorando as seguintes categorias analíticas: signiicado de palavra,
intertextualidade, representação de atores sociais e interdiscursividade.
A inclusão, nos textos do jornal, de vozes de pessoas nessa condição abre
espaço para sua autorrepresentação, o que possibilita a materialização de
narrativas outras, por outros prismas experienciais. Nesse espaço, leitores/
as em situação de rua, público preferencial dessa iniciativa, podem se ver
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.421-454
422
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
representados/as, podem construir modos alternativos de identiicação,
com base em outros modos particulares de representação (discursos),
para muito além daqueles que os/as desumanizam.
Palavras-chave: análise de discurso crítica; publicações de rua; situação
de rua.
Abstract: In order to understand how street papers represent homelessness
and to what extent provide space for homeless people self-represention,
a qualitative research investigating ive newspapers and magazines
published in Brazil and Portugal was held. For this paper, we composed
a corpus of ive consecutive volumes of the newspaper O Trecheiro.
Based on Critical Discourse Analysis, we investigate the representation
of homelessness in these volumes of the journal, exploring the analytical
categories lexicon, intertextuality, representation of social actors and
interdiscursivity. The inclusion of voices of people in homelessness
in the texts of the newspaper opens space for their self-representation,
which allows the materialization of other narratives, by other experiential
prisms. In this space, homeless readers can see themselves represented;
they can construct alternative modes of identiication, based on other
particular modes of representation (discourses), far beyond those which
dehumanize them.
Keywords: critical discourse analysis; street papers; homelessness.
Recebido em 17 de fevereiro de 2017.
Aprovado em 13 de fevereiro de 2017.
1 Introdução
A rua é o lugar comum por excelência; quem nela vive ica
exposto/a o tempo todo ao contato com os/as demais. Contudo, nem
sempre uma pessoa em situação de rua convive com os/as que passam.
Apesar da apartação social (BUARQUE, 2003), ou mesmo em razão
dela, emergem mobilizações que acabam se tornando recurso para a
construção identitária, criando assim um lugar simbólico. É o caso de
publicações voltadas para a situação de rua, os chamados street papers,
alguns dos quais se articulam em uma rede internacional, a International
Network of Street Papers (INSP).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
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Com o intuito de entender como alguns desses jornais–
especiicamente aqueles produzidos em língua portuguesa e integrados à
INSP – representam a situação de rua e em que medida oferecem espaço
para pessoas em situação de rua se autorrepresentarem, foi realizada uma
pesquisa qualitativa entre 2010 e 2014, em projeto de pesquisa integrado
que articulou cinco projetos particulares. O projeto integrado, coordenado
por Viviane de Melo Resende, articulou os projetos de Acosta (2012),
Santos, A. (2013), Santos, G. (2013) e Resende (2011), investigando
cinco jornais e revistas publicados no Brasil e em Portugal e ligados
à INSP. Realizado no Programa de Pós-Graduação em Linguística e
vinculado ao Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (NELiS) da
Universidade de Brasília, o projeto foi apoiado pela Fundação de Apoio à
Pesquisa do Distrito Federal e premiado pelo Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra, Portugal.
Neste artigo, a im de ilustrar como a Análise de Discurso
Crítica pode ser apropriada em um projeto particular, concentramo-nos
em apresentar alguns dos resultados de pesquisa pertinentes a apenas
uma das publicações estudadas: o jornal O Trecheiro, produzido em
São Paulo pela Rede Rua de Comunicação (<http://www.rederua.org.
br/rederua/>). Foi composto um corpus documental formado por cinco
volumes consecutivos do jornal – agosto de 2010, setembro/outubro
de 2010, novembro de 2010, dezembro de 2010 e janeiro/fevereiro
de 2011. Com base em arcabouço teórico-metodológico oferecido em
Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001; FAIRCLOUGH,
2003; FAIRCLOUGH, 2010; RAMALHO; RESENDE, 2011; VIEIRA;
RESENDE, 2016; PARDO ABRIL, 2008), procuramos investigar,
por meio de análise textualmente orientada, a maneira como se deu
a representação da situação de rua nesses volumes do periódico. Para
a análise dos textos, exploramos as seguintes categorias analíticas:
signiicado de palavra, tendo como foco a oposição desse jornal às
práticas jornalísticas tradicionais; intertextualidade e representação de
atores sociais, observando em que medida pessoas em situação de rua,
de fato, participam dos/nos textos; e interdiscursividade, investigando
quais discursos estão mais presentes nos textos, como aparecem e como
são articulados.
O artigo organiza-se em três seções. Na primeira, oferecemos
um breve panorama sobre jornais de rua, observando as especiicidades
do jornal O Trecheiro. Na segunda, traçamos uma revisão teórica
424
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
em Análise de Discurso Crítica, do arcabouço teórico-prático cuja
apropriação intentamos exempliicar. A terceira seção dedica-se às
análises discursivas, divididas em três subseções. Apresentamos por im
algumas considerações sobre o trabalho realizado.
2 Jornais de rua – o caso especíico de O Trecheiro
Os jornais de rua (street papers) constituem um suporte alternativo
para a veiculação de informações sobre temas relativos à situação de rua,
ao mesmo tempo que possibilitam um trabalho alternativo na venda
das publicações. Esse tipo de publicação foi inicialmente realizado em
Londres pela revista pioneira The Big Issue, em 1991. Atualmente existem
mais de 100 street papers, distribuídos em 35 países e publicados em 24
línguas, nos seis continentes, reunidos em uma associação internacional,
a International Network of Street Papers (INSP). Conforme a associação,
esses periódicos pretendem constituir “uma só voz contra a pobreza”
(INSP).
O principal objetivo dessas publicações é a possibilidade de
geração de renda para pessoas que foram marginalizadas pelo sistema
econômico, buscando a superação de algumas das consequências nefastas
da acumulação de capital. À diferença de outros periódicos destinados à
população em situação de rua, O Trecheiro não tem o objetivo de ser uma
ferramenta econômica, tendo em vista que sua distribuição é gratuita.
Assim, O Trecheiro não atende a uma diretriz básica do funcionamento
de jornais de rua conigurados como street papers: a geração de renda.
Todos os demais jornais e revistas de rua investigados no projeto
integrado que mencionamos na Introdução (Aurora da Rua, Boca de
Rua, Cais e Ocas), de que este artigo é recorte, são ferramentas para
geração de renda e alternativas de trabalho informal, já que são vendidos
nas ruas por pessoas em situação de rua, para as quais é revertida uma
parcela da receita das vendas. No caso de O Trecheiro, por outro lado,
trata-se de jornal de distribuição gratuita, que se constitui um veículo
de comunicação de questões especiicamente relacionadas à situação
de rua, às mobilizações sociais referentes ao tema, às políticas públicas
especíicas, às lutas e conquistas nesse campo.
O jornal é uma das ações da Rede Rua de Comunicação (2011),
como consta em seu site:
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425
Desde os anos de 1980, a Rede Rua promove comunicação
a partir dos excluídos. Documenta e assessora a
comunicação de movimentos, entidades e grupos sociais
e populares.
Jornal “O Trecheiro” – Há 15 anos publica a realidade do
povo de rua e registra a história de luta e de esperança do
povo excluído.1
Produção de Vídeos – Produz vídeos socioeducativos e
documentários, acompanhando a organização dos grupos
populares.
Fotograia – Registra fatos e manifestações de interesse
social, principalmente, da população em situação de rua.
Videoteca – Dispõe de 900 títulos que retratam experiências
de inclusão social: organização, formação política, humana
e religiosa.
A entidade pretende, dessa maneira, documentar e assessorar “a
comunicação de movimentos, entidades e grupos sociais e populares”
(Rede Rua de Comunicação), por meio de fotograias, vídeos e textos,
tendo como objetivo atuar sobre o processo de exclusão social (ACOSTA;
RESENDE, 2014b). Alderón Costa, diretor da Rede Rua e editor chefe
de O Trecheiro até 2014, é também fundador da revista Ocas, que segue
a fórmula dos jornais de rua. Assim, O Trecheiro é, provavelmente,
uma ação complementar, dentro desse esforço por maior visibilidade às
demandas da população em situação de rua (ACOSTA, 2012).
Quanto à estrutura física, podemos dizer que o periódico,
composto por uma folha jornal que, dobrada, resulta em quatro páginas,
apresenta semelhanças com os jornais de grande circulação, no que tange
a sua organização. É um suporte impresso, no qual é possível ler textos
que materializam gêneros tradicionais do jornalismo – editorial, colunas
de opinião, reportagens, entrevistas, entre outros –, sendo esses textos
escritos no formato canônico de narrativa jornalística. Desse modo, como
veriicado em trabalho anterior, “O Trecheiro atende à expectativa gerada
pelo suporte jornal. As notícias são acompanhadas, na maioria dos casos,
de imagens que ilustram a informação presente nos textos verbais, o que
também é uma característica convencional para o suporte” (ACOSTA;
RESENDE, 2014b, p. 153).
1
Em 2015, O Trecheiro comemorou os 20 anos de sua criação.
426
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
O Trecheiro focaliza questões relativas à situação de rua: todas
as informações e notícias veiculadas orbitam essa temática. O jornal já
publicou, por exemplo, estudos sobre o trabalho de pessoas em situação
de rua, reproduções de trechos de cartilhas, relexões sobre a Política
Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua, entre muitos
outros textos abordando diversos assuntos, mas sempre com o foco na
rua. Pela forma como é feito e distribuído, acreditamos que O Trecheiro é
um instrumento de resistência social extremamente relevante na luta pela
valorização de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade.
Esperamos que este artigo possa ilustrar por quê.
3 Análise de Discurso Crítica como teoria e método para reletir
sobre questões sociais
A Análise de Discurso Crítica (ADC) inscreve-se na linguística
funcionalista e baseia-se fundamentalmente na ideia de que a linguagem
funciona na sociedade, sendo por ela modiicada e podendo, dialeticamente,
provocar mudanças sociais. Por essa razão, seu desenvolvimento exigiu
contribuições de outros estudos para viabilizar uma análise social e
linguística, assim estabelecendo interfaces com diferentes áreas do
conhecimento. Desse modo, a ADC constitui-se uma interdisciplina que
oferece um rico quadro teórico-metodológico para investigar a linguagem
em sociedade, com base na análise situada de textos.
Para lograr construir crítica explanatória (conceito de BHASKAR,
1998; veja também FAIRCLOUGH; JESSOP; SAYER, 2002), todo
estudo em ADC precisa se apoiar em conceitos cuidadosamente
discutidos e aplicados, o que possibilita o rigor analítico necessário
para se produzirem pesquisas relevantes. Nesta seção, apresentamos
uma breve revisão teórica, pautando-nos por conceitos centrais à prática
de pesquisa em ADC. Em nossa revisão, focalizamos versões de ADC
desdobradas do trabalho de Norman Fairclough e seus desenvolvimentos
na América Latina.
3.1 Linguagem e sociedade – a soisticação das tecnologias de texto
Para a ADC, a instância discursiva é parte indissociável da vida
social, estando interconectada com outras – crenças, valores, ideologias,
atividade material, relações sociais, instituições, posições. É um ‘momento’
da prática social passível de ser analisado em função da materialidade dos
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
427
textos produzidos em eventos sociais (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH,
1999). Qualquer ato comunicativo constitui texto, estando compreendidos
desde textos escritos – textos de jornais, livros, publicidade, entre muitos
outros – ou textos orais – conversas, aulas, programas de televisão, entre
muitos outros – até textos multimodais, que se utilizam de diferentes
modalidades de linguagem (verbal escrita, verbal oral, imagética estática,
imagética dinâmica, musical etc.) em sua composição. Isso signiica
dizer que outras semioses, para além da linguagem verbal, são incluídas
no conceito ampliado de texto e são passíveis de análise. No caso de
imagens, por exemplo, temos textos imagéticos que podem ser analisados,
entre outros enquadres, pelo arcabouço da Gramática do Design Visual
(KRESS; van LEEUWEN, 1996) ou pelos Estudos Críticos do Discurso
Multimodal (PARDO ABRIL, 2011), ou ainda, no caso de ilmes, por
exemplo, pelo Método de Análise de Discurso Audiovisual, segundo
D’Angelo (2012).
Textos de quaisquer tipos e materializados em quaisquer gêneros
são entendidos como eventos discursivos situados na medida em que
existem pela/na linguagem e, ao mesmo tempo, articulam diferentes
discursos, uma vez que materializam determinadas formas de ver o
mundo ou parte dele. Disso depreende-se uma dupla acepção para
‘discurso’, desenvolvida nos trabalhos de Norman Fairclough: como
substantivo abstrato, signiica “linguagem como momento irredutível da
vida social” e, como substantivo contável, signiica um “modo particular
de representar parte do mundo”, ligado a interesses especíicos (VIEIRA;
RESENDE, 2016, p. 17).
Com base nessa segunda acepção, sinaliza-se o estabelecimento
de redes de ordens de discurso, nas quais as ações discursivas são
possibilitadas e reguladas.2 As ordens de discurso são, assim como as
práticas, no que se refere à relação entre estruturas sociais e a agência
humana, o ponto de conexão entre o sistema abstrato (mecanismos e
estruturas linguísticas) e a realização concreta (textos). Nessa perspectiva,
diferentes discursos, sendo diferentes formas de signiicar o mundo, estão
Ordens de discurso são “as combinações particulares de gêneros, discursos e estilos
que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais” (FAIRCLOUGH,
2003, p. 220), isto é, correspondem à estruturação social da linguagem. O conceito
conforme proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999) retoma a formulação de
Foucault (1999 [1971]).
2
428
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atrelados a diferentes práticas sociais e são estruturados em função de
interesses particulares (FAIRCLOUGH, 2010). Essas práticas devem ser
analisadas segundo a percepção de que são frutos de processos sociais
e que na mesma medida os reproduzem e/ou modiicam.
Partindo dos estudos da gramática funcional de Halliday
(1985), houve em ADC a operacionalização das metafunções da
linguagem propostas pelo linguista – ideacional, interpessoal e textual
– em três signiicados da linguagem – representacional, acional e
identiicacional (FAIRCLOUGH, 2003). Essa recontextualização teórica
da multifuncionalidade da linguagem enfatiza que, por meio de textos,
atores sociais representam o mundo, agem sobre ele e identiicam(-se).
Assim, para a ADC, qualquer evento discursivo (resultando texto) articula
diferentes signiicados. Esses signiicados são mais característicos de
determinadas instâncias dos textos, como, por exemplo, os discursos
presentes nos textos que dão a ver a forma como o mundo está sendo
representado. Há, dessa maneira, uma correspondência entre o signiicado
representacional e os discursos (FAIRCLOUGH, 2003). No mesmo
sentido, o signiicado acional articula-se aos gêneros textuais, e o
signiicado identiicacional, aos estilos. Para acessar esses diferentes
signiicados nos textos, foram desenvolvidas categorias analíticas, que
“são formas e signiicados textuais associados a maneiras particulares
de representar, de (inter)agir e de identiicar(-se) em práticas sociais
situadas” (VIEIRA; RESENDE, 2016, p. 112).
Em ADC, devemos enfatizar, teoria (do funcionamento social da
linguagem) e método (de análise discursiva) são importantes e andam
juntos. Esse aspecto dos estudos discursivos críticos e sua relevância para
a capacidade explanatória de pesquisas discursivas têm sido destacados
nos desenvolvimentos da ADC na América Latina (PARDO, 2011;
RESENDE, no prelo). Os procedimentos metodológicos, destacado
o trabalho com categorias linguísticas, estão atrelados à instância de
conceitos sociológicos, o que relete o caráter teórico-metodológico
da área. Assim, para viabilizar a análise social textualmente orientada,
categorias analíticas desenvolvidas na linguística funcional, em suas
diversas vertentes, são articuladas em ADC, objetivando acessar a
instância das práticas sociais nos usos da linguagem. Desse modo, é
possível mapear as conexões entre o discursivo e o não discursivo, tendo
em vista seus efeitos sociais.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
429
Outro imperativo para o/a analista em ADC é procurar
compreender em profundidade a conjuntura social, para uma efetiva
investigação das práticas sociais em seu aparato discursivo. Em ADC,
o atual momento de desenvolvimento da sociedade é entendido como
“novo capitalismo” (FAIRCLOUGH, 2006), expressão que, em contraste
com outras formas de se descrever esse mesmo momento histórico – pósmodernidade, modernidade tardia, modernidade luida/liquida–, enfatiza
as consequências das sucessivas reestruturações do sistema econômico
para a constituição da sociedade. Essas mudanças do capitalismo são (re)
adaptações cujo objetivo central é a perpetuação de práticas capitalistas
que, a seu turno, perpetuam a distribuição desigual de poder que esse
sistema econômico-social garante. Essas mudanças põem em curso
movimentos que se fazem sentir nas mais distintas áreas da vida social
(CANCLINI, 2006), e, por isso, o foco no novo capitalismo não se reduz
a um foco em questões econômicas (FAIRCLOUGH, 2006).
A linguagem, como parte indissociável da vida social, é afetada
por esses movimentos, dos quais se deve ressaltar a tecnologização
dos diferentes momentos da vida social, que acarreta a especialização
de discursos na sociedade – criando ‘feudos simbólicos’, em que cada
assunto da vida deve ser e só pode ser tratado de forma sistematizada
por proissionais especíicos de cada área. Isso, levado às últimas
consequências, desempodera pessoas que não detêm os recursos
necessários para ter acesso a esses conhecimentos (MAGALHÃES,
2000; FAIRCLOUGH, 2008).
Assim, é possível falar em uma tecnologia textual (discursiva),
que vem sendo amplamente desenvolvida e explorada pelas mais diversas
redes sociais – e aqui não nos referimos apenas à web. Desse modo, é
emergente o interesse no conhecimento sobre os usos da linguagem,
e cada vez mais a tecnologia é aplicada à produção de textos, com os
mais diversiicados objetivos. No entanto, deve-se ponderar que aqueles/
as que detêm os meios e os recursos para ter acesso ao conhecimento
especializado de construção textual ganham status (ou o mantêm) ao
serem capazes de ‘distribuir’ sua forma de ver o mundo. E, assim,
sobrepõem-se às/aos que, em alguma medida, estão desprovidas/os
desses meios e recursos, o que incide sobre a perpetuação, pelo uso
da linguagem, de assimetrias sociais existentes, em favor de interesses
particulares.
430
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Essa é uma forma – mas não a única – de associação entre
linguagem e novo capitalismo. Tendo em vista que textos, como eventos
discursivos, estão ligados às práticas sociais, é possível entender os
motivos que impulsionaram a soisticação das tecnologias de texto.
Também disso decorre a relevância de se investigarem processos sociais
por meio de análise textualmente orientada.
3.2 Hegemonia e ideologia – a relevância da pesquisa em ADC
Em ADC, entende-se que estruturas de poder são alvo de lutas
também na esfera discursiva. Sobre a noção de hegemonia em Gramsci
(1995), Fairclough (2001, p. 85) comenta que “Nessa abordagem, a
hegemonia é concebida como um equilíbrio instável construído sobre
alianças e geração de consenso das classes ou grupos subordinados, cujas
instabilidades são os constantes focos de lutas”. A complexidade da noção
de poder em ADC também lança mão do pensamento de Foucault, que
nos ensina sobre a natureza multifacetada das relações de poder, que não
devem ser entendidas como simples linearidades.
Assim, existe a necessidade de a hegemonia dobrar-se sobre si
mesma, produzindo sentidos – discursos – que mascaram os mecanismos
de poder e de dominação. Para Fairclough (2010), quanto mais opacos
parecerem esses modos de operação de sentidos a serviço da manutenção
de relações de poder, mais o discurso trabalha na manutenção de
sua estabilidade e na consequente perpetuação de relações sociais
assimétricas. O autor ensina que:
O poder é implícito nas práticas sociais cotidianas, que
são distribuídas universalmente em cada nível de todos os
domínios da vida social e são constantemente empregadas;
além disso, o poder ‘é tolerável somente na condição
de que mascare uma grande parte de si mesmo. Seu
sucesso é proporcional à sua habilidade para esconder seus
próprios mecanismos’ (1981: 86); o poder não funciona
negativamente pela dominação forçada dos que lhe são
sujeitos, ele os incorpora e é produtivo no sentido de
que os molda e reinstrumentaliza, para ajustá-los a suas
necessidades. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 75)3
3
Nesta citação, Fairclough faz referência a Foucault (1981).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
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A hegemonia não se sustenta apenas com base na força, mas tem
de dispor de processos soisticados para apaziguar as tensões imanentes
à distribuição desigual de poder. Um desses processos é a produção de
sentidos, estando aí o embate na esfera discursiva. Assim, entende-se em
ADC que a repetição de um discurso (forma particular de ver o mundo
ou parte dele) em textos é sintoma do sucesso que a hegemonia alcança
na manutenção do poder. Discursos, então, podem ser elaborados e
empregados ideologicamente, sendo ideologia um conceito associado a
processos de disseminação de uma representação particular do mundo
como se fosse a única possível e legítima, o que pode resultar no efeito
de naturalizar desigualdades. A esse respeito, Fairclough (2003) observa
que os efeitos de sentido que mais interessam à ADC são, justamente, os
efeitos ideológicos, sendo o desvelamento das articulações ideológicas
que os textos podem promover um dos principais objetivos da pesquisa
na área. Assim, pretende-se perturbar a estabilidade hegemônica, com
intuito de contribuir para que mudanças ocorram. Isso faz da ADC um
campo da ciência social crítica.
No caso do recorte de pesquisa aqui discutido, investigamos
uma publicação que contribui para que a vulnerabilidade ligada ao
empobrecimento seja percebida de forma relexiva. É sabido que a
mídia tem grande relevância social, por ser veículo, muitas vezes,
para a propagação de discursos hegemônicos (PAIVA; BARBALHO,
2005; RICHARDSON, 2007), sendo um importante território de luta
hegemônica e atuando ideologicamente, a serviço de determinados
grupos da sociedade. A mídia tradicional opera mascarando as causas
da situação de rua, colaborando para que essa realidade seja entendida
como permanente e imutável (temos destacado isso em pesquisas
anteriores, como em RESENDE, 2012, 2013, 2015, 2016; RESENDE;
RAMALHO, 2013). Em contrapartida, a produção de street papers e de
iniciativas como O Trecheiro atua contraideologicamente, objetivando
favorecer maior visibilidade para a complexidade da situação de rua e,
assim, legitimar a luta da população em situação de rua (nossos trabalhos
em ACOSTA; RESENDE, 2014a, 2015 chamam a atenção para isso).
Tendo isso em mente, defendemos a relevância do projeto
de pesquisa integrado de que este artigo traz um recorte: investigou
a representação midiática de uma realidade para a qual a sociedade
parece querer fechar os olhos (PARDO ABRIL, 2008; PARDO, 2012;
MONTECINO; ARANCIBIA, 2013). Na próxima seção, mostraremos
432
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
um recorte analítico dos dados de O Trecheiro que investigamos no
projeto.4
4 Exercício analítico: análise discursiva crítica aplicada a O Trecheiro
As ferramentas básicas para uma análise discursiva crítica são
as categorias analíticas, que não devem ser deinidas a priori em um
projeto de investigação, sendo necessário ter acesso aos dados que os
textos (objeto central da investigação em ADC) oferecem para, então,
poder identificar indutivamente as categorias analíticas que serão
mais produtivas para a pesquisa. Para realizar as breves análises que
apresentamos nesta seção, lançamos mão de algumas categorias em
função dos recortes de dados que na sequência serão apresentados.
As mais relevantes serão signiicado de palavra, intertextualidade e
interdiscursividade, mas outras – transitividade, modalidade, metáfora
– serão mobilizadas de maneira articulada a essas principais.
4.1 A força da tradição e a via alternativa de O Trecheiro: práticas
discursivas
A categoria signiicado de palavra foi selecionada, tendo como
foco a oposição deflagrada por esse jornal a práticas jornalísticas
tradicionais. Essa é uma categoria relacionada ao significado
representacional, por ser a base para a construção de representações
de mundo. O sistema lexical é parte do sistema semiótico prévio aos
textos, e, portanto, o léxico é compartilhado e revela as maneiras como a
sociedade que produziu funcionalmente seus usos regulares entende uma
realidade. Apesar do compartilhamento social de modos de uso regulados
do léxico, a agência do/a produtor/a de texto não é apagada; ao contrário,
ela se mostra também na seleção lexical e na atribuição de signiicados
elaborada nos textos, já que os sentidos das palavras são dependentes
de escolhas de padrões de colocação, sendo também foco de disputas
4
Para outras análises de O Trecheiro, ver Acosta (2012), Acosta e Resende (2015,
2014a; 2014b); para análises de Aurora da Rua, ver G. Santos (2013); para análises de
Boca de Rua, ver A. Santos (2013); para análises de Ocas, ver Acosta (2012), Acosta
e Resende (2014b); para análises de Cais, ver Resende (2013), Resende e Marchese
(2011), Resende e Alexandre (2010).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
433
discursivas. Essa escolha coocorre com a escolha (consciente ou não) de
posicionamento político-ideológico em relação ao mundo representado.
O jornal produzido pela Rede Rua para atender à necessidade
de se criar um espaço no meio impresso para a divulgação, a difusão
e o debate de questões relativas à comunidade de pessoas em situação
de rua recebe o título O Trecheiro. O nome ‘trecheiro’ não se encontra
dicionarizado, mas é usado nas regiões Sul e Sudeste do Brasil para
se referir a pessoas que têm uma vida nômade, não pertencendo a um
determinado local, migrando e ocupando os espaços públicos (praças,
baixos de pontes, viadutos, marquises etc.). O nome deriva de ‘trecho’,
que se refere a um intervalo de duração deinida ou, analogamente, a
um espaço físico delimitado.5 O fato de o ‘trecheiro’ ser aquele que
ocupa/vive nos ‘trechos’ dos centros urbanos mostra uma maneira de
entender a situação de rua sempre orientada no sentido da não pertença,
da brevidade em um ou outro local, o que acaba reiicando a situação
na qual se encontram as pessoas às quais se aplica o termo “trecheiro”.
No contexto estudado, porém, o termo ganha um caráter
valorativo do “Povo da Rua” – parte do subtítulo do jornal: “Notícias
do Povo da Rua”.6 No espaço aberto por esse jornal, a rua é o foco, e
com o termo ‘trecheiro’ coocorrem palavras de caráter valorativo, como
“povo”, que revela a união das pessoas que se encontram marginalizadas.
Esse agrupamento de pessoas contra a situação de vulnerabilidade e suas
consequências é, geralmente, mascarado pela grande mídia, que insiste em
fragmentar o grupo em indivíduos, fragilizando ainda mais sua condição
(RESENDE, 2015, 2016). Por outro lado, seria possível argumentar
que “Povo da Rua” também pode ser interpretado como um epíteto que
segrega: trata-se de um povo especíico, ademais caracterizado por ser “da
rua”? Na primeira interpretação, “povo” opera positivamente, uniicando
esse (grande) grupo populacional e colaborando, dessa maneira, para
a construção simbólica de uma identidade coletiva, o que fortalece
cada indivíduo que se identiique com essa causa – e, principalmente,
chamando a atenção para o expressivo contingente populacional que se
5
Trecho: s.m. Pequeno espaço de tempo ou lugar; intervalo. / Excerto, pequena passagem
de uma obra literária ou musical. // loc. adv. A trecho ou a trechos, de tempo em tempo,
de quando em quando. (vide Dicionário Aurélio versão online).
6
Para uma análise multimodal detalhada da apresentação verbo-imagética do título do
jornal, ver Acosta e Resende (2015).
434
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
encontra nessa situação. Na segunda interpretação possível, por outro
lado, pode-se sustentar que a expressão opera exclusão desse mesmo
contingente populacional em relação ao povo brasileiro de modo mais
amplo e que a ixação dessa parcela da população, no qualiicador “da
Rua”, pode ter efeito de reiicação, assim como se observa para “morador
de rua”, por exemplo. Talvez essa tensão interpretativa tenha sido a causa
da mudança do subtítulo do jornal, a partir de 2016, para “Jornalismo a
serviço da população em situação de rua”.
No cerne dessas escolhas está um posicionamento consciente
por parte dos/as editores/as do jornal, o que é expresso de forma mais
direta principalmente no espaço dos editoriais. A consciência sobre o
ato linguístico não é expressa apenas pelos/as editores/as do jornal, mas
também por seus/suas leitores/as. A relexão acerca do léxico ocorre,
por exemplo, na carta de uma leitora que se encontrava em situação
vulnerável, publicada na capa da edição de janeiro/fevereiro de 2010 do
jornal. A seguir reproduzimos a carta integralmente:
Prezados senhores da redação do Jornal
Ao O Trecheiro
Eu estou me sentindo muito humilhada por ser chamada
de moradora de rua. Eu trabalho na Coorpel e, por isso, os
assistentes de saúde só chama nós de moradores de rua. Eu
acho que moradores de rua são aqueles que dome na rua,
passam dia e noite nas ruas. Quem trabalha num serviço
que é pior que trabalhar na roça debaixo do sol ou da chuva,
e tem um teto parra passar a noite, não podem ser chamados
assim. Quero saber por que nós temos que carregar essa
humilhação enquanto estivermos em atividade na Coorpel?
Eu estou no hotel social e não pode nem mudar o endereço
porque senão perdemos o direito assistencial da saúde da
Casa da Misericórdia. Que absurdo!!!! Quero alugar um
quartinho abençoado, mas o que adianta, para levar essa
humilhação, é quem está de acordo com isso. Melhor
continuar como estou. Assinado: Maria, agradece! (sic)
Em sua carta, a senhora Maria compartilha um pouco de sua
experiência laboral como catadora de materiais recicláveis e demonstra
indignação por ser chamada de “moradora de rua” pelos “assistentes de
saúde”. No plano textual, sua revolta contra essa classiicação constrói-se
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
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em “Eu estou me sentindo muito humilhada”, em que o processo mental
(nesse caso relexivo) ‘sentir-se’ representa, no discurso, a experiência do
mundo interior da autora (“muito humilhada”), e na justaposição entre
“não podem ser chamados assim” e “Quero saber por que nós temos que
carregar essa humilhação”, em que se refuta a classiicação por meio do
uso dos modalizadores e novamente pela escolha lexical (“humilhação”).
A recorrência do campo semântico da humilhação para representar
o sentimento decorrente da classiicação como “moradora de rua” revela
o forte teor pejorativo da expressão e suas consequências psicológicas
sobre as pessoas, expressas no sentimento que descreve essa leitora.
Por outro lado, sua indignação se faz ver no ato de argumentar que de
nada adianta trabalhar duro para tentar sair da rua se a sociedade não a
acolhe nem, muito menos, reconhece seu esforço. Isso revela o caráter
condenatório de uma expressão como “morador de rua”, segundo a qual
a pessoa é “de rua” e não está na rua: a condição de vulnerabilidade é
naturalizada a ponto de ser tomada como uma característica inerente
da pessoa (RESENDE, 2008). Tal representação opera dissimulando
a incoerência do sistema em que coexistem, por exemplo, tecnologias
das mais variadas e grupos de pessoas que não têm acesso sequer a seus
direitos mínimos. Ao não aceitar essa pecha, essa condenação, a leitora
do jornal nos mostra como está contido no elemento linguístico todo um
dramático panorama social.
Cabe, no entanto, frisar que essa escolha lexical pode não ser
consciente, pois, muitas vezes, reproduzem-se maneiras de representar
o mundo atreladas a determinados grupos hegemônicos, em razão
da pressão discursiva que esses grupos exercem sobre o conjunto da
sociedade. Uma das principais estratégias ideológicas é a disseminação
de discursos, fazendo com que estes colonizem variados tipos de texto,
sem que haja relexividade a esse respeito. Essa reprodução é, muitas
vezes, feita de maneira não intencional, pela assimilação do conjunto de
saberes e formas que a hegemonia promove.
Ainda sobre isso, podemos observar que, nos jornais e revistas
da mídia de grande circulação, a realidade das pessoas em situação de
rua é mascarada na forma de preconceitos que responsabilizam a pessoa
e ocultam as causas sociais da situação de rua (RESENDE, 2016, 2015).
Retomamos as palavras de Benevenuto (2006, p. 2), que resume o que
é a grande mídia e como ela atua:
436
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
Por comunicação dominante, resumidamente, entende-se
o fenômeno comunicacional que ocorre através de meios
de comunicação de massa legalmente e tradicionalmente
constituídos, reconhecidos pela audiência (público) como
tal. A esse raciocínio, Madrid adiciona que são meios que
“se converteram nos instrumentos mais eicientes para se
obter cotidianamente, de forma massiva e quase intangível,
a articulação da base material da formação histórica com a
sua superestrutura de organização e regulação.”
Benevenuto evidencia o poder da grande mídia, e nós,
pesquisadoras e pesquisadores em ADC, podemos acrescentar que
esse poder se sustenta, em grande medida, – ao lado, obviamente, do
poder econômico, que se converte em poder político, que, por sua
vez, converte-se em poder econômico e, assim, sucessivamente, como
enfatizou Bourdieu, 2011, – pela linguagem elaborada, com o alto grau
de soisticação técnica que as revistas e jornais conseguem desenvolver
em sua produção. Nessa mesma direção, Pardo Abril (2008) analisa
a imprensa colombiana, em uma análise que poderia facilmente ser
transposta a nossa realidade:
O fenômeno da pobreza é proposto na imprensa como
imutável, quando se atribui a ele um caráter histórico e
permanente, articulado ao fato da evidente concentração
de riqueza em um setor minoritário do país [...]. A prática
discursiva na imprensa colombiano aponta o compromisso
que se consolidou entre interesses econômicos e políticos,
e uma indústria da informação associada a esses interesses.
Este fenômeno é evidente na Colômbia, pois no país o
único jornal de circulação nacional, em papel e digital,
pertence a uma família com laços políticos e associada
a grupos econômicos multinacionais. (PARDO ABRIL,
2008, p. 419)
Nesse trecho, a pesquisadora observa que a situação de
vulnerabilidade econômica é representada como algo imutável,
histórico e permanente, e consequentemente natural. Assim, a grande
mídia opera tendo como efeito um apagamento de responsabilidades
pela acumulação de renda e pela apartação social, ao mesmo tempo
que enfatiza responsabilidades individuais das pessoas em situações
vulneráveis. Pardo Abril também observa a suspeita ‘coincidência’ de
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os veículos mais importantes da mídia tradicional colombiana serem de
propriedade de uma família que está ligada tanto ao poder econômico
quanto ao político, tendo evidentemente interesse em mascarar certas
facetas da realidade nacional. No Brasil, o controle midiático de poucos
grupos ligados a algumas poucas famílias7 e a compra de veículos de
mídia por políticos também são fatos conhecidos.
Sobre concentração midiática, e atentando para alguns de seus
efeitos sociais, Pires (2013, s/p) enfatiza que:
A concentração da comunicação no Brasil é aterradora.
Não fosse isso por si só péssimo, essa mídia empresarial
ainda dita, à sua maneira mercadológica, padrões culturais
e de comportamento atrelados à lógica do consumismo e
umbilicalmente ligados ao interesse maior de manter o
status quo. Ao seu modo, a mídia empresarial, controlada
por essas poucas famiglias de magnatas, mantém o
estado das coisas do jeitinho que está: privilégios
socioeconômicos para as suas castas e seus bajuladores
e ignorância cultural e miséria para o restante do povo
– no meio desse fosso de disparidade, repousa o “retrato
comum” da classe média brasileira, alheia aos problemas
sociais, mas preocupada em comprar o novo modelo de
iPhone que acabou de ser lançado.
Na contramão disso, aparecem veículos de mídia alternativa como
uma via para a expressão de outras vozes e interesses, entre os quais
estão os street papers abordados no projeto integrado de pesquisa de que
aqui fazemos pequeno recorte. Nesse contexto, O Trecheiro apresenta
De acordo com o Observatório do Direito à Comunicação, “Dos anos de 1990 até
recentemente, o que se conigurou de maneira acentuada foi o movimento ascendente
de concentração da mídia nacional e a consequente redução drástica de grupos (em
sua maioria, empresas familiares) no controle dos principais veículos de comunicação
do país. Algo em torno de nove grupos familiares controlavam a grande mídia no
decorrer da última década [...]. Atualmente, o número de mandatários da grande mídia
de abrangência nacional encolheu para seis grupos apenas. Isso porque foram retiradas
da lista as tradicionais famílias Bloch, Levy, Nascimento Brito e Mesquita, que não
exercem mais controle direto sobre seus veículos de comunicação. Civita, Marinho,
Frias, Saad e Abravanel [...] são os clãs que comandam o oligopólio midiático no Brasil.”
Disponível em: <http://www.direitoacomunicacao.org.br/index2.php?option=com_
docman&task=doc_view&gid=342&Itemid=99999999>. Acesso em: maio 2015.
7
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diferentes maneiras de tratar a situação de rua e a vulnerabilidade,
posicionando-se ao lado de grupos sociais empobrecidos e, para além
disso, propondo soluções para que, pelo menos, seus direitos básicos
sejam garantidos.
4.2 Intertextualidade: entre ação e representação
A discussão de Bakhtin (2002 [1953]) sobre dialogismo, segundo
a qual qualquer texto encontra-se inevitavelmente inserido em uma cadeia
dialógica com os textos que vieram antes dele e com aqueles que virão
depois, foi basilar para o desenvolvimento dos estudos do discurso,
especialmente para a formulação de teorias do funcionamento social
da linguagem, e permanece inluente em várias vertentes de análise de
discurso, inclusive na versão de ADC com que lidamos na Universidade
de Brasília (VIEIRA; RESENDE, 2016).
No sentido mais evidente, a intertextualidade refere-se a partes de
textos articuladas em outros textos, ou seja, às citações (FAIRCLOUGH,
2003). Mas existem vários modos de se construir relações intertextuais,
e eles nos dão indícios das práticas que estão na origem dos textos, pois
caracterizam formas de agir e se posicionar: ao dar maior ou menor espaço
a uma voz, mais ou menos explicitamente, o/a autor/a do texto demonstra
qual o seu alinhamento e qual a importância que atribui às vozes que
atualiza em seu ato linguístico. Isso localiza a intertextualidade como
característica do signiicado acional da linguagem, pois, ao selecionar
fragmentos de outros textos e incorporá-los ao seu, o/a autor/a age
efetivamente sobre o mundo.
Uma das grandes questões que se impõem à mídia alternativa é a
efetiva participação das pessoas às quais seus produtos se destinam. Essa
questão é relevante para todos os movimentos em que intelectuais ou
quaisquer pessoas que tenham maior poder simbólico tentam alinhar-se às
causas de pessoas que encontram usurpados seus direitos mínimos. O mesmo
paradoxo que põe em xeque a verossimilhança das obras de Graciliano
Ramos, por exemplo, cria entraves para os jornais de rua, na produção
das notícias e da informação sobre a situação que pretendem abordar. Seja
na icção, seja no jornalismo, corre-se o risco de se apresentarem vozes
parcialmente mimetizadas, ouvindo-se delas apenas ecos.
Os textos de O Trecheiro negociam espaço com vozes em situação
de rua, o que deixa ver o grau de engajamento dos/das editores/as com
a questão e sua preocupação ética. As vozes de pessoas em situação de
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rua presentes nos textos do jornal são, muitas vezes (veja outras formas
de materialização dessa polifonia na seção seguinte), trechos de fala
articulados em citações diretas ou rearticulados por meio de citações
indiretas, entremeados nos textos dos/as editores/as e colaboradores/as
do jornal, o que caracteriza materialização convencional do potencial
genérico para textos jornalísticos. A inovação, nesses casos, é que essas
vozes vêm sempre acompanhadas de trajetórias resumidas das pessoas.
Observa-se essa estrutura de articulação intertextual no corpus aqui
considerado, como no seguinte excerto, retirado da edição de novembro
de 2010:
W. S. Machado, 28 anos, está morando na rua por causa
de drogas, recebe pensão por invalidez, mas encaminha
todo o dinheiro para esposa e ilhos. “Já tentei fazer um
tratamento, mas a droga é uma doença e não tenho mais
o que fazer”, declarou Machado. Para ele essas ações [de
derrubada de “casas improvisadas das pessoas em situação
de rua” e recolhimento de “todos os objetos que estivessem
no espaço”, segundo a mesma matéria] são abusivas e
subumanas. “Mesmo usando uma calçada, a gente tem o
nosso direito de, no mínimo, um lar”, completou.
Nesse exemplo, a voz autoral, de Alderón Costa, então editor do
jornal, é uma voz- guia que articula e atualiza as falas de outras pessoas.
Nos textos analisados, esse tipo de articulação acontece tanto para as
vozes de pessoas em situação de rua quanto para as vozes de pessoas que
de alguma forma trabalham com essa realidade (religiosos/as, assistentes
sociais, membros do Movimento Nacional da População em Situação de
Rua, MNPR, promotores/as de justiça, entre outros/as), o que pode ser
identiicado com o que Fairclough (2003) classiica como um cenário
de abertura para a diferença.
Nos textos analisados na pesquisa da qual este artigo apresenta
um brevíssimo recorte, a intertextualidade articula-se intrinsecamente
com a representação de atores sociais (van Leeuwen, 2008), o que é
mais uma característica convencional de gêneros jornalísticos como a
notícia. Essa característica possibilita uma análise que combine esses dois
aspectos textuais (como nas análises apresentadas em Resende, 2013).
Apesar de essa segunda categoria analítica ser relacionada ao signiicado
representacional (em que o texto opera representando as coisas do
mundo), sabemos que os diferentes signiicados do discurso propostos em
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Fairclough (2003) não devem ser tomados como separados; ao contrário,
são construídos dialeticamente. Assim, pesquisas em ADC não somente
devem categorizar visando sistematizar suas análises, mas devem também
poder articular diferentes signiicados, bem como diferentes categorias
nas análises, aproximando, dessa maneira, o modelo teórico do objeto
real que pretendem descrever.
Essa proximidade entre representação e intertextualidade também
foi evidenciada em Resende e Ramalho (2006, p. 67), quando abordam a
agência no texto e observam que a “representação no discurso não é uma
mera questão gramatical, ao contrário, é um processo ideológico cuja
relevância deve ser considerada”. Isso pode levar à conclusão de que esse
deva ser um ponto de contato regular entre os diferentes signiicados, a
representação explicitando a ação.
Diferentemente de jornais da chamada grande mídia, em O
Trecheiro as pessoas em situação de rua são nomeadas, suas histórias de
vida e as circunstâncias que as levaram a viver nas ruas são explicitadas.
Isso indica um esforço representacional de inclusão no texto pela
representação dos traços humanos dos atores sociais – o que, por absurdo
que possa parecer, não é recorrente na mídia tradicional (RESENDE,
2015) – e um reconhecimento de suas narrativas, do que decorre o
vínculo da representação textual a uma lógica explanatória, nos termos
de Fairclough (2003), já que relações causais são reconhecidas. Isso
pode favorecer outro olhar sobre os mesmos problemas e, para além
disso, pode servir de base para que pessoas em situação de rua se vejam
representadas e possam, a partir daí, (re)formular suas identidades.
4.3 Mudança genérica e interdiscursividade
Como exemplo de mídia alternativa, O Trecheiro apresenta
criatividade no que concerne à maneira como, nele, são materializados
gêneros jornalísticos. O suporte é bastante dinâmico, no sentido de
que há adaptações evidentes para melhor atender à população em
situação de rua. Com base na análise dos volumes de agosto de 2010
a janeiro/fevereiro de 2011, foi possível veriicar que houve mudanças
na realização estrutural do jornal, tendo sido criadas, no decurso desse
curto período, três novas colunas: “Ruagenda” (presente nos volumes
de dezembro e janeiro/fevereiro), “Vida no Trecho” (presente em todos
os volumes analisados, mas não em volumes anteriores a que também
tivemos acesso) e “Direto do Trecho” (presente nos volumes de agosto
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a novembro de 2010). Além disso, nos moldes do “Vida no Trecho”, na
capa da edição de janeiro/fevereiro, aparece a transcrição e a imagem
de uma carta enviada a O Trecheiro por uma pessoa em situação de rua,
como vimos neste mesmo artigo.
Essa reestruturação do jornal pode ter sido orientada pelo objetivo
de contemplar efetivamente as pessoas em situação de rua na publicação
que a elas se destina. Isso evidenciaria o caráter inclusivo dessa iniciativa,
pois não se trata apenas de ecos rearticulados de vozes (vide discussão
anterior sobre intertextualidade), mas da criação de um espaço ixo, a ser
habitado por histórias pessoais e visões de mundo particulares. A coluna
“Vida no Trecho” é um espaço aberto para a contribuição por meio de
cartas ou depoimentos, retomados pelo editor Alderón Costa, de pessoas
em situação de rua, ou com trajetória de rua, nas quais elas narram um
pouco de sua história. A seção “Direto do Trecho” realiza o gênero coluna
de opinião, e os textos são sempre assinados por Salvador d’acolá, que
se encontra em situação de rua. Essa coluna é muito particular, pois a
qualidade dos textos de seu autor deixa ver a capacidade relexiva da
população em situação de rua, o que por um lado agrega-lhe mais valor
e, por outro, permite que outras pessoas em situação de rua tenham
um reforço de sua identidade, sentindo-se estimuladas, por exemplo, a
também escrever suas relexões.
Nesses textos assinados por pessoas em situação de rua, podemos
acessar os discursos (modos de representação particulares) mais
frequentes no jornal, de forma geral. Desses discursos, vale observar
mais atentamente o discurso da violência, o discurso do trabalho
e o discurso da esperança. Os discursos são formas particulares de
representar o mundo ou parte dele; desse modo, observar quais são os
discursos presentes e como eles são articulados em textos oferece fortes
indícios de como as práticas representadas são compreendidas. Segundo
Resende e Ramalho (2006), a articulação da diferença, que deve ser
observada ao se explorar a intertextualidade, também importa na análise
de interdiscursividade.
O aspecto interdiscursivo dos textos presentes no suporte O
Trecheiro apresenta um direcionamento contrário ao da mídia tradicional
na representação da situação de rua, por desenvolver maneiras diferentes
de abordagem de questões relativas à realidade da rua: dos discursos
mais comuns (sobre violência, trabalho e esperança), pode-se dizer que
a forma como são tratados esses aspectos do mundo é totalmente outra,
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
e isso mostra como um mesmo aspecto do mundo pode ser representado
de maneiras muito diversas (podemos comparar às representações
discursivas da violência associada à pobreza, por exemplo, nos dados
de Pardo Abril, 2008, ou de Resende, 2012).
A temática da violência associada à vulnerabilidade social,
quando tratada pela chamada grande mídia, via de regra responsabiliza
as pessoas em situação de rua, reiicando-as. No caso de O Trecheiro,
é possível entender a violência sob outra perspectiva: a das pessoas
em situação de rua. No jornal, são representados dois tipos básicos de
violência: a violência institucionalizada e a violência da sociedade civil.
A seguir, podemos ler um relato de violência institucionalizada,
em um excerto de um texto publicado na coluna “Direto do Trecho”, do
volume de setembro/outubro de 2010, sobre o sistema assistencial de
São Paulo:
A pedagogia da humilhação já começa como uma forma
de triagem. Apenas somente quem realmente precisa
aceita o mau tratamento destes funcionários oferecidos em
parcerias onde quem mais precisa é o menos fortalecido,
mais fragilizado e vulnerável socialmente falando. Nunca
peguei cadeia, mas o albergue parece uma extensão do
sistema penitenciário.
Salvador d’acolá descreve, nesse texto de sua coluna mensal,
a situação enfrentada por quem busca abrigo nos albergues da capital
paulista. Ele constrói a expressão “pedagogia da humilhação”, que,
segundo ele, representa a prática social que orienta as ações dos/as
assistentes desses albergues. Nessa lexia, por analogia, depreende-se
que, ao contrário da proposta freiriana, o resultado da dinâmica social
estabelecida nesse contexto aprisiona os/as albergados/as em um ciclo
de violência com base na humilhação. A violência representada nesse
caso é a violência institucionalizada da assistência que não assiste. A
crítica institucional também se deixa ver na avaliação depreendida da
curiosa estrutura modal em “Apenas somente quem realmente precisa”,
enfatizando o abrigo como última opção.
A seguir, reproduzimos parte de uma carta endereçada a O
Trecheiro, publicada na seção “Vida no Trecho”, também no volume de
setembro/outubro de 2010. Na carta, Carlos Ferreira de Lima relata seu
esforço para sair das ruas, o drama que enfrentou no albergue em que
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esteve durante alguns meses e a diiculdade encontrada no trabalho como
ambulante, na venda de imagens de santos. No exemplo, a violência
institucional representada é a que parte das forças da ordem policial:
A Prefeitura me tomou quase R$200,00 de imagens, ainda
me machucaram ao me segurarem por trás como se eu
fosse bandido. Tá certo, meus santos não têm nota iscal,
mas será que não tenho o direito de sobre-viver? E daí?
Que lei é essa?
Nesse trecho da carta, o autor põe em xeque a forma como o
aparato repressor o percebe, o que se materializa textualmente na negativa
pressuposta em “como se eu fosse bandido”, por meio da qual airma
sua identidade como trabalhador. Ao mesmo tempo, questiona a “lei”
que recai sobre ele, potencialmente lançando-o de volta às ruas, por
impedir-lhe o trabalho informal que lhe garante “sobre-viver”. Assim,
além de rejeitar a identidade marginalizada que lhe é imposta, ele constrói
uma alteridade violenta para o Estado, o que se realiza de três formas:
pela escolha lexical por “tomou”, para representar a ação da prefeitura;
pela representação da ação policial por meio de processo material que
denota ação violenta e pressupõe avaliação negativa (“machucaram”),
ainda enfatizado na circunstância também violenta (“ao me segurarem
por trás”); pelo questionamento do aparato legal que legitima esse tipo
de ação da prefeitura e da polícia, especialmente nas repetidas estruturas
interrogativas (“será que não tenho o direito de sobre-viver? E daí? Que
lei é essa?”) e no jogo de palavra que resulta da partição em “sobre-viver”.
Outro tipo de violência representado no corpus é a violência da
sociedade civil. Vejamos o exemplo de um trecho da matéria de capa do
volume de agosto de 2010, intitulada “Em Curitiba, ‘nem olham na sua
cara’”:
Os curitibanos nem olham na sua cara [...]. Você não
é considerado pelo próprio conterrâneo como um ser
humano. Você abre a boca para pedir um pão, não te olham
nem na cara. Eu acho que eles pensam que quem está na
rua é lixo.
Trata-se aqui de representação da violência simbólica à qual
pessoas em situação de rua são constantemente expostas. Nesse trecho
de fala representada, o jovem Michael Ferreira, também representado
imageticamente na matéria de capa (uma análise imagética está disponível
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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
em Acosta e Resende, 2015), usa construções negativas (com “nem”,
“não” e novamente “não”) em que o traço de humanidade das pessoas
em situação de rua é apagado na percepção (representada) daqueles/as
que não se encontram nas mesmas condições. Novamente, nesse excerto
representa-se a insatisfação pela forma como se é tratado/percebido pelos/
as demais, o que se reforça pela repetição (“nem olham na sua cara” e
“não te olham nem na cara”). Considerando análises anteriores de textos
publicados em meios tradicionais de comunicação social, podemos dizer
que nesse trecho recusa-se a recorrente e ultrajante associação entre
pessoas em situação de rua e lixo, como no texto da Folha de S. Paulo
analisado em Resende (2015). Aqui, em lugar das insidiosas associações
indiretas que foram observadas na Folha de S. Paulo, abre-se espaço
para a denúncia direta da desumanização: “Eu acho que eles pensam
que quem está na rua é lixo”.
Assim, a violência da sociedade contra os/as que vivem nas
ruas é denunciada pelo jornal, que põe em pauta também as inúmeras,
não investigadas e impunes mortes de pessoas em situação de rua, seja
pela ação assustadoramente frequente (lembremos os recentes casos de
Goiânia em 2013) de grupos de extermínio, seja pelas condições precárias
de vida. Isso é evidenciado no editorial do volume de dezembro de 2010,
em que Alderón Costa airma que:
O sistema está determinado a matar. De imediato: pode
ser à bala ou a paulada. Ou a médio prazo: por inanição
ou cansaço. É só escolher! A esperança é que novos atores
comecem a perceber a violência desse sistema que vem
arrastando pessoas para esta situação.
Novamente, encontramos no corpus resistência a ideias
hegemônicas, como a de inevitabilidade da desigualdade social. No
trecho inicial do excerto destacado, “O sistema está determinado a
matar”, a estrutura social é apresentada, por meio de personiicação
(van LEEUWEN, 2008), como voluntária e construída. Dessa maneira,
O Trecheiro representa a violência como sendo inerente/resultante do
sistema, ao mesmo tempo que mostra a percepção da realidade, sob esse
prisma, por parte de atores sociais, e sua consequente ação individual/
coletiva, como a “esperança” para a resolução do problema. O jornal se
opõe à maneira como tradicionalmente o tema da violência é tratado nos
meios de comunicação social (ver, por exemplo, a análise de Resende e
Santos, 2012, de texto publicado no jornal A Tarde).
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018
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Além da violência, o jornal O Trecheiro também aborda
frequentemente a temática do trabalho. O trabalho é representado como
forma de sobreviver, como forma de sair das ruas e, principalmente,
como forma de conquistar reconhecimento social que afaste a sombra de
humilhação em tantos textos de nosso corpus denunciada. Vejamos um
exemplo extraído da matéria “Pesquisa em SP revela peril e expectativas
sobre trabalho”, publicada em novembro de 2010 e assinada por Maria
Carolina Ferro:
Além dessas questões [“aspectos fundamentais para
pensar políticas públicas de trabalho e geração de renda”:
oferta de cursos profissionalizantes, encaminhamento
a vagas de trabalho, acompanhamento psicossocial], a
intersetorialidade das políticas públicas foi destacada como
fundamental, isto é, que as políticas de trabalho estejam
articuladas com as políticas de Assistência Social, Saúde,
Educação e Habitação. Somente com políticas articuladas
será possível a “saída das ruas” e reinserção no mercado
de trabalho.
Segundo revelou a pesquisa mencionada na matéria, 90% das
pessoas que se encontram em situação de rua trabalham regularmente.
Assim, as pessoas que estão nas ruas são, em sua expressiva maioria,
trabalhadoras, mas que se encontram em condições vulneráveis, com
trabalho precário e sem qualquer garantia. Conforme o trecho da matéria
que destacamos, políticas públicas intersetoriais são necessárias para
que isso se realize, o que se texturiza pelo adjetivo “fundamental” e
pelo recurso coesivo “Somente com” ligado a “será possível”. Assim,
as políticas públicas intersetoriais, como as preconizadas na Política
Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua (BRASIL,
2009), são representadas num horizonte de possibilidades (“será possível
‘a saída das ruas’”), e avaliadas como indispensáveis para a superação
da situação de rua.
Essa questão está intimamente ligada ao discurso da esperança.
Esse discurso igura principalmente nos textos em que se podem ler
narrativas de pessoas que conseguiram superar a situação de rua ou que
estão numa via ascendente, alcançando sucessos nessa direção. A coluna
“Vida no Trecho”, de janeiro/fevereiro de 2011, intitula-se “Do trecho
para Rua Oscar Freire”, e sobre o título da matéria não nos deve escapar a
texturização da cidade como espaço de segregação. Nesse texto, assinado
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por Alderón Costa, Marcelo Leite S. de Matos conta de sua felicidade ao
ver os trabalhos que ele e sua esposa, Jaqueline Pereira, realizaram, no
curso de fotograia do Instituto Brasis, expostos em uma galeria na rua
Oscar Freire, uma rua dos jardins, região nobre de São Paulo. Ao inal
de sua narrativa, ele diz:
Agora o pai dele [Athos Daniel Pereira Leite, filho do
casal, à época com três meses] vai estudar, se formar, e
ele vai ter muito orgulho do pai. Não vou precisar fazer
nenhuma coisa errada [referência à experiência anterior
com drogadição, mencionada no texto].
O emprego do futuro composto orienta o efeito consecutivo das
ações projetadas, em que Marcelo Leite encadeia “estudar”, “formar-se”
e “ter orgulho”. Nessa construção, articula-se o discurso da esperança,
nesse caso fortemente associado a um ‘futuro melhor’ para a família
recém-constituída, e ao afastamento em relação a “coisa errada”, o que
é assumido como passado pressuposto no trecho de fala, recuperável no
cotexto, e relacionado à situação de rua.
Em trecho anterior do mesmo texto, outra instância de discurso
direto articulando a voz de Marcelo Leite retoma a desumanidade que
vimos em excertos anteriores: “Eu sou gente. Estão achando que eu não
sou mais gente, mas ainda eu sou gente”. Assim como o jovem Michael
Ferreira, de Curitiba, também Marcelo Leite denuncia a percepção social
desumanizante. Da mesma maneira, a fala de Maria Lúcia Santos Pereira,
de Salvador, coordenadora do Movimento Nacional da População em
Situação de Rua (MNPR), retoma a questão, em texto assinado por ela
e publicado no mesmo volume de O Trecheiro:
Durante muitos anos da minha vida, senti o desprezo e o
descaso de uma sociedade que se dizia democrática. Ao
entrar de cabeça no Movimento Nacional da População
de Rua, de uma certa forma, foi um grito de liberdade e
do desejo de ver um mundo melhor. Vontade de me sentir
humana de novo, pois as ruas tiram toda a nossa dignidade
e identidade. Em 2009, tive o prazer de sentar perto do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vê-lo assinar o
Decreto das Políticas Públicas da População de Rua que, a
meu ver, é nossa carta de alforria, pois éramos escravos do
descaso e da discriminação da sociedade. Num momento
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pude ver de perto o rosto de um homem que havia olhado
para o nosso sofrimento, que nos possibilitou sair da
invisibilidade rumo ao protagonismo.
O texto reproduz discurso proferido por Maria Lúcia Santos
Pereira em encontro com o já ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a
então presidenta Dilma Rousseff, no 8º Encontro de Natal da População
em Situação de Rua, realizado em São Paulo, em 23 de dezembro de
2010. Esse texto, ao mesmo tempo que denuncia a desumanização
(“Vontade de me sentir humana de novo”), representando negativamente
a sociedade brasileira (“o desprezo e o descaso de uma sociedade que se
dizia democrática”, “éramos escravos do descaso e da discriminação da
sociedade”), articula o discurso da esperança, celebrando a organização
social do MNPR (“grito de liberdade e do desejo de ver um mundo
melhor”) e a Política Nacional para Inclusão da População em Situação de
Rua (“carta de alforria”), por meio da metáfora de abolição. Nas relações
de sentido estabelecidas no excerto, a autora sugere que a trajetória
“da invisibilidade rumo ao protagonismo” é possível se as pessoas em
situação de rua tiverem reconhecida sua “dignidade”, para reconstruir sua
“identidade” como atores coletivos organizados em movimento social.
Nos textos que vimos, a narrativa jornalística opera lançando luz
sobre as vidas de pessoas que nos contam de suas angústias e sucessos,
mostrando que são capazes e organizadas e que, assim como todas
as pessoas, desejam ter uma vida plena de direitos: casa, lar, família,
trabalho, reconhecimento, dignidade. São pessoas iguais e que deveriam
ser, de fato, iguais. Por isso é importante evidenciar suas trajetórias,
por meio de suas próprias vozes. Trata-se de contar histórias que não
costumamos ouvir, por vozes que não encontram espaço nas tantas
páginas dos jornais da chamada grande mídia (seria mais adequado ‘mídia
grande’), mas que nesse jornal de apenas quatro páginas mensais (ou às
vezes bimensais) podem texturizar-se.
Considerações inais
Em textos constroem-se maneiras particulares de ver/entender
o mundo, reiterando discursos ideológicos ou, na contramão, tentando
superá-los. As maneiras como tradicionalmente são representadas pessoas
em situação de rua na ‘mídia grande’ fazem parte de um conjunto de
ações discursivas com efeito potencial de perpetuação de sistemas de
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oposição entre pessoas ou grupos de pessoas em polos de carência e
acumulação; de negação de acesso aos direitos básicos, de um lado, e de
‘direitos prioritários’, de outro. Resistindo a discursos preconceituosos e
aviltantes sobre a situação de rua, tão frequentes nos veículos tradicionais
da comunicação social, O Trecheiro propõe aos/às seus/suas leitores/as
outros parâmetros para compreender a situação de rua, suas causas e
consequências.
A inclusão de vozes de pessoas em situação de rua nos textos
do jornal abre espaço para sua autorrepresentação, o que possibilita a
materialização de narrativas outras, por outros prismas experienciais.
Nesse espaço, leitores/as em situação de rua, público preferencial
dessa iniciativa, podem se ver representados/as, podem reletir sobre
as circunstâncias sociais que os/as levaram a estar nessa condição. E,
assim, podem construir modos alternativos de identiicação, com base
em outros modos particulares de representação (discursos), para muito
além daqueles que os/as desumanizam.
Os textos veiculados por O Trecheiro criam uma porta simbólica
que se abre da rua para dentro. Essa porta aberta é um convite ao diálogo
com toda a sociedade. Ela estrutura um espaço no qual o debate sobre
assuntos marginalizados pode ocorrer. Ao promover outra forma de
retratar a realidade das ruas, na produção textual de informações em
O Trecheiro, a Rede Rua de Comunicação busca a mudança social por
meio da mudança discursiva.
Agradecimentos
Agradecemos à FAP-DF pelo apoio à realização da pesquisa da qual
se apresenta aqui um recorte, ao CNPq pela bolsa concedida ao projeto
“Protagonismo face à inevitabilidade da violência: vozes da rua em
Ocas” e em O Trecheiro”, ao Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra, Portugal, pelo Prêmio Jovens Investigadores, conferido
ao projeto “Publicações em língua portuguesa sobre / para a população
em situação de rua: a revista Cais”, e aos pareceristas anônimos que
avaliaram este artigo e contribuíram com suas valiosas indicações e
cuidadosa revisão.
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Referências
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Mulheres na liderança: discurso, ideologia e poder
Women in leadership positions: discourse, ideology and power
Vicentina Ramires1
Departamento de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco
vicentinaramires@terra.com.br
Dina Ferreira
Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do
Ceará/UECE
dinaferreira@terra.com.br
Resumo: Dominação, força e autoridade são conceitos ainda circunscritos
ao universo masculino, e isso pode ser constatado principalmente nas
relações de trabalho, mesmo naquelas em que as mulheres exerçam
funções de liderança. Esse quadro também se materializa na academia,
onde os sujeitos estão, hipoteticamente, mais atentos às diferentes
posições ideológicas e às formas como se manifestam, e, por conseguinte,
mais ou menos a elas refratários. O objetivo geral deste estudo é
demonstrar como hierarquias de poder no mundo do trabalho baseadas
em diferenças de sexo são ideologicamente construídas, de maneira a
reforçarem as formas dicotômicas de relações de gêneros e como as
próprias mulheres, atuando em culturas androcêntricas, podem contribuir
para perpetuar atitudes sexistas. Com base nos Estudos Críticos de
Discursos, procuramos: a) identiicar os discursos que corroboram para
construir ou desconstruir modelos de dominação nas relações de gênero;
1
Pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral, com auxílio da CAPES.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.455-489
456
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
b) observar em que formações discursivas esses modelos se impõem e c)
identiicar em que medida procedimentos de discriminação são veiculados
nos discursos proferidos pelas mulheres. Este estudo foi desenvolvido em
duas instituições de ensino superior, analisando entrevistas e respostas
aos questionários dirigidos a mulheres que ocupam posições de liderança.
Observamos que, ao mesmo tempo que muitas mulheres reforçam a
assimetria de gêneros existente entre posições de poder na sociedade,
ao repetirem/conirmarem discursos, outras vão tomando consciência
de seu espaço na sociedade e agem criticamente em defesa de direitos
iguais entre homens e mulheres.
Palavras-chave: gênero; discurso; ideologia; poder.
Abstract: Domination, power and authority are still conined to male
universe, and this can be found mainly in work relationships, even
those in which women occupy leadership roles. This framework is
materialized in academic communities, where subjects are hypothetically
more attentive to the different ideological positions and how they are
presented, and thus, more or less refractory to them. The aim of this
study is to demonstrate that power hierarchies in the labor world based
on sex differences are ideologically constructed in order to strengthen
the dichotomous forms of gender relations. We also intend to analyze
how women themselves, working in male-centered cultures, contribute
to perpetuate sexist attitudes against themselves. Based on Critical
Discourse Studies we seek to a) identify discourses that support to build
or deconstruct models of dominance in gender relations; b) observe in
which discursive formations such models are imposed and c) identify
to what extent discrimination procedures are found in discourses made
by women. This study was conducted in two universities, by analyzing
interviews and responses to questionnaires sent to women in leadership
positions. We note that, while many women reinforce the asymmetry
of genres between positions of power in society, repeating/conirming
discourses, others are aware of their place in society and act critically in
defense of equal rights for men and women.
Keywords: gender; discourse; ideology; power.
Recebido em 10 de julho de 2016.
Aprovado em 10 de abril de 2017.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
457
1 Introdução
As transformações ocorridas na condição feminina ao longo das
últimas décadas ainda não são suicientes para que as mulheres possam
decidir sobre suas vidas, pois não exercem o poder em sua plenitude
e, principalmente, não acumulam esse poder, quando o reproduzem,
não para elas mesmas, mas para aqueles que de fato controlam o poder
(COSTA, 2000).
Esse quadro pode parecer exagerado, em tempos de tecnologia
avançada, em que se apresentam, sobretudo na mídia eletrônica e
impressa, imagens de mulheres bem-sucedidas, irmes e decididas,
responsáveis, muitas vezes, pelo correr do luxo da economia em alguns
centros urbanos. Entretanto, analisando a situação de um tempo mais
remoto, em que a passividade da mulher e a sua submissão dentro do
mundo doméstico, vivenciadas durante uma longa história de opressão,
foram utilizadas para impor-lhe o pagamento de salários inferiores aos
dos homens, com jornadas de trabalho excessivas e insalubres, percebe-se
que esse quadro ainda hoje permanece, em grande medida (MACÊDO,
2003). A dominação, a força, a autoridade central estavam circunscritos
ao universo masculino, e esse fato pode ser constatado na história mais
recente, principalmente nas relações de trabalho, seja naquelas em
que as mulheres exercem funções de liderança/comando/direção, seja
naquelas em que se encontram subordinadas ao domínio masculino. Nas
posições de liderança, por exemplo, as mulheres ainda deparam com
“duplos discursos”: elas têm que justiicar constantemente sua presença
e suas conquistas e ainda são avaliadas com diferentes normas, ou seja,
simpliicadamente, qualiicações iguais atribuídas ao sexo masculino ou
feminino não são avaliadas da mesma forma. Signiicativamente subrepresentadas nesses postos, as mulheres, por outro lado, têm expressiva
representação em funções tais como vendedoras, domésticas, funcionárias
e professoras.
Um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico divulgado no inal de 2015 revela que o salário médio de
uma mulher brasileira com nível superior corresponde a 62% da renda
mensal de homens com a mesma escolaridade. Dos 42 países analisados
pela Organização, o levantamento mostrou que o Brasil é o país com a
maior diferença salarial entre cidadãos com diploma universitário em
comparação àqueles com grau de instrução inferior. A desigualdade de
458
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
gênero também se manifesta nesse quesito: 72% de homens que têm
um diploma universitário ganham mais de duas vezes a média da renda
nacional. Entre as mulheres, a taxa cai para 52%.2 A remuneração das
mulheres com curso superior era, em média, 40% inferior à dos homens.3
Esses números causam estranheza quando se conirma que as mulheres
brasileiras deixaram de ser minoria entre os doutores titulados no Brasil
a partir do ano de 2004. Desde então, o número de mulheres tituladas tem
sido superior ao de homens, atingindo o percentual de 51,5% de doutoras
no país,4 ou seja, essas estatísticas de desigualdade na remuneração não
são explicadas pela escolaridade, visto que, nesse aspecto, elas ocupam
posição de destaque.
Nos espaços políticos no Brasil, a divisão de gêneros consegue
ser mais cruel. Em entrevista concedida à BBC Brasil, em 14 de maio
de 2016, ao falar sobre a atitude do presidente em exercício no Brasil, à
época, Michel Temer, em privilegiar homens brancos na composição de
seu ministério, Jennifer Berdahl, professora da Universidade de British
Columbia, no Canadá,5 critica veementemente essa decisão, ao airmar
que essa é “uma mensagem realmente má e perigosa que ele manda à
população”, pois desencoraja mulheres e minorias a buscar espaços na
política brasileira. Apesar de concordar que as escolhas devam se basear
em mérito, ela pondera que o mérito é igualmente distribuído entre
gêneros e raças, e que, portanto, os percentuais de mulheres e minorias
em posição de liderança deveriam seguir os do resto da população. Para
ela, quando só são nomeados homens brancos, ou se acredita que só eles
têm méritos, ou o sistema na verdade não é baseado no mérito.6
Levemos em conta que todo esse quadro descrito se materializa
em comunidades acadêmicas, ou seja, em contextos de realização de
Publicado originalmente na edição 878 de Carta Capital, com o título, “Injustiça de
gênero”. Novembro de 2015.
3
Algumas características da inserção das mulheres no mercado de trabalho (Recife,
Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) 2003-2008.
4
Doutores 2010: estudos da demograia da base técnico-cientíica brasileira – Brasília,
DF: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2010.
5
O atual ministério do Canadá (em 2016) é considerado o mais diverso da história do
país: há igual número de homens e mulheres, há ministros indígenas e membros de
comunidades imigrantes.
6
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160513entrevistap
rofessoracanadajf_cc>. Acesso em: 16 maio 2016.
2
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
459
linguagem em que os sujeitos estão, pelo menos hipoteticamente, mais
atentos às diferentes posições ideológicas e como elas se manifestam, e,
por conseguinte, mais ou menos a elas refratários a elas. Aparentemente –
e é isso que queremos analisar –, os discursos que circulam na sociedade
em geral e reproduzem o modelo tradicional de divisão sexual do trabalho
atravessam espaços considerados como de “produção de saber”, a
exemplo das universidades, públicas ou privadas.
Outro ponto que merece atenção é o fato de que, apesar de mais
mulheres terem atingido maiores status em suas proissões, ainda há, em
muitas culturas organizadas, sutis (e também manifestos) procedimentos
de discriminação que têm, tacitamente (e, muitas vezes, explicitamente)
a cumplicidade das mulheres.
De modo mais abrangente, é possível construir a hipótese de que
essas mulheres – nas suas formas particulares de representar, de interagir,
de situar e de se identiicarem em diferentes práticas sociais – incorporam
e reproduzem os discursos discriminatórios como explicação para as
condições de vida e trabalho em que estão situadas, sugerindo que as
ideologias implícitas nas práticas discursivas podem ser muito eicazes
quando se tornam naturalizadas e atingem o status de senso comum. É
nessa perspectiva que a análise crítica feminista de discursos pode dar
conta dessa problemática, ao criticar discursos que contribuem para
manter uma ordem social patriarcal, cujas relações de poder privilegiam
homens e excluem mulheres como grupo social.
Tendo sido esses pontos rapidamente considerados, o objetivo
geral deste estudo é demonstrar que hierarquias de poder no mundo do
trabalho baseadas em diferenças de sexo são ideologicamente construídas,
de forma a fazer perpetuar as formas dicotômicas de relações de gêneros.
Paralelamente, sem simpliicar a questão, pretendemos também analisar
como as próprias mulheres, atuando em culturas androcêntricas,
contribuem para perpetuar atitudes sexistas e práticas contra elas mesmas.
Para tanto, com base nos estudos críticos dos discursos, procuraremos:
a) identiicar as formas discursivas (macro e microssemânticas) que
corroboram para construir ou desconstruir esses modelos de dominação
nas relações de gênero; b) observar em que formações discursivas
(considerados gêneros, faixa etária, nível socioeconômico, formação
educacional, entre outras variáveis) esses modelos se impõem e c)
identiicar em que medida procedimentos de discriminação são veiculados
nos discursos proferidos pelas próprias mulheres.
460
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
2 Referencial teórico
2.1 Conceito(s) de gênero
A literatura apresenta uma vasta fonte de pesquisa de autores/as
que abordam o conceito de gênero como instrumento teórico e empírico
para a análise das relações sociais. Um dos estudos feministas que trouxe
novas perspectivas para os estudos de gênero foi o desenvolvido pela
historiadora norte-americana Joan Scott, cujo célebre artigo Gênero:
uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente
em 1986, tornou-se um clássico, por desconstruir a visão binária de
que as distinções entre o feminino e o masculino não são fatos naturais
(determinismo biológico), mas, ao contrário, são forjadas pelos indivíduos
em sociedade e perpassadas pela cultura. Portanto, segundo Joan Scott
(1995), gênero é categoria relacional, ou seja, abrange as relações sociais
entre o feminino e o masculino, de forma que um gênero só adquire
sentido na relação com o outro. Desse modo, o conceito de gênero se
apresenta como um meio de distinguir a prática sexual (determinado pela
natureza biológica do sexo feminino e masculino) dos papéis sociais
(divisão sexual do trabalho, por exemplo), identidades e comportamentos
opostos atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade. As relações
de gênero, assim como as de classe ou de etnia, são imbricadas pelo
contexto social, cultural, político e econômico, ou seja, são construções
históricas, portanto, multilineares e mutáveis. Em síntese:
Estabelecidos como um conjunto objetivo de referências,
os conceitos de gênero estruturam a percepção e a
organização concreta e simbólica de toda a vida social. Na
medida em que essas referências estabelecem distribuições
de poder (um controle ou um acesso diferencial aos
recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se
implicado na concepção e construção do próprio poder
(SCOTT, 1995, p. 88).
O determinismo biológico, que embasa a discriminação entre
gêneros, primordialmente, pode ser entendido como o conjunto de teorias
segundo as quais a posição ocupada por diferentes grupos nas sociedades,
ou comportamentos e variações das habilidades, capacidades, padrões
cognitivos e sexualidade humana, derivam de limites ou privilégios
inscritos na constituição biológica, ou seja, nos corpos sexuados
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
461
(MACEDO, 2003). Essa noção fundamenta a ideia de que o poder pode
ser distribuído de maneira desigual entre os sexos, cabendo às mulheres
uma posição subalterna na organização da vida social, dado que elas são,
nessa concepção, biologicamente inferiores aos homens. Assim é que
o patriarcado concede direitos sexuais aos homens sobre as mulheres,
sustentando-se sobre uma base material e simbólica, conigurando-se
por estruturas de poder hierárquicas e desiguais – presentes em todos
os espaços – na sociedade, no estado, na cultura, na religião, e, assim,
reproduzindo o binarismo do público-privado entre homens e mulheres,
de forma a se garantir uma desejada “estabilidade” de todo um sistema
baseado nessas diferenças, conforme assevera Scott (1995):
O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o
poder político tem sido concebido, legitimado e criticado.
Ele não apenas faz referência ao signiicado da oposição
homem/mulher; ele também o estabelece. […] Dessa
maneira, a oposição binária e o processo social das relações
de gênero tornam-se parte do próprio signiicado de poder;
pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos
ameaça o sistema inteiro (SCOTT, 1995, p. 92).
Ao mesmo tempo, a ideologia liberal dominante faz crer que
todas as mulheres são iguais, o que não pode ser verdade. Entretanto,
essa noção faz as experiências parciais, de acordo com a classe social,
orientação sexual, geograia, cor, serem universalmente compartilhadas,
sem que se considerem as diferentes necessidades das mulheres,
descaracterizando-as, portanto. Expressando um pensamento totalmente
contrário a essa ideia, para Lazar (2005), duas importantes compreensões
para ACD feminista são o reconhecimento das diferenças e diversidades
entre mulheres (e homens) e a prevalência dos sutis funcionamentos
discursivos do poder moderno em muitas sociedades.
Com essa mesma convicção, a ilósofa norte-americana Judith
Butler discorda de que só se poderia fazer uma teoria social sobre o gênero
e que o sexo pertenceria ao corpo e à natureza. Para ela, “por mais que
o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente
construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo
nem tampouco tão aparentemente ixo como o sexo” (BUTLER, 2016,
p. 26). Sem dúvida, não se pode negar que o feminismo é uma luta
pelos direitos das mulheres, mas é preciso ter claro, segundo a própria
462
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ilósofa tem defendido em toda a sua obra, que a questão de gênero é,
principalmente, um questionamento da identidade e do princípio que
rege sua lógica, isto é, um problema ontológico.
Assim que, como bem ressalta Butler (2016),
A complexidade do conceito de gênero exige um conjunto
interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos, com vistas
a resistir à domesticação acadêmica dos estudos sobre
gênero ou dos estudos sobre as mulheres, e a radicalizar a
noção da crítica feminista (p. 13).
Decorre dessa leitura a convicção de que não se pode pensar o
conceito de gênero feminino como um problema circunscrito à noção de
“mulheres”, mas que envolve várias formas de opressão interligadas. É
o que defende Kimberle Crenshaw, responsável pelo desenvolvimento
teórico do conceito da interseção das desigualdades de raça, de gênero
e de classe social, no inal da década de oitenta do século 20, ao criar
o termo “feminismo interseccional”. Em documento no qual apresenta
com clareza essa noção, bem como algumas recomendações, Crenshaw
(2002, p. 171) adverte:
A ampliação dos direitos humanos das mulheres nunca
esteve tão evidente como nas determinações referentes
à incorporação da perspectiva de gênero (gender
mainstreaming) das conferências mundiais de Viena e de
Beijing. De fato, ao mesmo tempo que a diferença deixou
de ser uma justificativa para a exclusão do gênero dos
principais discursos de direitos humanos, ela, em si mesma,
passou a servir de apoio à própria lógica de incorporação
de uma perspectiva de gênero. Tal incorporação baseia-se
na visão de que, sendo o gênero importante, seus efeitos
diferenciais devem necessariamente ser analisados no
contexto de todas as atividades relativas aos direitos
humanos. Assim, enquanto no passado a diferença
entre mulheres e homens serviu como justiicativa para
marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais
geral, para justiicar a desigualdade de gênero, atualmente
a diferença das mulheres indica a responsabilidade que
qualquer instituição de direitos humanos tem de incorporar
uma análise de gênero em suas práticas.
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463
É preciso ter clareza de que a estrutura de gênero é ideológica e
que a ideologia de gêneros é hegemônica, porque frequentemente não
se apresenta como dominação, mas como consensual e aceitável numa
comunidade, senão naturalizada. Gramsci (1987), ao deinir ideologia
como concepção de mundo, questionava se haveria ideologias mais ou
menos favoráveis a determinados grupos ou pessoas, individualmente.
Essa preocupação encerra-se – particularmente no que se refere à temática
deste nosso estudo – no fato de muitas mulheres adotarem a ideologia
religiosa cristã, por exemplo, que, por ser essencialmente patriarcal7,
é-lhes totalmente desfavorável, tanto pelo fato de que lhes nega os direitos
sobre o seu próprio corpo, quanto por lhes assujeitar aos homens.
A análise crítica feminista de discursos como práxis política,
conforme defende Lazar (2005), é capaz de dar conta dessa problemática,
ao estabelecer como preocupação central criticar discursos que
sustentam uma ordem social patriarcal, ou seja, relações de poder
que sistematicamente privilegiam homens como grupo social e que
prejudicam, excluem e desempoderam mulheres como grupo social.
A autora adverte que essas práticas não são neutras, mas dessa forma
engendradas. A natureza de gênero dessas práticas sociais pode ser
descrita, segundo a autora, em dois níveis: a) “gênero” funciona como
uma categoria interpretativa que permite aos participantes de uma
comunidade tomar sentido e estruturar suas práticas sociais particulares
e b) “gênero” é uma relação social que penetra e parcialmente constitui
todas as outras relações e atividades sociais (LAZAR, 2005).
Assim é que os discursos de gênero instituem as relações sociais
e as diferenças entre os sexos, o que é feito por meio de construções
simbólicas que determinam e mantêm o status quo, atribuindo papéis a
um ou outro gênero, ou seja, envolve o conjunto de expectativas sociais
e padrões de comportamento. Martins Ferreira (2009) chama a atenção
para o fato de que essas diferenças são reveladas nas práticas discursivas,
em que muitas mulheres, como já foi anteriormente ressaltado, adotam
a ideologia patriarcal e sexista. Em suas palavras: “No universo da
dicotomia sexista patriarcal, a natureza masculina espelharia objetividade,
7
Não é por acaso que Deus é retratado como um homem velhinho de barba (o homem
sábio) e que no dicionário os nomes que admitem pares feminino e masculino têm sua
entrada no masculino: “moço” e não “moça”.
464
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racionalidade e segurança, e a feminina, características de dispersão,
emoção e de pouca segurança” (p. 116).
2.2 Estudos críticos de discursos
Os estudos críticos de discursos almejam investigar criticamente
como a desigualdade social é expressa, sinalizada, constituída, legitimada,
e, também desconstruída, por meio do uso da linguagem (ou no discurso).
A desconstrução desses discursos é tarefa da Análise Crítica de Discursos
(doravante, ACD), cujo interesse particular centra-se na relação entre
linguagem, ideologia e poder. A ACD pode, então, ser deinida como
um campo dentro dos estudos críticos da linguagem fundamentalmente
interessado em analisar relações estruturais, transparentes ou veladas, de
discriminação, poder e controle manifestas na linguagem. Assim é que
a Teoria Social do Discurso baseia-se em uma percepção da linguagem
como parte irredutível da vida social dialeticamente interconectada a
outros elementos sociais (RAMALHO; RESENDE, 2006), ou seja, o
discurso é moldado pela estrutura social, mas também é constitutivo da
estrutura social.
Para garantir a dominação, o poder e a manutenção das
desigualdades, Teun van Dijk (2008) assevera que grupos poderosos
controlam o discurso público pela concessão ou não do acesso a esses
discursos – acesso deinido pelo contexto (cenário, ações, participantes,
representações mentais), pelas estruturas do texto (gêneros textuais, atos
de fala) e pelos temas (macroestruturas semânticas). Em consequência,
esse discurso controla as mentes e as ações dos indivíduos, que tendem
a aceitar crenças, desde que produzidas por aqueles considerados fontes
autorizadas, coniáveis ou críveis, ou pelo desconhecimento desses
indivíduos sobre o discurso ou informação a que são expostos. É dessa
forma que são formados e/ou reformulados os modelos mentais e as
representações sociais, conforme postulam Chouliaraki e Fairclough
(1999):
Discurso, portanto, apresenta-se de duas maneiras nas
práticas: práticas são parcialmente discursivas (falar,
escrever, etc, é apenas um modo de ação), mas elas são
também discursivamente representadas. Na medida em
que tais representações ajudam a sustentar relações de
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dominação nessas práticas, elas são ideológicas (p. 37,
tradução nossa.).8
É com base nessas considerações que os estudos do discurso são
críticos e, metodologicamente, segundo van Dijk (2008), devem observar
alguns dos seguintes critérios:
a) estudo das relações de dominação pelo grupo dominado e do seu
interesse;
b) uso das experiências dos grupos dominados para avaliar o discurso
dominante;
c) denúncia da ilegitimidade das ações discursivas do grupo dominante;
d) formulação de alternativas viáveis aos discursos dominantes.
Na perspectiva de gênero, há, segundo Lazar (2005), várias
razões para se fazer uma análise crítica feminista9 de discursos, entre as
quais se destacam:
a) ACD oferece uma teorização soisticada das relações entre práticas
sociais e estruturas discursivas, além de uma gama de ferramentas e
estratégias para uma análise acurada dos usos reais e contextualizados
da linguagem.
b) Análise crítica de discursos na perspectiva de gênero preocupa-se
em desmistiicar as inter-relações de gênero, poder e ideologia nos
discursos, numa visão multimodal.
Relações de poder e dominação, entretanto, podem ser
discursivamente confrontadas, num embate dinâmico para assegurar
ou desaiar os interesses em jogo. Exatamente esta é a tarefa da ACD
No original: Discourse therefore igures in two ways within practices: practices
are partly discursive (talking, writing, etc. is one way of acting), but they are also
discursively represented. In so far as such representations help sustain relations of
domination within the practice, they are ideological.
9
Vale a ressalva de que o termo feminino pode ter signiicados ideológicos diversos,
tais como a noção de gênero biológico (questão de diferenças de genitália e não de
escolha práxis sexual), social e cultural (no que tange a percepção de estilização de
corpo [BUTLER, 2016], preconceitos e exclusão) e político (o movimento feminista
que reivindica direitos iguais, iniciado na década de 60) (MARTINS FERREIRA, 2009).
8
466
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na perspectiva de gênero: examinar como o poder e a dominação são
discursivamente produzidos e/ou confrontados de formas variadas pelas
representações textuais de práticas sociais de gênero e por meio de
estratégias interacionais de conversação (LAZAR, 2005).
Para que sejam, pois, observados alguns critérios para uma
metodologia da análise de discursos de gêneros, dois conceitos são
indispensáveis para a ACD: o conceito de poder e o conceito de ideologia,
que abordaremos neste estudo por responderem com mais propriedade
as questões eleitas para a análise de nosso corpus.
2.3 Ideologia e poder
O conceito de ideologia já se consagrou nos estudos do discurso
como um conceito muito complexo. São tantos estudiosos e tantas
formas de abordagem que já se cogitou não mais considerá-lo como
importante, por exemplo, para se analisar determinados discursos. Como
não podemos concordar com essa última tendência, digamos assim,
buscamos traçar um breve panorama do que esse conceito representa
nesta nossa investigação.
Thompson (1990) nos lembra que o conceito de ideologia surgiu
no século XVIII na França e tem sido utilizado numa gama de funções
e signiicados ao longo desses mais de dois séculos. Para ele, ideologia
refere-se a processos e formas sociais no interior dos quais e por meio
dos quais circulam formas simbólicas no mundo social. Dessa forma,
o estudo da ideologia tenta explicar como o signiicado é construído e
transmitido por meio de diferentes formas simbólicas.
Ao contrário da visão determinista do poder da ideologia sobre o
sujeito na primeira fase da Análise do Discurso, para os analistas críticos
do discurso, como Fairclough (2001), Wodak (2005), van Dijk (2008),
Chouliaraki e Fairclough (1999), a ideologia é vista como um importante
aspecto da criação e manutenção de relações desiguais de poder, e, nesse
sentido, “[…] ideologias são signiicações/construções da realidade
[…] que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das
práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou
a transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH, 2001,
p. 17). Embutidas nas práticas discursivas – continua o autor –, as
ideologias são muito eicazes quando se tornam naturalizadas e atingem o
status de ‘senso comum’. Nesse caso, alguns aspectos ou níveis do texto e
do discurso que podem ser investidos ideologicamente são especialmente
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467
os semânticos (pressuposições, metáforas e coerência). Ou seja, é
exatamente nos discursos que a eicácia da ideologia se consolida, pois
esta deriva do fato de que se confere às palavras não só um sentido, mas
também um poder: poder de persuasão, de convocatória, de consagração,
de estigmatização (HAIDAR, 2000). Uma vez que o poder depende da
conquista do consenso e não apenas de recursos para o uso da força, a
ideologia tem importância na sustentação de relações de poder.
Ricoeur (1981) tem posição um pouco diferente: a ideologia não
pode se coninar a uma deinição que toma por base exclusivamente a de
dominação de classe. Para sustentar isso, analisa o conceito de ideologia,
considerando algumas funções: mediar a integração social, de forma
a tornar um determinado grupo coeso; dominar – e para isso provê a
legitimidade necessária ao exercício da autoridade sendo um sistema
justiicador da dominação; deformar, que é função importante em cuja
instância encontra-se a própria noção marxista de ideologia e na qual se
fundem as duas outras instâncias analisadas antes. Ricouer salienta que,
para garantir a coesão de um grupo e dominá-lo, alguns mecanismos
são necessários, tais como: a) perpetuar um ato fundador inicial, o qual
instaura uma memória que é transmitida adiante e dá identidade ao
grupo; b) estimular a praxis social por meio de dinamismo e motivação;
c) reduzir o grau de complexidade da análise da realidade para o grupo,
por meio de simpliicação e esquematização, pelo uso de elementos
retóricos, como máximas, slogans, entre outros; d) agir por meio de nós,
pela operabilidade e pela atematicidade, ou seja, a ideologia serve de
ponto de partida para nossos pensamentos, mesmo que pensemos que
nossos pensamentos são o ponto de partida para o alcance daquela; e)
demonstrar intolerância pelo novo, justiicando esse como algo perigoso
e capaz de desestabilizar e separar o grupo.
Fairclough, baseando-se no conceito de hegemonia elaborado
por Gramsci (ver GRAMSCI, 1978; 1987), preocupa-se em acentuar
a noção de discurso como “modo de prática política e ideológica”
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 94) e ressalta:
O discurso como prática política estabelece, mantém e
transforma as relações de poder e as entidades coletivas
[…] entre as quais existem relações de poder. O discurso
como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e
transforma os signiicados do mundo de posições diversas
nas relações de poder.
468
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Considerando-se o discurso nessa perspectiva, um fenômeno que
é objeto de análise de estudiosos é a naturalização do discurso, conforme
postula Thompson (1990), que é uma estratégia para legitimar, dissimular,
uniicar, fragmentar e reiicar relações de dominação, o que é bastante
perigoso, uma vez que pode levar indivíduos a reproduzir ideologias que
os prejudicam a si ou a outros. Por exemplo, é “por meio do discurso […]
que muitas mulheres adotam a ideologia patriarcal e sexista que lhes é
desfavorável e que muitos trabalhadores adotam a ideologia burguesa
que também vai contra seus interesses e aspirações” (OLIVEIRA, 2013,
p. 41), o que os faz se submeterem a relações desiguais de opressão e
poder.
Maffesoli (2011) elabora uma dicotomia interessante entre
“poder” (pouvoir) e “potência” (puissance). Segundo o que ele denomina
de dialética fundadora, ou, melhor dizendo, dialogia, considerando que
um termo remete ao outro, potência (instituinte) “é exatamente o que
constitui o elemento básico da vida em comum” (p. 17). É o que se pode
considerar de “impulso vital”. O poder (instituído) “é, de alguma maneira,
a institucionalização […], a legitimação, a racionalização dessa força
primitiva, desse impulso vital” (p. 18). Retomando essa questão na obra
O Tempo das Tribos (2006), Maffesoli apresenta uma segunda lei: “O
poder pode e deve se ocupar da gestão da vida; a potência é responsável
pela sobrevivência” (p. 115).
Mas é preciso ter claro, como alerta Foucault (1979, p. 86), que o
poder “é tolerável somente na condição de que mascare uma grande parte
de si mesmo. Seu sucesso é proporcional à sua habilidade para esconder
seus próprios mecanismos”. Em outras palavras, muitas vezes as formas
como os discursos são apresentados materializam e naturalizam formas
de controle do poder social – controle de um grupo sobre outros grupos
e seus membros – pela força potencial, locucionária, ilocucionária e
perlocucionária do texto. A conquista do consentimento é, portanto, um
trabalho discursivo, alicerçado em aparelhos ideológicos da sociedade,
principalmente os órgãos da mídia (impressa ou eletrônica) e o sistema
escolar.
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469
3 Procedimentos metodológicos
3.1 O campo do estudo
Tendo em vista que o nosso objetivo é também analisar
como os discursos discriminatórios se materializam e se difundem
em comunidades acadêmicas, ou seja, em contextos de realização de
linguagem cujos sujeitos estariam teoricamente mais atentos às diferentes
posições ideológicas e aos modos de como elas se manifestam, efetuamos
este estudo em duas grandes instituições de ensino superior – uma
universidade federal e uma universidade particular, localizada em um
dos centros urbanos mais populosos do nordeste do Brasil.
Não foi nossa intenção comparar práticas de linguagem em outras
regiões do Brasil, sendo, portanto, a escolha desse campo uma forma
de podermos ter acesso a maior número de sujeitos nessas instituições,
considerando-se o tempo do estudo, que é de doze meses, e a localização
do Programa onde pretendíamos desenvolver a pesquisa. Entretanto,
izemos levantamentos de dados – que serão apresentados ao longo
da análise – sobre mulheres em funções públicas, apresentados por
institutos na França, a exemplo da Sorbonne, em Paris, onde estivemos
para aprofundar os estudos durante o período do estágio.
3.2 As entrevistadas
As práticas discursivas que compõem o corpus de nossa análise
vieram, majoritariamente, de mulheres que ocupam posições de liderança
nas instituições pesquisadas. São coordenadoras de cursos (graduação e
pós-graduação), chefes ou diretoras de departamento/centros acadêmicos,
diretoras ou gerentes de setores administrativos, pró-reitoras, reitora
e diretoras de instituição. Cada uma dessas posições foi representada
por pelo menos uma mulher, mas houve casos em que tivemos mais de
duas mulheres representando a mesma função nas diferentes instituições
pesquisadas, a exemplo de coordenadoras de cursos. No caso de reitora,
dado que é o maior posto a se ocupar em instituições acadêmicas, e, de
forma geral, de número muito reduzido em todo o país, comparando-se
com o de homens que exercem esses cargos, só uma foi entrevistada.10
10
A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
– Andifes, criada em 23 de maio de 1989, é a representante oicial das universidades
federais no Brasil. Entre as 67 instituições que fazem parte dessa Associação, apenas
470
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Assim, nossa amostra compreendeu o número de 12 mulheres, que pode
parecer pequeno, considerando o universo de mulheres trabalhadoras
no mundo todo, mas é representativo, em grande escala, do número de
mulheres que atuam em altos postos de decisão, seja no setor público,
seja no privado.
Um estudo feito pela ONU, Mulheres do Mundo 2010: Tendências
e Estatísticas,11 apresenta estatísticas e análises sobre a situação das
mulheres e dos homens no mundo, destacando a situação atual e as
mudanças ao longo do tempo. As análises são baseadas principalmente
em estatísticas de agências nacionais e internacionais. Um dos temas
analisados no relatório, que abrange 196 países ou áreas com uma
população mínima de 100.000 habitantes, diz respeito ao exercício de
poder e tomada de decisões das mulheres. Entre as principais constatações
apresentadas nesse estudo, destacam-se as seguintes12:
• Tornar-se Chefe de Estado ou Chefe de Governo permanece ilusória
para mulheres. Apenas 14 mulheres no mundo atualmente detêm ou
uma ou outra posição.
• Em apenas 23 países, as mulheres compreendem um número
expressivo – mais de 30 por cento – no seu parlamento nacional.
• Em todo o mundo, em média, apenas uma em cada seis ministros é
mulher.
19 são dirigidas por mulheres, o que representa um percentual de 28%. (http://www.
andifes.org.br/institucional/a-andifes/)
11
The World’s Women 2010. United Nations. New York, 2010. Department of Economic
and Social Affairs.
12
• Becoming the Head of State or Head of Government remains elusive for women,
with only 14 women in the world currently holding either position.
• In just 23 countries do women comprise a critical mass – over 30 per cent – in the
lower or single house of their national parliament.
• Worldwide on average only one in six cabinet ministers is a woman.
• Women are highly underrepresented in decision-making positions at local
government levels.
• In the private sector, women continue to be severely underrepresented in the top
decision making positions.
• Only 13 of the 500 largest corporations in the world have a female Chief Executive
Oficer.
Este estudo não foi traduzido para a língua portuguesa.
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471
• As mulheres são extremamente sub-representadas em posições de
tomada de decisão nos governos locais.
• No setor privado, as mulheres continuam a ser fortemente subrepresentadas no topo das posições de tomada de decisão.
• Apenas 13 das 500 maiores empresas do mundo têm uma mulher
como Chefe do Executivo. (Tradução nossa)
Na análise do corpus de nosso estudo, esses e outros aspectos
foram considerados, tais como as diferenças entre mulheres, expressas
nos modos de ação discursiva, que compreendem variáveis como
pertencimento a diferentes classes socioeconômicas, níveis de formação
educacional, base cultural e idade.
Uma consideração que se faz necessária para a apresentação das
entrevistadas é que todas elas se mostraram disponíveis e interessadas
em fazer parte deste estudo. O fato de que todas pertencem ao universo
acadêmico, em que uma das principais atividades, ao lado do ensino e
da extensão, é a pesquisa, torna-as conscientes de que as suas respostas
contribuirão para esclarecer algumas hipóteses que são aqui levantadas.
Foi feita uma advertência formal, na ocasião da entrega dos questionários
e da realização da pesquisa, relacionada ao sigilo das suas identidades,
mas, independentemente disso, elas se mostraram confortáveis e
cooperativas com os instrumentos de pesquisa.
O tempo de permanência no cargo, na ocasião das entrevistas,
variou entre 6 meses e 5 anos. Neste último caso, apenas uma delas
permaneceu mais tempo. A maioria encontrava-se no cargo por mais
de 3 anos. Das 12 entrevistadas, 7 pertenciam à instituição pública
federal, e 5 pertenciam à instituição privada, ressaltando-se que ambas
são instituições de grande porte. Como bem sabemos, nas instituições
públicas, esses cargos têm, regimentalmente, um tempo de gestão que
varia entre dois e quatro anos, podendo haver a recondução por igual
período. Apenas 2 delas foram reconduzidas: uma por eleição e outra
por indicação. As formas de ocupação do cargo foram equitativamente
distribuídas entre as entrevistadas: 4 foram eleitas, 4 foram indicadas e
as outras 4 foram convidadas.
Um dado que muito nos interessava anotar referia-se à faixa etária
das entrevistadas: 75% das mulheres tinham mais de 36 anos. Sem que
precisássemos recorrer a estatísticas feitas por institutos de pesquisa,
é de conhecimento geral que os cargos mencionados geralmente são
472
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preenchidos por pessoas não tão jovens, pelo fato de que, mesmo em
instituições com eleições, em que as candidaturas são livres, o acesso a
esses postos requer experiência e formação, que não são tão facilmente
encontradas em proissionais muito jovens.
Considerando a hipótese que construímos para iniciar esta
pesquisa que visa investigar o fato de muitas mulheres incorporarem e
reproduzirem os discursos discriminatórios para explicar suas condições
de vida e trabalho, procuramos identiicar em que medida mulheres
que atuam em espaços de produção e divulgação de conhecimento,
como é o caso de instituições de ensino superior, podem reproduzir as
ideologias embutidas nas práticas discursivas ou a elas se contraporem.
Essa assunção pode estar diretamente ligada à formação acadêmica de
nossas entrevistadas, que pode torná-las, pelo menos hipoteticamente,
mais atentas às diferentes posições ideológicas e aos modos de como
elas se manifestam, e, por conseguinte, mais ou menos, a elas refratárias.
Apresentada, na tabela seguinte, a disposição das entrevistadas nos seus
diferentes níveis de estudo, podemos constatar que a maior parte delas
tem curso de pós-graduação stricto sensu, como mestrado (3) doutorado
(6) e pós-doutorado (1).
TABELA 1 – Formação Acadêmica
Especialização:
2
Mestrado:
3
Doutorado:
6
Pós-doutorado:
1
Fonte: Elaborada pelas autoras.
3.3 A análise macro e microestrutural do corpus
Van Dijk (2008) sugere alguns procedimentos metodológicos
para os estudos críticos do discurso que aqui tentaremos levar a cabo.
Um deles, mais global, é a análise das macroestruturas semânticas, que
são os tópicos ou temas dos textos, geralmente intencionais e controlados
pelo enunciador, expressos em títulos, resumos, sumários. Outro, mais
local, é a análise das microestruturas semânticas, que dizem respeito às
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escolhas lexicais e sintáticas, às relações proposicionais e aos recursos
extralinguísticos feitos pelo produtor do texto.
Considerando que a ideologia se opera e se consolida por meio
de estratégicas de construção simbólica (no caso, pelo discurso), que
ajudam a manter estáveis relações de dominação e poder, pretendemos
empreender nossa análise com a convicção de que o “que qualiica o
analista do discurso é considerar que o discurso não é um simples suporte,
mas que desempenha um papel constitutivo nos processos ideológicos”
(MAINGUENEAU, 2010, p.75). Para esse empreendimento, tomamos
por base um interessante modelo de análise de Thompson (1990) para
identiicar como essas estratégias estão presentes nos discursos de
forma a legitimar, dissimular, uniicar, fragmentar e reiicar relações de
dominação. Desses cinco modos de operação de ideologia, destacamos
os que serão utilizados e suas respectivas estratégias na análise de nosso
corpus:
QUADRO 1 – Modelo de Thompson (1990)
Modos Gerais
de Operação da Ideologia
LEGITIMAÇÃO – Relações de
dominação são representadas
como legítimas
REIFICAÇÃO – Retratação de
uma situação transitória como
permanente e natural
DISSIMULAÇÃO – Relações
de dominação são ocultadas,
negadas ou obscurecidas
Estratégias Típicas
de Construção Simbólica
FALÁCIAS ARGUMENTATIVAS (Exemplo:
apelos à legalidade, a bases jurídicas, cientíicas)
NARRATIVIZAÇÃO (exigências de
legitimação inseridas em histórias do passado
que legitimam o presente)
Exemplo: tradições, costumes, pessoas
NATURALIZAÇÃO (criação social e histórica
tratada como acontecimento natural)
DESLOCAMENTO (deslocamento contextual
de termos e expressões)
EUFEMIZAÇÃO (valoração positiva de
instituições, ações ou relações)
TROPO (sinédoque, metonímia, metáfora)
Fonte: Adaptado pelas autoras.
474
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Essas estratégias se realizam nos discursos por meio de diferentes
recursos da linguagem (verbais ou não verbais), tais como a presença
de sons e mudanças de entonação; escolhas sintáticas de construção do
enunciado (uso de orações na voz passiva ou ativa, por exemplo); escolhas
lexicais (seleções de palavras mais ou menos negativas, incluindo tempos
e modos verbais); dispositivos retóricos (uso de metáforas e iguras de
linguagem), entre tantos outros, que respondem, direta ou indiretamente,
pela construção dos discursos (discriminatórios ou não) que circulam
nas sociedades.
Avaliações, por exemplo, que representam uma categoria
identiicacional moldada por estilos, são apreciações ou perspectivas
do locutor, mais ou menos explícitas, sobre aspectos do mundo. Os
modos de operação da ideologia nessa categoria se dão principalmente
pela dissimulação, em que relações de dominação são obscurecidas
por eufemismos, ou seja, na valoração positiva de ações e relações
nada desejáveis, e pela reiicação, que torna permanente e natural a
representação de uma situação transitória, por meio da naturalização.
Desse modelo, são aqui destacadas algumas dessas estratégias
identiicadas nos discursos dessas mulheres, ao mesmo tempo que
serão observados os recursos de linguagem utilizados para a construção
desses enunciados que apresentam marcas de legitimação, dissimulação
e reiicação, isto é, os modos de operação da ideologia que sustentam
relações de poder e dominação por meio de discursos discriminatórios.
Todos esses elementos serão acionados à medida que estiverem
sendo apresentados os recortes das falas das entrevistadas ou das respostas
às questões formuladas no questionário, que foram divididas em duas
partes.
3.4 Os instrumentos de pesquisa
Foi aplicado um questionário, enviado por e-mail às mulheres
desta pesquisa, e entrevistas foram realizadas, a im de compreendermos,
com base nas análises de seus discursos, as relações de gênero e o papel
das mulheres nos espaços que ocupam nas instituições, ao assumirem
posições de liderança. Esse questionário foi elaborado levando-se em
conta os modelos que dão sustentação à ACD, que orienta nossa análise
dos dados e resultados desta pesquisa.
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475
Dividido em duas partes, o questionário visa avaliar a forma como
essas mulheres veem sua posição no mundo do trabalho da academia e
como avaliam a forma como são vistas pelos demais integrantes desse
mundo foram fundamentais para tecermos nossa análise.
1. Na primeira parte, foram feitas airmações extraídas de discursos
comumente repetidos na mídia (eletrônica ou impressa), na literatura
(de ficção ou não-ficção), em materiais didáticos, enfim, em
várias situações de usos de linguagem que legitimam, reiicam ou
dissimulam relações de dominação e discriminação. Para saber o
grau de concordância ou discordância relativas a essas airmações, foi
utilizada a escala de Likert, que utiliza 5 pontos assim discriminados:
concordo plenamente; concordo parcialmente; não concordo nem
discordo; discordo parcialmente; discordo totalmente.
2. Na segunda parte, foram feitas perguntas que buscavam entender,
entre tantas coisas, como elas se veem nas suas relações de trabalho
e interpessoais.
4 Análise dos dados
1ª parte – Como as entrevistadas avaliam o que se diz sobre elas
Na escala, encontram-se os percentuais das avaliações feitas
pelas entrevistadas a respeito das airmações, que serão comentadas
nesta parte da análise.
476
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TABELA 2 – Percentuais das avaliações feitas pelas entrevistadas
Airmações
Concordo
plenamente
a) Não faz diferença ser uma
empresa/instituição dirigida
por homem ou mulher
5 (41%)
b) A mulher é mais emocional
e o homem mais racional
nas tomadas de decisão.
Concordo Não concordo
Discordo
Discordo
parcialmente nem discordo parcialmente totalmente
2 (17%)
3 (25%)
2 (17%)
2 (17%)
4 (33%)
3 (25%)
3 (25%)
c) As mulheres são melhores
que os homens para efetuar
tarefas manuais, repetitivas,
que exigem atenção,
paciência e coordenação
motora.
1 (8%)
1 (8%)
2 (17%)
4 (33%)
4 (33%)
d) Mulheres e homens têm
as mesmas oportunidades
para assumirem cargos de
poder, desde que estejam
preparados para isso.
3 (25%)
1 (8%)
1 (8%)
4 (33%)
3 (25%)
2 (17%)
10 (83%)
e) A liderança é um aspecto
naturalmente encontrado no
homem.
Fonte: Elaborada pelas autoras.
a) Não faz diferença ser uma empresa/instituição dirigida por homem ou
mulher.
Entre as que discordaram totalmente, destacamos o seguinte
comentário:
O reconhecimento ou o fracasso representam a
desqualiicação da mulher. No primeiro, ela é associada
ao homem, e, no segundo, ela não deu certo porque é
mulher. As mulheres têm mais capacidade de trabalhar as
diferenças. O homem é cartesiano, maniqueísta. Para ele
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477
uma coisa ou é boa ou é ruim. Isso é uma questão social,
e não biológica.. (11A)13
Apesar de demonstrar consciência das formas de representação
de “sucesso” e “fracasso” atribuídas às mulheres na condução de cargos
de poder, na primeira parte de seu depoimento, a entrevistada reproduz o
discurso ideologicamente naturalizado ao utilizar os termos de avaliação
como “cartesiano” e “maniqueísta” para os homens, na comparação
com as mulheres. Observe-se que o comentário seguinte de uma das
entrevistadas que concordava parcialmente com a airmação não difere
muito, em conteúdo avaliativo:
Acredito que as mulheres têm um olhar mais humanizado
para o outro e considero que nesse aspecto supera os
homens quando administram. (3A)
Butler (2016) adverte sobre o risco dessas airmações totalizantes
da crítica feminista e ressalta que o “esforço de identiicar o inimigo
como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza
acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer um conjunto
diferente de termos” (p. 37).
Essa dicotomia homem x mulher tem sido frequente nos discursos
sobre relações de poder, o que reforça a necessidade de se pensar de forma
conjunta as dominações, de modo a não contribuir para sua reprodução.
b) A mulher é mais emocional e o homem mais racional nas tomadas de
decisão.
Mesmo escolhendo a alternativa “não concordo nem discordo”,
que representou a maioria nessa airmação, uma das entrevistadas,
ao se expressar que considerava “a mulher mais emocional, e isso
pode inluenciar em algumas atitudes no trabalho (12B)”, conirma a
hipótese de que relações de dominação, em que se consideram alguns
comportamentos como inatos, são representadas como naturais, como
um modo de operação de ideologias.
É evidente que a hegemonia ideológica ‘total’, tal como
denunciada em alguns estudos, é uma visão de mundo redutora e simplista.
13
LEGENDA: 1 a 12 = entrevistadas; A = instituição pública; B = instituição privada.
478
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Fairclough (2001) argumenta que essa dominação hegemônica não seria
tão uniforme como se crê, pois funcionaria como uma “construção de
alianças e integração” um “equilíbrio instável” [...], “muito mais do que
simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões
ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento” (FAIRCLOUGH,
2001, p.122). É preciso considerar, entretanto, que, quando a ideologia
presente na prática discursiva já faz parte do senso comum, esse equilíbrio
não é percebido, e o sujeito considerar como seu aquilo que constrói
discursivamente sem perceber que há uma luta, um jogo de poder e que
esse embate se dá também por meio das práticas discursivas, isto é, da
produção, reprodução e transformação dos discursos estabelecidos em
outros discursos, também ideologicamente forjados.
c) As mulheres são melhores que os homens para efetuar tarefas manuais,
repetitivas, que exigem atenção, paciência e coordenação motora.
A grande maioria das mulheres entrevistadas discordou,
parcialmente ou totalmente (34% e 33%, respectivamente), dessa
airmação, argumentando, em seus comentários, que a força cultural
sustenta essa visão, como explicitamente defende a entrevistada 2A e
implicitamente reforçam 11A e12B.
Essa é uma visão cultural, mas não é verdadeira. (2A)
As pessoas não são feitas para isso ou aquilo. (11A)
Independe do gênero. Depende da habilidade individual.
(12B)
Dizem as pesquisas que sim, pela paciência e capacidade
de concentração, e se percebe que elas realmente rendem
mais nessas tarefas. (3A)
O discurso da entrevistada 3A reforça o clichê, conhecido em
todas as partes do mundo, referido por Boyer (2016): “Todos os homens
seriam líderes natos, com talentos genéticos que os predispõem a se
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479
tornarem chefes, sem esforço, enquanto as mulheres, doces e submissas,
seriam secretárias perfeitas, com o seu senso de organização doméstica.”14
Clichês, assim como as falácias, funcionam com muita eiciência
para legitimar relações de dominação (THOMPSON, 1990). Airmações
muitas vezes e largamente repetidas, ainda que não sejam verdadeiras,
passam a se tornar incontestáveis, sobretudo quando vêm respaldadas,
como o faz a entrevistada, por “pesquisas”, sejam elas de qualquer
natureza – ou de natureza nenhuma.
d) Mulheres e homens têm as mesmas oportunidades para assumirem
cargos de poder, desde que estejam preparados para isso.
Surpreende o percentual de concordância com essa frase (41%),
que varia na escala entre concordar plenamente até nem concordar nem
discordar, uma vez que foram reiteradas as airmações, em outras falas,
de que as mulheres não têm as mesmas oportunidades que os homens.
Essa contradição talvez possa ser explicada por ser a ideologia de gêneros
hegemônica, frequentemente, não se apresentando como dominação,
mas como consensual e aceitável numa comunidade (LAZAR, 2005).
Entretanto, entre as que discordaram (totalmente ou parcialmente),
observamos posições bastante céticas em relação a uma suposta
“igualdade de oportunidades” para homens e mulheres, como podemos
ver nas falas seguintes.
Têm as mesmas possibilidades, mas não as mesmas
oportunidades. (2A)
Não acredito na igualdade total de oportunidades. […] É
fácil mudar uma lei, mas difícil e demorado mudar uma
cultura machista, de mais de cinco séculos de predominância
masculina no Brasil. Mulheres mais preparadas, mais
escolarizadas, sendo preteridas por homens menos
14
Les femmes et la haute fonction publique : interview de Bénédicte Boyer, journaliste
et auteure du livre éponyme – 25/04/2013. Disponível em: <http://www.fonctionpublique.gouv.fr/fonction-publique-1135>. Acesso em: fev. 2016. Tradução nossa. No
original: « tous les hommes seraient des leaders-nés possédant des talents génétiques
les prédisposant à devenir chef sans effort, tandis que les femmes, douces et soumises,
feraient des secrétaires parfaites avec leur sens de l’organisation domestique ».
480
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
preparados e menos escolarizados, simplesmente por serem
homens. (3A)
Ela pode ser a melhor, mas a tendência é escolher o homem,
pois o discurso é que as mulheres têm mais problemas
biológicos que a fazem se afastar mais do trabalho, como
TPM, gravidez. (11A – grifos nossos).
Observe-se que uma das estratégias típicas de construção
simbólica para sustentar relações de dominação como legítimas é
apelar para a ciência ou dados estatísticos. A entrevistada 11A ressalta a
tendência desse discurso (destacada na sua fala) e suas implicações na
desigualdade de oportunidades.
e) A liderança é um aspecto naturalmente encontrado no homem.
Contrapondo-se ao apelo biológico do sexo, praticamente todas
as entrevistadas discordaram, totalmente (83%) ou parcialmente (17%),
dessa airmação, revelando a compreensão de que as distinções entre o
feminino e o masculino não são fatos naturais, mas, ao contrário, são
forjadas pelos indivíduos em sociedade e perpassadas pela cultura, como
bem defende Butler (2016).
Liderança independe de gênero, mas manifestá-la depende
das circunstâncias, do contexto, da necessidade e nossa
sociedade ainda apresenta restrições em relação às
lideranças femininas devido à cultura machista que ainda
resiste às mudanças. (3A)
Muitas vezes o homem se apresenta como líder (pelo
reconhecimento), mas a mulher é que está gerindo e
conduzindo por trás. Há mulheres que são melhores que
os homens na liderança. Liderança é carisma, por história
de vida. (11A)
Existem pessoas com habilidades para liderança. Não
precisam ser homens. (12B)
O discurso ideológico que airma que algumas características
não são próprias dos seres humanos, mas sim de cada um dos sexos
distintamente revela a eicácia do poder moderno (e sua hegemonia), e
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481
este é principalmente cognitivo, baseado numa internalização de regras
de gênero e operado rotineiramente nos textos e nas conversações
do dia-a-dia (LAZAR, 2005). Essa naturalização, ou banalização, de
características, situações, relações, fatos ou eventos cumpre um papel
fundamental na manutenção das relações de poder assimétricas, que
justiicam restrições, por exemplo, à presença da mulher em todos os
setores sociais.
2ª parte – Como as entrevistadas se veem
a) Como icam as relações interpessoais na família com os horários de
trabalho, as agendas, os compromissos extras, como viagens e reuniões
em horários não convencionais?
A maioria responde que as relações icam comprometidas. Três
delas airmam que compartilham as tarefas com o marido/companheiro,
mas apenas uma entrevistada (11A) admite que o termo “ajuda”, tão
largamente utilizado na divisão de tarefas domésticas, não se aplica
no seu caso, uma vez que ele tem assumido o “ônus” da administração
doméstica.
Há reivindicação da família quando há excesso. […] mais
cobrada. A conquista não é dividida. (1A)
Não são 100% tranquilas. Para que seja possível exercer
o cargo, tenho que contar com a ajuda de familiares e uma
boa secretária do lar. (4B)
Não há conlito. Boa estrutura familiar. Companheiro
dedicado e sogra colaborativa. O marido não “ajuda” –
divide. (11A)
É importante observar que o fato de as mulheres trabalharem o
mesmo número de horas que os homens e com as mesmas funções não
signiica necessariamente que tenham conseguido a sua libertação; isso
pode ser uma dupla escravatura, pois, ao mesmo tempo, trabalha em sua
proissão e no lar, duplicando sensivelmente a sua jornada de trabalho.
482
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
b) Em que medida você se considera uma mulher especial por estar
exercendo essa função?
Nenhuma se considera especial, e avaliam sem arrogância suas
posições nos cargos como sendo decorrência de suas competências, mas
as justiicativas são frágeis e inconsistentes, como a menção à ocupação
do mesmo cargo por outras mulheres anteriormente (7B).
Ser especial não tem relação com o gênero, mas com o
proissional. (1A)
Nem um pouco especial. Tanto fazia estar no meu lugar
um homem ou uma mulher. Não havia diferença entre um
diretor homem ou mulher. (4B)
Outro fator para eu não me considerar especial se deve ao
fato de que a função que eu atualmente ocupo já foi ocupada
por duas outras mulheres anteriormente. (7B)
Não se considera especial, mas teve o mérito de ter sido
valorizada. (11A)
Apenas uma delas admite ter sido “valorizada” (11A). Essa
representação de atores sociais feita de forma passivada, ou seja,
tornando-os impessoais, reforça o discurso de dissimulação de relações
de dominação quando essas são ocultadas, negadas ou obscurecidas, por
meio de escolhas sintáticas nas formas de produção discursiva, mesmo
sendo repetida pela voz de quem está do lado fraco dessas relações.
c) Como você é vista pelos demais integrantes de sua equipe de trabalho
e como você avalia essa visão?
Apenas três entrevistadas admitem que são consideradas
autoritárias, mas essa característica é amenizada com a justiicativa de
que têm que se impor no cargo.
Por alguns como autoritária, centralizadora, irme. Apesar
de dar liberdade de execução à equipe, quando não é feita
a tarefa, tem diiculdade de chamar a atenção, e daí faz a
tarefa. (2A)
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483
Acho que me veem como alguém um pouco bruta e um pouco
rígida. Nunca parei para avaliar essa visão, não sei... (6A)
No mundo do trabalho, há a expectativa de que as mulheres sejam
chefes menos exigentes, mais “boazinhas”. Isso se dá em decorrência da
percepção de que as mulheres são mais emocionais do que os homens.
Para muitos a assertividade ainda é vista com estranhamento quando vem
da parte de uma gestora, o que a faz ser considerada autoritária.
d) Sua promoção ou ocupação de seu cargo já foram questionadas de
alguma forma? Explique.
A maioria diz não ter conhecimento de ter sido feito algum tipo
de questionamento a suas posições, pelo menos de forma explícita.
Apenas três relataram terem sido questionadas, direta ou indiretamente,
por questões de gênero.
Entre os homens, que se queixam da diiculdade de serem
mandados por mulher. (2A)
[…] explicitamente, na instituição de origem, por ser
mulher, nova na instituição e por ser uma universidade
masculina e conservadora. […] Isso porque o cargo que
ocupo é predominantemente feminino, e a educação é um
lugar feminino. (11A)
A internalização da ideia de que a educação é um “lugar feminino”
perpassa o discurso de praticamente todos que atuam nessa área, seja
para criticar (raramente), seja para referendar (frequentemente). Nesse
caso, faz-se não só menção ao gênero, do ponto de vista biológico,
como também, e principalmente, no aspecto cultural demarcam-se essas
diferenças entre homens e mulheres, o que, de certa forma, justiica as
discriminações. Boyer (2016) ressalta esse aspecto nos relatos coletados
de mulheres em posição de poder (com funções públicas), quando uma
das entrevistadas (à época, Inspetora Geral da Educação Nacional e
Reitora da Academia de Rouen em 2012, na França) declara: “A escola
484
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
é minha família, minha casa, onde eu me sinto como um peixe dentro
d’água” (p. 83, tradução nossa.).15
e) A mudança estrutural representada pela entrada das mulheres de
diferentes classes sociais nos diversos setores do mundo do trabalho
tem sido suiciente para alterar a função da mulher na sua condição
social? Justiique sua resposta.
Entendemos que essa questão ica mais precisamente ilustrada
por meio da Tabela 2, em que 67% (com e sem restrição) airmaram que
a inserção das mulheres no mundo do trabalho trouxe mudanças para
suas condições sociais.
TABELA 3 – Entrada das mulheres no trabalho e mudanças sociais
Mudou
5 (42%)
Mudou em parte
3 (25%)
Não mudou
4 (33%)
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Mudou. Ela é mais respeitada, quando tem uma formação
maior. (1A)
Mudou. As mulheres estão mais livres, mais soltas, têm mais
facilidade de concorrer no mercado, “ir à luta”, não só para
seu crescimento proissional, mas também pessoal. (4B)
Até que não mudemos a cultura arraigada em certos
espíritos subservientes durante séculos, não haverá uma
mudança efetiva, embora se percebam alguns progressos em
relação a conquistas nos espaços de trabalho, ainda que os
homens continuem a ganhar melhores salários, mesmo que
tenham, no geral, menor escolaridade do que as mulheres.
[As mulheres devem] assumir diferentes responsabilidades
sem descuidar da família e, nem sempre, de si mesmas. (3A)
15
No original: « L’école, c’est ma famille, ma maison, j’y suis comme um poisson
dans l’eau. »
485
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
Acredito que houve alteração na condição social da mulher,
sim, mas ainda não há igualdade de tratamento […]. Por
trabalhar no setor educacional, essas diferenças não
aparecem tanto nos cargos exercidos por proissionais de
ensino superior. (7B)
Houve um avanço, mas longe do ideal. Há o uso do termo
“ajuda”. A mulher tem muitas desvantagens por conta da
jornada. (10A)
Não. No século XXI a mulher somou as funções, mas
não dividiu. A mulher tem que se mostrar muito mais
competente para ter visibilidade. Se ela der certo é porque
tem características masculinas. (11A)
Não. E acho que vai demorar ainda para mudar. […] as
mulheres ainda são vistas como executoras de tarefas
domésticas e familiares. (12B)
O fato de apenas 33% das entrevistadas terem admitido não ter
havido mudanças efetivas para a vida das mulheres corrobora com o
que tem sido largamente difundido em todos os meios quando se trata
da divisão de tarefas, por exemplo.
A entrevistada 3A reforça o clichê de que mulheres são capazes
de fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se isso fosse uma
questão biológica, e não de divisão de tarefas impostas culturalmente
pelas relações assimétricas de gênero. A advertência que faz sobre não
“descuidar da família” vai na direção oposta à critica feita por Boyer
(2013, p. 3) a essa visão:
Elas trabalham 365 dias por ano, ou quase isso, sem
reclamarem do peso do seu trabalho ou das horas gastas
no escritório, em detrimento das saídas à noite ou nos
ins de semana. Quando se busca saber se certos aspectos
da função valem a pena, a resposta dessas mulheres é,
invariavelmente: “ao se escolher uma posição de grande
486
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
responsabilidade, deve-se assumi-la até o im, incluindo os
seus aspectos mais difíceis.” (Tradução livre)16
Essas implicações são condicionantes para determinar relações
de poder vinculadas aos estereótipos de gênero, o que acaba reforçando
as desigualdades entre os sexos no mercado de trabalho e contribuindo
para manter a discriminação de gêneros nesse conjunto das atividades
humanas.
Considerações inais
Nosso estudo foi principalmente movido pela necessidade de
se analisar como as mulheres, atuando em culturas androcêntricas,
contribuem para perpetuar atitudes sexistas e práticas contra elas mesmas
e como alguns estudos têm contribuído para ampliar o conhecimento
dessas relações, a exemplo dos desenvolvidos por Lazar (2005), Butler
(2016), Scott (1995), entre outros, que embasam a teoria de gêneros
aqui tratada.
Na nossa pesquisa, icou claro que os discursos que constituem, e
são constituídos, as/pelas relações sociais e as diferenças entre os sexos
se manifestam por meio de construções simbólicas que determinam
e mantêm o status quo, atribuindo papéis a um ou outro gênero. Em
outras palavras, envolve o conjunto de expectativas sociais e padrões
de comportamento distintos para homens e mulheres, que começam
a se formar na menor unidade social – a família –, e continuam sendo
reproduzidos, reairmados e/ou subvertidos em outros meios, como a
mídia e a publicidade (KNOLL, 2012) e nas relações de trabalho.
É importante também ressaltar que, ao mesmo tempo que muitas
mulheres reforçam a assimetria de gêneros existente entre as posições de
poder na sociedade, ao repetirem/conirmarem discursos discriminatórios,
16
Les femmes et la haute fonction publique: interview de Bénédicte Boyer, journaliste
et auteure du livre éponyme – 25/04/2013. Disponível em: <http://www.fonctionpublique.gouv.fr/fonction-publique-1135>. Acesso em: fev. 2016. No original: « Elles
travaillent 365 jours par an, ou presque, sans se plaindre de la lourdeur de leur tâche
ni des heures passées au bureau, au détriment des soirées ou des week-ends. Quand
on cherche à savoir si certains aspects de la fonction leur coûtent, la réponse de ces
femmes est invariablement: quand on choisit un poste à forte responsabilité, il faut
l’assumer jusqu’au bout, y compris dans ses aspects les plus durs ».
487
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018
outras, como vimos neste estudo, vão tomando consciência de seu espaço
na sociedade e agem criticamente em defesa de direitos iguais entre
homens e mulheres. O nível de formação dessas mulheres é um dos
fatores da equação que contribui para essa percepção.
Tendo em vista o que já foi exposto sobre a pesquisa, ica evidente
a importância do enfoque que é dado para os discursos produzidos
socialmente e a carga ideológica, hegemônica, que instaura as relações
de poder presentes na sociedade e que são reveladas por meio da Análise
Crítica do Discurso. É, portanto, nos diferentes discursos que se sustentam
ideologias em conlito, em que se pode expressar poder ou mesmo desaio
de poder.
Se as hegemonias são produzidas, reproduzidas, contestadas e
transformadas no discurso, o próprio discurso apresenta-se como uma
esfera da hegemonia, que depende, em parte, de sua capacidade de
gerar práticas discursivas e ordens de discurso que a sustentem. Em
uma concepção dialética do discurso, a contra-hegemonia tem o papel
de revelar e desmistiicar essas práticas discursivas, e, dessa forma,
paulatinamente, fazer essas relações de poder assimétricas – como as
que aqui foram identiicadas sobre as mulheres exercendo cargos de
poder – deixarem de se manifestar. Esse é o papel da Análise Crítica de
discursos feministas.
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Presidente ou presidenta? Com a palavra os senadores
e as senadoras da República Federativa do Brasil
Presidente or presidenta? With the word the senators
of the Federative Republic of Brazil1
Cássio Florêncio Rubio
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção,
Ceará /Brasil
cassiorubio@unilab.edu.br
Fábio Fernandes Torres
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção,
Ceará /Brasil
fabioftorres@unilab.edu.br
Resumo: Este artigo tem o objetivo de apresentar estudo sociolinguístico
sobre a alternância das formas lexicais presidente e presidenta no
contexto político especíico do interrogatório da presidente/presidenta
Dilma Rousseff no processo de impeachment. O corpus é composto de
amostras de fala de 48 senadores e senadoras brasileiros que interpelaram
diretamente a acusada. Como referencial teórico-metodológico,
consideramos os pressupostos da Sociolinguística Quantitativa Laboviana
(LABOV, 1972, 1990, 1994, 2008; WEINREICH, LABOV, HERZOG,
2006). Foram considerados, na análise da alternância lexical, os fatores
extralinguísticos: sexo, escolaridade, faixa etária, partido político, voto
e posicionamento em tribuna a respeito do processo de impeachment;
e os fatores linguísticos: contexto anterior e função da forma lexical
na sentença. Os resultados revelaram que a escolha de uma forma em
1
Na tradução para o inglês, opta-se por manter os termos presidente e presidenta em
português, tendo em vista a ausência de morfema lexional de gênero nessa língua.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.491-524
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detrimento de outra, no contexto de uso analisado, é inluenciada pelos
seguintes fatores extralinguísticos: partido político, voto no processo,
posicionamento em tribuna e sexo.
Palavras-chave: presidente; presidenta; impeachment; variação lexical;
sociolinguística quantitativa.
Abstract: This paper aims to present a sociolinguistic study about the
alternation of the lexical forms presidente and presidenta in the speciic
political context of the interrogation of the president Dilma Rousseff
in her impeachment process. The corpus is composed of 48 Brazilian
senators pronunciations, who directly questioned the accused. As
theoretical-methodological support, we consider the assumptions of the
Labovian Quantitative Sociolinguistics (LABOV, 1972, 1990, 1994,
2008, WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006). In the lexical alternation
analysis, we considered the following extralinguistic factors: gender,
educational level, age, political party, vote and positioning in the tribune
on the impeachment process; and the linguistic factors: previous context
and function of the lexical form in the sentence. The results pointed out
that the choice of one form over another, in the context of the analyzed
use, is inluenced by the following extralinguistic factors: political party,
vote in the process, positioning in tribune and sex.
Keywords: presidente; presidenta; impeachment; lexical variation;
quantitative sociolinguistics.
Recebido em 29 de novembro de 2016.
Aceito em 10 de abril de 2017.
1 Introdução
A discussão sobre o emprego das formas lexicais presidente/
presidenta ganhou maior notoriedade a partir do ano de 2010, quando,
pela primeira vez na história do Brasil, uma mulher candidatou-se ao
cargo máximo do Palácio do Planalto. Entretanto, a discussão tornou-se
ainda mais intensa ao inal do processo eleitoral, com a vitória de Dilma
Rousseff para a Presidência da República e com o posicionamento
explícito da recém-eleita em favor do uso da forma lexical presidenta para
sua referência, em detrimento da forma presidente, empregada até aquele
momento para todos os homens que haviam ocupado o mesmo cargo.
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Passada a eleição da presidente/presidenta2 da república Dilma
Rousseff, não houve, até o momento, consenso sobre o emprego de uma
ou outra forma, ou, ainda, sobre a possível aceitação das duas formas
como mais um processo de variação do português brasileiro. Longe de
caminhar para seu inal, a discussão ressurge a cada novo posicionamento
de iguras públicas na mídia, independentemente da forma empregada.
O presente artigo não tem a pretensão de encerrar a controversa
discussão, mas, sim, buscar, em primeiro lugar, a comprovação do
processo de variação entre as duas formas (presidente/presidenta) na fala
dos senadores e senadoras brasileiros e, em segundo lugar, apresentar os
fatores que inluenciam esse processo, destacando a sua natureza linguística
ou extralinguística, no contexto especíico do cenário político brasileiro.
Antecede a discussão dos resultados da pesquisa, breve revisão
bibliográica da temática em gramática normativa e prescritiva, manual
de morfologia, dicionário, vocabulário ortográico da língua portuguesa
e textos recentes que circulam na mídia eletrônica. Optamos por não
fazer uma separação formal do tópico entre as diferentes abordagens,
haja vista serem maiores as convergências do que as divergências entre
elas no material consultado, de modo que a organização, portanto, está
pautada na revisão da temática, partindo-se de conteúdo mais amplo
para mais especíico.
2 O gênero em língua portuguesa
Na língua portuguesa, os substantivos estão divididos em dois
gêneros: o masculino e o feminino. A deinição, segundo Bechara
(2001), dá-se pela possibilidade de anteposição do artigo o, no caso do
masculino, como em o sol, o homem, o pente, o ilho; e do artigo a, no
caso do feminino, como em a lua, a ponte, a ilha, a mulher.
Para Câmara Jr. (1984), a natureza semântica dos gêneros é
pouco compreendida e, normalmente, associada ao sexo dos seres. A
realidade, porém, é que o gênero distribui-se em classes móricas, nos
nomes, como as conjugações se distribuem nos verbos, com a diferença
de que, nesses últimos, não há implicação semântica. Perini (2010)
airma que a designação de gênero é característica de todos os nominais
2
Opta-se, ao longo de todo o texto, nas referências relacionadas à presidente/presidenta
Dilma Rousseff, pela menção das duas formas.
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que apresentam potencial referencial, ou seja, o gênero, sem qualquer
exceção, é inerente ao nominal referencial.
Segundo Souza-e-Silva e Koch (2011), o processo de lexão de
gênero realiza-se com o acréscimo do morfema lexional –a ao inal
da forma masculina. Para as formas terminadas em vogal temática,
como parente, há a supressão dessa vogal, por meio de uma mudança
morfofonêmica (e+a = parenta). As morfólogas airmam, entretanto, que
nem todas as palavras recebem a lexão e que a vogal inal não indica o
gênero, mas, sim, a classe gramatical, como em criança, casa, cônjuge
etc. Nesses casos, a marcação de gênero se dá pela anteposição do artigo
(a casa, a criança, o cônjuge).
A determinação do gênero nos substantivos, acrescenta Câmara
Jr. (1970), não se apresenta do mesmo modo que no adjetivo ou no
pronome, por simples processo lexional, embora alguns substantivos
pareçam manifestar a oposição entre os gêneros pela lexão, como em
garoto/garota, prefeito/prefeita. Notadamente, o acréscimo de –a (ou a
permuta dele com –o), no substantivo, atualiza-o semanticamente, como
em jarro/jarra (tipo especial de jarro), barco/barca (barco grande).3
Bechara (2001, p. 132) menciona ainda que, mesmo nos pares
em que a atualização semântica não é tão notável, “a oposição masculino
– feminino faz alusão a outros aspectos da realidade, diferentes da
diversidade de sexo”, como em lobo/loba (a fêmea do animal chamado
lobo). Dessa forma, o masculino é a forma semanticamente não marcada,4
geral, e o feminino expressa uma especialização de determinada natureza.
3
Os exemplos são de Câmara Jr (1984, p.79).
Givón (1990, p. 5-6) defende que o princípio da marcação manifesta-se nas línguas
naturais do seguinte modo: a categoria marcada é estruturalmente mais complexa, e a
não marcada é mais simples. Esse princípio está associado, também, à frequência de
uso das categorias nos diversos contextos de comunicação, de modo que as formas mais
frequentes são categorias não marcadas, e as formas menos frequentes são marcadas.
O princípio da marcação é desdobrado, então, em três subprincípios: a) o subprincípio
da complexidade estrutural – a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior)
do que a não marcada; (b) o subprincípio da distribuição de frequência – a categoria
marcada tende a ser menos frequente do que a não marcada e c) o subprincípio da
complexidade cognitiva – a categoria marcada tende a ser cognitivamente mais
complexa no sentido de demandar maior atenção, maior esforço mental e maior tempo
para seu processamento do que a categoria não marcada. Aplicando-se o princípio
givoniano da marcação, o feminino é a categoria marcada em língua portuguesa, e o
masculino é a não marcada.
4
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Essas considerações justiicam o fato de o gênero, em alguns
substantivos, manifestar-se pela adição de um suixo nominal, como em
galo/galinha, ator/atriz; ou pelo uso de palavras diferentes, como em
homem/mulher, boi/vaca, cão/cadela. Não obstante, a distinção entre os
gêneros em português, assim como em outras línguas naturais, não segue
tão somente questões lógicas ou biológicas, mas é fruto da norma e do
próprio uso, que ica evidente quando duas ou mais línguas diferentes
são comparadas, ou quando se opõem estágios diferentes da mesma
língua (CÂMARA JR, 1970, p. 133-134). São exemplos os vocábulos
sol e lua nas línguas portuguesa e alemã – sol (masculino) = die Sonne
(feminino), lua (feminino) = der Mond (masculino) (BECHARA,
2001, p. 133). Isso também se veriica entre os seres animados, com
os chamados substantivos epicenos, como a cobra, o tatu, o jacaré, a
baleia, o tubarão; e com os substantivos comuns de dois gêneros, que
são diferenciados pelo artigo ou por outros adjuntos que os acompanham,
como o/a estudante, o/a depoente.
O gênero gramatical, complementa Perini (2010, p. 281), não está
relacionado diretamente com o sexo, sendo possível fazer referência a um
indivíduo do sexo masculino por meio de vocábulos do gênero gramatical
feminino, como em a pessoa, a vítima, a criança; ou a um indivíduo do
sexo feminino com vocábulos do gênero gramatical masculino, como
em o cônjuge, o personagem. Destaca, ainda, o gramático descritivo, ser
“inegável que existe uma tendência a correlacionar gênero e sexo nos
nominais que designam pessoas e certos animais”, ainda que esse fato
não apresente relevância na gramática, que pode apresentar nominais de
gênero feminino, como pessoa, que designa seres do sexo masculino e
feminino, e xícara, que não designa macho ou fêmea de nenhuma espécie.
Souza-e-Silva e Koch (2011) propõem a divisão dos gêneros
com base nas formas feminina e masculina do artigo, considerando
três grupos de substantivos: os de dois gêneros, com lexão redundante
(o mestre/a mestra, o pintor/a pintora); os de dois gêneros sem lexão
aparente (o/a camarada, o/a selvagem, o/a mártir); os de gênero único
(a pessoa, a testemunha, o algoz, a mosca, a mesa, o disco, o livro, o
homem, a mulher, o príncipe, a princesa, o sacerdote, a sacerdotisa).
Especiicamente em relação às proissões femininas, Bechara
(2001, p. 134) airma que a presença mais acentuada de mulheres
em atividades proissionais antes ocupadas exclusivamente ou quase
exclusivamente por homens “tem exigido que as línguas – não só o
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português – adaptem o seu sistema gramatical a essas novas realidades”.
Exemplos como mestra, professora, médica, advogada, psicóloga,
ilósofa e juíza ilustrariam essa mudança. Além dessas formas, mais
amplamente aceitas, o gramático ainda destaca as distinções entre algumas
outras formas, como embaixadora (senhora que dirige a embaixada) e
embaixatriz (esposa do embaixador); senadora (representante do sexo
feminino no parlamento) e senatriz (esposa do senador).
Para Souza-e-Silva e Koch (2011, p. 69), como em qualquer
outra descrição linguística, na descrição do gênero, é importante haver
a delimitação do plano gramatical e do plano lexical, já que a gramática
trata apenas dos fatos gerais da língua, cabendo ao léxico tratar dos fatos
especiais. Dessa forma, somente com o auxílio de um dicionário é que
se poderia completar as regras lexicais gerais, por meio da consideração
de cada uma das “propriedades idiossincráticas” de cada um dos itens
lexicais. Conforme assinalam as autoras: “Caberia, então, a um dicionário
do Português registrar as ocorrências de gênero não explicáveis pelos
padrões gerais da gramática”.
Considerado o panorama sobre a lexão de gênero do substantivo
em língua portuguesa, passemos a tratar, na sequência, especiicamente,
das formas lexicais alternantes presidente/presidenta.
3 Presidente x presidenta
Nos dicionários, o substantivo feminino presidenta tem seu
primeiro registro datado do ano de 1925, na segunda edição de Caldas
Aulete e na quarta edição de Cândido de Figueiredo, conforme registra
pesquisa lexicográica de Ferreira e Silva (2011), divulgada em meio
eletrônico. A origem do termo, airmam as lexicógrafas, está relacionada
ao vocábulo presidente, advindo do latim praesidens, entis, particípio
presente do verbo latino praesidere (estar sentado diante; vigiar, proteger,
governar, presidir), por derivação. A substituição da vogal temática (-e)
pela desinência do feminino (-a) se deu por analogia a inúmeras outras
formas como chefa, governanta e infanta (esta última registrada na língua
desde o século XVIII).
São muitos os registros de palavras que, independentemente da
forma mais antiga, com a vogal temática –e, comum de dois gêneros,
ganharam, com a substituição de –e pelo morfema –a, uma nova forma
especíica para o feminino, como mestra, hóspeda, monja e giganta (todas
registradas em FERREIRA, 2009, p. 981, 1059, 1318, 1352).
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Além do registro das formas femininas citadas, Ferreira (2009,
p. 1626) apresenta também a forma lexical presidenta, juntamente com
a forma mais antiga, presidente, como segue:
Presidenta. [Fem. de presidente.] S. f. 1. Mulher que
preside. 2. Mulher de um presidente.
Presidente. [Do lat. Presidente.] S. 2 g. 1. Pessoa que
preside. 2. Pessoa que dirige os trabalhos duma assembleia
ou corporação deliberativa. S. m. 3. O presidente da
República. Adj. 2. g. 4. Bras. Ant. Governador de Estado.
Presidente da República. Chefe de Estado republicano.
Cabe destaque o registro, nas duas acepções da forma presidenta,
da palavra mulher, restringindo seu uso ao sexo feminino, diferentemente
do que se registra na forma presidente, que apresenta, nas duas primeiras
deinições, a palavra pessoa, que amplia seu emprego para ambos os
sexos. A terceira acepção da forma presidente, contudo, especíica para
o cargo de presidência da república, apresenta-se delimitada ao sexo
masculino pelo emprego do artigo o.
O registro de ambas as formas não se restringe aos dicionários.
Em publicação do Vocabulário ortográico da língua portuguesa (VOLP)
de 2008, organizado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), as
formas presidenta e presidente encontram-se presentes: “presidenta s.
f.; presidente adj. s.2.g. s.m.” (p. 674).5
Independentemente dos comprovados registros das duas formas
nos dicionários e vocabulários ortográicos e também da conirmação
da forma presidenta como “correta” ou “aceita” por parte de inúmeros
gramáticos normativos e lexicógrafos, a discussão permanece presente
no âmbito nacional, ganhando, ao longo desses anos, novos contornos,
direcionados predominantemente por fatores extralinguísticos (questões
notadamente relacionadas à ideologia e à política).
Ainda que não seja objetivo central deste trabalho, de cunho
predominantemente sociolinguístico, propor ampla discussão de
caráter político ou ideológico, procederemos à brevíssima exposição
de posicionamentos relacionados ao emprego das formas variantes
presidente e presidenta por iguras públicas em veículos midiáticos.
Vocabulário ortográico da língua portuguesa, Academia Brasileira de Letras, 5. ed.
– São Paulo: Global, 2009 (inalizada em 2008).
5
498
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Em texto publicado originalmente pelo Diário da Manhã, no
inal de 2010,6 o ex-presidente da República e membro da ABL, José
Sarney, defende que o dilema envolve “semântica e política”, alertando
que, do ponto de vista normativo, ambas as formas seriam “corretas”. No
mesmo texto, Sarney apresenta a opção de alguns veículos da imprensa,
como a Folha de S. Paulo, pela forma presidente, independentemente
da escolha da recém-eleita.
Em seu breve texto, Sarney já anunciava quais seriam os
caminhos engendrados pela discussão, que, a princípio, parecia pertencer
à lexicograia e a ramos de estudo da linguagem ligados à linguística
histórica e ao emprego normativo da língua. Ressaltou o autor do texto e
ex-presidente da República que as “escolhas” dos meios de comunicação,
dos políticos ligados ou contrários ao governo e da própria presidente/
presidenta, certamente, levariam sempre em conta “o aspecto político”.
Ao longo dos mais de seis anos que se passaram desde a primeira
candidatura de Dilma Rousseff à Presidência do Brasil, conforme
previa Sarney, muitos foram os textos que trataram da questão, com
diferentes vieses, ora mais ligados ao emprego da norma padrão, ora com
notável tendência à defesa de determinada ideologia. O fato inconteste,
independentemente das intenções dos produtores dos textos, é que esses
se confrontaram com ferrenhos posicionamentos, sempre permeados por
conlitos político-ideológicos.
Mais recentemente, em agosto de 2016, a polêmica ganhou
novos contornos, por ocasião da posse de uma mulher na presidência
do Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, a ministra Carmen
Lúcia Antunes Rocha recusara a forma presidenta, quando indagada pelo
também Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, sobre sua preferência
entre as formas presidente/presidenta, airmando: “Eu fui estudante e
eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente,
não é não?”.
O gramático normativo Pasquale Cipro Neto, em artigo
publicado dias depois no periódico diário Folha de S. Paulo, com o
título “Data venia, ministra Carmen Lúcia, o cargo é de ‘presidente’
ou de ‘presidenta’”, defendeu o emprego da forma presidenta como
6
Disponível em: <http://www.academia.org.br/artigos/presidenta-ou-presidente>.
Acesso em: 14 fev. 2017.
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“correto”, em resposta à fala da ministra e presidente/presidenta do STF,
Carmem Lúcia.7
Os posicionamentos da ministra e do gramático, políticos ou
não, deram vitalidade à antiga discussão e trouxeram à tona, novamente,
a polarização entre partidários favoráveis e contrários à presidente/
presidenta da república (e não à do STF, até então, personagem central
dos fatos). Muitas foram as manifestações, nos mais variados meios de
comunicação; todas, incondicionalmente, comprovando a polaridade
suscitada pela questão.
Considerando a contextualização sócio-histórica do fenômeno
variável, a proposta deste estudo é mostrar, quantitativamente, o
quanto o emprego de uma ou de outra forma, por parte dos senadores
e das senadoras, sofre inluência de fatores de ordem linguística e
extralinguística. A nossa hipótese é de que a “opção” pelo emprego das
formas em variação sofra maior inluência de fatores extralinguísticos,
em especial os ligados ao posicionamento político-ideológico de cada
parlamentar, cuja descrição e importância serão apresentadas na seção
sobre metodologia.
4 A Sociolinguística Variacionista: alguns pressupostos
A Sociolinguística Variacionista, também conhecida como Teoria
da Variação e Mudança ou Sociolinguística Laboviana, surge a partir
do trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (1968) e das contribuições
dos estudos de Labov, como uma ruptura aos modelos científicos
de estudos da linguagem praticados até então – o estruturalismo e o
formalismo. Os autores propuseram uma teoria da mudança linguística
que pudesse descrever a língua e seus fatores determinantes, sejam de
ordem linguística ou social, repelindo a noção de sistema homogêneo,
para conceber a língua como um sistema dinâmico, heterogêneo, sensível
a mudanças provocadas por fatores de ordem linguística e social, que
deve ser estudado com base em dados reais de uma comunidade de fala.
Segundo Camacho (2009, p.147), a ruptura mais saliente
promovida pela Sociolinguística é, sem dúvidas, a nova abordagem dos
7
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/pasquale/2016/08/1804215data-venia-ministra-carmen-lucia-o-cargo-e-de-presidente-ou-presidenta.shtml>.
Publicado em 18 ago. 2016. Acesso em 22 set. 2016.
500
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fenômenos variáveis, tratados nos modelos anteriores como sujeitos à
variação livre – concepção de que a alternância entre as formas disponíveis
na língua estaria submetida ao livre arbítrio do falante ou à seleção
facultativa – conceito apropriado ao modelo de língua homogênea, mas
que não se sustenta diante da observação empírica de uma língua em
uso. A noção de variação livre dá lugar ao conceito de regra variável,
no modelo proposto por Labov (1978, p. 2), isto é, dois enunciados que
se referem ao mesmo estado de coisas, com o mesmo valor de verdade,
constituem-se como variantes de uma mesma variável (regra variável).
Os trabalhos pioneiros de Labov (1972) tinham como foco
fenômenos variáveis de natureza fonológica, cujo objetivo era provar
que a escolha de uma variante em detrimento de outra era motivada por
fatores sociais ou estilísticos. Os resultados encontrados encorajaram
pesquisas em outros níveis linguísticos, como o trabalho de Weiner e
Labov (1977) sobre a alternância entre as estruturas ativa e passiva sem
agente do inglês, isto é, os autores trataram essas construções como
variantes linguísticas e estenderam a regra variável ao nível sintático.
Esse fato desencadeou uma interessante discussão entre Lavandera (1978)
e Labov (1978).
Lavandera (1978) questionou se seria apropriado estender a
noção de regra variável a outros níveis de análise, como o sintático, por
exemplo, visto que as construções sintáticas têm traços de signiicado
próprios. Em resposta a Lavandera, Labov (1978, p. 2) argumenta que
a noção de signiicado referencial, também chamado de signiicado
representacional ou estado de coisas, sustenta-se sob a alegação de
que “dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas têm o
mesmo valor de verdade” (tradução nossa).8 Em vez de alargar a noção
de signiicado referencial, Labov (1978, p. 2-3) delimita-o ainda mais ao
airmar que só percebemos que alguém fala como um homem do campo
porque existem formas rurais e formas urbanas com o mesmo signiicado;
só sabemos que alguém nos tratou de modo polido porque sabemos que
esse alguém escolheu uma das várias maneiras de dizer a mesma coisa.
No caso desta pesquisa, que lida com a variação lexical das
formas presidente e presidenta, poder-se-ia questionar, segundo a lógica
de Lavandera (1978), se seria adequado o tratamento variacionista para
8
[I would like to say that] two utterances that refer to the same state of affairs have
the same truth-value.
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explicar a escolha entre uma forma e outra. Novamente, apoiamo-nos no
próprio Labov (1978, p.5), ao airmar que o primeiro passo é reconhecer
que o procedimento técnico básico para uma análise variacionista começa
com o isolamento e a deinição dos termos que variam, isto é, os termos
devem se referir ao mesmo estado de coisas e, por consequência, devem
possibilitar a alternância de um pelo outro sem que se altere o seu valor
de verdade. Nosso foco é a variação lexical entre as formas presidente
e presidenta, que têm como referente biossocial a presidente/presidenta
Dilma Rousseff, nos discursos proferidos pelos senadores e senadoras,
durante seu julgamento de impeachment, isto é, trata-se do mesmo
referente, do mesmo signiicado referencial, do mesmo estado de coisa.
O uso da forma presidente, que tenha como referente biossocial um
sujeito do sexo masculino, não admite variação, por razões inerentes ao
próprio sistema linguístico da língua portuguesa.
As formas presidente e presidenta são formas que se alternam
e que exercem a mesma função sintática no contexto de investigação.
Como discutido por Paiva; Scherre (1999) e Freitag (2009), entre outros,
longe de se constituir empecilho, a consideração de outros fenômenos,
que não os de nível fonológico, promove um alargamento do escopo da
sociolinguística e a proposição de novas interfaces com outras teorias
linguísticas, que proporcionam visão mais ampla dos fenômenos
linguísticos, como propomos neste trabalho.
Segundo Labov (2008, p. 16), a grande revelação a que se propõe
a sociolinguística é conceber a mudança linguística como racional e,
desse modo, possibilitar a descrição e a diferenciação das formas de
determinada língua em uma comunidade. O domínio de estruturas
heterogêneas, longe de ser considerado multidialetalismo, é “parte da
competência linguística monolíngue”. As possíveis explicações sobre
a variação e mudança linguística envolveriam três questões distintas:
a origem das variações, a difusão e a propagação e a regularidade da
mudança linguística.
Para isso, é importante considerar o contexto social (no caso
desta pesquisa, o político) em que o fenômeno variável ocorre. Cabe
observar, também, o signiicado ou valor social de cada uma das formas
variantes, já que é comum haver a observação da polaridade entre norma
e uso na investigação de fenômenos variáveis das línguas naturais. Essas
ponderações vão ao encontro do que propõe Eckert (1996), ao defender
que os estudos de variação se centram nas comunidades de prática, locus
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compartilhado pelos indivíduos em torno de uma meta comum, o que
relaciona crenças, valores e objetivos especíicos do grupo. Há, com base
nessa perspectiva, uma relação íntima entre a língua e a identidade do
falante, ou seja, os estilos de cada indivíduo e as marcas de identidade
social ganham destaque no estudo da variação linguística.
5 Metodologia
O corpus utilizado para a análise se compõe das gravações das
falas de 48 senadores da república durante a sessão de interrogatório da
presidente/presidenta Dilma Rousseff, realizada no dia 29 de agosto de
2016.9,10 Foram considerados aproximadamente 250 minutos, referentes
ao tempo de pronunciamento de cada um dos senadores que izeram uso
da palavra na sessão. A fala de resposta da presidente/presidenta não
foi considerada na pesquisa. As intervenções do presidente da sessão,
ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski,11
foram computadas, entretanto os resultados serão apresentados
separadamente, em razão da não aplicabilidade de alguns dos fatores
extralinguísticos considerados na pesquisa, como voto, partido político
e posição no processo.
Foram analisadas todas as menções orais das formas alternantes
presidente (conforme ocorrências (1), (2)) e presidenta (conforme
ocorrências (3) e (4)), por parte dos senadores e das senadoras, que
apresentavam como referente a interrogada na sessão, presidente/
presidenta Dilma Rousseff, constituindo-se estas as variantes da
variável dependente.12 Consideramos a forma presidente uma variante
As gravações foram baixadas do site oicial da TV Senado, http://www.senado.leg.
br/noticias/tv/, com Acesso em 1 de set. 2016.
10
As transcrições de toda a sessão do processo de impeachment se encontram
disponíveis no site do Senado, no link https://www25.senado.leg.br/web/atividade/
notas-taquigraicas/-/notas/s/3885. Acesso em 10 de out. 2016.
11
Para informação, o ministro Ricardo Lewandowski, ao se referir à presidente/
presidenta Dilma Rousseff, empregou 81 vezes (79,4%) a forma presidente e 21 vezes
(20,6%) a forma presidenta.
12
As ocorrências da forma presidente para outros referentes, como o ministro do
Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, o senador Renan Calheiros e o
presidente interino Michel Temer não foram consideradas na rodada geral de dados.
Na apresentação da ocorrência, aparece o nome do senador seguido do partido político
e do estado que representa.
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“conservadora”, já que tem origem mais antiga na língua, e presidenta,
uma forma “inovadora” por ser de uso mais recente.
(1)
...o seu compromisso com a solução de tudo o que tive a chance de lhe apresentar
foram deinitivos para que eu tivesse a certeza absoluta que a senhora é a presidente
que mais atenção deu ao agronegócio brasileiro nas últimas três décadas...
(Senadora Kátia Abreu, PMDB, TO)
(2)
e pra formar juízo é preciso compreender os fatos e conhecer os argumentos de quem
é acusado da sua prática... vossa excelência... senhora presidente tem formação de
economista... eu sou administrador de empresas e contador...
(Senador Paulo Bauer, PSDB, SP)
(3)
senhor presidente Lewandowski... senhora presidenta Dilma Roussef... eu queria
fazer uma saudação aqui ao ex-presidente Lula que esteve conosco há pouco tempo...
pelo legado que deixou a esse país...
(Senadora Gleisi Hoffmann, PT, PR)
(4)
presidente Lewandowski... presidenta eleita... do Brasil... Dilma Vana Rousseff...
antes de ontem eu estava num comício no turvo... centro do Paraná... região pobre de
agricultores que vivem em extrema diiculdade...
(Senador Roberto Requião, PMDB, PR)
Os grupos de fatores considerados são os seguintes: escolaridade,
faixa etária, sexo, partido político, voto e posicionamento em tribuna a
respeito do processo de afastamento (extralinguísticos); contexto anterior
e função do SN que contém a forma lexical na sentença (linguísticos).
A seguir, encontram-se a apresentação e a justiicativa de investigação
de cada um dos grupos:
5.1 Fatores extralinguísticos
5.1.1 Escolaridade: ensino médio e ensino superior
Concernente ao grupo de fatores escolaridade, a estratiicação
possível, proposta com base no peril social dos 48 parlamentares que
tiveram sua fala analisada, apresenta as escolaridades ensino médio
completo e ensino superior. Não há, contudo, equivalência entre os dois
estratos, haja vista 41 terem nível de escolarização superior e 7, nível de
escolarização médio ou equivalente. Foram considerados (as) também no
504
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
grupo ensino superior os(as) senadores(as) que tinham, além do ensino
superior, pós-graduação.
A hipótese clássica para a atuação do grupo de fatores
escolaridade em estudos sociolinguísticos relaciona-se, normalmente,
à maior frequência de emprego da forma padrão por parte dos mais
escolarizados (v., entre outros, VOTRE, 2015). Entretanto, para o
fenômeno considerado, as duas formas são registradas como padrão em
dicionários e no Vocabulário Ortográico Oicial da Língua Portuguesa.
5.1.2 Faixa etária: 40 a 50 anos, 50 a 60 anos, 60 a 70 anos, mais de 70 anos
O grupo faixa etária também foi proposto com base no peril
social da amostra, que contava com seis parlamentares com idade entre
40 e 49 anos, 19 com idade entre 50 e 59 anos, 13 com idade entre 60 e
69 anos, e 10 com idade igual ou superior a 70 anos.
A hipótese para esse grupo, a considerar os inúmeros estudos do
português brasileiro (ver MOLLICA, 2015, entre outros), é de que os
mais idosos empreguem a forma conservadora, e os mais jovens preiram
a forma inovadora no fenômeno variável.
5.1.3 Sexo: masculino e feminino
Para o grupo de fatores sexo, a estratiicação se deu da seguinte
forma: 38 homens e 10 mulheres. A tendência para esse grupo de fatores,
destacada por Fisher (1958), Labov (1990), Paiva (2015), entre outros,
é a de as mulheres demonstrarem maior preferência pelas variantes
mais prestigiadas socialmente, independentemente de serem formas
conservadoras ou inovadoras.
Apesar da impossibilidade de se veriicar o grau de estigma ou
de prestígio do vocábulo inovador presidenta, é possível se identiicar
diferentes avaliações sobre a forma, a depender dos micronúcleos
de seu uso, correlacionados a questões político-partidárias. Se para a
forma presidente, a princípio, não se veriica estigma, também não é
possível determinar, pela análise prévia dos discursos, o status do termo
presidenta. Entretanto por esta ser a forma inovadora, a hipótese que se
levanta é a de que ela seria a forma socialmente estigmatizada.
Merecem comentário as restrições da amostra em relação ao
equilíbrio de peris para fatores sociais como escolaridade, idade e sexo.
Essas limitações, todavia, longe de minimizar a importância do presente
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estudo, inédito até então, ou de inviabilizar a análise, apenas revelam o
cuidado no trato dos resultados e a necessidade de proceder a cruzamentos
especíicos que possam fornecer detalhes relacionados a cada estrato.
Para os grupos de fatores extralinguísticos “tradicionais”
considerados na pesquisa (escolaridade, faixa etária e sexo), ainda
que tenhamos procedido à apresentação das hipóteses clássicas, cabe
destacar o contexto especíico de investigação do fenômeno variável,
no qual outros fatores extralinguísticos podem se mostrar, por vezes,
mais atuantes. É importante considerar a natureza política da sessão
na qual foram colhidas as amostras e, mais do que isso, analisar não
somente o peril social individual dos/as senadores/as, mas também seu
posicionamento político-ideológico.
Especiicamente em relação ao sexo do falante, merece destaque
o fato de o fenômeno investigado estar fortemente correlacionado ao
reconhecimento ou não da identidade de gênero da referente no discurso.
Além da hipótese apresentada anteriormente, que demonstra maior
sensibilidade feminina ao status social das variantes linguísticas, cabe
veriicar também se as mulheres seriam mais sensíveis à determinação
e ao reconhecimento da identidade de gênero no discurso, haja vista,
no contexto de variação investigado, apresentarem-se variantes com
características identitárias ímpares, uma forma empregada indistintamente
para os dois gêneros (presidente) e outra forma especíica para o gênero
feminino (presidenta).
Cabe diferenciar, de forma simplificada, os termos sexo e
gênero, empregados ao longo desse trabalho. Sexo está relacionado às
características biológicas do informante, enquanto gênero relaciona-se
mais diretamente ao comportamento social do indivíduo. Dessa forma,
na estratiicação das amostras, procedemos ao emprego do termo sexo,
o que não exclui o emprego do vocábulo gênero em nossas discussões.
Os grupos de fatores extralinguísticos que seguem não esgotam
as possibilidades de medição dessa influência político-ideológica
sobre a alternância lexical presidente/presidenta, mas possibilitam,
minimamente, lançar um olhar objetivo e cientíico sobre o fenômeno.
506
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5.1.4 Voto no processo de afastamento: sim ou não
Entre os 48 parlamentares que fizeram uso da tribuna do
Senado, no interrogatório da presidente/presidenta Dilma Rousseff, 29
manifestaram voto favorável ao impeachment, e 19, voto desfavorável.
A consideração desse grupo de fatores tem o objetivo de investigar se o
posicionamento do(a) senador(a) em relação ao afastamento inluenciaria
o uso efetivo de uma das formas. A hipótese, com base nas observações
preliminares da amostra, é a de que os senadores com voto favorável ao
impeachment tenham maior tendência ao emprego da forma presidente,
enquanto os que manifestaram voto contrário empregariam com maior
frequência a forma presidenta.
5.1.5 Posicionamento a respeito do processo: golpe ou impeachment
(afastamento)
O posicionamento a respeito do processo, bastante discutido
durante todas as etapas da votação na Câmara dos Deputados e do Senado,
também foi considerado na investigação do fenômeno variável. Alguns
dos opositores do processo denominavam-no “golpe”, enquanto alguns
dos políticos favoráveis o nomeavam “impeachment” ou “afastamento”.
Com base nessas observações, propomos o grupo posicionamento em
tribuna a respeito do processo, considerando a menção explícita – por
parte do(a) senador(a), em tribuna – da forma lexical “golpe” ou das
formas lexicais “impeachment/afastamento”. Dos(as) 48 parlamentares
que izeram uso da tribuna, 15 mencionaram as palavras “impeachment”
ou “afastamento”, e 9 mencionaram a forma lexical “golpe”. A hipótese
para esse grupo é a de que os indivíduos que empregaram as formas
“impeachment” / “afastamento” demonstrem preferência pela forma
presidente; por outro lado, os que mencionaram explicitamente o
vocábulo “golpe” tenderiam mais ao emprego da forma presidenta.13
13
Nenhum(a) dos(as) senadores(as) empregou no seu discurso as formas impeachment/
afastamento e golpe. 24 parlamentares, em seu pronunciamento em tribuna, não
mencionaram as formas analisadas.
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
507
5.1.6 Partido político: PMDB, PP, PSDB, PSD, PDT, DEM, PSB, PR, PC
do B, PSC, PT, PV, SEM PARTIDO, REDE, PPS, PTB14
Esse grupo foi investigado com base em análise preliminar da
amostra que apontou possível relação entre o partido político do falante
e o emprego de uma ou outra forma lexical. A hipótese que carece de
conirmação é a de que representantes de partidos políticos ligados ao
governo da presidente/presidenta Dilma Rousseff apresentariam maior
tendência de emprego da forma presidenta; por outro lado, partidos
de oposição tenderiam ao emprego da forma presidente. É importante
destacar a falta de objetividade na determinação da então base aliada
do governo e também da oposição. Apenas alguns partidos, como PT e
PSDB, podem ser considerados categoricamente como de situação e de
oposição, respectivamente. A expectativa é de que a análise desse grupo
forneça subsídios para apresentar, com base nos resultados estatísticos
do fenômeno de alternância lexical presidente/presidenta, um contínuo
entre favoráveis e opositores ao governo da então presidente/presidenta
Dilma Rousseff.
5.2 Fatores Linguísticos
5.2.1 Contexto anterior: sem contexto anterior, forma lexical do gênero
feminino, forma lexical comum de dois gêneros
Na consideração do grupo de fatores contexto anterior, a
investigação recai sobre a forma lexical que antecede as variantes
presidente/presidenta dentro do SN. A observação preliminar dos
dados possibilitou veriicar que diferentes formas poderiam anteceder o
14
As siglas dos partidos referem-se às seguintes denominações: Partido do Movimento
Democrático Brasileiro-PMDB; Partido Progressista – PP; Partido da Social Democracia
Brasileira – PSDB; Partido Social Democrático – PSD; Partido Democrático Trabalhista
– PDT; Democratas – DEM; Partido Socialista Brasileiro – PSB;Partido da República
– PR; Partido Comunista do Brasil – PC do B; Partido Social Cristão – PSC; Partido
dos Trabalhadores – PT; Partido Verde – PV; SEM PARTIDO (refere-se a parlamentar
que não integra nenhum partido naquele momento); Rede Sustentabilidade –REDE;
Partido Popular Socialista – PPS; Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. A título de
informação, ao iniciar seu segundo mandato, em 2014, a então presidente/presidenta
Dilma Rousseff dispunha do apoio dos seguintes partidos que compunham a base aliada
ao governo: PCB, PDT, PMDB, PP,PR, PRB, PT, PTB.
508
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vocábulo em variação, e a hipótese a ser investigada é a de que o contexto
anterior inluenciaria no emprego de uma ou outra forma variante.
A hipótese para esse grupo está relacionada ao “princípio
do paralelismo formal”, amplamente investigado em estudos de
concordância verbal e nominal do português brasileiro, que mostram
que as marcas tendem a se repetir em estruturas subsequentes ao longo
da sentença (“marcas levam a marcas”) (SCHERRE, 1998, p. 30 et
seq.). Com base nesse princípio, a expectativa é de que as ocorrências
que apresentam contexto anterior com forma lexical feminina
(ocorrência (6)) favoreçam o emprego de presidenta e, por outro lado,
as ocorrências que não apresentam contexto anterior ou que apresentam
forma comum de dois gêneros no contexto prévio (ocorrências (5) e
(7), respectivamente) favoreçam o emprego de presidente. Vejamos as
ocorrências exempliicativas de cada contexto:
(5)
queria dizer... presidente... que eu tive o privilégio de servir a senhora...
(Senador Armando Monteiro, PTB, PE)
(6)
vossa excelência... senhora presidenta... é um orgulho para o país...
(Senador José Pimentel, PT, CE)
(7)
Ilustre presidente Dilma Roussef...
(Senador Roberto Muniz, PP, BA)
5.2.2 Função do SN: sujeito, vocativo, complemento verbal
Para o grupo de fatores função do SN, veriica-se a função
exercida pelo sintagma nominal que abriga as formas em variação
presidente/presidenta na sentença. Foram observadas, nas amostras,
três funções, a de sujeito (ocorrência (8)), a de vocativo (ocorrência (9))
e a de complemento verbal (ocorrência (10)). A hipótese, baseada em
análise prévia da amostra e na Teoria da Polidez, proposta por Brown
e Levinson (1987), a ser conirmada, é de que haja maior emprego da
forma presidenta nos vocativos, haja vista, nesses casos, a referente se
constituir na interlocutora direta do discurso. Entre as “estratégias de
polidez” apresentadas pelos autores estão a polidez positiva (inclusão
do ouvinte na atividade, simulação ou explicitação da reciprocidade,
uso de marcas de identidade de grupo) e a polidez negativa (emprego
convencionalmente indireto, referência impessoal ao falante e ao
ouvinte, deslocamento do ouvinte). Por outro lado, os SNs em posição
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
509
de sujeito e de complemento verbal têm como interlocutores todos
os que acompanhavam a sessão do senado. A suposição é de que os
parlamentares que optam pelo direcionamento direto do discurso à
interrogada estariam optando por estratégias de polidez positiva, enquanto
os que optam pelo direcionamento a todos os presentes, reportando-se à
interrogada em terceira pessoa, estariam optando pela polidez negativa.15
Por consequência, essa “opção” se reletiria também no emprego das
formas presidenta/presidente. A seguir, são apresentadas ocorrências
exempliicativas.
(8)
a presidente Dilma insinuou a hipótese de que por detrás dos movimentos que
levaram multidões às ruas...
(Senador Álvaro Dias, PV, PR)
(9)
Senhor presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski...
senhora presidenta da República Dilma Rousseff... presidenta Dilma... eu
venho lá do sul...
(Senador Paulo Paim, PT, RS)
(10)
peço permissão para nesse exíguo lapso temporal fazer um registro sobre uma
grande presidente a quem tive a honra de apoiar...
(Senador Hélio José, PMDB, DF)
As ocorrências foram codiicadas e submetidas a tratamento
estatístico no programa GoldvarbX, que permite uma análise multivariada
dos fatores condicionadores da variação linguística, conforme Sankoff,
Tagliamonte (2005). Os resultados gerais e relativos aos fatores
considerados são discutidos na próxima seção.
6 Análise dos resultados
Foi considerado na análise um total de 232 ocorrências, entre
as quais 62,5% (145) são da forma lexical presidente, e 37,5% (87), da
forma presidenta, como podemos observar na tabela 1.
Em relação às nuances de subjetividade e pessoalidade veriicadas entre o emprego
da segunda e terceira pessoas, é importante destacar Benveniste (1991), que estabelece
diferença circunstancial entre o eu / tu, autênticas pessoas, categorias do discurso; e o
ele, uma categoria da língua, uma não-pessoa.
15
510
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
TABELA 1 – Resultados gerais da alternância
entre as formas presidente/presidenta
RESULTADO GERAL – ALTERNÂNCIA LEXICAL
Presidente
Presidenta
% (nº de ocorrências)
% (nº de ocorrências)
62,5% (145/232)
37,5% (87/232)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados gerais apresentam um processo de variação
lexical, com predomínio da forma presidente sobre a forma presidenta.
Concernente aos diversos fatores linguísticos e extralinguísticos
abarcados, apresentamos, no quadro 1, aqueles selecionados pelo
programa estatístico como relevantes no fenômeno variável.
QUADRO 1 – Ordem de seleção dos fatores na alternância lexical
presidente/presidenta
Fatores
Alternância lexical
presidente x presidenta
Partido político
1º
Voto no processo
2º
Posicionamento em tribuna
3º
Sexo
4º
Faixa etária
não selecionado
Nível de escolaridade
não selecionado
Contexto anterior
não selecionado
Função do SN
não selecionado
Fenômeno
Extralinguísticos
Linguísticos
Goldvarb X
Fonte: Elaborado pelos autores.
Log likelihood = -55.627 Signiicance = 0.007
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511
Como se pode observar, somente fatores extralinguísticos foram
selecionados como relevantes no fenômeno de alternância lexical entre
as formas presidente/presidenta. Cabe destacar, entre os selecionados,
três fatores (partido político, voto no processo e posicionamento em
tribuna) mais fortemente ligados ao caráter político-ideológico do
fenômeno linguístico, que é o foco desta investigação, e o último, sexo,
reconhecidamente associado às discussões de gênero presentes nos
debates sobre a temática.
A faixa etária e a escolaridade dos senadores e senadoras não
foram consideradas relevantes na alternância lexical. Da mesma forma,
os fatores linguísticos contexto anterior à forma lexical e função do
SN que abriga a forma lexical também não foram selecionados pelo
programa estatístico.
Na sequência, trataremos mais detalhadamente de cada um dos
grupos considerados relevantes.16
6.1 Partido político
A motivação para o controle do grupo de fatores partido político
é de conirmar se o emprego de uma ou outra formas lexicais (presidente/
presidenta) seria inluenciado pelo partido político ao qual o/a senador/a
pertence.17 Seguem os resultados para esse grupo na tabela 2.
16
Optamos por rodadas que considerassem como fator de aplicação uma e outra
variantes, com o intuito de proporcionar apresentação que possibilite visão mais ampla
do fenômeno, em função da forma “presidente” e da forma “presidenta”. Nas tabelas,
exibe-se a distribuição complementar das frequências e pesos relativos.
17
Faz-se necessário destacar, neste ponto, a imprecisão na determinação de partidos e de
políticos de “oposição” ou “situação”, “direita” ou “esquerda”, “aliados” ou “contrários”.
512
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
TABELA 2 – Atuação do grupo de fatores partido político
na alternância presidente/presidenta18
Presidenta
Presidente
Variantes
Partido Político
% / nº de ocorrências
Peso rel.
PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, ,
PPS, PTB, PSC, PV, S/P, REDE18
98,1% (103/105)
0,907
PMDB
83,3% (20/24)
0,597
PDT
71,4% (10/14)
0,313
PC do B
42,9% (6/14)
0,228
PT
8% (6/75)
0,050
PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR,
PPS, PTB, PSC, PV, S/P, REDE
1,9% (2/105)
0,093
PMDB
16,7% (4/24)
0,403
PDT
28,6% (4/14)
0,687
PC do B
57,1% (8/14)
0,772
PT
92% (69/75)
0,950
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados mostram um bloco de partidos, composto de PP,
PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE,
com comportamento bastante semelhante em relação à alternância entre
as formas, demonstrando forte tendência ao emprego da forma presidente
(frequência de 98,1% e peso relativo de 0,907). Os/As senadores/as
do PMDB, apesar da considerável frequência com que empregam a
forma presidente (83,3%), diferenciam-se do bloco anterior, o que pode
ser veriicado também pelo peso relativo de 0,597, que revela menor
tendência do que o grupo anterior ao emprego da forma conservadora.
Representantes do PDT, embora empreguem com maior
frequência a forma presidente (71,4%), exibiram peso relativo que indica
A considerar a grande proximidade de percentuais veriicada entre os partidos PP,
PPS, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE, optou-se pela
amalgamação de resultados dessas siglas. A estratégia possibilitou também a rodada
multivariada, com a obtenção de pesos relativos (P.R.).
18
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513
inluência positiva no emprego da forma presidenta (peso relativo de
0,687 para essa forma).
Os/As senadores/as do PC do B exibiram frequência de mais
de 57,1% de emprego da forma presidenta e peso relativo de 0,772,
revelando tendência positiva ao emprego da forma inovadora. Da mesma
forma, os/as representantes do PT, partido da presidente/presidenta Dilma
Rousseff, como previa nossa hipótese, foram responsáveis por 92% do
emprego da forma presidenta, o que resultou em peso relativo de 0,950
para emprego dessa forma.
Como se pode constatar, o grupo de fatores partido político do/a
senador/a exerce inluência no comportamento linguístico quanto ao
emprego das formas alternantes. O bloco de partidos formado por PP,
PSDB, PSD, DEM, PPS, PSB, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE
priorizou o emprego quase categórico da forma presidente, explicitamente
preterida pela presidente/presidenta da República. Em outro extremo, os/
as representantes do PT demonstraram, em seus discursos, a tendência
elevada à opção pelo uso da forma preferida de Dilma Rousseff.
A análise dos outros fatores selecionados e o cruzamento entre
alguns deles permitirão discussão mais ampla do fenômeno. Passemos
a apresentar o próximo grupo selecionado pelo programa estatístico,
voto no processo.
6.2. Voto no processo
O grupo de fatores voto no processo foi controlado com o intuito
de conirmar ou refutar a hipótese de que senadores/as apresentariam
tendência ao emprego de uma ou de outra forma a depender de seu
posicionamento político em favor ou contra o processo de impeachment.
Dessa forma, os contrários ao afastamento tenderiam a empregar a
forma presidenta e os favoráveis tenderiam mais ao emprego da forma
presidente. A princípio, o grupo voto no processo poderia estar se
sobrepondo ao grupo anterior, partido político, apresentando resultados
bastante semelhantes, entretanto merece destaque o fato de haver poucos
partidos nos quais todos os representantes assumiam posicionamento
único em relação ao processo (apenas PT e PC do B, como veremos
adiante). Na sequência, os resultados para o grupo de fatores voto no
processo de impeachment.
514
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TABELA 3 – Atuação do grupo de fatores voto no processo
na alternância presidente/presidenta
Variantes
Presidente
Presidenta
Voto no processo
% / nº de ocorrências
Peso relativo
Sim
97,1% (100/103)
0,777
Não
34,9% (45/129)
0,270
Sim
2,9% (3/103)
0,223
Não
65,1% (84/129)
0,730
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados demonstram que, entre os senadores/senadoras
favoráveis ao processo de impeachment, houve emprego quase categórico
da forma presidente (97,1% e peso relativo de 0,777). Por outro lado,
presidenta foi a forma lexical mais empregada pelos que votaram contra
o afastamento de Dilma Rousseff (65,1% e peso relativo de 0,730 para
a forma inovadora). Há de se destacar que houve, para os que votaram
não ao afastamento, um processo variável, com tendência acentuada
ao emprego da forma inovadora presidenta, comportamento bastante
diferente dos que votaram sim, com a apresentação do emprego quase
categórico da forma conservadora. Os resultados conirmam a oposição
e distanciamento de frequências e pesos relativos entre o grupo de
senadores que votou sim e o grupo que votou não.
Esses resultados, aliados aos resultados do grupo de fatores
partido político, poderiam conirmar que o emprego de uma ou outra
forma, apesar de se correlacionar com posição contrária ou favorável
à então presidente/presidenta, estaria mais fortemente ligado a uma
ideologia político-partidária, ou seja, o emprego mais acentuado da
forma presidenta, como mostrou o grupo anterior, estaria restrito a
determinado(s) partido(s) e não ao posicionamento diante do processo.
A seguir, apresenta-se, na tabela 4, o cruzamento entre o grupo partido
político e voto no processo.
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TABELA 4 – Cruzamento entre os grupos de fatores
partido político e voto no processo
Voto
Sim
Não
Variantes
Partido
Presidente
Presidenta
PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS,
PR, PTB, PSC, PV, S/P, REDE
98% (78/80)
2% (2/80)
PMDB
100% (12/12)
0% (0/12)
PDT
91% (10/11)
9% (1/11)
PC do B
-
-
PT
-
-
PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR,
PTB, PSC, PV, S/P, REDE
100% (25/25)
0% (0/25)
PMDB
67% (8/12)
33% (4/12)
PDT
0% (0/3)
100%(3/3)
PC do B
43% (6/14)
57% (8/14)
PT
8% (6/75)
92% (69/75)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados tornam possível airmar que, para o bloco de
partidos composto por PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PTB, PPS, PSC,
PV, S/P, REDE, independentemente do voto no processo de impeachment,
há recusa quase categórica ao emprego da forma presidenta. Para PMDB e
PDT, interfere no emprego de uma ou outra forma o voto do parlamentar,
haja vista os que votaram sim tenderem ao emprego de presidente (100%
e 91%, respectivamente) e os que votaram não tenderem mais ao uso
da forma presidenta (33% e 100%, respectivamente). Parlamentares
do PC do B e do PT, únicos partidos com 100% de votos contrários ao
impeachment, apresentaram também frequências superiores de emprego
da variante presidenta (respectivamente, 57% e 92%).
Os resultados até aqui apresentados denotam que o emprego
das variantes no contexto investigado sofre inluência direta da posição
político-ideológica do parlamentar. Ainda que tenha havido diiculdade
na determinação dos partidos contrários e favoráveis ao governo, por
conta da volatilidade das alianças irmadas ao longo de todo o processo,
a relação entre os grupos voto no processo e partido político permite
apontar com relativa assertividade as diferentes posições políticas no
516
Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018
senado. Os/As parlamentares do bloco composto por PP, PSDB, PSD,
DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, S/P, REDE, em sua maioria,
no momento do processo de impeachment, pertenceriam ao bloco de
oposição ao governo, enquanto PT e PC do B, no outro polo, seriam
partidos da base governamental. PDT e PMDB apresentariam maior
equilíbrio entre parlamentares de oposição e situação.
Essas diferentes ideologias políticas interferem diretamente
no emprego das variantes presidente/presidenta, por ser conhecido o
posicionamento de Dilma Rousseff, dos representantes do governo e
de seu partido em relação à preferência pela forma especíica do gênero
feminino.19
Na sequência, apresenta-se o terceiro grupo de fatores selecionado
pelo programa estatístico GOLDVARB X, posição explícita em tribuna
diante do processo.
6.3 Posição em tribuna
O grupo de fatores posição em tribuna considera a menção
explícita do/a senador/a aos vocábulos “impeachment” (ou “afastamento”)
e “golpe”. A hipótese sobre a atuação desse grupo diante da alternância
lexical se deu devido à grande discussão que antecedeu o processo
em diversas redes sociais. A expectativa era de que senadores/as que
explicitamente considerassem o processo como “golpe” tendessem
a empregar mais a forma presidenta; enquanto senadores/as que, em
tribuna, se referissem ao processo como “impeachment” ou “afastamento”
tenderiam mais ao emprego da forma presidente. Seguem, na tabela 5,
os resultados para esse grupo de fatores:
19
Merece registro o pronunciamento do senador Ronaldo Caiado, do DEM de Goiás,
que, ao fazer a leitura de documento do ex-ministro Jaques Wagner em que constava
“Quem banca é a presidenta...”, substituiu a forma presidenta por presidente.
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TABELA 5 – Atuação do grupo de fatores posição em tribuna
na alternância presidente/presidenta
Variantes
Presidente
Presidenta
Posição em tribuna
% / nº de
ocorrências
Peso relativo
impeachment ou afastamento
92,7% (51/55)
0,770
golpe
17,2% (11/53)
0,262
impeachment ou afastamento
7,3% (4/55)
0,230
golpe
82,8% (53/64)
0,738
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados conirmam totalmente as expectativas, haja vista
os/as senadores/as que mencionaram os termos “impeachment” ou
“afastamento” terem apresentado também alta frequência de emprego
da forma presidente (92,7%) e um peso relativo que mostra que o grupo
tende ao emprego da forma conservadora (0,770). Por outro lado, os/as
senadores/as que se referiram explicitamente ao processo como “golpe”
tenderam fortemente ao emprego de presidenta (frequência de 82,8% e
peso relativo de 0,738 para uso dessa forma).
A validade da consideração desse grupo pode ser conirmada
pela polarização entre os dois grupos, os que consideram o processo
“golpe” e os que o consideram “impeachment/afastamento”. No grupo
anterior, que considerava o voto no processo, ainda que tenha havido
diferença considerável entre os que votaram contra e a favor, a frequência
de emprego da forma presidenta pelos que votaram sim, ainda que
alta, foi menor, 65,1%, contra 82,8% dos que consideraram o processo
“golpe”. Cabe relembrar que, para o grupo voto no processo, foram
considerados todos os 48 parlamentares que izeram uso da tribuna e,
para o grupo posicionamento explícito sobre o processo, apenas os/as
que mencionaram os termos “impeachment/ afastamento” ou “golpe”.
Passemos a tratar do último grupo de fatores selecionado, sexo.
6.4. Sexo
Para o grupo de fatores sexo, consideramos, entre os 48
parlamentares que izeram uso da tribuna, 38 homens e 10 mulheres. A
hipótese presente em estudos sociolinguísticos de diferentes fenômenos
do português brasileiro mostra certa tendência de as mulheres empregarem
com maior frequência a forma inovadora, desde que essa forma não seja
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estigmatizada, o que demonstra maior sensibilidade de representantes do
sexo feminino em relação ao signiicado social das variantes linguísticas
(FISHER, 1958; LABOV, 1990; PAIVA, 2015, entre outros).
É importante considerar, entretanto, a natureza especíica da
amostra analisada nesta pesquisa e, além disso, outros grupos de fatores,
como os já apresentados, que poderiam atuar junto do grupo de fatores
sexo. Reitera-se o fato de o fenômeno, e desse grupo de fatores em
especial, estar fortemente ligado à identidade de gênero no discurso,
já que as formas lexicais apresentam diferentes signiicações sociais,
apesar de se alternarem nas mesmas funções. Seguem os resultados para
esse grupo.
TABELA 6 – Atuação do grupo de fatores sexo na alternância
presidente/presidenta
Variantes
Presidente
Presidenta
Sexo
% / nº de
ocorrências
Peso relativo
Masculino
70,9% (122/172)
0,587
Feminino
38,3% (23/60)
0,366
Masculino
29,1% (50/172)
0,413
Feminino
61,7% (37/60)
0,634
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados mostram maior tendência de emprego da forma
presidente por parte dos senadores, com 70,9% de frequência e peso
relativo de 0,587. As senadoras, por outro lado, tenderam a empregar
mais em seus discursos a forma presidenta, apresentando um percentual
de 61,7% e peso relativo de 0,634 para uso dessa forma.
Por meio da observação dos resultados para o sexo e, considerando
a premissa de que as mulheres são mais sensíveis ao signiicado social
das variantes linguísticas, poderíamos concluir que a forma inovadora
presidenta, por ser a mais empregada pelas mulheres, não seria
estigmatizada. Entretanto, o contexto particular de investigação, com
falta de equilíbrio entre os fatores sociais (como já demonstrado) sugere
algumas ponderações e a consideração da relação deste com outros grupos
de fatores. Como já mencionado, é pertinente também a consideração
da especiicidade da alternância, que comprova, na preferência pela
forma presidenta, a defesa da ideologia de gênero. No quadro que segue,
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apresentamos a relação entre o sexo dos/as senadores/as e o voto no
processo de impeachment.
QUADRO 2 – Relação entre o sexo e o voto no processo de impeachment
Voto no processo
Nº de Senadores /
percentual
Nº de Senadoras /
Percentual
Sim
26/69%
3/30%
Não
12/31%
7/70%
Total
38/100%
10/100%
Fonte: Elaborado pelos autores.
Entre os senadores, quase 70% foram favoráveis ao processo de
impeachment (69%) e, entre as senadoras, por outro lado, 70% foram
contrárias ao processo. Há, dessa forma, falta de equilíbrio entre o voto
de homens e mulheres no processo, e o resultado para o grupo de fatores
sexo estaria sendo condicionado pelo posicionamento político-ideológico
de cada um/a dos/as senadores/as da República. A conirmação dessa
hipótese pode ser obtida com o cruzamento do grupo de fatores voto no
processo e sexo, apresentado na sequência.
Voto
Sim
Não
TABELA 7 – Cruzamento entre os grupos sexo e voto
no processo de impeachment
Variantes
Sexo
Presidente
Presidenta
Masculino
97% (92/95)
3% (3/95)
Feminino
100% (8/8)
0% (0/8)
Masculino
39% (30/77)
61% (47/77)
Feminino
29% (15/52)
71% (37/52)
Fonte: Elaborada pelos autores.
Os resultados evidenciam comportamentos distintos entre os/as
parlamentares pró e contra o impeachment, pois, entre os/as favoráveis
ao processo, há a opção categórica ou quase categórica pelo emprego
de presidente, independentemente do sexo. Já entre os/as parlamentares
que votaram contra o impeachment, houve diferença no comportamento
masculino e feminino, com maior tendência desse último grupo ao
emprego da forma inovadora presidenta.
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Assim, entre os parlamentares contrários ao impeachment, é
possível veriicar diferença no comportamento masculino e feminino, com
maior frequência de emprego da forma presidenta (inovadora e especíica
de referente do sexo feminino) pelas mulheres. Esse comportamento
revela, para além da hipótese clássica, que defende maior sensibilidade
por parte de representantes do sexo feminino em relação ao status social
das variantes linguísticas, maior sensibilidade das mulheres também na
determinação e no reconhecimento da identidade de gênero no discurso.
7. Considerações inais
Os resultados desta pesquisa conirmaram que a alternância das
formas presidente e presidenta é inluenciada, predominantemente, por
fatores extralinguísticos ligados à ideologia política dos/das parlamentares,
haja vista o partido político, o voto no processo e o posicionamento em
tribuna terem sido os três primeiros fatores selecionados pelo programa
estatístico GOLDVARB X. Além da ideologia político-partidária, foi
possível constatar também a inluência do grupo de fatores sexo no
fenômeno variável.
Pela observação especíica do grupo de fatores partido político,
foi possível verificar um bloco de partidos com comportamento
semelhante (PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV,
Sem Partido e REDE), tendendo ao emprego semicategórico da forma
presidente. Os representantes do PMDB e do PDT, apesar de usarem com
alta frequência a forma presidente, destacam-se do bloco anterior, pois
também empregaram a forma presidenta (16,7% das ocorrências para o
PMDB e 28,6% para o PDT). Em comportamento inverso ao do primeiro
bloco, parlamentares do PC do B e do PT revelaram maior tendência ao
emprego da forma presidenta (destaque para o PT, que apresentou 92%
de emprego da forma inovadora).
O grupo de fatores voto no processo revelou que o posicionamento
do/a parlamentar em relação ao processo exerce inluência na alternância
lexical. Senadores/as favoráveis ao impeachment apresentaram maior
tendência ao emprego da forma presidente do que senadores/as contrários
ao processo.
A análise do grupo de fatores posição em tribuna, por considerar
apenas os/as parlamentares que se posicionaram explicitamente na sessão
em relação ao processo, revelou com maior clareza os polos de oposição
da variação e a relação entre o posicionamento político-ideológico e sua
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manifestação no discurso, revelando a preferência dos senadores que
votaram sim pela forma presidente e dos que votaram não pela forma
presidenta.
O grupo sexo, apesar de exigir cautela em sua análise, devido à
falta de equilíbrio da amostra, comprovou a maior sensibilidade feminina
na determinação e reconhecimento da identidade de gênero no discurso,
com as mulheres tendendo mais ao emprego da forma presidenta do que
os homens.
Embora o contexto de investigação desta pesquisa tenha sido
restrito, os resultados possibilitam uma visão mais ampla do fenômeno
de alternância lexical entre as formas presidente e presidenta, visto que,
dentro e fora do Senado Federal, a discussão sobre o emprego de uma
ou outra formas quase sempre extrapola os rótulos de padrão ou não
padrão, prestígio ou estigma, culto ou popular. Além disso, o julgamento
pessoal, social e político dos senadores em relação ao referente-alvo da
forma lexical está em jogo e tem maior peso nesse contexto especíico
de variação. Há, notadamente, uma polarização político-ideológica, e o
falante determina o polo que irá ocupar no momento em que faz a opção
por uma das formas lexicais.
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