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RELIN 26:1 (2018)

ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.26 - Nº 1 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 26 n. 1 p.1-524 jan./mar. 2018 REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Universidade Federal de Minas Gerais REITOR: Jaime Arturo Ramirez VICE-REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida Faculdade de Letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETOR: Rui Rothe-Neves Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG Revisão e Normalização Alda Lopes Durães Ribeiro Heliana Ribeiro de Mello Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Úrsula Francine Massula Maria Cecília de Lima Ricardo Araújo de Alkimin Capa Elson Rezende de Melo REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM V. 26 - Nº 1- jan.-mar. 2018 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Cientíico) [Spain] Sindex (Sientiic Indexing Services) [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Editores Associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Conselho Editorial Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3) Ieda Maria Alves (Universidade de São Paulo-USP) Jairo Nunes (Universidade de São Paulo-USP) Scott Schwenter (The Ohio State University) Shlomo Izre'el (Tel Aviv University) Stefan Gries (University of California) Teresa Lino (Universidade Nova de Lisboa) Tjerk Hagemeijer (Universidade de Lisboa) Comissão Cientíica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Alessandro Panunzi (Univ. Degli Studi di Firenze, Itália) Alina M. S. M. Villalva (Univ de Lisboa) Aline Alves Ferreira (Univ. of California at Santa Barbara, UCSB, EUA) Ana Lúcia de Paula Müller (USP) Ana Maria Carvalho (Univ. of Arizona, EUA) Anabela Rato (University of Toronto, Canadá) Augusto Soares da Silva (Universidade Católica Portuguesa, Portugal) Beth Brait (PUC-SP / USP) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL) César Nardelli Cambraia (UFMG) Cristina Name (UFJF) Charlotte C. Galves (UNICAMP) Deise Prina Dutra (UFMG) Diana Luz Pessoa de Barros (USP / Mackenzie) Dylia Lysardo-Dias (UFSJ) Edwiges Morato (UNICAMP) Emília Mendes Lopes (UFMG) Esmeralda V. Negrão (USP) Gabriel de Avila Othero (UFRGS) Gerardo Augusto Lorenzino (Temple Univ.) Glaucia Muniz Proença de Lara (UFMG) Hanna Batoréo (Universidade Aberta, Lisboa) Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Hugo Mari (PUC-Minas) Hilario Bohn (UCPel) Heronides Moura (UFSC) Ida Lucia Machado (UFMG) Ieda Maria Alves (USP) Ivã Carlos Lopes (USP) Jairo Nunes (USP) Jean Cristtus Portela (UNESP - Araraquara) João Antônio de Moraes (UFRJ) João Miguel Marques da Costa (Univ. Nova de Lisboa) João Queiroz (UFJF) José Magalhaes (UFU) João Saramago (Universidade de Lisboa) José Borges Neto (UFPR) Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) Laura Alvarez Lopez (Stockholm University) Laurent Filliettaz (Université de Genève, Suiça) Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam) Leonel Figueiredo de Alencar (UFC) Livia Oushiro (UNICAMP) Lodenir Becker Karnopp (UFRGS) Lorenzo Vitral (UFMG) Luiz Amaral (Univ. of Massachusetts Amherst) Luiz Carlos Cagliari (UNESP) Luiz Carlos Travaglia (UFU) Marcelo Barra Ferreira (USP) Márcia Cançado (UFMG) Márcio Leitão (UFPb) Marcus Maia (UFRJ) Maria Antonieta Amarante M. 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Freitag (UFS) Roberto de Almeida (Concordia University) Ronice Müller de Quadros (UFSC) Ronald Beline (USP) Rove Chishman (UNISINOS) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS) Seung- Hwa Lee (UFMG) Sírio Possenti (UNICAMP) Suzi Lima (University of Toronto / UFRJ) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG) Tommaso Raso (UFMG) Tony Berber Sardinha (PUC-SP) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS) Vander Viana (Univ. of Stirling, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL Vera Menezes (UFMG) Vilson José Leffa (UCPel) Sumário / Contents Validade empírica das redes de polissemia para o signiicado preposicional Empirical validity of polysemy networks for prepositional meaning Aparecida de Araújo Oliveira Pedro Ivo Vieira GoodGod ................................................................ 11 Exploring content selection strategies for Multilingual Multi-Document Summarization based on the Universal Network Language (UNL) Investigando estratégias de seleção de conteúdo para a Sumarização Multi-Documento Multilíngue com base na Universal Network Language (UNL) Matheus Rigobelo Chaud Ariani Di Felippo .............................................................................. 45 A Cupópia do Cafundó: uma análise morfossintática The Cupópia of Cafundó: a morphosyntactic analysis Anna Jon-And Laura Álvarez López ......................................................................... 73 Áreas lexicais no Centro-Sul do Brasil sob uma perspectiva geolinguística Lexical areas in Central-South of Brazil under a Geolinguistic Perspective Valter Pereira Romano ...................................................................... 103 Retomadas anafóricas de objeto direto em português brasileiro escrito Anaphoric direct object in written Brazilian Portuguese Gabriel de Ávila Othero Camila Schwanke .............................................................................. 147 Variação e deinição de queda de sílaba: o contexto segmental em Capivari-SP e Campinas-SP Variation and Deinition of Syllable Drop: The Segmental Context in Capivari-SP and Campinas-SP Eneida de Goes Leal ......................................................................... 187 A diacronia e a sincronia dos pronomes de primeira pessoa do plural Nós e A Gente no português brasileiro e no português uruguaio Diachrony and synchrony of irst-person plural pronouns Nós and A Gente in Brazilian Portuguese and in Uruguayan Portuguese Cíntia da Silva Pacheco .................................................................... 221 A escrita em bandos atribuídos a Rodrigo Cesar de Menezes – governador e capitão general da capitania de São Paulo (1721-1728) The writing in bandos assigned to Rodrigo Cesar de Menezes – General Governor and Captain of the captaincy of São Paulo (1721-1728) Phablo Roberto Marchis Fachin Gabriela Lubascher Miragaia ............................................................ 255 A formação do glide no alemão padrão Glide formation in Standard German Mágat Nágelo Junges Gean Nunes Damulakis ..................................................................... 285 Paragrafação e argumentação em cartas de reclamação escritas por alunos do ensino fundamental Paragraphing and argumenting in letters of claim written by elementary school students Leila Nascimento da Silva Telma Ferraz Leal ............................................................................. 321 Efeitos da clínica de linguagem em casos de sujeitos com paralisia cerebral Language clinic effects in cases of subjects with cerebral palsy Roseli Vasconcellos ........................................................................... 355 Inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX Parenthetical insertions in 19th century São Paulo State Editorials Michel Gustavo Fontes ..................................................................... 389 Apropriação da análise de discurso crítica em uma discussão sobre comunicação social Appropriation of critical discourse analysis in a discussion about media Viviane de Melo Resende María del Pilar Tobar Acosta ............................................................. 421 Mulheres na liderança: discurso, ideologia e poder Women in leadership positions: discourse, ideology and power Vicentina Ramires Dina Ferreira ..................................................................................... 455 Presidente ou presidenta? Com a palavra os senadores e as senadoras da República Federativa do Brasil Presidente or presidenta? With the word the senators of the Federative Republic of Brazil Cássio Florêncio Rubio Fábio Fernandes Torres ..................................................................... 491 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Validade empírica das redes de polissemia para o signiicado preposicional Empirical validity of polysemy networks for prepositional meaning Aparecida de Araújo Oliveira Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, Minas Gerais / Brasil cidaaraujo007@gmail.com Pedro Ivo Vieira GoodGod Universidade Federal de Viçosa, Rio Paranaíba, Minas Gerais / Brasil pedro.god@ufv.br Resumo: O presente artigo avalia a validade empírica de uma rede de polissemia proposta para a preposição em do português do Brasil, comparando as perspectivas do linguista e de usuários leigos da língua sobre categorização. A rede baseou-se no modelo cognitivo de Rede Esquemática, de R. Langacker (1987, 2008), com relações de esquema/ instância e de extensão semântica, e envolveu 48 frases da internet, que representavam 24 padrões de uso de em deinidos pelo linguista. Participaram como sujeitos em um experimento psicolinguístico 32 estudantes de graduação, sem formação em linguística, todos eles falantes nativos de português do Brasil. Esses sujeitos classiicaram as frases do corpus segundo semelhanças percebidas no signiicado da preposição. Em entrevistas individuais realizadas após a tarefa, os participantes relataram suas estratégias de categorização. Uma matriz de dissimilaridade criada com base na classiicação feita pelos informantes foi submetida a análises de agrupamentos pelos métodos de Ward (1963) e de Tocher (apud RAO, eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.11-44 12 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 1952).1 Este revelou sete categorias criadas pelos informantes, quatro das quais apresentaram motivação semântica mais forte que as outras três. O número de grupos formados variou entre os participantes, assim como variou o número de frases nos grupos criados. Além da coerência nas ligações entre as categorias, os resultados revelaram um nível relevante de isomorismo entre a rede proposta originalmente e a avaliação dos informantes, corroborando a estrutura relacional dessa rede e uma parte signiicativa de sua granularidade. Em geral, este estudo também comprovou a maior saliência do espaço sobre os demais domínios, assim como a saliência do tempo entre domínios não espaciais. Palavras-chave: validade empírica; categorização; rede de polissemia; preposição; experimento psicolinguístico. Abstract: This paper evaluates the empirical validity of a polysemy network proposed for the preposition em in Brazilian Portuguese, by comparing the linguist’s and the non-specialist language user’s views of categorization. The network was based on the Schematic Network cognitive model of R. Langacker (2008, 1987), with scheme/instance and semantic extension relationships, and involved 48 sentences taken from the internet, which represented 24 usage patterns of em as deined by the linguist. Thirty-two undergraduate students with no training in linguistics, all native speakers of Brazilian Portuguese, took part as subjects in a psycholinguistic experiment in which they sorted these sentences according to similarities perceived in the meaning of em. After completing this task, the participants reported their categorization strategies in individual interviews. A dissimilarity matrix based on the participants’ classiication was subjected to cluster analyses by the Ward (1963) and Tocher (cited in RAO, 1952) methods. The latter revealed seven categories created by the participants, four of which exhibited stronger semantic motivation than the other three. Participants differed in the number of groups they formed, and each participant created groups of different sizes. As well as coherent connections among categories, the results showed an important level of isomorphism between the originally proposed network and the participants’ evaluation, corroborating the relational structure of the network and a signiicant part of its granularity. Overall, the study also conirmed the greater predominance of space over the other domains and of time among non-spatial domains. 1 Rao (1952) é considerado referência original do método de Tocher. Ele expõe a proposta de K. D. Tocher; porém, não informa a fonte consultada. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 13 Keywords: empirical validity; categorization; polysemy network; preposition; psycholinguistic experiment. Recebido em: 20 de maio de 2016. Aprovado em: 23 de setembro de 2016. 1 Introdução Além de explicações coerentes para os processos cognitivos relacionados ao uso da linguagem, a Linguística Cognitiva procura oferecer conirmações do modelo “baseado no uso”, o qual faz parte de sua essência. Como mostram Gries et al. (2005) e Gries et al. (2010), nos últimos anos, pesquisadores desse quadro teórico têm-se empenhado em validar empiricamente os muitos construtos e princípios que norteiam esse ramo da Linguística, por meio da metodologia de corpus ou da experimentação psicolinguística, ou pela conjugação de ambas. Em particular, os experimentos psicolinguísticos podem revelar semelhanças e diferenças entre usuários da língua, no acesso ao conteúdo conceitual. Essas diferenças podem ser descritas como variações entre os aspectos linguísticos que recebem maior atenção consciente e entre os níveis diferenciados de prática com a introspecção linguística (TALMY, 2005, p. 2, 11). O presente artigo descreve um experimento realizado com o objetivo de comparar a análise introspectiva do linguista sobre a polissemia da preposição em no uso corrente do português do Brasil e a análise intuitiva de falantes nativos leigos sobre os mesmos dados. O construto cuja validade se pretende testar é o modelo de Rede Esquemática de polissemia (LANGACKER, 2008, 1987), descrito a seguir, na seção 3. As preposições têm sido tema de inúmeras investigações em Semântica Cognitiva, apoiadas em um ou outro modelo de rede de polissemia, que, por sua vez, baseiam-se no conceito de categorias prototípicas (ROSCH, 1978). De acordo com essa visão, o polo semântico de uma palavra ou construção geralmente é formado por um conjunto de sentidos interligados, dos quais um ou mais se destacam por sua saliência cognitiva. Entre esses estudos, encontram-se Brugman (1981), Lakoff (1987), Deane (1992), Cuyckens (1993), Dewell (1994), Vandeloise (1991), Kreitzer (1997), Teixeira (2001), Tyler e Evans (2003) e Evans e Tyler (2004). 14 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Embora várias dessas pesquisas tenham se baseado no uso real da língua e empreguem modelos considerados coerentes, Sandra e Rice (1995) criticam a grande variedade desses modelos e, principalmente, questionam sua presumida natureza cognitiva. De modo particular, esses autores chamam a atenção para a pretensa compatibilidade entre a visão do pesquisador e a do falante leigo. Seu trabalho inspirou a presente investigação. 2 A polêmica sobre as representações mentais Sandra e Rice (1995, p.100-102) discutem dois componentes distintos da realidade psicológica dos modelos de rede. O primeiro diz respeito aos processos mentais envolvidos na categorização como mecanismo de mudança da língua, os quais podem ser verificados diacronicamente tanto por meio das relações entre usos mais antigos e novos usos de um mesmo item quanto pelos estudos sobre a aquisição da língua. O segundo componente cognitivo refere-se à realidade das representações mentais. Trata-se do objeto central do referido artigo, que questiona e avalia o grau de correspondência entre as redes de polissemia propostas por diferentes pesquisadores e o léxico mental do usuário da língua. Uma versão forte de isomorismo assume uma correspondência total entre os nódulos e ligações na rede e uma representação dessa estrutura semântica armazenada na memória do falante, hipótese considerada de difícil comprovação. Entretanto, Sandra e Rice avaliam que a abundância de conceitos da psicologia na literatura linguística parece corroborar a lógica das ligações propostas nos modelos de rede mais comuns. Tyler e Evans (2003), por exemplo, consideram que seu modelo de rede coincide com o léxico mental dos falantes, porque não inclui certas distinções contextuais, como ocorre na descrição de over (LAKOFF, 1987): […] nem todos os padrões de uso estão contidos na rede semântica. Enquanto parte da variação em usos de uma palavra é necessariamente instanciada na memória de longo prazo e, dessa forma, persiste na rede semântica, alguns usos são criados on-line, no desenrolar da interpretação normal dos enunciados.2 (TYLER; EVANS, 2003, p. 7, ênfase e tradução nossas). “[...] not all usages are contained within the semantic network. While some of the variation in uses of a word must be instantiated in long-term memory, and hence 2 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 15 Outros teóricos, entre os quais se encontra Langacker (1987), rejeitam o isomorismo por acreditarem que o nível de aprofundamento descritivo proposto para as redes pelos linguistas pode não ser percebido de igual maneira pelo falante leigo. Langacker pondera que algumas distinções e algumas semelhanças em níveis mais abstratos podem não ser percebidas pelo falante leigo, porque “alguns domínios são intrinsecamente salientes e abundantes no processamento cognitivo a exemplo daqueles pertencentes ao espaço e à visão.” (LANGACKER, 1987, p. 380, tradução nossa).3 Além disso, estruturas pertencentes a domínios muito abstratos são menos salientes que aquelas pertencentes a domínios ligados à percepção sensorial. Acredita-se que tal fato se relita na força e amplitude dos agrupamentos formados pelos informantes do presente estudo. Entre os pesquisadores que negam o isomorismo entre rede e léxico mental, Sandra e Rice (1995, p. 103) identiicam dois grupos, com opiniões distintas. Por um lado, alguns reconhecem o caráter psicológico da rede nos processos cognitivos envolvidos no surgimento de novos usos, mas rejeitam a ideia de que padrões de uso sejam representados no léxico mental dos falantes. Por outro lado, há os que airmam que algumas características das redes, tais como seu alto nível de reinamento ou “granularidade”, estão presentes na memória de longo prazo e que os falantes seriam capazes de perceber distinções entre categorias mais amplas e entre categorias mais inas. Entretanto, não necessariamente perceberiam semelhanças entre grandes categorias, como as que ocorrem entre domínios, porque a transparência dessas relações se perdeu no tempo. No presente trabalho, ao se propor a comparação entre o processo de categorização informado por conhecimentos teóricos e aquele realizado intuitivamente, essa última visão de isomorismo foi assumida como premissa. 3 Ponto de partida: a rede de polissemia A polissemia é entendida como um fenômeno no qual dois ou mais sentidos de uma palavra, relacionados entre si, são associados a persist in the semantic network, some uses are created on-line in the course of regular interpretation of utterances”. 3 “Some domains are intrinsically salient and pervasive in cognitive processing (e.g. those pertaining to space and vision)”. 16 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 uma única forma linguística (SILVA, 2006, p.10) em um processo de categorização. Por exemplo, o termo “papel” pode designar diferentes conceitos, como ‘matéria fabricada com ibras vegetais’ ‘documento’, ‘ação, função’. O primeiro desses sentidos é considerado a origem de extensões semânticas que geram os demais por meio de processos cognitivos, como a metonímia e a metáfora. Na Linguística Cognitiva, os diversos sentidos de uma palavra constituem uma categoria prototípica (ROSCH, 1978), com elementos cognitivamente mais salientes – o(s) protótipo(s) – e outros mais periféricos. As categorias prototípicas se organizam por relações de semelhanças de família, à maneira de diferentes tipos de “jogos” que formam uma única categoria com esse nome, sem apresentarem uma característica que seja comum a todos (WITTGENSTEIN, 1999 [1953]). Como Teixeira (2001, p. 61) salienta, o protótipo é a “estrutura conceptual modelar que, para os falantes, corresponde prioritariamente a uma determinada conceptualização”. Não se restringe, portanto, a entidades do mundo físico; explica também o significado de verbos, preposições, advérbios, enfim, “todas as organizações mentais linguisticamente traduzíveis”. A polissemia contrasta, primeiramente, com a monossemia, que ocorre quando uma palavra ou expressão linguística tem apenas um sentido, e as diferenças de signiicado, se houver, são elaboradas pela interpretação do contexto. Esses dois fenômenos distinguem-se da homonímia, caracterizada pela existência de dois signos linguísticos com a mesma forma fonológica e/ou gráica, com signiicados distintos não relacionados. A homonímia ocorre com “calo” (substantivo) e “calo” (verbo), os quais têm pronúncia e graia idênticas, mas signiicam, respectivamente, uma ‘região da camada exterior da pele que se encontra mais espessa e endurecida’ e ‘faço silêncio’. A homonímia pode ser resultado de uma coincidência histórica, a qual tenha levado duas palavras de etimologias distintas a assumirem a mesma forma com o passar do tempo. Sincronicamente, pode ser causada pelo esvaziamento da relação percebida entre os sentidos de um termo com uma origem comum (DUBOIS et al. 2009, p. 326-327). Langacker (2008, p. 37; 1987, p. 74) interpreta o conceito de categoria prototípica por meio do seu Modelo de Rede Esquemática de polissemia, o qual é empregado no presente estudo. A Rede Esquemática se organiza em termos de esquema/instância (padrão mais abstrato/conceito mais especíico) e em termos de sancionamento de novos usos, alguns Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 17 dos quais podem se tornar unidades linguísticas convencionalizadas. A esquematização implica a categorização dos usos linguísticos de forma hierárquica, visto que o usuário da língua percebe padrões de uso e forma esquemas, que ele organiza em níveis distintos de abstração. Esses mesmos padrões são usados para incluir (sancionar) novos usos em uma ou outra categoria da língua. A natureza prototípica do modelo de Langacker decorre dos tipos de sancionamento previstos: total ou parcial. Quando o sancionamento é total, os membros da categoria semântica incorporam perfeitamente a descrição do esquema ou noção de nível superior que instanciam (ou elaboram). A noção mais abstrata de localização é compartilhada por várias outras mais especíicas, tais como os esquemas imagéticos [em cima de], [dentro de] e [atrás de]. Entretanto, essa mesma noção de localização pode ser estendida para outro domínio conceitual, como o tempo. Nesse caso, ocorre extensão semântica com sancionamento parcial, para um domínio sem as mesmas características do espaço. Do mesmo modo, os conceitos de especiicação e de localização fazem parte da rede de polissemia da preposição em, e a relação entre eles é também de sancionamento parcial. Na perspectiva assumida no presente estudo, e em consonância com a Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF; JOHNSON, 1980) e a das Metáforas Primárias (GRADY, 1997), a relação de especiicação que em evoca em expressões como “especialista em direito trabalhista” é uma extensão metafórica de um uso espacial dessa preposição, oriunda de certa consequência funcional de alguns usos locativos de em. Com a repetição do uso, a preposição passou a ser empregada com o novo signiicado mesmo na ausência da coniguração espacial motivadora. Em termos de categorização prototípica, na cultura brasileira, o esquema de [laranja] é um exemplo mais saliente de [fruta] que o de [tomate]. O primeiro desses conceitos – e não o segundo – pode ser então o protótipo da categoria fruta. Igualmente, o sentido espacial de localização é considerado protótipo na rede de polissemia de em. Isso ocorre porque esse sentido espacial tem maior saliência cognitiva. Por sua vez, especiicação constitui um signiicado mais periférico na categoria por ser mais abstrato e, consequentemente, menos saliente, como explica Langacker na seção anterior. A polissemia da preposição em foi analisada originalmente com base nos seguintes critérios semânticos: domínio conceitual, esquema 18 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 imagético evocado nos usos espaciais ([contentor] e [trajeto]) e suas subespeciicações em noções topológicas (inclusão, contato, adjacência). Foram identiicados sentidos esquemáticos – especiicação e localização – correspondentes a conceitos com um nível de abstração superior, mais frequentes na rede, que perpassam o signiicado da preposição em diferentes usos e que são derivados do esquema imagético de [contentor]. Abaixo desses dois sentidos mais amplos, a maior parte das distinções é de natureza contextual. Nessa análise introspectiva, foram considerados locativos metafóricos os usos temporais de em e aqueles tendo eventos, atividades e estados emocionais como complemento da preposição, nos quais os elementos relacionados não são objetos concretos. Nesses casos, a noção de localização emerge porque os conceitos ligados pela preposição em, ainda que abstratos, teoricamente são conceitualizados como objetos metafóricos, o que permite que se estabeleça entre eles alguma relação locativa (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Por outro lado, usos de especiicação – portanto, não locativos – também são considerados metafóricos pelo linguista, mesmo que digam respeito à cor, ao material ou à forma de objetos concretos, tendo em vista que o conceito de especiicação, em si, não é espacial, mas relete uma possível restrição ao signiicado dos objetos especiicados. Como já mencionado, segundo a concepção teórica adotada, especiicação emerge de um efeito funcional (GRADY, 1997) do esquema de [contentor], como uma restrição imposta ao conteúdo. Na descrição proposta, o antecedente da preposição representa o trajetor, e o consequente, o marco, conforme Langacker (1987), representados no exemplo “placatrajetor no acostamentoMARCO”. Essa terminologia está associada à assimetria igura e fundo, da Teoria da Gestalt, e implica uma série de distinções na conceitualização dessas entidades. Talmy (2000a, p. 183-185) deine a igura (trajetor) como a entidade “potencialmente móvel ou em movimento”, cuja localização ou trajeto percorrido se discute. O fundo (marco) é a “moldura de referência ou entidade estática dentro de uma moldura de referência”. Em virtude dessa função, o marco aparece mais cedo na cena/na memória, é percebido mais rapidamente, e sua geometria tende a ser mais elaborada na conceitualização. O marco também tende a ser mais estático e mais conhecido do falante. Por essas razões, suas propriedades espaciais tendem a ser mais relevantes para o signiicado da preposição. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 19 4 Análise prévia das frases As frases empregadas no experimento psicolinguístico foram adaptadas de usos retirados da internet e representam 24 categorias semânticas pré-deinidas para o signiicado da preposição em. Das categorias e subcategorias usadas no experimento, dezessete são locativas, nove das quais pertencem ao domínio espacial, três, ao temporal, e cinco, a outros domínios concretos e abstratos. Entre os usos locativos, foram incluídos dois pares de frases em contexto dinâmico (com trajetória): um par representando o domínio espacial e outro, um domínio não espacial. A proporção entre usos estáticos e dinâmicos é explicada adiante e tem a ver com as categorias obtidas em pesquisa de corpus realizada anteriormente (OLIVEIRA, 2009). Com o sentido amplo de especiicação, são testadas sete subcategorias de domínios concretos e abstratos, consideradas como usos metafóricos emergindo do efeito pragmático de controle. A maior parte da variação em contextos espaciais pôde ser explicada pela interpretação (construal, em LANGACKER, 1987) e pela relação funcional Contentor/conteúdo (VANDELOISE, 1991), e os demais, por meio de processos metafóricos e metonímicos. A escolha das categorias de análise segue certos princípios teóricos resumidos na sequência. Oliveira (2011) apresenta uma explicação mais detalhada da rede de polissemia de em no português do Brasil, por meio do esquema de [contentor]. Sentido esquemático de localização: 1.1 Domínio espacial: 1.1.1 Localização estática no interior de um contentor (o marco da preposição é conceitualizado como um objeto tridimensional que envolve o trajetor): 1.1.1.1 Inclusão total: a) Carregava um pão fresquíssimo no saco de papel pardo. b) Bebê nasce num carro por falta de ambulância. 1.1.1.2 Inclusão parcial (marco envolve parte do trajetor): a) O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico. b) Ainda havia muitos icebergs no mar. 1.1.1.3 Inclusão de um trajetor vazio: a) O buraco na parede foi feito com dois pedaços de ferro. b) A miniatura possui um pequeno trincado no parabrisa. 20 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 1.1.1.4 Inclusão em um contentor não canônico: a) Entenda os protestos do setor rural na Argentina. b) Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países. 1.1.2 Inclusão em um contentor ao inal de um movimento (inclui a noção de trajetória): a) Joguei os livros na bolsa. b) Você deve colocar pouco ar no balão. 1.1.3 Contato em posição canônica no eixo vertical (trajetor ica acima do marco, gerando um efeito funcional de suporte): a) Havia faixas estendidas no gramado. b) O governo dá incentivo para quem plantar no telhado. 1.1.4 Contato com mudança da ordem dos objetos no eixo vertical ou da orientação do eixo: a) Quantos funcionários públicos são necessários para se trocar uma lâmpada no teto da repartição? b) O jornalista não pode considerar o Brasil e Minas Gerais como apenas um retrato na parede. 1.1.5 Localização pontual (trajetor se localiza em um ponto determinado do marco): a) O senhor não viu a placa no acostamento? b) Use um grampo na ponta da linha para facilitar a troca de isca. 1.1.6 Adjacência: a) Ela estava sentada numa mesa do Café Capricieux. b) A Pousada Villa das Pedras fica na estrada que liga Brasília a Pirenópolis. 1.2 Localização metafórica (trajetor e marco abstratos são conceitualizados como objetos): 1.2.1 Domínio temporal: 1.2.1.1 Coincidência com o intervalo de tempo: a) Trabalhei nesses 15 anos de pesquisa sem parar. b) Nesses tempos de globalização, Turquia e Brasil fazem parte da categoria de países emergentes. 1.2.1.2 Localização pontual no tempo: a) O Overmundo completou um ano no último dia 7. b) A chegada da família real no Brasil em 1808 aprimorou o serviço postal da então colônia. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 21 1.2.1.3 Localização no inal de um intervalo de tempo: a) Quero te ver em meia hora. b) Você será redirecionado para a página do Instituto em 5 segundos. 1.2.2 Estados emocionais conceitualizados como contentores: a) Na angústia, o homem experimenta a initude de sua existência humana. b) Eu me sentia bem naquela solidão. 1.2.3 Metáfora do conduto (as palavras são contentores com informação semântica): a) Um pouco sobre civilização nas palavras de Bertrand Russell. b) Se quiser continuar comigo é nesses termos. 1.2.4 Atividades são conceitualizadas como contentores: a) Não há muita perspectiva do Brasil [sic] participar nesses grandes projetos. b) Dejetos usados na fertilização degradam microbacias. 1.2.5 Eventos são pontos no tempo: a) Há esperança de contar com o meia Roger no clássico contra o Santos. b) Airton enfrenta Alemão no paredão do BBB. 1.2.6 Mudança de estado (a passagem de um estado para outro é um trajeto metafórico saindo de um contentor para outro): a) O uso de drogas pode constituir-se em um caso de dependência. b) Jonas transformou-se no primeiro desaparecido político brasileiro. 2 O sentido esquemático de especiicação (metafóricos não locativos): 2.1 Tipo: a) É cirurgião-dentista, especialista em Dentística Restauradora. b) Bem-vindo ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS. 2.2 Meio ou instrumento: a) Esta página é melhor visualizada em Internet Explorer 5 ou superior. b) Fala e escreve bem em inglês e francês. 2.3 Material: a) Abajur decorado em porcelana fria. b) Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço. 2.4 Estrutura interna: a) Vendo som completo ou em partes. b) Os anúncios das seções Imóveis são publicados em subseções. 2.5 Forma do objeto: a) Robô em forma de lagarta simula os movimentos do bicho. b) Pesquisador inventou uma bateria que carrega energia em estado sólido. 22 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 2.6 Forma da atividade: a) Rodou em círculos, tropeçou e proferiu blasfêmias. b) O ECA pressupõe um atendimento em rede. 2.7 Cor: a) A chita ou o algodãozinho estampados nessas cores desbotam facilmente. b) Os designers trabalharam para criar um vestido em vermelho vibrante. Os exemplos 1.1.1.4.a e 1.1.1.4.b apresentam marcos concretos bidimensionais (Argentina; esses países) que, portanto, não são contentores canônicos. Entretanto, o fato de apresentarem uma região interior e um limite que a separa do exterior possibilita sua conceitualização como marcos delimitados. Tyler e Evans (2003, p. 184) assim justiicam o uso de in tendo campos, desertos, países, cidades, entre outros como marcos. Sandra e Rice (1995, p. 110) classiicam esses locais como marcos de “dimensionalidade desconhecida”. São apresentados dois tipos de localização espacial, sendo uma estática e outra dinâmica. Essa classiicação se baseia em Talmy (2000a, p. 180-191). Segundo ele, na conceitualização de cenas espaciais, um objeto pode se encontrar em duas “disposições espaciais” básicas: ele pode icar estacionário ou se deslocar em relação ao fundo (movimento translativo). Isso coloca os conceitos de localização e movimento no centro da representação linguística do espaço. Como mencionado anteriormente, na descrição de uma cena espacial, os elementos de classes fechadas e a estrutura das orações distinguem aquilo que é igura daquilo que é fundo. Nessa mesma obra, Talmy (2000a, p. 182) associa a disposição da igura parada à sua localização e a da igura em movimento ao seu trajeto. Em ambos os casos, é possível que a língua também distinga sua orientação. Dessa forma, os usos espaciais representados anteriormente se enquadram em uma ou outra categoria. Segundo tipologia proposta por Talmy (2000b, p. 221) para a representação dos eventos de movimento, as línguas “aparentemente se dividem em [...] duas categorias, com base no padrão característico no qual a estrutura conceitual do macroevento é mapeada para a estrutura sintática”. (Tradução nossa)4 “The world’s languages generally seem to divide into a two-category typology on the basis of the characteristic pattern in which the conceptual structure of the macro-event is mapped onto syntactic structure.” 4 23 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Em linhas bastante gerais, os idiomas que codiicam, no verbo, o esquema central do movimento (portanto, o trajeto) são chamados “de moldura de verbo”; aqueles que codiicam o trajeto do movimento fora do verbo, através de um satélite, são chamados “de moldura de satélite”. De acordo com essa tipologia, a língua portuguesa compartilha com as demais neolatinas um padrão de lexicalização predominante do primeiro tipo (BATORÉO, 2000), como demonstram os exemplos abaixo, de Silva e Batoréo (2010, p. 242, Figura 13), que comparam os paradigmas das línguas neolatinas com o das germânicas: Português 1. O João atravessou o rio a nado. ?? * O João nadou através do rio. MOVIMENTO+PERCURSO MODO MOV+MODO PERCURSO Inglês 2. ??(*) John crossed the river swimming. (4) John swam across the river. MOVIMENTO+PERCURSO MODO MOV+MODO PERCURSO Dessa forma, nos exemplos 1.1.2.a e 1.1.2.b, os verbos (joguei; colocar) expressam o trajeto do movimento do trajetor em direção ao marco e a preposição em codiica a localização dessa igura ao inal desse movimento. O emprego de em é predominante estático no português do Brasil, mas compete com certos usos da preposição a em contextos dinâmicos. Em comparação, no português europeu, pode-se exprimir movimento apenas com a (“ida ao Brasil”), que também codiica localização estática – ‘junto a’ (“o io ao pescoço”). Segundo Batoréo (2000, p. 444), variedades africanas do português também utilizam em no lugar de a. As classes 1.1.3 e 1.1.4 representam variações que são signiicativas para outras preposições do português. Contato é uma noção frequentemente associada a sobre e a em cima de. Entretanto, apenas nos exemplos 1.1.3, com objetos dispostos na ordem canônica no eixo vertical (faixas estendidas no gramado; plantar no telhado), pode haver troca de em por sobre ou em cima de. A inclusão desses exemplos visava testar se os informantes levariam em conta essa variação na coniguração espacial. Vandeloise (1991) discute a relevânvia dessas mudanças na semântica das preposições francesas sur e sous. Por im, alguns autores, a exemplo de Tyler e Evans (2003, p. 178-179), sugerem que, na interpretação de determinadas cenas espaciais, a conceitualização do marco como um ponto unidimensional, servindo 24 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 como referência de localização, justiicaria certos usos locativos de preposições como at no inglês. Vandeloise (1991, p. 5-6 e capítulo 11) prefere uma deinição funcional de localização para um marco adimensional de à do francês, associada à noção de ritual. O objetivo neste ponto do presente estudo foi testar a possibilidade de a localização ser interpretada como pontual em função da coniguração do trajetor (placa) em 1.1.5.a, e em função das conigurações do trajetor (grampo) e do marco (ponta) em 1.1.5.b. 5 O experimento psicolinguístico O experimento psicolinguístico baseia-se naquele relatado por Sandra e Rice (1995) sobre as preposições in, on e at do inglês, e, do mesmo modo, envolve a leitura de enunciados originalmente produzidos na modalidade escrita. Porém, diferentemente do experimento de Sandra e Rice, o presente estudo inclui entrevistas individuais realizadas logo após a execução da tarefa de classiicação. 5.1 Objetivos, raciocínio e hipóteses Visou-se descobrir (i) o nível de granularidade que os informantes pudessem perceber entre sentidos na rede e (ii) a possibilidade de os informantes perceberem as relações entre categorias de domínios. Em tarefas de classiicação como a empregada no presente estudo, os participantes são submetidos a um determinado número de estímulos (neste caso, frases) para serem agrupados com base em algum princípio pré-determinado (neste caso, semelhança de signiicado). O raciocínio por trás do experimento é o de que as eventuais distinções e associações entre usos, feitas pelos informantes, reletem diferenças contextuais e algumas representações existentes em seu léxico mental, tais como a distinção entre o em locativo e o de especiicação e as associações entre grupos maiores. Entretanto, o experimento revela, principalmente, as estratégias de categorização empregadas pelos sujeitos. A hipótese nula admitia duas possibilidades: 1. Os informantes não perceberiam qualquer diferença de signiicado, no nível das representações mentais ou no das distinções contextuais, demonstrando uma atitude monossêmica em relação à preposição. Isso implicaria um único sentido mais vago, porém mais saliente, que pudesse ser especiicado por outros itens lexicais presentes na frase, ou mesmo, por elementos extralinguísticos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 25 2. A maioria dos agrupamentos seria aleatória, visto que os informantes apenas tentariam cumprir a tarefa de agrupar, sem se preocupar com o critério deinido. Essa hipótese é testada na entrevista. Como hipótese de pesquisa, e em consonância com a rede proposta, acreditava-se que os informantes formassem grupos de maneira coerente, demonstrando sua capacidade de discriminação, e que haveria grupos grandes e pequenos. Ainda de acordo com a premissa das redes de polissemia, esperava-se que as distinções mais inas fossem mais fortes, ou seja, que mais informantes izessem distinções inas, e menos informantes izessem distinções entre categorias maiores. Como consequência, os grandes grupos e os pequenos grupos se formariam em pontos diferentes da escala de dissimilaridade que constitui o gráico da Figura 1. Também se esperava que muitos informantes fossem capazes de perceber algum tipo de semelhança entre grupos menores (estrutura relacional da rede) e que, provavelmente, poucos percebessem relações entre grupos maiores. 5.2 Participantes, método e conteúdo das frases A tarefa off-line de classiicação foi proposta a 32 falantes nativos de português do Brasil, de ambos os sexos, que concordaram formalmente em participar da pesquisa, autorizando a divulgação dos resultados. Todos eles eram calouros universitários de cursos variados, sem formação prévia em Letras, com idade média de 22 anos na ocasião da coleta. As variáveis extralinguísticas não são consideradas. Em sessões individuais, cada informante recebeu 48 frases numeradas aleatoriamente (Figura 1), em tiras individuais de 4 cm X 19 cm, com a palavra em (no, na, naquela, etc.) sublinhadas. Todos foram informados de que essas frases deveriam ser agrupadas por critério de semelhança de sentido da palavra sublinhada e de que o número de grupos e o de palavras em cada grupo seriam de livre escolha do participante, podendo inclusive haver um só grupo com todas as frases ou grupos com apenas um elemento. A partir desse ponto, cada um deles dispôs de tempo livre para executar a tarefa, o que levou entre 30 e 45 minutos. Para testar o maior reinamento da rede, foram incluídos pares de sentenças que diferiam de outros por características tais como o tipo de inclusão (parcial ou total), a natureza do contato entre entidades, o tipo de localização no tempo e, ainda, pela distinção aspectual pontual/ durativo entre eventos e atividades. Acredita-se que essa última diferença seja bem menos saliente para o falante leigo que a distinção entre tempo e espaço, por exemplo. 26 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Por sugestão da Profa. Heliana R. Mello (comunicação pessoal), foram evitados certos enunciados nos quais a motivação semântica para o uso sincrônico de em fosse pouco transparente ou a preposição ocorresse com verbos cuja regência muitas vezes só se consolida na linguagem do falante por meio do ensino formal.5 5.3 Tratamento dos dados As respostas de todos os informantes foram tabuladas em matrizes simétricas individuais com valores binários (0 e 1), nas quais o valor “zero” signiica diferença, e o valor “um” representa semelhança entre frases. A partir da soma das trinta e duas matrizes, obteve-se uma matriz de coincidências (o número de vezes que determinado par foi formado pelos informantes). A divisão da primeira matriz pelo total de informantes produziu uma segunda matriz, de frequências relativas, cujo complemento aritmético possibilitou o cálculo da última matriz, de dissimilaridade, que foi então submetida a uma análise de agrupamentos, pelo método de Ward (1963). Esse método de classiicação foi sugerido pelo Prof. Stephan Gries, em comunicação pessoal. Análise de agrupamentos é um termo genérico para se referir a procedimentos estatísticos que possibilitam a formação de grupos ou categorias de objetos e, nesse caso, de frases. Tipicamente, cada objeto pertence a um único grupo e o conjunto de todos os agrupamentos contém todos os objetos (EVERITTet al., 2001), como ocorrido no presente estudo. O método proposto por Ward (1963, p. 236-238) forma grupos hierárquicos de conjuntos mutualmente exclusivos, segundo o princípio de se obter o máximo de similaridade possível entre os membros, no tocante às características medidas. Esse método de agrupamento parte de n conjuntos, cada um contendo um indivíduo apenas. Considera-se que o máximo de informação esteja disponível nesse estágio e, portanto, o desvio dentro de cada conjunto seja igual a zero. À medida que são formados pares de indivíduos, mantém-se o desvio padrão dentro de cada grupo menor que aquele entre os grupos. Assim, reduz-se o número de conjuntos (n-1) enquanto se mantém a perda de informação no valor mínimo possível. Seguindo esse princípio, esses novos subconjuntos podem receber um novo membro, ou outro pareamento (n-2) pode ser feito, preservando-se o mesmo princípio de semelhança ótima dentro de cada grupo. Esse procedimento Exemplos de usos que não foram aproveitados: Luciano não coniava na esposa. A declaração do motorista o implicou no caso. 5 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 27 pode ser repetido até que todos os membros, separados individualmente no início, iquem juntos em um só grupo (n, n-1,..., 1). Ward denomina o procedimento “agrupamento hierárquico”, em função dos inúmeros estágios, os quais podem ser representados por um diagrama bidimensional conhecido como dendrograma, ou diagrama de árvore, contendo todas as fusões ou divisões ocorridas em cada etapa. O método também possibilita que seja observada a perda de informação a cada nova fusão. No presente estudo, pode-se observar a distância entre agrupamentos, tomando-se por referência a escala na parte inferior da Figura 1. Na sequência, submeteu-se a mesma matriz de dissimilaridade ao método de otimização de Tocher (apud RAO, 1952), e o resultado é apresentado na Tabela 1 e na Figura 2. Conforme descrito por Rao (1952, p. 363), o método sugerido por K. D. Tocher inicia o processo de agrupamento com dois objetos muito próximos em termos de semelhança (que neste estudo, são pares de frases associadas por muitos participantes). A seguir, o método associa outro objeto com a menor distância média em relação aos dois primeiros objetos. Depois disso, um quarto objeto é comparado aos três anteriores de acordo com o mesmo princípio de menor distância, e assim por diante. Sempre que um novo objeto entra para o grupo, a distância média de dissimilaridade entre os membros desse grupo é recalculada. Um novo grupo é formado quando um objeto apresenta uma distância média maior que a média de distância entre os membros do grupo pré-existente. Esse método foi útil na obtenção de um ponto de corte para deinir o nível de granularidade das escolhas dos informantes. 6 Análise O dendrograma gerado pelo software Genes (CRUZ, 2006), apresentado na Figura 1, é o resultado da análise hierárquica sobre os dados coletados. Sua estrutura relete a força das relações entre as sentenças, como percebidas pelos informantes, e a escala de valores (0-100) abaixo da árvore demonstra a proporção dos participantes que agruparam dois usos pelo critério de semelhança. Cada nódulo representa um agrupamento e o comprimento dos ramos representa as distâncias nas quais os grupos são formados. A análise partiu de uma matriz de dissimilaridade e, portanto, os valores mínimos na escala de distâncias reletem o grau máximo de semelhança obtido: um grupo que se forma próximo de zero apresenta um nível muito alto de semelhança. Os rótulos dos objetos analisados (f1=frase (1); f2=frase (2), etc.) aparecem junto aos nódulos terminais. 28 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Fonte: A pesquisa. Loc. no interior de um contentor Marco é contentor não canônico Contato Espaço Localização simples Localização no final de um intervalo de tempo Tempo Localização no tempo Área do conhecimento ou de atuação Material Especificação Forma Eventos Estados emocionais Locativos não espaciais (exceto F1) EXTENSÕES SEMÂNTICAS 22. Joguei os livros na bolsa. 47. Você deve colocar pouco ar no balão. 11. Carregava um pão fresquíssimo no saco de papelpardo. 30. O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico. 4. A Pousada Villa das Pedras fica na estrada que liga Brasília a Pirenópolis. 6. Ainda havia muitos icebergs no mar. 17. Entenda os protestos do setor rural na Argentina. 21. Havia faixas estendidas no gramado. 31. ... o Brasil e Minas Gerais como apenas um retrato na parede. 16. O governo dá incentivo fiscal para quem plantar no telhado. 33. O senhor não viu a placa no acostamento? 3. A miniatura possui um pequeno trincado no para-brisa. 39. ... necessários para se trocar uma lâmpada no teto da repartição? 28. O buraco na parede foi feito com dois pedaços de ferro. 8. Bebê nasce num carro por falta de uma ambulância. 14. Ela estava sentada numa mesa do Café Capricieux. 35. Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países. 15. Quero te ver em meia hora. 48. Você será redirecionado para a página do Instituto em 5 segundos. 24. A chegada da família real no Brasil em 1808 aprimorou... 43. Trabalhei nesses 15 anos de pesquisa sem parar. 32. O Overmundo completou um ano no último dia 7. 27. Nesses tempos de globalização, Turquia e Brasil fazem... emergentes. 9. Bem-vindo ao Programa de Pós-graduação em Direito da UFRGS. 13. É cirurgião dentista, especialista emDentística Restauradora. 20. Fala e escreve bem em inglês e francês. 5. Abajur decorado em porcelana fria. 10. Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço. 37. Os designers trabalharam para criar um vestido em vermelho vibrante... 18 Esta página é melhor visualizada em Internet Explorer 5 ou superior. 29. O ECA pressupõe um atendimento em rede. 38. Pesquisadorinventou uma bateria que carrega energia em estado sólido. 41. Rodou em círculos, tropeçou e proferiu blasfêmias. 40. Robô em forma de lagarta simula os movimentos do bicho. 34. O uso de drogas pode constituir-se em um caso de dependência. 46. Vendo som completo ou em partes. 36. Os anúncios das seções Imóveis são publicados em subseções... 2. Há esperança de contar com o meia Roger no clássico contra o Santos. 7. Airton enfrenta Alemão no paredão do BBB. 12. Dejetos usados na fertilização degradam microbacias. 44. Um pouco sobre civilização nas palavras de Bertrand Russell. 45. Use um grampo na ponta da linha para facilitar a troca de isca. 19. Eu me sentia bem naquela solidão. 25. Na angústia, o homem experimenta a finitude de sua existência humana. 1. A chita ou o algodãozinho estampados nessas cores desbotam facilmente. 42. Se quiser continuar comigo é nesses termos. 23. Jonas transformou-se no primeiro desaparecido político brasileiro. 26. Não há muita perspectiva do Brasil participar nesses grandes projetos. USOS SANCIONADORES FIGURA 1 – Dendrograma gerado pelo Método Ward de agrupamento, com os níveis de semelhança obtidos para os usos de em Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 29 6.1 A coerência das categorizações Levando-se em conta as deinições de polissemia, monossemia e homonímia apresentadas na introdução deste artigo, uma visão geral do dendrograma mostra que a hipótese nula não se conirma em nenhum de seus aspectos. Primeiramente, a possibilidade de ocorrer monossemia no sentido forte foi descartada, uma vez que vários grupos coerentes se formaram em diferentes níveis, isto é, no geral, os informantes não consideraram que os usos da preposição tivessem um só signiicado. Essa visão seria conirmada caso a maioria dos nódulos tivesse se formado próximo ao ponto “zero” da escala (semelhança máxima), na Figura 1, e se a Figura 2 e a Tabela 1 apresentassem um só grupo. Nosso resultado é similar àquele observado por Sandra e Rice (1995, p. 108). Segundo esses autores, seus “sujeitos não produziram agrupamentos monolíticos”, e, em nosso experimento com em, apenas uma participante reuniu todas as frases em um único grande grupo. Essa decisão não foi aleatória, entretanto, e o sentido esquemático encontrado não foi localização, como pode ser visto na transcrição da entrevista. Sj15: Olha, eu agrupei todas as frases em um só grande grupo porque eu acho que toda vez que as... essas palavras sublinhadas aparecem, acontece uma especificação na frase. Como se os elementos da frase estivem dentro de uma categoria. [...] Por exemplo, na frase “Joguei os livros na bolsa”. “Na bolsa”. Eu poderia ter jogado os livros no chão ou jogado os livros na mesa. [...] “Robô em forma de lagarta simula os movimentos do bicho.” É uma especificação do robô: “em forma de lagarta”. O robô poderia ter outra forma. [...] “Se quiser continuar comigo é nesses termos”. Se continuar comigo nesses... poderia ser em outros termos. [...] “Cirurgião dentista especialista em dentística restauradora.” Ele poderia ser especialista em... em outra coisa. Aquilo que a informante denomina especiicação é um valor semântico único, mais vago, instanciado por usos locativos ou não, nos diferentes domínios representados no experimento. Portanto, todas as distinções (localização, especiicação – por forma, material, cor, etc.) abaixo desse nível são menos salientes para ela. A possibilidade de os grupos terem sido constituídos aleatoriamente também não se conirmou, visto que os agrupamentos foram coerentes, e todas as justiicativas apresentadas nas entrevistas foram igualmente coerentes, baseadas em critérios semânticos. Por exemplo, Sj6 e Sj19 30 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 usam palavras distintas (sublinhadas) para se referirem à ideia de localização, mas ambos perceberam esse sentido como uma categoria. Sj6: O grupo um, é, eu reuni por, por local, com um sentido de, de lugar que... têm essas frases. Você gostaria que eu lesse essas frases? Sj 19: Eu usei o critério de... é... qual... é... qual a outra palavra que o “em” poderia ser substituído. [...] no grupo quatro, por exemplo, o “em” pode ser substituído pela palavra “onde”. [...] E no dois são... sempre vem com características. É sempre características do... da... do que foi falado antes. Ouve só: Abajur decorado em porcelana fria. É uma característica da... da decoração. Abaixo, a informante Sj7 descreve usos não espaciais da preposição que ela agrupou em uma só categoria diferente de duas outras formadas antes. Ela emprega o critério de domínio evocado (por exemplo, o tempo), mas reserva a noção de localização para usos espaciais. Para os demais casos, ela procura uma categoria “guarda-chuva”, que possa incorporar usos em domínios menos salientes. Além disso, Sj7 apoia-se no marco para decidir sobre o tipo de relação criada a cada vez. Sj7: A meu ver, esse aqui já não é nem uma coisa [lugar] nem outra [tempo]. Não tem assim... uma característica que me chama mais a atenção. [...] Olha, eles dão mesmo coisas mais vagas. [...] Por exemplo... igual a esse. “Em rede”. Rede é uma coisa muito ampla. Muito... Não é uma coisa especíica. Então, eu iz esse grupo assim, de coisas não especíicas. [...] é uma coisa assim... um caso é uma coisa vaga, igual essa outra frase. A 34. Um caso é uma coisa vaga. Entendeu? Então, assim... coisas mais vagas. [...] “Em partes”, “nas palavras”, “termos”, “círculos”, são todas coisas mais vagas. Não é uma coisa precisa. Também se observa que os nódulos do dendrograma distribuemse ao longo da escala na Figura 1, ou seja, nenhum dos 32 informantes devolveu as 48 sentenças separadas. O mesmo foi relatado por Sandra e Rice (1995, p. 108) para as três preposições estudadas.6 Entretanto, apesar 6 Em seu artigo (p.108), Sandra e Rice discutem os resultados obtidos para a preposição in. Entretanto, segundo eles, “exactly the same conclusions apply to the other two prepositions [at, on] as well”. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 31 das indicações do gráico, não se pode eliminar com certeza a ideia de homonímia máxima, tampouco airmar que o resultado obtido seja uma resposta a um componente da tarefa de classiicação. Foi solicitado aos participantes que agrupassem as frases “de acordo com SEMELHANÇA DE SENTIDO”, embora as instruções também incluíssem a informação “sem limite máximo ou mínimo para o número de grupos ou para o número de frases em cada grupo”. No dendrograma da Figura 1, a coerência se manifesta na organização dos grupos. Logo de início, observa-se uma distinção principal entre usos espaciais e não espaciais. Além disso, a grande maioria dos usos espaciais está reunida no alto dessa igura, indo de f22 a f35. Esse grupo é seguido por outro menor, de f15 a f27, que incorpora todos os usos temporais. Mais abaixo, vê-se um grande grupo de usos não locativos de especiicação, de f9 a f36, com uma única exceção no uso de estado inal em f34. Essa frase talvez não seja exceção de fato, tendo em vista que foi associada a grupos de usos com o sentido de forma, e adquirir uma nova forma é um signiicado possível para “constituir-se em...”. Por im, surge outro grupo de locativos abstratos, que vai de f2 a f26, com apenas uma exceção: um uso da categoria cor em f1. As entrevistas e o gráico na Figura 1 conirmam, assim, a hipótese de haver coerência na categorização dos signiicados da preposição pelos informantes. Essa coerência entre os grupos também é demonstrada pelo método de otimização de Tocher (Tabela 1 e Figura 2). A análise multidimensional revelou sete diferentes grupos, quase todos com base em alguma dimensão semântica. O grupo <1> representa majoritariamente localização espacial; o grupo <2> contém majoritariamente usos de especiicação; o grupo <3> somente apresenta usos temporais; o grupo <4> representa majoritariamente estados emocionais. O grupo <5> contém dois usos locativos abstratos – estado inal e um denominado previamente metáfora do conduto. Como se observa na Figura 1, os grupos <4> e <5> se distinguem pela grande saliência da relação entre f19 e f25 em comparação com f42, que completa o grupo <4> na Tabela1. Essa saliência inexiste no grupo <5>. É possível que a formação dos três últimos grupos (<5>, com dois objetos, e <6> e <7>, com um único objeto cada) tenha sido causada pela maior esquematicidade da relação expressa pela preposição, incluindo um uso não locativo de cor. Dessa forma, não ica muito clara a motivação semântica por trás dos três últimos grupos formados pelo método de Tocher. Contudo, a parte inferior do dendrograma na Figura 1 fornece certa lógica para esses agrupamentos, que são majoritariamente locativos não espaciais e menos transparentes que outros locativos. 32 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 TABELA 1 – Formação dos agrupamentos pelo método de Tocher GRUPO ACESSOS <1> 22 47 11 6 33 21 16 31 3 4 28 17 14 39 8 30 7 45 2 12 <2> 5 10 37 40 38 41 29 46 36 13 9 20 34 18 <3> 15 48 24 32 43 27 <4> 19 25 42 <5> 23 44 <6> 26 <7> 1 Fonte: A pesquisa. 6.2 Níveis de granularidade Após se confirmar a capacidade de discriminação e de esquematização dos informantes, discute-se agora o nível de granularidade nas suas classiicações e a força de coesão entre os grupos. Como se pôde observar na Figura 1, os participantes também diferenciaram inicialmente duas grandes categorias: uma de usos espaciais (que denominamos “sancionadores”) e outra de não espaciais (que denominamos “extensões de sentido”). Além disso, dezesseis deles mencionaram o termo “especiicação” em suas entrevistas. Entre os grandes domínios mencionados na seção anterior, como esperado, o espaço foi o domínio mais saliente, seguido pelo tempo, formando grupos muito nítidos nos dois gráicos. Nas entrevistas, vinte dos trinta e dois sujeitos izeram menção clara ao domínio espacial, e dezenove, ao temporal, em contraste com onze que mencionaram os estados emocionais, e seis, a categoria cor. Na entrevista, alguns chegaram a assumir a diferença de nível de saliência, como no excerto abaixo: Sj 29: O grupo quatro eu achei mais fácil que é mais... no local, em algum lugar. Quanto às distinções mais inas, alguns grupos menores foram conirmados por um número maior de informantes e aparecem perto do zero da escala de dissimilaridade no dendrograma. Esses grupos pequenos, porém altamente coesos, representam subcategorias do domínio espacial, do domínio temporal e da categoria especiicação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 33 O primeiro desses subgrupos pode ser identiicado bem no alto do dendrograma, separado dos demais usos espaciais. Ele contém exemplos de inclusão ou contenção, começando com f22 e f47, os quais representam ações de movimento para dentro de um contentor (31/32 associações), recebendo depois o uso estático f11 (28/32 associações) e, por im, f30 (22/32 associações). Os marcos tridimensionais bem delimitados – bolsa, balão e saco de papel – e os trajetores tangíveis resultaram na grande saliência da noção de contenção. Essa saliência é menor no exemplo f30, porque o marco – uísque – não apresenta limites claros. f22. Joguei os livros na bolsa. f47. Você deve colocar pouco ar no balão. f11. Carregava um pão fresquíssimo no saco de papelpardo. f30. O gelo no uísque destruiu seu teor alcoólico. Embora a geometria do trajetor tenda a ser caracterizada de forma mais simpliicada que a do marco, distinções mais inas no domínio espacial foram relacionadas por Sandra e Rice (1995, p. 109-110) não apenas ao número de dimensões do marco, mas também à natureza tangível do trajetor. Esse é um resultado que corrobora a premissa das redes de polissemia sobre a inluência das propriedades dessas entidades na formação dos grupos. Em seu experimento com a preposição in, as frases 3-5 abaixo formaram um grupo separado de (6), em que um trajetor “intangível” ou vazio (hole) ocorre com um marco bidimensional (sweater), e (7), em que as dimensões do marco (Japan) são “desconhecidas”. 3. Are you putting onions in the stew? [Você vai colocar/está colocando cebolas no ensopado?] 4. Don’t put that in your mouth. [Não ponha isso na sua boca.] 5. My pen is in the drawer. [Minha caneta está na minha gaveta.] 6. There’s a hole in your sweater. [Tem um buraco no seu blusão.] 7. In Japan, they eat raw ish.[No Japão, eles comem peixe cru.] Em nosso experimento com em, trajetores vazios, ou intangíveis, não foram encontrados entre as instâncias prototípicas do esquema de [contentor]. F3 – trincado no para-brisa– e f28 – buraco na parede – foram tratados genericamente como outros usos apenas locativos, em grupos com menor coesão, como se vê no dendrograma. A separação entre f28 e f31 (retrato na parede) resultou da concretude do trajetor retrato, já que ambas as frases apresentam o mesmo marco. 34 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 Devido à maior esquematicidade de em comparado às preposições inglesas in e on, o trajetor concreto de f31 e os marcos bidimensionais parede e gramado contribuíram para a formação de um segundo subgrupo com f21 com base nas noções de contato e suporte, com 27/32 associações. Esse subgrupo demonstra que os participantes não levaram em conta as orientações distintas do eixo sobre o qual se alinham os objetos, como proposto na análise prévia. f21. Havia faixas estendidas no gramado. f31. [...] o Brasil e Minas Gerais como apenas um retrato na parede. Os exemplos f16 – plantar no telhado – e f33 – a placa no acostamento – também foram considerados altamente semelhantes (29/32 associações) e se juntaram ao par f21-f31 no estágio seguinte. Embora fatores como a centralidade da localização dos objetos no signiicado de f16 e de f33 possam ter reforçado a ligação entre essas frases, a proximidade entre os quatro usos na perspectiva dos falantes demonstra coerência que pode ser atribuída à presença de um marco bidimensional. Os demais usos espaciais se agruparam próximos do início da escala, em torno do ponto 10. O alto grau de coesão entre os subgrupos espaciais e de semelhança entre seus elementos conirma, mais uma vez, a saliência desse domínio básico em nossa experiência. Fora do domínio espacial, também foram observados pares com grande força coesiva. Ainda que não tenha sido mencionada nas entrevistas, a categoria localização no inal de um período de tempo (f15 – Quero te ver em meia hora – e f48 – Você será redirecionado para a página do Instituto em 5 segundos) formou-se em um nódulo muito próximo de zero na escala de distâncias, com 28/32 associações. Já era prevista essa grande saliência do tempo, e esse par, especiicamente, é formado por usos que apresentam a maior semelhança entre si no tocante ao conteúdo temporal, já que ambas as frases evocam um tempo futuro quase imediato. Fora dos domínios do espaço e do tempo, é relativamente saliente (26/32 associações) a semelhança percebida entre f19 – naquela solidão – e f25 – na angústia –, cujos marcos são estados emocionais. A associação entre esses usos era esperada porque a emoção constitui um domínio abstrato que se destaca no cotidiano das pessoas. No grande grupo de especiicação, duas distinções mais inas podem ser observadas. A primeira delas é um subgrupo de especiicação Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 35 no sentido restrito (f9 – pós-graduação em direito – e f13 – especialista em dentística restauradora –, com 27/32 associações). Essa categoria, chamada “tipo” na análise prévia, pode ser justiicada pela estabilidade da construção em + “área de conhecimento” modiicando substantivos (e verbos) de um único campo lexical. A segunda distinção inclui as especiicações em f5 – abajur decorado em porcelana fria – e f10 – estrutura em tubo de aço –, consideradas semelhantes pela maioria dos participantes (28/32 associações). Como pode ser observado no dendrograma, esse último é o subgrupo com a maior coesão dentro de especiicação. Sem dúvida, mesmo não se tratando de uma relação espacial, a preposição em introduz uma propriedade muito concreta e saliente desses objetos, que é o material do qual eles são fabricados. Por im, os informantes também estabeleceram relações menos fortes de semelhança dentro de grupos maiores. Um exemplo disso é o par com nível intermediário de coesão (20/32 associações), formado por f2 – o meia Roger no clássico contra o Santos – e f7 – Alemão no paredão do BBB –, cujos marcos são eventos. Outro caso menos saliente (14/32) é a associação entre os usos f38 a f36, relacionados à forma de entidades e de atividades. Com força de coesão menor que a existente entre usos nos domínios espacial e temporal, ainda assim, essas associações se destacam entre categorias não locativas. Também se observou que certos grupos não locativos com muita força interna icaram nitidamente separados de outros subgrupos do mesmo grupo maior. Certamente, esses são domínios com grande saliência cognitiva, mesmo não representando experiências primárias. Corrobora-se, assim, a hipótese de que um maior número de informantes perceberia distinções mais inas entre os grandes grupos. Da mesma maneira que nos resultados obtidos por Sandra e Rice (1995, p. 108), conirma-se, no presente estudo, a premissa de que algumas categorias de usos são mais facilmente distinguíveis que outras. 6.3 A estrutura relacional A capacidade de os participantes perceberem a estrutura relacional refere-se à coerência da ligação entre usos de categorias distintas. Menos intensamente que a relação entre domínios, essa capacidade pôde ser comprovada pela formação de um grande grupo de locativos e não locativos, separado dos usos espaciais, por volta do ponto 70 na escala do dendrograma (Figura 1). Outro exemplo foi a associação de locativos espaciais e não espaciais no grupo <1> do gráico do método de Tocher (Figura 2). 36 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 FIGURA 2 – Representação 3D dos grupos de frases formados pelo método de otimização de Tocher Gr 2 Gr 7 Gr 4 Gr 5 Gr 6 Gr 3 Gr 1 Fonte: Autores Fonte: A pesquisa. Gr. 1: localização espacial Gr. 2: majoritariamente especificação Gr. 3: tempo Gr. 4: majoritariamente estados emocionais Gr. 5: estados emocionais e metáfora do conduto Gr. 6: atividade Gr. 7: cor Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 37 A elipse pontilhada dentro do grupo <1> contém os usos não espaciais f2 – no clássico contra o Santos –, f7 – no paredão do BBB – e f12 – na fertilização –, além do uso espacial f45 – na ponta da linha. Levando-se em conta que se trata da união de quatro usos, 9/32 é um número razoável de associações do sentido esquemático de localização às categorias de atividade e de eventos e, ainda, a localização pontual no espaço. Essa associação também pôde ser observada no discurso de alguns informantes: Sj 19: “Vendo som completo ou em partes”. “Dejetos usados na fertilização...”, “um pouco sobre civilização nas palavras...”. Eu caracterizaria como “referencial” do físico. Um local abstrato, não físico. Sj30: Aqui é lugar. Igual “na parede”, “no uísque”, “na mesa”, em vários lugares. E aqui, “visualizada em Internet”. É o lugar que ela é visualizada. Eu achei que estava referindo a algum lugar. “nesses países”, “no paredão do big brother”, “no para-brisa”. Em todas eu achava que estava relacionada a um lugar. Outra evidência de que os falantes perceberam relações entre domínios diferentes é o fato de eles terem produzido um grupo com vários tipos de especiicação (16/32). Eles associaram instrumento (f20 – em francês) a dois usos bastante claros de especiicação propriamente dita (f9 – pós-graduação em direito – e f13 – especialista em dentística restauradora – com 27/32 associações), e, ainda, f5 e f10 (material, 28/32) a f37 (cor), a associação entre esses três últimos tendo icado em 19/32. Por outro lado, não se pode airmar com certeza que os falantes tenham percebido alguma relação entre as categorias maiores ou se houve inluência do método estatístico. Tome-se como exemplo a separação total entre os usos do espaço e os demais usos em geral (extensões de sentido na Figura 1). Os métodos hierárquicos começam sempre com todos os elementos em um só grupo. A partir daí, inicia-se uma série de subdivisões, ou então, ao contrário, todos os objetos são considerados diferentes no início do cálculo e vão sendo agrupados até formarem um só grupo contendo todos eles. Essa poderia ser a razão para a ausência de um nódulo uniicador entre grupos maiores dentro dos limites da escala no dendrograma. 38 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 6.4 Comparação com o modelo de rede proposto Além dos grandes grupos e dos pequenos subgrupos altamente coesos (seção 6.2) discutidos até este ponto do texto, que também foram previstos pelo linguista, as escolhas dos informantes revelaram diferentes níveis de granularidade, coerência na formação de grupos e identiicação de uma estrutura relacional. Assim, em grande parte, as respostas no experimento coincidiram com a primeira proposta de Rede Esquemática, ainda que certas distinções mais inas não tenham sido reproduzidas pelos participantes, como já previsto pelo próprio Langacker (2008, p. 37). Essas distinções/não distinções mais inas são discutidas a seguir. De fato, os informantes não marcaram claramente a diferença entre inclusão total e parcial. Pouco mais da metade deles (18/32) associaram f30 – gelo no uísque – a f6 – icebergs no mar –, consideradas usos de inclusão parcial na análise prévia. A primeira foi associada a usos típicos de inclusão em um marco deinido, e a segunda icou em um grupo com marcos que não são contentores prototípicos. O mesmo pode ser dito sobre f4 – a pousada ica na estrada – e f17 – os protestos na Argentina –, que apresentam marcos bidimensionais não canônicos (ver seção 4 acima). Além disso, contraria a análise prévia a associação discutida na seção 6.2, dos dois usos com trajetores vazios (f3 – o trincado no parabrisa – e f28 – o buraco na parede) a outros tipos de localização espacial mais vaga. Como consequência, na rede de polissemia, é possível que os usos 1.1.1.3 e 1.1.1.4 devam ser excluídos da classe de localização estática em um contentor. As associações explicadas na seção 6.2, sobre tipos diferentes de inclusão, de contato e de localização pontual, reletem a tendência dos informantes de classiicarem esses usos como localização não especíica, indo de encontro ao nível de reinamento da análise prévia. Essa conclusão também se apoia em trechos das entrevistas como este: P: No mar, na estrada, numa mesa, no paredão. Você entende todas essas aí como dando uma ideia de localização. Sj21: É isso aí. Com certeza. Então, “O senhor não viu a placa no acostamento?” Local, lugar. “Airton enfrenta Alemão no paredão”. “Ela estava sentada numa mesa de café”. “A pousada ica numa estrada que liga Brasília a Pirenópolis”. “Os alfabetos orientais atrapalham a ciência nesses países”. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 39 Para efeito de descrição linguística, a classiicação feita pelos participantes sugere que os pares 1.1.3, 1.1.4 e 1.1.5, propostos na análise prévia, possam ser fundidos em uma categoria de usos espaciais de localização com contato. De fato, nem a língua nem os sujeitos envolvidos fazem distinção no emprego de em quanto ao eixo de orientação ou quanto ao tipo de localização (pontual e não pontual). Não houve associação entre mudanças de estado e alguma ideia de movimento abstrato. F23 – Jonas transformou-se no primeiro desaparecido político – e f34 – o uso de drogas pode constituir-se em um caso de dependência – tiveram apenas 9/32 associações e aparecem em grupos distintos de acordo com a análise pelo método de Tocher. Por outro lado, no que diz respeito à distinção aspectual entre eventos e atividades, 20/32 associações foram feitas entre f2 – no clássico – e f7 – no paredão do BBB –, que são eventos bem deinidos. Ao contrário, as atividades, que são durativas e sem limites claros, apareceram dispersas na parte inferior do dendrograma (f12 – na fertilização – e f26 – nesses grandes projetos), formando grupos menos coesos com exemplos de metáfora do conduto (f44) e estado inal (f26). Dessa forma, também fora do domínio espacial, o mais delimitado demonstra ser cognitivamente mais saliente. Como mostra a Figura 2, o domínio temporal formou um grupo fortemente coeso e também apresentou subdivisões, tais como o subgrupo de usos temporais previsto na primeira rede, descrevendo eventos em um futuro próximo, diferenciados de outros usos temporais. Porém, não houve discriminação entre pontualidade e duração, como o comprova o considerável grau de semelhança obtido (24/32), neste domínio, entre f24 – a chegada da família real em 1808 – e f43 – trabalhei nesses quinze anos. A pontualidade no tempo foi tratada por alguns sujeitos como uma instância de especiicação geral, como se lê a seguir. Sj21: ... pra mim, essas palavras dão o sentido de estar especificando as coisas. Por exemplo, “Bem vindo ao programa de pós-graduação em direito da UFRGS.” Então, aqui está especificando. Pós-graduação em. Está especiicando. “Cirurgião dentista especialista em dentística restauradora”. “Trabalhei nesses quinze anos de pesquisa”. Está especiicando. Não foi neste nem naquele. [...] O mesmo caso aqui. “O overmundo completou um ano no último dia sete”, “Cadeira de couro com estrutura em tubo de aço”. Está especiicando, qual tubo? De aço. Fica um pouco confuso. 40 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 7 Comentários inais O presente artigo apresentou os resultados de um experimento proposto como segunda abordagem empírica a uma rede de polissemia. Nele se demonstrou a interpretação intuitiva de 32 falantes leigos nativos do português do Brasil, em relação aos usos da preposição em. Embora a negação da hipótese de homonímia possa ter sido enfraquecida pela inclusão da expressão “semelhança de sentidos” na instrução dada aos participantes, foi possível descartar a hipótese de monossemia, tendo sido obtido, neste caso, um resultado muito parecido com aquele relatado por Sandra e Rice (1995). No todo, observou-se que os participantes classiicaram as frases de forma coerente. Levando-se em conta o objetivo (i) – identiicar o nível de granularidade que os falantes são capazes de perceber entre sentidos na rede –, observou-se que foi mais forte a distinção entre usos espaciais (sancionadores) e não espaciais (extensões). Com relação aos primeiros, icou comprovada a importância das propriedades físicas dos objetos relacionados, em particular os marcos, como critérios de classiicação dos usos, mas também dos trajetores em alguns casos, como observaram Sandra e Rice em seu experimento. Entidades concretas mais delimitadas reletem mais facilmente efeitos pragmáticos como contenção e suporte, reforçando as hipóteses de classiicação dos participantes. Essa informação é ainda mais relevante no caso da preposição em, cuja semântica é mais vaga que a das preposições da língua inglesa analisadas por esses pesquisadores. Com relação às extensões semânticas, os participantes diferenciaram, com maior nitidez, usos temporais, usos envolvendo estados emocionais e usos não locativos relacionados à percepção sensorial. Também icou demonstrada a capacidade dos participantes para fazer distinções inas, dentro e fora do domínio espacial, embora em menor grau que na rede proposta originalmente. Entre as distinções feitas pelo linguista, que não se concretizaram na tarefa, estão inclusão total versus parcial no domínio do espaço, e aspecto pontual versus durativo, no tempo. Com relação ao objetivo (ii) – veriicar se as relações entre categorias de domínios seriam realmente percebidas –, demonstrouse também que, embora uma noção comum de localização tenha sido percebida pelos participantes, essa noção foi suplantada pela distinção entre domínios, especialmente o espaço, o tempo e os usos de especiicação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 11-44, 2018 41 Essas observações confirmam um isomorfismo parcial, em particular quanto ao padrão de estrutura e das relações típicas do modelo de Rede Esquemática de polissemia. Finalmente, acerca dos procedimentos de análise, o ponto de corte na escala de distâncias do dendrograma é subjetivo, conforme relatam Everitt et al. (2001). Para obtê-lo, foi de crucial importância o emprego combinado do método hierárquico de Ward (1963) e da análise multidimensional de Tocher (apud RAO, 1952), o que possibilitou a divisão de grupos nos moldes descritos na seção 5.3. Agradecimentos À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por bolsas de doutoramento e de estágio sanduíche para a primeira autora. Aos informantes da pesquisa, alunos da Universidade Federal de Viçosa (Rio Paranaíba, MG) e da Funedi-UEMG (Divinópolis, MG), e ao Prof. Maurício J. Faria (Funedi-UEMG), pois, sem eles, nossa pesquisa não poderia ser realizada. Aos professores Heliana R. Mello (UFMG) e Stephan Gries (UCSB) por suas sugestões mencionadas ao longo deste texto. Vale ressaltar que quaisquer inadequações percebidas pelo leitor nesses pontos são de inteira responsabilidade dos autores deste artigo. Aos revisores anônimos, cujas sugestões contribuíram imensamente para o aprimoramento de nosso texto. Referências BATORÉO, H. J. Expressão do Espaço no português europeu: contributo psicolinguístico para o estudo da linguagem e cognição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2000. BRUGMAN, C. The story of “over”: polysemy, semantics and the structure of the lexicon.1981. 116 f. Dissertação (Mestrado em Linguística). University of California at Berkeley, 1981. CRUZ, C. D. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 Exploring content selection strategies for Multilingual Multi-Document Summarization based on the Universal Network Language (UNL) Investigando estratégias de seleção de conteúdo para a Sumarização Multi-Documento Multilíngue com base na Universal Network Language (UNL) Matheus Rigobelo Chaud Universidade de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil matheus_chaud@yahoo.com.br Ariani Di Felippo Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil arianidf@gmail.com Abstract: Multilingual Multi-Document Summarization aims at ranking the sentences of a cluster with (at least) 2 news texts (1 in the user’s language and 1 in a foreign language), and select the top-ranked sentences for a summary in the user’s language. We explored three concept-based statistics and one supericial strategy for sentence ranking. We used a bilingual corpus (Brazilian Portuguese-English) encoded in UNL (Universal Network Language) with source and summary sentences aligned based on content overlap. Our experiment shows that “concept frequency normalized by the number of concepts in the sentence” is the measure that best ranks the sentences selected by humans. However, it does not outperform the supericial strategy based on the position of the sentences in the texts. This indicates that the most frequent concepts are not always contained in irst sentences, usually selected by humans to build the summaries because they convey the main information of the collection. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.45-71 46 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 Keywords: content selection; concept; statistical measure; multilingual corpus; multi-document summarization. Resumo: O objetivo da Sumarização Automática Multilíngue Multidocumento é ranquear as sentenças de uma coleção com ao menos duas notícias (1 na língua do usuário e 1 em língua estrangeira) e selecionar as mais bem pontuadas para compor um sumário na língua do usuário. Exploramos três estatísticas conceituais e uma estratégia supericial para criar um ranque das sentenças quanto à relevância. Para tanto, utilizamos um corpus bilíngue (português-inglês) anotado via UNL (Universal Network Language) e com textos-fonte e sumários alinhados em nível sentencial. A avaliação indica que a estatística denominada frequência de conceitos normalizada pelo número de conceitos da sentença é a que melhor reproduz o ranqueamento humano. Essa medida, entretanto, não supera a estratégia supericial baseada na posição das sentenças. Isso indica que os conceitos mais frequentes do cluster nem sempre estão contidos nas primeiras sentenças dos textosfonte, usualmente selecionadas pelos humanos para compor os sumários porque veiculam a informação principal da coleção. Palavras-chave: seleção de conteúdo; conceito; medida estatística; corpus multilíngue; sumarização multidocumento. Received on: July 7th, 2016. Approved on: January 13th, 2017. 1 Introduction Even though a wide number of news agencies make information available on the web, it is very dificult to know what is happening in the World unless an event is tragic enough to catch the attention of the international media. According to Orasăn and Chiorean (2008), there are two main reasons for that. First, quite often the news is not in a language familiar to the reader. And second, even in the cases where the language does not constitute an impediment, the amount of information available is quite often so large that it is impossible to read everything published. Thus, Natural Language Processing (NLP) applications that address the goal of treating multiple languages in different multidocument summarization tasks are relevant tools to deal with the huge Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 47 and overloaded amount of information in multiple languages. One of these applications is the cross-language summarization, which is the production of a summary in a language Lx when the cluster (i.e., cluster of news texts on the same topic) is in a language Ly different from Lx (SARKAR, 2014). Another application is called Multilingual Multi-Document Summarization (MMDS). In a broad sense, the deinition of MMDS is: “If L is a set of natural languages, MMDS can be deined as a process that can accept a single document in one language l∈L or can accept a cluster of related documents in one language or in different languages selected from L to produce a summary in the same language as the input or in a language chosen from L by the user (SARKAR, 2014). In particular, when the input is a cluster of related documents coming from different languages sources, MMDS is a highly challenging NLP task, since it requires merging content in different languages as well as dealing with the classical multi-document issues, such as capturing the most relevant content, and maintaining summary coherence/cohesion by treating redundancy. MMDS approaches can be broadly categorized as language independent multilingual summarizationand language dependent multilingual summarization. The approaches of the irst category do not use much semantic or language speciic information. They can make only some minimal assumptions about the language (e.g., that the text can be split into sentences and sentences further into words) and perform equally well on different languages without linguistic knowledge. These approaches usually have low cost and are more robust, but they produce poor results. The approaches of the second category utilize language speciic knowledge such as morphological, syntactic and/ or semantic information, retrieved from lexical resources (e.g., wordnet lexical databases and thesauri) and parallel corpora. Language speciic knowledge is necessary for machine translation of documents from one language to another. Speciically, the few previous language dependent MMDSmethods usually consist of two steps: (i) translation of the foreign texts and (ii) summarization (ROARK; FISHER, 2005; EVANS et al., 2005; TOSTA et al., 2013). The irst step is performed by some machine-translation (MT) engine, producing a monolingual multi-document cluster. Then, an extractive multi-document summarization method is used to build the summaries, which sometimes treats redundancy. As for the summarization 48 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 step, the extractive methods are predominantly supericial, based on features such as word frequency and sentence position, which are robust and have low cost, but produce poor results (KUMAR, SALIM, 2012). Tosta (2014), whose results were recently published by Di-Felippo et al. (2016), has proposed the irst MMDS methods exclusively based on lexical-conceptual knowledge. The methods use the frequency of the nominal concepts in the cluster to score and rank sentences in their original languages. If sentences in the foreign language are selected for the summary, they are automatically translated to the user’s language. The experiments were performed using a corpus of 20 clusters, and show that conceptual knowledge improves the linguistic quality of extracts. Given the promising results of Tosta (2014) and Di-Felippo et al. (2016), we have explored the potential of 3 concept-based measures to capture human content selection strategies in MMDS: (i) CF (concept frequency), (ii) CF*IDF (concept frequency corrected by the inverted document frequency), and (iii) CF/No. of Cs in S (concept frequency normalized by the number of concepts in the sentence). The experiment was performed using 3 clusters from the CM2News corpus (TOSTA, 2014), whose source sentences were manually annotated with UNL (Universal Network Language) (UCHIDA et al., 1999). To analyze the measures, we used manual alignment of the texts and human summaries at sentence level. Speciically, we calculated how many aligned sourcesentences were covered by the top sentences of the ranks built from each measure and by a sentence position baseline. The experiment shows that measure (iii) produces the rank with the highest number of aligned sentences, having thus the best performance in capturing the human preferences. However, it did not outperform the sentence position baseline. This indicates that the sentences that convey the most important information in news texts are, indeed, in the initial positions, and also that they do not necessarily contain the most frequent concepts. This evidence, however, needs to be well explored due to our small corpus of work. In Section 2, we detail researches that address the goal of treating multiple languages in different multi-document summarization tasks, especially those that rely on language speciic knowledge. In Section 3, we describe the corpus that was used, focusing on the pre-processing step. In Section 4, we present the 3 concept-based measures that we investigated. In Section 5, we discuss our evaluation, which measures how the conceptual statistics are able to select the same source sentences Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 49 as humans to compose an extract. Lastly, we provide inal remarks and directions for further work in Section 6. 2 Related works Evans and Klavans (2004) have developed a multilingual version of the Columbia Newsblaster as a testbed for cross-language multidocument summarization. The system collects, clusters, and summarizes news documents from sources all over the world daily. It crawls news sites in many different countries, written in different languages, extracts the news from HTML pages, uses a variety of methods to translate the documents for clustering and summarization, and produces an English summary for each cluster. Sarkar and Bandyopadhyay (2005) presented the architecture of multilingual summarization system for Indian languages. Basically, the system has three major components: (i) several monolingual news clusters, (ii) a multilingual news clusters, and (iii) a news summarizer. The monolingual news cluster receives a news stream from multiple online newspapers in its respective language, and directs them into several output news streams by using events. Next, the multilingual news cluster matches and merges the news streams of the same event but in different languages in a cluster. The task for the multilingual cluster is to align the news clusters in the same topic, but in different languages. The system summarizes the news stories for each event by creating clusters of sentences and selecting the representatives from each cluster to form the inal summary. Roark and Fisher (2005) take as input a cluster of some machinetranslated and original (written and spoken) texts. The method ranks all the source sentences based on supericial features, and sets a high preference for original English sentences. The features are different versions of the tf-idf, log-likelihood ratio, and log-odds ratio lexical measures, and position, which increase the weight of sentences near the beginning of texts. The method was trained on a set of 80 clusters with translations and original English texts using a machine-learning algorithm, but there is no detail about the evaluation. One problem with this method is that, considering machine-translated texts as input, the summaries might contain ungrammatical sentences, since MT is far from perfect. 50 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 Evans et al. (2005) present an approach that identifies similarities and differences across texts written in different languages for summarizing topically clustered texts from two sources, English and machine translated Arabic texts. Speciically, they take as input a cluster with machine-translated and original texts. They only rank translated sentences, using a combination of deep (i.e., importance-signaling words, high-content verbs, and dominant concepts) and supericial features. Besides the sentence position in the source texts, the other supericial feature for sentence extraction is length, which penalizes sentences that are shorter or longer than a threshold. The sentences selected from the rank are replaced with similar ones from the English texts. For evaluation, they used the DUC 2004 corpus, which contains 24 topics with Arabic-to-English machine translations and English texts, and 4 human summaries. Using ROUGE (LIN, 2004), the evaluation shows that the similarity-based approach outperforms a irst-sentence baseline. This method, therefore, uses some semantic aspects of the input, an advance over Roark and Fisher (2005), although it is clear that relevant content that occurs exclusively in the preferred language is not selected to build the summary. Wan et al. (2010) present a cross-language multi-document summarization approach that was evaluated on the manual translated version of the DUC1 2001 dataset. In this approach, each English document set is summarized to produce a Chinese summary. The approach performs three main steps: (i) prediction of the translation quality of each English sentence in the document set; (ii) selection of the English summary sentences based on the translation quality and informativeness, and (iii) translation of the generated English summary to form the inal Chinese summary. Tosta et al. (2013) also take as input a cluster with machinetranslated and original texts. The authors have proposed two MMDS approaches based on supericial features: word frequency and sentence position methods. And both avoid redundancy applying the word overlap measure. If an ungrammatical translated-sentence is selected, it is replaced with a similar sentence from the original text. The methods were intrinsically evaluated according to the linguistic quality of the summaries using the criteria of DUC (DANG, 2005): grammaticality, 1 Document Understanding Conference (http://duc.nist.gov/) Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 51 non-redundancy, referential clarity, focus, and structure/coherence. In the manual evaluation, the sentence position method had better results. Although the methods avoid the MT problems by applying a latetranslation approach, the content selection still relies on lat features, which produce summaries with lower linguistic quality. Tosta (2014) proposed 2 deep methods that take the source texts in their original language as input. Both methods use the frequency of the nominal concepts in the cluster to score the sentences, and avoid redundancy using word overlap. Given the rank, the CF (concept frequency) method selects the best-ranked sentences to compose the summary until the desired summary length is achieved. If a sentence happens to be in the foreign language, it is automatically translated to the user’s language. The method was proposed under the assumption that the MT of the selected foreign sentences to the user’s language minimizes the problems that are caused by full MT of the source texts in the summaries. The CFUL (concept frequency + user language) method selects the topranked sentences from the text written in the user’s language to compose the summary, also avoiding redundancy. This approach relies on the assumption that a summary built exclusively with original sentences in the user’s language relects the most relevant content of the cluster, since the concepts that occur in the foreign text are also taken into account for sentence ranking. For evaluation, the authors used the CM2News corpus (TOSTA, 2014), which has 40 original news texts grouped by topic in 20 clusters. Each cluster contains 1 news text in English and 1 in (Brazilian) Portuguese, and 1 human summary in Portuguese. The goal was to produce extracts in Portuguese (user’s language). The concepts were semiautomatically derived from Princeton WordNet. The evaluation using the DUC criteria showed that the conceptual knowledge improved the linguistic quality of the summaries, since both methods outperformed the sentence position baseline (TOSTA et al., 2013). It also showed that CFUL outperformed CF. For summary evaluation, DUC was the main evaluation forum from 2001 until 2007. Nowadays, the Text Analysis Conference (TAC) provides a forum for assessment of different information access technologies including text summarization. Out of the past DUC and TAC editions, only a few have included multilingual text summarization tasks in the list of oficial tasks. Recently, TAC 2011 Summarization Track had a task on multilingual text summarization, which is called MultiLing. 52 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 Based on the cited works of the literature, we see that the most recent language-dependent approaches for determining important content in MMDS for English and Portuguese languages move towards a shallow semantic interpretation of summary language. The lexical-conceptual knowledge has already been used in single summarization in order to achieve better content selection. Some methods start by indexing the words of a text to concepts of a domainrelated taxonomy (i.e., hierarchy of concepts) and explore structural features of the taxonomy (e.g., level) to detect the main subtopics of the text (e.g., WU, LIU, 2003; HENNIG et al., 2008). Sentences or paragraphs that are “closer” to the subtopics are selected to compose the summary. Other approaches rely on the codiication of the source text into UNL, and the application of different statistics for sentence scoring, picking the sentences with the highest score to build the summary (e.g., SORNLERTLAMVANICH et al., 2001; MANAGAIKARASI; GUNASUNDARI, 2012). Since the UNL is a formalism to express the propositional content of any sentence, Sornlertlamvanich et al. (2001), for example, remove redundant words from the selected sentences, such as modiiers, and combine sentences that cover the same concepts, producing abstracts. Pandian and Kalpana (2013) proposed an approach for summarizing documents from the tourism domain. The authors focused on the generation of summaries for different levels of users. Martins (2002) and Martins and Rino (2002) developed heuristic rules for single-document summarization at the intra-sentential level, which prune unnecessary binary relations from the UNL codiication of a text. The heavy reliance on language resources, such as WordNet and UNL formalism, is clearly a bottleneck for the aforementioned deep approaches, because success is constrained by the coverage of the resources and the sense granularity stored there. However, the use of conceptual knowledge generates better results than shallow approaches, at least in terms of linguistic quality. Thus, this work focuses on: (i) exploring the potential of 3 concept-based statistics for determining important content in MMDS, (ii) using all kinds of concepts (not only nominal concepts), and (iii) evaluating the measures based on the alignments of source texts and human summaries at sentence level. Next, we describe the UNL formalism and the pre-processing of the corpus. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 53 3 The Corpus 3.1 The UNLization: conceptual annotation Since we sought to investigate how content selection takes place in MMDS, we have selected the CM2News corpus (TOSTA, 2014; DIFELIPPO, 2016). It has 40 original news texts (a total of 19,984 words) grouped by topic in 20 clusters. Each cluster is composed of 1 news text in English and 1 in (Brazilian) Portuguese, both on the same topic, and 1 human multilingual multi-document abstracts in BP. To produce the abstracts, the abstract-writers were instructed to produce summaries of length equal to 30% of the longest article in the cluster (i.e., 70% compression rate). The clusters cover different domains: world, politics, health, science, entertainment, and environment. Given the preliminary and exploratory nature of this work, we have selected only 3 clusters from CM2News, whose source texts and summaries have different sizes or lengths (in number of sentences and words) (Table 1). TABLE 1 – Characteristics of the data collection (CHAUD, 2014) Cluster Topic/Domain C1 Attacks in London (World) C2 C9 Gay Kit (Politics) Earthquake in Missouri (World) Reference Document Qt. sentences Qt. words C1-PT Source-text 17 518 C1-EN Source-text 36 788 C1-Sum-ref Reference summary 9 229 C2-PT Source-text 11 287 C2-EN Source-text 13 229 C2-Sum-ref Reference summary 4 84 C9-PT Source-text 25 511 C9-EN Source-text 33 660 C9-Sum-ref Reference summary 10 198 158 3,504 Total 54 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 The source texts and summaries received a layer of semantic annotation. In general, semantic annotation is additional information in a document that identiies or deines the semantics of a part of that document. In other words, we can say that semantic annotation is about attaching, for example, sense tags, names, attributes, comments, and descriptions to a document or to a selected part in a text. For our annotation, we selected a speciic formalism, called UNL (UCHIDA et al., 1999), which states that a deep semantic analysis for a natural language text requires two levels of semantics: lexical semantics and grammatical semantics. In particular, UNL expresses information conveyed by natural language (NL) sentences through binary relations between concepts. Thus, UNL is not different from the other formal languages devised to represent NL sentence meaning (MARTINS et al., 2002). The general syntax of the relations is RL(UW1,UW2), where RL stands for a Relation Label, which signals the semantic relation, and UWs means Universal Words, which signal the related concepts. RLs are speciied through mnemonics; they are three-letter symbols that signify the kind of semantic relationship that ties two UWs in a natural language utterance, for example, agt for agent, mod for modiier, or obj for object. UWs may be generic, such as book, or John, or complex, in which case they indicate meaning variations, for example, in animal(icl>living thing), icl indicates a hyperonymic relation between animal and livingthing. UWs can also be annotated by attributes to provide further information on the circumstances under which they are used (e.g., tense and aspect). Those are signaled by Attribute Labels (ALs). According to Cardeñosa et al. (2008), the advantages of UNL are: (i) lexibility and neutrality, since it is a language to represent any content in any domain in any language, (ii) generality, since the set of UWs and RLs is suficient to describe any kind of content expressed in NLs, and (iii) explicitness and clarity, which are univocal and machine-tractable. Each cluster was manually annotated by 1 computational linguist in two-hours daily sessions, during 3 consecutive months, with the support of a tool called UNL Editor (ALANSARY et al., 2011). The UNL Editor is a visual tool designed with the intention of providing full semantic annotation, including the analysis of natural language texts and the generation of UNL documents. In particular, it provides a powerful visual interface for working with UNL data both in a textual and graphical mode with a friendly interface, creating an appropriate Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 55 environment for navigating through the needed steps of providing the analysis. Most importantly, the UNL Editor’s output offers the necessary training data for semantic annotation due to the fact that the relations and concepts used are clearly deined as well as standardized within the UNL Editor framework. The UNL Editor exhibits enormous lexibility and opportunities in handling natural language text due to the fact that it follows a linguistic framework, minding the complexity and richness of natural language. Given a text, the editor irstly split it into sentences and thus the UNLization process follows 3 stages: (i) identiication of concepts or creation the nodes (Stage 1), (ii) assigning attributes (Stage 2), and (iii) identiication of relation labels between concepts (Stage 3). In such process, we see that lexical semantics is expressed through creating the nodes, a process in which every single or compound word or rather every concept in the sentence to be analyzed is matched with its corresponding ID. In the UNLization of the sentence “Seven people have been rescued from the rubble” (from the English document of the cluster 09), showed in Figure 1, we identiied 4 concepts in the Stage 1, codiied by the following UWs: “7”, “person”, “rescue”, and “rubble”. Each UW is thus codiied as a particular node in the graph. The dictionary from which the UWs (and IDs) are extracted is based on Princeton WordNet (version 3.0), which stores 155,287 words and expressions organized in 117,659 synsets (FELLBAUM, 1998). In order to make the process of selecting the appropriate UW easier and for more clariication to the concept, the UNL Editor provides to the annotators all information attach to each concept in WordNet, including gloss (i.e., textual description of a synset’s meaning or concept) and synsets. Grammatical or sentential semantics is expressed in Stages 2 and 3, and it is based on the assumption that the syntactic structure of the sentences overlaps with its semantics. In the UNL Editor, grammatical semantics is codiied in terms of attributes and semantic relations. Codifying grammatical categories such as tense, mood, aspect, number, etc., the attributes correspond to one place predicates. They are mainly used to convey three different kinds of information: (i) role of the node in the UNL graph (‘@entry’, for example, indicates the main (starting) node of a UNL directed graph), (ii) grammatical knowledge conveyed by closed classes, such as afixes, determiners, adpositions, conjunctions, auxiliary and quasi-auxiliary verbs and degree adverbs, 56 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 and (iii) subjectivity of sentences, i.e., what is said from the speaker’s point of view, including phenomena technically called “speech acts”, “propositional attitudes”, “truth values”, etc. In the annotation of the sentence in Figure 1, the UW “person”, for example, received the attribute label “@pl” in Stage 2, which means that there is more than one person (plural). The UW “rescue” has the ALs “@past”, which indicates that the event took place in the past, and “@entry”, which means that this is the main UW of the sentence. The UW “rubble” received the attribute “@ def”, which expresses deiniteness and implies that “rubble” had already been mentioned before (which is expressed by the deinite article “the”). For linking the concepts, the UNL Editor provides a super set of semantic relations, including 45 highly standardized labels. They are used to describe the objectivity information of the sentences. In the UNL formalism, relations are normally regarded as representations of semantic cases or thematic roles (such as agent, object, instrument, etc.) between concepts. They are used in form of arcs connecting a node to another node in a UNL graphical representation. In opposition to attributes, relations correspond to two-place semantic predicates holding between two concepts or UWs. Since there are similarities between the semantic relations and syntactic relations in name and function, it may seem that the labels used for relations are different names for special grammatical functions (ALANSARY et al., 2011). However, the intention is that the labels denote speciic ideas rather than grammatical structures. According to Alansary et al. (2011), the UNL conceptual relations are more abstract than the grammatical (or syntactic) relations. In general, relations are always used to describe semantic dependencies between syntactic constituents. For example, in the sentence “Seven people have been rescued from the rubble” of the Figure 1, we identiied the following RLs in Stage 3: “qua”, “obj”, and “src”. The binary RL “obj” codiies “a thing in focus which is directly affected by an event or state”. In the example, “obj” links the concepts “rescue” and “person”. The RL “qua” represents a quantity of a thing or unit. In Figure 1, “qua” interconnects the UWs “7” and “person”. And, inally, “scr”, which codiies “initial state, place, origin or source”, is responsible for linking “rescue” and “rubble” (CHAUD, 2014). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 57 FIGURE 1 – Sentence UNL encoding (CHAUD, 2014) Identiication of concepts/nodes (Stage 1) Assigning attributes (Stage 2) 7 7 person person.@pl rescue rescue.@past.@entry obj(rescue.@past.@entry,person.@pl) rubble rubble.@def src(rescue.@past.@entry,rubble.@def) Identiication of relation (Stage 3) qua(person.@pl,7) 3.2 The Alignment of Source Texts and Human Summaries Many authors have used manual alignment of texts and reference summaries in Automatic Summarization, since it may reveal some of the human strategies used to produce the summary (e.g. MARCU, 1999; HIRAO; SUZUKI; ISOZAKI; MAEDA, 2004). In this particular work, the goal of the alignment was to compare sentences that were aligned to the summary to sentences that were not aligned with regard to their conceptual characteristics. As for the annotation, 1 computational linguist performed the alignment in one-hour daily sessions, during 1 month. The expert followed the methodology described in Camargo (2013). Thus, the manual alignment was performed in the summary-to-document direction and at the sentence level. Moreover, we have followed four general rules. The rule 1 speciies that a summary sentence must be aligned to a document sentence based on the content overlapping, not only considering the word overlapping between them. The rule 2 states that the alignment should irst be based on the main information overlapping, i.e., the alignment should be established if the sentences express similar main topics. If this was not possible, the rule 3 establishes that a summary sentence and a document sentence may also be aligned based on secondary information overlapping. Finally, the rule 4 determines that one summary sentence should be connected to all similar (partial or total) sentences from the distinct source documents of the same cluster. Consequently, according to the rule 4, the summary-documents alignments codify one-to-many relationships. Once a summary sentence SS was linked to one or more document sentences DS, a manual correspondence between their UNL representations was also created. Figure 2 illustrates a 1:2 alignment. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 58 In such example, the SS was aligned to two DSs because they have the same meaning or express the same topic. FIGURE 2 – Alignment of summary and document sentences/UNL encodings Summary sentence / UNL codiication Cerca de 100 pacientes tiveram que ser retirados do centro médico. [C9_ Sum-ref_S2] Source sentence / UNL codiication Nearly 100 patients at the St John Regional Medical Center in Joplin were evacuated after the hospital took a direct hit. [C9_EN_S30] Pacientes tiveram que ser retirados do centro médico. [C9_PT_S9] obj(remove.@past.@obligation. @entry,patient.@pl) mod(center.@def,medical) src(remove.@past.@obligation. @entry,center.@def) qua(patient.@pl,approximately) bas(approximately,100) bas(nearly,100) qua(patient.@pl,nearly) plc(patient.@pl,St John Regional Medical Center.@def) plc(St John Regional Medical Center. @def,Joplin) obj(evacuate.@past.@entry,patient.@pl) tim(evacuate.@past.@entry,after) obj(after,:01) aoj:01(direct,hit.@indef) obj:01(take.@past.@entry,hospital.@def) agt:01(take.@past.@entry,hit.@indef) obj(remove.@past.@obligation. @entry,patient.@pl) mod(center.@def,medical) src(remove.@past.@obligation. @entry,center.@def) Table 2 shows the distribution of the different alignment types (1-n) and Table 3 describes the number of alignments where a summary sentence was aligned to source sentences(s) in just one language (Portuguese or English) or in both languages. According to the results, we may see that 8 summary sentences were aligned to only one sentence of the source texts (1-1), 7 summary sentences were aligned to 2 sentences of the source texts (1-2), and so on. The alignment illustrated in Figure 2, for example, is 1-2. From the 23 summary sentences, 15 were aligned Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 59 (65,3%) to some source sentence, with the distribution per language as described in Table 3. This result was expected, since a multi-document summary could be potentially connected to 2 related source texts of its cluster. From the 144 sentences in the source texts, 50 (37,4%) were aligned to some summary sentence, but it does not mean that the sentences were aligned only once. A sentence of a summary may be aligned to more than one sentence of the source text, and the sentences of the source texts may be redundant or even identical. Since the alignments may indicate total or partial content overlap, whenever a sentence of a given source text is aligned to a summary sentence, this means that at least part of the information conveyed by that sentence is also in the summary, indicating that the sentence brings some content considered relevant by the human summarizer. However, it is reasonable to assume that, in general, document sentences that are aligned to summary sentences carry more relevant information than sentences that are not aligned. TABLE 2 – Alignment types in the corpus Types of alignment 1:1 1:2 1:3 1:4 1:5 1:6 1:7 1:8 1:9 1:10 No. of alignments 8 7 4 0 3 0 0 0 0 1 TABLE 3 – Distribution of the alignments per language Alignment Summary: Portuguese Summary: English Summary: Both Quantity 6 6 11 Next, we describe the conceptual measures for content selection in MMDS. 4 Lexical-Conceptual Measures Based on the review of the literature, we have selected 3 lexicalconceptual measures that are potentially adequate to capture human content selection strategies in MMDS: (i) concept frequency, (ii) concept frequency corrected by the inverted document frequency, and (iii) concept frequency normalized by the number of concepts in the sentence. Given Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 60 the fact our that corpus is annotated with UNL, we renamed the measures as follows: (i) simple UW frequency or F(UW); (ii) UW frequency corrected by inverse document frequency or F(UW)*IDF(UW), and (iii) UW frequency normalized to the number of UWs in the sentence or F(UW)/No. UWs in S. Considering the step (ii) of the language-dependent MMDS methods, which consists in ranking the original sentences and picking the top scoring sentences to build the multi-document extract, these three measures capture the content of a multilingual cluster by counting the occurrences of concept underlying synonyms (i.e., different words that express the same concept) and equivalences (i.e., expressions of a concept in different languages). The selection of the F(UW) measure relies on the assumption that the most frequent concepts of a cluster express the most relevant information and, therefore, the sentences that are composed of such concepts should compose the summary. This measure has already been applied by Tosta (2014) for multilingual multi-document summarization involving the Brazilian Portuguese language (and English), only taking into account the nominal concepts of the cluster. The author showed, indeed, that selecting sentences based on conceptual knowledge rather than supericial features improves the linguistic quality of the extracts. Here, we have considered the frequency of all concepts in the input. The F(UW) equation is described in (1). (1) S(s) = ∑ ∀UWi∈s F(UWi) where S is the sentence scoring function; s is the sentence being scored; F is the concept frequency; and UWi is the concept. The F(UW)*IDF(UW) measure is used to evaluate how important a concept is to a document in a corpus. The importance increases proportionally to the number of times the concept appears in the document, but it is offset by its frequency in the corpus (in this case, in the 3 clusters). Thus, a higher F(UW)*IDF(UW) score indicates Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 61 that a concept is important because it is frequent in the document, but relatively uncommon in the other documents of the corpus. Although F(UW)*IDF(UW) was already applied by Sornlertlamvanich et al. (2001) in automatic summarization, there are no details about the performance of this measure. Thus, we decided to explore its potential to capture human content selection preferences in MMDS. The F(UW)*IDF(UW) equation is deined in (2). (2) ∑ ∀UWi∈s W(UWi) = F(UWi) * S(s) = W(UWi) ( IDF(UWi) = log where s W UWi F IDF D(UWi) d(UWi) IDF(UWi) D(UWi) d(UWi) ) is the sentence being scored; is the function that calculates the score of each concept; is the concept; is the concept frequency; is the inverted document frequency; is the number of documents of the corpus; and is the number of documents in which the UW occurs. The F(UW)/No. UWs in S measure was proposed because, according to Tosta (2014), F(UW) tends to assign better rankings to longer sentences and worse rankings to short sentences. Thus, we suggested F(UW)/No. UWs in S, which also involves calculating sentence scores based on concept frequency, but includes a normalization procedure to make sentence selection less dependent on their size. The F(UW)/No. UWs in S equation is described in (3). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 62 (3) S(s) = ∑∀UWi∈s F(UWi) n(s) where S is the sentence scoring function; s is the sentence being scored; F is the concept frequency; UWi is the concept; and n(s) is the number of UWs in sentence s. The application of the measures followed 3 steps: (i) calculation of the measure of each UW in the cluster, (ii) scoring all the source sentences according to the value of the measure obtained for their constitutive UWs, and (iii) ranking the sentences by their score. Thus, we built three different ranks − one for each measure. 5 Investigation of the measures for sentence selection in MMDS Given the three different ranks, we sought to identify which of them was closer to what human summarizers did during summarization. In order to evaluate the potential of the conceptual measures (and the supericial strategy) for capturing human content selection preference, we calculated how many aligned source-sentences were covered by the top sentences of each rank. Thus, by analyzing whether these measures are capable of providing ranks in which the sentences aligned to the summary are ranked irst, it is possible to evaluate whether the content selected by each measure correlates to the content selection performed by the human summarizer. Ideally, the sentences ranked irst by these measures should be sentences that were aligned to the summary, because this means that they bring information related to the summary (presenting total or partial content overlap). As for low-ranking sentences, they should be non-aligned sentences, that is, they should be sentences with no relation to the summary. In order to know how many of the top-ranked sentences were relevant based on the alignment of the human summary and source texts, we have posed the following question for each source-text: “Out of the n top-ranked sentences, how many were aligned to the summary?” Since Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 63 the source texts vary in terms of size or length, the number of sentences (n) used for comparison was proportional to the text size. The n value was empirically deined as 20% of the number of sentences in the text, rounded down if necessary. For example, the text C1-EN has 36 sentences (Table 1), thus the 7 top-ranked sentences were used for comparison. This means that, given the 7 top-ranked sentences, we were interested in knowing how many of them had been aligned to summary sentences. We also considered a rank that was built according to the supericial sentence position strategy. Table 4 shows the results of the analysis. Figure 3 shows a graphical overview of the comparison. It can be seen that the measures have similar performances. FIGURE 3 – Graphical comparison of the relevance strategies Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 64 TABLE 4 – Comparison of concept-based and supericial relevance strategies F(UW) F(UW)*IDF(UW) Source text F(UW)/No. UWs in S Position Qt. % Qt. % Qt. % Qt. % C1_EN 6/7 86% 6/7 86% 6/7 86% 2/7 29% C1_PT 1/3 33% 1/3 33% 2/3 67% 2/3 67% C2_EN 0/2 0% 0/2 0% 0/2 0% 2/2 100% C2_PT 1/2 100% 1/2 50% 1/2 100% 2/2 100% C9_EN 1/6 17% 0/6 0% 0/6 0% 2/3 67% C9_PT 1/5 20% 2/5 40% 0/5 0% 4/5 80% In average, we veriied that the 4 methods selected 48% of aligned sentences, i.e., 48% of the sentences among the top ranked ones. Therefore, we may consider a content selection strategy as successful when more than the average of the sentences selected were aligned to the summary (i.e., presented relevant content). In this case, if we approximate the value to 50%, the concept-based method with the best performance was F(UW)/No. UWs in S, as can be seen in the Table 5. TABLE 5 – Ranks with at least 50% of aligned sentences in the top positions Source text F(UW) F(UW)*IDF F(UW)/No. UWs in S Position C1_EN Yes Yes Yes No C1_PT No No Yes Yes C2_EN No No No Yes C2_PT Yes No Yes Yes C9_EN No No No Yes C9_PT No No No Yes TOTAL 2 1 3 5 The method F(UW)*IDF was the one that led to the lowest number of aligned sentences among the top-ranked sentences. This means that, in our case, it would select very few sentences carrying content that Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 65 was considered relevant by the human summarizer. In only 1 of the 6 source-texts the percentage of aligned sentences among the top-ranked ones was higher than 50% for this method. It is very hard to pinpoint the speciic reasons for this result. However, the size of our corpus and the very rationale of the formula for sentence ranking seem to be relevant factors. According to the F(UW)*IDF equation (2), concepts that occur in all texts end up with weight equal to zero, which would be a way of decreasing the inluence of the most common words in the language. However, in a small corpus, with 2 or 3 texts, for example, the chance that a UW occurs in every text is still relatively high, and this way of calculating the importance of a UW would assign weight zero for such UWs, therefore often disregarding important concepts. The performance of F(UW) and F(UW)/No. UWs in S was slightly higher than that of F(UW)*IDF, although it is dificult to establish the actual signiicance of this difference, given our small corpus. In 3 (out of the 6) source-texts, the F(UW)/No. UWs in S measure was capable of generating ranks with more than 50% of aligned sentences among the top-ranked sentences. This means that, in half of the texts, there was good correlation between the content considered relevant by the human summarizer and the content of the sentences selected by the measure. The F(UW) measure produced ranks with at least 50% of aligned sentences in the top positions in 2 texts. If we take a more pessimistic/rigid view and consider that a method should select 80% of the aligned sentences, the measures F(UW) and F(UW)/No. UWs in S perform equally (see Table 4). Comparing the three concept-based relevance measures to the supericial strategy, we can see that, in 5 of the 6 texts, selecting content based on sentence position led to ranks in which the top-ranked sentences were aligned in more than 50% of the cases. In other words, in 5 out of the 6 texts, more than half of the sentences selected based on sentence position brought relevant content. It is not totally surprising that the sentence position strategy, particularly with a journalistic corpus, better captures the human preferences. Camargo et al. (2015) showed that, in a (monolingual) multi-document scenario, position is one of the main features that characterize the sentences usually selected by humans to compose a news summary. Our results seem to indicate that the irst sentences of the texts did not necessarily contain the most frequent concepts of the cluster. In several cases, the sentences with the most frequent concepts were in the middle or at the end of the text. 66 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 6 Final Remarks To the best of our knowledge, this integrated study of statistical relevance measures over a multilingual multi-document corpus annotated with UNL is new in the ield of NLP, at least for the processing of Portuguese. With regard to the potential of the conceptual-based measures, we highlight that the best performance of the supericial strategy is something worth noting. This is an interesting result because it may relect dissociation between sentences located in the beginning of the text and sentences with the most frequent concepts. Throughout the corpus, very often it was noticed that sentences in intermediate or inal position in the text were the ones bringing the most frequent concepts of the cluster. If the fact that a text belongs to the journalistic genre means that its irst sentences bring the most relevant information, and if its irst sentences do not necessarily contain the most frequent concepts (as suggested in this study), one can conclude that a relevant sentence is not necessarily a sentence bringing the most frequent concepts of the cluster. Therefore, the assumption that relevant concepts tend to appear repeatedly throughout the cluster perhaps has to be reassessed, or at least applied with some caution. It is important to keep in mind that this was a small-scale study and, therefore, deinitive conclusions or generalizations should be avoided. Future work may include the study of the measures using a bigger news corpus or a data collection of a different genre, especially one in which sentence position would not be a feature so important to indicate content “relevance”. Of course, these extensions will require semantic annotation of the corpora, which is a complex and time-consuming (semiautomatic) task, but necessary for future advances in the ield. Another possibility is to use more than one manual (or reference) summary to evaluate the potential of the metrics, since summarization is a very subjective task and different reference summaries could reveal different content strategies. Moreover, future work may include the production of automatic summaries based on the ranks and the manual evaluation of their linguistic quality following criteria such as those that were used in DUC. In addition to allowing deeper investigation on concept-based measures, a larger corpus annotated with UNL could provide the data Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 1, p. 45-71, 2018 67 necessary to explore abstractive MMDS strategies, such as those proposed by Sornlertlamvanich et al. (2001) (e.g., combining sentences that cover the same concepts) for single-document summarization. Acknowledgements The authors thank Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel CAPES, CNPq, and State of São Paulo Research Foundation (FAPESP) for the inancial support. References ALANSARY, S.; NAGI, M.; ADLY, N. UNL Editor: An annotation tool for semantic analysis. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON LANGUAGE ENGINEERING, 11., 2011, Cairo, Egypt. Proceedings... Cairo, Egypt, 2011. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 A Cupópia do Cafundó: uma análise morfossintática The Cupópia of Cafundó: a morphosyntactic analysis Anna Jon-And Dalarna University, Falun, Suécia ajd@du.se Laura Álvarez López Universidade de Estocolmo, Estocolmo, Suécia laura.alvarez@su.se Resumo: O presente estudo analisa a fala da comunidade rural afrobrasileira de Cafundó, situada a 150 km da cidade de São Paulo. Entre 1978 e 1988, período em que os dados aqui analisados foram coletados, a comunidade contava com carca de 80 pessoas, descendentes de duas ex-escravas, irmãs, que herdaram as terras do seu dono. O livro publicado, em 1996, por Carlos Vogt e Peter Fry (com a colaboração de Robert Slenes) defende que a variedade denominada Cupópia apresenta estruturas do português regional e que parte do vocabulário é de origem Bantu. A análise morfossintática discute os casos de ausência de cópula, o uso da cópula em lugar do verbo possessivo, a ordem das palavras incomum no português, os substantivos sem determinante na posição de sujeito, o uso de artigos deinidos em SNs preposicionais que correspondem a locuções adjetivas, bem como a concordância variável no SN e a concordância entre o sujeito e o verbo. Os resultados indicam que as características gramaticais da Cupópia não coincidem totalmente com os traços registrados no português falado pelos mesmos indivíduos, mas que são compartilhadas com variedades linguísticas mais reestruturadas do que o português falado em zonas rurais do interior do Estado de São Paulo. Palavras-chave: Cupópia; Cafundó; português; Brasil; morfossintaxe. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.73-101 74 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Abstract: The present study analyzes the speech of the Afro-Brazilian rural community of Cafundó, located 150 km from São Paulo. Between 1978 and 1988, when the analyzed data were collected, the community had a population of 80 people, descendants of two former slaves, who were sisters and inherited the lands of their owner. In a book published in 1996, Carlos Vogt and Peter Fry (with the collaboration of Robert Slenes) argue that the variety denominated Cupópia presents structures of regional Portuguese, and that part of the vocabulary is of Bantu origin. The present paper focuses on morphosintactic aspects and discusses copula omission, the use of copula instead of the possessive verb, unexpected word order in Portuguese, nouns without determinant in subject position, the use of deinite articles in prepositional prepositional phrases functioning as adjectival locutions, as well as the variable agreement in the noun phrases and the agreement between the subject and the verb. The results indicate that the grammatical features of Cupopia do not fully coincide with those observed in the Portuguese spoken by the same individuals, but are shared with more restructured linguistic varieties than the ones spoken in rural areas of the interior of the State of São Paulo. Keywords: Cupópia; Cafundó; portuguese; Brazil; morphosyntaxis. Recebido em 23 de janeiro de 2017. Aprovado em 5 de abril de 2017. 1 Introdução Os trabalhos realizados a partir de 1978 sobre a comunidade do Cafundó (Salto de Pirapora/SP) ocupam um lugar de destaque entre os estudos acerca do papel dos falantes de línguas africanas e seus descendentes na constituição do português brasileiro. As primeiras investigações na comunidade foram motivadas pela “descoberta” de uma comunidade que falava uma suposta língua africana, chamada de Cupópia. Os estudos realizados por uma equipe de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas, incluindo os Professores Peter Fry, Carlos Vogt, Robert Slenes e Mauricio Gnerre, levaram à conclusão de que se tratava de uma “variedade linguística” que fazia uso de um conjunto de itens lexicais de origem africana, mas tinha o português regional como sua matriz gramatical (VOGT; FRY, 1996). O material Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 75 coletado na época, que abarca cerca de 46 horas de entrevistas com moradores do Cafundó, é hoje parte do Projeto Cafundó, que integra o acervo do CEDAE/Unicamp (Centro de Documentação Alexandre Eulálio).1 2 Em 2012, a comunidade foi reconhecida pelo governo como remanescente de quilombo com direitos à (parte da) terra onde moram.3 O léxico da Cupópia inclui aproximadamente 160 palavras, a maioria de origem africana, e a variedade é utilizada em contextos comunicativos especíicos. Nos trechos em que os falantes alternam entre Cupópia e Português do Cafundó,4 a tendência é que todos os substantivos pertençam à Cupópia, bem como a maioria dos verbos e adjetivos, enquanto os morfemas gramaticais são os do Português. O presente artigo traz os resultados de um estudo sobre a Cupópia, baseando-se na análise de uma das entrevistas que compõem o Projeto Cafundó.5 Iremos apresentar um conjunto de fatos gramaticais que nos permitem airmar que, na utilização da Cupópia, os habitantes do Cafundó produzem construções com propriedades que não são usuais na variedade regional do Português falado pela comunidade.6 1 A entrevista foi realizada por Carlos Vogt em 13 de maio de 1978 em Salto de Pirapora, São Paulo e faz parte da Coleção Cafundó. Os materiais foram digitalizados em 2013 com o apoio da fundação sueca STINT (the Swedish Foundation for International Cooperation in research and Higher Education) e podem ser consultados na plataforma de arquivos sonoros do Centro de Documentação Alexandre Eulálio, da Universidade Estadual de Campinas. 2 Atualmente, residem na comunidade apenas duas pessoas que dizem falar a Cupópia. Conforme Petter (1998, p. 199), só havia adultos que sabiam falar Cupópia na década de 90. Durante uma visita à comunidade em dezembro de 2014, uma das autoras teve a oportunidade de conversar com dois moradores que disseram ser os últimos falantes da ‘língua’. 3 No site da Fundação Palmares, http://www.palmares.gov.br/?p=17733>, a comunidade do Cafundó é apresentada como uma comunidade quilombola que fala a sua própria língua, descrita como variedade de língua Bantu. 4 O objetivo do presente estudo é analisar a estrutura da Cupópia e compará-la com o português usado pelos mesmos falantes. As alternâncias de código, que suscitam questões interessantes, podem ser tratadas em estudos futuros. 5 Parte dos resultados aqui apresentados foi discutida em Álvarez López e Jon And (2017). 6 No conjunto total das entrevistas com os moradores do Cafundó, o uso da Cupópia é bastante limitado. A entrevista escolhida é a que apresenta a maior amostra de uso da Cupópia nesse conjunto. 76 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 O trabalho é dividido da seguinte forma: na seção 2, serão abordadas as classificações da Cupópia apresentadas em estudos anteriores; na seção 3, será oferecido um breve panorama dos materiais e métodos utilizados; na seção 4, descreve-se o contexto sócio-histórico da comunidade; na seção 5, apresentam-se as análises dos traços gramaticais que não são encontrados no português falado pelos mesmos falantes (a ausência de cópula, o uso da cópula em lugar do verbo possessivo, a ordem das palavras incomum no português, os substantivos sem determinante na posição de sujeito, o uso de artigos deinidos em SNs preposicionais que correspondem a locuções adjetivas, bem como a concordância variável no SN e a concordância entre o sujeito e o verbo). Em seguida, são apresentadas as considerações inais. 2 Classiicações da Cupópia A Cupópia, que era usada em contextos comunicativos especíicos, tem sido classiicada como ‘anti-crioulo’ (COUTO, 1992; cf. PETTER, 1999), ‘língua mista simbiótica’ (SMITH, 1994, p. 369), ‘língua especial’ (PETTER, 1998), e crioulo,7 ou simplesmente analisada como ‘prática linguística’ (VOGT; FRY, 1996, p. 26). A rigor, a Cupópia pode ser incluída entre os códigos secretos de comunicação intragrupal (FRY; VOGT; GNERRE, 1984; VOGT; FRY, 1983, 1996, 2005; QUEIROZ, 1998; BYRD, 2012; PETTER, 2013), que podem ser encontrados em várias comunidades afro-brasileiras, apresentando um conjunto limitado de itens lexicais de origem africana (por exemplo, a ‘Calunga’ falada em Patrocínio (BYRD, 2012) e a ‘Língua do negro da costa’ falada em Bom Despacho (QUEIROZ, 1998)). Couto (1992, p. 75) classiica a Cupópia como um ‘anti-crioulo’, no sentido de se tratar de uma variedade que combina a gramática da língua dominante em uma determinada região com o vocabulário de uma língua de substrato ou língua dominada (neste caso, alguma ou algumas línguas africanas (COUTO, 1992, p. 75)). Essa deinição pode igualmente ser aplicada a outras afro-variedades do Português com léxico de origem Africana, como a ‘Língua do negro da costa’ e a ‘Calunga’, ambas faladas em comunidades rurais do estado de Minas Gerais. 7 Ver Ethnologue <http://www.ethnologue.com/language/ccd>. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 77 Petter (1999, p. 114) argumenta contra o uso do conceito de anti-crioulo para classiicar a Cupópia, uma vez que essa variedade nunca passou por um processo de crioulização. Sugere que a Cupópia seja classiicada como uma ‘língua especial’, consistindo, assim, em um código usado, por exemplo, como jargão, por grupos de uma certa idade ou ocupação proissional. (PETTER, 1998, p. 185). Petter (1998, p. 199) também airma que as línguas especiais se caracterizam pelo seu contexto de uso e podem ter a função de língua secreta (1998, p. 199). Estudos anteriores sobre diferentes tipos de línguas especiais, porém, incluem aspectos não restritos ao léxico nos casos de códigos secretos que diferem das variedades que os rodeiam (ACETO, 1995; GOYVAERTS, 1996). A classiicação proposta por Smith (1994) para a Cupópia é a de ‘língua mista simbiótica’. Nesse caso os falantes formam comunidades e não se comparam, por exemplo, a um grupo de cientistas que recorrem a um léxico especializado (SMITH, 2000, p. 123). Smith (2000, p. 122) airma que a língua mista simbiótica nunca é a única língua da comunidade, podendo, muitas vezes, funcionar como uma língua secreta. Segundo o autor, uma língua mista simbiótica combina a estrutura gramatical de uma língua e um número variável de itens lexicais – desde centenas até milhares – ora de uma outra língua (muitas vezes a língua original do grupo) ora de uma gama de fontes diversas, e algumas palavras serão possivelmente costruídas ou deformadas deliberadamente. Essas línguas existem em uma relação simbiótica e de dependência com línguas (dominantes) não mistas com (praticamente) a mesma gramática e um léxico da mesma fonte que a gramática (SMITH, 2000, p. 122, tradução e grifos nossos).8 A definição de língua mista simbiótica pode ser estendida à Cupópia, embora outras deinições possíveis também possam ser aplicadas. 8 Combines the grammatical structure of one language, and a varying number of lexical items – from hundreds to thousands in number – either from another language (often the original language of the group), or else from a variety of different sources, some words possibly being constructed or deformed deliberately. These languages exist in a symbiotic and dependent relationship with (dominant) unmixed languages with (virtually) the same grammar, and a lexicon from the same source as that grammar. 78 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Álvarez López e Jon-And (2017) descrevem a Cupópia como um código intragrupal, ou “lexically-driven in-group code”, e airmam que as etimologias africanas coincidem com os dados históricos e demográicos da comunidade, indicando que o grupo de falantes de línguas Bantu como primeira língua ou língua de herança (ou uma coiné de base quimbundo, quicongo e/ou umbundo), contribuíram com mais itens lexicais que outros grupos e que os falantes de quimbundo contribuíram com mais itens lexicais de classes de palavras que não a do substantivo. Um terço dos africanismos foi identiicado como termos do vocabulário básico, e uma quarta parte dos vocábulos pertence ao domínio semântico ‘dia a dia’. Esse resultado pode ser parcialmente explicado pelo fato de a Cupópia ter a função de código secreto usado no dia a dia para marcar distância entre os seus falantes e pessoas que não entendem esse código (ÁLVAREZ LÓPEZ; JON AND, 2017). Nesse sentido, a Cupópia pode ser entendida como uma prática discursiva: a forma como os falantes escolhem o que dizem e como dizem – o que pode ser tão detalhado como uma ingestão de respiração em um ponto particular da interação – é interpretada como o uso de dispositivos (indexais) que informam os ouvintes sobre como ler suas mensagens projetadas de forma interativa. É através de uma leitura desses meios que os ouvintes (ou, mais geralmente, os destinatários) chegam a uma leitura das intenções do falante e, finalmente, a uma leitura de como eles apresentam um sentido de quem eles são. (BAMBERG et al., 2011, p. 182, tradução nossa).9 Outros grupos afro-brasileiros também usam palavras e expressões das línguas dos seus ancestrais como marcadores de identidade ou língua secreta (ver, por exemplo, ÁLVAREZ LÓPEZ, 2004; BYRD, 2012). Da mesma forma que a Cupópia conta com um léxico diferenciado de 160 itens lexicais, o vocabulário da Calunga inclui 307 palavras (BYRD, 9 Speakers, in their choices of how they say what they say – which may be as detailed as a breath intake at a particular point in the interaction – are interpreted as making use of (indexical) devices that cue listeners on how to read their messages as interactively designed. It is through a reading of these means that hearers (or more generally, recipients) come to a reading of the speaker’s intentions and ultimately to a reading of how speakers present a sense of who they are. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 79 2012, p. 123), e o da Língua do negro da costa, 176 (QUEIROZ, 1998, p. 91). Byrd (2012, p. 148) chegou à conclusão de que a Cupópia e a Calunga compartilham a maior parte do léxico, um total de 42 itens lexicais. Outra língua deinida como língua mista simbiótica, o angloromani, tem, dependendo da variedade, entre 85 e 350 itens lexicais do romani (MATRAS et al., 2007, p. 165). As semelhanças entre a Cupópia e o anglo-romani incluem, além da existência simbiótica com a língua dominante, a motivação para os empréstimos lexicais de fontes ancestrais mencionada por Matras: “O anseio pelo idioma antigo apoia a manutenção de um vocabulário básico, algumas regras produtivas de formação de vocabulário e algumas expressões fossilizadas” (MATRAS et al., 2007, p. 149, tradução nossa).10 3 Materiais e método O corpus do Cafundó é constituído de cerca de 46 horas de gravações, realizadas por Vogt e Fry entre 1978 e 1980. Nos trechos das entrevistas em que os falantes empregam a Cupópia, a tendência é que todos os substantivos pertençam a essa variedade, bem como a maioria dos verbos e adjetivos, enquanto os morfemas gramaticais são, em sua totalidade, os do português. Visto que os dados propriamente da Cupópia são escassos nas gravações que compõem o Projeto Cafundó, a análise morfossintática que apresentamos está baseada em uma entrevista da amostra em que cinco participantes moradores do Cafundó alternam entre a Cupópia e o português, totalizando cerca de 6.000 palavras, entre as quais cerca de 50011 pertencem ao léxico da Cupópia.12 Todas as frases com itens lexicais da Cupópia foram analisadas visando identiicar padrões sintáticos especíicos. A análise compara estruturas da Cupópia e do português falado pelos moradores do Cafundó que aparecem na mesma gravação. A questão norteadora do estudo é se os traços gramaticais especíicos encontrados na 10 A longing for the old language supports the maintenance of a core vocabulary, a few productive rules of vocabulary formation, and a few fossilized expressions. 11 56 palavras da Cupópia utilizadas 506 vezes no material selecionado. 12 Entrevista realizada por Carlos Vogt em 13 de maio de 1978 em Salto de Pirapora, São Paulo. Coleção Cafundó, Centro de Documentação Alexandre Eulálio, Universidade Estadual de Campinas. 80 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Cupópia aparecem no Português do Cafundó. A comparação é relevante para poder determinar se a Cupópia é uma variedade do português rural do interior de São Paulo que abarca um conjunto de empréstimos de origem africana, ou se apresenta traços gramaticais que não são encontrados no português falado pelos membros da comunidade. Para os traços que ocorrem com mais frequência, como a falta de marcas de concordância internas ao SN e ao SV, foi realizada uma breve comparação quantitativa que mostra se os fenômenos que ocorrem tanto na Cupópia como no português da região têm a mesma frequência nas duas variedades. 4 Breve história social do Cafundó Para reconstruirmos o processo de criação da Cupópia, é importante considerar o cenário linguístico na época da sua formação.13 Sabemos que os africanos foram introduzidos na região de São Paulo após 1750, e várias fontes históricas indicam que a língua predominante entre os cativos era provavelmente o quimbundo (VOGT; FRY, 1996, p. 181-182). Os primeiros registros escritos dos ancestrais do principal grupo familiar no Cafundó são de 1803, quando Florinda, a bisavó de Antônia e Iigênia, foi registrada entre os escravos como crioula de sete anos (cf. SLENES, apud VOGT; FRY, 1996, p. 56-59). As genealogias detalhadas apresentadas por Slenes mostram que a situação da família era estável, o que provavelmente fez com que os pais pudessem passar as suas tradições de geração em geração (cf. VOGT; FRY, 1996, p. 57). Sabe-se ainda que o bisavô do dono de Antônia e Iigênia chegou à região em meados do século 18 e que, na primeira metade do século 19, cerca de 50% dos escravos da região eram africanos, enquanto o resto tinha nascido no Brasil (VOGT; FRY, 1996, p. 53, 182). Com base no acima exposto, podemos assumir que a Cupópia surgiu após 1750. Parte da população escrava pode ter sido bilíngue e abandonado as línguas africanas, passando então a falar uma variedade 13 No caso da comunidade do Cafundó, contamos com o trabalho de recuperação da documentação especíica que fornece detalhes sobre a história da comunidade e a população da região, realizada pelo historiador Robert Slenes (capítulo 2 do livro de Vogt e Fry, 1996). Temos acesso, por exemplo, a árvores genealógicas da família das escravas e dos seus donos. Slenes (2016) apresentou uma relexão sobre esse trabalho, destacando a forma como a metodologia utilizada marcou os seus trabalhos posteriores. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 81 regional do português no início do século 19. Essa situação é condizente com o que propõe e Winford (2009, p. 311), para quem, em situações similares à descrita, o normal é a terceira geração mudar para a língua dominante em um determinado contexto social. Uma hipótese é a de que, tendo o Português se tornado língua da comunidade, os itens lexicais de uma coiné de base Bantu (quimbundo / quicongo / umbundo), originalmente falada pelos mais velhos, tenham sido incorporados a um código diferenciado (ÁLVAREZ LÓPEZ; JON-AND, 2017). Nesse sentido, Vogt e Fry (1996, p. 186) constatam que, no mínimo, 20% do vocabulário tem “raízes de ampla difusão nas línguas banto.” A Cupópia seria, nesse caso, o resultado de um processo descrito por Winford (2005, p. 399, tradução nossa)14 como um “empréstimo lexical sob agentividade da língua receptora”, o que pode ser comparado ao caso do anglo-romani, uma outra língua mista simbiótica (SMITH, 1994, 2000). Dessa forma, ao alternarem entre a Cupópia e o Português, a comunidade pode ter negociado uma identidade de grupo, que, nas palavras de Smith, “usa tanto a língua dominante como a sua própria língua secreta” (SMITH, 2000, p. 123, tradução nossa).15 5 Características morfossintáticas da Cupópia Nos trechos das entrevistas selecionados para a análise, a maioria dos morfemas lexicais fazem parte do vocabulário especíico da Cupópia (160 palavras), e todos os morfemas gramaticais provêm do Português. O léxico se mostra bastante produtivo, havendo expansões semânticolexicais mediadas por processos de metonímia, analogia, homonímia e uso metafórico da linguagem, além do uso de construções perifrásticas (VOGT; FRY, 1996, p. 129-134). Nos trechos analisados, a predominância de itens lexicais da Cupópia possibilita que a alternância de código entre essa língua e o Português seja identiicada com facilidade. Todos os substantivos (em um total de 306 ocorrências) identiicados nos trechos pertencem ao léxico da Cupópia.16 No que concerne aos verbos, com exceção de cópulas e formas 14 No original: lexical borrowing under RL [Recipient Language] agentivity. Uses both the dominant language and their own secret language. 16 Para estudos mais detalhados sobre o léxico da Cupópia, ver Vogt e Fry (1996) e Álvarez López e Jon-And (2017). 15 82 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 auxiliares, 80% (157 de 197 ocorrências) pertencem ao vocabulário da Cupópia, e 20%, ao do Português. Não encontramos adjetivos típicos do português nos excertos analisados, mas ocorrem alguns adjetivos da Cupópia. Os itens nani ‘pequeno, pouco, nenhum’ e vavuru ‘grande, muito’ são usados como adjetivos, advérbios e quantiicadores. Os termos vimbundo ‘negro’ e olofombe ‘branco’ aparecem como adjetivos e substantivos. Todos os advérbios, com exceção de nani e vavuru, quando usados como tais, provêm do português, sendo que dominam neste grupo os advérbios de localização temporal e espacial, como ‘hoje’, ‘agora’, ‘aqui’, ou ‘lá’. Os verbos auxiliares, cópulas, pronomes, artigos, conjunções e preposições são, em sua totalidade, formas do português, assim como todos os morfemas gramaticais desinênciais, como os de tempo, aspecto e modo (TAM). Esta seção apresenta, em primeiro lugar, a análise qualitativa de estruturas gramaticais encontradas em casos particulares (e que não são generalizadas) na Cupópia (omissão de cópula, uso da cópula em lugar do verbo possessivo e ordem das palavras incomum no português). Em seguida, é realizada uma comparação quantitativa da morfologia dos sintagmas nominais (SNs) e dos sintagmas verbais (SVs) dos trechos em Cupópia e português produzidos pelos mesmos falantes. 5.1 Omissão de cópula No material analisado, registramos casos de omissão de cópula em construções como as que se seguem: (1) nhacorucoto17 vavuro (2) nhacorocotu nani (“a minha cabeça é grande”) (“a minha cabeça é pequena”) É possível saber que as traduções dessas sentenças devem incluir a cópula ser porque as frases foram traduzidas da Cupópia para O falante que produziu os exemplos (1) e (2) airmou, por um lado, que nhacorocotu signiica ‘cabeça’ e, por outro lado, traduziu nhacorocotu vavuru como ‘a minha cabeça é grande’e, nhacorocotu nani como ‘a minha cabeça é pequena’. Com base nessa informação, não foi possível deduzir se nhacorocotu signiica ‘cabeça’ ou ‘a minha cabeça’. É possível que nha seja um preixo derivado de ‘minha’. Nha também é o pronome possessivo da primeira pessoa do singular no crioulo cabo-verdiano (BAPTISTA, 2002, p. 59). 17 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 83 o português pelo próprio falante que as produziu. A possibilidade de omissão da cópula não está presente em nenhuma sentença do português constante da mesma gravação, sendo, além disso, considerada agramatical no português brasileiro.18 Apesar de não termos encontrado exemplos de omissão da cópula no Português do Cafundó, trata-se de um fenômeno já observado em variedades do português afro-brasileiro que passaram por uma reestruturação gramatical, como no caso da variedade de Helvécia (LUCCHESI et al., 2009c, p. 93-94). Essas variedades, contudo, carecem do léxico de origem africana (com exceção, óbvio, dos africanismos que já fazem parte do português brasileiro) – ver Lucchesi et al., (2009a). A omissão da cópula, atestada em línguas pidgin e crioulas, também ocorre em variedades afro-hispânicas, como a afro-cubana, afro-dominicana, afro-panamenha, e na variedade do Vale do Chota no Equador (GREEN, 1997, p. 91; LIPSKI, 1989, p. 26; LIPSKI, 2005, p. 1; ORTIZ LÓPEZ, 1998, p. 93; SESSAREGO, 2013, p. 77). De acordo com Sharma e Rickford (2009, p. 53-54, tradução nossa),19 os estudos sobre omissão de cópula no Inglês Vernáculo Afro-americano (AAVE) e em línguas crioulas mostra que o condicionamento da ausência de cópula na segunda língua não se assemelha ao padrão do inglês vernáculo afro-americano e do crioulo. [...] Os achados sugerem que o padrão do inglês vernáculo afro-americano e do crioulo derivou de uma tendência geral na aquisição de segunda língua, e aumentam a possibilidade de que o padrão relita uma inluência de substrato compartilhado de línguas da África Ocidental ou outros fatores históricos de contato. 18 A omissão de cópula em orações absolutas só é admitida no português brasileiro na formação das chamadas small clauses livres, em que o sujeito é realizado em posposição a um predicado nominal que apresenta um caráter nitidamente avaliativo, como em Bonito, o seu cabelo e Inteligente, aquela criança. Esse não é o caso das construções da Cupópia apresentadas em (1) e (2), em que as sentenças copulares estão na ordem direta, e o predicado é descritivo, e não avaliativo. 19 Conditioning of copula absence in the second language data does not resemble the AAVE and creole pattern. […] The indings reduce the possibility that the overall AAVE/creole pattern derives from a general tendency in second language acquisition and increase the possibility that the pattern relects a shared substrate inluence from West African languages or other historical contact factors. 84 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Uma hipótese possível é que os dois casos de omissão da cópula na Cupópia possam ser explicados pelo fato de o quimbundo, a língua que mais se destaca como substrato dos itens lexicais de origem africana, normalmente não expressar o equivalente à cópula ser do Português (CHATELAIN, 1889, p. 4). Como mencionado em Winford (2009, p. 320), a omissão variável de cópula costuma ocorrer como um processo de simpliicação durante a aquisição de segunda língua. Holm (2009, p. 339), por sua vez, airma que, em casos de omissão, ‘a tendência é que as variedades parcialmente reestruturadas se tornem mais parecidas com as suas línguas de substrato’. A omissão da cópula pode ser rara em variedades do português brasileiro, mas tem sido atestada, como ressaltamos, em estágios prévios de variedades rurais afro-brasileiras (LUCCHESI et al. 2009c, p. 94), podendo, assim, tratar-se de um vestígio da aquisição espontânea do português por parte da massa de falantes de línguas africanas. 5.2 Uso de cópula em lugar do verbo possessivo Também encontramos dois casos de uso estendido de cópula em predicações possessivas, ilustrados nos exemplos 3 e 4: (3) quantos camanacu o jocorocotu tá (“quantos ilhos o velho tem”) (4) tatinha é orombongui vavurinho (“o homenzinho tem muitinho dinheiro”) Nos exemplos (3) e (4), temos as cópulas estar e ser, respectivamente. O uso de formas copulares para expressar posse não aparece nos dados analisados do português falado no Cafundó, bem como não é usual no português de um modo geral, independentemente da variedade. O uso estendido de cópulas é restrito a esses dois exemplos no material analisado e não constitui, portanto, prova de um traço categórico na Cupópia. Os dois exemplos podem, no entanto, reletir uma tendência de reestruturação na Cupópia que não se encontra no português dos mesmos falantes. É importante observar que as expressões possessivas construídas com cópulas acompanhadas de preposições (do tipo estar com) no lugar de um verbo inerentemente possessivo (como o inglês to have ou o português ter) podem ser encontradas tanto no quimbundo (CHATELAIN, 1889, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 85 p. 8) como no quicongo (TAVARES, 1915, p. 107). O uso de cópulas para a expressão da posse, ainda que sem a preposição, pode, dessa forma, ser explicado pela inluência do substrato ou pelos processos de simpliicação estrutural na aquisição espontânea de uma língua. A cópula, entretanto, não aparece junto com preposições nesses casos, diferentemente do que ocorre nas duas línguas bantas mencionadas. 5.3 Ordem não padrão das palavras A amostra da Cupópia também revela dois casos em que a ordem dos quantiicadores equivalentes aos itens ‘nada/pouco’ e ‘muito’ não segue o padrão esperado para o português. Esses exemplos contêm as palavras vavuro (‘grande’ ‘muito’) e nani (‘pequeno’, ‘pouco’, ‘um pouco’, também usado como negação e pronome indeinido negativo). Na amostra, as duas palavras aparecem em diferentes contextos e parecem incorporar propriedades de adjetivo, quantiicador ou advérbio. Os seguintes exemplos mostram os casos de ordem de palavras inesperados: (5) nani nani do orombongui nani (“nada/pouco dinheiro”) (6) tatinha é orombongui vavurinho (“o homenzinho tem dinheiro muitinho/mesmo”) No exemplo (5), nani é interpretado como ‘pouco’ ou ‘nada’, sendo repetido antes e depois do SN preposicionado ‘do dinheiro’. Essa colocação do modiicador não aparece no português do Cafundó da mesma gravação. Em português, o esperado seria que o modiicador precedesse a frase preposicional (pouco do dinheiro). A colocação do modiicador após a frase modiicada (do dinheiro pouco) não é usual. Uma interpretação possível seria aquela em que a terceira ocorrência de “nani” cumpre a função de ênfase pragmática, caso em que não seria claramente um desvio do esperado em português. No exemplo (6), consideramos duas interpretações alternativas. Por um lado, vavuro pode funcionar como um quantiicador que indica uma grande quantidade de orombongui ‘dinheiro’. Em português, o quantiicador é normalmente colocado antes do substantivo, e não depois. Por outro lado, vavuro pode ser interpretado como advérbio modiicador da frase ‘o homenzinho tem dinheiro’ e intensiicando o signiicado do verbo (o homem tem mesmo dinheiro ou o homem tem dinheiro mesmo). 86 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Para essa interpretação, a colocação do advérbio é possível em Português, em que a posição esperada seria diretamente depois do verbo ou no inal da frase. Os dois exemplos apresentados do emprego de “nani” e “vavuro” podem, como mencionado, ter interpretações alternativas que não fogem ao que se espera no português. Deve-se, no entanto, também considerar a possibilidade de esses modiicadores seguirem padrões mais livres de colocação do que os seus correspondentes em português. 5.4 Propriedades morfossintáticas no nível do SN Quanto às características morfossintáticas, analisamos algumas propriedades gerais do SN e do SV e comparamos os dados da Cupópia com o português produzido pelos mesmos falantes. Não estamos airmando que as caraterísticas em questão não ocorram em outras variedades do português; queremos dizer que não apareceram na fala das pessoas entrevistadas. As diferenças encontradas entre a Cupópia e o português nas mesmas conversas sugerem diferenças estruturais entre os dois códigos. Começando pelo SN, os traços analisados são os seguintes: concordância variável de gênero, marcação variável do plural, substantivos sem determinante na posição de sujeito e o uso de artigos deinidos em SNs preposicionais que correspondem a locuções adjetivas. O número total de SNs e SVs nos materiais não é suiciente para testar a signiicância estatística das diferenças encontradas entre a Cupópia e o português produzido pelos mesmos falantes na mesma ocasião. Contudo, consideramos relevante apresentar algumas comparações quantitativas das diferenças e semelhanças entre SNs e SVs nas duas variedades utilizadas nas entrevistas, já que as diferenças chamam a atenção. No Quadro 1, apresentamos a análise dos SNs. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 87 QUADRO 1 – Sons da Cupópia e do Português do Cafundó no corpus analisado20 CUPÓPIA 10% (4/41) dos substantivos mostram concordância de gênero variável: PORTUGUÊS do CAFUNDÓ Não encontramos concordância de gênero variável.20 (7) cuenda cupópia atrás da curima (“fala (?) cupópia atrás da festa”) (8) o curima é o curima (“a festa é a festa”) Em todos os SNs no plural (28), só o primeiro elemento leva a marca do plural: (9) cupópia pro-s tata levar (“cupópia para os homens levar”) 28% (7/25) dos substantivos na posição de sujeito não têm determinantes: 64% (7/11) dos SNs no plural levam marca de plural unicamente no primeiro elemento. Não encontramos substantivos sem determinantes na posição de sujeito. (10) camanacu tá curirano (“a criança está chorando”) Ocorrem frases preposicionais com a função de locução adjetiva, onde o substantivo é precedido de um artigo deinido, mesmo quando não é esperado para o Português: Não encontramos frases preposicionais com artigo onde não é esperado. (11) agora tem camberere do canguru (“agora tem carne de porco”) (12) tava meio ingrimado do anguara (“estava meio bêbado de cachaça”) 5.4.1 Concordância variável de gênero Apesar de não termos exemplos de concordância variável de gênero no português do Cafundó, Petter (1999, p. 112-113) apresenta exemplos desse fenômeno na mesma variedade. Também Amaral (1982, p. 70) registrou alguns casos no português ‘caipira’, falado na mesma região, no início do século 20, uma geração após a abolição da escravidão. O mesmo traço foi observado na região na década de 1970 No português há substantivos comuns de dois gêneros. Entretanto, essa classiicação feita para o português não se aplica aos casos da Cupópia aqui apresentados. 20 88 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 por Rodrigues (1974, apud LIMA, 2007, p. 161). Essa característica é também encontrada em algumas comunidades não deinidas como afro-brasileiras (LOPES; PAGOZZO, 2014; LIMA, 2007), bem como em várias comunidades rurais afro-brasileiras (BAXTER, 1998, p. 118119; BYRD, 2012, p. 177-178; CARENO, 1997, p. 90; LUCCHESI, 2009a, p. 305; PETTER; ZANONI, 2005; QUEIROZ, 1998, p. 85) e em variedades de português e espanhol faladas na África (INVERNO, 2011, p. 163-165; GONÇALVES, 1997, p. 61-62; LIPSKI, 2004; LUCCHESI 2009a, p. 305). Foi ainda observada em textos literários que reproduzem a fala de africanos falantes de espanhol e português como segunda língua (LIPSKI, 2005; ÁLVAREZ LÓPEZ; ALKMIM, 2009) e em variedades afro-hispânicas faladas na Bolívia, República Dominicana, Equador e Panamá (GREEN 1997, p. 98; LIPSKI, 1989, p. 18-20; LIPSKI, 2008, p. 20; LIPSKI, 2015, p. 109-110; SESSAREGO, 2013). 5.4.2 Concordância variável de número Nos trechos em Cupópia, a marca de plural aparece sistematicamente no primeiro elemento do SN (ver o exemplo 9 no Quadro 1). Os 28 SNs no plural contêm 2 elementos: determinante e substantivo. Em todos os casos, a marca de plural está no determinante. Os dados sugerem que os substantivos em Cupópia são morfologigamente invariáveis, já que número e gênero são marcados apenas no determinante. No português do Cafundó, a mesma estrutura, com marca de plural só no primeiro elemento do SN, é encontrada em 7 dos 11 SNs no plural. No entanto, em quatro casos, todos os elementos do SN têm a marca de plural, o que equivale à marcação padrão. A concordância variável de número ocorre em todas as variedades vernáculas do português brasileiro, embora o grau varie dependendo de fatores sociais, como nível de educação, contextos urbano ou rural, e faixa etária (BAXTER, 2009, p. 269-293; LUCCHESI, 2009b, p. 526527). Até onde sabemos, o uso categórico e invariável da marcação de plural no primeiro elemento do SN, tal como na Cupópia, ainda não foi registrado em nenhum estudo sobre variedades do português brasileiro. Cabe ressaltar, contudo, que, na maioria dos exemplos apresentados por Amaral (1982, p. 70-71), Byrd (2012, p. 176-177, 185-186), Careno (1997, p. 90) e Queiroz (1998, p. 85) sobre variedades rurais do português, a marcação de plural aparece unicamente no primeiro elemento do SN. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 89 Baxter (2009, p. 278, 293) mostra que a tendência para marcar o plural só no determinante é forte, mas não categórica no Português de Helvécia, bem como no Português dos Tongas de São Tomé, e atribui o traço à reestruturação histórica devida ao processo de aquisição espontânea da língua por parte de falantes de línguas africanas. A mesma tendência, embora menos forte, foi observada em outras variedades de Português brasileiro (GUY, 1981; SCHERRE, 1988, p. 142-241; LOPES, 2001) e Português de São Tomé (FIGUEIREDO, 2008, p. 30-32), assim como em variedades de Português moçambicano e cabo-verdiano (JON-AND, 2011, p. 99-100, 123-125). Lipski (2010, 2015, p. 111-112) registrou uma tendência para marcar o plural no determinante no Espanhol dos afro-bolivianos, afro-colombianos de Palenque, afro-equatorianos e afro-paraguaios. Lipski (2004, p. 84-87) também apresentou exemplos de marcação sistemática do plural no primeiro elemento do SN em um número de variedades afro-hispânicas e afro-portuguesas e sugeriu que essa característica tenha sido difundida por meio dos pidgins usados pelos traicantes de escravos na época colonial. De acordo com Lipski (2015, p. 111), essa marcação sistemática por meio de um suixo acrescentado ao primeiro elemento do SN não poderia ter origem nas línguas Bantu que têm preixos marcadores de classes nominais e de concordância. 5.4.3 Substantivos sem determinantes como sujeito Nas gravações analisadas, há 9 casos em que ocorrem, na Cupópia, substantivos sem determinantes na posição de sujeito (ver exemplo 10 no Quadro 1), enquanto nas demais ocorrências, que somam 42 casos, os substantivos são precedidos por determinantes, como no português padrão. No português do Cafundó, o comportamento variável não é observado, já que os substantivos que aparecem são sempre precedidos por determinantes. Os substantivos sem determinantes no singular em posição de sujeito são comuns no português afro-brasileiro (BAXTER; LOPES, 2009, p. 328) e em variedades afro-hispânicas (LIPSKI, 2005, p. 267-268, 2015, p. 112; GUTIÉRREZ-REXACH; SESSAREGO, 2011). Baxter (2002, p. 31-33) mostrou que os substantivos sem determinantes em contextos deinidos são comuns no Português dos Tongas em São Tomé e atribui esse fato à inluência do substrato Bantu. 90 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 5.4.4 Uso não esperado de artigos deinidos Observamos o uso de artigos deinidos em SNs preposicionados que formam locuções adjetivas na Cupópia (ver exemplo 11-12 no Quadro 1). O contexto indica que os substantivos são genéricos, e não especíicos, o que levaria usualmente à realização de um substantivo sem determinante em variedades do português brasileiro. Essa estrutura não foi encontrada no português do Cafundó, nem temos conhecimento de que tenha sido mencionada em estudos anteriores sobre afro-variedades de português e espanhol. É possível que a contração da preposição de com o artigo deinido o (do) tenha sido reinterpretada, em determinados casos, como uma preposição na Cupópia. No entanto, a preposição de ocorre de forma independente em outros contextos, e a contração do aparece em situações nas quais o signiicado original se mantém, o que requer uma observação mais detida, bem como estudos mais sistemáticos, para compreender melhor esse uso do artigo. 5.4.5 Marcadores de tempo, aspecto e modo No SV, os resultados não indicam um nível mais alto de reestruturação gramatical parcial (no sentido de HOLM, 200921) na Cupópia, em comparação com o português do Cafundó. A Cupópia compartilha todas as lexões verbais de TAM do português brasileiro, como mostram os exemplos (14)-(19) na Tabela 4. Não há contextos nos quais a lexão de TAM seja omitida no corpus. Os resultados mostram que os verbos da Cupópia apresentam lexões morfológicas, em contraste com o que se observa entre os substantivos, que são aparentemente invariáveis. Para TAM, a Cupópia e o português do Cafundó apresentam o mesmo comportamento que o português brasileiro padrão. A comparação entre as características do SV na Cupópia e no português do Cafundó é sistematizada no Quadro 2. 21 Holm refere-se a reduções morfossintáticas como, por exemplo, a perda de morfologia verbal e nominal e a ausência de cópula. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 91 QUADRO 2 – Svs da Cupópia e do Português do Cafundó no corpus CUPÓPIA Flexões verbais para TAM. PORTUGUÊS do CAFUNDÓ Flexões verbais para TAM. (13) cuendei o tata (“Fiz (alguma coisa?) ao homem”) (14) já cuendava o cambererá (“já pegava(?) a carne”) (15) coçumbou a cupópia na ambara (“ouviu Cupópia na cidade”) (16) o tata vimbundo tá coçumbando (“o homem negro está ouvindo”) (17) queria que eu picopiasse (“queria que eu falasse”) 79% (33/42) de aplicação da regra padrão de concordância sujeito-verbo. 79% (167/212) de aplicação da regra padrão de concordância sujeito-verbo. (18) cupopiamo vavuru (“falamos muito”) (19) nós chega lá no injó (“chegamos lá na casa”) Para a concordância sujeito-verbo, encontramos variação tanto na Cupópia como no Português do Cafundó. Em 9/42 casos com verbos nos quais o sujeito é explícito ou pode ser inferido pelo contexto, o verbo não concorda com o sujeito. O padrão de concordância variável sujeito-verbo, tanto na Cupópia quanto no Português do Cafundó, parece ter sido comum no Português Caipira estudado por Amaral em 1920 (ver AMARAL, 1982, p. 72-73). Padrões semelhantes foram observados em variedades afrolatinas (BYRD, 2012, p. 188; CARENO, 1997, p. 91; LIPSKI, 2005, p. 253; QUEIROZ, 1998, p. 83) e variedades informais de português brasileiro e africano (LIPSKI, 2004, p. 87-88, 2015, p. 110). Conforme os estudos quantitativos sobre o português afro-brasileiro e comunidades rurais isoladas, a porcentagem de aplicação da regra de concordância é 13% para as mulheres e 19% para os homens (LUCCHESI et al., 2009b, p. 358). A Cupópia e o Português do Cafundó mostram uma percentagem muito mais alta de aplicação da regra de concordância (79%) do que variedades que não têm um léxico especíico de origem 92 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 africana como as descritas em Lucchesi et al. (2009a). Esse resultado está em linha com a porcentagem de aplicação da mesma regra no português brasileiro falado no Rio de Janeiro (BRANDÃO; VIEIRA, 2012, p. 24). A correspondência exata da percentagem de concordância verbal em ambas as variedades pode ser uma coincidência devida ao número limitado de SVs analisados. O que se pode constatar, considerando o nível semelhante de concordância verbal, é que, no tocante ao SV, não foi encontrada nenhuma indicação de níveis diferentes de reestruturação entre o português e a Cupópia. A análise do material ao qual temos acesso sugere que os falantes produzem padrões gramaticais diferentes na Cupópia e no Português do Cafundó. A tendência encontrada sugere um nível mais alto de reestruturação na Cupópia. Algumas das características encontradas (concordância variável, nomes nus, omissão de cópula, uso estendido de cópula) podem ser resultados da inluência das estruturas das línguas Bantu que contribuíram para o léxico da Cupópia. Entretanto, as mesmas características também podem ser explicadas por meio de mecanismos de simpliicação devido à aquisição espontânea de uma segunda língua pelos ancestrais dos falantes da Cupópia, como “Input da língua alvo, inluência da L1, processos de simpliicação, e mudanças desencadeadas pela deriva interna” (cf. WINFORD, 2009, p. 317-318, tradução nossa).22 Os padrões de concordância no SN da Cupópia são semelhantes aos estágios prévios do Português Caipira documentado por Amaral (1982) no início do século 20. Em consequência, Petter (1999, p. 101) sugeriu que se tratava de uma variedade semelhante ao Português Caipira descrito por esse autor. As características gramaticais especíicas observadas no Português Caipira podem ser explicadas como o resultado de aquisição espontânea da língua portuguesa por parte dos falantes das línguas Bantu que foram introduzidos nessa região e por seus descendentes. Observou-se ainda um nível mais elevado de reestruturação no SN da Cupópia que no SN do Português do Cafundó para todos os aspectos analisados (concordância variável de gênero e número e substantivos sem determinantes em contextos específicos). Contrariamente ao que foi observado para o SN, o SV da Cupópia parece apresentar um comportamento semelhante ao do SV do Português do Cafundó, com TL [target language] input, L1 inluence, processes of simpliication, and internally driven changes. 22 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 93 as mesmas lexões verbais e a mesma variação na concordância, o que corresponde ao esperado para variedades vernáculas do português brasileiro. A quantidade limitada de dados não nos permite chegar a conclusões deinitivas em relação à estrutura da Cupópia. Contudo, as tendências observadas são suicientemente consistentes para que os resultados apresentados neste trabalho possam contribuir tanto na descrição quanto nos debates sobre a sua origem. A Cupópia compartilha a maioria das suas características com variedades africanas e latino-americanas de Português e Espanhol, aí incluído o Português Caipira descrito por Amaral (1920). Por sua vez, o Português do Cafundó se inclui entre as variedades vernáculas do português brasileiro e, dessa perspectiva, parece estar se tornando uma variedade menos reestruturada do que era no século 20 (cf. ÁLVAREZ LÓPEZ; JON-AND, 2017). 6 Considerações inais O presente artigo mostra que a Cupópia apresenta padrões estruturais possivelmente induzidos pelo contato que compartilha com variedades do português regional faladas na época em que ex-escravos nascidos na África ainda viviam ali. Além disso, a análise morfossintática do material sugere que a Cupópia é estruturalmente diferente do Português falado pelos mesmos falantes e que as diferenças se concentram no SN, o que talvez fosse esperado já que a maioria das palavras são substantivos. O nível de reestruturação parece ser mais elevado do que é esperado para a maioria das variedades de contato afro-latinas, e, no caso da omissão da cópula, observou-se que há semelhanças com pidgins e crioulos. Entretanto, o grau de aplicação das regras de concordância do padrão no SV é mais elevado do que o atestado em outras variedades de português afro-brasileiro. Em soma, há pelo menos três explicações possíveis para o grau elevado de reestruturação observada na Cupópia em comparação com o Português do Cafundó. Em primeiro lugar, a reestruturação pode ser uma herança direta das estruturas observadas no Português Caipira do início do século 20. Não obstante, essa hipótese não explica todas as particularidades observadas, visto que a Cupópia e o Português Caipira não parecem compartilhar todos os traços que os distinguem do Português 94 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 brasileiro varnáculo. Ao mesmo tempo, o Português do Cafundó falado pelos mesmos indivíduos está mais perto das variedades varnáculas do que a Cupópia. A pergunta é: por que os SNs da Cupópia não mudam na direção das variedades varnáculas com as quais a língua tem uma relação simbiótica, já que os SVs parecem estar se encaixando no paradigma do português vernáculo? Em segundo lugar, existe a possibilidade de que a reestruturação gramatical tenha ocorrido em um processo intenso de empréstimos por parte de falantes que não falavam luentemente a(s) língua(s) fonte(s) da(s) qual( quais) a Cupópia teria emergido (como Kimbundu, Kikongo, Umbundu), porém, é difícil provar isso, já que não existem registros históricos da Cupópia.23 Em terceiro lugar, existe a possibilidade de a reestruturação gramatical ser o resultado de um grau de flexibilidade mais alto, característico das línguas mistas simbióticas. Winford (2005, p. 386, tradução nossa)24 airma que “certas inovações estruturais na língua receptora parecem ser mediadas por empréstimos léxicos”. Ainda assim, Winford não fornece uma explicação detalhada de como os empréstimos lexicais medeiam essa reestruturação. Uma maneira de explicar esse processo seria comparar a Cupópia com uma língua que apresenta características lexicais e gramaticais similares, por exemplo, o angloromani. O anglo-romani se destaca pelo uso de um repertório lexical de origens ancestrais (o romani), inseridos na estrutura gramatical da língua maioritária da sociedade e do grupo (o inglês). O anglo-romani, similarmente às nossas observações sobre Cupópia e o português, apresenta omissões e reduções gramaticais que não são estruturalmente compatíveis com o inglês produzido pelos mesmos falantes (MATRAS et al., 2007, p. 172). Isso é exempliicado, entre outras coisas, pela omissão do artigo deinido: 23 Certain structural innovations in a RL [Recipient Language] appear to be mediated by lexical borrowing. 24 Angloromani allows greater lexibility in the omission of overt indications that information is contextually highly retrievable. […] We suggest that the relative ease with which overt indication of contextually retrievable information […] is omitted in Angloromani is indeed connected to the conversational functions of Angloromani, and thus to the attitudes surrounding it. It is not primarily a means of conveying propositional content, but is rather a means of emphasizing the emotive aspects of the message. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 95 Kekka pen dovva, rakli’s trash! ‘Don’t say that, [the] girl’s scared!’ (MATRAS et al., 2007, p. 173) Matraset al. (2007) chamam a atenção para o fato de que, em comparação com o inglês padrão, o anglo-romani é mais lexível: O Angloromani permite uma maior flexibilidade na omissão de indícios abertos de que a informação é altamente recuperável no contexto. [...] Sugerimos que a relativa facilidade com que a indicação aberta de informações recuperáveis contextualmente [...] é omitida em Angloromani está realmente conectada às funções conversacionais do Angloromani e, portanto, às atitudes em torno dela. Não é principalmente um meio de transmitir conteúdo proposicional, mas sim uma forma de enfatizar os aspectos emotivos da mensagem. (MATRAS et al., 2007, p.173, tradução nossa).25 As observações apresentadas no presente estudo sugerem, de certa forma, essa terceira possibilidade, já que a comparação com o angloromani parece relevante, considerando as semelhanças observadas entre essa língua e a Cupópia no que concerne às suas estruturas lexicais e gramaticais, bem como às suas origens. O SN da Cupópia é mais parecido com o Português Afro-brasileiro que com outras variedades de possíveis línguas simbióticas com léxico de origem africana no Brasil. Não conseguimos, com base nas circunstâncias demográicas, explicar por que uma língua mista simbiótica surgiu nessa comunidade e não em outras comunidades similares no Brasil. Acreditamos que a emergência e a manutenção da Cupópia podem ter sido motivadas pelas intenções e negociações de identidade dos falantes afrodescendentes que usavam predominantemente o português. Finalmente, consideramos que as três explicações são possíveis e que não se excluem mutuamente. Angloromani allows greater lexibility in the omission of overt indications that information is contextually highly retrievable. […] We suggest that the relative ease with which overt indication of contextually retrievable information […] is omitted in Angloromani is indeed connected to the conversational functions of Angloromani, and thus to the attitudes surrounding it. It is not primarily a means of conveying propositional content, but is rather a means of emphasizing the emotive aspects of the message 25 96 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 73-101, 2018 Referências ACETO, M. Variation in a secret creole language of Panama. Language in Society, Cambridge University Press, n. 24, p. 537-560, 1995. ÁLVAREZ LÓPEZ, L. A língua de Camões com Iemanjá: forma e funções da linguagem do candomblé. 2004. 228f. Dissertation (Doctoral) – Stockholm University, Stockholm, 2004. ÁLVAREZ LÓPEZ, L.; ALKMIM, T. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Áreas lexicais no Centro-Sul do Brasil sob uma perspectiva geolinguística Lexical areas in Central-South of Brazil under a Geolinguistic Perspective Valter Pereira Romano Universidade Federal de Lavras, Lavras, Minas Gerais / Brasil valter.pereira.romano@gmail.com Resumo: Este trabalho apresenta resultados principais de uma pesquisa que visa discutir, sob o ponto de vista lexical, a divisão dialetal proposta por Antenor Nascentes (1953) no que tange à área geográica denominada pelo estudioso como subfalar sulista. Foram adotados os procedimentos teóricos e metodológicos da Dialetologia e da Geolinguística e, como corpus de análise, utilizados os dados do Projeto Atlas Linguístico do Brasil, correspondentes a 118 municípios brasileiros, totalizando 472 informantes. Quatro questões do Questionário Semântico-Lexical (QSL) foram selecionadas para validar a hipótese de que a área geográica investigada é heterogênea linguisticamente. Com base na observação do comportamento diatópico de algumas variantes lexicais, conclui-se que a porção setentrional do território investigado apresenta diferenças em relação à parte meridional, evidenciando a existência de dois possíveis falares: o paulista e o sulista. Palavras-chave: Projeto ALiB; subfalar sulista; variação lexical. Abstract: This work presents the main results of a research that aims to discuss, under the lexical perspective, the dialectal division proposed by Antenor Nascentes (1953) with regard to the geographical area called by the scholar as sulista subspeech. The theoretical and methodological assumptions of Dialectology and Geolinguistics were adopted and eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.103-145 104 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 the analytical corpus used was the data of the Linguistic Atlas Project of Brazil corresponding to 118 Brazilian municipalities, totaling 472 informants. Four questions from the Lexical-Semantic Questionnaire were selected to validate the hypothesis that the geographical area investigated is linguistically heterogeneous. From the observation of the diatopical behavior of some lexical variants, it is concluded that the northern portion of the territory investigated presents differences in relation to the southern part, showing the existence of two types of speech: the paulista and the sulista. Keywords: ALiB Project; Sulista subspeech; Lexical variation. Recebido em 26 de setembro de 2016. Aprovado em 24 de abril de 2017. 1 Introdução Os trabalhos de natureza geolinguística buscam, entre outros objetivos, apresentar dados que comprovem ou não a existência de áreas dialetais em determinado território, uma vez que os dados linguísticos coletados empiricamente são registrados em “mapas especiais” (COSERIU, 1987). Embora Amadeu Amaral, em 1920, já chamasse a atenção para a necessidade de trabalhos empíricos com a inalidade de retratar “com segurança quais os caracteres gerais do dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros” (AMARAL, 1981, p. 44), as tentativas de divisão e sistematização de tais ‘dialetos’ vieram a se consolidar na obra O linguajar Carioca, de Antenor Nascentes (1953), transformando-se na clássica divisão dialetal do Português Brasileiro (PB), que até hoje é referenciada, embora apresente algumas inconsistências. Este trabalho visa discutir a divisão dialetal de Nascentes (1953) no que se refere à área geográica designada pelo dialetólogo como subfalar sulista de forma a contribuir para uma possível redeinição dessa divisão sob uma perspectiva lexical. Parte-se do pressuposto de que a área geográica estudada, atualmente, não apresenta homogeneidade lexical; há variantes típicas de determinadas áreas que evidenciam traços dos processos de povoamento e ocupação humana. O estudo justiica-se pela necessidade de (i) descrever Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 105 a realidade do PB pautando-se em dados empíricos; (ii) preencher a lacuna existente, na Geolinguística, com um trabalho sistemático de uma área não contemplada por atlas linguísticos regionais e estaduais em sua totalidade e (iii) comparar dados da língua oral de estados pertencentes a regiões administrativas diferentes. Dessa forma, torna-se possível comparar dados da língua falada no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, o que revela semelhanças e diferenças entre as regiões, bem como alguns traços linguísticos que deinem e caracterizam cada um dos estados, evidenciando áreas lexicais que extrapolam os limites administrativos das unidades federativas em questão. 2 Léxico e variação diatópica do PB A variação diatópica do PB é uma realidade comprovada empiricamente pelos inúmeros trabalhos dialetológicos e geolinguísticos e subjaz aos demais tipos de variação. Considerando-se a extensão territorial do Brasil e os diferentes ‘brasis’ que surgiram em decorrência do processo de ocupação e povoamento do território (RIBEIRO, 2006), a diversidade diatópica do PB tem-se revelado como um traço característico dessa língua, principalmente no que se refere ao léxico, e a sua descrição e análise tem sido empreendida sob diferentes perspectivas e aportes teóricos. No que se refere às abordagens dialetais e geolinguísticas, os dados coletados para a elaboração do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) têm contribuído para a descrição do léxico das diferentes regiões do país. Nessa seara, os trabalhos mais recentes são os de Freitas-Marins (2012), Ribeiro (2012), Razky (2013), Portilho (2013), Romano e Aguilera (2014), Romano e Seabra (2014a, 2014b), Romano (2015), D’Anunciação (2016), Santos (2016), Romano e Seabra (2017), entre outros. Esses trabalhos destacam as diferenças regionais, ora conirmando a proposta de divisão de Nascentes (1953), sob a perspectiva lexical, ora evidenciando particularidades que caracterizam cada região, sobretudo por inluências sócio-históricas do processo de ocupação e povoamento. 2.1 Áreas dialetais do PB Na segunda edição da obra O linguajar carioca (1953), Nascentes discute as primeiras propostas de divisão dialetal que remontam o ano de 1881, como a de Julio Ribeiro. Revisitando outras propostas e fazendo 106 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 ponderações àquelas que sugeriram na primeira edição de seu livro (1922), o autor reformula seu mapa dialetal do Brasil justiicando que Hoje que já realizei o meu ardente desejo de percorrer todo o Brasil, do Oiapoc ao Xuí, de Recife a Cuiabá, iz nova divisão que não considero nem posso considerar deinitiva, mas, sim, um tanto próxima da verdade. (NASCENTES, 1953, p. 24) Em 1953, o estudioso apresenta um novo mapa dialetológico. Com base em critérios prosódicos e fonéticos – a cadência e a abertura das vogais médias ([e] / [o]) em posição pretônica, como em p[e]cado/p[E] cado e c[o]ração/c[]ração – Nascentes divide o PB em seis subfalares, compreendidos em dois grandes grupos, o do Norte e o do Sul (FIG. 1). FIGURA 1 – Divisão dialetal de Nascentes (1953) Fonte: Nascentes (1953) O falar do Norte engloba o subfalar amazônico e nordestino, e o falar do Sul contempla o subfalar baiano, intermediário entre os dois Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 107 grupos, o luminense, o mineiro e o sulista. Soma-se a esse conjunto uma área considerada como Território Incaracterístico que, na época, era praticamente despovoado. Essa proposta sedimentou-se entre os dialetólogos, tornando-se a clássica divisão do PB, conirmada em trabalhos como os de Cardoso (1986; 1999) sob a perspectiva fonética. Todavia, trabalhos recentes discutem essa divisão, sob o ponto de vista lexical. Ribeiro (2012), por exemplo, estudou o subfalar baiano; Portilho (2013), o amazônico; Romano (2015), o subfalar sulista; e Santos (2016), o luminense. Essas pesquisas atestam o fato de que esses falares não se limitam à faixa territorial estabelecida por Nascentes, mas adentram a outras áreas. Ao fazer uma retrospectiva das divisões dialetais, já em 2006, Mota (2006) ressaltara que não fora proposta uma nova divisão, mesmo havendo um substancial avanço dos estudos dialetológicos e geolinguísticos, principalmente, em razão da diiculdade de intercomparação entre os dados dos atlas estaduais e regionais por motivos de ordem metodológica e temporal. Para a autora, faz-se necessário maior conhecimento das áreas dialetais brasileiras, “especialmente daquelas que ainda não dispõem de atlas regionais assim como de uma amostra atualizada, recolhida simultaneamente, com mesma metodologia e sob coordenação geral em todo o País” (MOTA, 2006, p. 351). Nesse sentido, atualmente, os dados coletados para o Projeto ALiB podem contribuir para uma nova proposta de divisão dialetal cientiicamente justiicável. Partindo do prognóstico de Mota (2006) sobre a importância do Projeto ALiB para a delimitação de áreas dialetais do PB, encontramse, atualmente, inúmeros trabalhos com base no corpus do Projeto. Esta pesquisa vem contribuir ao desenvolvimento do Projeto ALiB, pois traz uma análise sistemática de dados de uma extensa área geográica que compreende o denominado subfalar sulista. 3 Materiais e Métodos O corpus analisado refere-se aos dados inéditos coletados pela equipe do Projeto em 118 cidades. Em cada uma das localidades, foram entrevistados quatro informantes, dois homens e duas mulheres, pertencentes a duas faixas etárias: Faixa I, de 18 a 30 anos, e Faixa II, 108 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 de 50 a 65 anos, naturais da localidade e tendo o ensino fundamental (completo ou incompleto) como grau máximo de escolaridade.1 A área investigada desta pesquisa contempla localidades de nove estados: Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC), Paraná (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Minas Gerais (MG), Goiás (GO), Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS). Ela se difere da exata área demarcada por Nascentes, pois a diiculdade em trabalhar com o mapa de Nascentes (1953) (Figura 1) foi a imprecisão e a falta de detalhes nos limites geográicos estabelecidos pelo autor para a delimitação de cada subfalar. Sobre os limites do subfalar sulista, o autor descreve que compreendem os estados de SP, PR, SC, RS, MG, GO e MT, não apresentando mais especiicações sobre esses limites. Vale notar que a imagem do mapa do Brasil subdividido em falares não apresenta elementos geográicos que subsidiem a precisão das fronteiras dos subfalares. Desse modo, depois de criterioso estudo do mapa de Nascentes (1953) e a distribuição da rede de pontos do ALiB por meio do georreferenciamento, chegou-se a um mapa parecido ao do autor, no que tange à área geográica do subfalar sulista. Além dessa área, foram considerados pontos linguísticos adjacentes aos limites desse subfalar, denominados “pontos de controle”, como já o izeram Ribeiro (2012) e Portilho (2013). A rede de pontos do subfalar sulista compõe-se de 108 localidades, às quais foram acrescentados 10 pontos, pois se considera importante veriicar a fronteira desse subfalar com os outros subfalares (mineiro e luminense) e também com o território incaracterístico. Assim, foram incluídas para o estudo duas cidades luminenses – ponto 205 (Barra Mansa) e 206 – Parati; quatro cidades mineiras: 130 (Unaí), 132 (Pirapora), 141 (Formiga) e 145 (São João Del Rei); duas cidades goianas: 118 (Porangatu) e 121 (Formosa) e duas cidades mato-grossenses: 103 (Aripuanã) e 104 (São Félix do Araguaia). Em sua totalidade, o estudo engloba nove localidades mato-grossenses, seis sul-mato-grossenses, oito localidades goianas, duas luminenses, 11 municípios mineiros, 38 1 Nas capitais, foram entrevistados, além de informantes de nível fundamental, quatro informantes de nível superior. Considerando-se os objetivos desta pesquisa, os dados dos informantes de nível superior não foram considerados. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 109 cidades paulistas, 17 paranaenses, 10 localidades catarinenses e, por im, 17 cidades gaúchas2. Foram selecionadas questões que evidenciam diversidade de formas lexicais, que podem apresentar variantes diatópicas que possibilitem o traçado de isoglossas e que revelem áreas lexicais no território investigado. Compreende-se por isoglossa a linha virtual que marca limites também virtuais de formas e expressões linguísticas em determinada área geográica (FERREIRA; CARDOSO, 1994). Como este trabalho se refere ao nível lexical, optou-se pelo termo isoléxica (mesmo léxico) para denominar as linhas virtuais que evidenciam áreas em que há a ocorrência de duas variantes ou de uma forma lexical em relação à ausência de variante. Por extensão ao conceito de heteroglossa, proposto por Chambers e Trudgill (1994), optou-se pelo termo heteroléxica (léxico diferente), para denominar as linhas que delimitam áreas de coocorrência de duas variantes. Reconhece-se, todavia, que os limites geográicos que deinem a abrangência de uma variante em detrimento de outra são luidos, sobretudo pela natureza dos dados em análise. Desse modo, entende-se que as linhas de isoléxicas e heteroléxicas revelam a “arealidade” de determinada variante, neologismo aqui utilizado para denominar a distribuição espacial ou areal de uma forma linguística. Neste artigo, são analisados os dados das seguintes questões do Questionário Semântico-Lexical (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB, 2001): • Questão 001 – Córrego – “Como se chama um rio pequeno, de uns dois metros de largura?”, da área semântica Acidentes geográicos; • Questão 132 – Menino – “Criança pequenininha, a gente diz que é bebê. E quando ela tem de 5 a 10 anos, do sexo masculino?”, da área Ciclos da vida; • Questão 156 – Bolinha de gude – “Como se chamam as coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar?”, da área Jogos e diversões infantis; • Questão 177 – Geleia – “Como se chama a pasta feita de frutas para passar no pão, biscoito?”, da área semântica Alimentação e cozinha. A rede de pontos linguísticos do Projeto ALiB é identiicada por números. A lista completa está disponível no site: https://alib.ufba.br/sites/alib.ufba.br/iles/rede_de_ pontos_pdf 2 110 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Esses dados foram coletados do corpus mediante consulta às transcrições/revisões e às gravações em áudio. O corpus passou pelo processo de revisão e posterior armazenamento no banco de dados do software desenvolvido para agilizar o processo de geração de relatórios e de cartografia linguística, o [SGVCLin] (ROMANO; SEABRA; OLIVEIRA, 2014). 4 Análise dos dados Nesta seção, apresentam-se a descrição e análise das variantes registradas para as quatro questões supramencionadas. Cada questão apresenta especiicidades tratadas individualmente, seja com a criação de rótulos para alguns itens, seja com agrupamento de variantes quando necessário. A discussão atém-se à distribuição diatópica de algumas variantes com vistas a discutir as áreas lexicais. A validade de uma forma lexical considerada ou não como um designativo para o referente foi pautada nas acepções constantes dos dois principais dicionários da língua portuguesa, Houaiss e Villar (2001) e Ferreira (2004), e na descrição do informante, quando questionado sobre tal designativo. Quanto à etimologia de alguns vocábulos, recorreu-se ao Dicionário Etimológico de Cunha (2010) e ao Dicionário da Real Academia Espanhola (2001). 4.1 Córrego A questão 001 do QSL busca obter as variantes lexicais para “o rio pequeno de dois metros de largura”. Foram documentados 644 registros, distribuídos em 25 formas. Diante desse polimorismo, foi necessária a criação de alguns rótulos bem como o agrupamento de variantes. Os rótulos, criados com a inalidade de facilitar a compreensão e descrição dos dados, enquadram-se em três categorias: • “sugestão na pergunta”: agrupa formas lexicais cujo sema já está expresso na formulação da questão, por exemplo, as variantes rio, rio pequeno, rio estreito e rio raso. • “formas inadequadas”: contempla os itens lexicais que, apesar de terem traços semânticos comuns ao referente, não designam, especiicamente, o item buscado, como ocorre em lagoa, lago, poço, açude. Essas variantes denominam outro referente, que tem como traço característico a presença de água represada. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 111 • Sob o rótulo “formas pouco produtivas” estão englobadas as hápax legomena: bocaina, braço de rio e lajeado que, tanto em Houaiss e Villar (2001) quanto em Ferreira (2004), iguram com pelo menos uma acepção análoga ao referente córrego. Além dos rótulos criados, foram necessários agrupamentos de variantes morfofonêmicas,3 como é o caso de itens em que houve i. redução da proparoxítona (córrego > corgo); ii. formas no diminutivo (corgo > corguinho; riacho > riachinho/ riachozinho; sanga > sanguinha, rego > reguinho, valeta > valetinha) iii. formas que apresentam o mesmo radical (valo, vala, valão) iv. formas compostas (rego d’água > rego). No caso das variantes de valeta, foram feitos os agrupamentos considerando-se os critérios (ii) e (iii); para as variantes de rego, consideraram-se os critérios (ii) e (iv). Realizados os devidos agrupamentos, os 644 registros estão distribuídos em 14 itens. As cinco variantes mais produtivas são: córrego e suas variantes morfofonêmicas (261 ocorrências – 40,53%), riacho e variantes (122 ocorrências – 18,94%), riozinho (82 – 12,73%), ribeirão (38 ocorrências – 5,9%) e sanga/sanguinha, com 37 registros (5,75%), representando, juntas, 83,85% das respostas. Seguem-se a essas formas os itens valeta e variantes (26 ocorrências – 4,04%). As formas contempladas sob o rótulo “sugestão na pergunta” (rio, rio pequeno, rio estreito e rio raso) apresentam 21 registros (3,26% do corpus). A variante arroio igura com 19 ocorrências (2,95%), e rego obtém 17 registros (2,64%). Com menor índice, encontram-se oito “respostas inadequadas” (lago, lagoa, açude e poço). A variante corixo obteve apenas cinco registros, representando 0,78% do corpus. Ainda em menor produtividade, Carreter (2008, p. 281), acerca das variantes morfofonêmicas, airma que “los fonólogos han propuesto este término para designar ‘la idea compleja de todos los miembros (dos o más) de uma alternância. Así, en la alternancia que se produce en las formas alemanas geben-gab-gib, las vocales e, a, i (llamadas alternantes) constituen uno morfofonema.” 3 112 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 encontram-se canal (0,47%), grota d’água (0,31%) e as hapax legomena (bocaina, braço do rio e lajeado) que, sob o rótulo “formas pouco produtivas”, representam juntas 0,47%4. A Figura 2 apresenta a distribuição diatópica de seis das 14 formas. Embora o [SGVCLin] possibilite a cartografia de até 10 variantes, com a inalidade de facilitar a visualização, optou-se por representar cartograicamente as seis formas mais produtivas, para evitar o comprometimento na distinção das cores. As demais variantes estão agrupadas no item outras, representadas pela cor cinza. Esse item da legenda contempla o rótulo sugestão na pergunta, rego, arroio, formas inadequadas, canal, grota d’água e as hápax legomena: bocaina, braço de rio e lajeado. Há uma concentração da variante córrego com suas variantes morfofonêmicas em localidades situadas no estado de SP (não ocorrendo em cinco dos 38 pontos paulistas), e sua presença é registrada em todos os pontos selecionados no RJ, MG, MS, MT e GO (FIG. 2). À medida que se avança no sentido meridional, córrego vai perdendo produtividade, dando espaço para variantes regionais como valeta, sanga e arroio. A carta de a realidade gradual de córrego (FIG. 3) ilustra a distribuição do item considerando-se a produtividade por ponto linguístico. Observa-se que essa forma lexical, embora esteja amplamente difundida pelo território, com exceção do RS, apresenta variações quanto à produtividade na rede de pontos, sendo representativa, sobretudo, em grande parte do território do Centro-Oeste e no Triângulo Mineiro, onde a produtividade chega a 100% de incidência. Por outro lado, em SP há uma oscilação entre os índices de 75% a 25%, e à medida que adentra os estados da região Sul, sobretudo a partir do centro-sul do PR, o índice de representatividade não passa de 50%. Há, portanto, um comportamento heterogêneo de córrego no território do subfalar sulista. 4 Neste artigo, a análise restringe-se ao comportamento diatópico das variantes: córrego, sanga e arroio. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 113 FIGURA 2 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 001 do QSL Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) A variante sanga é a quinta mais produtiva entre os informantes (37 ocorrências), equivalendo a 5,75% do corpus. Apresenta-se em quatro dos nove estados que compõem a pesquisa: MS, PR, SC e RS, com diferentes índices de produtividade. A variante é mais produtiva no RS, onde obtém 27,91% de representatividade (24 ocorrências). No PR, sanga apresenta 10 ocorrências (9,17%) e, com menor produtividade, encontra-se em SC, com apenas dois registros (3,82%). No MS, há somente uma ocorrência (3,03%). A distribuição de sanga permite o traçado de uma isoléxica (FIG. 4) que contempla grande parte do território do RS, com exceção da faixa leste do estado (ponto 243 – Porto Alegre, 244 – Osório e 249 – São José do Norte). Essa área passa por uma localidade catarinense – ponto 229 (Concórdia), até chegar ao sudoeste paranaense (pontos 223 – Barracão e 217 – São Miguel do Iguaçu). Embora não prossiga numa faixa contínua, sanga ocorre também em uma localidade sul-mato-grossense – ponto 117 – (Ponta Porã). No PR, sanga forma uma segunda área lexical 114 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 (no sentido transversal do Estado) percorrendo um feixe do noroeste em direção ao sudeste e englobando quatro localidades: 212 – Campo Mourão, 213 – Cândido de Abreu, 218 – Imbituva e 222 – Lapa. Essas duas áreas de ocorrência podem evidenciar traços da história social da região, sobretudo ao se associar esse fato linguístico ao caminho dos tropeiros, nos séculos XVIII e XIX (ROCHE, 1969). FIGURA 3 – Arealidade gradual da variante córrego Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Retomando-se aspectos históricos sobre o povoamento da região Sul, sabe-se que o Tropeirismo consistiu em um importante movimento econômico e de ocupação humana que contribuiu para o surgimento de inúmeras cidades (ALMEIDA, 1981). Sabe-se ainda que as tropas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 115 eram constituídas, em sua maioria, por gaúchos, paulistas, mamelucos e castelhanos, que deixaram traços de sua cultura por onde passaram. A ocorrência de sanga nesta região do subfalar sulista (oeste de SC e sudoeste paranaense) coincide com uma das rotas dos tropeiros (o Caminho das Missões), aberto no século XIX, depois de expulsos os jesuítas. Abandona-se o traçado que cortava o Rio Grande transversalmente (Uruguaiana, Alegrete, Viamão, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Bom Jesus, Vacaria), adotando-se o traçado São Borja, Santo Ângelo, Cruz Alta, Carazinho, Passo Fundo, Lagoa Vermelha, Vacaria. Com exceção das duas primeiras que já existiam como povoações missioneiras, as demais citadas surgiram como consequência do novo traçado que icou conhecido como o Caminho das Missões [...]. (BRUM apud ROCHA, 2008, p. 61) FIGURA 4 – Arealidade gradual da variante sanga Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) 116 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Ferreira (2004), na primeira entrada do verbete sanga para designar “um pequeno regato que seca facilmente”, traz o vocábulo como um brasileirismo do RS e de SC cuja etimologia remete ao espanhol platino zanja. Contudo, tanto em Ferreira (2004) quanto em Houaiss e Villar (2001), há a indicação de outra possível origem etimológica para o vocábulo, podendo sanga ter vindo do quicongo ou do quimbundo, dizanga. É interessante notar que, apesar de o termo ter duas possibilidades etimológicas e indicar sua presença na história da língua portuguesa desde tempos seculares, a distribuição diatópica do item sanga no corpus investigado parece revelar traços do contato linguístico do português com o espanhol e acompanha o processo de movimentação interna dos gaúchos rumo aos estados de SC e PR. Os dados do Projeto ALiB têm mostrado que sanga não se restringe ao RS e à SC, mas adentra o PR, ocorrendo, inclusive, em pontos de passagem de outras rotas dos tropeiros, como em Lapa (ponto 222), situada no antigo Caminho de Viamão. Cabe notar que, apesar de no corpus do Projeto ALiB encontrar-se o registro de uma ocorrência de sanga no ponto 117 – Ponta Porã, no Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul (OLIVEIRA, 2007) e no Atlas Linguístico do Município de Ponta Porã (REIS, 2006), não se documenta tal variante, o que não possibilita airmar, por ora, a inluência de gaúchos nessa localidade do MS, pelo menos no que se refere ao uso de sanga. O Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), na carta 163, apresenta as isoléxicas das variantes para o “rio pequeno”, e, no que se refere à variante sanga, nota-se que essa forma lexical ocorre, principalmente em localidades do sudoeste paranaense, além de outros pontos em que coocorre com outra variante. O Atlas Linguístico Etnográico da Região Sul do Brasil (ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011) apresenta a uma carta linguística que documenta as variantes lexicais para o “rio pequeno”, com destaque ao item sanga, evidenciando que a forma se registra em localidades do sudoeste paranaense, além de algumas ocorrências no centro do estado, embora com menor representatividade da que se encontra no corpus do ALPR e do Projeto ALiB. Outra variante que também pode evidenciar traços da sóciohistória da região Sul é a variante arroio (FIG. 5), apresentando-se com 19 registros (2,95% do corpus) distribuídos nos três estados da Região Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 117 Sul: RS (12 ocorrências – 13,95%), SC (uma ocorrência – 1,96%) e PR (seis ocorrências – 5,5%). FIGURA 5 – Arealidade gradual da variante arroio Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Assim como sanga, arroio é uma palavra de origem hispânica (HOUAISS; VILLAR, 2001), procedente do latim vulgar arrugiu, no sentido de “pequeno curso d’água permanente ou não” (FERREIRA, 2004). Observando a área de ocorrência dessa variante na Região Sul, veriicam-se novamente as marcas deixadas no léxico pelo movimento dos gaúchos rumo ao PR, possivelmente durante o ciclo do Tropeirismo e, posteriormente, da reimigração gaúcha de descendentes alemães, eslavos e italianos (ROCHE, 1969). 118 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Arroio é uma forma que ocorre no extremo sul do país – ponto 250 (Chuí) – fronteira com o Uruguai, atravessando o interior do estado até chegar ao norte gaúcho (ponto 237 – Vacaria). No território catarinense, essa variante volta a ocorrer em Porto União – ponto 224 – já na fronteira com o PR, por onde se difunde em três localidades do centro-sul do estado – Lapa (ponto 222), Guarapuava (219), Imbituva (218) e, subindo na direção norte, chega ao ponto 214 (Piraí do Sul). Ao lado da ocorrência de sanga, pode-se observar a sobreposição dessas isoléxicas (Figura 6), o que conirma as premissas aventadas sobre a possível inluência do movimento do tropeirismo e da situação de contato do português com o espanhol, formando uma área lexical no território investigado. FIGURA 6 – Arealidade da variante arroio Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 119 Distinguem-se na Figura 6 a variante sanga no oeste riograndense e arroio ao leste. Na região central, há a sobreposição de formas, revelando áreas lexicais delimitadas por linhas de heteroléxicas. Nessa carta, é possível visualizar também uma área em SC pela qual se liga ao PR, denominada área lexical do interior catarinense(ROMANO; AGUILERA, 2014).5 No PR, as isoléxicas se sobrepõem em Lapa e Imbituva, pontos 222 e 218, respectivamente. Sanga segue rumo ao MS, reletindo-se em Ponta Porã – ponto 117 e arroio avança rumo ao Norte Pioneiro paranaense, chegando até o ponto 214 – Piraí do Sul, município que fazia parte do antigo Caminho de Viamão durante o ciclo do tropeirismo. Desse modo, não seriam sanga e arroio itens lexicais que podem tipiicar um possível falar sulista de inluência sul-rio-grandense que também evidencia traços do contato do português com outras línguas, no caso o espanhol? Em busca desse possível falar sulista é que se empreendem as análises deste trabalho. Observa-se, diante desse cenário, o polimorismo acentuado para a questão, do qual se tem uma visão ampla no mapa de sobreposição de isoléxicas, formando áreas lexicais (FIG. 7). 5 Com base nos trabalhos de Koch (2000) e Altenhofen (2005), os autores analisam a distribuição diatópica das variantes lexicais para bolinha de gude, considerando-se o corpus do Projeto ALiB, conirmando três das oito ‘áreas dialetais’ estabelecidas por Altenhofen (2005), e propõem outras três áreas, entre as quais, a área lexical do interior central de Santa Catarina, caracterizada pela ocorrência de variantes que revelam o contato entre os gaúchos e paulistas durante o ciclo do Tropeirismo. 120 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 FIGURA 7 – Arealidade das variantes lexicais córrego, sanga e arroio Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Considerando apenas as variantes córrego, sanga e arroio, veriica-se que, na área correspondente ao subfalar sulista, os estados pertencentes ao Sudeste e Centro-Oeste apresentam menor número de sobreposição de isoléxicas em comparação aos da Região Sul, onde se observa o maior número de formas regionais e combinação dessas formas com outras variantes. Ou seja, considerando essas três, a região do subfalar sulista, de Nascentes (1953), apresenta dois comportamentos: (i) uma parte setentrional caracterizada pela difusão da variante padrão (córrego) e (ii) a parte meridional em que ocorre maior número de formas lexicais, delimitadas por linhas de heteroléxicas, correspondendo em grande parte aos estados do PR, SC e RS. Neste trabalho, para se referir Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 121 a (i), opta-se pela expressão falar paulista e, quando se tratar de (ii), falar sulista, sempre grafados em itálico. Salienta-se, todavia, que ao se referir a toda a área geográica discriminada por Nascentes (1953) como subfalar sulista, não se utiliza o itálico e o adjetivo sulista sempre está acompanhado do substantivo subfalar, ou seja, a expressão subfalar sulista se refere à nomenclatura de Nascentes e, no estudo em tela, designa toda a área geográica investigada, com exceção dos pontos de controle. 4.2 Geleia A questão 177 do QSL registra os designativos que recobrem o conceito da “pasta feita de frutas para passar no pão, biscoito”. Para essa questão, foram documentados 420 registros, além de 85 abstenções de respostas. As 420 ocorrências distribuem-se em três variantes: geleia, chimia/michia e musse, além de itens lexicais agrupados sob três rótulos: “formas genéricas”: doce, doce de fruta, doce de creme e doce em pasta; “formas inadequadas”: creme, creme de fruta, melado, patê, patê de fruta e polpa de fruta; “sugestão na pergunta”: pasta e pasta de fruta. A forma lexical geleia predomina em 267 das 420 ocorrências (63,57%), seguida de chimia – 71 registros (16,90%), formas genéricas (53 – 12,62%) e, em menor produtividade, encontram-se as formas inadequadas (11 ocorrências – 2,62%), itens em que a própria pergunta sugere a resposta – 10 registros (2,38%) e, por im, a variante musse, com oito ocorrências (1,90%). Para essa questão, não é documentado o polimorismo lexical pelo fato de o índice de abstenção de resposta ser alto. No entanto, as ocorrências das variantes delimitam áreas lexicais no território investigado (FIG. 8). Na carta (FIG. 8), observa-se a maior concentração de geleia no estado de SP, difundindo-se pelos estados da região Centro-Oeste e pelo território mineiro. No PR, há uma concentração de formas genéricas relacionadas à forma lexical doce, enquanto musse se apresenta signiicativamente em SC, e chimia se difunde pelo RS. A segunda variante mais produtiva é chimia e a sua variante morfofonêmica michia. Essas formas representam juntas 16,9% do corpus, apresentando-se em 71 das 420 ocorrências. De acordo com Houaiss e Villar (2001), chimia é uma variante fonética de chimiê e chimíer, caracterizadas como um regionalismo do RS para designar a “geleia para passar no pão da merenda, chimiê”, e provém do alemão 122 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Schimiere, que significa lubrificante, graxa, proveniente do verbo schmieren, que quer dizer ‘untar, lubriicar, borrar, sujar’. Considerando-se a etimologia do vocábulo, bem como a história social da Região Sul, a presença de chimia evidencia traços de bilinguismo e empréstimo do português de línguas de colonização. Dos nove estados contemplados pelo estudo, esse item lexical está presente em cinco, com diferentes índices de representatividade (FIG. 9). Observa-se que, no MT e no MS, chimia apresenta baixa representatividade, igurando como ocorrência única no ponto 117 – Ponta Porã, localizado no sudoeste sul-mato-grossense e no ponto 105 – Diamantino, situado no centro do MT. Assim, pode-se inferir que não se trata de uma forma típica desses estados, considerando, inclusive, relatos dos informantes: INF.- Ó... a língua do pessoal paranaense que eu já vi de muito tempo até o meu minino invocô, é ele comia nói chamava doce ['dosI], né: “ô muié, traiz o doce aí” e a gente já falava do que que é, traiz o doce de banana ou doce de mamão, ou doce de abróba, né, que é o jerimum, a língua certa é o jerimum mesmo, então traiz aí pa nóis aqui. Já na língua paranaense chama chimia [Si'mi], né, tudo quando é feito de doce pa passá no pão é chimia.6 6 Informante 3 do ponto 103 (Homem, Faixa etária II, de Aripuanã-MT). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 123 FIGURA 8 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 177 do QSL Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) O próprio informante mato-grossense reconhece que chimia é a denominação que pessoas da Região Sul, genericamente rotulados como “paranaenses”, usam para nomear o que, para o informante, é designado como doce (FIG. 9). 124 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 FIGURA 9 – Arealidade gradual de chimia / michia Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) A distribuição diatópica de chimia (FIG. 8 e 9) revela uma área que contempla o estado do RS quase em sua totalidade, adentra SC pelo centro e oeste e, em um feixe lateral, perpassa o oeste paranaense até atingir uma localidade sul-mato-grossense – ponto 117 (Ponta Porã). Por im, a variante musse delimita uma área lexical (FIG. 8). Apesar de obter apenas oito ocorrências (1,9% do corpus), musse apresenta-se em uma área especíica do subfalar sulista, em cinco cidades catarinenses: três localizadas no nordeste do estado: pontos 225 (São Francisco do Sul), 227 (Blumenau) e 228 (Itajaí), na capital – ponto 230 (Florianópolis) e 231 – Lages, no sul de SC. No ALERS, musse ocorre também no RS e no PR, embora com baixa produtividade. Para uma visão ampla do comportamento das variantes, a Figura 10 apresenta a a realidade dos três itens lexicais detalhados: geleia, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 125 chimia/michia e musse. Situação análoga à que foi apresentada na Figura 7 repete-se para os designativos da geleia. Na área correspondente ao subfalar sulista, os estados pertencentes às regiões Sudeste e CentroOeste apresentam menor número de sobreposição de isoléxicas em comparação com os da Região Sul, onde se observa maior número de formas regionais e combinação dessas formas com outras variantes, formando heteroléxicas. Observando a carta, veriica-se a presença de uma grande área nos estados de SP, MS, MT, GO, MG e noroeste paranaense, em que ocorre, exclusivamente, a forma mais difundida do corpus, geleia, inclusive nas adjacências do subfalar sulista em MG e GO. A alternância de formas se acentua na Região Sul, que apresenta maior número de combinação de variantes em áreas de heteroléxicas. FIGURA 10 – Arealidade das variantes lexicais geleia, chimia, formas genéricas e musse Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) 126 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Considerando essas três variantes, a região do subfalar sulista novamente apresenta dois comportamentos: (i) a parte setentrional, caracterizada pela difusão da variante padrão (geleia) e (ii) a parte meridional, em que ocorre maior número de formas lexicais e áreas de heteroléxicas, correspondendo, em grande parte, aos Estados do PR, SC e RS. 4.3 Bolinha de gude A pergunta 156 do QSL – coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar – apresenta 40 formas, incluindo as variantes fonéticas e morfofonêmicas. Foram necessários agrupamentos de variantes para o tratamento dos dados, conforme os seguintes critérios: (i) Formas no diminutivo: bola/bolinha; bulica/buliquinha; burca/ burquinha; (ii) As formas compostas: bola de gude/bolinha de gude/gude; bolinha de clique/clica; bolita de gude/bolita; bolinha de búrico/ búrico, entre outros. (iii) Formas que apresentam o alçamento da vogal pretônica: bolito/ bulita; bolica/bulica; (iv) Variantes fonéticas que apresentam a alternância morfofonêmica da vogal átona inal [o] / [a]: bolito/bolita; búlico/búlica; (v) Itens em que há alternância da lateral alveolar para vibrante na sílaba tônica: bulita/burita; biloca/biroca; bilosca/birosca; (vi) Formas em que há a alternância da lateral para a vibrante na sílaba pós-tônica: búlica/búrica; (vii) Formas proparoxítonas e paroxítonas: búlica/bulica; (viii) Variantes fonéticas que apresentam síncope da sílaba pós-tônica: búrica/burca/buque; (ix) Vocábulos que apresentam o fenômeno de suarabácti: clica/ quilica; (x) Variante em que houve anteriorização da oclusiva velar surda (posterior) para uma oclusiva bilabial surda (anterior): quilica/ pilica. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 127 Para algumas das formas, utiliza-se mais de um critério. Fez-se necessária a inclusão do rótulo “formas pouco produtivas” para agrupar as hápax legomena: biribinha, bili, biroquê, boleja, pelota e pedrinha de vidro. Para essa questão, são documentados 663 registros distribuídos em 11 itens, além de duas abstenções de resposta. A variante mais produtiva é bolinha de gude (43,44%), seguida por bolita (18,7%), bolinha de vidro (12,97%) e búrica (12,67%). Com menos de 10% de representatividade, encontra-se o item biloca (6,94%) e, em menor índice, encontram-se clica (1,81%), birola (0,90%), fubeca (0,75%), peca (0,60%) e peteca (0,30%). As hápax legomena, agrupadas sob o rótulo “formas pouco produtivas”, representam juntas 0,9% do corpus. A Figura 11 apresenta a distribuição diatópica de sete das 12 formas lexicais. Os itens que representam menos de 1% de produtividade, na cartograia estão documentadas pelo item outros, que compreende as variantes: birola, fubeca, peca, peteca. Observa-se que bolinha de gude e variantes estão amplamente difundidas pelo território do subfalar sulista e adjacências com diferentes índices de ocorrência. O item é mais produtivo em seis dos nove estados: GO, MG, PR, RJ, SC e SP, atingindo, no entanto, em apenas quatro desses, produtividade acima de 50%. Os estados em que há o menor índice de bolinha de gude são o MT (13,04%), o MS (20,69%) e o RS (25%), em detrimento da ocorrência representativa de outros itens, por exemplo, bolita e suas variantes morfofonêmicas. Bolita apresenta-se em seis estados (RS, SC, PR, MS, MT e GO) com diferentes índices de produtividade, não ocorrendo na região Sudeste, sendo representativa no Centro-Oeste e Sul. Bolita predomina, majoritariamente, em localidades matogrossenses e sul-mato-grossenses. Em GO, a produtividade de bolita atinge 7,69%. Já na região Sul, SC apresenta o menor índice de produtividade (6,67%) e, no PR, o item representa 11,61% das respostas. Nas localidades gaúchas, bolita é a forma mais produtiva (63,75%). No MS, bolita ocorre em cinco dos seis pontos (com exceção do ponto 114 – Paranaíba – localizado próximo à fronteira política do MS com SP, MG e GO). Em GO, a variante é registrada apenas em um ponto no sul do estado (124 – Jataí) e, em território mato-grossense, esse item lexical está amplamente difundido, ocorrendo, inclusive, nos pontos de controle (103 – Aripuanã e 104 – São Félix do Araguaia), localizados no extremo norte do estado. 128 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 A área correspondente ao uso da variante bolitana, Região Sul, contempla quase todo o RS, principalmente uma porção central, adentrando SC e PR pela região oeste desses estados, ou seja, pela área fronteiriça do Brasil com a Argentina e o Paraguai. FIGURA 11 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 156 do QSL Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Ferreira (2004) e Houaiss e Villar (2001) registram bolita como uma forma vinda do espanhol platino típica do RS na acepção da bolinha de gude. Entretanto, os trabalhos geolinguísticos têm mostrado que não se trata de um regionalismo/brasileirismo exclusivo do RS, como Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 129 airmam os lexicógrafos. Na carta linguística 109 do Atlas Linguístico da Mesorregião Sudeste do Mato Grosso (CUBA, 2009), encontra-se registrada em 100% das respostas. O Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul (OLIVEIRA, 2007) também documenta os designativos para o referente. Observa-se, desse modo, a ampla distribuição desse item pelo estado, não ocorrendo, nesse atlas, também na área correspondente à fronteira do MS com MG e GO, assim como no corpus do ALiB (FIG. 11). Reis (2006), na carta 218, apresenta a distribuição das variantes para bolita em Ponta Porã/MS, cidade localizada na fronteira do Brasil com o Paraguai. Nesse trabalho, encontra-se a variante como forma mais produtiva na maioria dos pontos linguísticos, concorrendo apenas em três localidades com a variante bola/bolinha de gude. No Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil (ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011), a carta linguística 302 documenta as variantes lexicais para a bolinha de gude. Na referida carta, veriica-se que a área correspondente à bolita coincide, em grande parte, com a documentada pelo ALiB, sobretudo no que tange à faixa oeste de SC e PR. Bolita ocorre no centro e oeste do RS, caracterizando-se como a variante majoritária. À medida que se avança no território de SC e do PR, a representatividade diminui, igurando na área fronteiriça desses dois últimos estados com a Argentina e o Paraguai (FIG. 12). 130 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 FIGURA 12 – Arealidade gradual de bolita e variantes morfofonêmicas Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Esse panorama geolinguístico revela traços de empréstimos lexicais do português com línguas de contato fronteiriço, no caso o espanhol. No Dicionário da Real Academia Española (2001), bolita apresenta uma remissão à forma utilizada na Argentina, canica, cujas acepções são “Juego de niños que se hace con bolas pequeñas de barro, vidrio u otra materia dura” ou mesmo, “cada una de estas bolas”. De acordo com o DRAE (2001), o vocábulo canica vem do francês canique, que, por sua vez, é originado do neerlandês kinniker, derivado do verbo knikkerr, que signiica quebrar, romper. Ou seja, a forma bolita no português evidencia traços das línguas em contato nessa região do país. Nem Houaiss e Villar (2001) nem Ferreira (2004) apresentam a datação desse vocábulo na língua portuguesa, porém constata-se que a variante faz parte da norma lexical da região Sul e dos estados do MS e MT, principalmente na região de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 131 fronteira desses estados com países latino-americanos, embora também possa ocorrer em outros estados. No caso do PR, SC e RS, no contato com a Argentina e Uruguai, e no MS e MT, no contato com a Bolívia e o Paraguai. A Figura 13 apresenta uma carta linguística em que se identiicam as áreas de bolinha de gude e bolita. FIGURA 13 – Arealidade das variantes bola de gude e bolita Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Observa-se uma ampla área lexical para bolinha de gude (e formas agrupadas), compreendendo a faixa leste do território investigado correspondente aos territórios de SP, MG, grande parte de GO, noroeste do MS e grande parte do PR e SC. Já a porção oeste do território apresenta dois panoramas: (i) uma faixa territorial, correspondente à cor roxa, que revela linhas de heteroléxica, delimitando a coocorrência das duas formas (bolinha de gude e bolita). Essas duas variantes são indistintamente 132 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 utilizadas em grande parte do território do MT e MS, no oeste do PR e SC e no noroeste, nordeste e extremo sul do RS; (ii) áreas que correspondem às isoléxicas de bolita, ou seja, em que ocorre somente esse item, compreendendo o RS, numa faixa que percorre do sudoeste desse estado, adentra o interior e chega ao norte gaúcho. No MS, essa variante restringese às redondezas de Ponta Porã – ponto 117. No MT, apresenta-se em três regiões: no ponto 111 – Alto Araguaia – fronteira com MS e GO; nos pontos 108 (Cuiabá) – Centro-sul do estado – e 110 (Cáceres), no sudoeste matogrossense; e no ponto de controle 103 (Aripuanã), localizado fora da área do subfalar sulista, no noroeste do estado. Nos limites deste artigo, não são abordadas as demais variantes, mas os dados evidenciam heterogeneidade linguística dentro do território investigado e destacam, novamente, a existência de dois falares: um paulista (bolinha de gude) e o sulista (bolita). O falar paulista distribui-se na parte setentrional da divisão de Nascentes (1953). Compreende o estado de SP, sul de MG, centro e interior de GO, além do noroeste e centro do PR, onde ocorre, predominantemente, a forma padrão: bola/bolinha de gude. O falar sulista, por sua vez, está no RS, de onde, por um corredor lateral do oeste catarinense e paranaense, pode atingir os estados do MS e MT. Essa distribuição pode ser justiicada pelos luxos migratórios dos gaúchos rumo às novas fronteiras agrícolas do Centro-Oeste. Para esse item especíico, esse falar está caracterizado pelo contato do português com outras línguas, no caso, o espanhol. Os limites desses falares têm-se-mostrado luidos, e cabe notar que cada um deles apresenta outras áreas lexicais. 4.4 Menino/guri A questão 132 do QSL, que objetiva documentar as variantes para a criança de 5 a 10 anos do sexo masculino, apresenta oito variantes, além de formas inadequadas e abstenção de resposta. Do conjunto das respostas, são considerados na mesma categoria os itens correspondentes às variantes com a lexão de diminutivo: moleque/molequinho; guri/gurizinho, garoto/garotinho, piá/piazinho. As formas rapazinho/rapazote também correspondem à mesma variante, e os itens lexicais pirralho, furete e fedelho são considerados como formas inadequadas, uma vez que iguraram como segunda ou terceira resposta na fala de quatro informantes e não são difundidas, salvo em situações de interlocução para acentuar desprezo e características disfêmicas em relação à criança. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 133 A variante mais produtiva, menino, representa 38,55% do corpus, seguida por moleque (20,14%), guri (17,15%), garoto (10,47%) e piá (9,55%). Em menor índice, encontram-se pivete (1,84%), rapazinho (1,73%) e, com menos de 1% de produtividade, ocorrem “formas inadequadas” (0,46%) e a hápaxlegomena, bambino, com 0,12% de representatividade. A Figura 14 apresenta a distribuição diatópica das nove formas, mostrando ampla distribuição da variante menino, presente em quase todas as localidades, com exceção de três cidades gaúchas (ponto 236, Passo Fundo; 247, Santana do Livramento; e 249, São José do Norte) e um município mato-grossense: 105, Diamantino. Nesta carta, observa-se maior concentração de moleque no estado de SP, estendendo-se para MG e GO. Por outro lado, a forma guri está amplamente distribuída pelo RS, adentrando o MS e MT. No PR e SC, nota-se maior distribuição de piá. FIGURA 14 – Distribuição diatópica das variantes lexicais para a questão 132 do QSL Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) 134 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 Quanto à variante moleque, segunda forma mais produtiva, observa-se que esse item apresenta-se com índices percentuais diferenciados (FIG. 15), obtendo baixa produtividade no MT e, principalmente, no RS, aparecendo com maior concentração no território paulista. Observa-se que o índice de 100% de produtividade esteve em um ponto do PR (208 – Nova Londrina), em uma localidade mineira (147 – Poços de Caldas) e em seis localidades paulistas (152 – São José do Rio Preto, 157 – Ribeirão Preto, 166 – Marília, 177 – Itapetininga, 178 – Sorocaba e 183 – Itanhaém). Na maior parte do território paulista, moleque igura com 75% atingindo, sobretudo, o noroeste do PR, com o mesmo percentual, e uma faixa central de SC que vai do ponto 225 (Porto União) ao 229 (Concórdia). A variante moleque irradia-se também em uma longa faixa territorial do sul de MG, nos estados do MS e MT com 50% e atinge 25% de produtividade nas regiões mais distantes em relação ao estado de SP, por exemplo, localidades gaúchas e pontos situados ao norte do MS, MT e GO. FIGURA 15 – Arealidade gradual da variante moleque/molequinho Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 135 Nas cartas 270 e 271 do ALERS (ALTENHOFEN; KLASSMAN, 2011), encontra-se moleque como o quarto item da legenda, não se constituindo como uma forma tão produtiva, o que é compensado pela ocorrência de variantes regionais nos estados do Sul. Romano e Seabra (2014a) conirmam que o item lexical evidencia a inluência das línguas africanas no léxico do português. Cunha (1986, p. 528) registra que esse vocábulo veio do quimbundo mu’leke, para designar o “menino”, “rapazote”, com datação na língua portuguesa de 1731. Ferreira (2004) apresenta dez acepções para o vocábulo, entre as quais igura “Menino de pouca idade” (FERREIRA, 2004). Houaiss e Villar (2001), por sua vez, apresentam 17 acepções para “moleque”, das quais 13 são para emprego como substantivo masculino e quatro como adjetivos. Dessa última obra, merecem destaque as acepções: “1. menino novo, de raça negra ou mista. 2. garoto de pouca idade. 3. menino criado à solta; menino de rua. 4. garoto travesso” (HOUAISS; VILLAR, 2001). A terceira variante mais produtiva é guri, forma majoritária no RS (48,57%), o que compensa a baixa produtividade de moleque nas cidades gaúchas. Guri concentra-se, além do RS, nos MS (36%) e MT37,1%. Nos demais estados, há decréscimo na produtividade da variante, representando 17,57% das respostas dos catarinenses e 16,45% dos paranaenses. Em SP, MG e GO, a ocorrência do item é pequena (abaixo de 5%). A Figura 16 apresenta a distribuição do item no território, revelando que essa variante se irradia a partir do território gaúcho, e, por um corredor oeste catarinense, atinge o MS e o MT e, a partir deste, chega ao sudoeste goiano reletindo-se em uma localidade do Triângulo Mineiro – ponto 137 (Campina Verde). No PR, guri está em quase todo o estado, exceto localidades do noroeste paranaense, região de colonização mais recente sob inluência de mineiros e paulistas na primeira metade do século XX. 136 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 FIGURA 16 – Arealidade gradual de guri/gurizinho Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) Por outro lado, essa variante relete-se no estado de SP na região limítrofe com o PR, além de se difundir para as localidades situadas no Vale do Ribeira, conforme relatam Romano e Seabra (2014a, p. 485): a presença da variante “guri” em determinadas localidades paulistas, tais como Itararé, Itapetininga e Sorocaba, pode ser explicada pela inluência vinda do sul do país, haja vista que algumas dessas localidades eram pontos pertencentes à antiga rota proveniente do Caminho das Tropas, pela consequência do Tropeirismo. A presença de guri no MS e no MT, ainda de acordo com esses autores, revela traços dos movimentos recentes de migração de gaúchos que deixaram marcas no léxico da região, bem como inluências na formação da cultura local. Esse movimento decorre das novas fronteiras Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 137 agrícolas na região Centro-Oeste, sobretudo a partir da década de 1970, com o incentivo governamental. A variante piá também é mais frequente na Região Sul, principalmente, no PR. Em SP, MT e MS, a frequência desse item é pequena, ao passo que, no PR, piá ocorre como variante majoritária (28,95%), seguindo-se o RS (18,1%) e SC (13,51%). Na Figura 17, observa-se a distribuição desse item na constituição de uma ampla área lexical na Região Sul. Entretanto, essa área não contempla algumas cidades gaúchas: Erechim (235) e Passo Fundo (236), no norte gaúcho, além dos pontos 245 – Uruguaiana (sudoeste) e 249 – São José do Norte (litoral sul). Observa-se a ausência de piá no nordeste do estado (ponto 244 – Osório), no litoral catarinense, pontos – 230 (Florianópolis), 232 (Tubarão), 233 (Criciúma), além do ponto 225 (São Francisco do Sul), no nordeste de SC. FIGURA 17 – Arealidade gradual da variante piá Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) 138 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 A distribuição de piá não contempla integralmente o noroeste paranaense, de colonização mineira, expandindo-se, no entanto, para uma localidade sul-mato-grossense – 117 (Ponta Porã) e cidades paulistas localizadas no Vale do Ribeira. Assim como ocorre com a variante guri, a presença de piá nesta área de SP evidencia traços da história social das localidades, uma vez que essa forma típica da Região Sul, possivelmente, teria sido trazida para essa região paulista por meio dos tropeiros, durante o ciclo do Tropeirismo, persistindo até hoje no vocabulário ativo dos naturais dessa região paulista. O ALPR (AGUILERA, 1994) e o ALPR II (ALTINO, 2007) não apresentam cartas linguísticas que documentem os designativos para o referente. O ALERS (ALTENHOFEN; KLASSMANN, 2011), entretanto, registra, nas cartas 270 e 271, as principais variantes e outras denominações, coincidindo com os dados do ALiB. Conforme Romano e Seabra (2014a), tanto a variante guri quanto piá reiteram a inluência das línguas indígenas no português. De acordo com Cunha (2010), a forma lexical “guri” veio do tupi üï’ri, que designa o “bagre novo” (tipo de peixe), por extensão de sentido, a criança. O etimologista remete o usuário ao verbete “guiri - ‘sm bagre’ / curi 1587, guori datada, aproximadamente, de 1631”. Houaiss e Villar (2001), em contrapartida, registram a datação de 1890. Para os lexicógrafos, trata-se de um regionalismo brasileiro para designar o “menino”. Ferreira (2004), apesar de apresentar a mesma acepção, traz outra etimologia. Segundo o dicionarista, o vocábulo “guri” também vem do tupi, porém com o sentido de pequeno, não fazendo alusão ao peixe. Piá, de acordo com Houaiss e Villar (2001), refere-se ao menino indígena e, analogamente, é empregado para denominar o menino mestiço de indígena com branco ou mesmo qualquer criança do sexo masculino. Segundo esses lexicógrafos, trata-se de um regionalismo de SC e RS para designar o peão menor de idade que não é de raça branca. Ferreira (2004) traz para piá a informação de que se trata de um brasileirismo para designar o índio jovem ou mestiço jovem de branco com índio, remetendo ao verbete “menino”, o que revela tratar-se, pois, de um sinônimo. Em SC e RS é uma variante usada para designar “qualquer menor que não é branco e trabalha como peão de estância” (FERREIRA, 2004), ou seja, a mesma acepção dada por Houaiss e Villar (2001). Voltando-se à distribuição diatópica, observa-se uma ampla área na Região Sul em que ocorrem, indistintamente, as variantes guri Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 139 e piá (FIG. 18), o que ratiica o caráter regional atribuído a esses itens. Guri apresenta-se como forma exclusiva em áreas isoladas em SP, MG e GO. Em grande parte do território do MS e MT, observa-se a ampla distribuição desse item. Piá, por sua vez, não apresenta distribuição exclusiva no território, não formando grandes áreas lexicais, uma vez que ocorre isoladamente em pontos do RS, SC, PR e SP. Observando-se o comportamento e a distribuição de três variantes lexicais: moleque, guri e piá, podem-se fazer algumas considerações acerca das áreas em que ocorrem, caracterizando dois padrões de variação lexical: um de inluência paulista, denominado falar paulista, em que se veriica, entre outras variantes, a maciça presença de moleque, que se expande para outros estados como MG e GO; outro, de inluência sul-riograndense e paranaense, denominado falar sulista, em que se observa a difusão das formas guri e piá, pela Região Sul, com relexos no MS e MT. Cumpre airmar que os limites desses dois grandes falares são luidos, ora apresentando maior número de heteroléxicas, ora menor número. FIGURA 18 – Arealidade das variantes guri/gurizinho e piá/piazinho Fonte: Banco de dados do ALiB (2015) 140 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 5 O falar paulista e o falar sulista A análise do corpus dá indícios da existência de dois grandes falares na área geográica do subfalar sulista: o falar paulista e o falar sulista, conforme se sintetiza na Figura 19. FIGURA19 – Localização geográica dos falares sulista e paulista Fonte: Elaborado pelo autor Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 141 O falar paulista difunde-se a partir do estado de SP, com inluência na região norte do PR, oeste do MS, sudoeste e interior de GO, sul de MG e Triângulo Mineiro. Esse falar alcança os pontos de controle, não se limitando à área geográica do subfalar sulista deinida por Nascentes (1953) e diferencia-se da região meridional do território. Portanto, sob o ponto de vista do léxico, considerar o estado de SP e adjacências no mesmo grupo que o RS, possivelmente seria um equívoco, tendo em vista aspectos sócio-históricos envolvidos no processo de ocupação e povoamento do território, o que se relete na variação lexical das questões abordadas. Na amostra selecionada, o falar paulista caracteriza-se por uma maior homogeneidade lexical, revelando um menor número de coocorrência de variantes. Na área do falar paulista, há o predomínio das formas mais produtivas: córrego, geleia, bolinha de gude, menino, moleque que, à medida que avançam para a porção sul do país, apresentam uma diminuição em sua produtividade. Esse falar paulista, provavelmente, tem suas origens no elemento bandeirante, homem em geral de origem lusa que, em processo de miscigenação constante com o índio e, posteriormente, com o negro, difundiu a língua portuguesa para o interior do país. Os limites que deinem o falar paulista são virtuais e luidos, ora alcançando toda a região Centro-Oeste, ora adentrando o PR, e, por um corredor central em SC (região dos Campos de Lajes), atingindo o norte do RS e, em alguns casos, expandindo-se ao sudoeste paranaense e oeste catarinense. O falar sulista, por sua vez, localiza-se principalmente na porção meridional do Brasil, contemplando o RS e, por um corredor do oeste catarinense e sudoeste paranaense, atinge o MS. Esse corredor lateral em SC e PR já fora identiicado sob o ponto de vista fonético e morfossintático, inicialmente, por Koch (2000), posteriormente, por Altenhofen (2005) e, mais recentemente, sob a perspectiva lexical, por Romano e Aguilera (2014). Trata-se, portanto, de um falar de inluência sul-rio-grandense, que revela o contato do português com o espanhol em áreas de fronteira, e também de contato com línguas de imigração, o que se evidencia por variantes presentes na norma lexical, como sanga, arroio, chimia, bolita. Esse falar também apresenta variantes que revelam o contato do português com o tupi, exempliicado por guri e piá. No tocante a esses itens, o falar sulista alcança o MT e MS, em consequência de correntes migratórias mais recentes. Os limites desse falar também são virtuais e 142 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 103-145, 2018 luidos e, além de se expandir para o Centro-Oeste, adentra SC e, por um corredor central do PR, passando em localidades como Lapa e Piraí do Sul, atinge cidades paulistas localizadas no Vale do Ribeira até chegar a Itapetininga e Sorocaba. Essa coniguração diatópica pode evidenciar traços da história social dessas localidades, uma vez que revela rastros do tropeirismo, ou seja, os tropeiros gaúchos, além de heranças deixadas na cultura material de determinadas cidades, deixaram também marcas na norma lexical que até hoje ecoam no vocabulário ativo de informantes. Além desses dois falares, há indícios de subáreas lexicais no território do PR e SC, com a presença de itens como valeta, formas genéricas para a geleia, musse, clica, búrica, piá, que merecem atenção mais detalhada. São denominadas subáreas pelo fato de ora se identiicarem com o falar paulista, ora com o falar sulista, igurando em uma área geográica comum aos dois grandes falares. Nos limites desta análise, sob o ponto de vista lexical, este estudo vem ratiicar que, atualmente, o mapa dialetal do Brasil estabelecido por Nascentes (1953) merece um olhar mais atento, haja vista a heterogeneidade lexical atestada nessa região do país. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Retomadas anafóricas de objeto direto em português brasileiro escrito Anaphoric direct object in written Brazilian Portuguese Gabriel de Ávila Othero Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS gabriel.othero@ufrgs.br Camila Schwanke Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS camilaschwanke@gmail.com Resumo: Os clíticos acusativos de 3ª pessoa estão em desuso na fala vernacular em português brasileiro (PB), cedendo espaço para outras duas estratégias de retomada anafórica na função de objeto direto: (a) o pronome pleno (‘ele’, ‘ela’) e (b) uma categoria vazia (cf. DUARTE, 1989, 1993; CYRINO, 1997, 2003). A escolha pela retomada anafórica de objeto com pronome ou categoria vazia não é aleatória. A literatura corrente sobre o assunto chama a atenção para o fato de que há uma tendência forte à ocorrência de um fenômeno de distribuição complementar, condicionada por traços semânticos do referente sendo retomado. Há duas hipóteses principais para explicar o fenômeno: (i) a hipótese dos traços de animacidade e especiicidade do referente (CYRINO, 1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002, entre outros) e (ii) a hipótese do gênero semântico (CREUS; MENUZZI, 2004). Com o objetivo de veriicar se essas estratégias relativamente inovadoras e mais comuns em língua falada, a saber, pronomes plenos e objetos nulos, já estão consagradas, ou ao menos presentes de maneira signiicativa em língua escrita, este trabalho se dedica a uma análise de corpora de jornais eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.147-185 148 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 populares e de redações escolares. Nossos resultados mostram que o clítico tem a tendência de se manter no discurso escrito. Com relação ao uso do objeto nulo, a hipótese do gênero semântico parece promissora, pois explica o fenômeno de retomada anafórica de uma forma mais econômica, por meio de um único traço, e de uma forma mais natural, pois diz respeito a um processo de concordância entre antecedente e forma anafórica. Palavras-chave: retomada anafórica; objeto nulo; português brasileiro; língua escrita. Abstract: The accusative clitics for the third person have fallen into disuse in spoken Brazilian Portuguese giving room to two strategies to recover an anaphoric element in a direct object position for the third person: (a) the use of the ‘full pronoun’ and (b) the use of an empty category. The choice of using a pronoun or a null object is not random. The literature points to the fact that there is a very strong tendency towards a phenomenon of complementary distribution, which is constrained by semantic and discourse features of the referent being recovered. There are two main hypotheses to explain the phenomenon: (i) the features of animacy and speciicity of the referent (cf. CYRINO, 1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002 among others) and (ii) the semantic gender feature (CREUS; MENUZZI, 2004).In order to verify whether these relatively innovative strategies, i.e. full pronouns and null objects, have already been established, or at least are present in written standard language in a signiicant way, we analyze corpora from popular newspapers and from school essays. Our results show that the clitic pronoun remains in written discourse. When it comes to the null object, the assumption of semantic gender feature seems promising, because it explains the anaphoric recovery phenomenon in an economic way, from a single feature, and in a more natural way, as it concerns an agreement process between the preceding element and the anaphoric form. Keywords: anaphor; null object; Brazilian Portuguese; written language. Recebido em 18 de janeiro de 2017. Aprovado em 24 de abril de 2017. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 149 1 Introdução Em português brasileiro (PB), a retomada anafórica de um referente de 3ª pessoa na função de objeto direto pode ser realizada (i) por pronome clítico (‘o’, ‘a’), (ii) por pronome pleno (‘ele’, ‘ela’) ou (iii) por uma categoria vazia (um objeto nulo, ON), como demonstramos nos exemplos a seguir.1 (1) As botas dos meninos não davam conta de protegê-los. (2) Um ladrão tinha entrado [...] Tranquei ele como a um rato. (3) Ela mostrou ferimentos no corpo e atribuiu Ø ao marido. Enquanto a primeira estratégia (a retomada com o clítico) é marca de discurso monitorado em PB, as duas últimas estratégias são relativamente inovadoras e mais comuns em língua falada ou escrita não monitorada (CYRINO, 1994/1997; MONTEIRO, 1994; SCHWENTER; SILVA, 2002; OTHERO; CARDOZO, 2017). Em estudos diacrônicos do português, pesquisadores como Tarallo (1983), Duarte (1989) e Nunes (1996) mostraram que os clíticos estão em desuso e que, em seu lugar, o ON e o pronome pleno são as principais estratégias para a retomada anafórica de objeto direto de terceira pessoa na gramática do PB. Entretanto, a escolha entre objeto nulo vs. pronome não se dá de forma aleatória. Como diversos trabalhos na literatura sobre o assunto demonstram (cf. referências citadas no parágrafo anterior, por exemplo), há uma tendência muito forte de este ser um fenômeno de distribuição complementar (ou que está se encaminhando para a distribuição complementar – cf. OTHERO et al., 2016), condicionado por traços semântico-pragmáticos do antecedente retomado. Na literatura sobre o ON, encontramos, basicamente, duas hipóteses em relação aos traços semântico-pragmáticos do antecedente que funcionariam como condicionadores da escolha entre pronomes vs. ONs na sua retomada 1 Todos os exemplos que apresentamos no texto foram extraídos do nosso corpora. Estamos considerando aqui apenas a distinção entre pronomes e categoria vazia na retomada do objeto; um referente pode também ser retomado, evidentemente, por um SN\DP “completo”, como em “Encontrei a Maria, mas não falei com essa moça sobre suas faltas” (cf., por exemplo, OLIVEIRA, 2007; VIEIRA-PINTO; COELHO, 2016). 150 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 anafórica, a saber, a hipótese dos traços de animacidade e especiicidade (DUARTE, 1989; CYRINO, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2003) e a hipótese do gênero semântico (CREUS; MENUZZI, 2004, PIVETTA, 2015; AYRES, 2016, OTHERO et al., 2016). A fim de verificar se essas duas estratégias relativamente inovadoras e mais comuns em língua falada (i.e. ON e pronome pleno em função de objetos diretos) já estão presentes de maneira signiicativa em língua escrita padrão, nosso trabalho traz uma análise de corpora de jornais populares – Jornal Diário Gaúcho e Jornal Massa! – e de 88 redações escolares infantis de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, também para investigar como se dá a retomada anafórica no processo de desenvolvimento do PB escrito e do efeito da escolarização sobre o processo. Nossa hipótese é de que o uso de ONs já deve aparecer na escrita, ainda que os clíticos representem a principal estratégia de retomada anafórica. Buscamos analisar nossos dados apoiados em duas hipóteses existentes na literatura sobre o condicionamento da retomada anafórica de objetos diretos em PB, acreditando que a tese do traço de gênero semântico deve explicar o fenômeno da distribuição entre categoria vazia vs. pronome de maneira mais adequada ou mais econômica. Nesse sentido, quando o antecedente tiver gênero semântico, será retomado por um pronome; caso contrário, será preferencialmente retomado por um ON. Organizamos o texto da seguinte maneira: na seção1, caracterizamos o objeto nulo e discorremos sobre os tipos de retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa em PB. Além disso, apresentamos as duas hipóteses encontradas na literatura em relação aos traços semântico-pragmáticos que parecem ser condicionadores da escolha entre pronomes vs. ONs. Na seção 2, apresentamos os corpora utilizados, explicamos nossa metodologia e analisamos os resultados encontrados. Finalmente, dedicamos a terceira seção à discussão de alguns casos interessantes, que não “se comportam” de acordo com as previsões da hipótese do gênero semântico e, além disso, observamos princípios discursivos particulares que exercem inluência sobre essas retomadas anafóricas. Em seguida, tecemos nossas considerações inais. 151 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 2 Objeto nulo e retomada anafórica A retomada anafórica ocorre quando fazemos referência a um elemento do discurso já mencionado previamente. Em PB, a retomada anafórica de um referente de 3ª pessoa na função de objeto direto pode ser realizada por pronome clítico (‘o’, ‘a’), por pronome pleno (‘ele’, ‘ela’) ou por uma categoria vazia (um ON), como vimos, anteriormente, nos exemplos (1) a (3) (ver também observação da nota 2). Cyrino (1994/1997), em seu clássico trabalho sobre ON em PB mostrou que, desde o século XIX, podemos atestar uma mudança diacrônica em relação ao quadro pronominal brasileiro. Os clíticos acusativos de terceira pessoa (‘o’, ‘a’) estão em um processo de declínio2 e vêm cedendo espaço para os pronomes plenos (‘ele’, ‘ela’) e para a estratégia de retomada anafórica com objeto nulo.3 Conforme Cyrino, o objeto nulo, isto é, a possibilidade de realização de um elemento vazio, foneticamente nulo, na função de objeto, sempre foi possível em português, mas passou por um crescimento signiicativo nos últimos séculos, como podemos observar nas seguintes tabelas: TABELA 1 – Objetos nulos no tempo 1ª metade do 1ª metade do 2ª metade do 1ª metade do 2ª metade do século XVIII século XIX século XIX século XX século XX Objetos nulos (%) 14,2% Século XVI 41,6% 23,2% Século XVII Século XVIII 69,5% 81,1% Século XIX Século XX Formas nulas (%) 10,7% 12,6% 18,5% 45% 79,1% Formas Preenchidas (%) 89,3% 87,4% 81,5% 55% 20,9% Fonte: Cyrino, 1993, p. 165. 2 3 Cf. também Tarallo (1983). A esse respeito, ver também Monteiro (1994) e Bagno (2011). 152 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Os dados de Cyrino (1994/1997) foram coletados a partir de textos escritos de peças teatrais. A autora, com o intuito de procurar textos que representassem o português oral, optou pelo gênero comédia ou por autores considerados “populares” pela literatura, visto que suas obras provavelmente reletiam a linguagem popular da época.4 Como se percebe na Tabela 1 a queda do pronome clítico parece estar ligada ao fenômeno do objeto nulo, uma vez que as formas nulas na função de objeto direto cresceram signiicativamente (de 10,7% no século XVI para 79,1% no século XX), ao passo que as formas preenchidas caíram para apenas 20,9% no século XX, o que pode ser observado também no Gráico 1, a seguir. GRÁFICO 1 – Correlação entre pronomes e objetos nulos ao longo do tempo Fonte: Cyrino, 1994/1997. Para Creus e Menuzzi (2004, p. 5), a mudança mais signiicativa é que os ONs passaram de praticamente inexistentes a praticamente categóricos do século XVIII ao XX, período de reorganização da gramática do PB em relação ao sistema Constituem o corpus do trabalho de Cyrino as seguintes peças: “Rua Alegre, 12” (1940), “O Pagador de Promessas” (1959), “Um Grito Parado no Ar” (1973) e “No Coração do Brasil” (1992). 4 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 153 de anáfora pronominal de objeto. O aumento do uso de objeto nulo como estratégia preferencial de retomada anafórica indica [...] sinal de reanálise radical num curto período de tempo. O fenômeno do objeto nulo, isto é, “o fato de podermos nos referir a uma categoria apresentada anteriormente na situação discursiva mediante uma categoria foneticamente nula na posição de objeto” (MILESKI, 2014, p. 2) é considerado um dos traços que distingue o PB das demais línguas românicas (cf. CYRINO, 1993; CYRINO; MATOS, 2016, por exemplo). Poderíamos pensar que as duas estratégias inovadoras de substituição do pronome clítico (ON e pronome pleno) encontramse em variação livre, mas diversos trabalhos na literatura sobre o assunto chamam a atenção para o fato de que há uma tendência, não categórica, mas muito forte, à ocorrência de um fenômeno de distribuição complementar. Essa distribuição estaria condicionada por traços semânticos e discursivos do referente retomado. Para alguns (CYRINO, 1993, 1994/1997; SCHWENTER; SILVA, 2002, etc.), os traços de animacidade e especiicidade do antecedente explicariam a distribuição. Alternativamente há a hipótese do gênero semântico (cf. CREUS; MENUZZI, 2004) como condicionador do uso de pronomes plenos e ONs em PB. A seguir, veremos mais detalhadamente esses traços e as hipóteses relacionadas a eles. 2.1 Os traços semântico-pragmáticos dos antecedentes Como mencionamos, a escolha do falante entre pronome vs. objeto nulo não se dá de forma aleatória: os traços semântico-pragmáticos do referente parecem condicionar o tipo de retomada anafórica utilizado. A seguir, deiniremos os traços de animacidade, especiicidade e gênero semântico. 2.1.1 Animacidade e especiicidade O traço de animacidade é um conceito semântico que diz respeito ao fato de os referentes serem animados ou não. 154 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Animacidade é uma noção semântica que envolve um conjunto de elementos agrupados por apresentarem a característica de serem animados, o que é diferente do traço humano. O conjunto dos elementos que são animados inclui, além dos seres humanos, os demais seres, que, assim como a espécie humana, apresentam algum tipo de vida, como gatos, cachorros, insetos, peixes, etc. (CASAGRANDE, 2007, p. 52) Exemplos: (4) O cachorro apareceu um dia, sem que ninguém o trouxesse, e começou a dar voltas por todos os cantos. [+a] (5) Não deixe água parada em pratos de plantas. Coloque areia ou troque a água e lave-os com escova duas vezes por semana. [-a] Já o traço de especiicidade é a propriedade de o referente ter uma única identiicação no discurso. Conforme Cyrino (c.p. apud PIVETTA, 2015, p. 57), “um objeto direto é especíico se, de acordo com a perspectiva do falante, o referente tem uma única identiicação. Caso não haja um único referente, não é especíico”. Enquanto a animacidade é uma característica semântica, inerente ao referente, a especiicidade, por sua vez, é característica “discursiva”, i.e. só conseguimos deinir se o referente é especíico ou não observando o contexto discursivo: (6) Ela vê o ilho e corre para ampará-lo. [+e] (7) A tevê é atrativa e, sabendo usar, pode ter vantagens. [-e] Para Cyrino (1994/1997), Matos e Cyrino (2001), Cyrino e Matos (2002) e Schwenter e Silva (2002, 2003), entre outros, os traços de animacidade e especiicidade são os responsáveis por condicionar o uso entre pronome e ON na retomada anafórica em função de objeto em PB, de modo que antecedentes com os traços [+animado] e [+especíico] tendem a ser retomados por pronomes, enquanto antecedentes com os traços [-animado] e [-especíico] tendem a ser retomados por uma categoria vazia (um ON). A interação entre esses traços, i.e. casos [+a, -e] e [-a, +e], entretanto, costuma ser problemática, com resultados não polarizados. Voltemos aos exemplos (6) e (7): Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 155 (6) Ela vê o ilho e corre para ampará-lo/??Ø. [+animado, +especíico] (7) A tevê é atrativa e, sabendo usar ??ela/Ø, pode ter vantagens. [-animado, -especíico] Em (6), o antecedente é “o ilho” [+a, +e], e, por isso, parece mais natural retomá-lo utilizando o pronome clítico “lo”;5 já em (7), o antecedente tem os traços [-a, -e], e a tendência mais natural aqui é, a nosso ver, a de se fazer a retomada por um objeto nulo.6 Schwenter e Silva (2003) realizaram uma análise do corpus do PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua)7 a im de testar a hipótese de que os traços de animacidade e especiicidade inluenciam no tipo de retomada anafórica de objetos diretos de terceira pessoa. Alguns de seus resultados principais podem ser visualizados na Tabela 2. TABELA 2 – Objeto nulo vs. pronome no corpus do PEUL Traços ON Pronomes Total +a,+e 50 (28,4%) 126 (71,6%) 176 (100%) +a,-e 102 (89,5%) 12 (10,5%) 114 (100%) -a,+e 151 (100%) -------- 151 (100%) -a,-e 604 (97,9%) 13 (2,1%) 617 (100%) Fonte: Schwenter e Silva, 2003, p. 108. Os autores concluem que há uma diferença signiicativa entre os antecedentes [+a, +e] e os [+a, -e]: 71,6% de preferência por pronomes 5 Na fala, o mais natural seria retomar o referente com um pronome pleno (‘ele’). Mas, como nosso exemplo é de corpus escrito, o clítico é a opção preferida, como veremos na próxima seção. 6 Apresentamos, nesses dois exemplos, nosso julgamento de aceitabilidade, com base em nossa intuição, obviamente. Entretanto, testes de gramaticalidade e aceitabilidade envolvendo o uso de pronomes e ONs na retomada anafórica já foram empregados por Creus e Menuzzi (2004) e Othero et al. (2016), e os resultados apresentados ali conirmam esses julgamentos. 7 Corpus compilado por pesquisadores da UFRJ que reúne ocorrências de português falado no Rio de Janeiro no início dos anos de 1980. Foram utilizadas 1.250 ocorrências (cf. SCHWENTER; SILVA, 2003, p. 106). 156 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 contra 89,5% de preferência por ON. Isso pode indicar que o traço de especiicidade exerce alguma inluência sobre o de animacidade. Por outro lado, a diferença entre os objetos diretos com antecedentes [-a, +e] e [-a, -e] não é relevante, sugerindo não haver inluência da especiicidade nessa distribuição. Assim, ainda segundo os autores, o traço de animacidade é o principal condicionador a atuar sobre o objeto direto anafórico, ao passo que a especiicidade, por sua vez, seria um fator secundário, visto que os resultados não foram tão esclarecedores. Para Duarte (1989) e Cyrino (1994/1997), o traço de animacidade do antecedente exerce papel fundamental na distribuição de pronomes plenos e ONs em PB. Cyrino (1994/1997) sustenta que o traço de especiicidade também seria relevante, mas é o que menos polariza as retomadas anafóricas entre ON e pronome, apesar de inluenciar na escolha entre as duas formas. O fato é que a interação entre esses dois traços ainda não é totalmente clara. Assim, não temos uma classe natural opositiva clara, i.e., não podemos opor os antecedentes [+a] aos [-a]; tampouco os referentes com o traço [+e] podem se opor aos referentes [-e]; nem a combinação entre esses dois traços parece explicar a história toda. Para resolver esse aparente problema na hipótese que envolve os traços de animacidade e especiicidade do referente anafórico, Creus e Menuzzi (2004) chamaram a atenção para o fato de que uma distinção com base em um único traço semântico poderia explicar a escolha entre pronomes e ONs: o traço de gênero semântico. É o que veremos a seguir. 2.1.2 Gênero Semântico O traço de gênero semântico diz respeito à classiicação que distingue substantivos que denotam seres sexuados de substantivos que denotam seres não sexuados; ou, talvez de forma mais precisa, o traço distingue substantivos que denotam sexo natural aparente, como homem, mulher, professor, cachorro etc., de substantivos que não denotam sexo natural aparente, como mesa, livro, vítima, cônjuge, boneco, tartaruga etc. Referentes inanimados são marcados negativamente para esse traço;8 substantivos animados, contudo, não têm necessariamente um gênero semântico especíico: pessoa, habitante, estudante etc. Ou seja, 8 Contudo, como ressalta Ayres (2016), na fala de crianças, referentes inanimados podem ter gênero semântico, como Barbie vs. Ken, BonecodoWoody, etc. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 157 alguns substantivos têm gênero gramatical, mas não gênero semântico inerente9.A hipótese de Creus e Menuzzi (2004) é, basicamente, de que o traço de gênero semântico do referente atua como gatilho essencial para a retomada anafórica de objetos em terceira pessoa. Para eles, É claro que, destes dois traços [animacidade e especiicidade], o que tem papel central é o de animacidade, já que é ele que conigura as generalizações básicas do sistema; o traço de especiicidade parece ser relevante, na verdade, apenas para uma classe de antecedentes. Assim, parece-nos que a explicação do sistema de anáfora de objeto em PB [...] precisa identiicar no traço de animacidade aquele aspecto essencial que, ao mesmo tempo que traça as generalizações básicas, prevê também a possibilidade de alternativa para os antecedentes animados não-especíicos. A nosso ver, o aspecto fundamental do traço de animacidade é que ele está associado com distinções de gênero semântico. (CREUS; MENUZZI, 2004, p.7) Assim, um único traço seria suiciente para explicar como ocorre a retomada anafórica em PB, de maneira que, se o referente tem o traço [+gs], i.e., tem gênero semântico identiicável, é preferencialmente retomado por um pronome; caso contrário, a retomada anafórica tende a ser feita com objeto nulo: (8) A garota se irritou muito quando a mãe disse que iria levá-la ao Conselho Tutelar. (9) Juan teve uma ótima chance para matar logo o jogo, mas desperdiçou Ø. Em (8), “a garota” tem o traço [+gs], pois o falante “reconhece” o gênero sexual a que pertence o ser denotado por esse referente (note que o referente foi retomado por um pronome). Em (9), “uma ótima chance” não tem gênero semântico, e a retomada anafórica foi feita por uma categoria vazia. De acordo com a hipótese do gênero semântico, é esse traço que determina a escolha entre o pronome e a categoria vazia na realização do objeto direto anafórico. Do ponto de vista conceitual, Creus e Menuzzi acreditam que essa hipótese é mais “natural” que a 9 Cf. Câmara Jr. (1959) para uma distinção entre gênero semântico e gênero gramatical. 158 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 hipótese de animacidade e especiicidade, pelo fato de a opção entre um ON e um pronome pleno se dar por uma questão de concordância entre antecedente e forma anafórica: antecedentes com gênero semântico são retomados preferencialmente por pronomes porque esses pronomes são formas anafóricas especiicadas para gênero. Já os antecedentes sem gênero semântico favorecem a retomada por objetos nulos porque ONs são categorias não especiicadas para gênero. Dessa maneira, apenas um traço (e não uma combinação de traços) seria suiciente para explicar como ocorre a retomada anafórica em PB. Passemos, agora, à apresentação dos corpora de análise e aos resultados a que chegamos. 3 Corpora e análise dos dados Nesta seção, falaremos sobre nossos corpora de língua escrita e sobre nossa metodologia de análise, para, então, chegarmos aos resultados obtidos. Dois dos corpora utilizados em nossa pesquisa fazem parte do Projeto Por Popular, encampado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e o terceiro corpus é resultado do trabalho de Oliveira (2007). 3.1 Corpora O Projeto PorPopular (padrões do português popular escrito), coordenado pela Profa. Dra. Maria José Bocorny Finatto (UFRGS), tem o objetivo de organizar um corpus de jornais populares – destinados a públicos de menor poder aquisitivo – da região Nordeste e Sul do Brasil e disponibilizar o material para uso de pesquisadores. Atualmente, o projeto contém textos do jornal popular Diário Gaúcho (DG) – publicado em Porto Alegre (RS) – e do Jornal Massa!, o primeiro jornal popular da Bahia. Um dos objetivos do nosso trabalho é veriicar se as estratégias relativamente inovadoras e mais comuns de retomadas anafóricas na função de objeto direto em PB (pronomes plenos e objetos nulos) já estão presentes de maneira signiicativa em língua escrita padrão. Por isso, analisamos 250 textos do Jornal Diário Gaúcho (dos anos de 2008, 2010 e 2013) e 250 textos do Jornal Massa! (de 2012, 2014 e 2015), totalizando 462 páginas. Nossa hipótese é que, por se tratar de textos com estilo “popular” (destinado às classes C e D da população), os redatores Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 159 e jornalistas pudessem incorporar alguns elementos não estigmatizados, mas distintivos da língua falada, tal como a retomada anafórica de objetos por um elemento nulo ou mesmo por pronome pleno.10 Além disso, utilizamos também o corpus do trabalho de Oliveira (2007), composto de 88 redações escolares de crianças de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental de escolas de Curitiba, para averiguarmos como se dá a retomada anafórica no processo de aprendizagem do português brasileiro escrito.11 O objetivo de Oliveira (2007, p. 4) foi “abordar as mudanças ocorridas no português do Brasil, especiicamente quanto à alteração do paradigma pronominal para a posição de objeto direto”. Para isso, a autora analisou um corpus de 88 textos escolares escritos por crianças de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental entre os anos de 2002 e 2006 (22 textos de cada série). Diferentemente do que foi feito em nosso trabalho, que tratou apenas das retomadas com pronomes e objetos nulos, Oliveira se ocupou das seguintes retomadas anafóricas de objeto direto: (i) objeto nulo, (ii) pronome tônico ele/ela, (iii) SN anafórico pleno e (iv) clítico acusativo de 3ª pessoa. Além dos traços de animacidade e especiicidade do antecedente, a autora observou a natureza morfológica dos verbos (tempos simples ou compostos), a posição do clítico (próclise ou ênclise) e a série em que as crianças estavam. Seus resultados mostram que o ON é a estratégia mais comum nas redações das crianças (52% das ocorrências de retomada anafórica do objeto aconteceram com uma categoria vazia). Conforme vemos na Tabela 3, o traço de animacidade é relevante para o condicionamento do ON: 69% das ocorrências de ON aparecem quando o antecedente apresenta o traço [-animado]. Entretanto, o traço [+animado] também foi signiicativo nos contextos de ON: em 43% dos casos de ocorrências de objeto nulo, o antecedente apresenta o traço [+animado]. 10 Cf. Kenedy (2016) sobre características da fala vernacular em PB e sua relação com a escrita. 11 Agradecemos aqui à Profa. Dra. Maria José Finatto por ter gentilmente nos permitido acesso ao corpus do projeto PorPopular e à Profa. Dra. Solange Mendes Oliveira por ter-nos enviado uma lista contendo os dados detalhados de seu corpus. 160 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 TABELA 3 – Distribuição das variantes usadas segundo o traço semântico do antecedente Traço Objeto nulo Pronome tônico SN anafórico Clítico acusativo Total ocorrências % ocorrências % ocorrências % ocorrências % [+animado] 47/110 43 35/110 32 5/110 4 23/110 21 110 [-animado] 43/62 69 4/62 6 9/62 15 6/62 10 62 [outro] 1/2 50 0 0 0 0 1/2 50 2 TOTAL 91/174 52 39/174 23 14/174 8 30/174 17 174 Fonte: Oliveira, 2007, p. 18 (adaptado). A pesquisa também mostra que o uso do pronome na função de objeto começa a aparecer nas produções textuais dos alunos apenas nas séries inais, indicando que o grau de escolarização da criança e a normatização podem favorecer o uso de pronomes (especialmente clíticos) em corpus escrito, como vemos na Tabela 4. TABELA 4 – Ocorrências de pronomes clíticos de 3ª pessoa em relação à série da criança Clíticos acusativos de 3ª pessoa Série Nº de ocorrências 1ª 3 (8%) 2ª 8 (16%) 3ª 5 (11%) 4ª 14 (34%) Total 30 (100%) Fonte: Oliveira, 2007, p. 17 (adaptado). Para Oliveira (2007, p. 23), A quase não-ocorrência dessa variante nos dados da 1ª série (8%), de crianças com 6 anos de idade, evidencia que os clíticos de 3ª pessoa realmente não fazem parte da gramática nuclear da língua e, sim, são adquiridos na Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 161 escola, por meio do ensino formal. Os dados do corpus sugerem que a manutenção dessas formas no PB atual deve-se exclusivamente à ação normativa da escola [...] Isso indica também que o uso dos clíticos acusativos se dá primeiramente na linguagem escrita, via instrução formal.12 Ainda segundo os resultados da pesquisa, o traço [+animado] do antecedente favorece o uso do clítico acusativo em 21%, contra 10% de [-animado]. A ocorrência dessa variante também está relacionada ao traço [+especíico] do referente, em 18% dos casos. De qualquer forma, o levantamento dos dados de Oliveira (2007) indicou que o objeto nulo é a variante mais utilizada na escrita pelas crianças nas quatro séries investigadas, conirmando sua hipótese inicial de que esta seria a variante preferida por elas – e corroborando os achados de outros estudos com dados de língua infantil, como de Ayres (2016). Além disso, os resultados revelam que, na língua escrita, há sinais de um processo de aprendizagem do uso de clíticos acusativos no inal do primeiro segmento da escolarização (4ª série), algo também observado (ainda que indiretamente) por Bagno (2011) e Kenedy (2016). Por outro lado, Esse aprendizado [...] não tem a mesma natureza que a aquisição de objetos nulos ou de pronomes tônicos em posição de objeto direto, ou seja, as crianças não precisam ser formalmente ensinadas para internalizar pronomes tônicos ou objetos nulos na posição de objeto, enquanto a aquisição dos clíticos acusativos de 3ª pessoa só se dá via instrução formal. (OLIVEIRA, 2007, p. 27) Passemos agora à nossa metodologia: efetuamos a coleta dos dados, selecionando os objetos diretos anafóricos de 3ª pessoa em três formas: 12 Concordando com esses resultados, os trabalhos de Casagrande (2007) e de Ayres (2016) também trazem resultados sobre a generalização do uso das formas nulas na gramática infantil. Entretanto, esses trabalhos também chamam a atenção para o fato de que a escolarização do falante não é o único fator que inluencia o uso de clíticos. Ayres (2016), por exemplo, relata que um falante (de sua pesquisa) em idade préescolar usa mais pronomes clíticos do que tônicos, devido a seu contexto familiar e sócio-econômico elevado. 162 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 a) objeto nulo – categoria vazia na função de objeto; b) pronome pleno – função de objeto preenchida por um pronome pessoal reto; c) pronome clítico – emprego de um pronome oblíquo átono para a retomada anafórica de objeto direto. Coletamos todas as ocorrências de retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa e, para cada ocorrência encontrada, buscamos o referente e analisamos seus traços (animacidade, especiicidade e gênero semântico), atribuindo um valor positivo ou negativo. 3.2 Análise dos dados e resultados Nos corpora dos jornais, encontramos um total de 332 ocorrências de retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa. Desse número, 116 referentes foram retomados por objeto nulo, 208 por pronomes clíticos e apenas 8 por pronomes plenos. Do total de ocorrências com pronomes, os clíticos representam 96,3%, enquanto os pronomes plenos somam apenas 3,7%. Por isso, na tabela a seguir e em toda a análise dos nossos resultados, juntamos os dois tipos de formas preenchidas na categoria “Pronomes”. TABELA 5 – Total de ocorrências de retomada anafórica nos corpora DG e Massa! Tipo de retomada Ocorrências Objeto nulo 116 (35%) Pronomes 216 (65%) 208 (96,3%) clíticos 8 (3,7%) pronomes plenos Total 332 (100%) Fonte: Elaborada pelos autores. Apesar de haver uma presença signiicativa de objetos nulos, i.e. um pouco mais de um terço das ocorrências, o pronome clítico ainda é predominante em língua escrita padrão, mesmo na mídia impressa dita popular, como são os jornais Diário Gaúcho e Massa!. O Gráico 2, a Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 163 seguir, nos permite visualizar melhor a distribuição entre as formas nulas e preenchidas nesses dois corpora: GRÁFICO 2 – Distribuição entre as formas numas e preenchidas nos corpora analisados Fonte: Elaborado pelos autores. Entre o grupo de pronomes, como mencionamos acima, a predominância é entre os pronomes clíticos de 3ª pessoa, tal como pode ser visualizado no Gráico 3, a seguir. GRÁFICO 3 – Distribuição entre pronomes clíticos e pronomes plenos nos dados totais dos corpora jornalísticos Fonte: Elaborado pelo autores. 164 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Ou seja, ainda há uma prevalência da norma culta de base gramatical normativa, mesmo em textos ditos “populares”. Se observarmos separadamente o número de ocorrências em cada corpus, notamos que não há diferenças muito expressivas em relação à quantidade de retomadas anafóricas; por isso, optamos por amalgamar nossos dados na análise dos dois jornais, como representado na Tabela 6. TABELA 6 – Ocorrências totais de tipos de retomada anafórica nos corpora DG e Massa! Nº de ocorrências Tipos de retomada TOTAL Corpus Diário Gaúcho Corpus Massa! ON 72 (37,1%) 44 (31,9%) 116 (35%) Clíticos 115 (59,3%) 93 (67,4%) 208 (62,6%) Pronomes plenos 7 (3,6%) 1 (0,7%) 8 (2,4%) TOTAL 194 (100%) 138 (100%) 332 (100%) Fonte: Elaborada pelos autores. Poderíamos pensar que, por nossos corpora jornalísticos serem de regiões muito diferentes – Sul e Nordeste – haveria uma diferença dialetal entre eles, principalmente no que diz respeito à conservação dos clíticos. Entretanto, não é o que acontece: no corpus do Jornal Massa! há preferência por clíticos (67,4% dos casos de retomada anafórica), assim como encontramos no corpus do Jornal Diário Gaúcho (59,3%), de Porto Alegre. A diferença de porcentagem se deve, talvez, à diferença do número de ocorrências encontradas no total de cada corpus. Ao analisarmos se a combinação dos traços de animacidade e especiicidadedos referentes é capaz de explicar a escolha entre ON e pronome na retomada anafórica de objeto direto em nosso corpus, encontramos os resultados apresentados na Tabela 7, a seguir. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 165 TABELA 7 – Combinações dos traços [animacidade] e [especiicidade] e ocorrências objetos nulos vs. pronomes em nossos corpora de jornais Traço do antecedente Objeto Nulo Pronomes [+a, +e] 2 (1,3%) 153 (98,7%) [+a, -e] -- 10 (100%) [-a, +e] 76 (72,4%) 29 (27,6%) [-a, -e] 38 (61,3%) 24 (38,7%) Fonte: Elaborada pelos autores. Por um lado, os resultados mostram que a combinação desses dois traços não é a melhor hipótese para a explicação da distribuição entre pronome e ON, uma vez que o traço de animacidade isolado responderia melhor como se dá o condicionamento da retomada anafórica do que a combinação entre os dois traços. Ou seja, o traço de especiicidade se mostrou redundante, e sua inluência não é clara: os referentes com o traço [+animado] são, majoritariamente, retomados por pronomes (98,7% na segunda linha e 100% na terceira linha da tabela); já os referentes com o traço [+especíico], ora são retomados por pronomes (98,7% na segunda linha), ora, por categoria vazia (72,4% na quarta linha da tabela). Por outro lado, se levarmos em consideração apenas o traço de animacidade, os casos [-animados] não são tão claros, uma vez que não formam uma classe natural opositiva, i.e., não há uma polarização tão categórica dos resultados. Em referentes [-a, -e], por exemplo, os números não esclarecem uma preferência por ON ou pronome muito polarizada (mais de 2/3 das ocorrências se dão com pronomes). Uma possibilidade – e talvez uma hipótese a ser testada – é que haja cruzamento de gênero gramatical (antigo sistema dos clíticos) com gênero semântico (novo sistema do PB falado). Especiicamente, em antecedentes [+animados], a forma anafórica segue o gênero gramatical do antecedente; em referentes [-animados], a forma anafórica tende a ser nula por causa da ausência de gênero semântico. O que acontece em referentes [-a, -e], em que não há uma preferência clara por objetos nulos ou pronomes, deve resultar justamente da sobreposição desses dois sistemas existentes: o antigo sistema de clíticos e o novo sistema pronominal do PB falado. Isso explicaria se há uma diferença entre uso de nulos em trechos que reportam fala vs. trechos da “narrativa 166 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 propriamente dita”, mas provavelmente não é aleatório e deve haver algum fator discursivo intervindo nisso – voltaremos a essa ideia mais à frente, quando discutirmos os dados com relação ao gênero semântico do referente. De qualquer maneira, nossos resultados em relação à combinação dos traços de animacidade e especiicidade estão de acordo com as análises mencionadas na literatura, na medida em que o traço de animacidade do antecedente exerce papel importante na distribuição de pronomes e ONs em PB, e também pelo fato de que o traço de especiicidade é o que menos polariza esses tipos de retomada anafórica, apesar de inluenciar na escolha entre as duas formas (aqui, atua sobre os [-animados]), conforme se vê no Gráico 4, seguir. GRÁFICO 4 – Combinações dos traços de [animacidade] e [especiicidade Fonte: Elaborado pelos autores É possível observar que a interação entre esses dois traços ainda não é totalmente clara. Passemos, então, à hipótese do gênero semântico. A hipótese do gênero semântico como condicionador da escolha entre ON e pronome parece explicar as retomadas anafóricas em PB de uma forma mais clara: o maior número de ocorrências de pronomes acontece quando os referentes têm o traço [+gs], assim como o maior número de ONs ocorre com antecedentes com o traço [-gs]. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 167 TABELA 8 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes Traço do antecedente Objeto Nulo Pronomes [+gs] 2 (1,3%) 147 (98,7%) [-gs] 114 (62,3%) 69 (37,7%) Fonte: Elaborada pelos autores. Quando o antecedente tem o traço de gênero semântico marcado positivamente [+gs], é retomado por um pronome (é o que acontece em 98,7% dos casos); caso contrário, é preferencialmente retomado por um ON, mesmo que de forma não categórica (62,3% dos casos),como ilustrado no Gráico 5. GRÁFICO 5 – Traço [gênero semântico] e ocorrências de objetos nulos vs. pronomes Fonte: Elaborado pelos autores. Analisando apenas as ocorrências de ONs, dividindo-as entre as que se deram com referente com traço [-gs] e [+gs], notamos que a maioria (98,7% dos casos) de ocorrências de ONs acontece em retomadas de antecedentes com o traço [-gs]. Nossos resultados, portanto, vão ao encontro da hipótese de Creus e Menuzzi (2004), uma vez que o traço 168 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 de gênero semântico parece ser condicionador da retomada anafórica de objeto nulo – ao menos em nosso corpus de língua escrita popular. Ver Gráico 6. GRÁFICO 6 – Traço [gênero semântico] e ONs Fonte: Elaborado pelos autores. Inversamente, como demonstrado no Gráico 7, ao analisarmos apenas as retomadas anafóricas feitas por pronomes, percebemos que eles têm a tendência de recuperar antecedentes com o traço [+gs]. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 169 GRÁFICO 7 – Traço [gênero semântico] e pronomes Fonte: Elaborado pelos autores. Considerando as duas hipóteses aqui comparadas e os resultados quantitativos a que chegamos, poderíamos pensar, ainda, que apenas o traço de animacidade do antecedente explicaria o fenômeno de retomada anafórica de forma mais clara, pois, como temos alertado ao longo do texto, esse traço exerce papel de grande importância na distribuição de pronomes e ONs em PB, conforme demonstrado na Tabela 9. TABELA 9 – Traço [animacidade] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes nos corpora de jornais Traço do antecedente ONs Pronomes [+a] 2 (1,2%) 163 (98,8%) [-a] 114 (68,3%) 53 (31,7%) Fonte: Elaborada pelos autores. De certa forma, o traço de animacidade do referente explica, em nosso corpus, como se dá a escolha entre os tipos de retomada anafórica pesquisados, ainda que os resultados não sejam categóricos. Referentes [+animados] são quase sempre retomados por pronomes (98,8%), enquanto referentes [-animados] são preferencialmente retomados por ONs (68,3%), embora, em alguns casos, a retomada ocorra com pronomes (31,7%). Esses números são muito semelhantes aos que encontramos na 170 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 análise com o traço de gênero semântico, como podemos veriicar na Tabela 10, repetida a seguir por conveniência. TABELA 10 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes Traço do antecedente ONs Pronomes [+gs] 2 (1,3%) 147 (98,7%) [-gs] 114 (62,3%) 69 (37,7%) Fonte: Elaborada pelos autores. Os números coincidem dessa forma pelo fato de a maioria dos antecedentes ser [+a, +gs] ou [-a, -gs]. Temos, em muitos dos casos, uma quase sobreposição entre esses dois traços: referentes animados, na maioria das vezes, também são aqueles que têm gênero semântico; por outro lado, referentes [-animados] são majoritariamente [-gênero semântico]. Entretanto, aqui havíamos nos proposto a comparar as duas hipóteses correntes na literatura sobre o condicionamento da retomada anafórica em PB: a hipótese do gênero semântico versus a hipótese do traço de animacidade em conjunto com o de especiicidade. A partir disso, se seguirmos o princípio da Navalha de Occam, i.e., se, entre essas duas teorias que explicam os mesmos fatos, considerarmos a mais simples como a mais adequada para explicar o fenômeno da retomada anafórica em PB, a hipótese do gênero semântico (que envolve apenas um único traço do referente) explica o condicionamento entre objeto nulo vs. pronomes de maneira mais adequada e econômica. Também há uma vantagem conceitual para a hipótese do gênero semântico, uma vez que, como airmam Creus e Menuzzi (2004, p. 7), estamos diante de um processo geral de anáfora. Em outras palavras, estamos tratando de um processo de concordância entre forma anafórica e antecedente: referentes com gênero semântico são retomados preferencialmente por pronomes porque esses são formas anafóricas especificadas para gênero (sejam pronomes plenos, ‘ele’/‘ela’; ou clíticos ‘o’/‘a’). Já os antecedentes sem gênero semântico favorecem a retomada por objetos nulos porque ONs são categorias não especiicadas para gênero. Para a teoria baseada em animacidade, há a necessidade de um empenho maior para explicar o motivo de animados demandarem pronomes e não animados requererem objetos nulos. E, mais uma vez, o gênero semântico pode explicar o fenômeno, considerando-se o fato Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 171 de que somente os antecedentes [+animados] podem ser associados a gênero semântico.13 Passemos à análise das ocorrências que encontramos no corpus de redações escolares. Encontramos 86 ocorrências de retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa, sendo 35 retomadas por ON, 26, por pronomes plenos, e 25, por clíticos, representadas em porcentagem no Gráico 8, a seguir.14 GRÁFICO 8 – Distribuição entre ON, pronomes plenos e clíticos no corpus de redações escolares Fonte: Elaborado pelos autores. 13 Othero et al. (2016, p. 78-9) chegam, mais ou menos, à mesma conclusão usando o conceito de marcação. Em suas palavras: “Nossa ideia básica é relativamente simples: baseamo-nos no fato já bastante conhecido de que o objeto direto prototípico (nas línguas humanas, de maneira geral) é um referente não animado ou não humano (assim como o sujeito prototípico é um referente animado). [...] temos em PB uma estratégia relativamente inovadora [...] para a retomada de objetos (prototipicamente inanimados e, portanto, sem gênero semântico): a retomada anafórica com uma categoria vazia, o objeto nulo. Defendemos que essa é a estratégia default, não marcada. Ela é mais frequente [...], tem menos material linguístico (Ø) e é mais comum na produção de crianças em fase de aquisição da linguagem [...].Por outro lado, caso o sistema depare com um caso atípico, i.e., com um objeto direto anafórico cujo referente tem o traço [+gs], usa-se o pronome. Trata-se da conhecida condição de Else where [...]: o uso de uma forma mais especíica se aplica antes de uma forma mais genérica (a forma menos marcada, objeto nulo, sendo a menos especíica)”. Grifos dos autores. 14 Encontramos apenas 9 ocorrências de elipses de VP e optamos por não contabilizá-las em nossa análise, uma vez que o cerne do nosso trabalho está no fenômeno do objeto nulo em PB, como já advertimos. 172 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Os dados mostram que o objeto nulo é a estratégia de retomada preferida pelas crianças – cenário distinto daquele encontrado na escrita jornalística que pesquisamos, ainda que também distinta dos dados de fala de crianças, que demonstram ser o ON a principal estratégia de retomada anafórica do objeto, como mostram, por exemplo, os dados de Ayres (2016, p. 36), que investigou o fenômeno de retomada anafórica do objeto em corpus de língua falada infantil: 76,1% ON, 5,6% pronome pleno, 1,8% clíticos. Entretanto, ao agruparmos a classe dos pronomes (plenos + clíticos), a situação se inverte. De toda sorte, em termos percentuais, há mais ONs na escrita infantil do que na escrita jornalística popular. Também podemos constatar aqui que o traço de animacidade é relevante para o condicionamento entre ON e pronome (ver Tabela 11). Já os referentes com o traço [±especíico] ora são retomados por pronomes, ora por categoria vazia. TABELA 11 – Traços de [animacidade] e [especiicidade] no corpus de redações escolares Traços do antecedente ONs Pronomes TOTAL [+a, +e] 9 (19,6%) 37 (80,4%) 46 [+a, -e] 1 (25%) 3 (75%) 4 [-a, +e] 15 (71,4%) 6 (28,6%) 21 [-a, -e] 10 (66,7%) 5 (33,3%) 15 Fonte: Elaborada pelos autores. Os dados de referentes [-animados] são semelhantes ao que encontramos no corpus de textos jornalísticos; todavia, com os referentes [+animados] a situação é bem menos polarizada. Ou seja, se analisarmos esses dados com base na hipótese dos traços de animacidade e especiicidade, estaremos recaindo sobre os mesmos problemas já citados anteriormente, quando analisamos os textos jornalísticos: a interação entre os dois traços não nos fornece uma explicação clara, nem resultados categóricos para o fenômeno da retomada anafórica. Da mesma maneira, se analisarmos o corpus levando-se em conta a hipótese de gênero semântico, o condicionamento da escolha entre ON e pronomes ica mais claro: antecedentes com o traço [+gs] favorecem pronomes, enquanto referentes [-gs] favorecem ONs, conforme demonstrado na Tabela 12. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 173 TABELA 12 – [gênero semântico] no corpus de redações escolares Traço do antecedente ONs Pronomes [+gs] 3 (8,6%) 32 (91,4%) [-gs] 32 (62,7%) 19 (37,3%) Fonte: Elaborada pelos autores. Ainda que os resultados também não sejam tão polarizados (em referentes com o traço [-gs], por exemplo, temos 62,7% de ON vs. 37,3% de pronomes), a hipótese do gênero semântico continua explicando o fenômeno de retomada anafórica em PB de uma forma mais econômica, por meio de um único traço, e, principalmente, de uma forma mais natural, pois trata-se simplesmente de um processo geral de anáfora, no qual a forma anafórica (ON ou pronome) concorda com seu antecedente. Os dados que encontramos ao reanalisar o corpus de Oliveira (2007) contribuem para nossa pesquisa na medida em que são semelhantes aos resultados a que chegamos com os corpora do Projeto PorPopular, indicando que o gênero semântico parece ser o traço condicionador da retomada anafórica de objeto nulo. (Ver Gráicos 9 e 10) GRÁFICO 9 – ONs no corpus de redações escolares Fonte: Elaborado pelos autores. 174 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 GRÁFICO 10 – Pronomes no corpus de redações escolares Fonte: Elaborado pelos autores. Além disso, os dados do corpus de redações infantis escolares, assim como os resultados já apresentados por Oliveira (2007), nos mostram que o clítico ainda é muito usado pelas crianças como forma anafórica na língua escrita: seu uso começa a aparecer nos dados textuais apenas nas séries inais, à medida que o grau de escolarização e normatização em que a criança está inserida vai aumentando, conforme se demonstra na Tabela 13. TABELA 13 – Ocorrências de pronomes clíticos de 3ª pessoa em relação à série da criança Clíticos acusativos de 3ª pessoa Série Nº de ocorrências 1ª 3 (8%) 2ª 8 (16%) 3ª 5 (11%) 4ª 14 (34%) Total 30 (100%) Fonte: Elaborada pelos autores Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 175 Em suma, o papel da escolarização mantêm os clíticos de 3ª pessoa como parte do quadro pronominal em PB, o que explica o fato de termos quase ausência de pronomes plenos (em função de objeto direto) em nossos corpora de jornais (em oposição à larga ocorrência de pronomes clíticos). Ainda que sejam considerados jornais da mídia impressa dita “popular”, são, antes de tudo, textos monitorados e revisados de acordo com a norma gramatical tradicional. Na próxima seção, veremos os casos de antecedentes [-gs] que são retomados por pronomes, ou seja, casos de “exceção” às predições da hipótese do gênero semântico. 3.3 Discussões interessantes Nesta seção, abordaremos os dados encontrados que não “se comportam” de acordo com as previsões da hipótese do gênero semântico, i.e., casos em que antecedentes [-gs] são retomados por pronomes e casos em que antecedentes [+gs] são retomados por objeto nulo. Muitos desses “casos destoantes” são retomadas anafóricas inluenciadas por princípios discursivos particulares outros que não os traços do referente. 3.3.1 Análise dos casos “destoantes” com pronomes Ainda que tenhamos concluído que a hipótese do traço de gênero semântico seja a mais adequada para explicar a retomada anafórica de objeto direto de 3ª pessoa em PB escrito, não encontramos resultados polarizados, i.e., nossos resultados não nos possibilitaram estabelecer classes naturais opositivas claras. Isso talvez se deva ao fato de que encontramos muitas ocorrências de referentes com o traço [-gs] sendo retomados por pronome, quando o esperado era a retomada anafórica realizada com objeto nulo.Vejamos a Tabela 10 novamente. TABELA 10 – Traço [gênero semântico] e ocorrências objeto nulo vs. pronomes Traço do antecedente Objeto Nulo Pronomes [+gs] 2 (1,3%) 147 (98,7%) [-gs] 114 (62,3%) 69 (37,7%) Fonte: Elaborada pelos autores. 176 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Com o traço [+gs], os resultados são bem polarizados: 98,7% de retomadas feitas com pronomes. Já os referentes [-gs] são preferencialmente retomados com ONs, mas não encontramos aí um resultado categórico, visto que, em pouco mais de um terço dos casos, a retomada anafórica foi realizada com pronome. Se levarmos em consideração a ideia de que há sobreposição entre dois sistemas no PB, o grande número de clíticos retomando referentes [-gs] pode indicar que o antigo sistema ainda está se manifestando em resíduo – ou seja, o clítico (como forma conservadora de retomada anafórica de objeto) ainda se mantém. De qualquer maneira, analisando cada caso isoladamente, chegamos à hipótese de que, nessas ocorrências, a retomada anafórica foi feita com um pronome devido a questões discursivas particulares. Organizamos esses casos em três categorias distintas: (i) concordância ideológica, (ii) referência a grupos (coletivos) e (iii) acessibilidade do referente. Concordância ideológica É o tipo de concordância que se faz pelo sentido e, por isso, é também denominada “concordância de palavra para sentido” (BECHARA 2009, p. 555). Encontramos três casos de retomada anafórica com concordância ideológica, todos com referentes [-gs] e retomados por pronomes, o que nos leva a crer que, nos casos desse tipo de concordância, a tendência é que o pronome seja mantido. (10) A Defensoria Pública procurou a família para auxiliá-los nesta questão. (11) Prometi que se ele icasse bom, eu faria uma festa no Natal com a gurizada da vila. [...] Com o tempo e a ajuda de vizinhos e voluntários anônimos, a festa cresceu. (...) Os doadores não apareceram. Estou preocupada, mas não vou desistir. Se for preciso sairei só com o saco vazio para animá-los. (12) No entanto, contou que pagou R$ 300 pelo revólver calibre 38 na Feira do Pau, há um mês e a deixou guardada. Em (10) e (11), há concordância ideológica de número: a informação semântica de plural presente nos antecedentes ‘a família’ e ‘a gurizada’ inluencia na retomada anafórica, acionando o plural na Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 177 retomada com pronome eestabelecendo concordância. Já em (12), a concordância é de gênero, pois a informação semântica subentendida em ‘revólver calibre 38’ é a de que este objeto é hipônimo de ‘arma’ e, portanto, a concordância foi feita com o gênero feminino do hiperônimo ‘arma’. Grupos (coletivos) Em nossos dados, seis casos de referentes [-gs] retomados por pronomes se encaixam nessa categoria, i.e., todos os antecedentes, nesse caso, fazem denotação a um grupo de pessoas ou coletivos de indivíduos especíicos: (13) Dependemos de encontrar médicos [...] mas não conseguimos atraí-los. (14) A enfermeira explica que atividades como essa são fundamentais para trazer alegria aos idosos e também para quem trabalha na casa. – Essa tarde deixou eles de alma lavada. E para nós, funcionários, é como se a gente pudesse se reenergizar. (15) Conseguimos separar um elenco legal, na parte vocal, e enquadrálo nas vozes de cada personagem. Em (13) e (14), “médicos” e “os idosos” recebem o traço [-gs] porque fazem referência a grupos ainda não estabelecidos e que podem ser formados por homens e mulheres; por isso, não conseguimos identiicar o sexo natural (gênero semântico) nesses referentes. Também em (15) temos uma situação semelhante, em que o referente “um elenco geral” denota o coletivo de atores e, portanto, tem o traço [-gs]. Na verdade, todos os casos que encontramos (seis casos) desse tipo foram retomados por pronome (e não ON, como esperávamos). Em todos esses casos, trata-se de concordância gramatical, o que pode comprovar –caso seja feita uma análise mais aprofundada – a hipótese de que, em casos de referentes [+animados], a inluência maior é do gênero gramatical, e não semântico. 178 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 Acessibilidade do referente Em 18 ocorrências do corpus, a retomada anafórica de um antecedente [-gs] foi realizada com pronome por uma questão de acessibilidade do referente. Em outras palavras, o pronome foi mantido para identiicar o antecedente correto, por uma questão de distância entre anáfora e referente ou por competição com outros possíveis antecedentes. Em (16), por exemplo, a acessibilidade do referente poderia icar comprometida caso fosse usada uma categoria vazia na função de objeto (há outros referentes possíveis no meio do período, como ‘o local’ e ‘a prova’). (16) O participante receberá até 18 de agosto, no endereço indicado na inscrição, o cartão de conirmação com o local onde fará a prova. Se não recebê-lo até esta data, o inscrito deverá procurar os Correios. O exemplo a seguir é ainda mais claro: (17) Sempre que vê o celular do pai, o pintor automotivo Seriano Vargas, 25 anos, dando sopa no bolso da calça, pega-o para jogar um pouquinho. A quantidade de informações em uma mesma frase, como em (16), faz surgir a necessidade de pronome na retomada anafórica, mesmo que o antecedente seja [-gs]. Amaral (2004) assume a hipótese da topicalidade discursiva para solucionar os casos “anômalos” de Schwenter e Silva (2003), em que os referentes foram retomados com pronomes quando suas propriedades pareciam indicar o uso de ON. Segundo Amaral (2004, p. 1), os referentes pronominais não se limitam às características semântico-pragmáticas, mas a estrutura discursiva também desempenha papel relevante: “as características do discurso se sobrepõem aos traços semântico-pragmáticos quando a coerência discursiva está em jogo”. O grau de coerência discursiva está relacionado à diiculdade de processamento de um texto. Como certos elementos de um dado enunciado são mais centrais que outros, se esse elemento central é tratado de forma diferente no enunciado seguinte, há um impacto na coerência do discurso, i.e., se o centro do discurso muda, aumenta a Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 179 carga de inferência de que o leitor precisa para processar corretamente o enunciado (cf. AMARAL, 2004), como em (18). (18) O João ensina inglês. Ele é muito bom professor para o Paulo. Ele explica a matéria com clareza. Ele está aprendendo muito rápido. (exemplo de AMARAL, 2004, p. 3) Até a terceira frase de (18), identiicamos “O João” como o elemento central. Quando esse centro muda (e, nesse caso, a forma anafórica continua a mesma), é mais difícil identiicar qual referente é o foco do discurso; assim, a última frase se torna menos coerente: “a forma do objeto direto anafórico selecionada pelo falante relete seu desejo de marcar um determinado elemento como possível tópico do discurso”(AMARAL, 2004, p. 7). (19) Soube, tempos depois, que havia perdido uma oportunidade de emprego devido ao meu cabelo. Mas lembro que, naquela época, éramos todas contra o alisamento. Naquela época, o corte era bem deinido. Cortado com precisão. Para penteá-lo, era usado o chamado garfo. Em (19), “o meu cabelo” ([-gs]) foi introduzido como tópico na primeira frase. Depois, a entrevistada pelo jornal comenta sobre os costumes da época e decide reintroduzir “o meu cabelo” como tópico, utilizando, para isso, o pronome como forma de retomada anafórica, em vez do objeto nulo, reforçando o tópico do discurso e facilitando a acessibilidade do referente. Outro exemplo: (20) Ao contrário do que as empresas de telefonia airmaram, a AesSul airma que o poste em questão é, sim, de responsabilidade deste serviço. O Diário Gaúcho se compromete a procurá-las, para identiicar quem deve fazer a troca. Em (20), temos um caso semelhante. Aqui a acessibilidade do referente icaria comprometida caso tivesse sido utilizada uma forma nula na posição de objeto, já que há outros referentes possíveis no meio 180 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 do trecho (como “a AesSul”, “o poste” ou “este serviço”). Se o redator escolhesse uma forma nula, não conseguiria indicar para o seu leitor a mudança no tópico discursivo, e os sujeitos dos últimos enunciados seriam mais salientes. Análise dos casos “destoantes” com ONs É interessante destacar que 63,8% dos referentes retomados com ONs estão dentro de alguma fala (no discurso direto), indicando que esse tipo de retomada anafórica é, realmente, frequente em língua falada (de todo modo, o ON também já está presente de maneira signiicativa em língua escrita padrão, pois 36,2% das ocorrências de ON apareceram no corpo do texto dos jornais). Encontramos apenas dois casos que consideramos “anômalos”, em que a retomada de um antecedente com o traço [+gs] foi feita com objeto nulo, em vez do pronome, como esperado. Novamente, questões discursivas parecem estar em jogo, e uma análise motivada pela topicalidade, como propõe Amaral (2004), nos permite chegar a uma explicação para esses casos. Se o elemento [+gs] já está estabelecido como tópico do discurso, i.e., se outros elementos no enunciado asseguram a topicalidade do discurso, o falante (nesse caso, o redator) pode optar por uma forma nula sem “dar indicações errôneas ou permitir falsos julgamentos sobre o centro do discurso” (AMARAL, 2004, p. 7). É o que vemos em (21), pois “o pequeno Pedro Machado Borgmann” é colocado como o elemento central e se mantém como tópico do discurso ao longo de todo o enunciado. Ao inal, é retomado com ON, uma vez que seu status de tópico já está assegurado. (21) Quando chega da creche, no inal da tarde, o pequeno Pedro Machado Borgmann, quatro anos, já tem estabelecida sua rotina: se divertir com os joguinhos do tablet até a hora da janta. Em agosto, quando completou quatro anos, Pedro abriu mão de uma festa de aniversário com o tema do SuperMan para ganhar o tablet de presente. Teve uma comemoração simples na creche e, desde então, desliza os polegares e indicadores na tela do computador portátil. Envolvido com a brincadeira digital, chega a pedir silêncio à mãe. Ainal, precisa de concentração. Acha sozinho jogos e aplicativos, vai movendo os personagens, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 181 derrubando obstáculos. De tão quietinho, quase nem se nota a presença em casa, e ele nem ouve a mãe chamar Ø. Para Amaral (2004, p. 7), Se um elemento anafórico que é tópico do discurso tem um referente que apresenta as propriedades de um possível tópico, e se outras características do discurso garantem que este elemento seja o tópico, o falante pode optar por uma forma menos marcada para sua realização. Em (22), vemos que nossa outra ocorrência de referente [+gs] retomado com objeto nulo parece reforçar essa hipótese. O tópico central, “Daniel de Moura Ribeiro”, é assegurado por outros elementos discursivos, como “o menino esperto”, para, então, ser retomado com uma categoria vazia. (22) É até difícil de acreditar que Daniel de Moura Ribeiro tenha apenas quatro anos. Com 41kg distribuídos em seu 1,15m de altura, o menino esperto preocupa a família pelo excesso de peso. Em acompanhamento com um pediatra de Viamão, onde mora, os exames do menino revelam que ele precisa de uma atenção especial. [...] Isso está, inclusive, documentado na carteirinha de saúde do menino. [...] Além do atendimento com um endocrinologista, Daniel também foi encaminhado, com urgência, no inal de julho, para uma consulta com neurologista pediátrico. [...] – Ele tá muito agitado, precisa tomar remédio para dormir. Como vai ser quando ele tiver de ir para a escola no ano que vem? – preocupa-se a bisavó. Conforme a secretária de saúde de Viamão, Sandra Sperotto, e de acordo com comprovantes enviados ao jornal, o agendamento com o especialista foi correto. No entanto, o médico teria se negado a atender Ø. Assim, nos parece que, além do traço de gênero semântico do antecedente, questões discursivas e contextuais em que ocorre a retomada anafórica de objeto direto também são relevantes para explicar como se dá a escolha entre pronome e ON na escrita em PB. 182 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 4 Considerações inais Neste trabalho, investigamos a retomada do objeto direto de 3ª pessoa em PB, especiicamente em língua escrita, e procuramos averiguar se as estratégias relativamente inovadoras e mais comuns em língua falada – pronomes plenos e ONs – já estão presentes de maneira signiicativa em língua escrita. Para isso, analisamos dois corpora de jornais populares e um corpus de redações escolares (e classiicamos os referentes das retomadas anafóricas com base nos traços de animacidade, especiicidade e gênero semântico). Buscamos analisar nossos dados considerando as duas hipóteses existentes na literatura sobre o condicionamento da retomada anafórica de objetos diretos em PB, a saber, a hipótese dos traços de animacidade e especiicidade e a hipótese do gênero semântico, para, então, contrastar os resultados encontrados e chegarmos a uma explicação mais clara para o fenômeno de retomada anafórica. Em primeiro lugar, veriicamos que o pronome clítico tem a tendência de se manter no discurso escrito, ao contrário do que acontece com a fala vernacular em PB, indicando que o grau de escolarização e normatização ainda é muito forte na mídia impressa. O clítico também é bastante usado pelas crianças como forma anafórica na língua escrita, aparecendo nos dados textuais nas séries inais, à medida que o grau de escolarização e normatização em que a criança está inserida vai aumentando. Ainda assim, quando encontramos ONs, a hipótese do gênero semântico parece explicar o fenômeno de retomada anafórica de uma forma mais econômica (em contraste com a hipótese de animacidade e especiicidade), com base em um único traço (princípio da Navalha de Occam) e, principalmente, de uma forma mais natural, pois, nesse caso, estamos diante de um processo geral de anáfora, no qual forma anafórica ON ou pronome) concorda com seu antecedente. Por im, discutimos alguns casos que não “se comportam” de acordo com as previsões da hipótese do gênero semântico, acreditando que esses “casos destoantes” sejam retomadas anafóricas inluenciadas por princípios discursivos particulares. Esperamos que nosso trabalho tenha contribuído para os estudos do fenômeno em PB, principalmente em língua escrita padrão contemporânea e língua jornalística popular. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 147-185, 2018 183 Agradecimentos Agradecemos a Sergio Menuzzi e Mônica Rigo Ayres por terem lido uma versão prévia deste texto e nos terem fornecido boas orientações sobre nosso trabalho. Referências AMARAL, L. A. A forma do objeto direto em português – uma análise motivada pela topicalidade. In: CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA, VIII, 2004. Anais... Rio de Janeiro: UERJ, 2004. AYRES, M. R. Aspectos condicionadores do objeto nulo e do pronome pleno em português brasileiro: uma análise da fala infantil. 2016. 63f. Dissertação (Mestrado) – PUCRS, Porto Alegre, 2016. BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. BECHARA, E. Gramática Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 Variação e deinição de queda de sílaba: o contexto segmental em Capivari-SP e Campinas-SP Variation and Deinition of Syllable Drop: The Segmental Context in Capivari-SP and Campinas-SP Eneida de Goes Leal Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil CAPES eneidaleal@yahoo.com Resumo: Neste artigo, o objetivo é comparar o nível segmental de variação de queda de sílaba em duas cidades do interior de São Paulo, Capivari e Campinas, com base nos resultados da tese de Leal (2012). Decidiu-se por apresentar exclusivamente os resultados do contexto segmental porque é nesse nível fonológico que o processo é deinido (LEAL, 2006, 2007). O trabalho foi fundamentado na geometria de traços (CLEMENTS; HUME, 1995) e na sociolinguística variacionista (cf. LABOV, 1972, 1994, 2001), aplicadas a um corpus de 48 entrevistas (24 em cada cidade). Os resultados revelam que consoantes coronais favorecem, e nasais desfavorecem o processo, em ambos os dialetos. No entanto, há uma grande diferença na implementação com dorsais: o processo é favorecido em Capivari e desfavorecido em Campinas. Quanto às vogais, pudemos veriicar que há diferenças nas duas cidades, pois sequências [coronal + coronal] e [dorso-labial + coronal] são neutras em Capivari e favorecidas em Campinas. Também se constatou com os resultados que o OCP atua parcialmente no processo, já que rege a igualdade das consoantes, mas não das vogais. O que parece ser importante são as características da primeira sílaba – aquela sujeita ao eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.187-220 188 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 apagamento. Finalmente, a análise conclui que a implementação da queda de sílaba se dá diferentemente nas duas cidades, no que concerne ao contexto segmental. Palavras-chave: queda de sílaba; contexto segmental; sociolinguística variacionista; geometria de traços. Abstract: The principal aim in this paper is to compare the segmental context in syllable drop variation (in two cities of São Paulo State countryside, Capivari and Campinas), a study which is part of Leal’s (2012) dissertation. We have decided to show exclusively the results of the segmental context since this is the level in which the process is defined (LEAL, 2006, 2007). The theoretical background used was feature geometry (CLEMENTS; HUME, 1995), and variationist sociolinguistics (cf. LABOV, 1972, 1994, 2001), applied to a 48 interview corpus (24 from each city). The results show that coronal consonants favor the process and nasals disfavore it, in both of the dialects. However, there is great difference with dorsals: it is favored in Capivari and disfavored in Campinas. With regard to vowels, there are differences in the two cities, since [coronal + coronal] and [dorso-labial + coronal] sequences are neutral in Capivari and favored in Campinas. The results also revealed that OCP acts half way in the process, since it woks for consonants identity, but not for vowels. What seems to be relevant is the characteristics of the irst syllable – the one that undergoes deletion. Finally, we conclude that syllable drop is different in the cities. Keywords: syllable drop; segmental context; variationist sociolinguistics; feature geometry. Recebido em 28 de setembro de 2016. Aprovado em 02 de dezembro de 2016. Introdução Neste artigo, tratamos do contexto segmental na variação de queda de sílaba (como sândi externo) em duas cidades do interior paulista, Capivari e Campinas. Os resultados aqui apresentados fazem parte da pesquisa de Leal (2012), tese de doutorado em que, a im de comparar as interferências e características de queda de sílaba nas duas cidades, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 189 foram consideradas 14 variáveis internas e externas.1 Dessas variáveis, limitamo-nos a apresentar exclusivamente os resultados do contexto segmental, o que se justiica pela importância desse nível fonológico: é nele que o processo é deinido2 (cf. seção 2). Dessa forma, podemos discutir esse nível fonológico com um detalhamento maior. Entendemos que o termo ‘queda de sílaba’ pode ser usado como um hiperônimo, pois engloba outros dois processos: a elisão silábica e a haplologia, que serão deinidos na seção 2.3 A organização do artigo foi feita da seguinte forma: na seção 1, apresentamos as bases teóricas; em 2, está a literatura sobre a queda de sílaba no português brasileiro; na seção 3, a metodologia; na seção 4, estão os resultados e a discussão, comparando-se as duas cidades; na quinta seção, estão as considerações inais, seguida das referências bibliográicas utilizadas. 1 O quadro teórico: pontos de diálogo Com o objetivo de veriicar se a regra de queda de sílaba é a mesma em Capivari e Campinas, trabalhamos com a teoria gerativa, mais especiicamente, com a geometria de traços (CLEMENTS; HUME, 1995), e com a sociolinguística variacionista (cf. LABOV, 1972, 1994, 2001). Os pontos de diálogo entre os dois modelos são interpretados de acordo com a tendência (favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento) 1 Na tese, foram utilizados 4 grupos de fatores linguísticos do contexto segmental apresentados neste artigo (cf. seção 3), mais outros 5 grupos de fatores linguísticos (Estrutura Silábica, Métrica, Prosódia, Número de Sílabas e Frequência de Uso de Palavras) e 5 grupos de fatores sociais (Escolaridade, Gênero, Faixa Etária, Informante e Cidade) – cf. Capítulo IV de LEAL (2012). 2 Outros níveis fonológicos da queda de sílaba podem ser veriicados em LEAL (2012). 3 A escolha de Capivari foi feita com base nos resultados obtidos na dissertação de mestrado de LEAL (2006, 2007): o contexto segmental de queda de sílaba é mais abrangente (em termos de traços fonológicos) nessa cidade do que aqueles reportados na literatura (cf. ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004, 2005; SIMIONI; AMARAL, 2012; PAZ, 2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013; TENANI, 2002). E Campinas foi a segunda cidade eleita porque ambas estão próximas (54 quilômetros), e os informantes apresentam o fenômeno nos moldes em que ele é descrito pela literatura, o que possibilitou a comparação (cf. detalhamento do estudo piloto com falantes de capivarianos e campineiros na subseção 5.1 de LEAL, 2012). 190 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 e à produtividade (expressos via frequência de aplicação e peso relativo) dos diferentes contextos possíveis das regras (deinidos pela fonologia gerativa, isto é, igualdade na cavidade oral – cf. seção 2). Para que a comparação fosse feita de forma objetiva, seguimos estes critérios para interpretar os resultados nas duas cidades: • Iguais: são fatores que têm a mesma tendência nas duas cidades, e a diferença entre os pesos relativos são pequenas – isto é, há uma mesma tendência e produtividade da regra; • Semelhantes: dentro de uma mesma variável, há um fator (es) com comportamento (s) idêntico(s) nas duas cidades (o que signiica ter uma mesma tendência), mas a produtividade é diferente, ou seja, pode ser que um fator seja aplicado mais vezes numa cidade do que na outra; e • Diferentes: são os fatores com tendências diferentes nas duas cidades (por exemplo, favorecimento versus desfavorecimento, desfavorecimento versus neutralidade, favorecimento versus neutralidade etc.) e, consequentemente, a produtividade também é diferente. Adicionalmente, consideramos diferentes as variáveis que foram selecionadas numa cidade e não em outra, dado que, se uma variável é selecionada, podemos interpretar que aquela variável condiciona o processo e, de modo contrário, uma variável não selecionada indica que um conjunto de fatores não exerce qualquer efeito no processo. Com base em Leal (2006, 2007), os traços mais importantes para a deinição do processo aqui em estudo (cf. seção 2) são os nós irmãos Ponto de C e [contínuo] das consoantes, ambos dominados pelo nó Cavidade Oral (cf. representação arbórea em CLEMENTS; HUME, 1995, p. 276). Assim, a queda de sílaba deve “olhar” internamente para a Cavidade Oral das consoantes para identiicar a igualdade entre os traços internos nas consoantes; se houver semelhança, a queda de sílaba pode ser aplicada, isto é, há variação do processo. A principal justiicativa para se utilizar a geometria de traços como base de análise da queda de sílaba é a possibilidade de se descrever consoantes e vogais de um mesmo modo, pois esses dois segmentos contêm os traços [coronal], [labial] e [dorsal]. Assim, será possível Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 191 veriicar se um mesmo traço tem um comportamento semelhante para a queda de sílaba nas duas cidades. Uma vez apresentado o quadro teórico e as questões que buscamos, na seção a seguir, apresenta-se a literatura de queda de sílaba. 2 A literatura sobre a queda de sílaba e a deinição do processo4 Os estudos sobre a queda de sílaba no português brasileiro (PB) não são novos. Sá Nogueira (1958), por exemplo, já apresenta deinições desse processo fonológico; ainda, uma das referências mais constantes neste trabalho é de mais de 30 anos (cf. ALKMIM; GOMES, 1982). De modo geral, a queda de sílaba é deinida como um processo fonológico em que a adjacência de duas sílabas com unidades internas iguais ou semelhantes resulta em apenas uma delas no output. Segundo Leal (2006), a depender de quão semelhantes são as unidades internas, a expressão “queda de sílaba” pode ser usada como um hiperônimo, pois engloba outros dois processos fonológicos: a elisão silábica e a haplologia. O primeiro é um processo mais abrangente (em termos de traços fonológicos) do que a haplologia, mas, já que há mais trabalhos sobre esse último processo, iniciaremos as deinições por ele. Observe os exemplos a seguir:5 (1) /t + d/ na fren(TE) DE casa ~ na frenTE DE casa (2) /t + t/ quan(TO) TRAbalho ~ quanTO TRAbalho Os exemplos (1) e (2) são canônicos, pois todos os autores de que tenho ciência (ALKMIM; GOMES, 1982; BISOL, 2000; TENANI, 2002; BATTISTI, 2004, 2005; PAVEZI, 2006; LEAL, 2006, 2007, 2012; MENDES, 2009; SIMIONI; AMARAL, 2011; OLIVEIRA, 2012; PAZ, 2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013; OLIVEIRA; VIEGAS, 2013) concordam que o contexto consonantal com /t/ ou /d/ é favorável à aplicação de queda de sílaba – ou seja, deve ser um dos contextos /t + t/, /t + d/, /d + 4 As referências aqui apresentadas dizem respeito ao português brasileiro; para o processo em outras línguas, cf. referências no Capítulo III em LEAL (2012). 5 Seguimos o IPA (International Phonetic Alphabet) para as transcrições, os parênteses assinalam apagamento de segmento(s), e os contextos de queda de sílaba estão marcados em maiúsculas. 192 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 d/ ou /d + t/. Uma vez que a única diferença entre as consoantes em (1) é [vozeamento], há possibilidade de haplologia; em (2), as consoantes são idênticas /t + t/, e o processo também pode ser aplicado. Ambos os exemplos (1) e (2) são casos de haplologia, uma vez que a diferença máxima entre as consoantes está no traço vozeamento. Alkmim e Gomes (1982, p. 51) propõem os seguintes critérios segmentais para que haja a possibilidade de apagamento da sílaba:6 (3) Contexto segmental da haplologia para Alkmim e Gomes (1982): (i) a primeira e a segunda consoantes devem ser coronais [-contínuo, oral] (ou seja, são necessariamente /t/ ou /d/); (ii) a primeira vogal deve obrigatoriamente ter o traço [+alto]; e (iii) a segunda vogal e seus traços internos não importam. Alkmim e Gomes (1982) explicam que se as consoantes forem diferentes de /t/ e /d/, um processo possível é a elisão vocálica, e nunca a haplologia, exempliicado pelas autoras com saBE BEIjar (ALKMIM; GOMES, 1982, p. 48): (4) a) elisão vocálica: saB(E) BEIjar b) adjacência de Cs: saBBEIjar [ˈsab:ejˈʒa] (5) haplologia: *sa(BE) BEIjar *[ˈsabejˈʒa]7 Por ser diferente de /t, d/, o único processo possível em (4) e (5) para Alkmim e Gomes (1982) é o apagamento da primeira vogal (cf. (4) a), o que acarreta a adjacência de duas consoantes iguais, que icam alongadas no output (cf. (4) b); com esse contexto consonantal /b + b/, a haplologia é bloqueada, como se vê em (5). Esse ponto de vista de que a haplologia só é possível com contextos consonantais /t, d/ é sustentado também por Tenani (2002), Battisti (2004, 2005), Simioni e Amaral (2011), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013). 6 Alkmim e Gomes apresentam outras restrições que não estão apresentadas aqui porque não são sobre contexto segmental (cf. ALKMIM; GOMES, 1982, p. 51). 7 Usamos o asterisco para indicar a agramaticalidade da sentença ou do sintagma (neste artigo, “agramatical” signiica “categórico para não ser aplicado”). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 193 O primeiro trabalho que apresenta contextos consonantais de haplologia diferentes de coronais [-contínuo] é Bisol (2000). Como o intuito da autora é veriicar a relação entre ritmo e processos fonológicos, ela não trata de contextos segmentais, mas apresenta o seguinte exemplo de haplologia (p. 409): (6) /k + k/ O macaCO COmeu todas as bananas > maca(CO) COmeu Como vemos em , há a possibilidade de queda de sílaba com o contexto consonantal /k + k/ para Bisol (2000), ou seja, um contexto diferente da deinição de Alkmim e Gomes (1982). Nos exemplos abaixo, estão outros estudos que apresentam resultados com características consonantais diferentes de Alkmim e Gomes (1982) e as respectivas cidades estudadas. (7) /n + n/ pisci(NA) NO verão (PAVEZI, 2006) São Paulo-SP (8) /v + v/ ica(VA) VIAjando (LEAL, 2006, 2007) Capivari-SP (9) /p + p/ uns tem(POS) PRA cá (MENDES, 2009) B. Horizonte-MG (10) /g + k/ meu cole(GA) QUE não ia (OLIVEIRA, 2012) Itaúna-MG Nos exemplos (7)- , as consoantes de cada contexto têm, no máximo, a diferença no traço de [vozeamento], o que caracteriza a haplologia – nesses casos, os contextos são diferentes de /t, d/, e o processo pode ser aplicado. Como dito anteriormente, a haplologia é um processo muito estudado na literatura e é mais especíico do que a elisão silábica, já que, naquele processo, a diferença máxima entre as consoantes deve ser o traço [vozeamento]. Para a elisão silábica, observe os exemplos a seguir. (11) /t + n/ de jei(TO) NEnhum ~ de jeiTO NEnhum (12) /z + ʒ/ bele(ZA) GIgantesca ~ beleZA GIgantesca Em (11), o contexto /t + n/ é formado por duas consoantes coronais [-contínuo, +anterior, -distribuído], em que a primeira é um segmento oral [-vozeado], e a segunda é uma nasal [+vozeado], e a 194 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 queda de sílaba pode ser aplicada.8 No contexto /z + ʒ/ em (12), há duas coronais [+contínuo, +vozeado], e há aplicação do processo, mesmo que /z/ seja [+anterior, -distribuído] e /ʒ/ seja [-anterior, +distribuído].9 Contudo, a elisão silábica não é um processo fortuito, já que o contexto consonantal é deinido. Observe os exemplos a seguir de Leal (2006): (13) /k + p/ *mole(QUE) POderoso (p. 90) (14) /s + d/ *crian(ÇA) DIfícil (p. 85) (15) /d + v/ *pare(DE) VERmelha (p. 93) Em casos como (13), há dois segmentos [-contínuo] /k + p/, mas o ponto de C das consoantes é diferente (há uma dorsal seguida de uma coronal); em (14), há duas coronais /s + d/, sendo que a primeira é [-vozeado, +contínuo, +anterior, -distribuído], e a segunda é [+vozeado, -contínuo, +anterior, -distribuído]; inalmente, no exemplo (15), há diferenças tanto no ponto de C quanto em [contínuo] nas consoantes, já que /d/ é uma coronal [-contínuo] e /v/ é uma labial [+contínuo]. Nos três exemplos (13)-(15), apagar a sílaba torna o sintagma agramatical em Capivari (LEAL, 2006, 2007). Até o momento, apresentamos as características das consoantes da queda de sílaba e, para as vogais, também não há consenso na literatura: Alkmim e Gomes (1982, p. 50) airmam que somente há haplologia se a primeira vogal do contexto tiver o traço [+alto]. Assim, para as autoras, nos contextos segmentais abaixo, há possibilidade de aplicação de haplologia. (16) /e + e/ > [i + i] limiTE DE palavra > limi(TE) DE palavra (17) /o + e/ > [u + i] calDO DE cana > cal(DO) DE cana Como se observa em (16) e , a representação do contexto vocálico de Alkmim e Gomes (1982, p. 48) é feito foneticamente, com vogais que 8 Observe que as nasais são [+contínuo] na cavidade nasal, mas, na oral, são segmentos [-contínuo]. 9 Veja que os traços [±anterior, ±distribuído] se aplicam somente às coronais, já que são nós irmãos dependentes do traço [coronal], que está abaixo desse nó na geometria (cf. CLEMENTS; HUME, 1995, p. 292). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 195 carregam o traço [+alto] nesse nível. No exemplo a seguir, a aplicação de haplologia é agramatical segundo as autoras (p. 50), já que a dorsal /a/ tem o traço [+baixo]: (18) comiDA DO Líbano > *comi(DA) DO Líbano Entretanto, Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007) encontraram em seus resultados aplicação de haplologia tanto com vogais altas quanto com vogais baixas, como se observa nos exemplos a seguir. (19) /a + a/ esca(DA) DAniicada (PAVEZI, 2006, p. 116) (20) /a + e/ estra(DA) DE terra (LEAL, 2006, p. 101) Como podemos notar nesses exemplos (19) e , para Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007), a queda da sílaba é possível em contextos em que a primeira vogal é uma dorsal, diferentemente do que airmam Alkmim e Gomes (1982). Há ainda dois aspectos que devem ser considerados sobre a queda de sílaba. O primeiro é distinguir esse processo do truncamento: nesse último, a perda de segmentos e/ou sílabas pode acontecer independentemente de contexto segmental, e a palavra pode ser reduzida mesmo quando produzida antes de pausa, como nos exemplos (Parque da) Redenção >Redença, feijoada>fejuca. Dessa forma, queda de sílaba e truncamento são processos fonológicos distintos, como exempliicado a seguir. (21) a) aplicação de elisão silábica → faculda(DE) NO centro b) aplicação de haplologia → faculda(DE) DO centro (22) aplicação de truncamento → faço facul // (23) bloqueio de elisão silábica → *faço faculda(DE) // Em (21), há variação de queda de sílaba porque os contextos consonantais a) /d + n/ e b) /d + d/ são favoráveis ao apagamento: em (21) a), há duas coronais [+vozeado, -contínuo] e, em (21) b), há duas coronais [+vozeado, -contínuo], sendo que a primeira é oral e a segunda é nasal; no exemplo (22), o processo é o truncamento, mesmo que depois 196 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 da redução haja uma pausa (indica por // nos exemplos); e, em (23), a elisão silábica é categórica para nunca acontecer, uma vez que há uma pausa depois de faculdade, o que impede o apagamento da sílaba. Um segundo aspecto sobre a queda de sílaba, com opiniões divergentes na literatura, diz respeito à natureza do processo. Bisol (2000), Oliveira (2012) e Oliveira e Viegas (2013) defendem que a aplicação de haplologia se dá em duas partes, seguindo-se Sá Nogueira: Os fenômenos de haplologia consideram-se em regra casos de síncope de uma sílaba. Isto, porém, salvo erro, não é certo: na realidade não há ali uma supressão pura e simples de uma sílaba; o que há é uma síncope [...] do vogal [sic] da primeira de duas sílabas iguais ou semelhantes, seguida da geminação de dois consoantes [sic] que passam a icar em contacto, os quais se mantêm geminados ou se fundem num só. Na pronúncia despreocupada do vocábulo ilologia, por ex., ouve-se umas vezes il-lo-gia, e outras ilogia. Na de Campo Pequeno também se ouve umas vezes camppequeno, e outras campequeno. De saudadoso deve ter-se passado primeiro a saud-doso e daqui a saudoso. (SÁ NOGUEIRA, 1958, p. 180, grifos do autor). Assim, há duas etapas na haplologia: na primeira, há elisão da vogal; e, na segunda etapa, por estarem adjacentes, as consoantes podem geminar. Então, a haplologia teria uma natureza tanto de apagamento (da vogal), quanto de coalescência (de consoantes). Por outro lado, Alkmim e Gomes (1982), Tenani (2002), Battisti (2004, 2005), Pavezi (2006), Mendes (2009), Leal (2006, 2007, 2012), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) airmam que ocorre o apagamento da primeira sílaba. Seguimos, neste artigo, essa segunda interpretação, ou seja, de que há apagamento da sílaba toda, fundamentada nos resultados Battisti (2005).10 Além desse trabalho, entendemos que há casos em que a coalescência da primeira e da segunda sílabas parece não se revelar no output, como no exemplo a seguir, bastante comum na literatura (cf. 10 A análise de haplologia de Battisti (2004) foi feita com base na Teoria da Otimalidade (PRINCE; SMOLENSKY, 1993), e seus resultados mostram que há apagamento da primeira sílaba, desencadeado pelo OCP. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 197 BATTISTI, 2004, p. 31; BATTISTI, 2005, p. 81; LEAL, 2006, p. 62; MENDES, 2009, p. 25; OLIVEIRA; PAZ, 2013, p. 78; PAVEZI, 2006, p. 33; PAZ, 2013, p. 30-31): (24) /tr + d/ denTRO DE... > den(TRO) DE... Em (24), só pode haver apagamento da primeira sílaba: esse é um dos exemplos que, como airma Battisti, mostra “claramente que o material fonológico que se realiza no output é o da sílaba da direita.” (BATTISTI, 2004, p. 32). Entendemos que o problema de se considerar a haplologia como coalescência se explica pelo fato de esse processo indicar a convergência de unidades linguísticas, originalmente separadas, que antes podiam ser distinguidas (CRYSTAL, 2003 [1985], p. 49, 123). Por exemplo, na palavra /eu/ropa, em alguns dialetos brasileiros, as vogais /eu/ podem se fundir, formando um único segmento [o] no output, [o]ropa. Podemos observar que, no resultado da fusão [o], há traços de ambos os segmentos subjacentes /e/ e /u/: (25) Fusão entre /e+u/ > [o] ant. alto post. /i/ • • /u/ médio /e/ • baixo • /o/ /e/ [anterior, médio] + /u/ [posterior, alto] resulta em: [o]: [posterior, médio] /a/ • Dessa forma, assumimos que a queda de sílaba se dá por apagamento, e não por fusão de unidades fonológicas; um resultado de coalescência entre as consoantes /tr/ e /d/ no exemplo (24) deveria levar em conta também os traços de /r/ do ataque ramiicado, do mesmo modo como se considerou /eu/ropa >[o]ropa. Em vista dos exemplos apresentados em (1) e (2) e em - desta seção, podemos concluir que, segmentalmente, a diferença entre a haplologia e a elisão silábica é que, no primeiro processo fonológico, as consoantes do contexto podem ser iguais ou semelhantes (e, nesse caso, a diferença é, no máximo, no traço [vozeamento]), enquanto que, no segundo, as consoantes podem ser diferentes também nos traços [anterior, distribuído] e [nasal] (cf. LEAL, 2006, p. 161). Ainda que os traços internos às consoantes possam dividir a queda de sílaba em haplologia e elisão silábica, ambas são tratadas neste artigo 198 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 como um único processo, já que têm as mesmas propriedades segmentais (cf. LEAL, 2006, 2007 e o estudo piloto realizado no corpus de LEAL, 2012), prosódicas e métricas (ver LEAL, 2006) – e usamos “queda de sílaba” como um hiperônimo de “elisão silábica” e de “haplologia”. A deinição geral de aplicação de queda de sílaba é a seguinte: as consoantes do contexto devem ter o mesmo ponto de C e o mesmo valor para o traço [contínuo] (cf. LEAL, 2006, p. 165). Na próxima seção, apresentamos a metodologia empregada nesta pesquisa. 3 Metodologia No corpus, há 48 gravações11 de 1 hora cada, com 24 informantes de Capivari e 24 de Campinas.12 Foram utilizados 50 minutos de cada gravação, e a obtenção de todos os dados foi feita diretamente no Praat (BOERSMA; WEENINK, 2010); a frequência default de visualização dos sons foi 6 kHz (variando, por exemplo, com as fricativas, vozes femininas), e a resolução na tela variou de 0,5 a 1 segundo, aproximadamente. A cada contexto de queda de sílaba, a janela era diminuída para a faixa de 0,5 a 1 segundos, e foram marcados nos arquivos de text grid o tempo da ocorrência e também os segmentos relevantes. Portanto, todos os 11 Nas entrevistas, os diálogos foram conduzidos de tal forma que as conversas se dessem de maneira informal, e os tópicos das entrevistas foram, basicamente, cinco: infância, adolescência, namoro/casamento, trabalho, ponto de vista do informante com relação à sua cidade natal (como era, como está hoje em dia), buscando-se o vernáculo (LABOV, 1972, p. 208). 12 Para extrair os dados do corpus, foram feitas as seguintes restrições: 1) deve haver pelo menos uma consoante no ataque das sílabas, já que contextos V # V podem produzir outros processos fonológicos, como em gaTA EScura>gaT[I]Scura (nesse exemplo, o processo aplicado é a elisão vocálica); 2) empréstimos foram codiicados de acordo com a fonologia do português, como em internet> /̩interˈnɛte/; 3) os contextos segmentais têm uma mesma cavidade oral para as consoantes, uma vez que, se forem diferentes, a aplicação é categórica (cf. seção 2); 4) a primeira sílaba deve ser fraca (cf. TENANI, 2002) computamos somente falas neutras (hesitação, ênfase; momentos em que o informante riu não foram computados); 6) a frase entonacional (cf. NESPOR; VOGEL, 1986) foi usada para limitar uma ocorrência; e 7) casos de apagamento do clítico não foram analisados, como no exemplo posTO DE SAúde, que foi realizado como pos(TO DE) saúde, por uma falante capivariana. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 199 contextos de queda de sílaba da tese foram checados nos espectrogramas (cf. metodologia ao veriicar se toda a sílaba foi elidida ou parte dela em Leal (2012, p. 79-81). A variável dependente analisada é binária, com as variantes aplicação e não aplicação do processo. 13 Quanto às variáveis independentes do contexto segmental,14 foram 4 conigurações estudadas: Igualdade de Segmentos, Cavidade Oral das Consoantes, Cavidade Oral das Consoantes com Distinção do Traço [nasal] e Cavidade Oral das Vogais. Para Igualdade de Segmentos nas Sílabas CV,15 os fatores estão apresentados a seguir, com um exemplo de aplicação de queda de sílaba em cada um deles16 (os símbolos à esquerda são utilizados para apresentar os resultados nas tabelas e gráicos da seção 4). 1. C=V= Cs iguais, Vs iguais apren(DE) DEsenho 2. C=V# Cs iguais, Vs diferentes apareci(DA) DO norte 3. C#vozV= Cs diferentes em [vozeamento], Vs iguais ajudan(TE) DE pintor 4. C#vozV# Cs diferentes em [vozeamento], Vs diferentes mui(TO) DIfícil 5. C#nasalV= Cs diferentes em [nasal], Vs iguais conversan(DO) NO telefone 6. C#nasalV# Cs diferentes em [nasal], Vs diferentes chegar nu(MA) POsição melhor 7. C#distr. Cs diferentes em [anterior, distribuído]17 ...laçar cabe(ÇA). JÁ vamo? A primeira hipótese para essa variável tem como base o Princípio de Contorno Obrigatório (OCP – Obligatory Contour Principle):18 na 13 A análise dos dados foi feita com a ferramenta estatística GoldVarb X (cf. SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005). 14 Cf. nota 2 15 Para essa variável, não foram computadas estruturas diferentes de CV; a estrutura silábica foi uma variável controlada à parte (cf. LEAL, 2012). 16 Apresentamos apenas aplicações do processo nos fatores, mas trata-se de variações com cada um dos contextos apresentados. Os exemplos nesta seção são todos de Leal (2012). 17 Neste fator, não distinguimos as vogais porque os dados não tiveram uma distribuição ortogonal (consoantes diferentes em [anterior, distribuído], com vogais iguais, N= 2/28; com vogais diferentes, houve knockout, N= 0/27). 18 O OCP foi primeiramente proposto por Leben (1973), em estudos de línguas tonais, e muitos outros autores trabalham com o princípio (cf. McCARTHY, 1979, GOLDSMITH, 200 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 queda de sílaba, se houver duas sílabas idênticas, o princípio é acionado, e o apagamento da primeira delas resolve a questão. Então, a expectativa é que, quanto mais parecidas segmentalmente forem as sílabas, maior é a probabilidade de aplicação do processo. Nos fatores apresentados anteriormente, a hipótese é que haja maior propensão à queda de sílaba nos fatores 1, 3 e 5 (já que as vogais são idênticas) se comparados com 2, 4 e 6, com vogais diferentes. Outras hipóteses dizem respeito aos traços internos às consoantes: para [vozeamento], a expectativa é que esse traço não tenha interferência na haplologia (cf. ALKMIM; GOMES, 1982, TENANI, 2002, BATTISTI, 2004, PAVEZI, 2006; e LEAL, 2006) e nem mesmo na elisão silábica no sentido de bloquear o processo (cf. LEAL, 2006). Dessa forma, se [vozeamento] atuar na queda de sílaba, haverá uma diferença na tendência entre os fatores 1 e 2 e também entre 3 e 4; se esse traço não interferir, a tendência entre os fatores 1-2 e 3-4 deve ser a mesma. A terceira hipótese diz respeito ao traço [nasal],19 em que pode haver aplicação de queda de sílaba com nasais, com base em Pavezi (2006) e Leal (2006); adicionalmente, isolamos esses segmentos a im de observar como eles podem inluenciar na aplicação do processo. A quarta hipótese está relacionada aos traços que estão abaixo de [coronal], com o propósito de investigar como os traços [anterior, distribuído] interferem no processo. Com relação às vogais, a cada especificação diferente de consoantes, propusemos também vogais iguais e diferentes, a im de examinar se as vogais também intervêm no processo. O segundo grupo de fatores proposto foi Cavidade Oral das Consoantes, codiicando-se a primeira e a segunda consoantes de acordo com suas cavidades orais (ponto de C e valor para [contínuo]). A hipótese criada para essa variável é que haja uma maior tendência à aplicação com coronais, uma vez que essas consoantes são subespeciicadas em diversas línguas (cf. PARADIS; PRUNET, 1991; FIKKERT; LEVELT, 2006) e, especiicamente no PB, estudos reportam que é com /t/ e /d/ que 1990). McCarthy (1988, p. 88) reformulou-o do seguinte modo: “Elementos idênticos adjacentes são proibidos” (Adjacent identical elements are prohibited). Assim, essa reformulação dá conta de traços, segmentos, tons, sílabas, etc. 19 Lembramos que, para haver variação, o contexto consonantal deve ter uma mesma cavidade oral; assim, todos os contextos nasais neste artigo são formados por consoantes que têm um mesmo ponto de C e um mesmo valor para [contínuo]. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 201 a queda de sílaba ocorre (ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004, 2005; SIMIONI; AMARAL, 2011; PAZ, 2013; OLIVEIRA; PAZ, 2013; TENANI, 2002). Foram propostos os seguintes fatores: 1. t+t duas Cs coronais [-contínuo] faculda(DE) DE letras 2. s+s duas Cs coronais [+contínuo] a polí(CIA) CHEgou 3. p+p duas Cs labiais [-contínuo] tem(PO) PRA aposentadoria 4. f+f duas Cs labiais [+contínuo] não ta(VA) FAzendo nada de errado 5. k+k duas Cs dorsais 20 lógi(CO) QUE não A terceira variável investigada foi Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] com os seguintes fatores: 1. t+t duas Cs coronais orais [-contínuo] 2. s+s duas Cs coronais orais [+contínuo] 3. p+p duas Cs labiais orais [-contínuo] 4. f+f duas Cs labiais orais [+contínuo] 5. k+k duas Cs dorsais 6. n+n uma ou duas Cs nasais (com mesma cavidade oral) Os fatores 1-5 são os mesmos daqueles apresentados na variável Cavidade Oral das Consoantes, e a única diferença é que nasais foram separadas no fator 6, como em va(MOS) MARcar? e deita(DO) NO hão. Decidimos analisar o comportamento das nasais com base em Pavezi (2006) e Leal (2006), para quem há possibilidade de queda de sílaba com esses segmentos. Não temos uma hipótese formulada para essa variável que vá além daquela apresentada na subseção anterior (por sua subespeciicação, as coronais são as consoantes mais elididas), mas pretendemos veriicar como se comportam também as nasais, assim como 20 Todas as consoantes dorsais encontradas no corpus são [-contínuo] – /k/ e /g/. Nas duas cidades, o /r/ forte em rato pode ser produzido como [h], uma laringal [+contínuo, -vozeado], como em [h]ato; ou como [x], uma dorsal [+contínuo, +vozeado], como em [x]ato. No entanto, esse tipo de contexto /r + r/ forte não foi encontrado no corpus. Assim, já que a outra possibilidade de dorsais [x] para o português brasileiro [+contínuo] não apareceu no corpus, deste ponto em diante, o valor de [contínuo] para dorsais não será mais indicado – será sempre uma dorsal [-contínuo]. 202 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 veriicar qual das conigurações de consoantes (sem separar as nasais ou colocando-as num fator à parte) é mais relevante para a aplicação do processo. A última variável criada para observar o contexto segmental na queda de sílaba foi Cavidade Oral das Vogais. Como visto na seção 2, a regra de haplologia de Alkmim e Gomes (1982) tem os segmentos consonantais e vocálicos deinidos diferentemente: as autoras interpretam que as consoantes devem ser coronais [-contínuo, oral], isto é, utilizam a fonologia autossegmental (cf. GOLDSMITH, 1976, 1990); para as vogais, usam a fonética, já que esses segmentos devem ter o traço [+alto]. Em outras palavras, a representação do contexto consonantal é fonológica e, para o contexto vocálico, é fonética. Neste artigo, utilizamos a geometria de traços, o que signiica que tratamos do nível fonológico dos segmentos, como se observa nos fatores a seguir. iguais 1. e+e duas vogais coronais cida(DE) DE Porecatu 2. o+o acontecen(DO) NO centro da cidade duas vogais dorso-labiais 3. a+a duas vogais dorsais chama(DA) DA unicamp 4. e+o coronal + dorso-labial cida(DE) DO porto 5. e+a coronal + dorsal tes(TE) NA ponte 6. o+e dorso-labial + coronal calça(DO) DE sola bem grossa 7. o+a dorso-labial + dorsal advogaDO DA mãe V1: coronal V1: dorso-labial 8. a+e dorsal + coronal ca(NA) DE açúcar 9. a+o dorsal + dorso-labial estra(DA) DO ribeirão V1: dorsal Considerando essa variável, a hipótese que surge é que a sílaba pode ser apagada sem importar o contexto vocálico, com base nos resultados de haplologia de Pavezi (2006) e de queda de sílaba de Leal (2006, 2007), isto é, não há uma sequência vocálica que bloqueie o processo (nem mesmo /a/, como defendem Alkmim e Gomes 1982). A segunda hipótese para o contexto vocálico é investigar como os pontos de C das vogais podem agir na queda de sílaba. Assim como foi feito para as consoantes, levantamos a hipótese de haver vogais que são subespeciicadas no português. Entre outros argumentos sobre a subespeciicação das vogais, Mateus e D’Andrade (2000, p. 31) explicam que, em geral, esse segmentos têm uma maior propensão à neutralização e à epêntese. Na neutralização, as vogais tônicas [e, o], [ɛ, ɔ] e [i, u] Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 203 alternam com [i, u] átonos no português (como em sirvo> s[i]rvo, serve> s[ɛ]rve e servir> s[e]rvir); no entanto, nunca há neutralização com /a/, pois essa vogal é sempre realizada como [ɐ] em posição átona. Com relação à epêntese, [i] e [e] são os elementos acrescidos em palavras no português (como em advogado>ad[e]vogado ou ad[i]vogado), enquanto que [a] nunca aparece em epênteses. Assim, com base em Mateus e D’Andrade (2000), a expectativa é que haja um favorecimento na aplicação de queda de sílaba com vogais coronais /e, i/ e as dorso-labiais /o, u/ subjacentes.21 Outra hipótese para esse grupo de fatores diz respeito a contextos com vogais iguais: Battisti (2004, 2005) veriicou em seus dados de Porto Alegre que sílabas com vogais iguais favorecem a haplologia. Em outras palavras, a hipótese é que o OCP age também nas vogais. Com base nessas 4 variáveis, foram feitas 3 grandes rodadas (a geral – com as duas cidades; a rodada de Capivari; e a rodada de Campinas), alternando-se o contexto segmental, como está resumido a seguir. Resumo das rodadas22 Rodada 1: todas as 4 variáveis do contexto segmental, outras 5 variáveis linguísticas e as 5 variáveis sociais; Rodada 2: variável Igualdade de Segmentos nas sílabas somente com estruturas CV, outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis sociais; Rodada 3: Cavidade Oral das Consoantes, outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis sociais; Rodada 4: Cavidade Oral das Consoantes com distinção de [nasal], outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis sociais; e Rodada 5: Cavidade Oral das Vogais, outras 5 variáveis linguísticas e 5 variáveis sociais. Na próxima subseção, estão os resultados para as 4 variáveis do contexto segmental nas rodadas de Capivari e de Campinas. 21 A primeira vogal do contexto, ou seja, aquela sujeita ao apagamento é também o último segmento de uma palavra, como em tapeTE DA sala>tape(TE) DA sala (primeira vogal /e/ + segunda vogal /a/). Palavras terminadas em /-i/ e /-u/ átonos no português não são produtivas: de fato, foram encontradas apenas 16 palavras no corpus com terminação em /-i/ e 7 terminadas em /-u/. 22 Ver nota 2. 204 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 4 Resultados e discussão: Comparações entre as duas cidades Nesta seção, comparamos os resultados obtidos para Capivari e para Campinas, de modo a veriicar se a queda de sílaba tem as mesmas características nas duas cidades ou se as regras são diferentes para a aplicação do processo. Foram computados 5.628 tokens na fala de 48 informantes, cuja distribuição está apresentada na tabela 1. TABELA 1 – Resultados gerais de aplicação de queda de sílaba cidade N % total % Capivari 449/2150 17,3 2599 46,2 Campinas 737/2292 24,3 3029 53,8 Total 1186/4442 21,1 5628 Fonte: Leal (2012) O total de aplicação da queda de sílaba nas duas cidades foi 21,1%, com 17,3% de aplicação de queda de sílaba em Capivari, e 24,3%, em Campinas.23 As frequências das cidades do interior paulista apresentadas são condizentes com resultados encontrados em trabalhos sociolinguísticos: Battisti (2004, 2005) encontrou 21% em Porto Alegre; os dados de Oliveira (2012) resultaram em 22,7% de apagamento na cidade mineira de Itaúna; Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) obtiveram 15% de haplologia nas cidades paraenses de Belém e Itaituba.24 É 23 Os resultados das frequências de aplicação foram inesperados, já que a expectativa era que o processo fosse mais aplicado em Capivari do que em Campinas – há mais contextos de aplicação entre capivarianos (com base nos resultados de LEAL, 2006) do que em outros dialetos (cf. ALKMIM; GOMES, 1982; BATTISTI, 2004; PAVEZI, 2006, para haplologia). Esses resultados imprevistos foram atribuídos à variável Informantes (4 campineiros favoreceram excessivamente o processo, e 3 capivarianos desfavoreceram, isto é, 4 “empurram para cima” o favorecimento em Campinas, e 3 “puxam para baixo” o desfavorecimento em Capivari. 24 Houve dois trabalhos com frequência divergente: Simioni e Amaral (2012) encontraram 40% de haplologia em 10 entrevistas (em Bagé-RS), e airmam que esse resultado deve ser revisto “com um número maior de informantes [...]” (p. 65); Mendes (2009) encontrou 64% de haplologia em Belo Horizonte, mas a autora não faz comentários a respeito da frequência encontrada. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 205 interessante notar que as frequências nesses trabalhos são consistentes, ainda que haja diferenças: (i) no contexto segmental: Battisti (2004, 2005), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) trabalharam com contextos constituídos de /t, d/, enquanto que Leal (2012) e Oliveira (2012), com contextos consonantais mais amplos; e (ii) nos dialetos: os autores trabalharam com dialetos de lugares diferentes (e distantes) no Brasil – Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013), com o dialeto paraense; Battisti (2004, 2005), com o dialeto gaúcho; Oliveira (2012), com o dialeto mineiro; e Leal (2012), com o dialeto paulista. A esse respeito, adotamos a airmação de Battisti: Os resultados do estudo realizado conirmam expectativa inicial: haplologia é regra variável de condicionamento interno, abaixo do nível da consciência, o que parece não ser peculiar apenas ao corpus analisado, mas generalizável ao português brasileiro como um todo. (BATTISTI, 2005, p. 86) Assim, um trabalho interessante seria veriicar a relação entre a queda de sílaba, saliência e consciência, examinando-a como um processo abaixo da consciência dos falantes. Uma vez apresentadas as frequências gerais de aplicação de queda de sílaba, passamos aos resultados das variáveis do contexto segmental que foram iguais (como em Cavidade Oral das Consoantes, cf. 4.1), similares (Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] e Cavidade Oral das Vogais, ver 4.2) e diferentes (Igualdade de Segmentos, cf. 4.3) em Capivari e em Campinas. Incluímos nessas subseções, além de tabelas, também gráicos para facilitar a visualização dos resultados. 4.1 Resultados iguais A variável Cavidade Oral das Consoantes não foi selecionada em nenhuma das rodadas. Pode-se considerar que foi um resultado igual nas duas cidades. Portanto, a cavidade oral não interfere na queda de sílaba em Capivari e nem mesmo em Campinas. E esse é um resultado inesperado, uma vez que é a cavidade oral das consoantes o nó que determina se há contexto para a queda de sílaba (isto é, se há variação ou se o processo é categórico). A solução para essa contradição foi veriicada no grupo de fatores Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal], apresentado na próxima subseção. 206 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 4.2 Resultados similares Consideramos que duas variáveis tiveram resultados similares em Campinas e Capivari: Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] e Cavidade Oral das Vogais. Apresentamos os resultados dos fatores de Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] das rodadas de Capivari e de Campinas na tabela 2 e no gráico 1 a seguir.25 TABELA 2 – Comparação de Cavidade Oral das Consoantes com Distinção do Traço [nasal] em Capivari e Campinas Capivari Campinas N %apl p.r. N %apl p.r. 1. t+t 305/1164 26,2 0,653 521/1399 37,2 0,644 2. s+s 31/182 17 0,626 44/203 21,7 0,652 3. p+p 14/51 27,5 0,777 4/37 10,8 0,225 4. f+f 4/60 6,7 0,378 10/59 16,9 0,605 5. k+k 21/89 23,6 0,584 24/129 18,6 0,343 6. n+n 74/1053 7 0,3 134/1202 11,1 0,33 Fonte: Leal (2012) Nos gráicos, os números que aparecem abaixo dos contextos segmentais (entre vírgulas) correspondem aos totais em cada cidade – em Capivari e em Campinas, respectivamente. 25 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 207 GRÁFICO 1 – Comparação da Cavidade Oral das Consoantes com Distinção do Traço [nasal] em Capivari e Campinas Fonte: Leal (2012) Observando primeiramente os fatores com resultados iguais nas duas cidades, temos que as variantes das coronais (orais) favorecem a queda de sílaba, e os pesos relativos estão muito próximos (cf. contextos 1. p= 0,653, com coronais [-contínuo], e 0,64426 e 2. p=0,626 e 0,652, com [+contínuo]), o que corrobora a hipótese inicial de subespeciicação das coronais. Quanto às nasais, há um desfavorecimento do processo (ver 6. p= 0,3 e 0,33). Assim, esses resultados revelam que, para nasais e coronais orais, as duas cidades têm preferências (quase que) idênticas: coronais favorecem, e nasais inibem. No entanto, não podemos considerar que essa variável atua na queda de sílaba de modo idêntico nos dois diletos porque as dorsais interferem no processo de modo oposto: Capivari favorece o processo nesse contexto, enquanto que Campinas desfavorece (cf. 5. p= 0,584 e 0,343). Dos contextos 3 e 4, com labiais, não podemos tirar conclusões, na medida em que não houve uma quantidade coniável de dados nas três rodadas (tanto na rodada de Capivari quanto na de Campinas). Esses resultados mostram que pode haver aplicação de queda 26 Deste ponto em diante, o primeiro peso relativo que apresentamos refere-se a Capivari, e o segundo, a Campinas. 208 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 de sílaba com consoantes diferentes de /t/ e /d/ – ratiicando Pavezi (2006); Leal (2006, 2007); Bisol (2000); Mendes (2009); Oliveira (2012). Interessantemente, a Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] foi selecionada nos dois dialetos, um resultado que pode ser considerado idêntico e signiica que Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] interfere na aplicação de queda de sílaba nas duas cidades, diferentemente de Cavidade Oral das Consoantes (sem separar segmentos [nasal]). Outro resultado semelhante nas duas cidades foi obtido na variável Cavidade Oral das Vogais, como apresentamos na tabela 3 e no gráico 2. TABELA 3 – Comparação de Cavidade Oral das Vogais em Capivari e Campinas Capivari Campinas N %apl Capivari N %apl p.r. 1. e+e 72/379 19 0,519 126/440 28,6 0,571 2. o+o 46/211 21,8 0,605 75/249 30,1 0,571 3. a+a 25/236 10,6 0,408 35/261 13,4 0,308 4. e+o 18/106 17 0,383 24/110 21,8 0,46 5. e+a 54/220 24,5 0,633 59/220 26,8 0,569 6. o+e 106/621 17,1 0,501 234/763 30,7 0,593 7. o+a 83/347 23,9 0,649 120/394 30,5 0,63 8. a+e 32/302 10,6 0,373 49/391 12,5 0,328 9. a+o 13/177 7,3 0,29 15/201 7,5 0,226 Fonte: Leal (2012) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 209 GRÁFICO 2 – Comparação da Cavidade Oral das Vogais em Capivari e Campinas Fonte: Leal (2012) Da variável Cavidade Oral das Vogais, podemos considerar semelhantes quatro contextos: coronal seguida de dorsal (cf. sequência 5. p= 0,633 e 0,569), em que há um favorecimento à queda de sílaba nos dois dialetos, e o favorecimento é maior em Capivari; os outros três contextos dizem respeito a sequências com uma dorsal na primeira posição, em que o processo é desfavorecido nas duas cidades (ver 3. p= 0,408 e 0,308; 8. p= 0,373 e 0,328; e 9. p= 0,29 e 0,226), mas podemos notar que esses contextos são mais aceitos em Capivari do que em Campinas. Anteriormente, vimos que o ponto de C [dorsal] das consoantes favorece a queda de sílaba em Capivari e desfavorece em Campinas. Assim, ao utilizar a geometria de traços na queda de sílaba, foi possível veriicar resultados de consoantes e vogais com um mesmo comportamento: o traço [dorsal] interfere no processo de modo a favorecer em Capivari e a desfavorecer em Campinas, isto é, há uma aceitabilidade maior de apagamento com esses segmentos em Capivari. No que concerne às diferenças entre as duas cidades, nas sequências com duas coronais (ver contexto 1 no gráico 2) e com uma dorso-labial seguida de uma coronal (cf. 6, com p= 0,501 e 0,593), as tendências são diferentes: esses contextos são neutros em Capivari, mas favorecem a queda de sílaba em Campinas. 210 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 Do contexto de uma coronal seguida de uma dorso-labial (cf. 4. N=106 e N=110), nada podemos concluir, em consequência do baixo número de tokens nesses fatores para as duas cidades. Esses resultados conirmam a primeira hipótese, já que o contexto vocálico não importa para a implementação da queda de sílaba no sentido de bloqueá-la em Capivari e em Campinas, incluindo vogais dorsais na primeira sílaba – corroborando Pavezi (2006), Leal (2006, 2007) e Oliveira (2012), e vai de encontro à proposta de Alkmim e Gomes (1982). Na seção 3, levantamos a hipótese de que o OCP pode atuar nos contextos vocálicos, de modo a favorecer o processo se houver identidade das vogais. Essa hipótese foi refutada, como podemos observar nos contextos com duas vogais iguais: o fator 1 com duas coronais é neutro em Capivari e favorecido em Campinas; o contexto 2 com duas dorso-labiais favorece o processo em ambas as cidades; e o fator 3 com duas dorsais desfavorece o processo, também em ambas as cidades. Os resultados com vogais diferentes também conirmam que o OCP não rege a queda de sílaba: nos contextos com uma coronal na primeira posição (como em 1. p= 0,519 e 0,571; e 5) e naqueles com uma dorso-labial na primeira sílaba (sequências 2, 6 e 7. p= 0,649 e 0,63), a queda de sílaba é favorecida; nos contextos com uma dorsal na primeira posição (3, 8 e 9. p= 0,29 e 0,226) há desfavorecimento do processo. A exceção a esse padrão é na sequência 4 com uma vogal coronal seguida de uma dorso-labial porque seu número de tokens foi baixo, com um total de N=42/216 nas duas cidades. Assim, esses resultados de contextos com vogais iguais e vogais diferentes indicam que o importante é o ponto de C da vogal sujeita à queda (isto é, da primeira sílaba). Podemos, portanto, airmar que a igualdade das vogais não é uma característica importante para a queda de sílaba, e o OCP não atua em nenhum dos dialetos, resultado que vai de encontro aos de Battisti (2004, 2005), Paz (2013) e Oliveira e Paz (2013) e corrobora os de Oliveira, que explica: [...] o apagamento da vogal seguida de consoante está associado à altura da vogal, sendo as vogais mais altas as mais apagadas por serem mais reduzidas do ponto de vista articulatório. (OLIVEIRA, 2012, p. 171) Concluímos que a variável Cavidade Oral das Vogais atua na queda de sílaba de modo similar nas duas cidades: são diferentes nos Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 211 fatores 1 e 6 (são contextos neutros em Capivari e favorecedores em Campinas); semelhantes em contextos 5 (há favorecimento nas duas cidades, sendo um pouco maior em Capivari) e semelhantes também em contextos com dorsais (desfavorecem, com uma aceitação maior entre os capivarianos do que entre os campineiros); e as sequências 2 e 7 são iguais nas duas cidades (há favorecimento do processo, com pesos relativos próximos). Finalmente, o que parece ser relevante para o processo é o ponto de C da vogal sujeita ao apagamento, e não a igualdade desses segmentos: (i) Com coronais na primeira sílaba, o contexto 1 mostra neutralidade entre capivarianos e favorecimento entre campineiros; o fator 5 favorece a queda de sílaba em ambas as cidades; e nada concluímos com o fator 4, devido ao baixo número de dados. (ii) Para dorso-labiais na primeira sílaba, o fator 2 favorece o processo nas duas cidades; no fator 6, há neutralidade em Capivari e favorecimento em Campinas; há favorecimento nos dois dialetos com o fator 7. (iii) Com dorsais na primeira sílaba, há desfavorecimento da queda de sílaba nos três fatores 3, 8 e 9. Assim, pode haver favorecimento ou neutralidade com vogais coronais e dorso-labiais na primeira sílaba, enquanto que as dorsais nessa posição desfavorecem o processo nas duas cidades. 4.3 Resultados diferentes A variável Igualdade de Segmentos só foi selecionada em Campinas, o que signiica que a igualdade entre os segmentos nas sílabas não é importante para Capivari. É por essa razão que os resultados de Capivari aparecem com preenchimentos diferentes para indicar que a variável não foi selecionada na rodada 1, mas, sim, na rodada 2, conforme demonstrado na tabela 4 e no gráico 3. 212 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 TABELA 4 – Comparação de Igualdade de Segmentos em Capivari e Campinas Capivari Campinas N %apl p.r. N %apl p.r. 1. C=V= 34/120 28,3 0,619 60/130 46,2 0,644 2. C=V# 105/445 23,6 0,609 153/443 34,5 0,572 3. C#vozV= 37/157 23,6 0,556 59/166 35,5 0,495 4. C#vozV# 91/348 26,1 0,633 141/410 34,4 0,499 5. C#nasalV= 9/66 13,6 0,363 11/88 12,5 0,372 6. C#nasalV# 29/453 6,4 0,282 52/506 10,3 0,455 7. C#distr. 1/24 4,2 0,299 1/29 3,4 0,1 Cs iguais [voz] [nasal] [ant,dist] Fonte: Leal (2012) GRÁFICO 3 – Comparação da Igualdade de Segmentos em Capivari e Campinas Fonte: Leal (2012) Nos resultados para Igualdade de Segmentos expostos na tabela 4 e no gráico 3, podemos observar que o processo é favorecido com sílabas idênticas (cf. contexto 1. p= 0,619 e 0,644), em ambas as cidades; também há favorecimento no fator com consoantes iguais e vogais diferentes em ambas as cidades (cf. 2. p= 0,609 e 0,572). Em outras Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 213 palavras, se as sílabas tiverem as mesmas consoantes, sendo as vogais iguais ou diferentes, não há mudança na tendência. Assim, a hipótese de o OCP regular a queda de sílaba foi conirmada em parte: sílabas iguais favorecem o processo, porém sílabas com consoantes iguais, mas com vogais diferentes também favorecem. Dessa forma, os resultados revelam que as consoantes são regidas pelo OCP, diferentemente das vogais, como foi visto na variável Cavidade Oral das Vogais. Para o traço [vozeamento], os fatores 3 (p=0,556 e 0,495) e 4 (p=0,633 e 0,499) indicam favorecimento em Capivari e neutralidade em Campinas. Quanto aos contextos nasais, há desfavorecimento nas duas cidades, tanto com vogais iguais quanto com vogais diferentes (5. p=0,363 e 0,372; e 6. p=0,282 e 0,455). Finalmente, no que concerne às diferenças consonantais nos traços [anterior, distribuído], nada podemos concluir, uma vez que o número de tokens desse fator foi muito baixo (7. N=24 em Capivari e N=29 em Campinas). Ao comparar os três pares (1, 2) (indicados por Cs iguais na tavela 4 e no gráico 3); (3, 4) [voz]; e (5, 6) [nas], observamos que, em Capivari, os pares Cs iguais e [voz] favorecem o processo, enquanto que o par [nas] desfavorece; em Campinas, Cs iguais favorecem o processo, o par [voz] é neutro, e o par [nas] desfavorece. Assim, as tendências mostram que as vogais parecem inertes ao processo, mas os traços [vozeamento] e [nasal] interferem de modo diferente em Capivari e em Campinas. Mesmo que os resultados de Igualdade de Segmentos tenham poucas diferenças entre as cidades, chamamos a atenção para o fato de que essa variável só foi selecionada em Campinas e concluímos que ter sílabas segmentalmente iguais ou diferentes não é relevante para a aplicação do processo em Capivari. Assim, a variável Igualdade de Segmentos tem efeitos diferentes nas duas cidades. 4.4. Duas cidades, duas regras? O principal ponto que buscamos investigar foi se as propriedades de queda de sílaba são iguais ou diferentes em Capivari e Campinas. Um resultado igual nas duas cidades foi na variável Cavidade Oral das Consoantes, que não foi selecionada em nenhuma das rodadas – ou seja, se separadas somente pela cavidade oral, as consoantes não interferem no processo, tanto em Capivari quanto em Campinas. Já que o ponto de C e o valor para [contínuo] (isto é, a cavidade oral das 214 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 consoantes) determinam qual é o contexto de queda de sílaba, esse resultado foi inesperado. Entretanto, pudemos observar que, se a variável Cavidade Oral das Consoantes nunca foi selecionada, é importante separar as nasais. Desse modo, a variável Cavidade Oral das Consoantes com Distinção de [nasal] passou a ser selecionada. Com relação a resultados semelhantes, houve duas variáveis: na Cavidade Oral das Consoantes com distinção do traço [nasal], foi visto que há tendências e produtividades praticamente idênticas para coronais orais e para nasais: o primeiro tipo de segmento é favorecedor, e o segundo, desfavorecedor. No entanto, as tendências são opostas para dorsais: há favorecimento em Capivari e desfavorecimento em Campinas, o que indica duas regras distintas. A segunda variável que teve resultados semelhantes nas duas cidades foi Cavidade Oral das Vogais, em que veriicamos: (i) igualdades, com favorecimento nos contextos [dorso-labial + dorso-labial] e [dorso-labial + dorsal], fatores que têm uma mesma tendência e produtividade; (ii) semelhanças, como nos contextos com uma [dorsal] na primeira sílaba e contextos [coronal + dorsal], casos que desfavorecem o processo, isto é, a tendência é a mesma, mas a produtividade é diferente; e (iii) inalmente, os contextos [coronal + coronal] e [dorso-labial + coronal] são diferentes nas duas cidades, uma vez que há uma neutralidade em Capivari e um favorecimento em Campinas. Observando-se (i), (ii) e (iii), concluímos que Cavidade Oral das Vogais tem efeito diferente nas duas cidades. Quanto a diferenças, a variável Igualdade de Segmentos é distinta nas duas cidades, já que foi selecionada somente em Campinas. Concluímos que há duas restrições segmentalmente distintas de queda de sílaba para as cidades de Capivari e Campinas.27 De modo geral, a queda de sílaba pode ser implementada do seguinte modo, de acordo com Leal: (26) A queda de sílaba se dá se as consoantes envolvidas no processo tiverem o mesmo ponto de C e o mesmo valor para o traço [contínuo] (LEAL, 2006, p. 165). 27 Oliveira (2012) defende que a haplologia e a elisão silábica são um mesmo fonológico. Essa questão, que vai de encontro aos resultados de Leal (2006, 2007, 2012) e deste artigo, será tratada em trabalhos futuros. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 215 Com relação a essa regra, Oliveira questiona: [...] para a haplologia, importa o compartilhamento dos traços terminais do nó cavidade oral (como propõe LEAL, 2006) ou no nó raiz? Caso o nó relevante seja o nó cavidade oral, os traços [sonoro] e [nasal] não deveriam interferir no processo. (OLIVEIRA, 2012, p. 215) Essa airmação de Oliveira (2012) mostra que ainda restam questões muito complexas a serem investigadas a respeito da queda de sílaba. E optar pelo nó de cavidade oral ou pelo nó de raiz não soluciona a questão sobre qual é o lugar dessa regra (cf. subseção 9.4 de LEAL, 2012). Uma possibilidade para resolver essa questão foi proposta em Leal (2012) do seguinte modo: enquanto pontos de C e/ou [contínuo] diferentes bloqueiam o processo, uma diferença em [±vozeamento] ou a presença de [nasal] não bloqueia o processo, apenas desfavorece-o ou mantém-no neutro. Assim, uma forma de dar conta tanto de dados quanto de teoria seria interpretar que há, pelos menos, duas “fases” na queda de sílaba: 1a fase: deve-se certiicar que a cavidade oral das consoantes, isto é, o ponto de C e [±contínuo], é a mesma; 2a fase: eleva-se novamente ao nó de raiz, para que [nasal], [±vozeado] e [coronal, dorsal e labial] possam atuar com favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento. Ainda segundo Leal (2012), há dois problemas teóricos nessa interpretação de duas “fases”: (A) contraria o princípio de que regras fonológicas executam uma única operação (CLEMENTS; HUME, 1995: 250), uma vez que, primeiramente, deve-se identiicar a cavidade oral (o local da regra); em seguida, sobe-se novamente ao nó de raiz, para que os traços ditem favorecimento, neutralidade ou desfavorecimento. (B) Vai de encontro também ao princípio de que, se um processo fonológico é aplicado num determinado nó, aplica-se também a todos os seus nós dominados (cf. CLEMENTS; HUME, 1995, p. 251); na segunda fase, em que o processo “retorna” ao nó de raiz para determinar a tendência do processo, deve-se ignorar [±contínuo], pois esse traço determina a possibilidade de aplicação ou o bloqueio – nunca a tendência.28 28 Neste artigo, não apresentamos uma formalização da regra de queda de sílaba (com base na geometria de traços) em consequência da diiculdade que ainda parece existir em capturar a regra. Agradeço ao parecerista anônimo por nos chamar a atenção a esse fato. 216 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 De forma resumida, podemos interpretar que há duas grandes restrições para a implementação do processo: (i) primeiramente, o nó cavidade oral deve ser o mesmo, isto é, ponto de C e [contínuo] devem ser os mesmos; de outra forma, há bloqueio; (ii) num segundo momento, os traços [nasal], [vozeado] e, novamente, o ponto de C ditam a tendência da regra. Em vista do que apresentamos nesta subseção, vemos que há ainda uma grande diiculdade em capturar a queda de sílaba. Por outro lado, estudos sobre esse processo fonológico podem contribuir para a teoria fonológica. 5 Considerações inais O principal objetivo neste artigo foi veriicar se a queda de sílaba tem características segmentais iguais ou diferentes nos dialetos de Capivari e de Campinas. Observamos que há possibilidade de aplicação do processo com segmentos diferentes de /t/ e /d/, corroborando Pavezi (2006), Leal (2006, 2007), Mendes (2009) e Oliveira (2012), diferentemente do que airmam Alkmim e Gomes (1982). Ainda para as consoantes, constatamos que capivarianos e campineiros têm tendências muito parecidas para coronais orais e para [nasal]: as coronais favorecem o processo (conirmando a subespeciicação das coronais), enquanto que nasais desfavorecem – ainda, encontramos resultados de que pode haver aplicação com nasais; novamente, esses resultados corroboram Pavezi (2006), Leal (2006, 2007), Mendes (2009) e Oliveira (2012). Vimos ainda que as cidades preferem uma coniguração em que os segmentos nasais são levados em conta, já que só foram selecionadas as variáveis em que esse traço foi examinado em separado. Entretanto, as cidades divergem no traço [dorsal]: há um favorecimento do processo para capivarianos e um desfavorecimento para campineiros. Quanto ao traço [vozeamento], observamos que esse traço não bloqueia o processo, o que ratiica Alkmim e Gomes (1982), Tenani (2002), Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007); se as consoantes forem idênticas, isto é, com um mesmo [vozeamento], o processo é favorecido; e se as consoantes forem diferentes nesse traço, há uma neutralidade ao processo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 187-220, 2018 217 Para as vogais, pudemos observar que não há bloqueio com dorsais, o que corrobora Pavezi (2006) e Leal (2006, 2007) e vai de encontro a Alkmim e Gomes (1982); interessantemente, esses contextos de bloqueio para as autoras desfavorecem o processo em ambas as cidades. Outros resultados para vogais mostraram que houve: (i) diferenças, com coronais e com dorso-labial seguida de coronal, há um favorecimento em Campinas e uma neutralidade em Capivari; (ii) semelhanças: uma coronal seguida de uma dorsal favorecem o processo nos dois dialetos; outra semelhança é com vogais dorsais, já que há um desfavorecimento nas duas cidades; e (iii) igualdades: com duas dorso-labiais e com dorsolabial seguida de dorsal, há favorecimento, com pesos relativos próximos, em ambas as cidades. Concluímos que as cidades de Capivari e de Campinas têm regras diferentes de aplicação de queda de sílaba, no que concerne ao contexto segmental. Agradecimentos Agradeço aos pareceristas anônimos pelos comentários e sugestões. Os problemas remanescentes são de minha responsabilidade. Agradeço ainda à CAPES e à FAPERGS pelo auxílio inanceiro – no doutorado, à CAPES, e no pós-doutorado, à CAPES e FAPERGS, com uma bolsa DOCFIX). Referências ALKMIM, T.M.; GOMES, C.A. 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Por isso, este estudo explica brevemente a origem do pronome a gente no latim e no português arcaico, estabelece uma comparação entre as gramáticas tradicionais e as descritivas, no que se refere à abordagem de nós e a gente, e explica sucintamente o funcionamento dos pronomes de primeira pessoa do plural no português brasileiro atual, no português uruguaio e no espanhol uruguaio, para que possamos entender melhor a complexidade desse fenômeno em termos de semelhanças e diferenças entre essas variedades linguísticas. Palavras chave: variação nós e a gente; português brasileiro; português uruguaio. Abstract: It is important to analyze the historical trajectory of the lexical expression a gente until its grammaticalization as a pronoun, from the diachronic and synchronic description of the pronouns nós and a gente. For that reason, we briely explain the origin of the pronoun a gente, in Latin and in archaic Portuguese, we compare the approach of nós and a eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.221-253 222 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 gente presented on traditional grammars and descriptive grammars, and we succinctly explain the current functioning of the irst-person plural pronouns in Brazilian Portuguese, Uruguayan Portuguese and Uruguayan Spanish, so we can better understand the complexity of this phenomenon in terms of similarities and differences among these linguistic varieties. Key words: nós and a gente variation; Brazilian Portuguese; Uruguayan Portuguese. Recebido em 7 de dezembro de 2016. Aprovado em 13 de janeiro de 2017. 1 Introdução Com base nos poemas a seguir, nota-se que o uso de a(s) gente(s) impessoal, com ou sem o traço de número, também foi registrado no português africano de Moçambique de Noémia Soares,1 em 1949 (século XX), e no português europeu de Luis de Camões,2 em 1595 (século XVI). Essa característica impessoal, ainda presente no espanhol, é um traço arcaico do português de maneira geral (MATTOS E SILVA, 2006). Poema a Jorge Amado O cais... O cais é um cais como muitos cais do mundo... As estrelas também são iguais as que se acendem nas noites baianas de mistério e macumba. (que importa, ainal, que as gentes sejam moçambicanas ou brasileiras, brancas ou pretas) Jorge Amado, vem! Aqui, nesta povoação africana o povo é o mesmo também é irmão do povo marinheiro da Bahia, 1 Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares foi escritora moçambicana e escreveu esse poema, em 1949, em homenagem a Jorge Amado. O livro Sangue negro foi reeditado em 2001, pela Associação dos Escritores Moçambicanos. 2 Luis Vaz de Camões foi um importante escritor português e escreveu esse poema em 1595. O livro Obra completa foi reeditado em 2003, pela Editora Nova Aguilar. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 223 companheiro Jorge Amado, amigo do povo, da justiça e da liberdade. (SOARES, 2001, p. 136-137) Amor é fogo que arde sem se ver Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a gente; É nunca contentar-se de contente; É um cuidar que se ganha em se perder. É querer estar preso por vontade É servir a quem vence o vencedor, É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade; Se tão contrário a si é o mesmo amor? (CAMÕES, 2003, p. 70) Em toda a obra Os Lusíadas, a gente ou as gentes são empregados como sintagmas de terceira pessoa, indeinidos. Na própria antologia do autor, segundo Bechara e Spina (apud Camões 1999), há uma referência ao emprego da expressão a gente com o mesmo valor do português contemporâneo, extensão de sentido que é de “o ser humano” (p. 31). Encontram-se exemplos no singular: Vedes agora a fraca geração Quem dum vassalo meu o nome toma, Com soberbo e altivo coração A vós e a mi e o mundo todo doma. Vedes, o vosso mar cortando vão, Mais do que fez a gente alta de Roma; Vedes, o vosso reino devassando, Os vossos estatutos vão quebrando. [...] (CAMÕES, 2003, p. 174) 224 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Em tão longo caminho e duvidoso Por perdidos as gentes nos julgavam. (CAMÕES, 2003, p. 89) É importante, pois, analisar a diacronia do sintagma nominal a gente até sua pronominalização no português. Posto isso, analisamos a origem do pronome a gente no latim, no português arcaico e em outras línguas românicas; a alternância de nós e a gente nas gramáticas tradicionais, nas gramáticas descritivas; o funcionamento desses pronomes de primeira pessoa do plural no português brasileiro, no português europeu e no português uruguaio, para que possamos entender melhor as semelhanças e diferenças entre essas variedades linguísticas. 1 Nós e a gente no latim, no português arcaico e em línguas românicas Na época do latim vulgar, houve mudanças morfológicas na estrutura da língua com a criação de novos indeinidos, ou com a extensão do sentido já existente. Entre eles, segundo Ilari (2006, p. 96), “unus assume, além de seu papel de numeral, também as funções de pronome adjetivo/indeinido; com nec, forma nec unus (nem um), que substitui o antigo indeinido negativo, nullus.” O autor também registra o desaparecimento de alguns termos da classe dos indeinidos, como omnis. No espanhol, italiano e francês (línguas românicas) e no inglês (língua germânica), respectivamente, ainda mantém-se o uso de uno como pronome indeinido, diferentemente do português que utiliza o se, como é possível observar nos exemplos a seguir, de autoria própria. Uno no debe juzgar tan rápidamente. Uno non deve essere troppo rapido per giudicare On ne doit pas être trop rapide pour juger One shouldn’t be too quick to judge Não se deve julgar com tanta rapidez. Na gramática de Hermoso, Cuenot e Alfaro (2006, p. 62), o pronome uno é analisado como um dos pronomes indeinidos que “constituem uma classe de palavras com valor de adjetivo, pronome ou advérbio, que dão nome ao que qualiicam ou substituem um valor Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 225 indeterminado: quantitativo, qualitativo ou intensivo” (tradução nossa).3 Nesse caso, uno expressa quantidade ou intensidade. No português brasileiro atual, o se pode funcionar como índice de indeterminação nesses casos exempliicados, mas, segundo um estudo de tradução do francês para o português, de Aguiar (2002, p. 87), não há um correspondente para on no português e, por isso, essa expressão francesa ora é traduzida como primeira pessoa do plural ora como terceira pessoa do plural. Assim, on pode designar uma ou várias pessoas determinadas no discurso. No francês, o pronome indeinido on corresponde a uma pessoa, cada um ou se e precede o verbo na 3ª pessoa do singular: on dit (dizse). Os indefinidos com sentido negativo requerem o advérbio de negação ne antes do verbo. Em línguas germânicas, como o alemão, o pronome indeinido deve ser traduzido por man, seguido também pelo verbo na terceira pessoa do singular: man sagt (diz-se) (DICIONÁRIO MULTILÍNGÜE, 1998, p. 367 e 427). Já no português arcaico, de acordo com Lopes (2003), o vocábulo homem era usado como substantivo e pronome indeinido. As línguas românicas herdaram o uso indeterminado de homem, presente já no baixo latim e atestado nas variantes: hombre/ome (espanhol), uomo (italiano), homem/ome (português), omul (valaquio), om/hom (provençal) e on (francês): este último mantém até hoje esse valor. Em português, entretanto, a partir do século XVI, o vocábulo homem deixa de ser usado como pronome, interrompendo aparentemente o processo de gramaticalização do substantivo. Outro item lexical – a forma a gente – parece começar a preencher esse espaço vazio deixado no sistema pronominal. (LOPES, 2005, p. 1) Segundo Mattos e Silva (2006, p. 160), o pronominal homen, próprio ao período arcaico (com o mesmo sentido do on francês), frequentemente expressa a indeterminação do sujeito. Para Lopes (2005, p. 7), não houve a pronominalização completa do homo como uma mudança linguística no português, diferentemente do on no francês. Ainda “constituyen uma classe de palavras com valor de adjetivo, pronombre, o adverbio, que dan al nombre al que caliican o sustituyen un valor indeterminado: cuantitativo, cualitativo o intensivo” (HERMOSO; CUENOT; ALFARO, 2006, p. 62), 3 226 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 assim, no período arcaico, houve coexistência de homem (e variantes) como nome e pronome indeinido, conforme exemplos: E portanto as homen cree por mais verdadeiras quanto el foi mais presente. Ca naquel logar so homen ouvir falar de pescado. De cincoenta anos adeante vai ja homen folgando e assegando e quedando das tentações. Ainda segundo Mattos e Silva (2006, p. 160), também é possível constatar um exemplo de alternância entre homen e a passiva sintética, ambos em contexto de indeterminação do sujeito: A quinta he Geometria que fala dos contos e das medidas per que homen pode saber as canteas e os espaços da terra; a sexta he a música que fala em como se devian mudar e mesurar as vozes. Dias (1959, p. 94), apud Mattos e Silva (2006, p. 169-170), relata que o pronome utilizado, na época, era homem, com as alomorias omê e ome. (H)omen, como sujeito indeterminado, é recorrente do período arcaico até o século XVI. Ainda assim, há resquícios desse uso atualmente no Nordeste brasileiro. Para Teyssier (2001, p. 83-84), a obra do dramaturgo Gil Vicente, representada de 1502 a 1536, documenta a constituição de uma língua clássica. O caso de homem com sentido indeterminado aparece em suas peças como arcaísmos característicos de certos personagens, particularmente de camponeses e mulheres do povo. Era a prova de que esses traços eram marcados ou estigmatizados pelo público da Corte. Teyssier (2001, p. 82-83) conirma que essa indeinição era representada até então pela palavra homem, com o mesmo sentido do on francês, que desapareceu na época da formação do português clássico, até o im do século XVI. Assim, a mudança linguística de homem não foi implementada e inalizada no português, pois o item lexical a gente, como indeinido ou genérico, entrou primeiramente na língua para ocupar a lacuna pronominal do sistema linguístico desde a evolução do latim, uma vez que a gente passou a indicar neutralidade. Por isso, o processo de gramaticalização de homem foi interrompido no século XVI. Nessa mesma época, os traços de número começam a desaparecer do nome (a) gente, o que pode ter interferido Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 227 na pronominalização de homo, uma vez que a gente tornou-se forte concorrente para substituir a vaga deixada pelo homem indeinido. “O emprego de homem, no português arcaico, está diretamente relacionado com a perda da referência do nome que, ao ser utilizado como pronome, pode admitir uma leitura impessoal (referência zero)” (LOPES, 2005, p. 8). A perda da referência também é sinal de que a expressão estava deixando a classe dos nomes, uma vez que a propriedade semântica é inerente aos nomes (LOPES, 2005, p.7). Assim, a emergência de a gente se gramaticalizando é um novo processo depois da variação homem~home. Primeiro a referência é indeinida com sentido original de povo, depois torna-se genérica (ZILLES, 2007, p. 31). A partir do século XVI, a ausência de traço plural para o substantivo gente, que perde propriedades nominais, ultrapassa 70%. A pronominalização do substantivo gente foi um processo lento e gradual, que passa da referência indeterminada, determinada até chegar ao contexto mais especíico, que é a referência a eu. Há registros de a gente como pronome já no século XVIII. Anteriormente partiu de uma expressão substantivada para ambiguidade interpretativa entre sinônimo de pessoas ou de nós desde o século XVI, época em que o substantivo começa a perder suas propriedades de número, mas é no século XIX que a ambiguidade deixa de existir, e a gente passa a ser usado apenas como pronome no singular, dando início à fase da gramaticalização (LOPES, 2005, p. 4-6). Séc. XVI: Quanto mais se chega a im do mundo, a todo andar, tanto a gente é mais ruim! Séc. XVII: [...] E os tigres, em tanta cantidade (por não haver descampados), que, em se metendo | a rês no mato, não sae, e o mesmo risco corre a gente, se não anda acompanhada, e pelos rios e lagos dos jaguarés... Séc. XIX: Rosinha – A prima Maricota disse-me que era uma coisa de pôr a gente de queixo caído. 228 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Para Lopes (2005, p. 6), essas ocorrências icaram frequentes a partir do século XVI, pois eram mínimas no português arcaico. O sentido de a gente passou a incluir todas as pessoas, inclusive o pronome de primeira pessoa do singular eu. No período arcaico, coexistia o emprego de homem (e variantes) como nome e como pronome indeinido. Com o desaparecimento de homem como pronome indeinido, o substantivo gente emerge como pronome. Assim, o processo de gramaticalização de itens lexicais passa por três usos funcionais, tais como substantivo, “interpretação ambígua” e pronome indeinido (LOPES, 2005, p. 7, 8). Exemplo de a gente como substantivo e, portanto, como terceira pessoa No que o moço cantava | o judeu meteu mentes, e levó-o a ssa casa,| poi se foram as gentes (LOPES, 2005, p. 4). Exemplo de interpretação ambígua (pode ser substantivo ou pronome indeinido) Rosinha – A prima Maricota disse-me que era uma coisa de pôr a gente de queixo caído. (LOPES, 2005, p. 5) Vianna (2011, p. 95 e 102), que analisou a alternância pronominal nós e a gente no português europeu, airma que, diferentemente do português brasileiro, ainda há atualmente exemplos ambíguos no português europeu, nos quais não se pode airmar se o próprio falante se inclui ou se são somente as outras pessoas. as coisas para nós são mais complicadas... muito mais complicadas...nós tamos muito mais... a gente da hotelaria nunca se ganhou tanto ou tão pouco não é tanto tanto pó mais é pó menos... nunca se ganhou tão pouco como agora... (Amostra Cacém: dado 580, MB1) tá muito melhor agora porque naquele tempe para se vir ao Funchal gastava-se três horas... hoje em dia onde eu faço em meia hora de tempo _ para vir a gente ao Funchal era a quase d’ano a ano ou quande se... (Amostra Funchal: dado 309, FC1) A ambiguidade entre nomes e pronomes tem semelhanças porque também exercem a mesma função sintática. A diferença é que Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 229 os pronomes não podem ser antecedidos de determinantes e funcionam isoladamente como núcleo do sujeito. A própria ausência de determinante signiica mais indeterminação (LOPES, 2005, p. 9). A referência genérica e a posição isolada foram condicionantes linguísticos semelhantes para homem e a gente, já que, “na pronominalização dos nomes, o item lexical passa a ocupar posições gramaticais mais ixas, tipicamente pronominais, podendo assumir um caráter mais genérico e indeterminado” (LOPES, 2005, p. 11). Também com sentido impessoal, a expressão toda a gente era variante da expressão todo mundo. Esse uso era visto como brasileirismo pertencente ao português do Brasil, de acordo com Teyssier (2001, p. 106). A forma la gente ou a gente tem a mesma origem latina (gens, gentis) no português e no espanhol. O percurso diferente é que no português, após o processo de gramaticalização, o pronome a gente passou a designar algo indeterminado e genérico. No espanhol, a correspondência de la gente seria ellos (MAIA, 2008, p. 2659-2660). Maia (2008, p. 2664-2665) ressalta alguns fatos curiosos sobre o uso de la gente, num estudo diacrônico desde o século XII até o período contemporâneo: (i) la gente também está se especializando na posição pronominal, ou seja, antes do verbo (posições mais ixas); (ii) há muita ocorrência de la gente com determinação de toda; (iii) a forma singular está ocorrendo com mais frequência; (iv) la gente não aceita mais outro termo no meio da expressão, como la vil gente. Assim, a forma la gente parece estar, portanto, gramaticalizando-se como forma pronominal de indeterminação, visto que os ambientes favoráveis a essa gramaticalização são os de referência indeinida. A expressão lexical plena a gente, ao longo do tempo, passou a equivaler a nós, tanto no português brasileiro quanto no português uruguaio. De acordo com Faraco (2005, p. 39-40), esse tipo de mudança linguística é conhecido como gramaticalização, ou seja, é quando um elemento lexical (uma palavra) ou uma expressão lexical plena se transforma em um elemento gramatical, como pronome ou preposição. 2 Nós e a gente nas gramáticas tradicionais A variação pronominal de primeira pessoa do plural, como a maioria dos fenômenos linguísticos variáveis, não é devidamente 230 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 registrada nas gramáticas tradicionais. Algumas delas sequer registram o uso, e outras registram o pronome ainda com certa cautela. Bechara (2004, p. 166) já cita o pronome a gente, mas associando seu uso aos contextos de informalidade: O substantivo gente, precedido do artigo a e em referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa. Em ambos os casos o verbo ica na 3ª pessoa do singular. A linguagem cerimoniosa é, certamente, a linguagem mais formal. O que o gramático não percebe é que o uso de a gente extrapola os contextos orais e mais informais, chegando até mesmo a contextos mais monitorados e formais como se pode observar na fala e em produções textuais de alunos desde o nível fundamental (BRUSTOLIN, 2010) até o nível superior (SANTOS; COSTA; SILVA, 2011), além de vários outros tipos de manifestação linguística. Também há exemplos midiáticos, como o caso notório da própria chamada da Rede Globo A gente se liga na Globo ou A gente se liga em você. Na escrita, o aparecimento de a gente está mais vinculado ao gênero textual, como o da propaganda, que mais se aproxima do interlocutor. Assim, segundo Zilles (2007, p. 39-41), a gente parece não ser estigmatizado porque tem uma frequência alta de uso no Brasil (até 80%), pode ser identiicado em práticas sociais ligadas a determinados gêneros textuais, como literatura infantil, na voz de crianças, textos publicitários, correspondência comercial, dicionários, e, geralmente, não tem inluência da escolaridade. Em outra gramática tradicional, a de Cunha e Cintra (2001), o pronome a gente aparece como uma fórmula de representação da 1ª pessoa. O gramático restringe seu uso aos contextos coloquiais, tanto na variação com nós como na substituição por eu (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 296). Essa expressão pronominal também é interpretada como equivalente a eu (Se a gente ganhar a luta, tudo na minha vida será diferente – disse o pugilista) em Faraco e Moura (2002, p. 287). Ainda em Faraco e Moura (2002, p. 287), o a gente também aparece como impessoal ou indeterminado (Eu sabia os riscos que estava correndo. A gente sempre pensa: comigo não vai acontecer. Aí aconteceu, diz.). No entanto, ao analisar o contexto discursivo, nota-se Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 231 também nesse dado que a gente está em um contexto de primeira pessoa do singular, com a presença do pronome pessoal reto eu e do pronome pessoal oblíquo comigo. Em Almeida (1999, p. 172), há apenas uma breve menção ao pronome a gente como pertencente ao grupo dos pronomes de tratamento, ou seja, aqueles que substituem a terceira pessoa gramatical. Assim, nota-se que o gramático não considera o uso de a gente como primeira pessoa do plural, mas apenas o uso indeterminado. Como as gramáticas tradicionais prescrevem normas e não descrevem propriamente a língua falada, é preciso buscar gramáticas descritivas e pesquisas linguísticas que expliquem melhor como funcionam os pronomes de primeira pessoa do plural no português brasileiro, sobretudo o pronome gramaticalizado a gente. 3 Nós e a gente nas gramáticas descritivas e na gramaticalização Nessa nova era de gramáticos linguistas, selecionamos dois autores, Neves (2000, 2008, 2009) e Castilho (2010), para ilustrar como o fenômeno nós e a gente é analisado do ponto de vista da gramática descritiva, que, em sua maioria, tem como base a realidade linguística do português culto brasileiro4 e o processo de gramaticalização. Da mesma forma que nós, a expressão a gente também pode se referir ao indivíduo que fala (a gente=eu) (NEVES, 2008, p. 529). Segundo Neves (2008, p. 509, 521), a propriedade geral dos pronomes pessoais é a de serem palavras (i) fóricas – quando assumem referência 4 Lucchesi (1994, p. 18-26) propõe três conceitos de norma: norma padrão, norma culta e norma popular. A norma padrão é a norma ideal, sem falantes, prescrita pela gramática tradicional. A norma culta é de fato a língua utilizada pelos falantes cultos de nível superior completo e antecedentes biográico-culturais urbanos dos segmentos mais favorecidos da sociedade. A norma vernácula seria a língua falada pelas classes dominadas, estigmatizadas e não escolarizadas. Bagno (2005 e 2003) faz uma releitura dessa e de outras terminologias em sua tese de doutorado, publicada como livro em Dramática da Língua Portuguesa (2005), utilizando uma longa resenha de textos que tratam desse tema. Para Bagno (2005, p. 141-156) e (2003, p. 51-70), a divisão seria entre norma padrão (que não é variedade linguística e, portanto, não é falada por ninguém), variedades cultas e variedades populares e, posteriormente, variedades prestigiadas e estigmatizadas, que reletem mais as características sociolinguísticas de uma comunidade. 232 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 no uso, retomando passagens do texto ou demonstrando traços especíicos de fala – e (ii) exofóricas ou dêiticas, quando é preciso recorrer à situação extralinguística, de quem é a fala e para quem a fala está sendo dirigida. As duas grandes funções são interacional e textual. Neves (2009, p. 39-40) explica a variação pronominal de primeira pessoa do plural por meio da gramaticalização, que é um processo da mudança linguística, ou seja, um processo em andamento. Para isso, utiliza exemplos diferentes do uso de a gente: • O primeiro, historicamente “legítimo”5 Diligente e decidida é quase toda a gente desta região, mas também é um tanto intolerante, ainda pouco civilizada. • O segundo, hoje, “tolerável” na linguagem coloquial Bem, a gente depois combina. • E o terceiro, ainda “proscrito” Eu disse: a gente podemos enforcar, que isso não vale nada. É perceptível que a expressão lexical a gente originalmente significasse uma terceira pessoa e a referência fosse totalmente indeterminada (“legítimo”). Posteriormente houve uma mudança linguística em que a gente transformou-se em pronome de primeira pessoa do plural (“tolerável”), ainda não totalmente gramaticalizado, principalmente se levarmos em consideração que a expressão a gente podemos é estratiicada socialmente no português brasileiro e, portanto, não é um traço gradual das variedades linguísticas do Brasil. Esse caso é mais estigmatizado e menos recorrente no português brasileiro do que no português europeu (“proscrito”). A terminologia traços graduais e traços descontínuos é de Bortoni-Ricardo (1998, p. 102), que caracteriza, em verdade, dois tipos de regras variáveis; regras descontínuas, “que deinem uma estratiicação descontínua” e regras graduais, “que deinem uma estratiicação contínua”. Os traços graduais são exempliicados pelo uso de a gente juntamente com a concordância padrão (a gente vai), e os traços descontínuos são exempliicados pelas expressões a gente vamos e nós vai, já que há estigma 5 As aspas são da própria autora talvez pelo fato de as expressões serem até pejorativas no caso de “tolerável”. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 233 por parte do falante e é resultado de uma estratiicação social maior. Em suma, traço gradual indica um uso mais geral e uma menor estratiicação, e o traço descontínuo indica uma maior estratiicação e um uso mais especíico por alguns grupos de falantes ou membros da comunidade. Voltando ao percurso diacrônico de a gente, é importante entender alguns princípios da gramaticalização, propostos por Neves (2009, p. 39-40): • Persistência – na ocorrência tolerável, “permanecem vestígios de signiicado lexical original” de terceira pessoa com sentido genérico. • Descategorização – “perda ou neutralidade dos marcadores morfológicos e das características sintáticas próprias das categorias plenas (como os substantivos)”. A variação morfológica desconsidera “o estatuto de terceira pessoa de a gente (um sintagma nominal): trata-se de uma lexão, para efeito de concordância, em primeira pessoa do plural, concordância necessariamente ligada a uma categoria pronominal, não substantiva”. Acredito que nessa categoria se enquadre o exemplo a gente vamos que passa a concordar também com a primeira pessoa do plural, e não somente com a terceira do singular. • Divergência e estratiicação – “coexistência dos dois diferentes modos de concordância com a forma quasepronominal a gente – uma na terceira pessoa do singular e outra na primeira pessoa do plural – e, ao mesmo tempo, mantém-se vivo o uso original do sintagma nominal a gente.” • Especialização – diferentes níveis de funcionalidade e de valorização sociocultural para cada realização linguística. São diferentes escolhas para diferentes ins. Nesse sentido, mesmo com a expansão do uso de a gente no português brasileiro, há algumas posições em que o pronome não ocorre, como a possibilidade de deinir a cardinalidade (quantos indivíduos) para nós, diferentemente de a gente. (Exemplo: Todos nós. *Todos a gente. (NEVES, 2008, p. 517-518). A nosso ver, a agramaticalidade do exemplo *Todos a gente é uma evidência de que o pronome a gente ainda não está totalmente gramaticalizado no português brasileiro, como os exemplos “nós quatro” e “*a gente quatro”. 234 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Com relação aos possessivos no sintagma nominal (SN), também é possível a combinação de o ou um como demonstrativo juntamente com o possessivo. Exemplo: Esse nosso cineminha/Agora vamos para o nosso outro assunto (NEVES, 2008, p. 577 e 579). Novamente o possessivo correspondente ao pronome a gente (da gente) não ocorre em contexto de sintagma nominal com artigos o ou um, ou seja, o pronome a gente ainda não está completamente implementado, mas em processo de gramaticalização no português brasileiro, seguindo todos os cinco princípios descritos por Neves (2008). Zilles (2007, p. 32-33) também trata da gramaticalização com uma mudança linguística em que se atribui o status gramatical a um item lexical, mas subdivide os princípios em quatro, a saber: • Dessemantização: redução semântica, bleaching, perda de conteúdo semântico. A gente perde o traço de povo, porém mantém o de pessoa. • Extensão: generalização contextual, uso em novos contextos; Quando se percebe o uso de a gente, na função de sujeito, aumentar, de 1970 para 1990, e expandir para contextos além do genérico, como a referência mais especíica. Seria o equivalente à persistência de Neves (2008, p. 39-40). • Descategorização: perda de propriedades morfossintáticas características das formas-fonte, incluindo a perda do status de palavra independente própria da cliticização e da aixação. Quando gente está em estruturas ixas como boa gente e perde o plural gramatical e o gênero feminino ao longo do tempo. Seria o equivalente à descategorização de Neves (2008, p. 39-40). • Erosão: redução fonética, perda de substância fonética. Quando a gente adquire novas pronúncias como: A gente, a hente, a’ente, ‘ente. Nesse sentido, para Zilles (2007, p. 28-29, 34), o feixe de mudanças está inter-relacionado com o sistema pronominal e com a concordância dos pronomes nós e a gente, e você e tu. Assim, a inserção de a gente e você no português brasileiro atinge o parâmetro do sujeito preenchido, que se tem tornado frequente como resultado da redução do Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 235 paradigma verbal. Há também o impacto da redução fonética de você para cê da mesma forma que de a gente para a hente, a’ente,‘ente. Além de Neves (2008), Castilho (2010, p. 207 e 439) também descreve esse fenômeno linguístico em sua gramática e airma que há substituição de nós por a gente tanto no português brasileiro popular como no português brasileiro culto. Mais adiante (2010, p. 477) ressalta que a gente comuta com nós nos mesmos contextos. E na página seguinte (2010, p. 478), de fato, traz os dados da pesquisa de Omena (1978) para delimitar as variáveis propícias para o uso de a gente. Dessa forma, Castilho (2010, p. 477) fornece resultados variacionistas que contribuem para a discussão de que não se trata de uma mera substituição de uma forma por outra, mas, sim, de variação linguística condicionada por fatores linguísticos e sociais. Assim, a expressão a gente aparece junto com os outros pronomes pessoais numa reconiguração do quadro pronominal brasileiro, ainda que seja registrada apenas como pertencente ao português brasileiro informal quando já se sabe que o a gente também exista no português mais formal. Com base nessa concepção de variação linguística, sintetizamos a seguir pesquisas variacionistas no âmbito do português brasileiro e do português europeu sobre a alternância nós e a gente como pronome de primeira pessoa do plural. 4 Nós e a gente no português brasileiro e no português europeu Desde a década de 1980, inúmeros estudos variacionistas têm sido realizados sobre a variação pronominal de primeira pessoa do plural na variedade do português brasileiro. Por isso, faz-se necessário reunir alguns trabalhos para identiicarmos a frequência em cada localidade e em cada região do Brasil, que servirá para compararmos com os resultados do português brasileiro da fronteira e do português uruguaio. No português uruguaio, não se tem estudos variacionistas acerca desse fenômeno linguístico. No português europeu, os estudos são poucos (RUBIO, 2012 e VIANNA, 2011), se comparados ao português brasileiro, mas já revelam que, em Portugal, a tendência maior é o uso do pronome nós (RUBIO, 2012, p.355); o a gente é utilizado com concordância no plural em 1/4 das ocorrências (RUBIO, 2012, p. 18); o PE tem comportamento mais conservador, e a variação é estável com mudança geracional, ao passo que, no PB, o comportamento é mais inovador, e a 236 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 mudança está em curso (VIANNA, 2011, p. 202-204 e RUBIO, 2012, p. 356); a faixa etária não é selecionada no PE, mas a frequência de uso de nós é maior entre os jovens, enquanto no PB a faixa etária é selecionada com os jovens favorecendo mais a gente (RUBIO, 2012, p. 358). Para analisarmos as diferenças e semelhanças da variação de primeira pessoa do plural no Brasil e em Portugal, é interessante comparar, minimamente, as frequências de nós e a gente no português brasileiro como um todo e no português europeu conforme a Tabela 1. A ordenação dos dados é feita com base na porcentagem de a gente por ser a variante inovadora e o foco da investigação. TABELA 1– Percentagem global das variantes nós e a gente no português brasileiro e no português europeu6 7 8 9 10 Variedade Autor Oliveira, 2008 85% 15% João Pessoa – Projeto VALPB6 – PB Fernandes, 1999 79% 21% Rio de Janeiro – Amostra Censo de 2000 – RJ Omena, 2003 79% 21% Rio de Janeiro – Amostra Censo de 1986 – RJ Omena, 2003 78% 22% Pelotas – Projeto VARX7 – RS Borges, 2004 78% 22% Goiás – GO Mattos, 2013 77% 23% Norte luminense – RJ Machado, 1995 73% 27% 73,8% 26,2% Rubio, 2012 8 Florianópolis – Projeto VARSUL – SC Seara, 2000 Vitória – Projeto PORTVIX9 – ES Mendonça, 2010 72% 28% 70,8% 27,3% Rio de Janeiro – RJ Jaguarão – Projeto BDS Pampa10 – RS Omena; Braga, 1996 70% 30% Borges, 2004 69% 31% Porto Alegre – RS Zilles, 2007 69% 31% Curitiba – PR Borba, 1993 64% 36% NURC – RJ Silva, 2010 63% 37% Projeto VALPB – Variação Linguística no Estado da Paraíba. Projeto VARX – Banco de dados por classe social de Pelotas. 8 Projeto VARSUL – Variação Linguística na Região Sul do Brasil. 9 Projeto PORTVIX – Português Falado na Cidade de Vitória. 10 Projeto BDS Pampa – Banco de dados sociolinguísticos. 7 Nós Caimbongo – Cachoeira – C. rural afro-brasileira – BA Interior Paulista Iboruna – SP 6 Agente Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 237 11 12 13 14 15 Piabas – C. rural de Anselino da Fonseca – BA Sampaio e Lopes, 2009 62% 38% Blumenau – SC Tamanine, 2002 60% 40% Rio de Janeiro – Projeto NURC Lopes, 1998 59% 61% Lages – SC Tamanine, 2002 58% 42% Cinzento – C. afro-brasileira – Projeto Vertentes12 – BA Antonino; Bandeira, 2011 56% 44% Brasilândia – C. de Periferia – SP Coelho, 2006 53% 47% Blumenau – SC13 Silva, 2004 51% 49% Concordia – SC Franceschini, 2011 50% 50% Chapecó – SC Tamanine, 2002 48% 52% Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador – Projeto NURC14 Lopes, 1998 42.2% 57.8% 11 CRPC15 – Portugal Rubio, 2012 42% 58% Ponta Porã – C. de Assentados – MS Muniz, 2008 39% 61% Salvador – Projeto NURC Lopes, 1998 37% 63% Porto Alegre – Projeto NURC Lopes, 1998 28% 72% Funchal – Portugal Vianna, 2011 26% 74% Cacém – Portugal Vianna, 2011 22% 78% Oeiras – Portugal Vianna, 2011 9% 91% Em termos de frequência geral do fenômeno, de 59% a 85%, são estes os estados que mais utilizam o pronome a gente: Bahia (comunidade isolada), Paraíba, Rio Grande do Sul (Pelotas), Goiás, São Paulo (interior), Santa Catarina (Florianópolis) Espírito Santo, Rio de Janeiro (de 59% a 78%). De 58% a 69%, os estados são: Rio Grande do Sul (Jaguarão, Porto Alegre) e Santa Catarina (Curitiba, Blumenau, Lages) e a comunidade rural de Piabas (Bahia). De 48% a 56%, temos a comunidade afro-brasileira (Bahia), São Paulo (periferia), Santa Catarina (Blumenau, Concórdia e Chapecó). Abaixo de 42 % de uso de a gente, ou seja, favorecendo o uso de nós, cita-se o trabalho de Lopes (1998), 11 Projeto NURC – Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro. Projeto Vertentes – Português Popular do Estado da Bahia. 13 As entrevistas foram feitas com proissionais da saúde, em sua grande maioria, graduados, e obtidas por meio de entrevistas do Programa do Jô. 14 Projeto NURC – Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro. Esses são os resultados das três localidades juntas. 15 CRPC – Corpus de Referência do Português Contemporâneo. 12 238 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 que mostra resultados conjuntos para Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador (Projeto NURC). Em amostras separadas do português culto, Porto Alegre (28%) e Salvador (37%) permanecem com percentuais baixos. Em outras amostras do RJ, registra-se que a frequência de uso do a gente chega no mínimo a 59% (para essa amostra do NURC, ou seja, apenas de falantes cultos), 63%, 70%, 73%, 78% e no máximo de 79%, enquanto em Porto Alegre é bem mais alta, com 69% quando não se trata somente de falantes cultos. O Brasil é um país continental e, justamente por conta da sua grandeza, os estados de uma mesma região não exibem um comportamento linguístico idêntico, haja vista que o uso de a gente no Rio Grande do Sul, por exemplo, ocorre desde 78% (Pelotas) até 69% (Jaguarão e Porto Alegre); no Paraná é de 64% (Curitiba); e em Santa Catarina, por sua vez, a frequência é de 72% (Florianópolis), 60% (Blumenau), 58% (Lages) até 48% (Chapecó). De uma forma geral, o português brasileiro privilegia o uso de a gente em detrimento de nós, exceto em Chapecó (SC). Até mesmo em comunidades mais isoladas (53%, 56%, 62% e 85%) o a gente já está presente majoritariamente, exceto em Ponta Porã (39%), talvez pela situação fronteiriça com o Paraguai, ainda que não tenha acidente geográico. Interessante também observarmos os resultados de Jaguarão (Brasil) que faz fronteira ao Sul com Rio Branco (Uruguai). Nessa localidade, o uso de a gente é de 69% contra 31% do uso de nós. Jaguarão é uma fronteira com acidente geográico, ou seja, seu limite é estabelecido isicamente por meio de uma ponte. Essa comunidade fronteiriça exibe resultados semelhantes à maioria do Brasil quanto ao uso crescente do pronome a gente. Entre os grupos de fatores sociais que normalmente são relevantes para o fenômeno (tabela 1), podem-se citar, em ordem de recorrência: (v) faixa etária, (vi) sexo; (vii) escolaridade; e (viii) localidade. Entre os grupos de fatores linguísticos, praticamente em todos os trabalhos, podem-se elencar, em ordem de importância: (i) paralelismo formal e discursivo; (ii) traço semântico do referente ou tipo de referência; (iii) tempo verbal; e (iv) saliência fônica. Sobre o português europeu, Vianna (2011), na análise da alternância pronominal de três cidades de Portugal, obteve valores diferentes para cada uma das comunidades (26%, 22% e 9% de uso do a gente, respectivamente, para Funchal, Cacém e Oeiras). Assim, Vianna (2011, p. 90) conclui que Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 239 a forma inovadora ‘a gente’ é a estratégia preferencial no desempenho oral dos entrevistados brasileiros; ao passo que, entre os portugueses que compõem a amostra, é a forma padrão ‘nós’ que se destaca como a mais produtiva na indicação da primeira pessoa do plural. Em termos de comparação dos trabalhos sobre português europeu, os percentuais de Vianna (2011) e Rubio (2012) são bem diferentes. As três comunidades do português europeu obtiveram 74%, 78% e 91% de uso do nós, respectivamente, para Funchal, Cacém e Oeiras. Os resultados de Rubio (2012) são de 58% para o uso de nós no Corpus de Referência do Português Contemporâneo de Portugal. A diferença dos dois trabalhos reside nas diferentes opções metodológicas escolhidas que interferem, sobretudo, nos resultados percentuais. Rubio (2012) considera apenas os casos de sujeito explícito e sujeito não explícito que apresentam em contextos anteriores as formas nós e a gente. O emprego de –mos sem referente explícito não é considerado dado, tanto nos casos isolados como nas primeiras referências, pois não é possível saber se o sujeito nulo é nós ou a gente, porque “no PE, tanto a forma nós como a gente são candidatas potenciais a ocorrer com verbos lexionados em 1PP”. No entanto, Vianna (2011) considera esses dados, o que altera seu resultado geral com a frequência alta do pronome nós. Assim, os resultados de Vianna (2011) para o pronome nós estão vinculados às ocorrências de verbos com desinências de 1PP sem referente explícito, ou seja, os casos de zero nós. Nesse sentido, a proposta da pesquisa de Rubio (2012) tem como um dos focos a análise da alternância pronominal entre nós e a gente, e não a representação do sujeito em 1PP do discurso (RUBIO, 2012, p. 227-230). Neste trabalho, assim como em Vianna (2011), consideramos todos os dados de sujeito implícito com a desinência de primeira pessoa do plural como sendo nós, porque não há nenhum dado de sujeito explícito com o pronome a gente e desinência -mos nas entrevistas de Aceguá, fato que conirma o uso menos encaixado na fronteira. Nesse sentido, toda vez que aparece essa desinência e o sujeito implícito/não expresso, consideramos que se trata do pronome nós, assim como Vianna (2011). Rubio (2012) airma que, tanto no português brasileiro quanto no português europeu, há variação pronominal de primeira pessoa do plural e de concordância verbal de primeira pessoa do plural. No português 240 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 europeu, a frequência de uso do pronome a gente é de 42%, enquanto no português brasileiro do interior paulista é de 73.8%. No português brasileiro, quatro variáveis linguísticas (paralelismo discursivo, saliência fônica, grau de determinação do sujeito e tempo e modo verbal) e duas extralinguísticas (escolaridade e faixa etária) foram selecionadas. No português europeu, uma variável linguística (paralelismo discursivo) e duas extralinguísticas (escolaridade e sexo) foram selecionadas. A faixa etária não foi selecionada para o português europeu, mas a frequência mostra que quanto maior a idade, maior o uso de a gente. Para Rubio (2012, p. 357) “o fenômeno variável se sujeita às mesmas “pressões” formais, ainda que os pronomes exerçam funções diferentes em cada uma das variedades”, porque paralelismo discursivo é semelhante nas duas variedades, e também em Aceguá, como teremos oportunidade de ver, mas traço semântico do sujeito e tempo e modo verbal são diferentes. Deve-se levar em conta também que a produtividade de a gente é menor em Portugal e no Uruguai do que no Brasil. Uma diferença importante, segundo Rubio, é que, no português europeu, o pronome a gente é estigmatizado, por isso as mulheres e os mais escolarizados tendem a evitar seu uso. No português brasileiro e no português uruguaio de Aceguá, o pronome a gente é inovador, mais urbano e mais prestigiado. Essa provável ausência de estigma, segundo Zilles (2007, p. 37), justiica-se pelo caráter crescente do uso da forma inovadora a gente na fala de todo o país, o que chega a quase 80%. Na variedade portuguesa, a concordância verbal com nós é categórica, mas com a gente é variável. A frequência da concordância verbal de primeira pessoa do plural ica em torno de 24,5% para a gente vamos e 75,5% para a gente vai, percentuais mais altos que no português brasileiro (RUBIO, 2012, p. 361-362). O emprego da primeira pessoa do plural junto de a gente é consequência direta da diminuição das idades e da escolaridade, o que sugere mudança linguística em progresso como também airma Omena (1996, p. 192). Rubio (2012), ao fazer uma comparação entre a variedade brasileira do interior paulista e a variedade europeia, traz argumentos em defesa de uma origem em comum e da deriva natural das línguas, adicionando evidências para a hipótese de Scherre e Naro (2007). Em suma, com base nos trabalhos do português brasileiro e do português europeu, pode-se ter uma visão panorâmica da variação linguística de nós e a gente em contextos de primeira pessoa do plural e de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 241 como esses resultados são importantes para o entendimento do fenômeno em geral, das suas inluências, das semelhanças e diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. No português europeu, mesmo com pesquisas metodologicamente diferentes, o uso de nós é mais frequente do que no português brasileiro. Nesse sentido, o pronome a gente está mais avançado no português brasileiro de maneira geral. Para a maioria das amostras, a frequência de nós em Portugal, tomando Rubio (2012) como referência (58%), apenas não é maior do que os dados do NURC (57,8%) e os dados de Ponta Porã (61%). 5 A variação de nós e a gente na fronteira No livro Nós falemo brasileiro (1987), especialmente na parte que versa sobre os fenômenos linguísticos que os autores Elizaincín, Behares e Barrios (1987, p. 85) encontraram no português uruguaio da década de 70, não há menção à alternância nós e a gente. Segundo os autores, o uso de a gente do lado uruguaio não tem o mesmo signiicado do português brasileiro, diferenciando-se da primeira pessoa do plural, além de o seu uso não ser sistemático e regular.16 No uso de a gente, observamos que não há a tendência (como em P brasileiro) de substituir sistematicamente o pronome “nos”, pelo contrário, quando aparece, mantém o sentido impessoal “restrito”, diferenciando-se claramente da quarta pessoa. Por outro lado, somente a encontramos consignada em Vichadero/Minas de Corrales (V/MC) e Aceguá e Isidoro Noblía17 (A/IN); ainda que nestas localidades seu uso não seja sistemático. (ELIZAINCÍN, BEHARES E BARRIOS, 1987, p. 85, tradução nossa).18 16 Fato semelhante foi descrito por Carvalho (2003b), ao constatar variação na pronúncia do lh, tanto como palatal lateral quanto semivogal, contrariando a airmação de Rona (1965) de que a vocalização era categórica na fronteira. 17 As localidades por extenso foram acrescidas por mim. Os exemplos encontrados nessas localidades são: (i) A gente passa pelo ovo; (ii) A gente ica u charque; (iii) Se frita como a gente quiser. (ELIZAINCÍN, BEHARES, BARRISO, 1987, p. 85). Os exemplos dos autores foram transcritos de acordo com a norma ortográica vigente, e não com a norma fonética. 18 “En el uso de a gente observamos que no se tiende (como en P brasileño) a reemplazar sistemáticamente al pronombre “nos”; por el contrario, cuando aparece, conserva el 242 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Para os autores, o pronome a gente não é utilizado como variante de nós, mas é encontrado em Aceguá, o que não quer dizer que ocorria nos dados dos autores de maneira variável. Na concepção de Elizaincín, Behares e Barrios (1987, p. 81-85), o pronome a gente era uma das diferentes formas de expressar impessoalidade nos Dialetos Portugueses do Uruguai (DPU). Elizaincín, Behares e Barrios (1987, p. 13-14) descrevem o falar da fronteira como dialetos mistos de base preponderantemente portuguesa. Assim, as estruturas impessoais estariam relacionadas ora com o português, ora com o espanhol. Essa explicação é baseada em uma coleta de dados aleatórios sem o devido controle das variáveis linguísticas e sociais. Por isso, aparentemente, não se tem regularidade linguística. Os resultados são demonstrados com poucos dados e por meio de frequências relativas (apenas percentagens), sem uma maior sistematização da variação linguística. De qualquer forma, isso não os impediria de encontrar a gente como pronome alternado com nós, se fosse o caso. Um exemplo dessa “mistura” a que os autores se referem são as expressões impessoais utilizadas pelos falantes da fronteira, tais como o verbo haver e ter; os verbos fazer e dar; o sujeito genérico; a partícula se e os pronomes ou as expressões indeinidas (uno, a gente). Elizaincín (1992, p.135-136), em obra posterior, ainda acrescenta outras estruturas impessoais formadas pelos verbos fazer/hacer19 “faz dois anos”; chamar/ decir “A lechuga, que le chaman/ En Uruguay dicen de un cavalo”. No entanto, com uma pesquisa de campo mais criteriosa, levando em consideração a língua falada de ambas as comunidades, facilmente se percebe que não se trata de “mistura” de línguas, porque os exemplos dos verbos haver, ter, fazer, dar, do sujeito genérico e da partícula se são todos variáveis na língua portuguesa. A única forma espanhola (expressão indeinida uno) aparece em pouquíssimos dados de Elizaincín (1992) e do nosso corpus e, por isso, deveriam ser considerados casos de interferência gramatical, uma vez sentido impersonal “estricto”, diferenciádonse claramente de la cuarta persona. Por otro lado, solo la encontramos consignada en Vichadero/Minas de Corrales (V/MC) y Aceguá e Isidoro Noblía (A/IN); aun en estas localidades no es sistemático su uso”. (ELIZAINCÍN, BEHARES E BARRIOS, 1987, p. 85) 19 Não há exemplos com o verbo hacer. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 243 que não se trata de variação linguística entre as duas formas semelhantes, mas formas completamente distintas. Um exemplo típico do que se ouve muito em Aceguá ocorre nas situações em que alguém pergunta o preço de algo, e a pessoa responde que “dá unos quantos” ou a forma aportuguesada “dá uns quantos”, o que de fato mostra a indeterminação do valor monetário em questão. Para o uso de um como pronome indeinido em Aceguá, tanto no português brasileiro quanto no português uruguaio, registramos pouquíssimos dados. Essa forma também é consequência direta do contato linguístico na fronteira. Enquanto uno é indeinido, a gente se gramaticaliza e começa a ser utilizado como primeira pessoa do plural no português uruguaio. Em nossas entrevistas, há pouquíssimos dados com os verbos espanhóis haber, hacer, decir e outros, mas todos são considerados interferências e não misturas. As interferências, por sua vez, também podem ser sistematizadas e situadas contextualmente. Como se pode notar em Elizaincín (1992, p. 81-85, 135-136), a gente é sempre vinculado à impessoalidade ou à terceira pessoa do plural. De fato, no português brasileiro, há esse uso impessoal ou genérico, mas não se pode esquecer que a gente também ocorre em contextos de referência especíica e, portanto, referência restrita a primeira pessoa do plural e até a primeira pessoa do singular. Os contextos de produção de cada variante fazem parte da análise variacionista, que controla os diversos tipos de ocorrências. Embora haja a conotação genérica de a gente, é importante observar que ainda há indícios de primeira pessoa do plural no a gente indeterminado. Em suma, no caso do português, o uso de a gente como indeinido ou referência genérica ocupa a lacuna do sistema linguístico desde a evolução do latim, uma vez que passou a indicar indeterminação. Provavelmente, houve um estágio no português uruguaio e no português brasileiro em que o uso de a gente era apenas indefinido, depois passou a coexistir também como uso pronominal até chegar à mudança completa variando apenas com o pronome nós de primeira pessoa do plural. Atualmente, o a gente brasileiro também se propaga e se realiza no português uruguaio, mas a hipótese é que no português brasileiro a mudança estaria mais avançada do que no português uruguaio, em termos de frequência de uso do pronome. Sobre a outra variante pronominal, Elizaincín (1992, p. 117-118) apenas menciona a existência do pronome nós e nosotros nos DPUs. 244 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Nas entrevistas, no que se refere ao português de Aceguá, o pronome nosotros não foi considerado dado de análise e, portanto, foi retirado da análise de pesos relativos, uma vez que se trata de uma interferência do espanhol, e não propriamente de alternância pronominal. Em seguida, Elizaincín (1992, p. 136) constata a existência de a gente em variação com o nós, mas apenas no português brasileiro de uma forma geral, excluindo os DPUs: O uso de “A gente” em P substitui o pronome nos, agregando este valor ao de impessoalidade antes referido. Este não é o caso nos DPU. Por outro lado, o recurso parece apenas em duas localidades da amostra: V-MC e A-IN20.21 Em Aceguá, de fato, existe o uso pronominal de a gente, mas em Isidoro Noblía, outro bairro uruguaio, provavelmente não, porque, enquanto aquela é praticamente bilíngue, esta é basicamente monolíngue em espanhol. Como Elizaincín apresenta sempre os resultados em conjunto para Aceguá e Noblía, não há como saber realmente de onde foram retirados os poucos exemplos com a gente em primeira pessoa do plural. No entanto, em praticamente todas as entrevistas que realizei do lado do Uruguai, há vários dados com o uso de a gente como primeira pessoa do plural, apesar de ser em menor proporção que o uso brasileiro. Do ponto de vista social, os uruguaios favorecem o emprego do pronome a gente apenas com a retirada dos dados categóricos de nós (Tabela 2). Foram entrevistados 38 colaboradores, 19 uruguaios e 19 brasileiros. “El uso de “A gente” suele en P sustituir al pronombre nos, agregando este valor al de impersonalidad antes referido. No es este el caso en los DPU. Por otra parte, el recurso parece solo en dos localidades de la muestra: V-MC e A-IN” (ELIZAINCÍN 1992, p, 136). 21 As localidades referidas são Vichadero e Minas de Corrales (V-MC), e Aceguá e Isidoro Noblía (A-IN). Isidório Noblía é uma comunidade uruguaia e situa-se a 15km de Aceguá-Uruguai. A abreviação “P” signiica português. 20 245 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 TABELA 2 – Frequência geral dos colaboradores de Aceguá Com todos Colaboradores Brasileiros e uruguaios Uruguaios Brasileiros Sem os categóricos A gente Nós A gente Nós 45,1% 452/1002 54,9% 550/1002 58,3% 452/775 41,7% 323/775 29,3% 135/461 70,7% 326/461 49,1% 135/275 50,9% 140/275 58,6% 317/541 41,4% 224/541 63,4% 317/500 36,6% 183/500 Fonte - Pacheco (2014) A frequência de a gente no português brasileiro de Aceguá (58,6% ou 63,4%) encontra-se mais avançada do que no português uruguaio (29.3% ou 49,1%), respectivamente na análise com todos os colaboradores ou na análise sem os casos categóricos de nós. Ao que tudo indica, a entrada desse pronome é recente no português uruguaio e não se realiza em todas as funções sintáticas, sendo mais produtiva na posição de sujeito, como no exemplo a seguir: Entrevistado: Isso aqui, a cultura é mais ou menos a mesma, de toda A GENTE se confunde. Pra NÓS, Ø22 NÃO NOTAMOS... vocês que vêm de longe podem notar a diferença, mas pra NÓS, A GENTE criou um dialeto pra falar, A GENTE fala portunhol, Ø NÃO FALA nem espanhol nem português. Eu, por exemplo, hoje, não consego escrever nenhuma das duas línguas de forma correta. Eu não escrevo nem português correto, nem espanhol. Eu faço uma mistura, eu troco o C pelo Z, eu troco... NÓS no espanhol não TEMOS Ç. (ALE, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino médio) Esse entrevistado é homem, uruguaio de Montevidéu, tem mais de 50 anos, e trabalha no Brasil. Sua mulher é uruguaia de Melo e trabalha no Uruguai. O casal airmou que só conversa com os ilhos em espanhol para não haver “mistura”, porque eles são inseguros linguisticamente quanto ao uso do português. Entretanto, o casal de ilhos também fala 22 O símbolo Ø representa a ausência do pronome de primeira pessoa do plural na função de sujeito. 246 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 português e estuda na escola brasileira, porque os pais acham que a educação brasileira é melhor que a uruguaia. O exemplo dessa família, como de tantas outras, apenas corrobora a integração total entre os dois lados da fronteira e o quão os relacionamentos são imbricados. Além disso, os moradores, em maior ou menor grau, se conhecem porque, em alguns momentos de suas vidas, estão unidos por laços familiares, de amizade, de trabalho. Em termos linguísticos, identiicamos apenas o primeiro exemplo (de toda a gente se confunde) como impessoal, de acordo com o uso espanhol, principalmente porque há concordância de gênero entre o quantiicador toda e o a gente em função de substantivo. Percebe-se, pois, que o sentido é genérico, de terceira pessoa do plural, podendo o exemplo ser reescrito como se fosse “a cultura de toda pessoa se confunde” ou “a cultura de qualquer pessoa se confunde”. Todavia, o falante, nos demais dados de a gente (A GENTE criou um dialeto pra falar/ A GENTE fala portunhol), se inclui nessa coletividade expressa pela primeira pessoa do plural ou quarta pessoa, da mesma forma que ocorre com os dados de implícito com nós (Pra NÓS, não Ø notamos...) e de implícito com a gente (A GENTE criou um dialeto pra falar, A GENTE fala portunhol, Ø NÃO FALA nem espanhol nem português). Nesses exemplos, é nítido que se trata de um fenômeno variável entre nós e a gente, que signiica a extensão da inovação além das fronteiras nacionais. Segundo Tagliamonte (2006, p. 96), “In the ideal situation you will ind a ‘super token’: alternation of variants by the same speaker in the same stretch of discourse”. Ou seja, em uma situação ideal, é importante encontrar um ‘super dado’: alternância de variantes pelo mesmo falante em uma mesma parte do discurso, o que ocorre nesse exemplo, já que há dados de nós e a gente implícito e de nós e a gente explícito com o mesmo valor de verdade. Em nosso corpus, foram encontrados 10 dados de a gente com sentido de terceira pessoa ou até mesmo ambíguo, no português uruguaio de Aceguá, e três dados no português brasileiro de Aceguá, como se ainda fosse um vestígio histórico dessa expressão: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 247 Isso aqui, a cultura é mais ou menos a mesma, de toda A GENTE se confunde. (ALE 23, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino médio) HIL: não, é lindo, A GENTE aqui toda, a vizinhança é boa. (HIL, mulher, acima de 50 anos, brasileira, ensino médio) Eu não gosto porque eu acho, uma coisa que, não gosto de tanta gente ali esperando um piquete ali, esperando um prato de comida, fazendo... eu vou, se há alguma pita eu logo vou e volto pra trás. Não sou de passar ali, e passar horas. Não gosto de estar dependiendo de ver A GENTE FAZENDO, cola DIZEMO no, a que hora se me escapo, você, como dise. Estoy esperando sim. Como se dizem lá, quando tu tá num banco, como é? (CAR, homem, acima de 50 anos, uruguaio, ensino médio) Nos dois primeiros exemplos, a referência parece ser mesmo à terceira pessoa, até mesmo pelo quantitativo toda concordando em gênero e número. Já no terceiro caso, há maior ambiguidade porque não se sabe ao certo se o falante se inclui juntamente com as pessoas que fazem ila para comer nos piquetes em dias de Semana Farroupilha. Até então, não havia registros de a gente como primeira pessoa do plural na fronteira, justamente porque la gente no espanhol tem uma conotação mais indeinida e de terceira pessoa do plural. Nosso trabalho demonstra, pois, que o a gente no português uruguaio (falado por uruguaios bilíngues) da fronteira também está no mesmo processo de gramaticalização que no português brasileiro de forma geral. A diferença maior deve ser de frequência, uma vez que parece ser mais recente no português uruguaio. No espanhol, a expressão la(s) gente (s) permanece com o mesmo sentido de todo mundo ou todas as pessoas da época do português arcaico. Já no português brasileiro e uruguaio, atualmente, prevalece o uso de a gente como primeira pessoa do plural, tanto em contextos de referência genérica quanto em contextos mais especíicos, ou como primeira pessoa do singular, em um contexto máximo de especiicidade. 23 Para manter o sigilo dos entrevistados, utilizamos apenas as três iniciais de um nome ictício em cada exemplo. 248 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 6 Considerações inais Sobre a deinição de a gente, segundo Lopes (1996), as gramáticas tradicionais são controversas ao classiicar a gente ora como pronome pessoal, ora como forma de tratamento, ora como pronome indeinido. Nesse artigo, considera-se a gente um pronome pessoal, porque é uma categoria pronominal, e não um sintagma nominal composto de determinante mais nome. A gente passou de nome que indica indeterminação a pronome de primeira pessoa do plural, fazendo parte do quadro pronominal do português brasileiro e, também, do português uruguaio. O pronome a gente, amplamente utilizado no Brasil e na zona urbana, chega ao Sul do país e atravessa a fronteira. Assim, essa categoria gramatical como primeira pessoa do plural passa a ser variável também no português uruguaio. Diacronicamente, no caso do português brasileiro, o seu uso como indeinido ou referência genérica entrou no lugar da expressão arcaica homen, enquanto no espanhol houve a inserção do termo uno ou una como indeinido. Sincronicamente, a expressão lexical plena a gente passou a equivaler a nós, tanto no português brasileiro quanto no português uruguaio, sendo utilizada como primeira pessoa do plural, independentemente de ter a referência genérica ou especíica. Mesmo existindo, na língua espanhola, o correspondente nosotros para a primeira pessoa do plural, os bilíngues vêm utilizando o pronome a gente, que é totalmente diferente do uso de la gente em espanhol. No caso do português brasileiro de Aceguá (Rio Grande do Sul), a frequência de uso é de 58,6%, na análise com todos os colaboradores, e 63,4% na análise sem os casos categóricos. Por isso, acompanha os altos índices de a gente na região Sul do Brasil, como Pelotas (78%) e Florianópolis (72%), Jaguarão (69%), Porto Alegre (69%), Curitiba (64%) e Blumenau (60%). Além da região Sul, o português brasileiro de Aceguá, na análise sem os categóricos, também se aproximou dos falantes do Rio de Janeiro (de 79% a 59%), na região Sudeste. O resultado do português uruguaio com todos os colaboradores (29,3%) se assemelha, em termos de distribuição, ao português europeu, com menos de 26% (VIANNA, 2011). O resultado do português uruguaio sem os casos categóricos em nós (49.1%) se aproxima mais da variedade Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 249 de Santa Catarina em Blumenau (51%), Concordia (50%) e Chapecó (48%) e também do português europeu (42%) (RUBIO, 2012). Além da região Sul, a frequência de 49,1% do português uruguaio da fronteira se aproxima de comunidades mais isoladas e rurais como Brasilândia – SP, no Sudeste, (53%) e Cinzento – BA, no Nordeste, (56%). Ao mesmo tempo, Ponta Porã – MS, no Centro-Oeste, tem frequência ainda inferior, de 39%, e Piabas-BA, no Nordeste, tem a maior frequência de todas essas comunidades mais isoladas, com 62%. Percebe-se, portanto, que o português uruguaio e o português brasileiro são distintos entre eles em termos de distribuição dos dados. Os percentuais de Aceguá chegam a 63,4% na análise brasileira e a 49,1% na análise uruguaia, o que revela a proximidade do português brasileiro de Aceguá (63,4%) com a maioria das variedades do português brasileiro, que estão utilizando cada vez mais o pronome a gente como primeira pessoa do plural. Na maior parte da região Sudeste, Sul, Nordeste e Centro-Oeste, o uso de a gente está acima de 70%. Já no português uruguaio, (com no máximo 49,1%), a expansão do a gente é mais comedida. Em outras fronteiras do Rio Grande do Sul, como o caso de Flores da Cunha (italiano-português), Panambi (alemão-português) e São Borja (espanhol-português), nota-se que as comunidades bilíngues acompanham mais lentamente a mudança com relação à inserção de a gente no sistema pronominal, ainda que a tendência seja na direção do uso dessa forma inovadora (ZILLES, 2007, p. 36). Pelotas e Jaguarão, fronteiras com Uruguai, também compõem localidades menores, mais rurais e, portanto, com mais contato linguístico e/ou bilinguismo, o que deixa o ritmo da mudança mais lento (ZILLES, 2007, p. 37). Partimos do pressuposto de que a inserção ou aquisição do pronome a gente como primeira pessoa do plural no português uruguaio pode ser consequência do contato linguístico com o português, porque esse pronome só existe na variedade brasileira dessa língua, e, por isso, quanto maior a proximidade com o Brasil maior a frequência de a gente. Percebe-se, portanto, que, ao se distanciar da fronteira, indo mais para o interior do Uruguai, os falantes já não utilizam o português como língua materna, uma vez que são monolíngues e, provavelmente, deixam de usar ou usam menos a gente como primeira pessoa do plural. 250 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 221-253, 2018 Referências AGUIAR, Ofir Bergemann de. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 A escrita em bandos atribuídos a Rodrigo Cesar de Menezes – governador e capitão general da capitania de São Paulo (1721-1728) The writing in bandos assigned to Rodrigo Cesar de Menezes – General Governor and Captain of the captaincy of São Paulo (1721-1728) Phablo Roberto Marchis Fachin Universidade de São Paulo, São Paulo, SP / Brasil phablo@usp.br Gabriela Lubascher Miragaia Universidade de São Paulo, São Paulo, SP / Brasil gabriela.miragaia@usp.br Resumo: O artigo apresenta os resultados de estudo sobre práticas de escrita administrativa em manuscritos produzidos ao longo do século XVIII, no Brasil colonial, especiicamente na capitania de São Paulo, durante o governo de Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1728). Trata-se, com base em dados documentais e metodologia ilológica, da utilização de manuscritos com rigor cientíico. A importância do estudo reside no fato de que há escassez de informações a respeito do processo de produção documental no Brasil colonial, assim como da sua circulação e difusão. Cabe destacar também que, além dos aspectos relacionados à escrita em bandos setecentistas, a pesquisa também traz contribuição para a história social da capitania de São Paulo, uma vez que, ao levantar os destinatários dos documentos e a sua temática, traz à luz as ordens e a quem se referiam, possibilitando ampliar o estudo realizado com o intuito de entender a lógica administrativa, a composição e organização da sociedade da época. Palavras-chave: história da língua portuguesa; Rodrigo Cesar de Menezes; edição de manuscritos coloniais. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.255-283 256 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 Abstract: This article presents the results of study on administrative writing practices in manuscripts produced during the eighteenth century, in colonial Brazil, speciically in the province of São Paulo, during the government of Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1728). It is presented, based on documentary evidence, discussion on the use of manuscripts with scientiic certainty. The importance of research lies in the fact that there is limited information about the document production process in colonial Brazil, as well as their circulation and diffusion. It is worth mentioning that in addition to aspects related to writing, the survey also brings contribution to the social history of the captaincy of São Paulo, since, to raise the addressees of the document and its thematic, brings to light the orders and to whom it was related, allowing expand the study in order to understand the administrative logic and how they composed and organized the society of the time. Keywords: history of the portuguese language; Rodrigo Cesar de Menezes; edition of colonial manuscripts. Recebido em 24 de junho de 2016. Aprovado em 13 de janeiro de 2017. 1 Introdução O estudo da língua portuguesa e da sua história com base em fontes manuscritas apresenta duas características primordiais: por um lado, por se tratar de trabalho que tem como base o levantamento de dados linguísticos concretos, extraídos de documentos manuscritos, na maioria das vezes heterogêneos, de diversas épocas da sua história, pratica-se o estudo das transformações pelas quais a língua passou ao longo de sua trajetória sócio-histórico-cultural, documentando-as; por outro, na medida em que se vai às fontes, realiza-se importante função do trabalho ilológico, de acordo com Spina (1994, p. 82), a transcendente , “em que o texto deixa de ser um im em si mesmo da tarefa ilológica para se transformar num instrumento que permite ao ilólogo reconstituir a vida espiritual de um povo ou de uma comunidade em determinada época”. Tarefa nem um pouco simples. Além de complexa, muito morosa, dependente de paciência e persistência do ilólogo na busca da documentação necessária ao seu estudo, criteriosa e de muito rigor na Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 257 realização da edição que conserva o estado de língua testemunhado pelo manuscrito. A airmação de Castro reforça essa assertiva: Para o linguista usufruir das reais vantagens do texto não-literário, que lhe permitem saber como uma pessoa identiicada escrevia (e talvez falasse) em determinado ponto do tempo e do espaço, precisa de se inteirar primeiro das circunstâncias históricas em que o texto foi escrito. É esse o campo de intervenção de uma série de disciplinas auxiliares da História e da Filologia, equipadas com metodologias próprias que podem atingir apreciável soisticação – a paleograia, a diplomática e a codicologia, antes de mais, mas a crítica textual também (CASTRO, 2004, p. 3). Nesse contexto de busca e edição de manuscritos para a realização de estudos sobre a história da língua portuguesa, o pesquisador depara com documentos de naturezas diversas, originais, textos autógrafos, cópias, textos apógrafos, ideógrafos, vias, entre outros. Em meio a esse leque de opções, precisa lançar mão de mecanismos que garantam a idedignidade do texto e o conhecimento real de sua história. Não se trata apenas de um trabalho técnico de leitura e transcrição, adequação de um texto manuscrito, em letra antiga, muitas vezes de difícil decifração, para caracteres tipográicos, ao alcance de um público mais amplo. Trata-se de um trabalho que leva o ilólogo a conhecer o documento, a sua história, todas as implicações relacionadas ao seu corpo, conteúdo, hábitos gráicos, estilo e autoria, principalmente autoria.1 Nas palavras de Fachin, relativamente à tradição documental, a necessária distinção entre original e cópia nem sempre é isenta de questões. [...]. No caso das práticas administrativas coloniais, era muito comum a autoridade superior apenas assinar o documento enquanto secretários, escrivães e outros proissionais da escrita os escreviam. Dessa forma, estudos que não levam “Nesse contexto, várias possibilidades estão em jogo: manuscritos escritos pela mão do próprio autor (autor material e intelectual); acompanhados pelo autor intelectual, mas pela mão de terceiros (autores materiais); reproduzidos, mais ou menos integralmente, por cópias. Consequentemente, nem sempre a datação, assim como a assinatura do documento e os dados gráicos ali presentes, correspondiam realmente ao seu contexto de produção”. (FACHIN, 2014, p. 221) 1 258 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 isso em consideração acabam resultando em atribuição equivocada de autoria documental (FACHIN, 2014, p. 222). Levando esses fatos em consideração, apresentam-se, neste artigo, os resultados de estudo sobre práticas de escrita administrativas em manuscritos produzidos ao longo do século XVIII, no Brasil colonial, especiicamente na capitania de São Paulo. O corpus consta de bandos produzidos por Gervasio Leyte Rebello, secretário do governador e capitão general Rodrigo Cesar de Menezes, cuja autoria é atribuída a este, embora materialmente tenham sido escritos por aquele, fato que pode ter inluência no resultado gráico do documento e, por essa razão, é de suma importância para pesquisas que tenham como objetivo estudos linguísticos do período. Trata-se de cuidado metodológico que deve ser levado em consideração para evitar resultados equivocados por conta da falta de critérios no tratamento das fontes. Veja-se, por exemplo, o caso da Publicação Oficial de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo correspondência interna do Governador Rodrigo Cesar de Menezes ---1721-1728. Na edição dos documentos que compõem a obra, ao inal sempre aparece a indicação do nome do governador em itálico, como uma espécie de assinatura, atribuindo a ele, de certa forma, a autoria dos textos. Ao observar, porém, originais manuscritos desses documentos, veriica-se que, embora a assinatura faça parte de quase todos eles, a caligrafia do resto do texto não é a mesma, apresentando-se com diferentes formas, o que indica diferença de punhos; portanto outras pessoas foram as responsáveis pela sua produção material. Consequentemente havia diversidade de hábitos e escolhas gráicas, principalmente num período em que a escrita apresentava pluralismos gráicos (FACHIN, 2014, p. 222). O artigo também tem como objetivo apresentar discussão, com base em dados documentais e metodologia ilológica, sobre a utilização de manuscritos com rigor cientíico. A importância do estudo reside no fato de que há escassez de informações a respeito do processo de produção documental no Brasil colonial, assim como da sua circulação e difusão. Embora se observe que é crescente o número de edições com ressaltado rigor na busca de exatidão e idelidade, esse aspecto ainda carece de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 259 cuidado ilológico. Os trabalhos no campo da Filologia e ciências ains, com “tendência nitidamente marcada pela preocupação em não se deixar perder nenhum dos traços da fonte primária no ato de transcrição, diria mais: mesmo as anotações à margem ou nas entrelinhas, bem como informações consideradas alheias ao conteúdo do texto” (MEGALE, 1998, p. 3), também devem levar em conta o contexto de produção dos documentos selecionados para o trabalho, assim como a sua forma de transmissão e circulação. Portanto, em meio a esse contexto, a falta de cautela no tratamento das fontes, por conta da ausência de critérios ou do desconhecimento das circunstâncias de produção, pode acarretar problemas sérios de interpretação ilológica e linguística. Cabe ainda destacar que, além dos aspectos relacionados à escrita, o estudo contribui para a história social da capitania de São Paulo, onde os documentos foram escritos. Ao levantar os destinatários dos documentos e a sua temática, traz à luz as ordens e a quem se referiam, possibilitando ampliar a pesquisa realizada, com o intuito de entender a lógica administrativa, a composição e organização da sociedade da época. Como exemplo, veriica-se o comportamento dos escravos quanto a jogos; de religiosos, quanto ao seu dia a dia, como também em relação aos índios e seus costumes. 2 Metodologia Este artigo tem caráter ilológico e apresenta metodologia cuja base é ir às fontes e ao estudo do texto (MEGALE, 1998). Além de levar em consideração a explicação dos testemunhos e de sua história, preocupa-se com problemas de outra ordem, que não estão neles, “mas se deduzem deles: a sua autoria, a sua datação e a sua importância (valorização) perante os textos da mesma natureza” (SPINA, 1994, p. 76). Para isso, o seu plano de trabalho foi composto por 5 etapas: 1) levantamento dos cargos da administração colonial ligados à prática de escrita do século XVIII, na capitania de São Paulo; 2) levantamento dos correspondentes envolvidos na documentação que compõem o corpus; 3) comparação dos dados levantados com o intuito de identiicar o contexto de produção e circulação dos documentos; 4) análise das assinaturas e o tipo de letra dos documentos para identiicar questões de autoria; 5) veriicação, com base nas etapas anteriores, do quanto esses fatores poderiam auxiliar no estudo das práticas de escrita setecentista no contexto administrativo colonial. 260 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 Para a realização da primeira etapa do trabalho, levantamento dos cargos da administração colonial ligados à prática de escrita no século XVIII, na capitania de São Paulo, utilizou-se, além dos documentos que compõem o corpus do projeto, o livro Fiscais e meirinhos – a administração no Brasil colonial, coordenado por Salgado (1985). Os dados identificados foram distribuídos em tabela para melhor visualização, organizados da seguinte maneira: cargo, página, termo ou expressão relacionado à escrita. Posteriormente, foram comparados com os encontrados nos manuscritos para veriicar as suas compatibilidades. O resultado da segunda etapa do plano de trabalho – levantamento dos correspondentes envolvidos na documentação que compõe o corpus – também foi organizado em tabela, com a seguinte ordem: datação, destinatário, cargo do destinatário, autor material, cargo do autor material, assinatura, cargo de quem assinou o documento, autor intelectual e cargo do autor intelectual. Essa tabela é baseada no corpus do estudo – Bandos – encontrados nos volumes XII, XIII e XXXII dos Documentos Interessantes. A terceira etapa – comparação dos dados coletados com o intuito de identiicar o contexto de produção e circulação dos documentos – foi realizada cotejando-se os dados das duas tabelas das etapas anteriores a im de identiicar o contexto de produção e circulação dos documentos. Com base nesses resultados, realizaram-se as duas últimas: 4) análise das assinaturas e caligraias dos documentos para identiicar questões de autoria; 5) veriicação, com base nas etapas anteriores do quanto esses fatores poderiam auxiliar no estudo das práticas de escrita dos escribas da época. 3 O corpus e suas implicações O corpus está composto de uma tipologia documental denominada bando, que cobre todo o período do governo de Rodrigo Cesar de Menezes (1721-1728). Ao todo são 86 documentos, localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Como exemplos, seguem (FIG.1 e 2) as imagens de documento escrito em São Paulo em 18 de setembro de 1721, com autoria intelectual atribuída a Rodrigo Cesar de Menezes e material de Gervasio Leyte Rebello. Trata-se da versão manuscrita que consta de livro de registro do Arquivo Público do Estado de São Paulo e da versão impressa encontrada no volume XII dos Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo (APESP, 1901). Acompanha também a lição transcrita do documento, com indicação das diferenças entre as versões. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 FIGURA 1 – Fac-símile do bando (versão manuscrita) encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Caixa 48. Ordem 406. Fonte: APESP, 1901. 261 262 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 FIGURA 2 – Fac-símile do bando (versão impressa) encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Caixa 48. Ordem 406. Fonte: APESP, 1901. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 263 Transcrição conservadora do bando, realizada de acordo com o manuscrito, sem qualquer tipo de acréscimo, respeitando o estado de língua do documento, inclusive as abreviaturas, a ordenação das linhas e a fronteira de palavras: Rego.dehumbandoqSemandouLançar naVilla deSantos, pa ossoldados fugidos RodrigoCezardeMenezes etcPormeconstarqasComp.as pagas dapraçadeSantos seachaõ m.to demenutas, porcauzadadeserçaõ dossoldados, e pellasContinuas trocas qContinuamte seestaõfazendo, perdendosoldados veteranos; emetendo nellas eenseuLugarosqnaõ temCapacid.e nemSegurança p.a poderemprezestir noserviço deS.Mag.de Ordeno qtodoosoldado qseachar auzente, eserestituir aCompa.emqserviu dentro emtrintadias, serâ admetido, eperdoado, equandoonaõfaça será trateado NestaCid.e p.a onde virâ remetido, easim todooqdaqui pordiante seauzentarsemLicença dos seus oficiaes rubricadapormy emCorrerâ namesmapenados tratos, enocazoqqualqr: morador oConsinta emsuaCaza ou fazenda terá vinte dias deprizaõ nafortalezadaBarra, paguando Cincoentamil rs ametade p.aafaz.a real, eaoutrap.a q.m deNunciar, epa qchegue anoticia detodos, enaõpossaõ allegar ignorancia sepublicarâ estebandopellas ruas publicas dapraçadeSantos, aSomdeCx.as edepois deReg.o navedoria seixarâ noCorpodaGuardadad.a praça deqMemandarâCertidaõ oGov.or delladeq asim seexecuta eseregistraránosLos daSecretr.a desteGoverno Dadonesta CidedeSaõPaulo nos 18 de Setr.ode1721. OSecretario doGov.o Gervasío LeyteRebelloafes// RodrigoCezardeMenezes O cotejo entre as versões impressa e manuscrita revela diferenças nos seguintes aspectos: troca de palavras, pontuação, fronteira de palavras e, às vezes, acréscimo de marcas não presentes no documento. Seguem alguns exemplos: 264 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 TABELA 1 – Comparação de alguns casos entre as versões manuscrita e impressa do bando. Manuscrito Impresso Lição Corrigida noCorpodaGuardadada. Menezes etcPor trateado Fonte: Documentos que compõem o corpus da pesquisa realizada. O fato de se constatarem equívocos de leitura da versão impressa e de haver uma versão manuscrita (presente em livro de registro de cópias) do documento não possibilita a exclusão da impressa, uma vez que não se determinou ainda se a manuscrita serviu de base para a primeira, o que sugere pensar que ambas as versões podem contribuir para o estudo da escrita do Governo de Rodrigo Cesar de Menezes. Em relação à espécie documental bando, de acordo com Bellotto (2002, p. 50-51), apresenta a seguinte estrutura: “Protocolo inicial: nome e qualiicação do autor (autoridade delegada). Texto: a ordem objeto do bando. Protocolo inal: datas tópica e cronológica. Subscrição com o nome do autor”. Pela análise, o texto é composto de uma justiicativa da razão do bando e da sua ordem e o protocolo inal, da advertência sobre a sua divulgação e o encerramento com as datações. Essa estrutura pode ser observada pela tabela que segue. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 265 TABELA 2 – Estrutura padrão do bando aos soldados fugitivos do volume XII dos Documentos Interessantes. Protocolo Inicial Rego.dehumbandoqSemandouLançar naVilla deSantos, pa ossoldados fugidos RodrigoCezardeMenezes etc Texto PormeconstarqasComp.as pagas dapraçadeSantos seachaõ m.to demenutas, porcauzadadeserçaõ dossoldados, e pellasContinuas trocas qContinuamte seestaõfazendo, perdendosoldados veteranos; emetendo nellas eenseuLugarosqnaõ temCapacid.e nemSegurança p.a poderemprezestir noserviço deS.Mag.de Ordeno qtodoosoldado qseachar auzente, eserestituir aCompa.emqserviu dentro emtrintadias, serâ admetido, eperdoado, equandoonaõfaça será trateado NestaCid.e p.a onde virâ remetido, easim todooqdaqui pordiante seauzentarsemLicença dos seus oficiaes rubricadapormy emCorrerâ namesmapenados tratos, enocazoqqualqr: morador oConsinta emsuaCaza ou fazenda terá vinte dias deprizaõ nafortalezadaBarra, paguando Cincoentamil rs ametade p.aafaz.a real, eaoutrap.a q.m deNunciar, Protocolo Final epa qchegue anoticia detodos, enaõpossaõ allegar ignorancia sepublicarâ estebandopellas ruas publicas dapraçadeSantos, aSomdeCx.as edepois deReg.o navedoria seixarâ noCorpodaGuardadad.a praça deqMemandarâCertidaõ oGov.or delladeq asim seexecuta eseregistraránosLos daSecretr.a desteGoverno Dadonesta CidedeSaõPaulo aos 18 de Setr.ode1721. OSecretario doGovo. Gervasío LeyteRebelloafes// RodrigoCezardeMenezes Fonte: APESP, 1901, p. 9. Por se tratar de documento diplomático lavrado em contexto administrativo, o bando mantém sua estrutura em todo o corpus. Isso ocorre mesmo diante de diferentes destinatários. No caso analisado, consideram-se índios, proprietários de índios, negros e seus proprietários, soldados, outros tipos de pessoas, além de religiosos. A variação gráica encontrada, portanto, não teria inluência desse aspecto diplomático. As suas particularidades estão relacionadas possivelmente à prática de escrita do escriba ou da tradição administrativa em questão. A estrutura padrão 266 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 e a sua autoria material limitada a um número reduzido de autores, no entanto, não garantem a regularidade gráica da escrita do corpus, fato demonstrado pela análise gráica realizada. Ao longo do corpus, em bandos datados para os anos de 1721 – 1728, pode-se veriicar variações de ordens diversas. Na época em que foram produzidos, a Administração Colonial era composta de diversos setores. Para sua governança, a produção de documentos ocupava um papel de destaque, uma vez que, por meio dela, leis e outras ordens chegavam a diversos destinatários, independentemente do setor, ultrapassando obstáculos ambientais da natureza colonial. Muitas vezes, determinados documentos eram produzidos para outro tipo de destinatário, isto é, para aqueles que não estavam na esfera administrativa ou por algum motivo se encontravam afastados dela. Nesse contexto, o documento intitulado bando se destacava por sua funcionalidade e alcance público, como pode ser observado na descrição tipológica de Bellotto. Ocorre apenas na administração colonial. É a ordem ou o decreto, em geral, dos governadores e capitães generais, proclamada(o) oralmente em pregão público ou aixada(o) em lugar ou veículo de circulação pública. O mesmo que édito ou mandato proibitório. Era utilizada(o) para questões cotidianas relacionadas ao cumprimento de ordens pontuais. Muitas vezes, funcionava como documento de correspondência, isto é, para que se cumprisse em jurisdição mais limitada, uma ordem mais ampla de origem superior (BELLOTTO, 2002, p. 50-51). A importância desse documento para a administração colonial pode ser constatada pela frequência com que era produzido e pelos destinatários a que se referia. Em oito anos de governo, foram encontrados oitenta e seis bandos nos documentos que compõem o corpus, sem contar os testemunhos perdidos que não constam das obras levantadas. Em média, a sua produção era mensal, e ordens pontuais faziam parte do contexto administrativo. Entre os seus destinatários, estavam todas as camadas que compunham aquela sociedade setecentista, como soldados, religiosos, donos de negros e índios e forasteiros. Nos volumes XII e XIII dos Documentos Interessantes, veriicouse que os remetentes eram o Secretário do Governador, Gervasio Leyte Rebello, e o próprio Governador e Capitão General, Rodrigo Cesar de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 267 Menezes. Isso se deve ao fato de que esses volumes tratam especiicamente dos Bandos e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. Já no volume XXXII da publicação do APESP, Correspondências e Papéis Avulsos de Rodrigo Cesar de Menezes, havia outros cargos também ligados a remetentes, tais como Capitães (por exemplo: Capitão-Mor, Capitão Geral, Capitão General), Ouvidores e Governadores de outras capitanias. Entre os destinatários encontrados nos bandos que compõem o corpus, há Soldados, Índios, Negros, as Minas de Cuiabá, Postos de Guerra e Auxiliares, Companhia da Ordenança e Auxiliares, Forasteiros e Pessoas no geral. Ao analisar o mesmo fator no livro Fiscais e Meirinhos – a administração no Brasil Colonial, sob coordenação de Salgado (1985),2 encontrou-se uma variedade de cargos que exerciam fortemente essa função, tais como Juízes ( Juízes Ordinários, Juízes dos Órfãos, Juízes de Alfândega, Juiz dos Feitos da Coroa, entre outros), Ouvidores ( Ouvidor Geral do Cível, Ouvidor Geral do Crime, Ouvidor de Capitania, entre outros), Provedores ( Provedor e Escrivão do Registro, Provedor dos Feitos da Coroa, Provedor da Minas, entre outros) e, principalmente, Escrivães. A grande diversidade de destinatários dos bandos se deve ao fato de que esse tipo de correspondência era a própria ordem ou decreto. A frequente ocorrência de seus relatos no livro de Washington Luís, Capitania de São Paulo – Governo de Rodrigo Cesar de Menezes, mostra-nos a importância e a relevância para a Administração Colonial desse documento. Exemplo disso, no volume XXXII, é representado pela contenda entre o governador e os famosos irmãos Lemes, iguras importantes desse governo, mortos a mando de Menezes, o qual ordenou a ixação de um bando, dizendo que todo aquele que ajudasse a capturar os Lemes, vivos ou mortos, seria beneiciado, mas todo aquele que os ajudasse a se salvar pagaria o preço. Observa-se que, por meio de um documento, o governador acabou por colocar a capitania inteira de São Paulo contra os irmãos, sob pena de traição à coroa, conisco de bens e mais penas que, em semelhantes casos, eram impostas, infundindo uma espécie de “regime do terror”. Isso fazia as pessoas se sentirem livres para cometer crimes, inclusive os escravos, caso viessem a matar seus senhores, pois, se pegassem os irmãos Lemes, estariam salvos pelo crime cometido. 2 Obra com relação sistemática de cargos e órgãos da política administrativa do Brasil colonial. 268 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 Abaixo segue tabela com a indicação dos bandos que compõem o corpus do estudo, com a informação sobre a razão de terem sido produzidos. TABELA 3 – Lista com todos os bandos do corpus Volume XII Datação Temática 1721, Setembro 18 bando que se mandou lançar na Vila de Santos para os soldados fugidos 1721, Setembro 21 bando que se lançou nesta cidade para que toda pessoa que vier de fora venha dar parte ao General 1721, Outubro 7 bando que se lançou nesta cidade para se quintar o ouro que também se lançou em Santos, Itu e Sorocaba 1721, Outubro 8 bando sobre os Soldados da Praça de Santos que andam fugidos e índios desta cidade que andam ausentes 1721, Outubro 9 bando para os Índios que estiverem fora de suas aldeias serem repostos nelas 1721, Outubro 26 bando sobre o tesoureiro dos novos direitos restituir aos providos o que lhe levou demais 1721, Novembro 23 bando para se abrir o caminho para as Minas de Cuiabá em direitura para o Sertão 1722, Janeiro 12 bando que se lançou para se não tirar ouro nem abrirem Minas no Paranaguá 1722, Fevereiro 5 bando que se lançou para os negros não jogarem nesta cidade 1722, Fevereiro 17 bando que se mandou lançar na Villa do Rio São Francisco para se não tirar ouro 1722, Março 1 bando sobre as companhias da ordenança e dos Auxiliares entrarem de guarda as portas das Igrejas pelas endoenças. 1722, Março 18 bando para tirarem licença os que forem para Cuiabá e para não levarem sem licença os índios das aldeias 1722, Março 27 bando para ninguém abrir caminho novo para as Minas do Cuiabá nem ir a Vacaria. 1722, Março 28 bando para que ninguém vá faiscar as terras que estão por detrás da que cobre a Marina e costa do Mar 1722, Abril 24 bando que se lançou para os soldados que fugirem da Praça de Santos 1722, Maio 05 bando para que ninguém tenha em sua casa negros ou escravos fugidos e os prenda logo 1722, Maio 12 bando para que os forasteiros que vierem a esta cidade e quiserem passar para Cuiabá venham à presença do general 1722, Junho 14 bando sobre se proibir nesta cidade que não haja jogos de parar 1722, Julho 15 bando sobre o gado vacum que nesta capitania se furta e mata 1722, Julho 31 bando sobre se poder usar de armas de fogo, curtas e compridas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 269 1722, Setembro 13 bando para não haver atravessadores de farinha nesta cidade 1722, Setembro 15 bando que se mandou lançar para que todas as pessoas providas de postos de guerra, ordenanças, e auxiliares, e em ofícios de justiça, e da fazenda apresentem suas patentes e proissões na Secretaria deste Governo. 1722, Setembro 16 bando que se lançou sobre as armas 1722, Outubro 21 bando para que ninguém traga negro em sua companhia com a espada debaixo do braço ou na mão 1722, Dezembro 31 bando sobre se manifestar o ouro que vier das Minas Gerais na casa da oicina 1723, Fevereiro 02 bando para as pessoas que tiverem terras na estrada que vão para Santos apresentarem os títulos 1723, Fevereiro 02 bando que se lançou para tirar passaporte as pessoas que embarcarem na Vila de Santos 1723, Fevereiro 14 bando para não assistirem nesta capitania religiosos que não tiverem conventual idade 1723, Março 07 bando para as companhias da ordenança e dos auxiliares entrarem de guarda as portas das Igrejas 1723, Março 12 bando sobre a proibição dos capuzes de capote metidos na cabeça 1723, Abril 11 bando sobre as pessoas que houverem de ir para as novas Minas de Cuiabá 1723, Julho 02 bando sobre não passarem mulheres ao novo descobrimento das Minas de Cuiabá 1723, Agosto 08 bando sobre os quintos do ouro que vierem das Minas de Cuiabá ou de outras quaisquer 1723, Setembro 15 bando que se lançou na Vila de Itu e Sorocaba para acudirem todos para prenderem ou matarem Lourenço Leme da Silva e João Leme da Silva 1723, Setembro 23 bando que se mandou lançar nas Minas de Cuiabá para prenderem ou matarem os dois Régulos Lourenço e João Leme da Silva e se sequestrarem seus bens Volume XIII Datação Temática 1723, Outubro 19 bando para se pagarem os quintos do ouro nesta cidade 1723, Novembro 01 bando sobre se fundir e embarretar o outro em pó que vier das minas nesta Capitania 1723, Dezembro 03 bando sobre os soldados que assistirem nesta cidade não tomarem nada sem o pagarem 1724, Fevereiro 20 bando para os forasteiros virem a presença do General 1724, Março 29 bando que se lançou para não entrarem negros nesta cidade sem serem visitados pela saúde 1724, Abril 15 bando que se lançou nesta cidade sobre a ponte em que se hão de curar os bexiguentos 1724, Abril 30 bando para partirem as tropas para as Minas de Cuiabá dia de São João 270 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 1724, Junho 25 bando que se lançou nesta cidade, e nas Vilas de Itu e Sorocaba 1724, Agosto 8 bando que se lançou para as luminárias pelo nascimento do sereníssimo Senhor Infante Dom Alexandre 1724, Agosto 15 bando sobre se pagarem os quintos do ouro e se fundir em barras e se marcarem com as armas reais 1724, Agosto 21 bando para se registrar o ouro que vier de Minas Gerais na Vila de Guaratinguetá 1724, Dezembro 28 bando sobre as pessoas que vierem das Minas Gerais para as do Cuiabá apresentarem passaporte 1725, Março 17 bando que se lançou para que os índios e índias que não tiverem administrador vão para as aldeias 1725, Março 19 bando que se lançou sobre o ouro das Minas de Cuiabá que se tem quintado 1725, Abril 01 bando sobre o socorro que se manda ao Sertão de Guaiases 1725, Maio 13 bando para quem for para Cuiabá 1725, Maio 25 bando que se lançou para partirem as tropas para Cuiabá e se despacharem 1725, Junho 04 bando sobre sal que há de repartir com os moradores desta cidade e sua comarca 1725, Agosto 11 bando que se lançou nas Vila de Itu, Sorocaba e Parnaíba sobre o que levarão os oiciais que foram a cobrança dos quintos reais do ouro que veio de Cuiabá 1725, Setembro 03 bando sobre os bexiguentos desta cidade 1725, Outubro 08 bando sobre se poder mandar gados para as Minas de Cuiabá e levar da Vacaria 1725, Novembro 30 bando para os forasteiros virem declarar para que Minas querem ir, de Cuiabá ou Guayazes. 1726, Março 03 bando sobre tirarem despacho as pessoas que forem para Cuiabá e não irem mulheres de suspeita 1726, Março 17 bando sobre não partirem ninguém para Cuiabá primeiro que o General na monção presente 1726, Abril 09 bando para partirem as tropas para as Minas de Cuiabá sem embargo do bando acima 1726, Abril 21 bando sobre os índios e índias que se acharem fora de seus administradores apresentarem os despachos 1726, Abril 24 bando sobre os forasteiros que estiverem nesta cidade para irem a Cuiabá virem a esta secretaria 1726, Maio 05 bando sobre os serventuários dos oiciais não pagarem a terça parte de seu rendimento 1726, Maio 19 bando para as pessoas que tiverem terra no caminho que vai de Jundiaí para os Guaiases apresentem os títulos 1726, Junho 19 bando que se lançou sobre os Carijós e bastardos que se livrarem da administração 1726, Dezembro 02 bando que se lançou nestas Minas sobre os negros não venderem ouro e se lhe não poder comprar 1727, Janeiro 01 bando sobre os negros fugidos e se açoitarem os que forem rebeldes Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 271 1727, Janeiro 01 bando sobre os bastardos e índios se conservarem com seus administradores 1727, Janeiro 10 bando sobre se não fazerem execuções de dividas particulares em quanto se cobram os reais quintos 1727, Janeiro 18 bando para ninguém ir ao rio dos perrudos ao gentio sem entrar Antonio Borralho primeiro 1727, Janeiro 22 bando para não irem negras de tabuleiro vender mantimentos as Lavras, etc 1727, Janeiro 22 bando para se não darem tiros de monte 1727, Janeiro 25 bando para não estarem negras forras e escravos em Tavernas e ranchos sem os Senhores ou brancos 1727, Fevereiro 22 bando sobre as pessoas que pagassem quintos demais das Lagos os tornarem a cobrar 1727, Fevereiro 23 bando sobre tirar licença nesta secretaria quem quiser ir para povoado 1727, Fevereiro 29 bando sobre os ourives de ouro destas Minas fecharem as tendas e não trabalharem 1727, Março 07 bando sobre os descobrimentos de ouro 1727, Abril 13 bando sobre se fazerem descobrimentos de ouro 1727, Maio 07 bando sobre os contratadores dos dízimos não cobrarem as suas dívidas executivamente e só os dízimos 1727, Setembro 15 bando sobre as penas que se impõem aos que jogarem nesta minas jogos de parar 1727, Setembro 18 bando sobre os negros e negras não irem vender as lavras e não haverem fornos fora da Vila 1727, Dezembro 12 bando sobre se não venderem nesta Capitania os índios que vierem do Sertão 1727, Dezembro 14 bando sobre os negros não usarem de armas proibidas de porretes e capotes nesta minas 1727, Dezembro 28 bando sobre os índios assistirem em casas de seus administradores e irem para as aldeias 1728, Janeiro 05 bando sobre os escravos destas minas Volume 32 Datação Temática 1724, Abril 28 bando relativo aos irmãos Lemes 1724, Abril 29 bando referente aos irmãos Lemes 4 Análise das assinaturas e tipo de letra dos documentos – a questão da autoria Todo pesquisador interessado no contexto colonial setecentista e que tem em seus objetivos o estudo do governo de Rodrigo Cesar de Menezes e a escrita do período depara primeiramente com o conjunto de publicações do Arquivo Público do Estado de São Paulo intitulado 272 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 Documentos Interessantes, especiicamente os volumes XII, XIII, XX e XXXII, ou então documentos avulsos localizados em instituições públicas e privadas brasileiras e portuguesas, entre as quais está o Arquivo Histórico Ultramarino, onde se encontra grande parte da correspondência produzida no Brasil Colonial. O desaio passa por dois caminhos: primeiro, veriicar a relação de idedignidade entre a versão impressa do Arquivo com o original manuscrito, uma vez que há muitos casos de lição deturpada. Segundo, e mais coerente, seria a busca pelas fontes primárias, ou seja, os originais manuscritos produzidos pelo punho ou pelo menos pela supervisão de Rodrigo Cesar de Menezes, atividade que implicaria ter domínio ilológico e paleográico para a sua leitura e transcrição. A publicação do APESP atribui a autoria documental a Rodrigo Cesar de Menezes. Citações como correspondência do Rodrigo Cesar de Menezes ou documentos do governador são muito comuns nesse tipo de publicação. Embora não haja dúvida da autoria intelectual por parte do governador, essa situação adquire determinada complexidade à medida que se lê o documento impresso e veriica-se que há destaque para o nome de Menezes, aparecendo esse, na maioria das vezes, em itálico, como se valesse como assinatura. Esse fato pode levar a equívocos de atribuição de autoria e relações falhas quanto aos dados linguísticos encontrados, principalmente quanto à caracterização da prática de escrita em questão, relacionando-a à do governador e à sua história “escolar” e não ao seu próprio produtor material, de um outro estrato social e histórico, no caso o seu secretário. Ao voltar os olhos para os documentos manuscritos, veriica-se que o itálico dado ao nome do governador, na versão impressa, resulta de escolha subjetiva do editor, pois não há diferença gráica entre a letra que compõe a mancha do documento e a utilizada na assinatura, levando a acreditar que se trata de um conjunto de cópias, principalmente por estarem reunidos em um único livro de registros, lembrando uma espécie de cartulário. Ou, então, seria a versão impressa realizada com base em outra documentação manuscrita, cuja relação, até o momento, não se alcançou. No contexto de produção desses documentos, como já mencionado, não há como negar a responsabilidade de Rodrigo Cesar de Menezes como autor intelectual de toda a documentação. Como governador e capitão general, era responsável pela administração da capitania de São Paulo e, como se sabe, essa atividade, muitas vezes, era realizada por meio da escrita. A análise das assinaturas e do tipo de letra dos bandos possibilita a veriicação desse fato por encontrar seu nome ou a indicação do seu nome em quase todos os documentos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 273 Do ponto de vista material, a responsabilidade estava relacionada com outros cargos, principalmente o de secretário do governo, sob a igura de Gervasio Leyte Rebello. FIGURA 3 – Trecho retirado do bando da versão publicada pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo Fonte: APESP, 1901. Esses dados, no entanto, não são suicientes para esgotar a questão autoral da documentação em questão. Pode-se pensar também, pelo número de produções da secretaria da capitania em geral, que poderia haver outros proissionais da escrita responsáveis por essa função, como, por exemplo, escrivães e tabeliães, cargos relacionados em Salgado (1985) à prática de escrita administrativa colonial. Essa hipótese parte de indicações à margem de determinados documentos com a letra diferente da utilizada ao longo do livro de registro. Nestes trechos, retirados do manuscrito que se refere aos soldados fugitivos, cuja transcrição se encontra neste artigo, pode-se veriicar uma diferença nas assinaturas em relação ao traçado do “R” na palavra “Rebello”. À esquerda, a escrita da margem; à direita, a do documento. FIGURA 4 – Trechos de bando sobre soldados fugitivos, presentes no volume XII dos Documentos Interessantes Fonte: APESP, 1901, p. 9. O estudo constatou, portanto, que a documentação manuscrita dos bandos, com exceção das escritas marginais, tem apenas um tipo de letra, a mesma utilizada no registro da assinatura do governador. Por estar presente 274 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 em livro de registro de secretaria, o punho nesse material apresenta algumas oscilações, provavelmente próprias do processo de cópia, além da variação gráica proveniente do seu autor material original. Já na publicação do APESP, a assinatura de Menezes, na edição dos bandos, apresenta-se sempre em itálico, com destaque. Pelo que foi veriicado, o esforço material empregado na composição documental estava, em grande parte, a cargo do secretário Gervasio Leyte Rebello, com autoria apenas intelectual de Rodrigo Cesar de Menezes, sem a possibilidade de se veriicar como se realizava a supervisão dessa produção. 5 A escrita dos bandos Com apenas um escriba como autor material reconhecido, o secretário Gervasio Leyte Rebello3 (outros ainda precisam ser estudados), o esperado seria uma prática de escrita com poucas oscilações, com escolhas gráicas sem muitas alternâncias, apenas com hábitos de escrita particulares ao conhecimento da língua portuguesa do secretário e da sua prática de escrita proissional. Embora fossem comuns as variações no mesmo punho à época, não se pode descartar a hipótese de que o fato de haver dois autores nesse caso, o autor material, na igura de Rebello, e o intelectual, na do governador Menezes, pode ter inluência na escrita dos manuscritos e, portanto, no estado de língua testemunhado. A análise apresentou os seguintes resultados quanto à escrita do corpus: a) Duplicação do <l>: há alternância na escrita de palavras que apresentem <l> na posição medial. Às vezes, elas são grafadas com apenas um <l>; às vezes, a mesma palavra é grafada com o <ll> duplo. Como por exemplo, a palavra “alegrar”. Nos anos de 1721, 1722, 1724 (v. XIII), ela aparece com o <ll> duplo: allegrar. Entretanto, nos anos de 1726 e 1724 (v. XXXII), aparece com um <l> apenas: alegrar e alegres, respectivamente. No ano de 1728, só foram registradas palavras com o uso do <ll> duplo, como ocorre em: alleguem, pellas, nellas, villa; A conirmação do punho do secretário foi estabelecida com o cotejo de cartas escritas por Gervásio Leyte Rebello, localizadas no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, pertencentes ao Catálogo do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”. Para mais informações, consultar Fachin (2014). 3 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 275 b) alternância de <i> e <y>: uma mesma palavra pode ser escrita com <i>, com <y>, ambos em posição medial. Como ocorre com o nome: Silva. Nos anos de 1723 e 1724 (v. XXXII) o nome foi escrito com <i>: Silva. Já no ano de 1725, ele foi escrito com <y>: Sylva. O mesmo ocorreu com a palavra: debaixo. Em 1724 (v. XXXII), foi grafado usando o fonema <i>: debaixo. Entretanto, em 1727, a mesma palavra foi registrada com <y>: debayxo. Outras palavras grafadas com <y> foram: leyte (1721, 1722, 1723, 1724 – v. XIII– 1725, 1726, 1727 e 1728); Cuyaba (1723, 1724, 1727,1728); mayor (1727); alheyos (1728), arrayal (1724 – v. XXXII). Foi encontrado apenas um caso de uso do <y> em posição inal: mandey (1727); c) alternância de <e> e <i>: quando se refere ao uso do <e> e do <i>, pode-se observar predominância pelo uso do <e>. Veja os exemplos: admetido, officiaes, demenutas (1721); destricto, ouvedoria (1722), quaesquer, demenutas (1723), delligencia (1725), destricto (1726), oficiaes, admenistrado (1728). Registros de palavras com <i>: primeiras (1722), mineiros, principal, impostas (1723), impedimento (1726); d) duplicação do <f>: são estes alguns dos casos de duplicação: oficiaes (1721), eficas (1723), oficiaes, refferidas (1728); e) duplicação do <n>: a duplicação só ocorreu em palavras com inal “–ano”. Como em: anno (1724, 1725, 1726,1728), annos (1724, v. XXXII) e danno (1728). Outras palavras com “n” foram grafadas com apenas um. Como ocorre em: minas, bando, grande (1724), continuando, destinava (1725), penas, diante, mando (1728) e bando (1724, v. XXXII); f) alternância de <s> e <z>: neste caso, também ocorre de uma mesma palavra ser grafada com <s> e <z>. São os casos das palavras: fez, mês e casa. O verbo é grafado com <z> no bando correspondente ao ano de 1721. Mas nos outros anos, ele é grafado com <s>: fes. O substantivo “mês” é grafado com <s> no bando correspondente ao ano de 1724, mas nos bandos correspondentes aos anos de 1722, 1727 e 1728, tal substantivo é grafado com <z>: mez, mezes, mezes. O mesmo processo se dá com o substantivo “casa”. No bando correspondente ao ano de 1721, ele é escrito com <s>: casa. Entretanto, nos bandos correspondentes aos anos de 1723, 1727 276 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 e 1728, encontra-se o registro deste substantivo com a letra <z>: caza e cazas. Outras palavras grafadas com <z> encontradas foram: cauza, auzente, dezerção (1721), razões, fazendo, preza (1722), prezumir, dezemcaminhão, dezembarcar, dezejava, prezente (1723), prezença (1724), rezoluto (1725), cazados, preza, prezente (1726), prezos (1727), couza, auzentarem, prezumir, prezos (1728). Outras palavras encontradas grafadas com <s> foram: caso (1721), mais (1722, 1723, 1724, 1725), eficas (1723), tres (1724, 1726); g) alternância de <s> e <ç>: há predominância de registro de palavras grafadas com <ç>. Exemplos: praça, serviço (1721), conservação, condição, lançar, praça (1722), lançar, cobrança, lançado (1723), praça, monção, prezença (1724, v. XIII), monição, praça, lançar, serviço (1725), praça, monção, fação, petição (1726), praça, roças, lançar (1727), lançou, segurança, roças, lançar (1728), lançou, lançar, Março (1724, v. XXXII). Aqui também ocorre o caso de uma mesma palavra ser grafada com <s> e <ç>, como ocorre no caso da palavra: terça. No bando correspondente ao ano de 1726, tal palavra é grafada com <ç>: terça. Entretanto, no bando correspondente ao ano de 1727, esta mesma palavra é grafada com <s>: tersa. Outras palavras grafadas com <s> são encontradas no bando de 1727, asoutes e, no de 1728, consentisse e observância; h) uso de <x>: O uso do <x> é basicamente igual ao uso atual, portanto sem casos de oscilação com <s> ou outros elementos. Exemplos: ixaraõ (1721), ixara, ixandosse (1722), ixara (1723, 1724, 1725,1726, 1727, 1728), ixou (1724, v. XXXII), trouxessem (1723), próxima (1724), experimentaõ (1728); i) alternância de <s> e <ss>: novamente ocorre o caso de uma mesma palavra ser grafada com <s> e <ss>. É o caso da palavra: assim. Grafada com os dois “s” nos bandos correspondentes aos anos de 1721, 1724,1725. É grafada com um “s” só no ano de 1728: asim. Outras grafadas com <ss>: possão (1721, 1722, 1724, v. XIII, 1728), pessoa, ixandosse (1722), pessoa, passagem, pagassem, assistisse, trouxessem, quintassem (1723), assistirem, passada (1724), pessoas, passarão (1725), sessenta, pessoas, passão (1726), consistisse, passou, mandassem, devessem (1728). Como se pode ver, os verbos no tempo Pretérito Imperfeito, no modo Subjuntivo, são grafados com <ss> assim como se faz de acordo com o português atual; Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 277 j) uso de <c> e <ç>: é basicamente o mesmo que se usa atualmente. Veja os exemplos com <ç>: segurança, faça, licença (1721), conceição (1728). Agora, exemplos com <c>: denunciar, noticia, ignorancia, licença (1721), falecer, ignorancia, principais (1723), procedera, parecer, ignorancia (1724), ignorancia (1726), consideravel (1727), ignorancia, observancia, conceição (1728); k) O uso do <h>: ao observar os bandos pode-se veriicar o uso do “h” nos seguintes casos: hali, húa (1723), hir, hirem, ha (1725), prohibe, he (1726), húa, hum (1727) hum, sahir, prohibidas (1728). O verbo “haver” foi escrito com o <h> assim como se escreve de acordo com o português atual. Veja os exemplos: haverem (1725), havendo (1726), havendo, haverem (1727), haver, houve, havendo, houver (1728); l) Troca de vogais: ao observar os bandos em questão, veriica-se uma troca de vogais. Esta pode ser entre <i>/<u>; <o>/<u>; <e>/<a> e <e>/<i>, como se mostrou anteriormente. Casos encontrados de <i> e <u>, há: outavas, asoutes (1727), noute, couza (1728). Casos de <o> e <u>, temos: logar (1722), lugar (1723), monição, descuberto (1725). Como se pode ver, ocorrem casos de uma mesma palavra ser escrita com uma ou outra vogal, como ocorre em logar e lugar; m) O uso do <th>: foram encontrados dois casos com uso de <th>, ambos na palavra teor. Veja: theor (1722, 1725); n) casos particulares: ao observar os bandos em questão, nota-se a ocorrência de casos particulares como: <y> e <im> – my (1721), <m> e <~> – nenhuã (1722), <m> e <´> – algúas (1723), <s> e <c> – conciderava (1723), <v> e <b> – sorocava (1723), <m> e <n> – promptas (1725) e <s> e <sc> – recolhescem (1728); o) outros casos: 1721 – acháo, continuam, prezestir, emcorrerâ, cincoenta; 1722 – detreminação, destricto; 1723 – emcorrerâ;1724 (v. XIII) – menhãa, aribarão; 1724 (v. XXXII) – regulos, treslado; 1725 – polvra, promptas, socorrerse; 1726 – homê, destricto;1727 – cadea, castigalos, darem-lhe; 1728 – cadea, emcorrerão; p) pontuação: a vírgula, nos bandos selecionados para análise, é usada frequentemente. Seu uso varia tanto em contexto de vírgula quanto como ponto inal e parece não seguir uma regra. Veja alguns 278 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 exemplos: “Ordeno, e mando q’ todas as pessoas, q’ quiserem hir a elle fazer serviço a S.Mag.de q’ D.s g.e se ponham promptas, p.a irem para a tropa, que se há de expedir, ...”. (1725), “ordeno, q’ todo o soldado q’ se achar auzente, e se restituir a comp.a em q. serviu dentro em trinta dias, será admetido, e perdoado, e quando o não faça será trancado nesta cid.e p.a onde virâ remetido, e assim todo o q’ daqui por adiante se auzentar ...”(1721). Quanto ao ponto inal, não há praticamente seu uso nos bandos em questão. A vírgula, na maioria das vezes, toma seu papel e, por conta disso, não há períodos, e, sim, um grande parágrafo. Entretanto, ao inal de quase todos os bandos usou-se o ponto inal para encerrar o assunto. No bando correspondente ao ano de 1728, foi encontrado o ponto inal no meio da correspondência, com a função de ponto no inal de frase. Foi a única vez que se encontrou esse uso. Veja no trecho a seguir: “... e me constar q’ não houve a devida observância. Ordeno e mando q’ daqui em diante...”. No mesmo bando, encontra-se no trecho “... oficiaes de justiça. ou guerra...” o ponto inal sendo usado no lugar da vírgula. Por conta da escassez do uso do ponto inal, a leitura dos bandos se torna mais complicada. Em bandos datados com os anos de 1721,1722, 1723, 1728, observa-se o uso dos dois pontos (:). Nos três primeiros anos, os dois pontos foram usados antes da palavra “ordeno”. Exemplo: “... no serviço de S.Mag.de: ordeno q’ todo soldado...” (1721). De acordo com a gramática do português culto do Brasil, os dois pontos deveriam vir depois da palavra “ordeno” e não antes. No bando do ano de 1728, esta pontuação foi usada no trecho: “... por outro bando, q’ já se lançou: e p.a q’ chegue a noticia de todos...”. A última pontuação encontrada nos bandos separados para análise foi o ponto e vírgula (;). Seu uso aparece nos correspondentes aos anos de 1721, 1722, 1725 e 1726. Veja um exemplo: “... perdendo soldados veteranos; e metendo nellas em seu lugar...” (1721). Nesse trecho, seu uso ocorreu no lugar da vírgula; r) uso de maiúsculas: No início de parágrafo: em todos os bandos selecionados para análise, ocorreu o uso de letra maiúscula nessa posição. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 279 Datas oiciais: “S. Paulo aos 18 de Setr.o de 1721”, “Villa Real do Bom Jesus do Cuyabâ aos cinco de Janr.oe Anno de 1728”. Títulos: S.Magde, Gov.or, Gov.o(1721), Sarg.to Mor, or Prov. (1723), Capp.m (1725), Capp.es Mores (1726), Senhores (1727), S.res, S.r(1728), Guarda Mór, Mestre de Campo, Ex.mo S.r, Cap.m General (1724, v. XXXII). Entretanto, no bando correspondente ao ano de 1722, o título “Oiciais da Câmara” aparece em letra minúscula: off.es da Camr.a. Nome próprio: Rodrigo Cesar de Menezes (1721, 1722, 1724, v. XXXII), R.o Cesar de Menezes (nos demais anos), Santos, (1721), Minas (1722), Rio, Cuyaba, Sorocava, Silva Monteiro, Minas, João Miz’ Claro (1723), Cuyaba (1724, v. XII), Bueno da Sylva, Certtão dos Guayazes (1725), Cuyaba, Nova Colonia, Março, São Paulo (1726), Minas (1727), Lavras de Ribeirão (1728), Balthazar Ribeiro, Março, Minas Alegres (1724, v. XXXII). Entretanto, no bando de 1723, ocorre do nome próprio “Sorocaba” ser grafado com minúscula: sorocava. E, no bando correspondente ao ano de 1724, aparece: Rio grande, com apenas o primeiro nome em maiúscula. Logradouros públicos: na maioria dos bandos selecionados para análise, ocorreu a utilização da letra maiúscula quando se tratava de nomes de logradouros públicos. Veja os exemplos: Barra (1721), Villa de Pernangóa (1722), Villa de Ontû, Villas de Santos (1723), Villas (1725), Villas (1726), Villa, Villa do Real do Bom Jesus do Cuyabá (1727), Villa (1728). Outras ocorrências: A letra maiúscula é usada em algumas situações de meio de frase. Exemplos: “...assim todo o q’ daqui por diante se auzentar sem Licença dos seus oficiaes...” (1721), “...na paragem mais publica do dito Arrayal, e por passar o referido na verdade...”, o mesmo arraial é grafado em minúscula algumas linhas antes deste trecho citado acima (“...o qual se lançou neste arrayal a som...”); 280 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 s) abreviaturas: encontram-se quatro tipos no corpus. Levando-se em consideração a classiicação de Costa (2006): 1) abreviação por sinal geral, composta de um signo abreviativo, no caso dos bandos, por apóstrofo (’), indicando a falta de uma ou mais letras. Esse tipo ocorre, por exemplo, em q’ = que (presente em todos os bandos em questão, exceção feita ao bando correspondente ao ano de 1724, v. XXXII) e Porq’ = Porque (1726 e 1727); 2) abreviação por contração ou síncope, deinida pela supressão de letras no interior da palavra, como em rs = reis (1721 e 1726); 3) abreviação por suspensão ou apócope, por meio da supressão de elementos inais da palavra: q. = que (1721); 4) abreviação por letra sobreposta, constituída pela sobreposição de uma ou mais letras que compõem a parte suprimida da palavra. Esse tipo de abreviação está presente em todos os bandos selecionados para análise, sem exceção. Veja alguns exemplos: mto= muito; continuam.te= continuamente; L.os= Livros (1721), Capp.nias= Capitanias; qualq.r= qualquer; Mag. de = Magestade (1722), Outr.o= Outubro; q.tos= quantos (1723), Gov.o= Governo; Fevr.o= Fevereiro (1724, v. XII), descobrim.to= descobrimento; Primr.o= Primeiro (1725), Prez.te= Prezente; reg.to= regimento (1726), Janr.o= Janeiro (1727), S.res = Senhores; Capp. es = Capitães (1728), Ex.mo= Excelentíssimo; S.r= Senhor (1724, v. XXXII); t) acentuação: encontraram-se três tipos de acentuação ao analisar os bandos em questão. São eles: til (~), acento agudo (´) e acento circunlexo (^). Seus usos são às vezes distintos do sistema atual em relação aos acentos agudo e circunlexo. Quanto ao til, seu uso é basicamente o mesmo em relação ao sistema atual. No caso do agudo, os exemplos aparecem em contexto de til (~): acháo, registrará, estáo (1721), nenhúa, pubicará (1722), húa (1723), atenderá, dará, publicará, ixará (1725), húa (1727), terá, será, publicará, ixará (1728). Veja os exemplos de acento circunlexo (^): serâ, publicarâ, mandarâ (1721), registrarâ, serâ, passarâ, publicarâ (1722), Ontû, Cuyabâ (1723), Cuyabâ, publicarâ, procederâ, ixarâ (1724, v. XIII), Cuyabâ, homês (1726), Cuyabâ, dê (1728). Veja os exemplos de til (~): certidaõ, dezerçaõ (1721), razões, conservaçaõ, condiçaõ, possaõ, mandaraõ (1722), declaraõ, naõ (1723), façaõ, faraõ, naõ (1726), entre outros. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 281 Dado o exposto, pode-se perceber que os acentos agudo e circunlexo se confundem. Ora uma mesma palavra é grafada com o acento agudo, ora com o circunlexo. É o que ocorre, por exemplo, em: publicará e publicarâ. Ambos os acentos foram usados para marcar a sílaba tônica da palavra. O mesmo ocorre com a palavra “será”, ora grafada com um acento, ora grafada com outro. 6 Conclusão Embora a publicação do Arquivo Público do Estado de São Paulo traga em seu título a atribuição autoral a Rodrigo Cesar de Menezes dos diversos documentos editados, e isso se reira a uma prática comum na administração colonial, ou seja, a autoridade superior normalmente não era o responsável material pela composição documental, a análise do corpus demonstrou que é necessária a diferenciação entre autoria material e autoria intelectual. A implicação dessa necessidade se dá por duas razões: primeiro, por destacar que os hábitos gráicos dos documentos podem pertencer, em diferentes níveis, ao governador e ao seu secretário, Gervasio Leyte Rebello, ambos provavelmente com histórias de vida e de contato linguístico díspares; segundo, por talvez representar uma prática de escrita pertencente a uma tradição administrativa mais antiga, não pertencente nem ao governador nem ao secretário, mas às exigências diplomáticas da própria espécie documental em questão, como se o documento, na sua composição, exigisse o uso de certos hábitos de escrita, além das fórmulas utilizadas ao longo do texto, no protocolo inicial e inal, fator que ainda precisa compor o objeto de estudo de muitas pesquisas ilológicas. Nesse contexto, apesar da estrutura fixa – por se tratar de documento diplomático – veriicada em todos os testemunhos, há diversos casos de variação gráica. Trata-se de um estado de língua que, para ser registrado, oferecia dúvida até para um proissional da escrita de tão larga experiência como o secretário Gervasio Leyte Rebello. Com uma escrita alternante, resultado da mescla de hábitos gráicos do escriba com o que escrevia de ouvido ou por meio de cópia, transmitido pelo autor intelectual dos documentos, é fundamental a identiicação detalhada de como se operacionalizava esse processo. 282 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 255-283, 2018 No governo de Menezes, as ordens do cotidiano, os bandos, por exemplo, assim como todos os trâmites de escrita, emanavam diretamente da igura do governador e capitão general, materialmente compostos em sua maioria pelo seu secretário. Em estudos posteriores, pode-se chegar a um quadro sistematizado das variações encontradas, classificadas e categorizadas, que podem demonstrar o estado de uso da língua portuguesa numa tradição administrativa que, embora com estruturas ixas, poderia apresentar também formas livres, muito dependentes do grau de conhecimento linguístico do escriba em questão e independentes do tipo de documento. Esse tipo de resultado pode contribuir signiicativamente com os trabalhos ilológicos e de linguística histórica, já que, entre as suas preocupações, está a identiicação de testemunhos idedignos, genuínos, autênticos e de como efetivamente a língua portuguesa era utilizada. Nesse sentido, será de suma importância o cotejo com diferentes documentos, sob responsabilidade de Menezes, e bandos pertencentes a outros governadores de capitania, para ampliar o conhecimento a esse respeito. Referências BELLOTTO, H. L. Como fazer análise diplomática e análise tipológica de documento de arquivo. 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Paulo: Bandos e Portarias de Rodrigo Cesar de Menezes. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). São Paulo: Typographia Aurora, 1895. v. XIII. DOCUMENTOS Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo: Correspondência interna do Governador Rodrigo Cesar de Menezes 1721-1728. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). São Paulo: Typographia Aurora, 1896. v. XX. DOCUMENTOS Interessantes para a História e Costumes de S. Paulo: Correspondências e Papéis Avulsos de Rodrigo Cesar de Menezes 17211728. Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). São Paulo: Typographia Andrade & Mello, 1901. v. XXXII. FACHIN, P. R. M. “Escreve quem sabe e assina quem pode”: produção e circulação de manuscritos no Brasil colonial. Revista da Anpoll, Anpoll, v. 1, n. 37, p. 213-232, 2014. Doi: https://doi.org/10.18309/anp.v1i37.781. LUÍS, W. Governo de São Paulo - Capitania de Rodrigo Cesar de Menezes. São Paulo: Casa Garrauz, 1918. MEGALE, H. Pesquisa ilológica: os trabalhos da tradição e os novos trabalhos em língua portuguesa. In: SEMINÁRIO DO GRUPO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (GEL), XXVII., 1998, Campinas. Estudos Lingüísticos, Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. v. 1. p. 3-28. SALGADO, G. (Org.). Fiscais e Meirinhos – Administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. SPINA, S. Introdução à edótica: crítica textual. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Ars Poetica/ Edusp, 1994. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 A formação do glide no alemão padrão Glide formation in Standard German Mágat Nágelo Junges Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina / Brasil magat.nj@hotmail.com Gean Nunes Damulakis Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil damulakis@gmail.com Resumo: Este artigo discute a formação do glide [j] na estrutura silábica do alemão padrão. Para isso, apresentam-se teorias fonológicas que dão conta da sílaba, desde a Fonologia linear, passando pela Não linear, e chegando a uma análise otimalista. Neste trabalho, leva-se em consideração o ‘princípio da escala de sonoridade’ (doravante, SSP) como possível parâmetro de compreensão para a análise do glide [j] em investigação, tal como a exigência de onset. Reanalisamos as possibilidades de ordenação do glide [j] na estrutura silábica interna do alemão padrão, de acordo com modelos teóricos recentes, sobretudo os não lineares, como as teorias autossegmental e métrica, e investigamos como isso poderia ser acomodado em um modelo fonológico que exclui (ou reduz) a derivação, como a teoria da otimalidade. Concluímos que na representação subjacente não é necessário especiicar o status de glide [j], mas apenas de vogal alta, podendo uma hierarquia de restrições determinar sua posição na sílaba, sobretudo respeitante à sua nuclearidade. Palavras-chave: glide [j]; estrutura silábica do alemão padrão; Teoria da Otimalidade (TO). eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.285-319 286 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Abstract: This paper discusses the glide [j] formation in the syllabic structure of Standard German (Hochdeutsch). For that, a discussion about phonological theories on the syllable was raised, from Linear Phonology and Non Linear Phonology to Optimality Theory (OT). In this paper, the Sonority Sequencing Principle (SSP) was taken into account as a possible parameter in order to comprehend the glide [j] under investigation, as well as the demand for onset position. Sequence possibilities of the glide [j] onto the internal syllabic structure of German were reanalyzed, according to recent theories, mainly the not linear ones as Autosegmental and Metrical. Furthermore, an investigation on the glide [j] formation in a phonological model that excludes (or reduces) the derivation – as the Optimality Theory – was carried out. Hence, the results have shown that it is not necessary to specify the glide [j] status in the underlying representation, but only that of high vowel. This way, a constraint hierarchy can determine its position in the syllable, especially its nuclearity. Keywords: glide [j]; syllabic structure of Standard German (Hochdeutsch); Optimality Theory (OT). Recebido em 9 de abril de 2017. Aprovado em 25 de agosto de 2017. 1 Introdução Neste trabalho, investigamos a formação do glide [j] na sílaba do alemão padrão. A ideia de se trabalhar com o glide é motivada pelo fato de que esse segmento (de articulação dúbia entre vogais e consoantes) parece, ainda, não ser completamente bem deinido na estrutura fonológica do alemão padrão (doravante, AP). Buscamos dar nova interpretação para uma adequação do glide na estrutura fonológica dessa língua, contrapondo exemplos de teorias fonológicas derivacionais e acomodando a análise nos pressupostos da TO, segundo a qual a divergência entre input e output se deve à avaliação de um conjunto de restrições hierarquizadas. O AP conta com um inventário fonético de 17 sons vocálicos (se considerarmos a duração) e cerca de 30 sons consonantais (DAMULAKIS, 2008, p. 63-64). Desses sons, o único exemplo no alemão de aproximante é a palatal [j], como em: [j]a ‘sim’, [j]ugend ‘juventude’ (Ib., p. 64). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 287 Segundo Damulakis (2008), o segmento é visto como uma consoante, subjacentemente no AP. O termo “glide” foi introduzido, pela primeira vez, por Sievers (1881), na sua teoria das três fases, sendo elas: on-glide, posição articulatória e off-glide. Sievers partiu da suposição de que os articuladores levam um tempo t mensurável na sua posição neutra (“de descanso”) até se movimentarem fundamentalmente sobre o menor e menos audível glide para o próximo som. Essa teoria foi abandonada no início do século 20. Menzerath e Lacerda (1933, p. 58) estabelecem que a fala é um movimento de duração e que os articuladores, excepcionalmente, na maioria das vezes, permanecem por um tempo t determinado na mesma posição (apud MÜCKE, 1997, p. 02). Tendo em vista essa descrição acústico-articulatória dos glides, interessa-nos, por outro lado, investigar a maneira como podem ser classiicados na estrutura silábica do AP e a abordagem teórica fonológica que consegue dar conta, de maneira mais apropriada, do lugar dos glides, já que há glides pré- e pós-vocálicos no AP. O modelo silábico proposto por Kahn (1976) compreende a sílaba como uma unidade, cujos segmentos encontram-se ligados diretamente ao nó silábico, enquanto o modelo silábico hierárquico, formulado por Selkirk (1982) e Harris (1983), considera-a em uma estrutura hierárquica interna. Optamos por considerar, neste trabalho, que a sílaba tem uma estrutura interna. Além disso, para darmos conta de nosso objetivo, lançaremos mão do “princípio da escala de sonoridade” (doravante, SSP) e seu papel importante, visto que os glides têm, em algumas propostas de escala, a mesma sonoridade que uma vogal. Dividimos este artigo nas seguintes seções: seção 2, na qual a sílaba é apresentada como estrutura fonológica universal; seção 3, em que se apresentam as principais deinições dos glides e indica-se, no item 3.1, a representação do glide [j] no alemão padrão baseada no modelo fonológico métrico de Selkirk (1982) e Harris (1983); seção 4, na qual se analisa o glide [j] na sílaba do alemão, e seção 5, que trata da formação do glide com base na Teoria da Otimalidade (OT). 2 A sílaba como estrutura fonológica universal Sabemos que não há língua natural sem sílaba. O uso da sílaba para um falante nativo parece ser bastante intuitivo, e ela pode ser 288 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 empregada em versos, rimas e canções, por exemplo. Algumas análises experimentais mostram, por exemplo, que a realidade cognitiva da sílaba é mais robusta que a de segmentos, uma vez que a alfabetização costuma aumentar a consciência de segmentos, ao passo que a sílaba pode ser considerada menos atrelada à alfabetização. Segundo Morais et al. (1979), embora não seja difícil levar analfabetos à consciência de segmentos, aqueles são tipicamente inconscientes da existência dessas unidades. Do ponto de vista fonológico, a sílaba representa uma estrutura que ocorre em ambientes de regras fonológicas, tanto para derivar alofones quanto em alternância morfofonêmica. As sílabas também são consideradas unidades que contêm o acento tônico e que servem de base para tons em sistemas tonais, bem como para a entonação1 (HAYES, 2009, p. 250). Para Carr (1993, p. 195 apud BROCKHAUS, 1999, p. 170), a estrutura silábica é considerada indispensável para se expressar muitas generalizações fonológicas. Com base nessa constatação, Kenstowicz (1994, p. 250) enumera três argumentos2 para a sílaba como um conceito útil em fonologia (tradução nossa): a) (A sílaba) é um domínio natural para a explanação de muitas restrições fonotáticas. b) Regras fonológicas são frequentemente expressas de maneira mais simples e mais razoável se elas se referirem, explicitamente, à sílaba. c) Vários processos fonológicos são mais bem interpretados como métodos para assegurar que a cadeia de segmentos fonológicos seja dividida em sílabas. “Looking within Phonology itself, we find that syllables frequently appear in environments of phonological rules, both for deriving allophones and in morphophonemic alternation. Syllables also are the units that bear stress and serve as the ‘anchor points’ for tones in tonal systems and in intonation. It is hardly surprising that phonologists have often made use of syllables in phonological theory.” (HAYES, 2009, p. 250) 2 The main arguments which have led to this position are conveniently summarized in Kenstowicz (1994, p. 250) and can be stated as in (1). (1) The syllable is a useful concept in phonology, for three main reasons: a. It is a natural domain for the statement of many phonotactic constraints; b. Phonological rules are often more simply and insightfully expressed if they explicitly refer to the syllable. c. Several phonological processes are best interpreted as methodes to ensure that the string of phonological segments is parsable into syllables. 1 289 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Outras compreensões acerca do assunto tomam a sílaba como uma “unidade bem reconhecida na análise linguística, que explica muito bem o número de unidades rítmicas que serão perceptíveis numa palavra ou numa elocução longa. Esse número é geralmente igual ao número de vogais da elocução.”3 (MADDIESON, 2001, p. 1). Também se pode dizer que a sílaba é uma unidade fonológica que organiza as melodias segmentais em termos de sonoridade (BLEVINS, 1995). De acordo com as deinições acerca da sílaba, depreende-se que ela tem um papel fundamental para a estrutura prosódica de toda língua natural. No entanto, como podemos representá-la? Como bem lembra Collischonn (2001, p. 91-92), há basicamente duas teorias a respeito da estrutura interna da sílaba: a teoria autossegmental e a teoria métrica da sílaba. De acordo com a primeira, pressupõem-se camadas independentes na estrutura silábica. Segundo Cristófaro Silva (2011, p. 111-117), essa proposta teórica tem o objetivo de integrar vários níveis da descrição do componente fonológico. É representada, abaixo, em (a). Já a Fonologia Métrica se dedica a analisar fenômenos suprassegmentais, especialmente a respeito da atribuição do acento no nível da palavra. Essa teoria defende que as sílabas são estruturadas como representado em (b), conforme Selkirk (1982), baseando-se em propostas feitas anteriormente por Pike e Pike (1974) e Fudge (1969). A Figura 1, a seguir, mostra as representações silábicas em ambas as teorias: FIGURA 1 – Representações da sílaba (a) (b)   A n  k R Nu Co Fonte: Colischonn, 2001, p. 91. “The syllable is a well-recognized unit in linguistic analysis which explains quite well the number of rhythmic units that will be perceived in a word or longer utterance. This number is usually equal to the number of vowels in the utterance.” (Chapter Syllable Strucutre: http://wals.info/chapter/12) 3 290 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 A constituição da sílaba tônica [nk] da palavra “connective” do inglês é exibida, acima, em 1(a), Figura 1, na estrutura arbórea, indicada em Hayes (2009). Como podemos observar, a letra grega sigma σ é empregada para a representação da sílaba. Por outro lado, na representação presente em Collischonn (2001) – reproduzida em 1b, podemos observar a divisão hierárquica na estrutura silábica em ataque (A) ou onset (posição ocupada por consoantes) e rima (R) (dividida em núcleo (Nu) e coda (Co)). De acordo com Maddieson (2015, p. 2), os “modelos silábicos canônicos são, na maioria das vezes, representados por um feixe de consoantes (C) e vogais (V) […]”. A sílaba canônica, que se considera a sílaba leve e simples e que está presente potencialmente em todas as línguas naturais é a sílaba CV4 (core syllable), que, em termos otimalistas, equivale ao padrão silábico não marcado. Por exemplo, línguas como o havaiano (Havaí) e o Adamawa-Ubangiã (República Democrática do Congo) só têm esse tipo de sílaba. Em Maori (Nova Zelândia), por sua vez, há sílabas CV, além de V somente. Se a sequência silábica CV for acrescida de consoantes, obtêm-se sílabas mais elaboradas do tipo CVC e CCV. Além dessas possibilidades, há também sistemas silábicos complexos moderados, nos quais se permite somente uma única C depois da vogal ou duas C antes dela. Um exemplo de língua como essa é o Darai, falado na região indo-ariana e no Nepal, na qual uma amostra dessa estrutura seria o vocábulo /bwak (CCVC) “seu pai”. Outra ocorrência de tipo silábico nas línguas naturais se dá no inglês, em que sequências de sistemas silábicos complexos são permitidos. Por exemplo, no vocábulo [strENkTs] (CCCVCCCC) strengths (Ib., p. 2-3). De maneira geral, quando uma língua permite complexidade (CCV[C] ou [C]VCC) e não canonicidade silábicas (V[C]), ela também tolera simplicidade (CV[C]) e canonicidade (CV). O oposto não é verdadeiro. Dito de outra forma: a) a presença de codas é universalmente marcada, e a falta de onset também o é; b) esses constituintes tendem a ser simples, universalmente (KAGER, 1999). Em se tratando da complexidade silábica, conceito importante é o de sequência de sonoridade, considerada uma das condições universais para a formação da sílaba. O que ocorre, de fato, é que o elemento mais sonoro irá sempre ocupar a posição de núcleo, e os elementos menos 4 CV (CV syllable), sílaba constituída por consoante e vogal. É tida como sílaba universal, pois é a única que ocorre em todas as línguas naturais. (Ib., p. 85) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 291 sonoros ocuparão ataque e coda. O SSP (Sonority Sequencing Principle – Princípio de sequência de sonoridade), baseado em Sievers (1881) e Jespersen (1904), advoga que há uma “escala de sonoridade” para a sílaba, que cresce do seu início até o seu pico e decresce do pico até a coda. Esse princípio opera por meio das línguas naturais, com algumas exceções. Segundo Clements (1990, p. 19), as sílabas são normalmente caracterizadas por um aumento e uma diminuição na sonoridade, que se refletem nos valores da escala de sonoridade, caracterizando cada um de seus segmentos. As sequências de sílabas exibem um aumento e uma diminuição quase periódicos em sonoridade, cada um repetindo uma porção a qual pode ser chamada de ciclo de sonoridade. É possível ajustar uma curva ou delineá-la sobre tais representações que reletem esse aumento e essa diminuição, como apresentado na Figura 2, consistindo de dois ciclos:5 FIGURA 2 – Escala de sonoridade (vocábulo ‘template’, do inglês), de acordo com os traços soante, aproximante, vocoide e silábico Fonte: Clements, 1990, p. 20: Ilustração 12. Segundo o autor (1990, p. 20), o número de ciclos, cujo pico decresce da linha do topo ([silábico]) deste diagrama, corresponderá “[…] syllables are normally characterized by a rise and fall in sonority which is relected in the sonority scale values characterizing each of their segments. Sequences of syllables display a quasiperiodic rise and fall in sonority, each repeating portion of which may be termed a sonority cycle. It is possible to it a curve or outline such representations which relects this rise and fall, as shown in (12), consisting of two cycles.” (CLEMENTS, 1990, p. 19) 5 292 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 exatamente ao número de sílabas, exceto o de um patamar ao longo da linha do topo (representando uma sequência de vogais) que pode ser analisada como uma sequência de picos silábicos.6 Observamos, assim, alguns vocábulos do alemão padrão, cuja segunda vogal é omitida do núcleo silábico, quando produzida (representada pelo diacrítico : Exemplos: können [knn] ‘poder/ser apto a’; wollen [voln] ‘querer’ vs. Köln [kln] ‘Colônia’ (cidade). Clements (1990, p. 20) propõe, então, o “Princípio da Silabiicação do Núcleo” (The Core Syllabiication Principle, CSP), partindo do exemplo ‘template’ apresentado. Baseado em Kahn (1976), o autor airma que, para o traço [+silábico], os segmentos são deinidos por uma língua natural em questão, e introduz um nó silábico sobre esse traço. Esse passo pressupõe que os elementos silábicos já constam da representação, a esse ponto, se criados por uma regra ou por subjacência (no caso de línguas que têm distinções imprevisíveis entre glides e vogais ou outros segmentos que se diferenciam somente em silabicidade, como o francês, por exemplo). Esse princípio é apresentado por Clements (1990, p. 20-21) da seguinte maneira: Princípio da Silabiicação do Núcleo7 (CSP): a. Associa-se cada segmento [+silábico] a um nó silábico. “The number of cycles whose peaks fall on the top ([syllabic]) line of this diagram will correspond exactly to the number of syllables, except that a plateau along the top line (representing a sequence of vowels) may be persed as a sequence of syllable peaks.” (CLEMENTS, 1990, p. 20) 7 (13) The Core Syllabiication Principle (CSP): a. Associate each [+syllabic] segment to a syllable node. b. Given P (an unsyllabiied segment) preceding Q (a syllabiied segment), adjoin P to the syllable containing Q iff P has a lower sonority rank than Q. (iterative) c. Given Q (a syllabiied segment) followed by R (an unsyllabiied segment), adjoin R to the syllable containing Q iff R has a lower sonority rank than Q. (iterative) CLEMENTS (1990, p. 20-21) 6 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 293 b. Dado P (um segmento não silabificado) precedendo Q (um segmento silabiicado), junta-se P à sílaba contendo Q, se P tem uma classiicação sonora mais baixa a Q. (iterativo) c. Dado Q (um segmento silabiicado) seguido de R (um elemento não silabiicado), junta-se R à sílaba contendo Q, se R tem uma classiicação sonora mais baixa a Q. (iterativo) Wiese (1998, p. 91 apud RAMERS, 1998, p. 94), por sua vez, sugere para o AP, conforme mostrado na Figura 3, a seguinte escala de sonoridade da sílaba para a fonotática dessa língua: FIGURA 3 – Escala de sonoridade para a sílaba no alemão com aumento de sonoridade da esquerda à direita Sonoridade crescente Plosivas Fricativas Nasais /l/ /r/ Vogais altas Vogais Fonte: Ramers, 1998, p. 94: Ilustração 4-34, tradução nossa. Uma escala desse tipo tem traços universais, entretanto está relacionada à sua forma detalhada e especíica a uma língua em particular (note-se, por exemplo, que, na escala da Figura 3, as vogais altas estão separadas das demais vogais; isso é importante para o que defendemos aqui). A correlação entre a escala de sonoridade e a fonotática é apresentada por Selkirk (1984a, p. 116 apud RAMERS, p. 94) por meio da ‘generalização da sequência de sonoridade’ (Sonority Sequencing Generalization): “Em qualquer sílaba, há um segmento constituindo um pico de sonoridade que é precedido e/ou seguido por uma sequência de segmentos com valores de sonoridade progressivamente decrescentes”.8 “In any syllable, there is a segment constituting a sonority peak that is preceded and/ or followed by a sequence of segments with progressively decreasing sonority values.” (SELKIRK, 1984a, p. 116) 8 294 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 3 Os glides A questão do u consoante e do u vogal, do i consoante e do i vogal é absolutamente dependente da questão da sílaba. Quem professa uma opinião determinada sobre u consoante e u vogal, sem ter visão perfeitamente clara e precisa sobre a sílaba, fala ao acaso. (SAUSSURE, 2002 [1916], p. 209) Observamos, com base no que airma Ferdinand de Saussure, no que se refere ao i-j, u-w e à teoria natural da sílaba, que os glides já eram tema de discussão para a análise linguística que foi trilhada pelo autor, a saber: a denominação empregada por ele classiica-os como “i consoante/i vogal” e “u consoante/u vogal”. Para nós, o “i consoante e u consoante” dizem respeito, a priori, aos glides ou semivogais, ou, também, denominados pelo autor (2006, p. 71-72) de fonema de abertura 4, ao ponto que “i vogal e u vogal” dizem respeito às vogais, naturalmente, ou soantes, como Saussure mesmo as denomina. Antes de apresentar o glide no sistema silábico do alemão, com base na fonologia métrica, que também será apresentada, é necessário deinir as compreensões que se tem desse tipo de segmento. Uma deinição para glide9 pode ser observada em Cristófaro Silva (2011), segundo a qual se compreende o termo como segmento que apresenta características articulatórias de uma vogal, mas que não pode ocupar a posição de núcleo de uma sílaba. Diz-se que o glide é uma vogal assilábica, ou seja, uma vogal que não pode ser o núcleo de uma sílaba. Portanto, um glide não pode receber acento. É indicado com o símbolo de uma vogal acrescido do Por meio dessa deinição, alguns exemplos de vocábulos do português brasileiro (doravante, PB) são apresentados, a seguir, pela autora: em ditongos centralizados: o glide pode ser um schwa como, na palavra bola, pronunciada como b[@^]la. Glides sempre ocorrem precedendo – nac[^]nal – ou seguindo – c[aU^]sa - uma vogal. Quando são seguidos de uma vogal, formam um ditongo crescente: nac[^]nal. Quando são precedidos de uma vogal, formam um ditongo decrescente: c[aU^]sa. Geralmente, os glides se manifestam com características articulatórias de vogais altas anteriores ou posteriores. Outras denominações para glide são semivogal e semiconsoante (CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 127). 9 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 295 diacrítico [ ^]. Tipicamente, os glides ocorrem nas línguas naturais como vogais altas assilábicas. (CRISTÓFARO SILVA, 2011, p. 127) Do ponto de vista acústico-articulatório acerca dos glides, podese airmar que um tipo de som que apresenta propriedades de ambas consoantes e vogais é denominado glide. Os glides podem ser pensados como vogais ligeiramente articuladas, devido à impressão auditiva que eles produzem. Os glides são pronunciados com uma articulação de uma vogal. Entretanto, eles se movimentam rapidamente para outra posição articulatória, como acontece nos glides iniciais em yet ou wet, ou que rapidamente acabam no fim de vocábulos como em boy e now, no inglês.10 (DOBROVOLSKI; KATAMBA, 1990, p. 23) Na compreensão de Clements e Hume (1995), os glides [j] e [w e as vogais altas [i e [u não são distinguíveis por traços, sendo suas diferenças apenas contextualmente deinidas: diferem entre si pelo fato de as vogais altas poderem ser núcleos de sílaba, ao passo que os glides apenas podem ocupar as margens da sílaba. Dessa forma, esses elementos compartilham igualmente dos valores de traços de raiz no sistema proposto pelos autores: [+soante], [+aproximante] e [+vocoide]. Há propostas alternativas na Geometria dos Traços. Como veremos mais adiante, seguimos, por exemplo, Padget (2008), que defende que haja distinção entre [i, u] e [j, w] no que se refere ao traço [vocálico]: os dois primeiros são valorados positivamente quanto a esse traço, ao passo que [j, w], negativamente. Mesmo tendo articulação de vogais, os glides não se comportam, na estrutura silábica, prototipicamente como estas. Eles apresentam propriedades de consoantes e de vogais, por isso os termos semiconsoante “A type of sound that shows properties of both consonants and vowels is called a glide. Glides may be thought of as rapidly articulated vowels – that is the auditory impression they produce. Glides are produced with an articulation like that of a vowel. However, they move quickly to another articulation, as do the initial glides in yet or wet, or quickly terminate, as do the word-inal glides in boy and now.” (DOBROVOLSKI; KATAMBA, 1990, p. 23) 10 296 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 e semivogal podem ser empregados intercambiavelmente com o termo glide. A sequência de vogal e glide costuma resultar no que chamamos tradicionalmente de ditongos. De acordo com Seara, Nunes e LazzarottoVolcão (2011), observa-se, sobretudo, que os ditongos constituem-se de dois segmentos vocálicos. Há, no entanto, duas possibilidades de sequência em uma mesma sílaba: vogal semivogal ou semivogal vogal. As sequências finalizadas por semivogal são sempre inseparáveis e são chamadas de ditongos decrescentes, pois terminam pela vogal com menor proeminência acentual [ou seja, a semivogal]. Na sequência, semivogal e vogal, chamada de ditongo crescente, já que é inalizada pelo segmento de maior proeminência (a vogal), há a possibilidade de esses dois segmentos constituírem sílabas separadas. (SEARA; NUNES; LAZZAROTO-VOLCÃO, 2011, p. 42) Essa deinição de ditongos está ancorada na estrutura silábica do português brasileiro e trata o glide como um elemento vocálico. O ditongo pode ser, grosso modo, analisado como um deslizamento de um alvo articulatório para o outro, tratando-se de vogal e semivogal e/ou semivogal e vogal. É dessa maneira que Clark e Yallop (1995), abordam os ditongos, que, segundo os autores, são definidos como movimentos articulatórios, particularmente da língua, que ocupam uma porção substancial de um ditongo, e que podem ser definidos em termos de dois alvos vocálicos que determinam a extensão e a direção do glide entre eles. Os ditongos podem ser mapeados no diagrama das vogais cardinais, e são transcritos por um diagrama composto de um símbolo com duas vogais que melhor representam os dois alvos.11 (CLARK; YALLOP, 1995, p. 35) “[...] Articulatory movement, particularly of the tongue, occupies a substantial portion of a diphthong, which can be deined in terms of two vocalic targets that determine the range and direction of the glide between them. Diphthongs may be mapped on a cardinal vowel diagram, and are transcribed by a digraph consisting of the two vowel symbols which best represent the two targets.” (CLARK; YALLOP, 1995, p. 35) 11 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 297 A representação dos glides proposta pelos autores é mostrada na Figura 4 a seguir. FIGURA 4 – Exemplos de vogais onglide e offglide Fonte: Clark; Yallop, 1995, p. 35. Em uma abordagem acústica, observamos, no trabalho de D.Kent e Read (2015), a seguinte consideração sobre ditongos: Os ditongos são uma outra classe de sons relacionados a vogais. Os ditongos são como vogais pelo fato de serem produzidos com um trato vocal relativamente aberto e uma estrutura formântica bem definida e de servirem como núcleo de uma sílaba. Os ditongos são diferentes das vogais, pois eles não podem ser caracterizados por um formato único de trato vocal ou um padrão formântico único. Os ditongos são sons dinâmicos, em que o formato articulatório (e, portanto, o padrão formântico) muda vagarosamente durante a produção do som. (D.KENT; READ, 2015, p. 226) Na Figura 5, a seguir, são exibidos os valores formânticos para os ditongos /a/, // e /aU/. De acordo com D.Kent e Read (2015, p. 227), “Cada ditongo pode ser representado nos eixos F1-F2 por uma trajetória que começa com as frequências dos formantes do onglide e termina com as frequências dos formantes do offglide” (as pontas das lechas indicam a direção da mudança de frequência). O gráico abaixo, diferentemente do que é rotineiro à visualização acústica, apresenta F1 no eixo horizontal e F2 no eixo vertical: 298 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 FIGURA 5 (igura 4.16, original) – Trajetórias F1-F2 para os três ditongos /a/, //, /aU/ 2000 1600 a  F2 1200 aU 800 300 500 700 F1 Fonte: D. Kent e Read, 2015, p. 227. Uma vez deinido o glide, parte-se, portanto, para a sua inserção na estrutura silábica do alemão, proposta pelo modelo da fonologia não linear. 3.1 Representação do glide [j] no alemão padrão baseada no modelo de Selkirk (1982) e Harris (1983) Como apresentamos na Introdução, a sílaba pode ser representada por dois modelos fonológicos: o autossegmental e/ou o métrico. O segundo tem a vantagem de dar conta da divisão silábica da estrutura interna perante o tipo de segmento em questão (os glides, ou semivogais, ou semiconsoantes), como mostraremos a seguir.12A representação do glide na divisão interna da estrutura da sílaba faz-nos assumir a posição de que os elementos têm certo tipo de relação entre si. Segundo Cristófaro Silva (2011, p. 117), o modelo métrico é “toda proposta teórica que assume que a organização fonológica se dá em camadas hierarquicamente Referimo-nos à representação em “x” em vez de CV, pois os glides podem apresentar comportamento tanto de vogal quanto de consoante (articulatoriamente são vogais, fonologicamente são consoantes). (MATEUS ; D’ANDRADE, 2000, p. 54). 12 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 299 ordenadas e que a sílaba é uma importante unidade na representação fonológica”. A estrutura da sílaba do alemão pode ser exempliicada, na Figura 6, pela divisão silábica do vocábulo krank ‘doente’, em alemão, proposta por Ramers (1998): FIGURA 6 – Estrutura do vocábulo monossilábico krank, de acordo com o modelo de constituintes Fonte: Ramers, 1998, p. 98-99; Imagem 4-41. Nessa representação esqueletal do alemão, veriicamos a divisão interna da sílaba em Ansatz/Onset e Reim/Rima, que, por sua vez, dividese em núcleo (Kern/Nukleus) e coda (Koda). O ataque (ou onset) da sílaba, que possui dois constituintes /k/ e /r/, é, portanto, ramiicado, bem como a coda em /N/ e /k/, permanecendo o núcleo com a vogal baixa /a/. Delattre (1964, p. 94), por sua vez, ao comparar as vogais do inglês, alemão, francês e espanhol, em sua obra, chama a atenção para um fator fundamental: o primeiro concerne à diferença entre ditongo x ditongação (por exemplo, quando o inglês ditonga seus monossílabos), ou seja, segundo o autor, o alemão (e o espanhol) têm ditongos, mas não 300 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 ditongam perceptualmente seus vocábulos monossílabos (como o inglês americano o faz), com exceção da variante bávara do vocábulo gut [U  at], cuja realização é de ditongo. (BRENNER; HUSKZA; MARINKÁS, 2006, p. 69) Ainda com relação à estrutura dos ditongos, Brenner, Huszka e Marinkás (2006) frisam que o ponto de partida dos movimentos articulatórios não deve coincidir automaticamente com o ponto de partida do primeiro elemento do ditongo, bem como a extremidade (também) não deve coincidir com a extremidade do segundo elemento do ditongo. Segue avante a explanação dos mesmos autores: De acordo com o movimento da língua na cavidade oral distinguem-se, em geral, dois tipos de ditongos: 1. Fechado (ou crescente) e 2. Aberto (ou decrescente). Na variedade da língua alemã padrão, só existem ditongos crescentes (ou fechados). (BRENNER; HUSZKA; MARINKÁS, 2006, p. 69) Cabem, ainda, alguns esclarecimentos a respeito da classiicação em “ditongo crescente/decrescente” (steigend/fallend, em alemão), dependente da posição do glide na sílaba do alemão. Basendo-nos em critérios fonológicos, essa divisão na classiicação dos ditongos referese a um parâmetro acústico-auditivo pelo qual se percebe o glide, isto é, se o glide ocupar a posição pós-vocálica no núcleo silábico, ele será considerado assilábico (unsilbisch, em alemão). Por essa razão são considerados ditongos decrescentes. A seguir, são arrolados os três ditongos existentes no alemão, segundo os autores Brenner, Huszka e Marinkás (2006, p. 70-71), mantidas as representações originais: [aU]: representado pelo grafema <au>, como no vocábulo auf ‘preposição’, esse ditongo ocorre no início, meio e im da palavra e, na maioria das vezes, em posição tônica. O ditongo [aU] compõe-se de diversos elementos do [a] e do [U], isto é, de movimentos de deslizes (glides) associados juntamente à articulação. O primeiro componente do ditongo não é arredondado, já o seu segundo componente é arredondado. [aI]: representado pelos grafemas <ei>, <ai>, <ey> e <ay>, como nos vocábulos eins ‘um, uma’, Mai ‘maio’, Meyer Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 301 ‘sobrenome’ e Bayer ‘bávaro’, que sempre ocorrem nas posições iniciais, médias e inais, em sílaba tônica. O ditongo [a] compõe-se de diversos elementos do [a] e do [], isto é, da passagem luída junto à articulação. [OI]: representado pelos grafemas <eu>, <äu>, <oi> e <oy>, como nos vocábulos Äußerung ‘expressão’ e Eule ‘coruja’, que sempre ocorrem nas posições iniciais, médias e inais. O ditongo [O] compõe-se de diversos elementos do [O] e do [], isto é, da passagem luída junto à articulação. O primeiro componente do ditongo é arredondado, já o segundo componente, não. Esses ditongos são apresentados, a seguir, por Delattre (1964), na Figura 7, e por Ramers (1998), na Figura 8, respectivamente: FIGURA 7 – Os principais ditongos do alemão em relação à sua coniguração acústica Fonte: Delatre, 1964, p. 81; German. 302 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 FIGURA 8 – Os ditongos no alemão padrão Fonte: Ramers, 1998, p. 36; Abbildung 7. Nessas duas imagens, podemos visualizar que, nos ditongos [a] e [], há movimento em direção à posição com alvo acústico-articulatório da vogal alta anterior não-arredondada (distendida) []. Já no ditongo [aU] há movimento para a posição posterior do trapézio vocálico, alcançando o alvo acústico-articulatório da vogal alta posterior [U]. Em vocábulos como “Spanien [Espanha], Linie [linha], Studium [curso superior] e Grobian [grosseiro]” (RAMERS, 1998, p. 37), é recorrente a realização com glide [j] + vogal silábica, dependendo principalmente da velocidade de fala. Junto a essa realização, também observamos a realização da variante silábica [] + vogal silábica – a distribuição das vogais em duas sílabas separadas, formando, portanto, um hiato, que costuma ser evitada em muitas línguas. Analogamente, os exemplos apresentados pelo autor, “manuell [manual], Linguistik [Linguística], Ritual [ritual], Kloake [cloaca]”, com a realização ‘glide [w] + vogal silábica’ co-ocorre com a variante ‘vogal silábica + vogal silábica’. Essa variação parece sugerir que subjacentemente se trata de vogais altas, que podem oscilar com realizações de glides, sobretudo em fala rápida. Podemos concluir, brevemente, que os glides no AP parecem ocorrer categoricamente como tal apenas em posição de ditongo decrescente, isto é, são recorrentes nessa posição. O fato de não poder haver alongamento vocálico em um contexto como esse parece indicar que esse elemento faz parte do núcleo silábico. Voltaremos a essa questão mais adiante. Vejamos, na próxima subseção, como podemos analisá-los na estrutura silábica do alemão. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 303 4 Análise do glide [j] na estrutura silábica do alemão padrão Na Seção 1, apresentamos a representação da sílaba nas línguas naturais. Nela, a posição central da Rima (R) é o núcleo (N), que é governado pela primeira. Para podermos tratar dos glides na estrutura silábica do alemão, devemos, primeiramente, compreender como o núcleo da sílaba funciona nessa língua. Assim, devemos nos atentar para o fato de que existem algumas restrições na posição de núcleo (Nukleus: Kern) em alemão: somente elementos com o traço [+soante] são permitidos nele, ou seja, vogais, glides e demais soantes (nasais e líquidas), enquanto as obstruintes e laringais podem permanecer somente na posição de onset ou de coda. Essa constatação valida, sobretudo, a divisão entre núcleo e coda. Para sequências no núcleo, valem as seguintes restrições de competição: após vogais na primeira posição do núcleo, somente os glides [j] e [w] são permitidos (como podemos observar nos ditongos [aj], [aw] e []), além do r-vocalizado, transcrito foneticamente como [6^]. Em contrapartida, após vogais no núcleo, qualquer consoante pode ocorrer na posição de coda (RAMERS, 1998, p. 102). A análise de Ramers (1998), entretanto, ao menos no tocante ao r-vocalizado, não nos parece apropriada, pois esse elemento pode aparecer depois de vogais longas, diferentemente dos glides (ver a discussão em Mücke (1997), a seguir). Se adotarmos a concepção de que o núcleo do alemão tolera até duas moras, o que a inexistência de glides seguindo vogais longas parece indicar, ao r-vocalizado apenas sobra a coda. A seguir, ao se tratar da quantidade de posições esqueletais no núcleo da sílaba do alemão, como já apresentamos, somente dois elementos são permitidos, segundo Ramers (1998). As exceções, nesse caso, dizem respeito possivelmente às sequências [jaj] e [jaw], em vocábulos como jein (cruzamento vocabular de ‘ja’ e ‘nein’) e jaulen ‘ganir’, quando o primeiro segmento [j] tem valor de glide (no núcleo) e não como fricativa [] (no ataque silábico). Novamente, discordamos da posição de Ramers (1998), pois, na nossa visão, o glide à esquerda da vogal ocupa o lugar de onset. Para defender essa posição, temos pelos menos dois argumentos fonológicos: 1) o cruzamento de ja e nein resulta em jein, o que indica que o j ocupa a mesma posição do n em nein, ou seja, o onset; 2) se o onset não fosse ocupado em palavras como jaulen e jein, haveria a propensão 304 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 para a oclusão glotal, fenômeno bastante recorrente em sílabas alemãs desprovidas de onset (acht ‘oito’, por exemplo), sobretudo as iniciais, mas que não ocorrem nesses contextos: *?jaulen, *?ja. Isso sugere que em jaulen e ja o onset já esteja ocupado. A Fonologia CV (CV Phonology), desenvolvida por Clements e Keyser (1983), apresenta um tratamento que se distancia da visão de Kahn (1976), no sentido de que aqueles propõem uma camada intermediária que governaria os segmentos ailiados à sílaba. Nesse modelo, segundo Clements e Keyser (1983, p. 8), introduz-se “uma terceira camada na representação da sílaba que intermedeia a camada da sílaba e a camada segmental”13 (tradução nossa), que os autores chamam de camada CV. Os elementos nessa camada diferenciam picos (núcleos) silábicos de elementos das margens: segmentos dominados por V são interpretados como núcleos silábicos; aqueles dominados por C, como não nucleares (onsets e codas). Uma das consequências dessa análise é a possibilidade de descartar o traço [±silábico], que, na análise linear de SPE,14 era o responsável pela silabicidade (ou assilabicidade) dos segmentos, ou seja, pelo status desses de serem núcleo ([+silábico]) ou margens ([-silábico]) da sílaba. Considerando isso, tendo como base a análise proposta por Mücke (1997), a posição dos glides na estrutura interna da sílaba do alemão padrão sugere discussão. Ainda segundo Mücke (1997, p. 80), admitindo-se a posição dos subconstituintes do núcleo silábico, resultam, dessa maneira, dois problemas a respeito dos glides no alemão: – Primeiro problema: o núcleo tem, no máximo, duas posições: o alemão não tem tritongos. Assim, os glides não ocorrem antes de vogais no núcleo ou após ditongos ou vogais longas. Se há ou não glides precedentes de vogais, isto ainda não se sabe; a duração subjacente de algumas vogais deve ser, portanto, neutralizada antes da posição do glide-/r/ para que não se exceda a restrição da quantidade do núcleo. (MÜCKE, 1997) “[we introduce] a third tier in syllable representation which mediates between the syllable tier and and the segmental tier [and which we call the CV-tier].” 14 Sigla para The Sound Pattern of English, Chomsky e Halle (1968). 13 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 – 305 Segundo problema: o valor diverso dos glides pré- e pós-vocálicos na estrutura da sílaba. Posto que o glide pós-vocálico está associado ao subconstituinte obrigatório – o núcleo – então ele não pode ocupar mais a posição da borda da extremidade (a posição da coda silábica) e contará para o núcleo da sílaba. No entanto, não é claro, ainda, o motivo pelo qual um glide pré-vocálico deve pertencer ao onset da sílaba e, em contrapartida, o glide pós-vocálico à posição de núcleo. Isso representa um peso desigual dos segmentos de mesma sonoridade. O vocábulo <jein>, apresentado abaixo, na Figura 9, serve de exemplo. FIGURA 9 – <jein> Fonte: Mücke, 1997, p. 81; Ilustração 58(a)). Na representação desse cruzamento vocabular de ja ‘sim’ + nein ‘não’, formando, portanto, o vocábulo “jein”, podemos visualizar o glide /j/ em posição de onset (ataque silábico), precedendo a vogal /a/, em posição de núcleo da sílaba, juntamente com a vogal alta assilábica //. Consequentemente, devido ao fato de a sílaba, na estrutura fonológica do AP, permitir somente dois elementos na posição de núcleo, torna fonologicamente inaceitável introduzir o glide /j/ na posição pré-vocálica de núcleo silábico. Haveria, com isso, uma posição de núcleo vocálico composta, exclusivamente, de três elementos (CVC). Essa assimetria, exposta por Mücke como o primeiro problema para a posição dos glides, não nos parece algo de difícil solução. Considerando que o AP seja uma língua que requer onset em sua 306 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 estrutura silábica, qualquer glide à esquerda estará mais propenso ao onset. Comportamento distinto terá o glide à direita, pelo que teremos uma segunda mora associada ao núcleo silábico, algo suportado pela estrutura silábica do AP. Na Figura 10, abaixo, podemos veriicar o vocábulo ‘Fjord’, na estrutura hierárquica da sílaba do alemão. Nela, observamos que o glide /j/ aparece na posição de ataque silábico após a fricativa labiodental surda /f/. Já na posição de núcleo silábico, há a vogal posterior //, seguida da vogal central baixa /6/ (r-vocalizado), em posição pós-vocálica de núcleo silábico. Por im, ocorre a realização da consoante plosiva /t/em posição da coda simples, como se pode observar: FIGURA 10 – <Fjord> Fonte: Mücke, 1997, p. 81; Ilustração 58(b)). Segundo Mücke (1997), a vogal central baixa /6/ está na segunda posição (C) de um núcleo complexo, como podemos visualizar acima. A análise alternativa seria inseri-lo na posição de coda complexa, precedendo, assim, a consoante plosiva /t/. Argumentos para uma ou outra análise estão fora do escopo deste trabalho. Teríamos, por conseguinte, outra representação silábica hierárquica para o mesmo vocábulo, que também não feriria a escala de sonoridade. Já em relação à “abertura da sílaba”, por assim dizer, baseando-se em Neef (1996, p. 66 apud MÜCKE, 1997, p. 86), somente o elemento mais sonoro pode iniciar a posição de núcleo da sílaba em alemão (consequentemente, isso faz os glides pré-vocálicos serem “movidos” para a posição de ataque silábico). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 307 Essa característica é, para nós, resultado da obrigatoriedade de onset no AP. Wiese (1996, p. 236 apud Ib., p. 81), por sua vez, airma e reforça, também, o seguinte: “[...] todos os on-glides são consoantes, assim como obstruintes e algumas soantes, ao passo que os off-glides são vogais.”15 Além desse exemplo, exibido na Figura 10, retirado de Mücke (1997), traremos à discussão vocábulos como Spanien ‘Espanha’, Italien ‘Itália’, Brasilien ‘Brasil’, Linie ‘linha’. Esses vocábulos apresentam certa peculiaridade, pois têm a vogal alta //, antecedendo uma vogal não alta. As divisões silábicas propostas pelo Dicionário Duden (2015)16 online, para ‘Spanien’ e ‘Italien’, por exemplo, são ‘Spa.ni.en’17 e ‘Ita.li.en’,18 embora a mesma fonte forneça as seguintes transcrições: [an^@n] e [ital^@n], respectivamente. Apesar de a separação vocabular apresentada pelo Duden sugerir a existência de três sílabas nessa palavra ([an@n]), de acordo com a transcrição fonética apresentada pelo mesmo dicionário, existem apenas duas sílabas em ‘Spanien’: [a] e [n^@n], fato indicado pela assilabicidade da vogal alta.19 Nessa transcrição, podemos observar que a vogal alta é interpretada como vogal assilábica e, por estar precedendo o Schwa [@], só pode estar na posição pré-vocálica de núcleo silábico (do contrário, ela não poderia ser vogal assilábica). Parece-nos que temos um paradoxo aqui: como uma vogal transcrita assilabicamente pode constituir núcleo silábico? Nossa proposta seria a possível transcrição fonética [anj@n] com apenas duas sílabas, isto é: [a] e [nj@n], na qual o glide [j] ocorre na posição de segundo elemento de um onset complexo. Essas transcrições podem parecer não muito diferentes entre si em suas realizações fonéticas, mas sugerem relações distintas entre os constituintes silábicos. Em outras palavras, não seriam meramente variantes notacionais, mas indicariam como o AP se estrutura silabicamente. Wiese (1996, p. 236 apud MÜCKE, 1997, p. 81): “In other words, all on-glides are consonants, some obstruents and some sonorants, while all off-glides are vowels.” 16 http://www.duden.de 17 http://www.duden.de/rechtschreibung/Spanien 18 http://www.duden.de/rechtschreibung/Italien 19 É provável que haja variação em termos de assilabicidade da vogal alta e, consequentemente, no número de sílabas, mas não trataremos dessa variação aqui. 15 308 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 O mesmo podemos dizer dos vocábulos Brasilien, Linie etc., estando o glide na fronteira da segunda para a terceira sílaba. E, por im, como Mücke (1997, p. 74) reforça: “Os glides não são, somente foneticamente, vogais breves e assilábicas. Eles podem, também fonologicamente, ser derivados, com base no modelo derivacional, das suas respectivas vogais altas, como exempliicado, a seguir, em Wiese (1996) e Hall (1992)”:20 (1) [j] respectivamente [I^] como variante do // /a/ > [a^] respectivamente /a/ > [aj] Veriicamos, por conseguinte, pela representação acima, que a mesma vogal assilábica [^] parece ser intercambiável com o glide [j]. Isso nos permite airmar que, na estrutura fonológica subjacente, não haveria o glide, mas a vogal alta [] breve. Essa solução é muito mais corriqueira, se pensarmos na situação do glide fonético à direita da vogal. Entretanto, mais algumas considerações devem ser feitas acerca da vogal alta/glide à esquerda, para sondarmos a possibilidade de eliminarmos o glide da subjacência. É isso que veremos na próxima Seção. 5 O glide na sílaba do alemão: uma análise pela TO De maneira geral, diz-se que o glide faz parte do sistema fonológico do alemão (RAMERS, 2007). A pergunta que se coloca é se haveria necessidade de postular subjacentemente esse elemento como um glide/ aproximante ou se é uma vogal com saída fonética de glide. Investigamos, nesta Seção, se é possível dar conta, em uma análise otimalista, da diferença em alemão entre um input vocálico e um output glide e sua posição na sílaba, ou seja, como resultado de um ranqueamento de restrições. Diferentemente de modelos predecessores, a Em alemão: “Nicht nur phonetisch sind ‘Glides’ kurze, nichtsilbische Vokale. Sie können auch phonologisch im Rahmen von derivationellen Theorien von den entsprechenden hohen Vokalen abgeleitet werden, wie beispielweise bei WIESE (1996) und HALL (1992).” (MÜCKE, 1997, p. 74): (44) [j] bzw. [^] als Variante von // /a/ > [a^] bzw. /a/ > [aj] 20 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 309 TO prevê um modelo de gramática, na qual operam restrições universais, cuja importância – expressa pela hierarquia – é particular de línguas individuais. A TO não faz asserções especíicas sobre os formatos da sílaba, por exemplo, utilizando-se, nesse particular, dos achados e discussões encontradas em outras teorias. Em relação a essas teorias, costuma diferir basicamente pelo fato de que regras e princípios, como tais, são abandonados em razão de restrições. Retomando algumas discussões realizadas anteriormente, podemos investigar primeiramente se é possível considerar que o glide pré-nuclear seja subjacentemente uma vogal. Assim: (2) /ia/  [ja]21 Antes de prosseguirmos com essa discussão, vale ressaltar que, conforme já dissemos, consideramos que o glide pré-nuclear, como em ja ‘sim’, está na posição de onset, não se tratando de um elemento nuclear. Para essa assunção, arrolamos dois argumentos. O primeiro é que, no AP, em sílabas como a única de acht ‘oito’, desprovidas de onset, ocorre a epêntese glotal [?axt]; o mesmo não ocorre com palavras como jacht ‘iate’, que é realizada como [jaxt], não *[?^axt]). Sendo assim, podemos dizer que há, no AP, uma restrição alta que proíbe realizações sem onset. Outro argumento vem do cruzamento vocabular de ja ‘sim’ + nein ‘não’ = jein. O resultado desse cruzamento é a realocação de [j] no lugar de [n], este último indiscutivelmente onset. Se o [j] izesse parte do núcleo, o cruzamento deveria ser *njein [nja^n] (ou *[n^a^n]), o que não ocorre. Acrescentamos também que nossas representações nos tableaux utilizados nessa Seção demonstram a silabação (.), mas a constituição da sílaba indica se o glide está no onset ou no núcleo (formando ditongo crescente), assim: Em nossa representação, o glide [j] é um elemento de função consonantal, igurando na borda da sílaba, ao passo que o símbolo [] representa uma vogal alta pré- ou pósnuclear, em um núcleo dominado por uma vogal de maior sonoridade. Vale lembrar que o mapeamento de uma vogal alta anterior e um desses elementos não coniguram violação de idelidade, uma vez que suas conigurações apenas se referem à sua posição na sílaba, não à qualidade do segmento em si. 21 310 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 (3) Representações silábicas de Jacht: a) b)   R R O O N   ^ C a x N t j a C x t A seguir, fazemos uma análise otimalista sobre a formação do glide e sua posição na estrutura do AP, a partir de uma vogal alta subjacentemente, testando a viabilidade dessa hipótese, em uma abordagem baseada em restrições. Como em ja o glide está na posição de onset, podemos pensar nas seguintes restrições que atuariam nessa conformação silábica: (4) onset: assinale violação a cada sílaba desprovida de onset (PRINCE; SMOLENSKY, 1993). (5) sonfall: dada uma sequência tautossilábica, bimoraica de segmentos, atribua uma marca de violação caso a sonoridade do segmento mais à direita seja maior do que a do segmento mais à esquerda. (cf. ROSENTHALL, 1994; CARVALHO, 2014). (6) complexonset: assinale uma violação a onsets com mais de um segmento (KAGER, 1999). (7) dep-IO: todo segmento no output tem um correspondente no input; proibida a epêntese (McCARTHY; PRINCE, 1995). (8) ident [voc]: assinale marca de violação caso haja discrepância referente ao valor do traço [vocálico] (seguindo McCarthy (2008)). 311 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Nesse caso, seguindo Padget (2008), estamos considerando que há distinção entre [i, u] e [j, w] no que se refere ao traço [vocálico],22 sendo os dois primeiros valorados positivamente quanto a esse traço, e os últimos, negativamente. Isso signiica que a restrição ident [voc] é dominada no AP, conforme veremos adiante. A seguir, vemos um tableau combinados23 para o input /iaxt/ ‘iate’, que apresenta status de vogal (ou seja, [+vocoide]) para o segmento em análise aqui; na sequência, vemos um tableau combinado para / ird/ ‘iorde’. (9) Tableau combinado para /iaxt/ Jacht ‘iate’ /iaxt/ jaxt onset a i.axt **W b.^axt *W sonfall *componset *W *W c.?^axt dep-io ident(voc) * L * *W * (10) Tableau combinado para /ird/ Fjord ‘iorde’24 ird fjrt24 a. fi.rt b. f^rt c fi?rt onset sonfall dep-io *W *W *W *componset * L L L ident[voc] * *L * Como lembra Padgett (2008), essa restrição conlita com a restrição *P/j, que proíbe que glides sejam núcleos de sílaba, havendo mesmo a necessidade de postular a dominância *P/j>>Ident (voc) como universal. 23 O tableau combinado (McCARTHY, 2008) é uma junção do tableau avaliativo tradicional e o comparativo (PRINCE, 2002); este nos indica argumentos para o ranqueamento de restrições. O W no tableau indica que a restrição favorece, comparativamente ao candidato na mesma linha, o candidato selecionado (ou Winner, ‘ganhador’); o L indica que aquela restrição favorece o perdedor (ou Loser). De modo geral, um W à esquerda de L indica a dominância entre as restrições nas respectivas colunas. 24 Não é parte da discussão nesse texto, mas o desvozeamento inal de obstruentes em línguas como o alemão (e holandês, russo, polonês, entre outras) pode ser analisado, em uma abordagem otimalista, como decorrente da relação de dominância *VoicedCoda>> Ident-IO (voz). Ver Kager (1999, p.40-41). 22 312 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 A restrição Dep-IO milita contra a epêntese. Sabemos que a epêntese (da oclusiva glotal) pode ocorrer no AP para providenciar onset em sílabas desprovidas desse elemento, fato demonstrado, por exemplo, pelo mapeamento /axt/[axt] ‘oito’. Por conta disso, temos como dada a relação de dominância onset >> Dep-IO (ALBER, 2001). A restrição sonfall evita ditongos crescentes, o que está de acordo com a inexistência de epêntese glotal em palavras como ja e Jacht. O candidato a comete duas violações de onset. Note-se que essa formação seria a preferida por falantes de Português Brasileiro, por exemplo (como é o caso da adaptação de yatch (ing.), em boa parte dos dialetos do PB: [i.a.t]). Um item como b em (9) violaria não apenas sonfall, como também onset. Note-se também que o hiato é a forma preferida para a adaptação do item fjord (norueguês) no PB: [fi.]rde. Pelo que podemos ver aqui, é possível dar conta da posição do glide pré-nuclear na estrutura silábica do alemão, considerando que ele seja subjacentemente uma vogal alta /i/ em casos como em Jacht e Fjord, resultando na superfície glides em onset. Como dito anteriormente, uma das principais evidências para essa assunção é a inserção de epêntese glotal para sílabas desprovidas de onset. No tableau (9), podemos ver as relações de dominância onset, sonfall >> ident(voc). Já no tableau (10), vemos que Dep-IO, onset e sonfall devem dominar *componset. Não há motivos para hierarquizar onset e sonfall, o que nos leva a crer que devam estar no mesmo patamar hierárquico. Para mostrar que a ortograia pode ser um complicador nesses casos, vamos analisar itens grafados na ortograia oicial com a vogal alta, como os já citados anteriormente Italien, Spanien e Brasilien. (11) Tableau combinado para Spanien ‘Espanha’ /ani@n/  a[nj@n] ons a a[ni@n] b. a[n^@n] *W c a[ni?@n] sonfall dep-io *W *W *componset * L ident(voc) * L * Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 313 Em (11), nota-se, a partir de Ws à esquerda de Ls, que as restrições onset e sonfall devem dominar *componset. Em outras palavras, é melhor incorrer em violação da complexidade em onset que ter um ditongo crescente ou ter um hiato. De fato, o alemão é uma língua bastante permissiva quanto à formação de clusters, quer em onset, mais fortemente, quer em coda. Sendo assim, é possível detectar convergência nos tipos abordados e oferecer tratamento uniicado de uma vogal alta subjacente ser realizada foneticamente como glide, avaliada como estando na posição de onset – simples ou complexo. Para isso, é necessário admitir que a hierarquia de restrições seria onset, sonfall >> dep-io >> *complexonset, ident(voc). Em outras palavras, o mapeamento de /i/  [j] é tolerado no AP para uma vogal alta que anteceda outra de maior sonoridade, uma vez que essa língua requer onset (e tolerando-o complexo), como forma de evitar a epêntese, e proíbe o ditongo crescente. Ressalte-se que, como dito, consideramos que a ausência de epêntese de glotal em itens como Jacht seja evidência de que a o glide esteja em onset. Embora não seja tão evidente se em itens como Spanien o glide seja parte de um onset complexo ou forme um elemento prévocálico dentro do núcleo, a nossa assunção de que seja a primeira situação decorre do fato de que o alemão é uma língua muito permissiva ao onset complexo. Essa assunção também dá um tratamento uniicado à formação do glide e sua posição na sílaba do AP. Experimentos e o comportamento em jogos linguísticos poderiam indicar se as previsões dessa assunção estão corretas. Com relação às vogais altas /i/ e /u/ pós-nucleares, a restrição sonfall não as proíbe como participantes do núcleo, o que permite a existência de ditongos decrescentes no AP. Por im, colocamos um tableau avaliativo, mostrando a hierarquia. (12) Tableau avaliativo para /iaxt/ Jacht ‘iate’ /iaxt/ a. jaxt b. i.axt c. ^axt d. ?^axt onset *!* *! sonfall dep-io *! *! * *componset ident[voc] * 314 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 (13) Tableau avaliativo para /fird/ Fjord ‘iorde’ fird a. fjrt b. firt c. f^rt d. fi?rt onset sonfall dep-io *componset * ident[voc] * *! *! *! No tableau avaliativo (12), para Jacht, podemos ver que o candidato a é o único que respeita as duas restrições mais altas da hierarquia, onset e sonfall, apesar de violar a restrição que milita contra a discrepância entre input e output, no que se refere ao traço [±vocálico]. Ainda nesse tableau, sonfall parece não desempenhar papel relevante, uma vez que o candidato d já estaria barrado por dep-io e c, por onset. Quanto ao item Fjord, no tableau (13), não há fortes evidências para a opção entre [fj]rd e [f^]rd (essa barrada exclusivamente por sonfall), que vão além de uma abordagem uniicada entre itens como Jacht e Fjord e a grande tolerância do AP à complexidade em onset. Em um diagrama de Hasse, teríamos: (14) Hierarquia (em diagramas de Hasse) Diagrama de Hasse (I) 315 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Diagrama de Hasse (II) Nos diagramas de Hasse apresentados acima, vemos duas possibilidades. No primeiro diagrama, vemos a hierarquia sem sonfall. Essa hierarquia dá conta do fato de que o glide se realize no onset em itens como Jacht ‘iate’ e ja ‘sim’. Em outras palavras, sonfall não desempenha papel importante para esse caso. No caso de itens como Fjord ‘iorde’, temos a possibilidade de interpretar o glide como: (a) elemento pré-nuclear ou (b) integrante do onset complexo. Caso sonfall seja admitida na hierarquia na posição que indicamos aqui, o glide será avaliado como (b); caso contrário, seria possível ser avaliado como (a). Defendemos que sonfall integra esse ponto da hierarquia, sobretudo porque (1) essa análise assegura a alta tolerância do AP ao onset complexo; além disso, (2) haveria uma abordagem uniicada para itens como Jacht e Fjord. 6 Considerações inais Defendemos, neste artigo, a retirada do status do glide anterior na representação subjacente do alemão. No lugar desse segmento, haveria apenas a vogal alta equivalente. A ocorrência de glides na superfície deve ser atribuída à hierarquia, resolução de conlitos entre restrições violáveis, como prevista em uma análise otimalista. A formação do glide e a consequente posição dessa vogal alta na sílaba também é determinada por essa hierarquia. 316 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Em relação aos problemas citados por Mücke (1997), reproduzidos anteriormente, podemos dizer que, em relação ao primeiro problema, glides pré-vocálicos são pertencentes ao onset, não ao núcleo, o que exclui a possibilidade de existência dos assim chamados tritongos no AP. Glides pós-vocálicos fazem parte do núcleo, a menos que este já tenha dois elementos, como podemos ver pelo fato de vogais longas serem evitadas antes de glides. Em relação ao segundo, a assimetria em relação à posição dos glides pré- e pós-vocálicos – o primeiro fazendo parte do onset e o segundo, do núcleo – decorre da alta posição na hierarquia da restrição que requer onset no AP e à proibição de dois elementos no núcleo, sempre que a sonoridade do primeiro elemento for menor que o seguinte. No que se refere à marcação de constituintes silábicos, essa assimetria pode ser decorrente da assimetria existente entre esses constituintes: o onset (exigido em muitas línguas; proibido por nenhuma) e a coda (proibido em muitas línguas). Também defendemos aqui que o glide à esquerda da vogal ocupa o lugar de onset. Para justiicar essa posição, trouxemos à baila duas evidências fonológicas: 1) o cruzamento de ja ‘sim’ e nein ‘não’ resulta em jein (cruzamento vocabular de ‘sim’ e ‘não’), o que indica que o j ocupa a mesma posição do n em nein, ou seja, o onset (*njein); 2) se o onset não fosse ocupado em palavras como Jacht, jaulen e jein, haveria a propensão para a oclusão glotal, fenômeno bastante recorrente em sílabas alemãs desprovidas de onset (como em acht ‘oito’ [?axt]), sobretudo as iniciais, mas que não ocorrem nesses contextos: *? jaulen, *? ja. Isso sugere que em jaulen e ja o onset já esteja ocupado. Esse fato pode ser atribuído à alta posição, em AP, da restrição onset. A grande tolerância à complexidade em onset no alemão nos leva a postular que a restrição componset seja dominada por sonfall. O AP tolera epêntese para o preenchimento do onset (onset >> dep-IO), mas não se houver a possibilidade de ser providenciado onset a partir de segmento subjacente, mesmo que o onset se torne complexo; por esse motivo dep-IO>>componset. Considerando que a distinção entre [j] e [i] (e entre [w] e [u]) pode ser o traço [vocálico], seguindo Padgett (2008), em línguas como o alemão apenas emergem segmentos com o traço [-vocálico] (glides), por conta de a restrição ident(voc) ser dominada por onset e por sonfall. Defendemos que sonfall atue no AP, sobretudo porque (1) há forte tolerância do AP ao onset complexo e porque, com isso, (2) atinge-se uma abordagem uniicada para itens como Jacht e Fjord. 317 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 285-319, 2018 Agradecimentos Agradecemos às sugestões enriquecedoras dos pareceristas anônimos. Os erros residuais são de nossa responsabilidade. Referências ALBER, Birgit. Regional variation at edges: glottal stop epenthesis and dissimilation in Standard and Southern varieties of German, 2001. Disponível em: <http://roa.rutgers.edu/iles/417-0900/roa-417-alber-1. pdf>. BLEVINS, Juliette. Syllable in phonological theory. In: GOLDMISTH, John (Ed.). The Handbook of Phonological Theory. Cambridge: Blackwell Publishers, 1995. p. 206–244. BRENNER, Koloman; HUSZKA, Balázs; WERK-MARINKÁS, Csaba. Deutsche Phonetik: Eine Einführung. Budapest – Veszprém: Bölcsész, Konzorcium, 2006. BROCKHAUS, Wiebke. The syllable in German: Exploring an alternative. In: HULST, Harry van der et al. The syllable: Studies in Generative Grammar 45. Berlin, New York: Mouton de Gruyter, 1999. p. 169-218. CARVALHO, Fernando O. de. Disparidades entre Input e Output em sequências vocálicas: equilibrando contraste e marcação nas gramáticas das línguas naturais. 2014. 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Participaram da pesquisa cinco turmas do ensino fundamental (3º, 5º e 7º anos), da Rede Pública de Pernambuco, que vivenciaram uma sequência didática relacionada ao gênero “carta de reclamação”. Analisaram-se 37 textos produzidos ao inal das atividades. Os textos foram agrupados pela relação entre a paragrafação e a argumentação. Os resultados sinalizaram que os alunos são capazes de construir parágrafos e atribuir um sentido lógico a essa divisão. Em relação à argumentação, muitos conseguiram produzir justiicativas e alguns até chegaram a contra-argumentar. No entanto, até mesmo aos alunos que já tenham um domínio maior nessa esfera – de forma intuitiva ou não – a escola precisa garantir um tempo pedagógico para ajudá-los a avançar em seus conhecimentos e a superar suas diiculdades. Palavras-chave: paragrafação; argumentação; cartas de reclamação. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.321-353 322 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Abstract: In this article we to verify how the paragrafation and the argumentation take place in different elementary school. Five classes of elementary school (3, 5 and 7 years) of Pernambuco’s Public Network attended this research and experienced a didactic sequence involving gender “letter of complaint”. 37 texts produced at the end of the activities were analyzed. We grouped the texts by the relationship between the paragraphing and argumentation. The results signaled that the students are able to construct paragraphs and assign a logical sense of this division. Regarding the argument, many are able to produce justiications and some of them even to argue. Even the students demonstrating to possess such knowledge, either intuitively or unconsciously, the school needs to ensure a teaching time to help them advance in their knowledge and overcome their dificulties. Keywords: paragraphing; argumentation; complain letter. Recebido em 30 de novembro de 2016. Aprovado em 19 de abril de 2017. Há muito se tem discutido a importância de um trabalho mais sistemático com textos em sala de aula. Essa sistematização passa a ser considerada como ponto de partida para que os alunos sejam estimulados a reletir sobre vários aspectos referentes a sua língua materna, importantes na formação de bons leitores e produtores de textos. Assim sendo, todas as dimensões textuais que fazem parte das ações de linguagem – entre elas, a paragrafação – precisam ser objeto de estudo na escola. De acordo com os estudos desenvolvidos por Bessonnat (1988), o parágrafo em si não é considerado, por muitos estudiosos, como uma unidade semântica pertinente do texto que teria seu lugar na hierarquia canônica (palavra-frase-texto). Por isso, quando as gramáticas de texto sentem a necessidade de tomar uma unidade maior que a frase, geralmente acabam não usando a noção de parágrafo, mas determinam unidades mais largas como sequências, macroestrutura ou episódio. Por outro lado, quando o parágrafo é tomado para análise, airma o supracitado autor, quase sempre é tratado isoladamente, gerando um problema de articulação do texto. Mesmo assim, “o parágrafo parece ser um dado textual aceito por todos e raramente questionado em si mesmo.” (BESSONNAT, 1988, p. 81). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 323 Por considerarmos a habilidade de paragrafar relevante, buscamos veriicar como a paragrafação e a argumentação se realizam em diferentes etapas do ensino fundamental. Na primeira parte do texto, discutiremos a paragrafação. Logo em seguida, o foco será a argumentação, mais especiicamente o gênero argumentativo “carta de reclamação”. Por im, apresentaremos informações metodológicas da pesquisa realizada e os principais resultados da análise realizada. 1 Estudos sobre paragrafação Para melhor discutirmos o tema do nosso artigo, buscamos nos apoiar em estudos teóricos e práticos que pudessem contribuir, de alguma forma, para compreendermos como a paragrafação se caracteriza, qual a relação entre a habilidade de paragrafar e o desenvolvimento da competência leitora e a formação de escritores experientes e como a paragrafação é apropriada pelas crianças. Essas relexões iniciais nos permitem também tecer algumas breves considerações sobre o ensino da paragrafação. Assim, no primeiro movimento de escrita desta seção discutiremos as possíveis relações entre leitura, escrita e paragrafação. Em seguida, apresentaremos dados de pesquisas que nos ajudam a melhor compreender a apropriação da paragrafação pelas crianças e a pensar sobre seu ensino. 1.1 Estudos sobre paragrafação na leitura e na escrita Ao ler um texto, o leitor tem o desaio de tentar desvendar o sentido pretendido pelo autor e, com base nisso, estabelecer suas próprias relações, construindo outros sentidos possíveis. Nesse movimento, o texto, material concreto dessa interação, terá grande relevância. Para Kato (1995, p. 72), “o texto-produto é visto como um conjunto de pegadas a serem utilizadas para recapitular as estratégias do autor e através delas chegar a seus objetivos”. Assim, entender o porquê de o autor ter organizado o texto de determinada forma, descobrir as relações que ele quis estabelecer entre as partes do texto, perceber o encadeamento das ideias conseguido é fundamental nessa construção de sentidos. Notamos, portanto, que há uma íntima relação entre parágrafo e leitura. Bessonnat (1988) argumenta que há ao menos três funções básicas do parágrafo, e todas elas estão relacionadas à leitura. São elas: 1) facilitar a leitura; 2) programar a leitura; 3) dialogar (escritor e leitor). 324 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Sobre a primeira função sinalizada, Bessonnat (1988, p. 85) esclarece: A distribuição em parágrafos é um instrumento que facilita a leitura: – A alínea assinala ao leitor que este acaba de tratar de uma unidade de sentido e que vai passar a uma próxima unidade . – A alínea permite ao olho descansar e gravar as informações contidas no parágrafo anterior antes de tratar do conjunto seguinte. Assim, os parágrafos ajudam o leitor na tarefa de descobrir as unidades de sentido de um texto, de armazenar as informações e, ainda, proporcionam uma pausa (pequena) para descanso durante a leitura. A segunda função – programar a leitura – se coniguraria como um meio de quebrar a organização linear do texto (leitura frase por frase): “no quadro de uma progressão temática derivada, os parágrafos se constituem em muitas gavetas sucessivas, anunciadas pelo tema geral inicial, autorizando uma leitura tabular e não simplesmente linear” (BESSONNAT, 1988, p. 85). É preciso, então, entender esses blocos de sentidos e relacioná-los. Essa divisão do texto e o estabelecimento de ligações entre suas partes não se dá de forma aleatória. O leitor/escritor precisa encontrar uma lógica para tudo isso, conforme salienta também Abarca e Rico (2003): Para que o processo de ligação se realize adequadamente, o leitor/ escritor não deve ligar as frases do texto de qualquer maneira, mas deve-se ligá-las de forma que se vá construindo ao mesmo tempo o que Van Dijk e Kintsch (1983) chamam de macroestrutura do texto, isto é, uma estrutura hierárquica a partir das relações semânticas entre as ideias do texto (p. 142). Como é possível perceber, todo esse movimento é, sobretudo, dialógico, fruto de uma negociação entre escritor e leitor. Acreditamos que, ao elaborar um texto, o escritor lança mão de vários recursos para indicar possíveis sentidos textuais que precisam ser construídos pelo leitor. O leitor, por sua vez, apoia-se nas pistas deixadas pelo autor do texto para fazer essa construção. Por isso, atualmente, segundo Yunes, a leitura é considerada um processo interativo entre leitor e escritor: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 325 Cada texto constitui uma proposta de signiicação que não se acha fechada e inteiramente concluída, porque se destina ao outro, no caso, o leitor. O sentido se dá no encontro dos olhares de um e outro, autor/leitor e leitor/autor. Porque cada um carrega seus acervos e repertórios que vão se cruzar e atualizar no ato da leitura (YUNES, 2009, 53). A terceira função de um parágrafo, destacada por Bessonnat (1988), é justamente a de favorecer o diálogo entre esses sujeitos da interação. Apoiando-se nas ideias de Bakhtin, o referido autor comenta que os parágrafos seriam como respostas sucessivas aos questionamentos do interlocutor (ictício) do texto. Para reforçar sua posição, ele recorre a esta citação de Bakhtin (2002, p.141): Indo cada vez mais na essência linguística dos parágrafos, nós nos convenceremos de que, em alguns de seus traços essenciais, eles são análogos às replicas de um diálogo. São, de uma certa forma, diálogos enfraquecidos e transformados em enunciaçõesmonólogos. Na base da divisão do discurso em partes, denominadas parágrafos na sua forma escrita, encontra-se o ajustamento às reações previstas do ouvinte ou do leitor. Quanto mais fraco o ajustamento ao ouvinte e a consideração das suas reações, menos organizado, no que diz respeito aos parágrafos, será o discurso. Fortalece-se, portanto, a ideia de que um texto paragrafado colabora com o leitor, uma vez que permite um melhor acompanhamento do desenvolvimento das ideias, em seus diferentes estágios. Os parágrafos, então, podem ser entendidos como prateleiras que dividem uma sequência de informações, organizando-as de forma lógica. Da mesma forma que encontramos contribuições importantes para o leitor, compreender o papel do parágrafo também se torna fundamental para o escritor. Como já ressaltamos anteriormente, sempre escrevemos pensando em veicular determinado sentido para nosso texto e, para tanto, tomamos diversas decisões, inclusive em relação à melhor forma de organizá-lo. Schneuwly (1988), ao formular sua teoria sobre os processos de produção textual, trata dessas tomadas de decisões e sobre as operações mentais envolvidas no ato de escrever um texto. Para esse autor, a paragrafação seria uma habilidade relacionada ao processo de textualização, responsável pela progressão do conteúdo temático do texto e pela construção das relações de continuidade, de ruptura ou de contraste dentro deste. 326 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Seriam três tipos de operações que fazem parte da textualização e que visam estabelecer as articulações hierárquicas de um texto: as operações de coesão, as de conexão/segmento e as de modalização. Interessa-nos, aqui, destacar as operações de coesão e de conexão/ segmentação, pois elas estão intrinsecamente ligadas ao nosso objeto de estudo. Essas operações seriam relativas justamente às estratégias de segmentar o discurso em partes, o que também pode ser reconhecido como uma operação de articulação, pois, ao segmentarmos as partes, salientamos unidades a serem articuladas. Para esclarecer um pouco mais o que seriam essas operações de conexão/segmentação, Schneuwly (1988, p. 40) comenta: A característica comum das operações de conexão/segmentação é, por um lado, “pontuar” o discurso, dividi-lo em partes e, ao mesmo tempo, funcionar como “cimento” que rejunta as unidades atomizadas resultantes da referenciação; por outro lado, articular essas unidades ao contexto. Sua característica formal é de agir sobre os núcleos predicativos, distribuindo-se, em consequência, no nível predicativo. Para o supracitado autor, existem diferentes tipos de marcas para separar as unidades/partes do texto. Inicialmente, ele faz referência às marcas que separam grandes blocos de enunciados, tais como os subtítulos, os boxes, a mudança de página. Depois, cita também as marcas que separam as unidades menores do texto (pontuação, marcadores gráicos diversos, operadores argumentativos), assim como os processos de subordinação e coordenação entre proposições. Bessonnat (1988, p. 93) também fala sobre essas relações de conexão/segmentação do texto, mas relete especiicamente sobre o papel dos parágrafos para essa articulação. Para ele, temos dois níveis de análise: a articulação local: ou como se opera a passagem de um parágrafo para o outro. – apertando – ou alargando o tema. – com ruptura ou reprise do tema – conforme uma estrutura de questão – resposta, de oposição, de paralelismo... Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 327 a articulação global: ou como se opera a distribuição geral do texto em parágrafos – o grau de segmentação do texto – a distribuição dos parágrafos em função da progressão temática. Outro aspecto importante referente às operações de conexão/ segmentação é a estreita ligação entre a divisão do texto em parágrafos e o ato de pontuar. Schneuwly (1988) lembra que essas duas ações têm o objetivo de delimitar ou segmentar as unidades textuais. É importante lembrar que a utilização do sistema de pontuação e a organização do texto em parágrafos funcionam em dependência estreita com outros níveis e tipos de operação. Ao pontuar e construir parágrafos, o escritor leva em conta o possível destinatário de seu texto e o objetivo da atividade de linguagem em curso, o gênero discursivo adotado para a situação interativa, o planejamento geral do texto e, inalmente, o sentido que pretende dar ao seu escrito. Constatamos, portanto, que a paragrafação é uma habilidade importante que precisa ser apropriada pelas crianças paralelamente ao estudo dos diversos gêneros textuais. No tópico a seguir, discutiremos os dados de pesquisas que nos trazem informações pertinentes sobre o desenvolvimento das crianças em relação à paragrafação. 1.2 Investigações sobre a paragrafação na escrita da criança Conhecer o processo pelo qual passam as crianças com relação ao ato de paragrafar torna-se um instrumento valioso para o professor na busca por realizar mediações pertinentes. Constatamos, no entanto, que são poucos os estudos que se dedicaram a estudar essa questão. Aqui, apresentaremos os dados de algumas pesquisas cujos resultados se convertem em informações importantes sobre as capacidades das crianças relacionadas à paragrafação. Um dos estudos que encontramos foi o realizado por Moraes (1999), no qual a autora realizou uma intervenção pedagógica e acompanhou o desenvolvimento dos alunos, ao longo desse processo. O foco do trabalho foi nos textos narrativos (ênfase nas histórias, contos e lendas). Especiicamente, a autora buscou caracterizar os diferentes modos de marcação gráica, identiicar os marcadores sintáticos mais usuais no encadeamento dos parágrafos e promover relexão sobre a eicácia de um modelo pedagógico que priorize o texto, sua análise e construção. 328 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Participaram como sujeitos vinte e oito alunos de uma escola pública do Recife, que frequentavam uma 2ª série. Tratava-se de uma turma bastante heterogênea, com alunos entre 9 e 16 anos e boa parte repetente. Desses, sete alunos estavam em níveis não alfabéticos, onze conseguiam ler apenas palavras de estrutura silábica simples (Consoante + Vogal), e dez alunos liam frases e pequenos textos, mas apresentavam diiculdades de compreensão. A intervenção realizada ocorreu durante o ano letivo de 1998 e os primeiros meses de 1999. Havia um trabalho sistemático de leitura e produção de textos, além de um trabalho voltado para a apropriação do sistema de escrita alfabética. Nas aulas, eram analisados com os alunos os elementos que compõem os textos, os efeitos de sentido, as ideias-chave e os marcadores coesivos presentes na superfície textual. Também eram realizadas perguntas relacionadas à paragrafação, tais como: “Por que o autor começou a escrever afastado do início do texto? É preciso colocar um ponto no im de cada parágrafo? Quais palavras iniciam cada parágrafo? Todos os parágrafos têm o mesmo tamanho? O autor dá sempre a mesma informação em todos os parágrafos?” (MORAES, 1999, p. 40). Além disso, houve vários momentos de produção nos quais os alunos reescreveram histórias, lendas e contos trabalhados em sala pela pesquisadora. Os textos escolhidos para análise foram construídos em seis atividades diferentes de produção textual. Moraes fez uma análise mais minuciosa das produções de quatro alunos e pôde acompanhar de perto sua evolução. Como principais resultados, a autora pôde ratificar que a constância e a diversiicação de textos, em sala de aula, assim como a exploração de elementos que os compõem são, sem dúvida, relevantes para o amadurecimento cognitivo do aprendiz em relação à produção de textos. Também pôde veriicar que, após a intervenção, algumas crianças passaram a compreender o parágrafo como unidade de composição do texto. No início, o aluno 1 não conseguiu escrever nada; o aluno 2 produziu um texto ilegível; o aluno 3 escreveu um pequeno texto, sugeriu um título e iniciou a escrita afastada da margem esquerda, porém não utilizou nenhuma pontuação e apresentou problemas de hipossegmentação (palavras escritas juntas, sem o devido espaçamento); o aluno 4 também apresentou esse problema, mas conseguiu igualmente produzir um texto. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 329 No inal da intervenção, os avanços foram nítidos e signiicativos. Os alunos 1 e 2, inalmente, conseguiram produzir textos legíveis. O primeiro escreveu um texto sem marcação externa do parágrafo (alínea) e em bloco único, porém “com coerência e exposição de mais de uma ideia, que se apresentaram sequenciadas e interligadas entre si” (MORAES, 1999, p. 51). O segundo aluno também teve avanços importantes: conseguiu fazer uso do discurso direto em seu texto, com pontuação apropriada e introduziu estratégias argumentativas. Os alunos 3 e 4 foram os que mais avançaram, porque, na verdade, eram os que já conseguiam produzir textos, mesmo com muitas diiculdades. Esses alunos, ao inal do processo, “demonstraram ter se apropriado do signiicado e do registro do parágrafo” (MORAES, 1999, p. 52). Ambos dividiram seus textos em partes de forma pertinente e com o recuo da margem esquerda, conforme é convencional. Muitas hesitações, porém, foram frequentes ao longo da intervenção, e a pesquisadora veriicou a existência de etapas na evolução das crianças. Em relação à formatação textual interna do parágrafo, Moraes (1999, p. 54) concluiu que as crianças experimentaram algumas hipóteses. Foram elas: 1) inexistência de blocos de ideias, ou seja, o aluno não dividiu o texto em partes; 2) formatação de parágrafos com ideias inconclusas, isto é, o aluno sabia que era preciso fazer a marcação do parágrafo, mas não inalizou a ideia iniciada; 3) tentativas de marcar o parágrafo por meio de quantidades semelhantes de linhas escritas: o aluno estabelece uma quantidade X de linhas para cada bloco e, independentemente de a ideia ter sido ou não concluída, ele fecha o parágrafo, ao chegar nessa quantidade. 4) agrupamento de ideias associadas num mesmo parágrafo, que seria a marcação aceita pela norma culta. No tocante à formatação externa, Moraes (1999, p. 54 e 55) pôde perceber que as crianças também diversiicaram as formas de marcação. Alguns usos interessantes foram observados, como: 330 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 1) travessão no início de cada linha escrita; 2) ponto inal antes de bloco de linhas, cujas apresentações estão numa mesma proporção; 3) travessão antes de cada grupo de linhas escritas, geralmente de extensão semelhante; 4) recuo da margem esquerda apenas na primeira linha, e todo o restante do texto sem esse afastamento. Como foi visto, à medida que as intervenções ocorriam, os alunos icavam mais desenvoltos na escrita, estabelecendo uma marcação paragráica no texto mais próxima da convencionalmente aceita, tanto em nível externo (recuo da margem esquerda) como em nível interno (agrupamento de ideias ou blocos). Outro estudo que também realizou intervenções foi o de Brande (1999). A pesquisa teve como intuito analisar, antes e após intervenção, a evolução da escrita dos textos de trinta e três crianças da segunda série do ensino fundamental. Foi possível veriicar que, no início (diagnóstico inicial), a maioria dos alunos apresentava diiculdades em escrever textos com parágrafo e pontuação adequados. Onze escreveram textos muito confusos ou sem uma lógica na organização das informações. Além disso, foi notada uma repetição excessiva dos conectivos “e” e “daí” e dos pronomes pessoais ele/ela. No decorrer do ano letivo, a pesquisadora realizou várias atividades com o objetivo de contribuir com o desenvolvimento da escrita das crianças. Após esses momentos, aplicou um diagnóstico inal e pôde perceber avanços. Vinte e sete alunos passaram a escrever textos com paragrafação e pontuação adequadas, além de apresentarem coerência e organização. As pesquisas de Moraes (1999) e Brande (1999), portanto, podem comprovar que é possível alunos das séries iniciais avançarem na questão da paragrafação textual por meio de um trabalho sistemático com os textos. Porém, acreditamos que esse avanço pode ser ainda mais signiicativo se forem acrescidas a esse trabalho relexões ainda mais especíicas sobre a paragrafação em diferentes gêneros textuais. A pesquisadora Rocha (1996) realizou um estudo que nos trouxe contribuições importantes para entendermos a relação entre a pontuação e a formatação gráica do texto. Participaram da pesquisa 115 crianças de 1ª a 3ª série do ensino fundamental de duas escolas (uma pública Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 331 e uma particular) de Fortaleza – Ceará. Foi solicitado que as crianças recontassem, por escrito, a história de Chapeuzinho Vermelho. Após dois meses da coleta, a pesquisadora realizou também 29 entrevistas com as crianças agrupadas em dupla. Nesses momentos, elas repontuaram dois trechos do diálogo entre o lobo e Chapeuzinho (um apresentado em um único bloco, e o outro, paragrafado). Antes de apresentarmos os resultados, é preciso salientar que, para a autora, a habilidade de paragrafar está intimamente relacionada à formatação do texto, uma vez que é um dos aspectos relevantes da organização textual. Segundo Rocha (1996), existe dois tipos de formatação: a externa – “apresentação do texto de forma corrida ou segmentado em blocos de signiicação (parágrafos), utilizando adequadamente ou não o espaço das linhas do papel” (p. 8) – e a interna – “apresentação, ou não, dos diferentes atos discursivos do texto em sua forma típica de apresentação” (p. 8). Como principal resultado, a pesquisadora pôde veriicar que o domínio da pontuação ocorre paralelamente ao domínio do formato gráico (interno e externo). Os dados mostraram que as crianças que escreviam textos sem pontuação ou com pouca pontuação também não apresentavam organização gráico-espacial do texto (ausência de paragrafação). Mais ainda, foi possível perceber que “a formatação do texto tende a seguir uma linha evolutiva, do mesmo modo que a pontuação em geral: ausência quase total de formato gráico na 1ª série, surgimento gradativo na 2ª série e consolidação na 3ª série” (ROCHA, 1996, p.10). Ainda foi visto que essa evolução da formatação e da pontuação parece ocorrer de “fora para dentro”: o formato global (externo) antecede o formato interno, assim como a pontuação externa antecede a interna. A estudiosa sistematizou essa evolução em quatro níveis: 1) indiferenciação total: no caso das crianças que já utilizavam parágrafos para marcar os episódios da narrativa, mas ainda mantinham o diálogo inserido na narrativa, não conseguindo marcá-los de forma convencional. 2) 1ª diferenciação (sem formato gráfico convencional): os diálogos começam a ser diferenciados da narrativa, aparecendo em linhas diferentes, mas ainda sem pontuação adequada. 332 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 3) 2ª diferenciação (sem formato gráico convencional): há um pouco mais de diferenciação dos diálogos. Já aparece pontuação adequada, mas não está consolidada. 4) diferenciação total (com formato gráico convencional): as formas da narrativa e dos diálogos diferenciam-se plena e sistematicamente. É possível perceber que as estratégias de pontuação mais evoluídas estavam presentes nos textos das crianças que conseguiam organizar melhor (em partes) as informações. Na atividade de repontuar trechos de diálogos, a hipótese inicial da estudiosa era a de que as crianças repontuariam mais facilmente o diálogo que se encontrava paragrafado, pois, visualmente, isso ajudaria a perceber os locais para inserirem a pontuação. No entanto, não foi o que aconteceu com as crianças que inseriram poucos sinais de pontuação em seus textos. Na hora de revisar, elas acrescentaram um pouco mais de sinais no texto não paragrafado, contrariando a hipótese. Para Rocha (1996, p. 18), esses resultados talvez indiquem que, para as crianças que se apercebem pouco da pontuação, a organização gráico-espacial do texto acaba sendo indiferente. Ou talvez, justamente por não atentarem suicientemente para a disposição do texto na página impressa, também pontuem pouco. Embora tenha havido certo equilíbrio na frequência da pontuação nos dois trechos, é preciso ressaltar que houve outras evidências que podem ratiicar a importância dos aspectos gráico-visuais, como pistas essenciais para a pontuação do texto. Uma das evidências foi o fato de a maioria dos sujeitos ter airmado ser mais fácil pontuar o texto formatado, em comparação com o texto escrito em bloco único. A conclusão, segundo Rocha (1996, p.25), é a de que, para pontuar o texto, sobretudo em seus limites externos (inal de frase e parágrafos), as crianças apelam para indícios gráico-visuais e para a disposição espacial do texto. E esse conhecimento funciona não só como im, mas também como meio para orientar a distribuição da pontuação. Com base nesse estudo de Rocha, notamos como a aprendizagem da habilidade da paragrafação pode contribuir para outras aprendizagens, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 333 como a da pontuação, por exemplo, o que a torna fundamental para a formação de um bom escritor. A pesquisa realizada por Andrade (2010) revela aspectos que merecem ser discutidos, no que se refere ao olhar das crianças para a paragrafação. Ela não tinha a intenção de investigar, especiicamente, as capacidades das crianças em dividir seus textos em parágrafos, mas pôde veriicar que, na hora da revisão textual, esse aspecto (assim como outros também relacionados aos conhecimentos linguísticos) foi pouco modiicado. A pesquisa em questão buscou conhecer o que os alunos do 4º ano do ensino fundamental são capazes de revisar quando estimulados a reletir sobre o gênero textual “carta de reclamação”, em uma sequência didática, e, assim, veriicar o que os estudantes consideram relevante e o que são capazes de fazer no momento da revisão de seus textos. De forma mais aprofundada, Andrade (2010) investigou quais marcas de revisão textual podem ser encontradas nas cartas de reclamação escritas pelos alunos e se estas se referiam ao conteúdo, à coesão textual, à paragrafação, à pontuação, à ortograia, à caligraia ou à concordância. Também buscou veriicar os tipos de mudanças realizadas durante a revisão dos textos (exclusão, acréscimo, substituição, mudança de posição) e analisar se, no processo de revisão textual, as crianças modiicam os textos quanto à dimensão argumentativa. Participaram da pesquisa professoras e alunos de duas turmas de 1° ano do 2° ciclo (4º ano do ensino fundamental) de escolas da Rede Municipal de ensino da cidade do Recife. Para isso, foi solicitado aos alunos produzir uma carta de reclamação para o Prefeito da cidade do Recife, expondo a situação precária dos brinquedos e das praças do bairro em que as escolas estavam situadas. Foram realizadas mais três revisões desse texto, duas individuais e uma em duplas de trabalho. Foram selecionados 20 alunos, sendo 10 de cada turma. A análise se deu por meio da comparação entre as diferentes versões dos textos dessas crianças. Os resultados revelaram que a grande maioria das mudanças realizadas nos textos dos alunos dizia respeito ao conteúdo (54,5%), sendo o acréscimo o tipo de modiicação mais frequente. O segundo aspecto que mais recebeu atenção nas revisões foi a ortograia, com uma porcentagem de 24,3% do total das modiicações. 334 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Atrás dos aspectos relacionados a conteúdo e ortograia, vieram as seguintes dimensões textuais: pontuação (8%); coesão (5,8%); concordância (4,7%); paragrafação (2%) e caligrafia (0,7%), que receberam a atenção das crianças, quando revisaram suas cartas, porém com baixa frequência. Entretanto, o que mais chamou a atenção da pesquisadora foi o fato de essas revisões estarem em função da revisão dos conteúdos. Segundo Andrade (2010), esses dados contrariam os resultados de outros estudos (GÓES, 1993; FLOWER; HAYES, 1980; SCARDAMALIA; BEREITER, 1992), que defendem que as revisões de textos feitas por crianças icam circunscritas a questões de ordem ortográica e/ou alterações supericiais, que não afetam o signiicado do texto. A hipótese levantada pela pesquisadora para seus resultados se sustenta no fato de as crianças terem sido estimuladas a reletir sobre a adequação de seu texto à inalidade da interação (reclamar para o prefeito). Ou seja, o tipo de intervenção realizada e o contexto de produção foram fatores decisivos para direcionar o olhar das crianças para outros elementos que vão além da superfície textual. Como foi possível observar, a paragrafação foi poucas vezes alvo de reescritas, com apenas 2% dos episódios. Esse dado pode ser relexo da falta de um ensino mais sistemático dedicado a essa habilidade. Ou ainda relexo da ênfase dada pela docente nas questões relativas à adequação de seu texto à inalidade da interação, o que pode ter direcionado a atenção dos alunos para essas questões, fazendo-os “esquecer” de outros aspectos. O fato é que não podemos deixar os alunos sozinhos na tarefa de aprender a paragrafar seus textos. Cabe ao professor promover situações de ensino, bem como orientar a paragrafação nos momentos de escrita. Em Bessonnat (1988, p. 82), encontramos algumas situações didáticas que seriam potencialmente interessantes para um trabalho relexivo com a paragrafação, entre as quais destacamos as seguintes: comparação de três versões de um texto paragrafado de formas diferentes, para que os alunos selecionassem a versão que lhe parecessem mais bem organizada; entrega de um texto lacunado, em que faltava um parágrafo, para que os alunos formulassem hipóteses referentes às informações que estariam faltando; recomposição de um texto cujos parágrafos tiveram sua sequência alterada, possibilitando ao professor explorar a relação da segmentação com a articulação lógica do texto. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 335 É possível perceber que as atividades sugeridas, de fato, contribuem para o desenvolvimento da habilidade de paragrafar. Algumas, por exemplo, vão focar mais os critérios de organização, outras, a articulação interna dos parágrafos. O que o docente precisa entender, porém, é que somente um tipo de atividade não será suiciente para uma real apropriação da paragrafação pelos alunos. Será necessário que conjugue várias atividades e, assim, realize um trabalho sistemático e relexivo. Parece-nos pertinente, ainda, destacar que essas situações de ensino estejam atreladas ao trabalho com os gêneros textuais. Consideramos que, para organizar o texto em partes, o escritor mobiliza estratégias aprendidas por meio do contato com textos diversos. Assim, tende a usar critérios comumente relacionados aos gêneros textuais adotados na situação de escrita. Como sabemos, os textos que circulam socialmente têm certas regularidades que contribuem para que o escritor lance mão das experiências anteriores para a elaboração de novos textos. Na maior parte das vezes, essas regularidades não implicam regras rígidas; são estratégias comuns à escrita de textos que circulam em uma determinada esfera social para atender a determinadas inalidades. Por acreditarmos nesse ensino pautado nos gêneros, resolvemos, em nossa pesquisa, focar nas habilidades de escrita das crianças ao escreverem cartas de reclamação. Na próxima seção, abordaremos esse gênero (conceito e movimentos), buscando compreender suas características composicionais e discursivas e assim perceber suas possíveis regularidades. 2 A argumentação e a carta de reclamação De acordo com os estudos realizados por Schneuwly e Dolz (2004), o gênero textual “carta de reclamação” estaria dentro da ordem do argumentar, uma vez que o mesmo apresenta uma predominância de sequências tipológicas argumentativas. Os textos da ordem do argumentar teriam a função primordial de convencer o leitor de algo. São exemplos: as cartas ao leitor, os textos de opinião, as resenhas críticas, as dissertações, entre outros... No texto predominantemente argumentativo, uma questão primeira emerge: a relevância do ato de argumentar naquela determinada situação. Para que haja a necessidade de argumentar é preciso que exista 336 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 um assunto que dê margens a um debate, proposições que justiiquem e/ou refutem a declaração, enim, alguém apresentando resistências. Essas características gerais tipiicam os textos da ordem do argumentar de uma maneira geral. No entanto, cada gênero tem especiicidades, que são historicamente construídas. Silva e Leal (2007) realizaram uma pesquisa na busca por encontrar elementos característicos do gênero em foco. Para tanto, as pesquisadoras analisaram vinte (20) cartas de reclamação de circulação social. Os resultados encontrados trouxeram informações bastante relevantes e também ajudaram a perceber como comumente é construída sua cadeia argumentativa. Foi possível identiicar sete componentes textuais que possivelmente conigurariam uma carta de reclamação. São eles: 1) indicação do objeto alvo de reclamação; 2) justiicativa para convencimento de que o objeto pode ser (merece ser) alvo de reclamação 3) indicação de sugestões de providências a serem tomadas; 4) justiicativa para convencimento de que a sugestão é adequada; 5) Indicação das causas do objeto alvo da reclamação; 6) Contra-argumentação relativa ao objeto alvo de reclamação; 7) Contra-argumentação relativa às sugestões. Nas cartas de circulação analisadas, os componentes 1 (indicação do objeto alvo de reclamação) e 2 (justiicativa da reclamação) foram os que apareceram em todas as cartas. Dessa forma, para reconhecermos que uma carta é uma “carta de reclamação” parece ser primordial observarmos se ela traz a indicação de objeto(s) alvo(s) da reclamação e o movimento de justiicação da relevância de tal indicação. Em seguida, foi encontrado um amplo uso do componente 3, a indicação de sugestões tendo em vista a resolução do problema, que teve doze aparições (60%). Esse componente estava muito presente nos textos analisados, constituindo uma estratégia para mostrar ao destinatário a queixa de que era possível resolver o problema descrito. O movimento de justiicar a(s) sugestão(ões) dada(s), na tentativa de convencer o leitor da sua adequação e pertinência (componente 4), também foi utilizado em várias cartas (em 8 das 20 cartas – 40%). Do mesmo modo, foi encontrada em oito cartas a tentativa de citar e explicar as possíveis causas da ocorrência do problema em foco. (componente 5). Outros movimentos, no entanto, tiveram baixa incidência. Foi o caso da contra-argumentação relativa ao objeto alvo de reclamação (componente 6) e da contra-argumentação relativa às sugestões (componente 7); ambas tiveram apenas três aparições (15%). As Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 337 pesquisadoras ressaltam, porém, que essa baixa incidência não pode ser interpretada como indício de que tais componentes são irrelevantes. Eles são fundamentais em situações em que as partes envolvidas já estejam em processo de negociação e não haja um consenso sobre quem é o culpado. As análises das cartas de circulação social mostraram, portanto, que quanto maior for o uso desses diversos componentes, maiores são as chances de o texto ter uma cadeia argumentativa apropriada para as inalidades previstas. 3 Metodologia Participaram da pesquisa alunos de cinco turmas (duas turmas do 3º ano, uma do 5º ano e duas do 7º ano) que estudavam na Rede Pública de Ensino de Pernambuco. Os alunos vivenciaram uma mesma sequência didática relacionada ao gênero “carta de reclamação”, com o intuito de contribuir para que eles pudessem ativar seus conhecimentos prévios e construir representações/conhecimentos sobre esse gênero. Com a intervenção, procuramos apenas diminuir os efeitos do possível “desconhecimento” do gênero, facilitando a produção da carta e não “bloqueando” uma possível organização dos textos em partes. Essas sequências foram mediadas pelas docentes regentes da turma, sem intervenções das pesquisadoras durante a vivência. No inal da sequência, coletamos 151 cartas elaboradas pelos alunos. Para essa pesquisa, analisamos 37 textos. Excluímos da amostra todos os textos produzidos por alunos que apresentavam distorções idade/ ano, textos escritos de forma não convencional (ilegíveis) e os que não produziram o gênero solicitado (carta de reclamação). Mesmo adotando esses critérios, tivemos um número maior de textos, então, realizamos um sorteio. Para responder a nossa questão de pesquisa, ou seja, “como a paragrafação e a argumentação se realizam em diferentes etapas do ensino fundamental”, analisamos as estratégias de organização dos textos em partes, na intenção de veriicar quais foram pertinentes. Depois, mapeamos o desenvolvimento da cadeia argumentativa, ou seja, o uso dos componentes textuais próprios ao gênero “carta de reclamação”. De posse dos dados, agrupamos os textos pela relação entre a paragrafação (adequada ou insuiciente) e a argumentação (consistente ou com fraca consistência). 338 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Consideramos como boa paragrafação dois casos: quando os textos eram escritos em bloco único e realmente não precisavam ser paragrafados, por trazerem poucas informações e serem mais concisos; ou quando os textos eram divididos em parágrafos, e cada um destes trazia um objeto alvo de reclamação, seguido de argumentação, ou quando cada parágrafo trazia um elemento dessa argumentação desenvolvido. Já a paragrafação insuficiente era aquela em que o texto apresentava um grande número de informações agrupadas em bloco único ou em um mesmo parágrafo, sendo necessário outra organização textual para que o texto icasse mais claro para o leitor. Em relação à argumentação, veriicamos se a cadeia argumentativa foi desenvolvida, de forma que o texto trouxesse uma justiicativa em relação à relevância da reclamação feita, assim como um movimento de contra-argumentação. Na ausência desses elementos, consideramos o texto com fraca consistência argumentativa. Na seção 4 (itens 1 a 4), apresentaremos detalharemos essa categorização, exempliicando por meio do movimento de escrita dos textos o que foi considerado uma paragrafação boa ou insuiciente e uma argumentação consistente ou com fraca consistência. 4 Resultados e discussão 4.1 Uma categorização para os textos produzidos: as estratégias de paragrafação adotadas pelas crianças e suas relações com a cadeia argumentativa Após análise dos textos quanto à paragrafação e à argumentação, chegamos a quatro categorias: cartas com boa paragrafação e consistência argumentativa; cartas com boa paragrafação, mas com lacunas na consistência argumentativa; cartas com paragrafação insuiciente e boa consistência argumentativa; cartas com paragrafação insuiciente e fraca consistência argumentativa. A seguir, apresentaremos cada um desses agrupamentos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 339 4.1.1 Cartas com estratégias de paragrafação adequadas ao texto e boa consistência argumentativa Encontramos cartas de reclamação cuja paragrafação e argumentação foram bem desenvolvidas. Contabilizamos os casos e vimos que 18,9% do total de cartas de reclamação pertencem a esse grupo. Não é um número alto, mas indica que há alunos que conseguem articular a habilidade de paragrafar e argumentar em seus escritos. Inserimos neste grupo os seguintes casos descritos: • textos escritos em bloco único com apresentação de um único objeto de reclamação acompanhado de vários componentes textuais (justiicativa do objeto alvo de reclamação e/ou sugestões e/ou, justiicativas das sugestões e/ou contraargumentação); • textos com parágrafos, com apresentação de um objeto de reclamação, acompanhado de cadeia argumentativa: cada parágrafo é um componente argumentativo (justiicativa do objeto de reclamação, sugestões, justiicativa das sugestões, contra-argumentação); • textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação, acompanhados de cadeia argumentativa: cada parágrafo é um componente argumentativo (justiicativa do objeto de reclamação, sugestões, justiicativa das sugestões, contra-argumentação); • textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação, acompanhados de cadeia argumentativa: cada parágrafo é uma reclamação diferente, acompanhada de argumentação referente à reclamação alvo do parágrafo. Para ilustrar, selecionamos uma das cartas pertencentes a essa categoria: 340 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 341 Eu, aluna do _______, queria lhe informar; que não só eu como todos os alunos dessa escola queríamos que o senhor nos atendesse com atenção. Por que passamos por certa diiculdade muito grande em ir ao banheiro dessa escola; precisamos de mais higiene, pois o mal cheiro e a desorganização é insurpotável. Por exemplo: O banheiro dos professores é linpo, cheiroso, na cerâmica; E por que o nosso não pode ser? O senhor pode até pensar que os alunos que não preserva, mas para o banheiro ser limpo, o senhor tem que agir com moral! Também tendo essa oportunidade de mim informar com você queria lhe dizer um grande problema que passamos agora: É a água; muitas vezes não só eu como muitas de minhas amigas, chegamos em casa e icamos com problema na saúde, tudo isso pelo efeito da água que nos trás o prejuízo. As pessoas podem até pensar que é brincadeira, mas eu não estou escrevendo para brincar, e sim para falar sério. 7º ano, sexo feminino, 12 anos. O texto acima foi classiicado como pertencente ao tipo “textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação”, acompanhados de cadeia argumentativa. Notamos que a criança reclama de mais de um problema na escola (a má situação do banheiro e a falta de água potável para beber). Cada parágrafo ela dedica a apresentar um componente textual, dividindo sua reclamação em vários blocos. No primeiro parágrafo do texto, ela faz uma introdução; no segundo, apresenta o que seria o primeiro problema. Em seguida, no terceiro parágrafo, traz uma justiicativa para convencer o responsável a consertar os banheiros (professores e alunos têm o mesmo direito). No quarto parágrafo, a aluna parece reproduzir uma possível fala do diretor da escola contra a sua reclamação, na qual contestaria a reclamação airmando que não há por que investir no conserto dos banheiros se são os próprios alunos que não preservam. Em seguida, ela refuta essa ideia dizendo que se os alunos não preservam é porque ele (o diretor) não age com moral. No quinto parágrafo, há a apresentação do segundo objeto alvo de reclamação e, por im, no último parágrafo, realiza-se o fechamento do texto, buscando sensibilizar o leitor para a seriedade da carta. 342 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Embora o texto apresente problemas na escolha dos recursos coesivos para iniciar e retomar os parágrafos, o que daria uma maior unidade ao texto, pode-se dizer que a carta cumpriu com sua inalidade de escrita. Assim como a aluna citada, outros estudantes também evidenciaram ter estratégias eficientes para organizar a cadeia argumentativa, segmentando o texto de modo a auxiliar o leitor a entendê-la. As crianças autoras dessas cartas conseguiram escolher acertadamente a melhor forma de dividir o seu texto. Se a carta trazia apenas um objeto, preferiram desenvolvê-lo em um único parágrafo ou, então, dividir os componentes que formavam a cadeia entre os blocos, de modo que cada qual icasse em um parágrafo diferente. Se na carta estavam sendo explicitados vários objetos de reclamação, os sujeitos, então, relacionavam os objetos aos blocos (cada parte tratava de uma reclamação) ou então agrupavam os componentes por parágrafo (exemplo: todas as justiicativas dos objetos apresentados icavam em um só bloco). Todas essas estratégias colaboram com o leitor, e, de fato, esses textos podem ser considerados bem paragrafados. 4.1.2 Cartas com estratégias de paragrafação adequadas ao texto, mas com lacunas na consistência argumentativa Nessa categoria estão presentes os textos cuja divisão colaborou com o trabalho do leitor. Trata-se de textos bem paragrafados, mas que apresentam lacunas na argumentação, seja por não desenvolver os objetos de reclamação apresentados, seja por desenvolver apenas alguns deles. De todas as cartas de reclamação analisadas, 37,8% foram entendidas como pertencentes a este segundo grupo. Eis os casos: • textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação, sem cadeia argumentativa: cada parágrafo é uma reclamação diferente, sem justiicativas. • textos com parágrafos, com apresentação de vários objetos de reclamação, alguns dos quais acompanhados de cadeia argumentativa: cada parágrafo é uma reclamação diferente, acompanhada ou não de justiicativa referente à reclamação alvo do parágrafo; Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 343 • bloco único em textos com apresentação de vários objetos de reclamação, sem outros componentes textuais (só apresentação das reclamações sem argumentação relativa a elas). Nesses casos, novamente julgamos que a paragrafação foi adequada ao texto construído. Por exemplo, na escrita do texto em bloco único, as crianças não desenvolveram a cadeia argumentativa, e, por isso, seus textos não precisavam ser divididos em parágrafos. Se assim fosse, as cartas icariam muito fragmentadas, e os parágrafos iriam parecer mais tópicos do que um encadeamento de ideias. Nos demais casos incluídos nesse grupo de cartas, as crianças relacionavam cada parágrafo a uma reclamação. Essa estratégia permite ao leitor visualizar bem quais são os problemas vivenciados. No entanto, tais reclamações – ou pelo menos parte delas – não foram desenvolvidas. Para ilustrar, selecionamos umas das cartas pertencentes a essa categoria: nós da escola municipal ________ nos queremo que você fale com o prefeito para ele colocar uma biblioteca na nossa escola? todo os dia que nos chegamos na Escola que os alunos vão no banheiro o banheiro esta sujo e também esta sem papel jienico? fale com o prefeito para ele manda colocar câmera na Escola e guardas na Escola 3º ano, sexo masculino, 8 anos. A carta foi organizada em três paragrafados. A estratégia utilizada foi a de apresentar um objeto alvo de reclamação por bloco. No primeiro, a reclamação é referente à falta de biblioteca na escola; no segundo, o aluno 344 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 relata o problema da sujeira no banheiro; e, no terceiro, ele usa o pedido como forma de denunciar a falta de segurança na escola. Consideramos que essa divisão do texto favorece a compreensão leitora. Contudo, o aluno não dedicou esforços para convencer os responsáveis a solucionar os problemas. Por que esses problemas estão afetando os alunos? Por que devem ser resolvidos? A tarefa de argumentar não é fácil. O locutor, para produzir o sentido que pretende, precisa refletir sobre o que seus possíveis interlocutores podem pensar a respeito do texto. A presença do “outro” o fará perceber que apenas expor seu ponto de vista já não é suiciente. É necessário ainda justiicá-lo e até expor contra-argumentos, para evitar seu enfraquecimento. Os alunos que escreveram cartas categorizadas como pertencentes a esse grupo 2 demonstraram bem essas diiculdades. Cerca de um terço dos alunos conseguiu sinalizar os problemas que afetavam as escolas, mas os textos careciam de aprofundamento por falta de argumentos que justiicassem a relevância de sua reclamação e convencesse o responsável pelo problema da necessidade de resolução deste. Dominar as estratégias argumentativas não acontece ao natural, espontaneamente. Por isso, é necessário um trabalho sistemático com textos dessa ordem na escola, tal como é o caso da carta de reclamação. No entanto, Leal (2003) constatou que os textos argumentativos aparecem com pouca frequência na sala de aula e, quando são objetos de ensino, raramente são exploradas as estratégias argumentativas, tão importantes para a compreensão e a produção dos textos dessa ordem. Atividades como ler um artigo de opinião e destacar os argumentos do autor, realizar um debate oral em sala de aula sobre tema controverso, após momentos de estudo sobre o tema e levantamento de argumentos e contra-argumentos para lançar no debate, são exemplos de situações didáticas que favorecem o desenvolvimento da habilidade de argumentar dos alunos. 4.1.3 Cartas com paragrafação insuiciente, mas com boa consistência argumentativa Na terceira categoria, estão os textos nos quais, ao contrário dos dois outros apresentados, a estratégia de organização dos parágrafos não foi bem sucedida ou então não são possíveis de ser percebidas.. As crianças, autoras dos textos aqui agrupados, mesmo sem paragrafarem Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 345 bem, conseguiram desenvolver de forma consistente a argumentação, defendendo a relevância de suas reclamações. Identiicamos que 27% das cartas pertencem a essa categoria. Eis os casos: • bloco único em textos com apresentação de vários objetos de reclamação acompanhados de vários componentes textuais relativos a cada uma das reclamações (justiicativa do objeto de reclamação e/ou sugestões e/ou justiicativas das sugestões e/ contra-argumentação); • Cartas em que aparentemente não há uma divisão lógica dos blocos (textos com parágrafos), mas apresentam uma boa consistência argumentativa. A seguir apresenta-se um exemplo: 346 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Tia _______ lhe escrevo está carta para lhe comunicar o que está prejudicando eu e meus colegas nós gostaríamos de lhe dizer o que prejudica eu e meus colegas é: o que a gente não gosta na escola é da professora Lúcia ela gosta muito de mandar na gente, e quando teve a primeira literarte nós falamos sobre monteiro Lobato foi a quarta da manhã com a da tarde ela só fazia tirar foto dos alunos dela invés de ela mandar os alunos dela ajudar a gente a explica quem explicou tudo só foi os alunos da tarde e nenhum dos alunos dela ajudou e ainda mais quando as mães iam ver eu e meus colegas apresentando ela tira as mães e mandava elas ver fantoches que era da sala dela Os ventiladores nem si fala era para tar os quatro ventilador esses dois e um calor danado ninguém suporta. A quadra está mau cimentada e tem muitas pedras e vidros e sem falar quando a gente vai brincar lár não presta não só faz a gente se machucar e também tinha que aumentar o muro da quadra. E o campinho de aréa tem que potar mais aréia tirar o pote e aumentar o muro. E a horta que esta caindo os pedaços e tem que botar serca, o que eu quero que faça na escola também incruindo aqui nesse texto. Quero também que almente o salario das professora e potar piros e cadeiras mais confortaves, tem que ter uma sala de computação para que a gente poder pesquisar na internet não gosto das brigas e a falta de respeito com as professora e fucionarios. Aumentar a biblioteca e botar mais livros. Ter mais segurança na escola. Não deixar a turma da manhã rasgar nos cartazes e trabalhos. Também a falta de caderno, lápis, borracha, cola, lápis de pau para pintar, lapis de sera, a nossa porta que esta com a fechadura quebrada e a porta com furos tem que conserta. Pinceis, tintas, itas coloridas, cartolinas, folha de ofícios, ita dures, pilotos e cola colorida. 5º ano, sexo feminino, 11 anos. Como vemos, o texto foi escrito em bloco único com vários objetos de reclamação explicitados. A sobrecarga de informações é grande. A melhor estratégia, nesse caso, seria relacionar os blocos aos objetos de reclamação, ou seja, apresentar cada reclamação em um parágrafo. Isso contribuiria com a leitura e entendimento das questões expostas. Outras crianças tiveram o mesmo tipo de produção. Também classificamos nessa categoria as cartas nas quais não foi possível perceber os critérios adotados para dividir os blocos: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 347 nem separavam cada reclamação em um parágrafo nem separavam os componentes textuais próprios do gênero solicitado, mas tinham cadeias consistentes relacionadas a essas reclamações. Ao lermos as cartas do primeiro grupo, foi possível perceber o quanto algumas crianças e alguns adolescentes se esforçaram para dar uma lógica coerente à organização de seus escritos. Eles pareciam reconhecer que a divisão do texto em partes não podia ser aleatória, ao livre arbítrio do escritor. No entanto, no caso das cartas agrupadas nesse terceiro grupo, não parecia haver uma lógica clara para a organização do texto em partes, ou seja, não foi possível identiicar quais foram os possíveis critérios utilizados na paragrafação. Além disso, outras crianças tinham claramente uma estratégia argumentativa bem articulada, mas optavam por segmentações nem sempre úteis aos seus propósitos, ou seja, poderiam aprimorar suas próprias estratégias. É o caso da carta utilizada como exemplo acima. 4.1.4 Cartas com paragrafação insuficiente e fraca consistência argumentativa No último agrupamento, classiicamos todas as cartas cujos autores não escolheram uma paragrafação adequada ao texto construído. Nelas, também se viam argumentações pouco consistentes. Os objetos eram apresentados sem desenvolvimento da argumentação. Algumas vezes chegavam apenas a acrescentar sugestões. Cerca de16% das cartas de reclamação foram categorizadas como pertencentes a esse grupo. 348 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 Eu sou ______, aluna do 6ºA, eu vou reclamar dos ploblemas da escola. Ela esta com muito defeito, o banheiro das meninas e dos meninos é muito nojento, a água e da torneira, as cadeira tem que ser igual, a quadra esta feia, não tem espelho no banheiro e ne água, a comida não é muito boa, tem lampâdas queimada, no telhado tem algumas pingueiras, os ventiladores estão quebados e etc. Eu quero que o banheiro seja limpos e bonito, os ventiladores funsione bem, comida boa, água mineral, a quadra perfeita é assi outra coisa seja resolvido. Espero que esse ploblema seja rezolvido em brevi. 7º ano, sexo feminino, 14 anos. A aluna deixa claro quais os problemas denunciados, contudo não aprofunda suas reclamações, ou seja, não as justiica nem contraargumenta a seu favor. Depois de elencar os problemas, passa a dar sugestões de possíveis soluções (exemplo: a água deveria ser mineral). Em relação à paragrafação, não foi possível identiicar uma estratégia lógica na organização. Os parágrafos não foram construídos para separar nem os objetos alvo de reclamação nem os componentes textuais. 4.2 Comparando os textos escritos por crianças de diferentes anos de escolaridade Deinidas essas quatro categorias que sistematizam, de forma mais evidente a relação entre a paragrafação e a construção da cadeia argumentativa, partimos para entender como se processa tal relação entre o nível de escolaridade e as turmas. Nossa intenção foi veriicar se havia diferenças entre as turmas de diferentes anos de escolaridade e entre as turmas do mesmo ano, no que se refere à presença em uma ou outra categoria. Contabilizamos primeiro os dados por ano de escolaridade, conforme tabela 1 a seguir. 349 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 TABELA 1 – Relação entre a paragrafação (adequada ou insuiciente) e a argumentação (consistente ou com fraca consistência) por ano de escolaridade Categorias 3º ano 5º ano 7º ano Freq. (%) Freq. (%) Freq. (%) 1) Cartas com paragrafação adequada e boa consistência argumentativa 3 27,2 2 20 2 12,5 2) Cartas com paragrafação adequada, mas com fraca consistência argumentativa 5 45,4 4 40 5 31,2 3) Cartas com paragrafação insuiciente e boa consistência argumentativa 1 9,09 4 40 5 31,2 4) Cartas com paragrafação insuiciente e fraca consistência argumentativa 2 18,1 - - 4 25 11 99,8 10 100 16 99,9 Total Fonte: Elaborada pelas autoras. Observando os números, nota-se que as turmas do 3º ano obtiveram índices melhores do que turmas do 5º e 7º anos. Ou seja, alunos com menor tempo de escolaridade se saíram melhor do que os de anos mais avançados. No entanto, ao observar melhor os dados por turma veriicamos que o melhor desempenho ocorreu, especiicamente, em uma das turmas do 3º ano e não em ambas. Por exemplo, enquanto todas as cartas de reclamação dos alunos da turma 1 foram escritas em bloco único, na turma 2, a grande maioria organizou seu texto em dois ou mais parágrafos. São duas realidades distintas que nos fazem crer na possibilidade de turmas do 3º ano conseguirem dividir seus textos de forma semelhante à turmas de anos mais avançados, como também foi constatado no estudo de Moraes (1999). Os dados da tabela 2 ratiicam essa diferença entre as turmas. 350 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 TABELA 2 – Quantidade de textos por turma com paragrafação adequada e argumentação consistente 3º ano Categorias 5º ano 7º ano Turma 1 Turma 2 Turma 4 Turma 5 Turma 6 (%) (%) (%) (%) (%) 20,0 33,3 20,0 9,09 20,0 Cartas com paragrafação adequada e consistência argumentativa Fonte: Elaborada pelas autoras. Como vemos, ao compararmos os dados das turmas de diferentes anos, de forma separada, constatamos que uma turma do 7º ano (turma 5) demonstrou apresentar mais diiculdades para paragrafar e argumentar do que uma turma do 3º ano. Uma hipótese levantada para esse resultado é a possível inluência do tipo de trabalho pedagógico desenvolvido com esses alunos ao longo do 3º ano, ou mesmo dos anos antecedentes, relativo à consistência das atividades propostas dentro da sequência didática sobre o gênero carta de reclamação. Além disso, observações informais realizadas mostraram que a docente da turma parecia desenvolver um trabalho bastante sistemático com leitura e produção textual. Acreditamos que em suas aulas eram criados diversos momentos de contato com textos e, possivelmente, relexões sobre os gêneros textuais e/ou organização textual, o que, de fato, colaboraria para um maior desenvolvimento dos alunos. Nas turmas do 7º ano, entretanto, as aulas em que a sequência didática foi desenvolvida se deram de forma mais aligeirada, pois as professoras das turmas só dispunham de uma hora e meia de aula, em razão de o horário ser dividido com outras disciplinas. Notamos também que vários aspectos relativos ao gênero estudado foram pouco explorados, tais como as relexões sobre as características sociodiscursivas da carta de reclamação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 351 5 Considerações inais Acreditamos que a primeira contribuição da pesquisa está na própria abordagem do tema, uma vez que esse assunto, como pudemos acompanhar ao longo do referencial teórico, é pouco discutido entre os estudiosos da área. Com base nesse trabalho, aprofundamos o estudo sobre a paragrafação e compreendemos melhor, por exemplo, a relação entre a construção de parágrafos e os gêneros textuais, em particular o gênero carta de reclamação. É preciso reconhecer, no entanto, que não é possível identiicar, com clareza, as especiicidades em relação à organização dos parágrafos em todos os gêneros. Há gêneros que são mais luidos e variam mais em relação à sua organização, de modo que é difícil estabelecer especiicidades em relação à construção dos parágrafos. No caso da carta de reclamação, pudemos veriicar que as principais estratégias de paragrafação constituíram-se de formas diferentes de se escrever esse gênero textual: 1) com um parágrafo de abertura e/ou fechamento e um parágrafo contendo toda a reclamação; 2) com parágrafos relacionados aos componentes textuais (objeto alvo de reclamação, justiicativa, sugestão para resolver o problema, indicação de possíveis causas, entre outros) 3) relacionadas aos objetos alvo da reclamação; 4) com parágrafos ora relacionados aos objetos de reclamação ora aos componentes textuais. Os resultados mostraram ainda que alunos dos anos iniciais do ensino fundamental já são capazes de construir parágrafos e atribuir um sentido lógico a essa divisão. Em relação à argumentação, muitos conseguem produzir justiicativas e alguns até chegam à contra- argumentar. Mesmo havendo alguns alunos que já demonstravam certa desenvoltura nessas habilidades, constatamos que havia casos de alunos que, apesar de paragrafarem de maneira adequada, não conseguiam desenvolver bem sua argumentação. Vemos, portanto, que as estratégias para satisfazer as condições do contexto de produção e organizar o texto, de maneira a ajudar o leitor na compreensão, não é algo adquirido espontaneamente, mas construído por meio da mediação de escritores mais experientes, como o professor. Por isso mesmo, os nossos alunos precisam de mediadores nessa tarefa de se apropriar da paragrafação, pois, enquanto alguns, mais observadores, constroem suas hipóteses, outros passam mais tempo vivendo a angústia de não entenderem as razões para terem de fazer tal divisão. 352 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 321-353, 2018 É necessário deinir boas estratégias didáticas para ensinar as crianças a paragrafar os textos. Contudo, reconhecemos que o professor dispõe de poucos materiais que o orientem na condução desse ensino. Esse talvez seja um dos aspectos que pode gerar um trabalho assistemático com a paragrafação. Também há escassez de momentos de relexão sobre o tema em sala de aula. Os resultados de nossa pesquisa reforçam o fato de que mesmo demonstrando possuir tais conhecimentos, seja de forma intuitiva ou não, a escola precisa garantir um espaço pedagógico para ajudar os alunos a avançarem em seus conhecimentos e superarem suas diiculdades. 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Tecendo um leitor: uma rede de ios cruzados. Curitiba: Aymará, 2009. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Efeitos da clínica de linguagem em casos de sujeitos com paralisia cerebral Language clinic effects in cases of subjects with cerebral palsy Roseli Vasconcellos Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo / Brasil roselivasconcellos@fclar.unesp.br Resumo: O presente artigo remete à tese Organismo e sujeito: uma diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS, 2010), com iliação teórica no Interacionismo Brasileiro (DE LEMOS, 1992, 2002, 2006, 2007, entre outros) e em seus desdobramentos no Projeto Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, coordenado por Maria Francisca Lier-DeVitto e Lúcia Arantes (LAEL/PUC-SP). Nela e no presente trabalho, procurou-se aprofundar uma discussão interessada nos efeitos de um corpo pulsional, apesar dos entraves que dizem respeito à condição orgânica de sujeitos com paralisia cerebral que não oralizam, com vistas a demonstrar a viabilidade de uma Clínica de Linguagem não conduzida por um raciocínio centrado nas diiculdades motoras desses sujeitos. O corpo-orgânico da Medicina foi abordado por meio de um diálogo com a Neurologia, a im de se estabelecer sua distinção do corpo pulsional, enfocando-se os mais novos achados (técnicas de neuroimagem) e suas relações com o mais antigo (airmações de Freud acerca da natureza das paralisias cerebrais), que sugerem forte convergência. A diferença, tanto teórica quanto clínica, introduzida na tese, é iluminada pelos efeitos dessa clínica que inclui a Comunicação Suplementar e Alternativa com seus sistemas de símbolos gráico-visuais, que viabiliza a materialização do signiicante pela via do empréstimo do corpo e da voz do outro-terapeuta. Os dados analisados, dialógicos e coletados na clínica, falaram a favor da presença de um corpo-linguagem eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.355-387 356 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 e remeteram a heterogeneidades em seus efeitos promovidos nessa clínica, que suscitaram considerações sobre o prazer que acompanha a emissão de certas produções orais, em dois casos, e, em outro caso, conlito e angústia. Palavras-chave: paralisia cerebral; linguagem; fonoaudiologia; clínica de linguagem; comunicação suplementar e alternativa. Abstract: This article stems from the thesis Organism and subject: a sensitive difference in cerebral palsies (VASCONCELLOS, 2010) theoretically based on the Brazilian Interactionism (DE LEMOS, 1992, 2002, 2006, 2007 among others) and its consequences for the Acquisition, Pathologies and Language Clinic Integrated Project coordinated by Maria Francisca Lier-DeVitto and Lúcia Arantes (LAEL/PUC-SP). Both in the thesis and in this article the aim was to deepen a discussion that pointed out to pulsional body effects, despite obstacles concerning the subjects with cerebral palsy organic condition who do not speak, aiming to demonstrate the viability of a Language Clinic therapy conducted without a focused reasoning on these subjects’ motor difficulties. Medicine was approached from a dialogue with Neurology, aiming to establish its distinction of the pulsional body, focusing on the newest indings (neuroimaging techniques) and their relations with the oldest (Freud’s claims about the nature of cerebral palsy) which suggest strong convergence. The difference, both theoretical and clinical introduced in the thesis for the treatment of such subjects, is highlighted by these clinic effects including Augmentative and Alternative Communication and their graphic-visual symbols systems that enable the materialization of the signiicant, which is done by way of loaning the therapist’s body and voice. Patient data analyzed were collected in dialogic clinical situations, referred to the presence of a “body-language” and to the heterogeneities in their effects promoted in this clinic, which raised considerations about the pleasure accompanying certain vocalized speech productions in two cases and conlict, in another one. Keywords: cerebral palsy; language; speech language and hearing sciences; language clinic; augmentative and alternative communication. Recebido em: 2 de setembro de 2016 Aprovado em: 24 de abril de 2017 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 357 1 Introdução O presente artigo remete à tese de doutorado Organismo e sujeito: uma diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS, 2010) e tem o objetivo de aprofundar uma discussão que aponte para os efeitos de um corpo pulsional, apesar dos entraves inerentes à condição orgânica de sujeitos com paralisia cerebral (PC) que não oralizam. Tanto na tese quanto no presente trabalho, buscamos enfrentar alguns mistérios que envolvem não a “paralisia motora” de um organismo, mas o “movimento” de sujeitos na linguagem e as particularidades de suas produções no que concerne à linguagem por meio da Comunicação Suplementar e Alternativa (CSA).1 Uma concisa revisão dos estudos médicos atuais sobre a PC foi realizada com vistas a situar o leitor quanto à natureza desse distúrbio de ordem neurológica e, ao mesmo tempo, iluminar a diferença, tanto teórica, quanto clínica, introduzida na tese relacionada ao tratamento de pessoas com esse acometimento neurológico, na Clínica de Linguagem. Para tanto, fomos ao NINDS (2016) − National Institute of Neurological Disorders and Stroke. Um diálogo tão necessário quanto o realizado com o campo da Neurologia foi estabelecido na tese com a área da CSA. Abordamos brevemente a sua introdução, bem como a consolidação de sua utilização em nosso país, por meio do emprego dos Símbolos Bliss2 e do PCS Segundo Tetzchner e Jensen (1997), “a Comunicação Suplementar e Alternativa envolve o uso de meios não orais para suplementar ou substituir a linguagem falada” (TETZCHNER; JENSEN, 1997, p.1) e compreende recursos de comunicação face a face (TETZCHNER; MARTINSEN, 1992) que possibilitam a comunicação para pessoas que apresentam prejuízos orais e/ou na escrita. 2 No início da década de 70, os Símbolos Bliss aparecem como precursores dos sistemas gráico-visuais que iguram entre os Sistemas Suplementares e Alternativos de Comunicação (SSAC). Esse Sistema leva o nome de seu idealizador, Charles Kasiel Bliss (1897-1985), que o produziu entre 1942 e 1965. Antes do Bliss, os programas com foco nas necessidades comunicativas de sujeitos com PC que não oralizam partiam de habilidades de leitura e escrita ou de atividades limitadas baseadas em iguras (Mc NAUGHTON, 1978). O Bliss foi concebido como um sistema de escrita ideográico que reúne símbolos básicos que podem ser combinados para gerar novos símbolos. Para mais informações sobre o Bliss, ver www.blissymbolics.org. 1 358 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 (Picture Communication Symbols),3 sistemas gráico-visuais de maior repercussão em nível mundial e também no Brasil. Pontuações sobre sua importância e forma de inclusão na Clínica de Linguagem foram realizadas, levando-se em conta as concepções de linguagem e de sujeito assumidas na tese. Trabalhos representativos desse campo, em nível nacional e internacional, que possam interessar à Clínica de Linguagem com pacientes com PC, foram apresentados e discutidos naquela pesquisa. A im de empreender a discussão que nos propusemos a realizar, partimos de uma iliação teórica ao Interacionismo Brasileiro, tal como formulado por De Lemos, cuja proposta deine a aquisição de linguagem como “um processo de subjetivação conigurado por mudanças de posição da criança numa estrutura em que la langue e a parole do outro, em seu sentido pleno, estão indissociavelmente relacionados a um corpo pulsional, i. e., à criança como corpo cuja atividade demanda interpretação” (DE LEMOS, 2006, p. 28). A sustentação teórica presente no Interacionismo de De Lemos pode iluminar discussões sobre a Clínica de Linguagem. As noções de interpretação e as ideias de interação e de mudança, forjadas no Interacionismo, abrem questões sobre a Clínica de Linguagem (conforme proposta pelo Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, sob a coordenação de Lier-DeVitto e Arantes no LAEL-PUC/ SP), que possibilitam pensar a clínica com sujeitos com PC impedidos de oralizar. Para falar em corpo, não o corpo-orgânico da Medicina, fomos a Freud (1893c) que, partindo dos estudos da anatomia do sistema nervoso central, contrapõe o sintoma presente na histeria às condições que regem a sintomatologia na PC e conclui que corpo é expressão irredutível a organismo. Uma vez introduzida a dimensão do corpo, trouxemos à discussão a questão das pulsões e do corpo pulsional com base em Freud (2004) e Lacan (2008). 3 O PCS (Picture Communication Symbols) reúne desenhos lineares, originalmente desenvolvidos por Johnson em 1981, com o objetivo de serem utilizados como um SSAC. Trata-se de um conjunto de símbolos basicamente pictográicos, para quem um nível simples de expressão seja aceitável. O sistema tem um vocabulário limitado, mas possibilita a inclusão de outros desenhos e fotos (sobre o PCS, ver Fernandes (2001) e www.clik.com.br). O PCS é o sistema gráico-visual suplementar e alternativo de comunicação de maior alcance em termos mundiais, tendo sido traduzido para 40 línguas diferentes. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 359 As interlocuções realizadas na tese e o arcabouço teórico que arregimentamos nos permitiram idealizar uma Clínica de Linguagem destinada a sujeitos impedidos de oralizar que se distancia de outras clínicas e técnicas dirigidas a esses pacientes, uma vez que privilegia suas possibilidades no que tange à linguagem e não seus impedimentos de ordem neuromotora. Propomos a esses sujeitos que não oralizam uma clínica viabilizada pela CSA e os sistemas gráico-visuais que se incluem entre essas possibilidades de comunicação: o PCS e os símbolos Bliss. Entretanto, afastamo-nos dos planos de implementação da CSA fundamentados no par ensino-aprendizagem ou daqueles que adotam a concepção de sujeito psicológico, calcados em pressupostos cognitivistas ou nos sociointeracionismos. Diferentemente, na clínica que temos proposto, a implementação da CSA é entendida a partir do Interacionismo Brasileiro, como possibilidade de abertura de um canal com o outroterapeuta que viabiliza a produção de falas-escritas de sujeitos em suas singularidades, via materialização do signiicante,4 que é lido e registrado pelo “outro-terapeuta”. A possibilidade de um encontro entre falas de terapeuta e de paciente abre-se para esses sujeitos como resultado do empréstimo do corpo do terapeuta e, assim, efeitos podem ser apreendidos na linguagem do paciente. 2 Da “paralisia” orgânica e de seus efeitos De acordo com o NINDS5 (National Institute of Neurological Disorders and Stroke), as paralisias cerebrais são causadas por anormalidades no cérebro, que impedem o controle do movimento e da postura (NINDS, 2006) e que, na maioria das crianças, já estão presentes desde antes do nascimento, apesar de poderem ser detectados apenas após algum tempo de vida, ao longo de seu desenvolvimento neuromotor. Ressaltamos que o emprego de técnicas de neuroimagem nos dias atuais contribui tanto para a compreensão da etiologia da PC quanto para o redirecionamento das pesquisas que inclui, entre outros, o campo da genética e o da farmacologia (NINDS, 2006). Assinalamos que, mesmo com o advento de técnicas bastante avançadas, a investigação da PC no 4 5 O termo “signiicante” aqui remete à teoria saussureana. <www.ninds.nih.gov/disorders/cerebralpalsy/detailcerebralpalsy.htm>. 360 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 campo médico revela, menos do que certezas, mistérios, mesmo quando é possível poder contar com importantes avanços nesse âmbito, não só na área do conhecimento como da tecnologia. De todo modo, no campo da Neurologia, a PC caracteriza-se como uma entidade nosológica que, com relação à existência detectável, sinaliza a certeza de uma lesão irreversível que promove um prejuízo neuromotor permanente. Para Freud, que cunhou a expressão “Paralisia Cerebral” quando recebia pacientes com distúrbios neurológicos em sua clínica, outros problemas acompanhavam frequentemente a PC (retardo mental, problemas visuais, e convulsões), que teria sido provocada durante o desenvolvimento do cérebro, ainda na fase intrauterina. Freud observou que “partos difíceis, em certos casos, são meramente um sintoma de efeitos mais profundos que inluenciam o desenvolvimento do feto” (NINDS, 2006). Apesar das observações de Freud, a crença de que complicações ao nascimento causariam a maior parte dos casos de PC foi, de fato, a hipótese mais difundida nas pesquisas médicas até muito recentemente. De acordo com o NINDS (2006), nos anos 1980, cientistas analisaram mais de 35 mil nascimentos e se surpreenderam ao descobrir que apenas menos de 10% dos casos poderiam ser relacionados a problemas no nascimento. Na verdade, não se pode precisar a causa da maioria das ocorrências de PC. Esses achados recentes puseram em xeque as teorias médicas acerca das causas da PC e, ao mesmo tempo, levaram pesquisadores a investigar outros fatores que, acreditam eles, pudessem estar associados com essa desordem neurológica. Os estudos mais recentes sobre a PC não diluem mistérios e impasses na determinação dessa etiologia orgânica. 3 Da possibilidade de “movimento” na linguagem via Sistemas Suplementares e Alternativos de Comunicação − SSAC Temos implementado a CSA nos casos em que a oralização encontra-se impedida ou comprometida devido à lesão neuromotora desde o início de nossa prática clínica. Esses recursos podem ser introduzidos para crianças em aquisição da linguagem, bem como para pessoas cuja fala se encontra comprometida temporária ou permanentemente. A CSA está presente nas esferas educacionais, clínicas e hospitalares e envolve, portanto, proissionais de diversas áreas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 361 A CSA inclui o uso integrado de recursos (sinais manuais e gráicos) e de estratégias e técnicas diversas que podem ser muito simples ou envolver o uso de baixa e de alta tecnologia.6 Os sistemas de sinais gráicos podem incluir desde fotograias e desenhos, até escritas ortográicas tradicionais ou combinações entre esses diferentes tipos gráicos. O sistema gráico-visual mais empregado no Brasil é o PCS. O Bliss é empregado em escala bem menor. A introdução do Bliss, pioneiro entre os SSAC, foi uma revolução, não somente porque tornou a linguagem expressiva acessível a pessoas com diiculdades neuromotores e a não leitores com “boa compreensão da linguagem falada”, mas também porque inaugurou o uso sistemático dos sistemas de sinais gráicos em geral, asseguram Tetzchner e Jensen (1997, p. 7). Segundo Mizuko (1987), muitos estudos têm considerado o PCS como o mais transparente dos sistemas. Na literatura sobre a CSA, um sistema é transparente se a forma, o movimento ou a função do referente estão representados de maneira que o signiicado do símbolo seja rapidamente evocado na ausência do referente (MIZUKO, 1987). Como se vê, no campo dos Sistemas Gráico-Visuais – principalmente quando se trata do PCS, que se apoia em desenhos−, a questão do signiicado e da signiicação ica atrelada, sem exceção, à determinação precisa de uma relação de correspondência entre referente (coisa no mundo) e representação (sua forma, movimento ou função). Mesmo no Bliss, esse é o caso, já que a linguagem, concebida como nomenclatura, tem a função de fornecer símbolos que designem coisas no mundo e possam representar o pensamento. Dessa forma, sua função não difere daquela desempenhada por iguras e desenhos. Aliás, Charles K. Bliss pretendeu mesmo conter a pluralidade dos sentidos e forjar uma língua em que só houvesse positividade − uma coleção de “símbolos satisfatórios” − quando da elaboração dos símbolos que levam o seu nome. Bliss almejava uma língua como nomenclatura (VASCONCELLOS, 1999, p.65-66; VASCONCELLOS, 2010, p. 28). Seguindo de perto esse ideal, os símbolos do PCS pretendem ser ainda mais simples ou “mais transparentes” do que os símbolos Bliss. 6 Para uma descrição crítica desses sistemas de comunicação, remeto o leitor interessado nessa discussão a Vasconcellos (1999, 2010). 362 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Temos proposto outra leitura e outro entendimento sobre a implementação dos sistemas gráico-visuais de comunicação considerando os efeitos de sua utilização em nossa clínica e o compromisso que assumimos com a desnaturalização da linguagem. Do contrário, não parece haver mesmo porta de saída de uma ideia de linguagem como representação/comunicação e de sujeito como suporte de conteúdos perceptuais analíticos inatos (ANDRADE, 2003). Saussure está no pano de fundo da posição que assumimos para discutir o que é linguagem. Segundo Saussure (1989), a língua “não oferece unidades perceptíveis à primeira vista” (SAUSSURE, 1989, p.124). Desse modo, diferentemente do que almejam os estudiosos dos SSAC e alegam ser sua qualidade especial, a posição teórica aqui assumida sustenta que, sendo a língua concebida como um sistema de relações em que operações precedem as unidades, não há como delimitálas antes do recorte que essas operações promovem. Saussure propõe que se aborde o problema da delimitação das unidades pela “noção de valor” (SAUSSURE, 1989, p. 128) e passa, com isso, da deinição da língua como “sistema de signos” à de língua como “sistema de valores puros” (SAUSSURE, 1989, p.130). O conceito de valor é entendido por Saussure como o resultado das relações no sistema da língua. Portanto, o que determina unidades é o jogo entre os agrupamentos associativos e os tipos sintagmáticos. Assim, o signiicado de um signo é efeito da relação que ele estabelece com os demais, em uma cadeia. Sustentamos na tese (VASCONCELLOS, 2010, p. 29) o que airmamos em trabalho anterior: “os símbolos dos sistemas gráicovisuais não são instrumentos de representação do mundo e não podem ser utilizados como tais” (VASCONCELLOS, 1999, p. 69-70; VASCONCELLOS, 2006, p. 298). Isso signiica dizer que a percepção não é via de acesso direto seja a símbolos, seja ao mundo: a percepção é, também, um efeito (ANDRADE, 2003; DE LEMOS, 1992). Os chamados sistemas gráico-visuais nada mais são do que um amontoado de sinais que não se articulam como “sistema”. Sua eicácia “resulta do fato de serem signiicantes, de poderem operar como entidades linguísticas ao serem submetidos ao trabalho da língua num texto” (VASCONCELLOS, 1999, p. 70-71). Temos afirmado que esses sistemas de comunicação não constituem uma língua: seus símbolos são marcas, traços, desenhos, que exigem interpretação, ou seja, necessitam do concurso da língua para Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 363 serem erigidos como signiicantes – eles devem ser movimentados na fala do outro, na escuta e na escrita dos pacientes para que venham a signiicar (VASCONCELLOS, 1999, 2006, 2010). Na tese a que nos remetemos aqui, trouxemos à discussão as diferentes formas, propostas por autores, de se conceber o papel da CSA em sujeitos impedidos de se comunicar oralmente de modo eicaz, tanto na literatura estrangeira quanto na brasileira. Em seguida, izemos algumas pontuações sobre sua importância e forma de inclusão na Clínica de Linguagem e assinalamos o distanciamento de outras formas de introdução desses instrumentos nessa clínica, distanciamento que se deve às concepções de linguagem e de sujeito assumidas na referida tese. Naquele trabalho, procuramos tomar distância da perspectiva orgânica quando se trata de sujeitos com PC e considerar a dimensão do sujeito que habita esse organismo prejudicado, pois, sob a perspectiva do organismo, se se fala em “paralisia”, pode-se apreender mobilidade na linguagem quando se abre a escuta para sujeitos com PC. Afastamo-nos também da concepção de sujeito psicológico7 presente nas considerações sobre a clínica fonoaudiológica com sujeitos com PC, mesmo quando se faz valer da CSA, por assumirmos outra concepção de sujeito e de linguagem. A noção de sujeito que acolhemos em nosso trabalho harmonizase com pressupostos da Linguística Cientíica que expulsa o sujeito “em controle da linguagem” do coração da língua. O referencial teórico de que nos aproximamos tem iliação no Interacionismo Brasileiro, que relete sobre a articulação criança-língua-fala e assume posição crítica em relação ao sujeito psicológico do qual se distancia quando introduz a noção de assujeitamento ou de captura do sujeito por um funcionamento linguístico-discursivo. Do ponto de vista da clínica com pacientes com PC, inquietações provocadas pela certeza da patologia orgânica não anulam ou impedem as manifestações incontestáveis de um sujeito, certeza que tem-nos acompanhado desde o início de nosso atendimento clínico. Temos atestado que os olhares e gestos desses pacientes, mais do que movimentos incoordenados, dizem de uma presença viva que convoca o outro: um corpo como gesto, como presença na linguagem − um corpo atravessado pelo linguístico (VASCONCELLOS, 1999, 2006). 7 Referimo-nos aqui às teorizações de cunho interacionista e sociointeracionista e às teorias discursivas baseadas na intersubjetividade. 364 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Entendemos que o fato de não oralizar a fala, não exclui o sujeito com PC de uma relação com a linguagem. Além de ouvir, esses sujeitos escutam (ANDRADE, 2003). Desse modo, indicamos que a barreira motora que prejudica o organismo não impede que se realize nele uma “apreensão qualitativa” do som, que implica “a esfera de onde se ouve falar” (DE LEMOS, 1995, p. 244; PARRET, 1993) – situação que torna possível “passar do ouvir para o escutar e para o escutar-se” (DE LEMOS, 1995, p. 244). A im de situarmos nosso trabalho em relação a outras pesquisas bastante atuais que envolvem a clínica fonoaudiológica com sujeitos com PC, apresentamos aqui, muito brevemente, alguns trabalhos. Cesa, Ramos-Souza e Kessler (2010a) analisaram, por meio de entrevistas, as percepções de mães de crianças com PC que não oralizam sobre o uso das pranchas de comunicação, numa perspectiva Winnicottiana, e os efeitos de uma clínica concebida, com base numa orientação Bakthiniana, e concluíram que, nos casos em que houve o debate sobre o uso familiar da prancha, o processo de intersubjetividade do sujeito sem oralidade foi favorecido. Os pesquisadores propõem uma “clínica da subjetividade” em que se aborde a relação mãe-ilho em conjunto com questões de linguagem. Em outra pesquisa, Cesa, Ramos-Souza e Kessler (2010b) buscaram propor diretrizes na intervenção e na pesquisa na área da CSA por meio de artigos de periódicos indexados em bases de dados eletrônicas internacionais, abrangendo diferentes tipos de trabalhos que incluem sujeitos com PC ou com problemas neurológicos não deinidos e/ou com retardo mental. Os artigos foram agrupados em categorias e foi elaborada uma síntese dos aspectos considerados relevantes para uma adequada implementação dos recursos de CSA. Concluiu-se que a individualização das práticas e o processo de inclusão da família e demais parceiros conversacionais são fundamentais ao sucesso na intervenção, generalização e manutenção de uso da prancha de CSA em contextos formais e informais. Cesa, Ramos-Souza e Flores (2009) propuseram uma análise do funcionamento linguístico da CSA à luz da teoria enunciativa de Bakthin, utilizando-se de exemplos de situações clínicas, e confrontaram sua proposta com trabalhos ancorados no interacionismo e no sociointeracionismo. Consideraram que sua relexão possibilitou observar que conceitos como o do caráter polissêmico do signo e de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 365 intersubjetividade no funcionamento linguístico podem ser fundamentais para acessar as possibilidades de criatividade do usuário ao utilizar a prancha de CSA. Concluíram que o estudo da linguagem nessa perspectiva pode resultar em uma melhor abordagem clínica desses sujeitos. Também enfatizaram a importância da escuta do clínico e dos interlocutores a esses sujeitos. Consideraram que as teorias interacionista e sociointeracionista parecem insuicientes para abordar o aspecto da articulação da forma linguística com o uso entre interlocutores. Passos (2007) abordou a importância da linguagem nas intervenções clínicas com sujeitos com PC pelas perspectivas Vygotskiana e Bakhtiniana com vistas a redimensionar a atuação com a CSA. Foram analisados recortes clínicos de episódios interativos entre uma criança com PC e a pesquisadora, que referiu que os dados revelaram a atividade interpretativa do outro no contexto discursivo como aspecto fundamental para a inserção do sujeito na linguagem por meio da CSA, evidenciando a sua função mediadora e favorecedora da subjetividade e possibilitando a abertura para a escuta do momento e para a imprevisibilidade da linguagem. Brancalioni et al. (2011) estudaram a evolução linguística de um sujeito com síndrome não esclarecida, com prejuízos motores e ausência de fala, por meio da introdução da prancha de CSA em uma perspectiva dialógica Bakthiniana, buscando uma hipótese de funcionamento da linguagem. As pesquisadoras referiram que, tanto na família quanto na escola, foi possível perceber boa incorporação do uso desse recurso considerando tal perspectiva teórica, que resultou na possibilidade de circulação de sentidos múltiplos associados aos sinais e em boa generalização de uso do recurso, o que permitiu avanços linguísticos no caso estudado. Nos trabalhos citados anteriormente, destaca-se o privilégio conferido à dialogia e à intersubjetividade, pontos de partida diversos dos adotados em nossa proposta de iliação, a saber: a língua em seu funcionamento como um terceiro na relação entre a fala e o falante, em que o outro é lugar de funcionamento da língua constituída (Outro). Diferentemente dos trabalhos anteriores, em uma teorização que inclui o sujeito da psicanálise, porém diversa da que temos proposto, Castellano e Freire (2014) abordaram a clínica fonoaudiológica de portadores de PC apoiados na psicanálise lacaniana, no intuito de abrir a escuta do corpo falante dando voz a esse corpo via interpretação de formas alternativas de fala. Propuseram-se a estabelecer um diagnóstico 366 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 diferencial de uma adolescente com base nos dados do diagnóstico médico, entrevistas e fragmentos de sessões clínicas, nas quais foi utilizada a CSA. Esses dados foram analisados com base no Modelo de Organização dos Sintomas de linguagem de Gouvêa, Freire e Dunker (2011), visando à indicação da direção do tratamento. Segundo as autoras, a avaliação fonoaudiológica da adolescente indicou que os seus sintomas operaram sobre o estrato da escrita e sobre o estrato da língua, sustentando a hipótese de que o problema estrutural estaria na ordem da fala e sugerindo que a terapêutica fonoaudiológica privilegiasse a sanção como permissividade, como posição diante da lei, e a sanção sobre o sujeito, como operação de transliteração. A análise das transcrições das situações levou a considerar que o diário e a prancha de CSA podem se constituir como meios de sancionar a fala sintomática de portadores de PC ao passarem de um sistema de escrita de traços para um sistema de escrita alternativo, que possa ser interpretado pelo outro. A pesquisa de Castellano e Freire (2014), descrita anteriormente, toma um rumo diverso daquele que temos proposto como ponto de partida teórico, pois, apesar de calcada na psicanálise lacaniana, adota uma terapêutica clínica distinta da que temos desenvolvido no Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem, atualmente liderado por Lier-DeVitto e Arantes. 4 Da ancoragem teórica A questão que nos inquietava em nossa prática clínica e que enunciamos como argumento clínico encontrou espaço de discussão na Clínica de Linguagem, no Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem liderado por Lier-DeVitto e Arantes,8 que tem laço de iliação com o Interacionismo Brasileiro,9 proposto por De Lemos, 8 O Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem tem sido liderado por Lier-DeVitto desde 2000 e, mais recentemente também, por Arantes, vinculado ao Departamento de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 9 O Interacionismo Brasileiro em Aquisição de Linguagem de De Lemos iniciou-se como vertente teórica na Unicamp no inal da década de 1970 e passou por diferentes fases. Dele tomaram parte, em seu percurso de doutorado, Ester Scarpa, Maria Cecília Perroni, Rosa Attié Figueira e Maria Fausta Pereira de Castro, que vem liderando o Projeto desde o início do século atual. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 367 vertente teórica iniciada na Unicamp, no inal da década de 1970. No Interacionismo de De Lemos, fala-se em “captura” do sujeito pela linguagem (e não de “apropriação” da linguagem pela criança). Pode-se entender, assim, que o outro da criança seja visto como outro-falante: como lugar de funcionamento da língua constituída (DE LEMOS, 1992) e não como outro-social (LIER-DEVITTO, 1996, 1998). O fato de suster a impossibilidade de homogeneização da fala da criança e de projetar sobre ela o saber da Linguística possibilitou ao Interacionismo sustentar a sua “indeterminação categorial” (DE LEMOS, 1982) e irmar posição contra a Psicologia do Desenvolvimento (CASTRO, 1992). Se essas falas de crianças são indeterminadas do ponto de vista categorial, elas não o são do ponto de vista dialógico. Segundo De Lemos (1992), elas são compostas de fragmentos da fala do outro que são movimentados, articulados pelas operações internas da língua. Assinalamos que essas discussões foram e são da maior importância para o trabalho que temos desenvolvido. No Interacionismo, o diálogo foi assumido como unidade de análise, e o erro, como dado de eleição. O ponto de apoio da teoria é o constante refazer do enigma na fala da criança, tomando-a na “resistência que ela impõe ao investigador que dela pretenda fazer uma simples empiria a ser descrita pela Linguística” (DE LEMOS, 2002, p. 41). A partir de 1992, as mudanças na fala da criança são assumidas como estruturais. A teoria é redimensionada pela necessidade da articulação entre língua-fala-falante. Acrescenta-se a diiculdade de relacionar processos de subjetivação e processos de objetivação da linguagem. A “subjetividade” implicada no trabalho de De Lemos não é outra senão aquela introduzida pela Psicanálise. A autora, de fato, desloca a concepção de criança e de mudança vigente no campo da Aquisição da Linguagem e sustenta que a criança está numa estrutura e é concebida como vir-a-ser, falada pelo outro-falante (instância da língua constituída) e, portanto, pelo Outro. Essa “criança falada” é entendida como corpo pulsional10 e não como organismo ou sujeito psicológico. Desdobramentos importantes do Interacionismo explicitados anteriormente têm ocorrido no âmbito das discussões sobre as patologias e a Clínica de Linguagem no Grupo de Pesquisa Aquisição, Patologias e Clínica de Linguagem. Conforme Lier-DeVitto (2006), 10 Conceito que será abordado no tópico a seguir. 368 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 categorias ou operações nodais do Interacionismo proposto por De Lemos foram mobilizadas para analisar questões suscitadas por “falas sintomáticas” e pela clínica que as acolhe. Trata-se de pensá-las como “diferença”, portanto. Assim, interação, mudança, erro, heterogeneidade e interpretação deveriam, diz a pesquisadora, adquirir tonalidades próprias e bem especíicas na Clínica de Linguagem. Há, portanto, que se empreender uma aproximação ao Interacionismo, levando-se em conta que “outro”, “erro” e “interação” devem ganhar contornos particulares: outro = terapeuta; erro = sintoma, interação = relação clínica (LIER-DEVITTO, 2006). Lier-DeVitto (2006) demarca, assim, o que designa como uma aproximação ao Interacionismo, que deve ser caracterizada como um “diálogo teórico” (LIER-DEVITTO, 2006, p.184). Para sustentar uma posição frente ao acontecimento na Clínica de Linguagem é preciso ter uma escuta instrumentalizada por questões teóricas. Pode-se dizer que a diferença e as conquistas do Grupo de Pesquisa estão relacionadas ao compromisso assumido com a teorização sobre as patologias de linguagem e com a heterogeneidade das manifestações sintomáticas. Interessou-nos, no âmbito dessas discussões, enfocar a Clínica de Linguagem com sujeitos com PC e discutir, ao lado das heterogeneidades/ particularidades da linguagem desses sujeitos, as heterogeneidades/ particularidades da clínica dirigida a pacientes com PC. O que procuramos foi aprofundar a questão de que, apesar de todos os entraves que dizem respeito a uma condição orgânica, quando estão em jogo pacientes com PC, há ali um corpo pulsional que torna possível pensar em presençassujeito particulares na linguagem. Lier-DeVitto (2003, p.238) faz menção à PC e airma que há sempre um excesso que ultrapassa a lesão, mesmo quando ela impede o movimento de um corpo. Trata-se de “excesso” que transborda, inclusive, do silêncio verbal de um sujeito, em expressão mínima: num olhar, num pequeno gesto, num choro, num sorriso. Esses “excessos” dizem de um corpo falado/investido que investe na parcela que resta de “vivo”, de “não paralisado” em seu organismo prejudicado (VASCONCELLOS, 1999). Esse corpo-fala desprendido, que não se confunde com o corpo orgânico, insiste como linguagem, signiica e demanda interpretação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 369 5 Da distinção organismo/corpo pulsional “O que é corpo?” – é pergunta que importa para tecer considerações sobre a Clínica de Linguagem com sujeitos com PC. E, para tratar dessa questão com outro olhar que não o da Medicina e da doença, recorremos a Freud mais uma vez. As condições da descoberta do inconsciente e a ‘invenção’ da Psicanálise estão em relação direta com os estudos sobre a histeria, que faz aparecer, para ele, um corpo que não se confunde com o corpo orgânico. As paralisias orgânicas foram pesquisadas por Freud entre 1885 e 1886, num estudo comparativo com as paralisias histéricas, com a esperança de que esse estudo pudesse revelar algumas características gerais da neurose (FREUD, 1893c). Em sua pesquisa, Freud destacou algumas características das paralisias orgânicas, que ele considerava serem de aceitação geral, e airmou que a neurologia clínica reconhece dois tipos de paralisia motora: paralisia periférico-medular ou (bulbar) e PC (FREUD, 1983c). Ao investigar a anatomia do sistema nervoso, Freud pôde discernir diferenças entre esses dois grupos. Segundo Freud (1893c), diferentemente das Paralisias Cerebrais, a lesão, nas Paralisias Histéricas, deve ser vista como completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois as paralisias manifestas na Histeria comportam-se como se a anatomia não existisse ou como se não tivessem conhecimento desta (FREUD, 1893c). Em se tratando de Histeria, Freud mostra que há modiicação funcional sem lesão orgânica concomitante. A lição deixada, portanto, pelas Paralisias Histéricas é a de que nelas há “outra anatomia”, diferente daquela que orienta a prática médica. Assim, desde Freud, corpo é expressão que não pode ser reduzida a organismo vivo. Freud propõe a noção de “conversão histérica”, que pode ser tomada como representante primeira da problematização do estatuto do corpo na teoria e na Clínica Psicanalítica. Nota-se que, na Histeria, o corpo é o lugar da manifestação de um sintoma psíquico que, para Freud, é “sexual”. Lacan articulará, depois, corpo e linguagem. O corpo do bebê é superfície em que incidirá a linguagem, pela via do outro materno – trata-se aqui do corpo pulsional. A expressão “corpo pulsional” está no pano de fundo de nosso trabalho, e essa noção o movimenta. “Corpo pulsional” é expressão que indica e distingue o estatuto de um corpo atravessado pela linguagem (LEITE, 2003, p. 81). Diz a autora que “nada é mais natural para aqueles que trabalham com o texto freudiano do que implicar o conceito de pulsão 370 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 para abordar as articulações entre corpo, linguagem, afeto e sentido” (LEITE, 2003, p. 81-82). Freud (2004, p. 148) entende ser a pulsão um conceito–limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida de exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação com o corpo. Lacan (2008), com base em Freud, dirá que, “em relação à instância da sexualidade, [os sujeitos] só têm a ver com aquilo que passa da sexualidade para as redes de constituição subjetiva, para as redes do signiicante” (LACAN, 2008, p. 174), o que nos remete ao fato de que a sexualidade está relacionada com as incidências signiicativas e signiicantes do outro sobre a superfície do corpo do bebê: “graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece” (LACAN, 2008, p.179). Vemos que, com Lacan, entra em jogo uma explicação que envolve o outro e a linguagem. Trata-se de uma relação objetal em que ambos (bebê e outro) são, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Assim, tornar-se mãe é uma condição que se consolida na relação com o bebê, que, por sua vez, humaniza-se nessa relação. A linguagem é “alteridade radical” em relação ao ser vivo e à ordem simbólica. Portanto, já existe antes do bebê, que, sem ela, não pode viver. O outro, que signiica a criança, é também heterogêneo em relação a ela, mas a criança se serve de seu corpo: provoca interpretação e coloca o outro frente a uma incógnita: quem é esse ser? A mãe recalca esse mistério e faz da criança o objeto do seu desejo: ela é quem encarna o sujeito que ica entre o orgânico e o psíquico. É o jogo do signiicante que constitui o sujeito e destitui o ser (do ponto de vista do organismo). Dessa forma, a linguagem coloca o bebê numa cadeia: só assim é possível fazer sua história (VASCONCELLOS, 2010, p.72-74). O investimento da mãe ou do agente materno no corpo do ilho é decisivo, como procuramos mostrar. No caso de um bebê que nasce e de pronto é encaminhado para cuidados especiais, necessariamente, efeitos serão produzidos na mãe. O “real” incide no sujeito com PC antes mesmo de que se possa falar em “sujeito”. Pelas exigências e necessidades incontornáveis de seu organismo, estabelece com o outro uma relação particular. Essa relação implica, naqueles casos em que a gravidade motora é signiicativa, uma dependência que não determina, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 371 contudo, uma atitude homogênea por parte do outro. O imaginário do outro (pais, familiares, cuidadores e proissionais) simboliza o corpo dessa criança de maneiras distintas: como um sujeito que pode/deve ser institucionalizado, marginalizado, infantilizado, doente e até como uma pessoa com uma vida a ser vivida. Fato é que a heterogeneidade imprevisível dos efeitos da “paralisia motora permanente” sobre pessoas com PC não permite que se obscureça o fato de que elas são “seres de linguagem” (VASCONCELLOS, 1999, 2006). De outro lado, não se pode ignorar, como indicamos anteriormente, os efeitos reais dessa condição neurológica sobre o sujeito e o outro. Deve-se perguntar, então, sobre sua incidência – “onde é que ela incide? ” – e sobre os limites que ela determina: “para quem esse limite se impõe?”. É certo que, além de afetar o sujeito de formas diversas, a restrição motora e seus efeitos afetam também pais e proissionais. Interessou-nos, na tese, tentar apreender como é que se dão os efeitos entre esse sujeito e seu terapeuta em uma clínica que tem contornos singulares por privilegiar a linguagem e o sujeito em sua complexidade e heterogeneidade. 6 Material e método Procuramos, na tese, dar visibilidade à pluralidade vivida na clínica e dizer de seus efeitos e da heterogeneidade desses efeitos na relação de seis pacientes com a linguagem. Os sujeitos da pesquisa foram selecionados por se apresentarem de maneiras diversas na linguagem, por meio de uma proposta clínica que buscou implementar a CSA em seu atendimento clínico. Os seis sujeitos selecionados apresentam quadros de PC quadriplégica grave, sem a possibilidade de marcha e impedidos de oralizar, com idades que variam entre 6 e 19 anos, tendo sido, no período em que os dados foram colhidos, introduzidos ou reintroduzidos (no caso de S. e de C.)12 à CSA. 11 11 Essa pluralidade faz alusão à diversidade de maneiras de estar na linguagem por meio da introdução aos SSAC e da interpretação do clínico às produções dos pacientes, o que produz efeitos de prazer, num encontro (ainda que rudimentar) com a fala oralizada, no caso de F. e de J., ou de angústia, que resulta de impasses e diiculdades de chegar a um dizer em B. 12 Nos casos de S. e de C., uma reintrodução ao Bliss foi realizada, uma vez que esses pacientes interromperam o trabalho de implementação do Bliss iniciado em ocasião anterior, em outras situações clínicas e com outros proissionais. 372 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Os dados da pesquisa são provenientes de situações dialógicas e monológicas colhidas na clínica com esses pacientes e transcritas à medida que se davam, pois a gravação de sons não se aplica nesses casos − à exceção de um fragmento de J., após quatro anos de terapia, em que uma fala passou a ser notada e foi “ganhando corpo”. À medida que a avaliação e o início do atendimento se deram, esses pacientes foram introduzidos ao PCS ou ao Bliss, de acordo com os efeitos que a apresentação a eles desses diferentes conjuntos de símbolos pôde ser apreendida pela terapeuta. Particularidades com relação à possibilidade de seleção e indicação dos símbolos, bem como ao tamanho de apresentação deles, foram levados em conta de acordo com a singularidade de cada caso. Discutimos, no presente trabalho, dados de sessões clínicas de três desses sujeitos: F. e J., introduzidos ao PCS, e B., introduzido ao Bliss, e abordamos os efeitos produzidos entre “falas” de paciente e terapeuta nesses casos. A questão dos efeitos nos casos de S., C. e G., que remetem a singularidades da escuta desses pacientes e da transferência, foi tratada em Vasconcellos (2013). 7 Resultados e discussão: da heterogeneidade e da pluralidade dos efeitos na clínica Com base na discussão de seis casos atendidos, abordamos alguns efeitos da relação de sujeitos com PC com a linguagem, a im de dar visibilidade à pluralidade desses efeitos, vivida por eles na clínica. Situações dialógicas e monológicas foram registradas e analisadas, e as particularidades que essa clínica entretém com pais e pacientes em situações de entrevistas e de atendimento foram discutidas.13 A heterogeneidade dos efeitos desses atendimentos, apreendida na discussão dos dados clínicos da tese, suscitaram pontuações sobre a escuta, sobre a transferência e sobre o prazer ou conlito que acompanham a produção de vocalizações e até de fala, no caso de alguns desses pacientes. Nessa clínica, o corpo falado aparece como falante na heterogeneidade de suas produções com símbolos, na escrita alfabética e até mesmo numa fala 13 Esclarecemos que o Comitê de Ética da PUC-SP aprovou a documentação relativa aos consentimentos livres e esclarecidos dos sujeitos implicados na presente pesquisa. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 373 que irrompe, surpreendendo esses pacientes (VASCONCELLOS, 2010, 2013). Dos efeitos particulares que pudemos apreender nos atendimentos com nossos pacientes sujeitos da tese, trazemos, primeiramente, neste artigo, a ocorrência de vocalizações ou de fragmentos de fala que irrompem de forma inesperada nos casos de F. e de J. e surpreendem o próprio paciente, como em F. Em seguida, focalizamos a angústia que acompanha os impasses e a diiculdade de B. chegar a um dizer que possa ser interpretado pela terapeuta. Ressaltamos aqui que esses fragmentos de fala produzidos por alguns pacientes são efeitos de uma clínica em que o investimento na linguagem do paciente é central, diferentemente do que ocorre em um atendimento guiado por técnicas isioterápicas que busca como resultado único aquilo que o paciente não pode mesmo fazer: oralizar, concebendo, portanto, a oralização como decorrência natural de conquistas motoras. Ora, uma vez que, de maneira diferente, focaliza-se a linguagem, oralizações podem até surpreender o próprio paciente que as produz, já que o foco não está em “fazer falar” por meio de manobras e técnicas sobre o aparato motor oral. Essas produções orais que pudemos surpreender em dois dos sujeitos de nossa pesquisa, apesar de conferirem prazer aos nossos sujeitos, não chegam a ser fala e não dispensam, portanto, o emprego dos sistemas gráico-visuais de comunicação ou da escrita alfabética, uma vez que esses fragmentos só puderam ser apreendidos e interpretados em algumas situações dialógicas naquele texto clínico especíico. Trazemos aqui o caso de F.14 que, aos sete anos, em diálogo com a terapeuta, responde à pergunta “O que você fez na feira?”. 14 F. apresenta uma PC quadriplégica do tipo distônica. Essa criança foi introduzida a símbolos do PCS e, com o dedo indicador da mão direita, seleciona-os em uma prancha, acoplada à sua cadeira de rodas. 374 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Segmento 1 − F. [7 anos] (As verbalizações aparecem sublinhadas. Em itálico, estão os símbolos do PCS). [...] T. O que você fez na feira? F. Eu comer pastel iéu F. aponta os símbolos eu, comer e pastel, nessa sequência, em sua prancha. Essa indicação vem acompanhada do fragmento sonoro “iéu”. Com surpresa, a terapeuta diz: “F., você falou pastel!” . F., aparentemente incrédulo, olha ao redor, como que procurando localizar a fonte daquela produção (que a terapeuta disse ser dele). Em situação clínica anterior a esta, a terapeuta lê parte do texto do inal de semana de F. escrito por sua mãe. Em itálico aparecem as palavras correspondentes aos símbolos do PCS e, sublinhadas, as produções orais de F. Segmento 2 − F. [6 anos e 7meses] (1) T. Aí, aí, ó ... no domingo, a mamãe contou que vocês foram conhecer um shopping novo. Vocês foram no shopping? (2) F. É poi (3) T. Quem foi? Foi todo mundo? (4) F. (aponta para si, levando a mão com o indicador estendido em direção ao peito). (5) T. Você... Só você? (6) F. mãe pai Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 375 (7) T. A mamãe; o papai também? Todo mundo? (8) F. irmão (aponta o símbolo e mostra a língua, ao mesmo tempo) (9) T. O M.? O M. que mostra a língua? (risos). O M. continua malcriado, mostrando a língua? É? (10) F. É (11) T. Com quem o M. briga bastante, hein? (12) F. irmã (13) T. Mais com a L.? (14) F. Uhm... (15) T. E com você? (16) F. Não eu (17) T. Não com você, mais com a L. (18) F. (grita como que dramatizando a briga) bábé ... mãe (19) T. Ele briga, ele mostra a língua prá mãe também? (20) F. bábábábábábábábá (gritando) (21) T. Tá bom, péra lá! (22) F. Abá (23) T. Deixa eu acabá! (24) F. Abá 376 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 No segmento 2 acima, F. responde por meio da indicação de símbolos em sua prancha, mas também com fragmentos de palavras e de sons que são especulares, como em: “É poi”→ É, foi ou “Abá” → Acabá. Note-se a pergunta da terapeuta: (1) “vocês foram ao shopping?” e a resposta do menino: (2) “É poi”. Da mesma forma, à questão da terapeuta: (15) “E com você?”, F. responde: (16) “Não eu”. Observe-se a não coincidência dessas produções de F. com a fala da terapeuta: há, entre (1) e (2) alteração de terceira pessoa do plural (foram) para terceira do singular (“poi”) e entre (15) e (16), inversão pronominal (não eu). Esses enunciados de F., que destacamos, iluminam a presença de um “eu” no dizer, que pode ser apreendido na entonação e nas manifestações corporais. Não se pode, porém, na maioria dos sons produzidos, apreender palavras do português. Mesmo assim, as respostas de F. não são meras emissões sonoras sem relação com a fala do outro: a criança espera sua vez, ou seja, reconhece o outro a quem endereça sua fala – ela “respeita” a cadência dos turnos do diálogo. Em (18), (20), (22) e (24), as produções de F. estancam num gesto motor em torno da oclusiva /b/, que dão a elas um aspecto de “lalação”15 − lembram o balbucio da criança que ainda não fala. Se no caso de crianças que ainda não falam a lalação é “som separado do sentido”, mas não separado do estado de contentamento (SOLER, 2007, p. 27), no de F., o “contentamento” é inequívoco, mas sua “lalação” não está desligada de um sentido: está vinculada e emana de um corpo prejudicado que viveu uma cena, mas não pode dizê-la. Segundo Soler (2007), a lalação evoca “o escutado da língua falada, antes da linguagem” (SOLER, 2007, p. 27). Não se trata, no segmento acima, de um “antes da linguagem”, mas de um obstáculo à materialização da fala que está na escuta e que é impedida de aparecer pelo “real” da PC que F. apresenta, “real” que impõe limites à expressão de um sujeito por meio da fala. F. está numa espécie de “água da linguagem” (de acordo com Lacan, em Mais, ainda (1972-1973), quando faz referência ao luido continuum do escutado, de onde unidades acabarão se isolando. Nos segmentos apresentados, unidades irrompem, mas elas não tomam corpo, não caminham, não se expandem, não se articulam. É como se la langue se instalasse sem promessa de futuro para uma fala que se estenda, que No texto original, Soler (2010, p. 27), “lalação” é “banho de linguagem” (bain de langage). 15 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 377 seja “comunicativa”. É importante, ainda, não esquecer o efeito de prazer e de surpresa proporcionados ao sujeito por esses pedaços de fala que ele pode realizar (sem se empenhar). Lacan (1972-1973, p. 62), lembra que uma fala sustenta o gozo daquele que fala, seu gozo do blábláblá, quer dizer, da fala que afeta o corpo que fala. No caso de pacientes com obstáculo real para sua manifestação, pode-se avaliar o efeito de surpresa que vem conjugado com o de prazer. O sujeito é surpreendido por fragmentos sonoros que partem dele: falas (signiicantes e sentidos) de que está “impregnado” (LACAN, 1972-1973, p. 50).16 Trata-se de expressão de Lacan, que acentua a pertinência desse termo porque ele exclui a maestria, a apropriação ativa da linguagem pelo sujeito. No caso de F., pequenas verbalizações vêm à tona e persistem croniicadas, seja como pedaços reconhecíveis de palavras e de sequências, seja como uma espécie de lalação. Parece-nos que há, nessa insistência, algo da ordem de um efeito no próprio sujeito. Efeito que parece vir da gratiicação de “falar” mesmo que sua fala não vá muito além de uma reduplicação de fragmentos sonoros. Não é de se admirar, contudo, que esses efeitos gratiicantes impulsionem F. a prosseguir. Freud (1905), ao abordar os chistes, airma que deles advém um prazer que remonta à economia psíquica. Nas crianças, sugere Freud, o jogo com palavras poderia ser assumido como “chistes inocentes” (FREUD, 1905, p. 63). Não há jogo de palavras nas produções de F: sua fala é “endurecida”, mas suas produções inesperadas partilham com os chistes essa característica e, assim como com eles, o sujeito obtém uma pequena produção de prazer da simples atividade de nosso aparato mental, desimpedida de qualquer necessidade (FREUD, 1905, p. 84). Pensamos que bastaria substituir, em Freud (1905), a ideia de “aparato mental” por “aparato de linguagem” para nos aproximarmos das ocorrências relatadas anteriormente. Sobre a impregnação do sujeito pela linguagem: “a linguagem [...] é tal que, a todo instante, como vocês veem, nada posso fazer senão tornar a escorregar para dentro desse mundo, desse suposto de uma substância impregnada da função do ser” (LACAN, 1972-1973, p. 50). 16 378 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 Abordamos, em seguida, um segmento de J.17 Os dados de J. foram os únicos que puderam ser gravados entre os dos sujeitos da tese. J. chegou à clínica com aproximadamente 10 anos. Depois de quatro anos de atendimento, passou a produzir uma fala. J. apontava os símbolos na prancha e podia realizar gestos articulatórios. Assim como no caso de F., temos um sujeito que pode apontar e produzir fragmentos de fala. Em itálico estão grafadas as palavras que correspondem aos símbolos do PCS e, grifadas, as produções orais de J., que aponta os símbolos em sua prancha com o indicador da mão direita. Segmento 3 − J. [19anos] [...] (1) T. Que mais que cê quer contar? (2) J. avó M. (3) T. A vovó? (4) J. férias (5) T. Nas férias? (6) J. éa (7) T. Ãhn... (8) J. viajá (fala e indica o símbolo) 17 J. apresenta um quadro de PC quadriplégica atetóide. Realiza indicação direta de símbolos do PCS em sua prancha acoplada à cadeira de rodas adaptada. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 379 (9) T. Viajar? Cê vai viajar nas férias lá prá tua vó? ......... (10) J. (SI)18 (11) J. ou... (12) T. E onde é que a tua vó mora mesmo? É no Nordeste, né? ... J. (SI) T. Que lugar que é?....... J. (SI) (13) T. Aqui? Ãhn... eu lembro que é no Nordeste, me conta... (14) J. PIAUÍ (palavra previamente escrita na prancha) (15) T. Ah, no Piauí... (16) J. pi (17) T. Quê que cê vai comer lá de bom? Ai, aqui tem umas coisas boas que tem lá ó ... vai comer...Quê que tá escrito aqui, sabe? Cuscuz (palavra previamente escrita na prancha). (18) J. cu...cuz (19) T. (ri) Gostoso, né?... Deitar na redi... (20) J. êdi (e aponta o símbolo rede) (21) T. Ãnh? (22) J. na êdi (23) T. Deitar na rede... (risos) (24) J. i êdi (25) T. Tá bom J. Observe-se que, no segmento anterior, de J., diferentemente do que ocorre no segmento 2, de F., não há, propriamente, uma alternância dialógica: os fragmentos de fala de J. são incorporados, sem dúvida, dos enunciados da terapeuta, mas num tempo diferente daquele de F. Há uma espécie de precipitação, de pressa, nas produções de J. – no momento da transcrição desse material a impressão que se tinha era de que as falas de T. e de J. eram concomitantes. As incorporações da fala da terapeuta por J. sugerem que ela como que saboreia sua possibilidade de oralização. 18 SI é abreviação para segmento ininteligível. 380 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 É que, assim como no caso de F., há, segundo Lacan (1972-1973), um gozo que vem associado a essa possibilidade de oralizar também nessa sequência de J. A seguir, trazemos à discussão um segmento de B.19, que chega à clínica com aproximadamente 13 anos de idade, sendo essa a primeira vez que frequenta uma escola. Na clínica, B. é introduzido tanto à escrita alfabética quanto ao Bliss. Menos do que usufruir da parcela de prazer que poderia retirar de uma produção de pedaços de fala, B., à diferença de F. e de J., deixa aparecer uma “quota de desprazer”, que nos pareceu emanar do impasse dialógico e da impossibilidade de chegar aos signiicantes responsáveis pelo sentido do que ele queria dizer. O impasse, que veremos no segmento abaixo, remete a conlito e angústia: o que B. produz e escuta não pode por ele ser reformulado. B. não pode, igualmente, fazer reparos às tentativas da terapeuta de apreender e dizer a cadeia que ele espera que seja materializada. As palavras correspondentes ao Bliss aparecem em itálico; sublinhada, está grafada a fala de B., e, em maiúsculas, as letras que B. indica por meio do olhar. Segmento 4 − B. [17 anos] (1) B. EU sentimento (2) T. Sinto? (3) B. É (4) T. Uhm... eu sinto... (5) B. muito co (6) T. Com? (7) B. É (8) T. Uhm... 19 B. apresenta um quadro de PC quadriplégica do tipo espástico. Comunica-se indicando símbolos Bliss, números e alfabeto em sua prancha (acoplada à cadeira de rodas adaptada) por meio do olhar, que guia a terapeuta. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 381 (9) B. COFAESI (Erguendo a cabeça) (10) T. Cofaési (lendo a escrita de B.) (11) B. (Repete o mesmo movimento de corpo e de olhar na direção de T.). (12) T. Eu sinto muito com ...cofaési. Esse “com” é separado? (13) B. É (14) T. Continua, depois a gente lê tudo. [...] (15) T. Co, fa, é... (Volta ao escrito acima, silabando) (16) B. Nã (olha para cima) (17) T. Você olhou prá cima... morte? co... fa...ê... confusão? (18) B. Faecimem... (19) T. Falecimento! Com o falecimento... (20) B. DI EOA De maneira geral, podemos dizer, com base nesse segmento, que B. sustenta o texto: ele diz “é” e “não” aos enunciados oferecidos pela terapeuta. Contudo, quando procura tomar a palavra, segmentos ou sequências breves precipitam-se em sua voz, criando uma zona de não sentido – uma ocorrência estranha ao português: COFAESI. Note-se que, a partir de (9), instala-se um desencontro: do lado da terapeuta, o desacordo vem pela leitura da “não palavra” escrita por B. Apenas quando o bloco “cofaesi” é dissolvido e fragmentado em elementos que ganham nova sonoridade ao serem lidos isoladamente: “co” leva a confusão e “é” (que estava na leitura de T. em cofaési) se transforma em “ê”. A relação entre “fa ... ê” aparecerá na fala de B: “faecimen”, momento em que um signiicante brota do não-sentido. O segmento acima nos permite falar de conlito e angústia na relação com o outro. De Lemos, com Lacan, lembra que a angústia “dá sinal de alarme diante do desejo do Outro” (DE LEMOS, 2007, p. 117). A angústia e o conlito, que aparecem no diálogo de B. com a terapeuta, mostram que há resistência ao outro – o sujeito não cede às diiculdades do diálogo, e isso porque, como assinalamos, há escuta, há Outro. É preciso lembrar, porém, que a rede de inibições da linguagem, que incide sobre o ser vivo, encontra, no “real” do corpo, um limite: a implantação do signiicante não pode fazer B. falar/verbalizar – a materialização de 382 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 articulações signiicantes icou barrada pela patologia orgânica. Disso resulta uma profunda e permanente dependência em relação ao corpo do outro, dependência que se pode constatar nos casos dos seis sujeitos de nossa pesquisa. 8 Conclusões Procuramos mostrar neste artigo que remete à tese Organismo e sujeito: uma diferença sensível nas paralisias cerebrais (VASCONCELLOS, 2010), a viabilidade de uma proposta clínica destinada a pacientes com PC, que se caracteriza por seus contornos singulares e pela atenção dirigida a questões suscitadas pela relação desses pacientes com a linguagem. Nessa clínica, o corpo falado aparece como falante na heterogeneidade de suas produções com símbolos e escrita alfabética e até mesmo numa fala que irrompe surpreendendo esses pacientes. Destacamos que, no caso de pacientes introduzidos à CSA, a fala-escrita que produzem só pode ser apreendida e atestada devido à possibilidade de materialização dessas marcas, por meio da voz ou por meio do gesto de escrita emprestado pelo terapeuta ao paciente. Só assim um registro pode ser lido como signiicante. Queremos dizer, com isso, que, no caso desses pacientes, suas sinalizações ganham corpo no corpo do outro. Do lado do paciente, assinalamos que apenas um corpo falado e falante tem escuta e pode, por isso, ser afetado pela fala do outro. A implementação da CSA, além de ser ponto de abertura da possibilidade de materialização de uma fala contida pelo “real” da patologia no caso desses pacientes, é também ponto de encontro entre o paciente (aquele que não fala, mas escuta) e o terapeuta (que se coloca em posição de escuta das manifestações signiicantes e signiicativas de seu paciente). O reconhecimento que essa clínica dá à linguagem e ao sujeito marca diferença em relação a outras clínicas e técnicas de tratamento especíicas para esses pacientes, pois é outro o desejo do clínico de linguagem frente a seu paciente com PC. Os dados de F. e de J. mostraram efeitos possíveis dessa clínica, qual seja, o surgimento de vocalizações ou de fala propriamente dita, acompanhados de um efeito de surpresa e de prazer nesses casos, que vem da gratiicação de falar, mesmo que essa fala não vá muito além da reduplicação de fragmentos sonoros. B., à diferença de F. e de J., deixa transparecer, por sua vez, um tanto de desprazer que se atribui a uma diiculdade de chegar aos signiicantes responsáveis pelo que busca dizer Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 355-387, 2018 383 de forma a materializar esse dizer em uma cadeia. De todo modo, os dados de B. atestam que esse sujeito tenha sido capturado pela linguagem e “arrancado à sua imanência vital” (LACAN, 1966, p.72) pela linguagem, já que há escuta para a fala e impulso na direção de espaços em que o jogo entre alienação e separação pode ocorrer. Os dados dos sujeitos da tese indicam que alguns conseguem caminhar com a fala, outros encontram um caminho na escrita, e outros ainda conseguem menos e icam nos símbolos e em fragmentos de escrita e/ou de fala. De todo modo, parece-nos equivocado supor que “separação”20 − entendida na sua relação à “alienação” ao campo do Outro − nesses casos, anularia a dependência do corpo do outro. É que a rede de inibições da linguagem que incide sobre o ser vivo encontra um limite no “real” do corpo, ou seja: a implantação do signiicante não pode fazê-lo falar porque está barrada pela patologia orgânica. Disso resulta uma profunda e permanente dependência do corpo do outro. Talvez se possa dizer que nos casos de F. e de J., em que o comprometimento motor é menor, “a rede de inibições da linguagem” se faça notar. Pode-se concluir que os materiais clínicos da tese abordados neste trabalho falam a favor da airmação que fazemos de que não há mesmo correspondência entre organismo e sujeito, corroborando o objetivo deste artigo e da tese de oferecer indícios e aprofundar uma discussão que evidenciasse os efeitos de um corpo pulsional, apesar dos limites impostos por sua condição orgânica. Referências ANDRADE, L. Ouvir e escutar na constituição da Clínica de Linguagem. 2003. 143 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003. BLISSYMBOLICS COMMUNICATION INTERNATIONAL. Blissymbolics. Canadá, 2010. Disponível em: <http://www.blissymbolics. org>. Acesso em: ago. 2017. BRANCALIONI, A. R.; MORENO, A. C.; RAMOS-SOUZA, A. P.; CESA, C. C. Dialogismo e Comunicação Aumentativa Alternativa em um caso. Rev. CEFAC, v. 13, n. 2, p. 377-384, 2011. 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O objetivo é descrever a coniguração formal e as funções textual-interativas das inserções parentéticas encontradas nesse gênero. Os resultados revelam que, por um lado, a materialidade escrita dos Editoriais determina o modo como se formalizam as inserções parentéticas; por outro, alguns traços composicionais desse gênero em circulação no século XIX determinam a ocorrência predominante de algumas classes e/ou funções parentéticas, como esclarecimento, ressalva e manifestação atitudinal do escrevente. Palavras-chave: construção do texto; inserções parentéticas; editorial. Abstract: Based on a textual-interactive perspective (cf. JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), this paper aims to analyze Bracketing in Editorials published in a São Paulo state newspaper throughout the 19th century. Its main goal is to describe the formal conigurations and the textual-interactive functions of the parenthesis found in this speciic genre. The results point out that (i) the written materiality of Editorials eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.389-420 390 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 determines the way parenthesis are formalized, and (ii) compositional features of Editorials in 19th century determines the occurrence of some kinds and functions of the parenthesis. Keywords: text-structuring; parenthetical insertions; editorial. Recebido em 27 de setembro de 2016. Aprovado em 12 de janeiro de 2017. 1 Considerações iniciais As análises e os resultados aqui apresentados desenvolvemse no interior do subprojeto Processos de construção textual: uma abordagem diacrônica, que se vincula ao Projeto de História do Português Paulista, em sua segunda fase de execução (PHPP – Projeto Caipira II). O objetivo mais geral desse subprojeto é analisar, sob perspectiva diacrônica, processos de construção textual em diversos gêneros textuais do português paulista, traçando uma comparação entre o funcionamento desses processos no século XIX e o seu funcionamento no século XX. Recortando esse âmbito maior de investigação, este trabalho se dedica ao estudo do processo de Parentetização em Editoriais paulistas do século XIX. Com base nos princípios teórico-metodológicos da Gramática Textual-Interativa (cf. JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), o objetivo geral é descrever a coniguração formal e a funcionalidade das inserções parentéticas dos Editoriais paulistas oitocentistas, ou seja, busca-se, especiicamente, (i) caracterizar o modo como se materializam os parênteses nos Editoriais analisados e (ii) delimitar suas funções textual-interativas nesse gênero especíico. A proposição desses objetivos se articula a duas hipóteses: (i) primeiramente, acredita-se que a materialidade escrita do gênero Editorial inlui sobre o modo como se formaliza, no texto, a Parentetização, isto é, governa, de alguma maneira, a coniguração formal das inserções parentéticas; (ii) em segundo lugar, prevê-se que alguns traços composicionais dos Editoriais oitocentistas, como sua funcionalidade sociocomunicativa, determinam a ocorrência de alguns tipos de parênteses e de algumas de suas funções textual-interativas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 391 Para atender a tal proposta, este artigo está estruturado em duas seções. A primeira seção discorre sobre os fundamentos teóricometodológicos do trabalho, ou seja, trata (i) dos princípios da Gramática Textual-Interativa, (ii) da noção de Parentetização aqui assumida, e (iii) da seleção de material e de parâmetros para a análise. A segunda seção sistematiza os resultados, descrevendo a coniguração formal dos parênteses nos Editoriais analisados, assim como sua funcionalidade. As considerações inais encerram o trabalho. 2 Fundamentos teórico-metodológicos 2.1 A Gramática Textual-Interativa Partindo de uma visão de língua/linguagem enquanto instrumento de interação verbal, a Gramática Textual-Interativa (doravante GTI) elege, como objeto de análise, o texto. Especiicamente, a GTI preocupase, conforme Jubran (2006a), com o funcionamento da língua em contextos reais de uso e com a atualização da atividade discursiva em textos. Para tanto, a GTI busca apoio no tripé Pragmática / Linguística Textual / Análise da Conversação. A Linguística Textual contribui com a GTI na coniguração e/ou definição de seu objeto de estudo: o texto. Pautada por um enfoque linguístico-pragmático, a GTI concebe o texto como unidade resultante da interação verbal e, assim, como unidade globalizadora e sociocomunicativa, que se constitui como tal no interior de um processo interacional (cf. JUBRAN, 2006a, p. 30). Decorre disso um princípio norteador da abordagem da GTI: “os fatores interacionais são constitutivos dos textos e inerentes à expressão linguística” (JUBRAN, 2007, p. 315). Sob a ótica da Pragmática, a GTI sustenta a primazia de uma dimensão comunicativo-interacional na descrição dos dados linguísticotextuais (cf. JUBRAN, 2006a, p. 29). Na visão da GTI, determinações de ordem pragmática, como as condições enunciativas que sustentam a interação verbal, não são desligadas da estrutura do texto, ao contrário, elas são vistas como integradas a eles; mostram-se no texto por meio das escolhas comunicativamente adequadas às situações interacionais feitas pelos usuários da língua. Admite-se, com base nessa concepção, uma sistematicidade da atividade discursiva a ponto de deinir regularidades e princípios para o processamento de estruturas textuais. 392 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 Finalmente, é por meio da Análise da Conversação que a GTI complementa seu quadro teórico para a descrição de textos falados. Segundo Jubran (2006a, p. 30), é no exame da oralidade e na abordagem de questões mais amplas a respeito da língua falada que a Análise da Conversação contribui com a GTI. Essa preocupação em buscar um quadro teórico-metodológico que fundamente a análise de textos falados toca os trabalhos reunidos em Jubran e Koch (2006), o que não é o caso deste artigo, que estuda um gênero escrito. Com base nesses princípios, a GTI investiga a construção do texto sem dissociar “suas características estruturais da dinâmica dos processos formulativo-interacionais sistematicamente envolvidos em sua produção” (JUBRAN, 2006a, p. 31). O foco de análise recai, portanto, sobre processos textual-interativos constitutivos do texto, como a Organização Tópica, a Referenciação, o Parafraseamento, a Parentetização, a Repetição e a Correção. É importante salientar que a GTI prima pelo “estabelecimento de classes não-discretas de elementos, baseado no reconhecimento da luidez de limites entre elas, em virtude do equilíbrio instável das conigurações discursivas” (JUBRAN, 2007, p. 317). Além disso, essa abordagem reconhece o princípio de gradiência no estabelecimento de funções textual-interativas de mecanismos e estratégias de construção do texto, segundo o qual um determinado fato textual ou processo constitutivo do texto pode desempenhar uma função interativa sem necessariamente deixar de desempenhar uma função textual; o que é cabível dentro dessa abordagem é que um fato textual ou processo constitutivo do texto desempenhe mais uma função do que outra, mas jamais elas serão vistas como excludentes entre si. A GTI, com base nesses princípios e objetivos, deine uma unidade de análise de estatuto discursivo e compatível com esses fundamentos teóricos estabelecidos: o tópico discursivo. Segundo Jubran (2006a), ao estudar a macroestrutura textual, vê-se que o processo básico de construção do texto é o da topicalidade: “ao longo de um evento comunicativo, os interlocutores centram sua atenção sobre determinados temas, que se constituem como foco da interação verbal” (JUBRAN, 2006a, p. 32). Assim, o tópico discursivo se deine a partir de duas propriedades: centração e organicidade. A centração corresponde à “propriedade de concentração da interação verbal em um determinado conjunto de referentes concernentes entre si” (JUBRAN, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 393 2006b, p. 302), e a organicidade, por sua vez, manifesta-se nas relações de interdependência entre tópicos, estabelecidas nos planos hierárquico e linear. 2.2 A Parentetização: processo constitutivo do texto Para Jubran (2006b), durante a construção de um tópico discursivo, variados elementos podem ser inseridos ao longo dessa unidade textual, mesmo não sendo coerentes a ela. Há dois tipos possíveis de inserções: (i) uma de maior extensão textual e com estatuto tópico, já que instaura uma nova centração dentro do segmento tópico em que ocorre, o que se chama de tópico inserido, e (ii) uma de menor extensão textual, que não adquire o estatuto de tópico discursivo por não projetar uma nova centração e, assim, não projetar e desenvolver um outro tópico discursivo dentro daquele que vinha sendo desenvolvido. Os parênteses integram-se nesse segundo grupo, constituindo-se como uma modalidade de inserção, deinida como breves desvios de um tópico discursivo, que não afetam a coesão do segmento tópico dentro do qual ocorrem. (JUBRAN, 2006b, p. 303) A propriedade deinidora de uma inserção parentética é, dessa forma, o desvio tópico: “um encaixe em um segmento tópico de elementos não-concernentes ao tópico discursivo desse segmento” (JUBRAN, 2006b, p. 305). O exemplo em (1), retirado de um Editorial do corpus, traz duas inserções parentéticas que evidenciam essa propriedade deinidora dos parênteses. (1) A missão que nos impuzemos é escabrosa, bem o | sabemos; tanto mais quando o nosso objectivo de es- | tudos – a sociedade brazileira actual em seu con- | juncto – conta elevadissimo deicit no balanço de mi- | nimas e isoladas prosperidades com que confronta o | grosso peculio de calamidades a avultar por todos os | lados do horisonte e nos mais importantes centros da vitalidade nacional. (A Província de São Paulo, janeiro de 1875) 394 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 Em (1), o tópico discursivo centra-se sobre a missão e os objetivos de estudos do jornal A Província de São Paulo.1 Ao avaliar a missão que o jornal assume, o escrevente encaixa um primeiro segmento não muito concernente com o tópico relevante do segmento-contexto (no caso, bem o sabemos), já que desloca a atenção do tópico para a face do próprio escrevente, isto é, desvia-se da centração do tópico discursivo ali desenvolvido para focalizar o escrevente do Editorial, que, pelo uso da primeira pessoa, igura como o jornal na condição de instância veiculadora de informações. Por outro lado, o segundo segmento parentético (no caso, a sociedade brazileira actual em seu conjunto) é encaixado dentro do tópico discursivo de modo a esclarecer a referência construída pelo sintagma objetivo de estudos, o que confere a esse segmento um baixo grau de desvio tópico, mas o caracteriza como uma breve suspensão, centrada no conteúdo do segmento-contexto. Na visão de Jubran (2006b), a propriedade do desvio tópico se dá em termos graduais, ora desviando-se muito pouco do segmento tópico, ao ressaltar aspectos do próprio conteúdo tópico, como o segundo parêntese em (1), ora desviando-se bastante do tópico discursivo, ao inserir no texto instâncias da enunciação, como seus participantes (locutor ou interlocutor) e a situação comunicativa em si, como o primeiro parêntese em (1). Se, por um lado, os parênteses se definem como desvios tópicos, por outro, eles também podem ser deinidos por sua dimensão pragmática, de natureza também gradual e variável. De acordo com Jubran (2006b, p. 307-308), os segmentos parentéticos, atuando sobre a dimensão ideacional do texto, podem sinalizar relações interpessoais e materializar, no texto, a atividade interacional, contextualizando o texto construído na situação de enunciação. Em (1), por exemplo, a primeira inserção parentética marca a voz coletiva que se instaura num texto como o Editorial e qualiica essa voz coletiva para discorrer sobre o tópico, conferindo maior coniabilidade à qualiicação ali descrita a respeito da missão do jornal; já a segunda inserção parentética, mesmo que pouco 1 A referência ao jornal A Província de São Paulo materializa-se pela presença de marcas da primeira pessoa do plural (como, nos impuzemos e nosso objectivo). A primeira pessoa do plural coletiviza o escrevente do editorial, não colocando nesse papel um único sujeito, mas todo o jornal. Trata-se, de fato, de um mecanismo de dar voz ao jornal enquanto meio de veiculação de informações e de formação de opiniões. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 395 desviante do tópico discursivo do segmento-contexto, colabora na inteligibilidade do texto, especiicando o referente trazido para aquele texto, e, assim, diz respeito à cooperação entre participantes na interação para a construção de signiicados. Partindo dessa variabilidade do grau de desvio tópico e da manifestação de fatores pragmáticos, Jubran (2006b; 2007) estabelece quatro classes de parênteses, gradualmente ordenadas de modo a reletir o grau de proximidade da inserção parentética ao tópico discursivo e o grau de inserção de elementos da situação interativa em que o texto é produzido: (a) parênteses focalizadores da elaboração tópica, cuja atenção se volta para três aspectos relacionados ao desenvolvimento do tópico discursivo: o conteúdo tópico, a atividade de formulação linguística ou a estruturação do tópico; (b) parênteses com foco no locutor, que materializam a presença do locutor ou escrevente no texto que produz, marcando seu posicionamento e as representações de seu papel discursivo; (c) parênteses com foco no interlocutor, que materializam a presença do interlocutor no texto, pela referência a seu papel discursivo e ao seu envolvimento não só com o escrevente/locutor, como também com o assunto em curso; (d) parênteses focalizadores do ato comunicativo, que, integrando a classe de parênteses que promovem um grau máximo de desvio tópico, provocam uma suspensão do tópico discursivo para focalizarem o ato comunicativo que está em processamento. Assim, enquanto a classe (a) apresenta um grau maior de proximidade ao tópico discursivo e menor explicitação verbal da pragmática do texto, a classe (d) apresenta um afastamento tópico máximo e uma maior aproximação do ato interacional, isto é, uma maior explicitação das condições pragmáticas envolvidas na construção textual. A cada uma dessas classes, correspondem funções textual-interativas especíicas, representadas, com base em Jubran (2006b, p. 327), no quadro 1. 396 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 QUADRO 1 – Classes e funções dos parênteses Classe dos parênteses – foco no conteúdo tópico (a) parênteses focalizadores da elaboração tópica do texto – foco na formulação linguística – foco na estrutura tópica (b) parênteses com foco no locutor (c) parênteses com foco no interlocutor Funções textual-interativas dos parênteses (a) exempliicação (b) esclarecimento (c) ressalva (d) retoque (e) correção (a) explicitação do signiicado de palavras (b) indicação de mudança de registro (c) verbalização da atividade formulativa (d) sinalização de busca de denominações (e) solicitação de colaboração do interlocutor na seleção lexical (a) marcação de subdivisões de um quadro tópico (b) marcação de retomada do tópico (c) marcação do estatuto discursivo de um fragmento do texto (a) qualiicação do locutor para discorrer sobre o tópico (b) manifestação de interesse ou desinteresse pelo tópico (c) indicação de desconhecimento do tópico (d) manifestações atitudinais do locutor em relação ao tópico (e) indicação da fonte enunciadora do discurso (a) estabelecer inteligibilidade do tópico (b) evocar conhecimento partilhado do tópico (c) testar a compreensão do locutor (d) instaurar conivência com o interlocutor (e) chamar a atenção do interlocutor para um elemento do tópico (f) atribuir qualidades ao interlocutor para a abordagem do tópico (a) sinalização de interferências de dados externos ao ato comunicativo (d) parênteses focalizadores do (b) estabelecimento da modalidade do ato com. ato comunicativo (c) estabelecimento de condições para realização/prosseguimento do ato com. (d) avaliação do ato comunicativo (e) negociação de turnos Fonte: Jubran, 2006b, p. 327 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 397 2.3 Deinição do material e dos parâmetros de análise O material de análise deste trabalho constitui-se de Editoriais publicados no jornal A Província de São Paulo (denominado, a partir de 1889, de O Estado de São Paulo), no período de 1875 a 1893, e organizados por Lopes-Damasio e Jubran (2015) para integrar o corpus do Projeto Caipira em sua segunda fase de execução.2 Do conjunto de Editoriais reunidos pelas autoras, selecionamos quarenta, que incluem, pelo menos, dois editoriais de cada ano nesse período (entre 1875 e 1893).3 Desse conjunto de quarenta Editoriais, foram coletadas 132 ocorrências de inserções parentéticas, numa média de três por Editorial analisado. Esses dados de parênteses são analisados adotando-se alguns parâmetros deinidos com base no trabalho de Jubran (2006b). Os três primeiros buscam descrever a coniguração formal das inserções parentéticas, isto é, o modo como se materializam os parênteses nos Editoriais paulistas do século XIX; para tanto, analisam-se (i) as marcas formais da inserção parentética, (ii) as fronteiras de ocorrência dos parênteses e (iii) a constituição formal dos parênteses.4 Os dois últimos investigam as classes e as funções textual-interativas das inserções parentéticas, na tentativa de averiguar quais delas predominam nos Editoriais paulistas oitocentistas. Como se intenciona sistematizar o que é predominante e mais frequente na formalização e no funcionamento do processo de Parentetização nesses Editoriais, utiliza-se o programa estatístico do pacote GOLDVARB para auxiliar na apuração das frequências e dos percentuais. Embora este trabalho não se paute por um interesse variacionista, recorrer aqui a essa ferramenta estatística se justiica exclusivamente pelo fato de ela constituir uma garantia de que todas as ocorrências serão analisadas qualitativa e quantitativamente à luz dos mesmos critérios estabelecidos. 2 Lopes-Damasio e Jubran (2015) reúnem um conjunto de 204 Editoriais publicados no período de 1875 a 1893, no jornal A província de São Paulo, atual O Estado de São Paulo (cf. LOPES-DAMASIO; JUBRAN, 2015). 3 Em dois anos, os de 1879 e 1891, selecionamos três Editoriais, o que nos levou ao total de quarenta Editoriais. A opção por selecionar três Editoriais para esses dois anos em especíico se deu pela escassez de dados nos dois Editoriais inicialmente selecionados para esses dois anos. 4 Trataremos mais detalhadamente de cada parâmetro na seção de análise. 398 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 3 As inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX 3.1 Formalização das inserções parentéticas nos Editoriais paulistas do século XIX O objetivo desta seção é entender como se materializam, na superfície textual dos Editoriais analisados e no processamento de sua estrutura textual, as inserções parentéticas. Um primeiro aspecto a se observar são as marcas formais de inserção parentética, que, segundo Jubran (2006b), funcionam, ao lado da propriedade de desvio tópico, como critério para o reconhecimento de inserções parentéticas. No interior do segmento parentético, Jubran (2006b) registra, como marcas da inserção parentética, (i) a ausência de conectores lógicosemânticos e (ii) alguns fatos prosódicos, como pausas e alterações na pronúncia. Como o trabalho da autora tem como foco os textos falados, o critério (ii) se mostra bastante produtivo e altamente fundamental para a identiicação de parênteses. Para este trabalho, entretanto, devido à materialidade escrita dos textos analisados, essas marcas prosódicas não podem ser observadas, o que faz a atenção se voltar para outro tipo de marcação, além da presença/ausência de conectores prefaciando o segmento parentético: as marcas gráicas que contribuem para a delimitação dos fatos parentéticos, como vírgulas, travessões e parênteses. Nos Editoriais paulistas do século XIX, predominam segmentos parentéticos não prefaciados por conectores (79 ocorrências; 59,8% dos dados). Em (2a), por exemplo, o escrevente suspende o tópico discursivo para manifestar sua franqueza em relação ao tópico discursivo; tal segmento parentético não é prefaciado por nenhum tipo de conectivo. Ocorrências de parênteses com partículas conectivas representam 40,2% dos dados (53 ocorrências): em (2b), por exemplo, o escrevente suspende o tópico discursivo para mostrar que encara com naturalidade o conteúdo do tópico discursivo em andamento; tal segmento parentético é prefaciado pelo conectivo como. (2) a) Nada temos, portanto com as conjecturas | do nosso collega da Germania e, permitta- | nos a franqueza, com as suas considerações | sobre a preferencia dos professores allemães | ou de outra qualquer nacionalidade. (A Província de São Paulo, janeiro de 1886) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 399 b) Os | fretes são extraordinariamente caros e | matam o commercio, que se desforça, | como é natural, com a alta dos generos. (A Província de São Paulo, março de 1893) Embora haja um predomínio de ausência de conectores introduzindo os fatos parentéticos, não se pode negar que é considerável (e, talvez, relevante) a frequência de ocorrências parentéticas introduzidas por esses elementos linguísticos. Esse resultado contraria uma tendência apontada por Jubran (2006b): a de que a ausência de conectivos prefaciando o segmento parentético, e, assim, a ausência de qualquer mecanismo de articulação entre esse segmento e o segmento-contexto é uma evidência da propriedade de desvio tópico. Prefaciando os segmentos parentéticos dos Editoriais analisados, encontramos: (i) preposições, como de, com, sem e por, (ii) conjunções como se, embora e como, (iii) pronomes relativos e (iv) marcadores discursivos, como aliás, e, isto é, mas e mesmo. O uso de preposições (cf. (3)) parece atender mais à estrutura sintático-semântica interna do segmento parentético e não necessariamente vincular esse segmento ao enunciado em que se encaixa (ao segmentocontexto). (3) Cumpre que os poderes publicos to- | mem providencias, que hoje se apresen- | tam com caracter de innegavel urgen- | cia, para acompanharem de perto, com | protectora vigilancia, esse progresso ex- | traordinario. (A Província de São Paulo, março de 1890) Em (3), o segmento parentético com protectora vigilancia suspende o tópico discursivo em andamento para ampliar a referência do que se deve compreender por acompanhar de perto. Esse segmento parentético constitui-se, na verdade, de um sintagma preposicionado, e a preposição com contribui, de certa forma, para a funcionalidade do parêntese enquanto elemento de esclarecimento, ou melhor, como porção informacional que elucida e detalha alguma informação tópica, o que auxilia na clareza do enunciado e na cooperação entre escrevente e destinatário(s) na interação mediada pelo Editorial. Desse modo, acredita-se que a ocorrência de preposições no início de parênteses não interfere na propriedade de desvio tópico por 400 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 dois motivos: (i) primeiramente, porque os parênteses prefaciados por preposições constituem, no geral, segmentos tópicos que se voltam para a própria elaboração tópica do texto, especiicamente para o conteúdo tópico, o que evidencia que o uso de preposições se dá no contexto de parênteses com baixo grau de desvio tópico; (ii) em segundo lugar, porque seu uso traz contribuições de ordem discursiva para o processo de Parentetização, isto é, para o funcionamento textual-interativo do parêntese; em (3), por exemplo, o signiicado de modo/maneira veiculado pela preposição com colabora com o funcionamento da inserção parentética enquanto segmento que esclarece, ao destinatário/leitor, o que o escrevente deseja evocar com o sintagma de perto. O mesmo se aplica aos casos de parênteses introduzidos por conjunções adverbiais. Em (4), a conjunção condicional se não instaura, necessariamente, uma articulação de base condicional entre orações; ela mais reforça o caráter hipotético da objeção/correção que o segmento parentético ali insere. (4) O anno de 1875 abre-se, pois, conservando, se não | augmentando, em muitos espiritos, justas e sérias ap- | prehensões quanto á felicidade d’esta grande nação. (A Província de São Paulo, janeiro de 1875) A oração destacada em (4), mesmo prefaciada pela conjunção condicional se, não se integra estruturalmente a outra, mas mantém uma relação adverbial com o discurso precedente. De acordo com a proposta de Decat (2001), essas orações são desgarradas, já que constituem unidades informacionais independentes. Esse traço de independência ou de desgarramento, em termos estruturais, revela que orações como (4), mesmo introduzidas por conjunções, constituem segmentos parentéticos. Segundo Stassi-Sé (2012), estruturas independentes ou desgarradas como a de (4) apresentam um funcionamento textualinterativo que revela certo grau de desvio tópico, o que torna possível caracterizá-las como inserções parentéticas. Assim, para a autora, estruturas “autônomas/desgarradas” prefaciadas pela conjunção condicional se (cf. (4)) funcionam como salvaguardas: estruturas com as quais o escrevente busca preservar sua face ao inserir (e, assim, desviarse do tópico discursivo em desenvolvimento) uma informação da qual não tem plena certeza. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 401 Essa análise também se aplica aos segmentos parentéticos iniciados por pronomes relativos (cf. (5)), que são, na verdade, orações adjetivas apositivas ou explicativas (cf. DECAT, 1999; 2001). (5) No dia em que a Gazeta de Notícias | publicou aquelle artigo O que anda no | ar, que já resumimos nesta folha, o Dia- | rio do Commercio, que vive na intimida- | de do governo, dizia, em artigo de [ilegível], que o Brasil está sendo ludibriado: não | querem uma republica que se governe, | e por isso tractam de restaurar um re | gimen que os faça governar. (A Província de São Paulo, novembro de 1891) Em (5), o segmento parentético que vive na intimidade do governo desvia a centração do tópico discursivo para detalhar o referente anteriormente exposto, Diario do Commercio, trazendo novas informações relevantes para o esclarecimento do que se expõe no tópico discursivo. Segundo Decat (2001), orações adjetivas apositivas, como a de (5), constituem unidades de informação à parte e, dessa forma, constituem orações desgarradas; podem ser consideradas, portanto, fatos parentéticos. Por im, em (6), são trazidas algumas ocorrências de fatos parentéticos prefaciados por marcadores discursivos. (6) a) b) c) O que não fazemos, e nunca faremos, é da imprensa | um poste para os adversarios e altar para correligio- | narios por mais peccadores que elles sejam. (A Província de São Paulo, janeiro de 1879) E em bem da probidade do tribunal, mas | não tanto em hora do dever de alta magis- | tratura, a causa attribuida é a pressa no jul- | gamento que obriga os juizes a examinarem | pouco os documentos e a adoptarem os funda- | mentos do juiz de direito. (A Província de São Paulo, janeiro de 1884) Da população em edade de freguentar es- | colas, orçada em 108,799 tambem sómen- | te um oitavo, isto é, cerca de 20 mil, fre- | quenta escolas, deixando de frequental-as | quase 150 mil! (A Província de São Paulo, janeiro de 1876) 402 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 d) Em escripto de maior folego seria isso a liquidação | philosophica e politica do passado e a denuncia pre - | vidente do porvir. Nessas rapidas linhas só póde ser | opportuno esboço para que melhores espiritos, na cal- | ma da consciência e no remanso do gabinete , com- | pletem a obra, aliás patriotica e capaz de fecundo en- | sinamento e urgentissimos conselhos á sociedade em | geral e aos proprios Palinuros do Estado. (A Província de São Paulo, janeiro de 1875) Em (6a), por exemplo, o segmento parentético e nunca faremos vem ampliar a abrangência da airmação anteriormente estabelecida, reforçando que a declaração de não fazer da imprensa um poste para os adversários estende do momento presente (fazemos) a momentos posteriores, futuros (faremos). Trata-se, portanto, de um parêntese de ordem mais textual, com foco no conteúdo tópico, especiicamente uma ressalva; pode-se, entretanto, visualizar uma atuação interacional desse parêntese, que, ao menos, age na preservação da face do escrevente, adiantando e bloqueando qualquer suposição do(s) destinatário(s) a respeito do conteúdo tópico abordado. Nesse sentido, o e introduzindo tal segmento não só atua num plano textual, no sequenciamento da unidade parentética, como uma partícula de adição, mas, principalmente, constitui um mecanismo de conferir ênfase ao segmento parentético, atuando, assim, num plano mais interativo (cf. PENHAVEL, 2006). Já em (6b), o segmento parentético mas não tanto em hora do dever de alta magistratura traz uma ressalva em relação ao conteúdo expresso pelo sintagma em bem da probidade do tribunal. O que se nota é que, assim como e em (6a), o marcador mas não se presta somente à função de articulação ou de conexão, mas age sobre a conectividade discursiva, sustentando o caráter contrastivo do segmento parentético de forma a evidenciar seu estatuto de ressalva. Em (6c) e (6d), por im, os segmentos parentéticos detalham dados expostos no tópico discursivo, funcionando como esclarecimentos. Os marcadores discursivos isto é e aliás são, de certa forma, sequenciadores tópicos e contribuem para o signiicado particularizador associado aos parênteses que introduzem. Explorar cada um dos tipos de conectivos lógico-semânticos que prefaciam as inserções parentéticas encontradas no corpus demonstra que, independentemente de sua natureza relacional, esses conectivos não Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 403 interferem na propriedade de desvio tópico e, dessa forma, segmentos por eles introduzidos podem constituir parênteses (cf. STASSI-SÉ, 2012). Entre as 53 ocorrências de parênteses prefaciados por conectivos, 37 (praticamente 70% dos dados) são casos de parênteses com foco no conteúdo tópico, ou seja, são parênteses com um grau mínimo de desvio tópico, e alguns constituem casos de desgarramento (cf. DECAT, 1999; 2001). Além disso, é importante a contribuição desses conectivos para a signiicação e a funcionalidade textual-interativa dos segmentos parentéticos. Essa análise, no geral, faz visualizar também que a considerável frequência de elementos conectivos entre os dados de parênteses coletados se deve ao tipo de interação em que circula o Editorial, uma interação que, distante da conversação face-a-face, não se apoia nas circunstâncias contextuais imediatas do aqui-e-agora. Os conectivos, assim, constituem suportes para o funcionamento das inserções parentéticas. Em relação às marcas gráicas, ajudam a delimitar as inserções parentéticas, essencialmente, vírgulas (123 ocorrências, o que representa 93,2% dos casos). Há alguns casos de parênteses (2 ocorrências; 1,5%) e de travessão (6 ocorrências; 4,5%) e um único dado em que aparece ponto-e-vírgula associado a travessão (0,8%). (7) a) b) c) O serviço que desagrada e levanta re- | clamações não é mal feito por má vonta- | de dos empregados, justiça se lhes faça, | mas por deiciencia de pessoal. (A Província de São Paulo, janeiro de 1886) Quanto á demora da viagem das mer- | cadorias nas poucas estradas que temos, | porque não adoçou a pilula da censura | (até certo ponto justa), fazendo-nos ver | que essa demora, afinal, é uma conse- | quencia do nosso extraordinario e ines- | perado progresso nestes ultimos annos? (A Província de São Paulo, março de 1893) Entretanto−dóe-nos o dizel-o, mas a | verdade acima de tudo−o serviço de ex- | tincção, ha tanto tempo organisado, ain- | da é a mesma cousa rudimentar e im- | prestavel de ha muitos annos atraz. (A Província de São Paulo, março de 1890) 404 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 d) Fallou depois o sr. Albuquerque | Lins que desenvolveu alguns longos | apartes 15 que havia dado nos dias ante- | riores. Fez a historia do abolicionis- | mo para dizer que o partido liberal e | a illustre familia Queiroz são abolicio - | nistas e mais, que o partido conserva- | dor e outros pretendem esses fó- | ros com menos civismo ;–aquelle ci- | vismo a que se referiu o sr. Augusto | Queiroz. (A Província de São Paulo, março de 1888) Em (7), diferentes fatos gráicos contribuem na delimitação dos parênteses. Em (7a-b), a suspensão do tópico discursivo para que o escrevente demonstre sua atitude/crença de justiça em relação ao conteúdo desse tópico se delimita pelo uso das vírgulas (cf. (7a)) e dos parênteses (cf. (7b)). Já em (7c), o segmento parentético, também revelador da atitude do escrevente em relação ao tópico discursivo, delimita-se por meio dos travessões. Por im, em (7d), combinam-se ponto-e-vírgula e travessão para delimitar a inserção parentética que esclarece a referência de um elemento do tópico discursivo. Outro ponto que diz respeito à materialização do processo de Parentetização é a fronteira de inserção do segmento parentético. Jubran (2006b, p. 310) considera que qualquer fato parentético ocorre na fronteira entre constituintes (cf. (8a-b)) ou unidades frasais (cf. (8cd)), de forma que se possa segmentar o trecho em que ocorre a inserção parentética da seguinte maneira: E1 = segmento anterior ao parêntese, E2 = o parêntese e E3 = segmento posterior ao parêntese. As ocorrências em (8) seguem esse padrão. (8) a) b) A approximação dos dous grupos | monarchicos, apparentemente diver- | gentes, explica a declaração do voto | do sr. Almeida Nogueira, na questão | de coniança 40 politica no actual gabi- | nete. (A Província de São Paulo, agosto de 1889) Cumpre que os poderes publicos to- | mem providencias, que hoje se apresen- | tam com caracter de innegavel urgen- | cia, para acompanharem de perto, com | protectora vigilancia, esse progresso ex- | traordinario. (A Província de São Paulo, março de 1890) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 c) d) 405 Nessa occasião o sr. visconde do Rio Branco | prestou um grande serviço ao paiz, é verda- | de, mas dahi não lhe veio gloria por não | ter s. exc. tido a iniciativa da idéa. (A Província de São Paulo, agosto de 1879) Si esta idéa fôr levada a effeito—e não | cremos que encontre tropeços—icará a | S. Paulo a glória de se ter lembrado, pri- | meiro entre todos os Estados da nação,de | commemorar os grandes homens que por | seus feitos e por suas obras bem mere- | ceram do seu paiz. (A Província de São Paulo, agosto de 1893) Em (8a), o parêntese se insere entre o SN sujeito (a approximação dos dous grupos monarchicos) e o SV (explica...); já em (8b), o parêntese se insere entre o SN (providencias) e a oração que o completa (para acompanharem de perto, com protectora vigilancia, esse progresso extraordinario). Por outro lado, em (8c), o parêntese se encontra entre as duas orações articuladas pela adversativa mas; em (8d), o parêntese se insere entre a oração condicional e a sua principal. Quando interrompem a adjacência entre constituintes ou entre unidades frasais, como em (8), os fatos parentéticos suspendem o processamento do tópico sem nenhum corte sintático, e, entre E1 e E3, não há qualquer tipo de descontinuidade sintática. Em casos como (8c), no segmento E3, há a presença de um conectivo ou de um marcador discursivo para retomar o tópico suspenso pelo parêntese e progredir com o tópico discursivo a partir de E1. De certa forma, essa sistematicidade na marcação da inserção parentética está intrinsicamente ligada à materialidade escrita do gênero Editorial, que, de certa forma, envolve um planejamento de sua atividade formulativa. O gênero Editorial, sendo um gênero escrito, é altamente planejado e elaborado, o que possibilita que se controle o modo como se formalizam suas inserções parentéticas, evitando-se, assim, inserções que interrompem, com rupturas ou cortes sintáticos, o processamento do tópico discursivo, como ocorre em (9). (9) L1 – de vez em quando aparecem as riscas no chão marcando o início de pista...mas...na maioria das vezes tao todas apagadas o que () terrivelmente em dirigir principalmente à noite. 406 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 L2 – isso é um problema econômico é o mesmo caso agora vai entrar o técnico pra dar a/ a satisfaçao...acontece o seguinte a sinalizaçao...é um/ uma etapa cara da estrada...mas...é indispensável à segurança de tráfego... (JUBRAN, 2006b, p. 316, grifos do autor) Em (9), ocorrência de um texto falado, o segmento parentético agora vai entrar o técnico pra dar a/ a satisfaçao... gera um corte sintático no tópico discursivo em desenvolvimento, de forma que há um reprocessamento da informação anterior ao segmento parentético por meio de uma estratégia de reformulação textual. Esse tipo de ocorrência não foi identiicado nos Editoriais analisados, o que, a nosso ver, decorre da atividade altamente planejada e elaborada envolvida em sua construção. As inserções parentéticas, nos Editoriais analisados, podem também ocorrer no início (cf. (10a)) ou no im de unidades frasais (cf. (10b)). (10) a) Em boa politica, á parte as ques- | tões de personalidades, e esquecidas | as queixas partidarias, o ministerio 7 | de Junho devia ser sustentado pelos | conservadores evolucionistas. Era o | que a situação reclamava; infeliz- | mente, porém, estes soffrem crúa | guerra do governo e o novo partido, | apezar da sua largueza de vistas, é | obrigado a negar apoio antecipado | ao ministerio 7 de Junho, tão con- | servador ou tão liberal como o 10 de | Março. A dizer a verdade, não sabemos em | que se differenciam quanto aos prin- | cipios os srs. Affonso Celso e Pauli- | no de Souza, os srs. A. Prado e | Saraiva embora este seja federalista | que não conhece bem a distincção dos | dous programmas liberaes,o da maio- | ria do Congresso e o do sr. Ruy Bar- | bosa. (A Província de São Paulo, agosto de 1889) b) O domingo entre nós já se vae tornando | um perigo sério para os que atrevem-se a | pôr pé na rua, principalmente das 4 horas | da tarde ás 10 ou 11 da noite, se é que não | correm egual perigo mesmo as familias que | limitam-se a vir á janella. (A Província de São Paulo, fevereiro de 1876) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 407 Em (10a), o segmento parentético em negrito encontra-se no início de um parágrafo do Editorial. Trata-se de uma inserção parentética se considerarmos a sequenciação desse parágrafo introduzido pelo parêntese em relação ao parágrafo anterior e, além disso, se tomarmos em conta que esse segmento parentético é bastante desviante da centração do tópico discursivo pois foca a imagem do escrevente, manifestando sua atitude em relação ao tópico que está sendo desenvolvido. Por outro lado, em (10b), o segmento parentético em negrito reformula uma informação tópica precedente. Seu grau de desvio tópico é bem menor se comparado ao de (10a), porém podemos considerá-lo uma inserção parentética. A maioria dos segmentos parentéticos encontrados se interpõe na fronteira entre unidades linguísticas, conigurando a sequência E1-E2-E3. São 86 ocorrências de parênteses entre constituintes da frase (65,2 % dos dados) e 24 de parênteses no limite entre duas unidades frasais (18,2 % dos dados), o que totaliza 110 parênteses rompendo a adjacência entre constituintes ou entre unidades frasais (83,4 % dos dados). Parênteses no im de frase ou de parágrafo totalizam 21 ocorrências (15,9% dos dados), e há uma única ocorrência de parêntese no início de parágrafo (0,8% dos dados). De certa forma, esses dados estatísticos revelam que a posição prototípica de segmentos parentéticos é na fronteira/adjacência de unidades linguísticas. Por im, em relação à sua constituição formal, Jubran (2006b) airma que os parênteses são, no geral, de curta duração e podem ter as seguintes conigurações formais: (i) marcadores discursivo; (ii) sintagmas nominais; (iii) frases simples; (iv) frases complexas e (v) pares adjacentes. Constituições formais como (i) e (v) não foram encontradas entre nossos dados. Jubran (2006b), em seu estudo de textos falados, cita parênteses constituídos predominantemente de marcadores discursivos orientadores da interação, como claro?, entendeu? e digamos assim. Em textos como os Editoriais, de um discurso planejado e elaborado, em que o “modus sintático prevalece sobre o pragmático” (JUBRAN, 2006b, p. 301), não é muito fácil encontrar parênteses constituídos por esses marcadores. Assim também ocorre com parênteses constituídos de pares adjacentes, como o par dialógico pergunta-resposta, típicos de situações conversacionais, em que predomina uma interação face-a-face. Dessa forma, nos Editoriais paulistas analisados, os parênteses encontrados se constituem formalmente como sintagmas (cf. (11a-c)), 408 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 frases simples (cf. (11d-e)) e frases complexas (cf. (11f-g)). No que se refere aos parênteses de estrutura sintagmática, Jubran (2006b), em seu corpus de textos falados, identiica somente parênteses constituídos por sintagmas nominais; já nos editoriais analisados, além dos sintagmas nominais (cf. (11a)), encontram-se parênteses constituídos por sintagmas adjetivais (cf. (11b)) e por sintagmas preposicionados (cf. (11c)). (11) a) No 2º escrutinio do 1º e 7º districtos venceu | a opposição, sendo eleito naquelle o sr. dr. An- | tonio Prado, candidato conservador, e neste o | sr. dr. Campos Salles, candidato republicano. (A Província de São Paulo, 03/01/1885). b) A opposição, assim constituida, ha | de muitas vezes unir-se e embaraçar | actos menos regulares do partido domi- | nante. (A Província de São Paulo, 11/01/1887). c) O chefe do estado despediu os seus minis- | tros conservadores e chamou outros, de po- | litica diversa, representantes dos matizes do | liberalismo. (A Província de São Paulo, 12/01/1878). d) Necessitamos de uma politica practica, é certo, | mas cujos actos sejam inspirados por um ideal de- | terminado, claro e concludente (A Província de São Paulo, 04/01/1875). e) O que não fazemos, e nunca faremos, é da imprensa | um poste para os adversarios e altar para correligio- | narios por mais peccadores que elles sejam. (A Província de São Paulo, 04/01/1879). f) Coniamos muito no criterio dos membros | da commissão, entre os quaes se acha um | que tambem se corresponde com sabios es- | pecialistas da Europa, para darmos a pater- | nidade de actos bons sómente ao sr. D. Pe- | dro II. (A Província de São Paulo, janeiro de 1886) g) O mais operoso, o mais assiduo e o | mais brilhante redactor do Commercio | de S. Paulo, o illustre sr. José Julio Ro- | drigues–a quem enviamos cordiaes cum- | primentos, por que é a primeira vez que | nos encontramos–acaba de publicar, na- | quella folha, um artigo que não deve | circular sem alguns comentarios. (A Província de São Paulo, março de 1893) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 409 Para Jubran (2006b, p. 356), algumas conigurações formais (e até mesmo funções) dos parênteses são especíicas de textos falados, por conta das circunstâncias de processamento da fala, que diferem das da escrita. A autora reconhece que textos escritos prototípicos, que são altamente planejados e lapidados, não abrigam as descontinuidades que os parênteses provocam nos segmentos tópicos de textos falados, e nem mesmo as conigurações formais veriicados em textos falados. Esta seção, enim, elucida bem essa airmação da autora em dois pontos: (i) um texto escrito como o Editorial, que ocupa um pólo extremo no contínuo fala-escrita (cf. MARCUSCHI, 2001), altamente planejado e elaborado, não apresenta parênteses que, inseridos na fronteira entre constituintes ou entre unidades frasais, interrompem a estrutura sintática da sentença e, assim, provocam descontinuidades no texto, e (ii) a materialidade escrita do texto também inlui nas marcas de inserção parentética, deixando proeminente a função de conectivos lógico-semânticos na introdução desses segmentos e, além disso, fazendo uso de diversas marcas gráicas na sua delimitação. 3.2 Funcionalidade das inserções parentéticas em Editoriais paulistas do século XIX Predominam, nos Editoriais paulistas do século XIX, duas classes de parênteses: a classe (a), especiicamente os parênteses com foco sobre o conteúdo tópico (cf. (12a)), com 97 ocorrências (73,6% dos dados), e a classe (d), parênteses com foco sobre o escrevente (cf. (12b)), com 32 ocorrências (24,3% dos dados). (12) a) O anno de 1875 abre-se, pois, conservando, se não | augmentando, em muitos espiritos, justas e sérias ap- | prehensões quanto á felicidade d’esta grande nação. (A Província de São Paulo, janeiro de 1875) b) Nada temos, portanto com as conjecturas | do nosso collega da Germania e, permitta- | nos a franqueza, com as suas considerações | sobre a preferencia dos professores allemães | ou de outra qualquer nacionalidade. (A Província de São Paulo, janeiro de 1886) 410 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 Em (12a), o segmento se não augmentando focaliza o conteúdo tópico do segmento-contexto e, dessa forma, guarda uma proximidade com o tópico discursivo em desenvolvimento. Sua função, portanto, é mais textual, reformulando a informação tópica precedente. Ele não deixa, entretanto, de ter uma natureza interacional, ainda que pouco evidente: esse parêntese, ao menos, cumpre com a questão da informatividade, acrescentando, ao destinatário, uma nova informação em relação ao conteúdo tópico. Já em (12b), é por meio do segmento permitta-nos a franqueza que o sujeito escrevente se introjeta no texto que produz e traz para ele uma representação a respeito de seu papel discursivo. Sua função, portanto, é de natureza mais interacional, uma vez que o escrevente manifesta, para o destinário, sua atitude em relação ao tópico. A predominância de segmentos parentéticos com foco no conteúdo tópico evidencia a condensabilidade do Editorial, um dos atributos fundamentais desse gênero, segundo Beltrão (1980). O Editorial, frente a tal propriedade, deve focalizar e desenvolver um único tópico ao longo do texto. Como os parênteses da classe (a) se orientam quase que exclusivamente para o tópico em desenvolvimento no texto, seu predomínio nos Editoriais paulistas do século XIX reduz a materialização e a explicitação, ao longo do texto, das circunstâncias situacionais de interlocução, o que garante a focalização apenas no conteúdo a ser abordado pelo Editorial. Os parênteses com foco no conteúdo tópico encontrados nos Editoriais analisados apresentam quatro funções diferentes no sentido de caracterizar um referente do conteúdo tópico: esclarecimento (cf. (13a-b)), ressalva (cf. (13c-d)), retoque (cf. (13e)) e correção (cf. (13f)). (13) a) A independente e activa provincia de S. Paulo, juiz | de nossa conducta nas lides da imprensa, dirá se te- | mos concorrido para seu engrandecimento e se esta | folha corresponde a uma necessidade relativa ao seu | progresso e nobres aspirações. (A Província de São Paulo, 1879) b) Ainal o passageiro, aflicto e maldizen- | do do serviço e da Companhia, corre por | sua vez a procurar a familia para acom- | modal-a. (A Província de São Paulo, 1882) c) Duplo motivo – o novo anno e o início de nossa | carreira – convida-nos a não deixar passar o momen- | to sem algumas relexões, genericas embora, sobre a | actualidade do paiz. (A Província de São Paulo, 1875) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 411 d) Quanto á parte que nos diz respeito, não | podemos acceitar como procedentes as alle- | gações do illustrado contemporaneo. Não | tratamos de professores allemães nem de | preferencias pelos inglezes ou americanos : | apenas extranhamos que, com a responsabi- | lidade do illustre presidente da commissão | do plano de ensino, se désse autoridade ao | imperador para intervir na execução da nova | lei provincial e se attribuisse aos dous, sem | duvida cavalheiros muito distinctos, uma | providencia que estava determinada na mes- | ma lei. (A Província de São Paulo, 1886) e) O domingo entre nós já se vae tornando | um perigo sério para os que atrevem-se a | pôr pé na rua, principalmente das 4 horas | da tarde ás 10 ou 11 da noite, se é que não | correm egual perigo mesmo as familias que | limitam-se a vir á janella. (A Província de São Paulo, 1876) f) Tendo obtido por favor do sr. Saraiva, e | não por inluencia propria, um logar na lis- | ta tríplice da Bahia, era decoroso e de boa | lealdade que o sr. Zacharias não procurasse | açodadamente empalmar a senatoria por | meio da empalmação do ministerio. (A Província de São Paulo, 1880) Parênteses de esclarecimento, como em (13a-b), tem por inalidade (i) detalhar a referência de algum elemento trazido anteriormente, como em (13a), em que o aposto juiz de nossa conducta nas lides da imprensa torna clara a referência evocada pelo sintagma nominal a independente e activa provincia de S. Paulo, ou (ii) elucidar dados que contribuem para a clareza dos conteúdos ali presentes, como em (13b), em que o sintagma aflicto e maldizendo do serviço e da Companhia particulariza uma informação do contexto descrito para atender a um propósito maior do jornal, o de denúncia das condições dos serviços prestados pela companhia de trem. Já parênteses de ressalva, como em (13c-d), servem como observações do escrevente a respeito da abrangência referencial de elementos ou conteúdos do enunciado, cumprindo, desse modo, um papel mais textual. No âmbito interativo, sua contribuição é mais restrita, já que servem, ao menos, a uma estratégia de preservação da face do escrevente, que, antecipando possíveis conclusões de seu(s) destinatário(s) a respeito da temática do tópico, já as nega. O parêntese 412 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 em (13c), por exemplo, opera uma redução da abrangência das relexões trazidas naquele Editorial sobre a atualidade do país: o escrevente sinaliza para o destinatário que as relexões devem ser encaradas como genéricas; esse movimento de ressalva é uma forma de o escrevente manter sua autoimagem, uma vez que ele próprio adianta a seu(s) destinatário(s) que as relexões tem caráter genérico. Em (13d), por outro lado, o movimento é contrário: o parêntese sem duvida cavalheiros muito distinctos opera uma ampliação na abrangência referencial de os dous, acrescentando qualiicações como cavalheiros e muito distinctos; a ressalva, de certa forma, atende à preservação da face do escrevente ao trazer, para o texto, uma possível conclusão que forma parte do conjunto de conhecimentos do(s) destinatário(s). Por im, parênteses de retoque (cf. (13e)) e de correção (cf. (13f)) são meios de reformulação textual. O parêntese de retoque reformula uma informação tópica, acrescentando elementos diferentes a ela; em (13e), por exemplo, o segmento parentético reformula a informação sobre o perigo de estar à rua no horário entre quatro da tarde e dez ou onze da noite ao inserir a informação de que igual perigo podem estar passando as famílias que permanecem à janela. O parêntese de correção, por outro lado, anula a informação sobre a qual recai a correção, como em (13f), em que se anula a informação de que se teria obtido o lugar na lista tríplice da Bahia por inluência própria. Entre os parênteses focalizadores do conteúdo tópico, predominam, nos Editoriais, os parênteses de esclarecimento e de ressalva. Estes representam 36,4% dos dados, num total de 48 ocorrências, enquanto aqueles representam 31,8% dos dados, num total de 42 ocorrências; juntos representam 68,2% dos dados.5 Essa predominância evidencia o caráter não só informativo do Editorial, mas também seu caráter opinativo. Ao trazer novos elementos para a construção de um referente ou de uma informação, os esclarecimentos, além de colaborarem com a informatividade e a clareza do texto, operam na construção de um posicionamento opinativo do jornal em relação a tal informação ou referente. Os parênteses de ressalva, ao restringir ou ampliar a abrangência referencial de uma determinada informação, 5 Tais porcentagens levam em conta a totalidade de dados encontrados nos Editoriais analisados, no caso 132 ocorrências de inserções parentéticas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 413 veiculam avaliações sobre essas opiniões, o que materializa o ponto de vista do jornal em relação ao fato relatado. Se, conforme expõe Jubran (2006b, p. 328), parênteses de esclarecimentos e de ressalva, na função de parênteses focalizadores do conteúdo tópico, asseguram a inteligibilidade e a aceitabilidade do texto e contribuem para a caracterização de um referente ou de algum elemento informacional do conteúdo tópico, sua predominância nos Editoriais analisados está relacionada ao propósito comunicativo mais geral do gênero Editorial: a defesa de um posicionamento crítico do jornal, conforme lembra Zavam (2009, p. 182). O gênero Editorial, segundo a autora, “ocupa um lugar discursivo assegurado para a manifestação axiológica da empresa jornalística” (ZAVAM, 2009, p. 182). A esse propósito mais geral, está, então, articulado um conteúdo mais geral: manifestar opiniões acerca de um tema, sobre o qual o Editorial irma seu posicionamento (cf. ZAVAM, 2009, p. 182). Os parênteses com foco no escrevente, por sua vez, apresentam duas funções no sentido de manifestar um posicionamento da voz coletiva do jornal em relação ao conteúdo tópico: (i) qualiicação do escrevente para discorrer sobre o tópico (cf. (14a)), e (ii) manifestações atitudinais do escrevente em relação ao tópico (cf. (14b)). (14) a) Para saudar essa victoria do novo partido, | para a qual tambem concorremos, intervindo | como elemento de formação da opinião, abri- | mos aqui espaço ao nosso illustre collega do | Paiz. (A Província de São Paulo, 1885) b) O serviço que desagrada e levanta re- | clamações não é mal feito por má vonta- | de dos empregados, justiça se lhes faça, | mas por deiciencia de pessoal. (A Província de São Paulo, 1882) Parênteses como o de (14a) suspendem o tópico discursivo em curso para que o escrevente insira um comentário avaliativo de sua competência para desenvolver esse tópico; no exemplo em (14a), a suspensão do tópico é operada para que o escrevente do editorial qualiique positivamente a imagem do jornal como participante das eleições e elemento de formação de opinião. Jubran (2006b, p. 341) prevê que essas avaliações podem ser positivas (autoqualiicação) ou negativas (autodesqualificação). Entre as 132 ocorrências coletadas, apenas 414 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 quatro (3% dos dados) coniguram-se como parênteses qualiicadores do escrevente para discorrer sobre o tópico, e todas manifestam uma autoqualiicação do escrevente para discorrer sobre o tópico discursivo em curso. Esse resultado revela traços da autoria do Editorial em jornais paulistas do século XIX. Zavam (2009) airma que a autoria dos Editoriais cearenses ao longo dos séculos XIX e XX é bastante institucionalizada, de modo a se atribuir a responsabilidade discursiva à instância empresarial ou política dirigente do jornal. Segundo a autora, o uso da primeira pessoa do plural, como ocorre em (14a), conigura um mecanismo de impessoalização, tipicamente encontrado em Editoriais cearenses do século XIX. Assim, um dado como (14a), em que se expressa uma autoqualiicação e se faz uso da primeira pessoa do plural, marca essa autoria institucional a que se refere Zavam (2009), em que “o editorialista, que não responde diretamente às intervenções dos leitores e é contratado para manifestar opiniões que a empresa espera que sejam manifestadas, goza de prestígio.” (ZAVAM, 2009, p. 192) Já parênteses como o de (14b) exprimem “o modo pelo qual o signiicado dos enunciados tópicos é qualiicado, de forma a reletir o julgamento do falante sobre a probabilidade de serem verdadeiras as proposições expressas por ele” (JUBRAN, 2006b, p. 343). Em (14b), por exemplo, o sujeito da enunciação se envolve com o enunciado ali instaurado de modo a fazer justiça, ou ser justo, com a airmação inserida naquele tópico discursivo, e a suspensão do tópico do enunciado se opera de modo a manifestar essa modalização do escrevente em relação a seu enunciado. O predomínio desse tipo de parênteses (25 ocorrências entre as 132 totais, o que representa 18,7% dos dados), entre os parênteses que focam o escrevente, é compatível com a parcialidade e a subjetividade características do Editorial, uma vez que esse gênero, longe de ser imparcial e objetivo, intenciona, de fato, reproduzir um posicionamento discursivo do jornal sobre a temática abordada. Os dados em (15), junto a (14b), ajudam a perceber como os parênteses que focalizam o escrevente colaboram na construção de um posicionamento político e opinativo dos Editoriais paulistas oitocentistas. Além disso, esses dados mostram como os Editoriais aqui analisados detêm uma motivação político-partidária, o que se conforma a uma tendência assinalada por Zavam (2009) em relação aos jornais cearenses: segundo a autora, questões político-partidárias motivavam fortemente Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 415 a circulação dos jornais cearenses do século XIX e do início do século XX; os Editoriais desses jornais coniguravam instrumentos de ataques, por parte de seus redatores, a adversários políticos. (15) a) Fez-se, ainda ha pouco, a eleição para | deputados e senadores ao Congresso Na- | cional: e, sem que desejemos atirar uma | censura aos directores dessa eleição, não | podemos deixar de reconhecer que elles | não conseguiram dar ao seu grande e | inegavel triumpho material a força mo- | ral que era precisa na primeira mani- | festação da vontade popular dentro do | regimen republicano. (A Província de São Paulo, outubro de 1890) b) Não julgamos a idéa contraria á politica | conservadora e, si não nos enganamos, os | conservadores de Pernambuco não lhe são | adversos e antes a defendem. (A Província de São Paulo, fevereiro de 1879) Em (15a-b), os fatos parentéticos, ao manifestarem no texto uma atitude subjetiva do escrevente, ajudam a reforçar seu direcionamento crítico e político-partidário. Em (15a), por exemplo, ao discorrer sobre a eleição para deputados e senadores ao Congresso Nacional, o jornal, instituído no segmento parentético pelo uso da primeira pessoa (desejemos), não somente informa sobre os fatos levados a cabo pelos diretores da eleição, mas envolvem-se subjetivamente com esse conteúdo tópico, atacando a imagem desses diretores. Já em (15b), o segmento parentético si não nos enganamos modaliza o posicionamento do jornal (novamente presente, de forma institucional, pelo uso da primeira pessoa do plural), manifestando seu descomprometimento com a veracidade do que ali está sendo relatado. Por im, em (16), dispõem-se parênteses de baixa ocorrência no corpus, que correspondem a três classes distintas: parênteses com foco no escrevente (cf. (16a)), parênteses com foco no interlocutor (cf. (16bc)) e parênteses focalizadores do ato comunicativo (cf. (16d)). 416 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 (16) a) O sr. conselheiro Carrão deputado por | S. Paulo, apreciando as theorias do sr. Za- | charias, chegou a afirmar que o Brazil se | achava em circumstancias em que o poeta | latino descreveu os Gregos: <<Quidquid delirant reges plectuntur Achivi.>> <<Declaro, dizia o illustre paulista na ses- | são de 8 de Julho de 1864, que não compre- | hendo bem qual é a politica do governo, não | comprehendo quaes são suas idéas. (A Província de São Paulo, 1880) b) Passando a ser | propriedade da Companhia Impressora, | O Estado de S. Paulo, como terá obser- | vado o publico, não abdicou as suas tra- | dicções de independencia, de liberdade, | e de insubmissão a quaesquer interesses | particulares contrários aos da collectivi- | dade paulista; conserva-se como o dei- | xou o seu patriotico fundador. (A Província de São Paulo, janeiro de 1891) c) O acto hoje violentamente estygmati- | sado não é senão a conseqüência daquel- | le que, sem um unico motivo, tirou o | governo de S. Paulo de seus legitimos | depositarios; O dr. Jorge Tibiriçá tinha por si a | adhesão unânime dos paulistas; O dr. Americo Brasiliense é um sim- | ples detentor do governo de S. Paulo; Cabe-nos uma grande parte da vergo- | nha que actualmente pesa sobre o Es- | tado. Tudo isto— se assim o querem— é: | pura verdade. (A Província de São Paulo, agosto de 1891) d) O mais operoso, o mais assiduo e o | mais brilhante redactor do Commercio | de S. Paulo, o illustre sr. José Julio Ro- | drigues–a quem enviamos cordiaes cum- | primentos, por que é a primeira vez que | nos encontramos–acaba de publicar, na- | quella folha, um artigo que não deve | circular sem alguns comentarios. (A Província de São Paulo, janeiro de 1893) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 417 O parêntese em (16a), tipo muito pouco frequente entre os dados coletados (três ocorrências no total, o que representa 2,3% dos dados), indica de quem é a autoria de alguma informação referida no texto e, assim, conigura um segmento parentético com a função de indicar a fonte enunciadora do discurso. Já em (16b), o parêntese em negrito evoca um conhecimento partilhado entre escrevente e destinatário(s), isto é, entre os envolvidos no ato comunicativo. Trata-se de um mecanismo de dar como consenso o conhecimento do tópico, o que se atesta pela presença explícita, materializada no sintagma nominal o público, do destinatário do Editorial. Por outro lado, em (16c), ao focar também os destinatários do Editorial, o escrevente deseja envolvê-los em seus comentários e avaliação a respeito do assunto abordado. No parágrafo anterior ao segmento E1E2-E3, o escrevente do Editorial atribui a culpa da situação política relatada à população de um modo geral, o que se evidencia pelo uso do pronome clítico de primeira pessoa do plural (nos) junto ao verbo caber. O segmento parentético se assim o querem, além de marcado por um caráter hipotético pela conjunção se, faz uso da terceira pessoa do plural, que, excluindo o eu da enunciação, no caso o escrevente, traz para o texto a presença dos destinatários do Editorial. Por im, em (16d), o parêntese em negrito dá sinais, no texto, da interferência de dados externos ao ato comunicativo. De certa forma, ele materializa a presença do escrevente pelo uso da primeira pessoa do plural (enviamos) e particulariza um potencial destinatário do Editorial (o sr. José Julio Rodrigues), fazendo referência a um evento externo ao ato comunicativo que constitui o Editorial (o de enviar cordiais cumprimentos). Inserções parentéticas como (16b-d) ocorrem uma única vez, cada uma, entre todos os dados coletados. Seguindo Zavam (2009), essas inserções podem ser consideradas mecanismos que, ao lado dos parênteses focalizadores do escrevente exempliicados em (14) e (15), marcam a subjetividade e a parcialidade que fogem ao controle do editorialista. Nas palavras de Zavam (2009, p. 190): Se quem escreve o editorial é um sujeito (entidade física, e não a instituição, entidade abstrata), que tem a tarefa de tomar partido sobre um fato da atualidade políticoeconômica e assim “aconselhar e dirigir a opinião dos leitores” (BELTRÃO, 1980, p. 60), inevitavelmente seu discurso será atravessado pela subjetividade e parcialidade [...]. 418 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 Em síntese, no tocante a sua funcionalidade, a Parentetização está associada a dois principais aspectos da constituição do gênero Editorial: (i) a representação de um posicionamento crítico do jornal e (ii) a institucionalização de uma autoria, que representa a voz do jornal, e não uma voz particular. 4 Considerações inais Este artigo toma como proposta central oferecer uma análise textual-interativa das inserções parentéticas encontradas em Editoriais paulistas do século XIX. Para atender a esse objetivo mais geral, seguemse duas etapas de investigação: (i) descrição do modo como se coniguram formalmente as inserções parentéticas nos Editoriais analisados, e (ii) caracterização da funcionalidade textual-interativa dos parênteses nesse gênero especíico. Em relação a (i), este trabalho evidencia que a materialidade escrita do tipo de gênero analisado inlui na coniguração formal dos parênteses: por um lado, o uso de conectivos e de marcas gráicas na delimitação dos parênteses chama a atenção para um traço que parece ser típico de modalidades textuais mais próximas ao pólo da escrita (dentro de um contínuo fala-escrita, conforme estabelecido em Marcuschi, 2001); por outro lado, a ocorrência de parênteses em fronteiras de constituintes da frase ou entre unidades frasais não implica rupturas ou descontinuidades sintáticas. Esses aspectos estão intrinsicamente relacionados à atividade de planejamento envolvida na formulação e na construção de um texto escrito prototípico, o que se sumariza nas seguintes palavras de Jubran (2006b, p. 357): Pelo fato de que na escrita o modus sintático prevalece sobre o pragmático, nela não é de se esperar a ocorrência de parênteses que promovam cortes sintáticos, nem que se intercalem em determinadas fronteiras em que uma inserção poderia romper estruturas canônicas. Além disso, os dados analisados apontam para uma revisão (ou implementação) em relação à proposta de Jubran (2006b) de que a ausência de partículas conetivas prefaciando os parênteses é uma evidência da propriedade de desvio tópico. A análise aqui apresentada possibilita concluir que os conectivos funcionam como suportes para o Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 389-420, 2018 419 funcionamento textual-interativo das inserções parentéticas e não afetam o seu desvio tópico, já que muitas de suas construções são estruturalmente independentes ou desgarradas. Já em relação a (ii), é possível traçar uma correlação em três vias entre traços composicionais do gênero Editorial (em circulação no século XIX em São Paulo) e a ocorrência predominante de determinadas classes e funções de parênteses: (a) o predomínio da classe parentética com foco no conteúdo tópico está relacionado a um dos atributos fundamentais do Editorial, a condensabilidade (BELTRÃO, 1980); (b) entre os parênteses com foco no conteúdo tópico, a alta frequência das funções esclarecimento e ressalva se articula à inalidade comunicativa do Editorial, no caso a defesa de um posicionamento crítico do jornal; (c) a ocorrência, mesmo que baixa, de parênteses com foco no escrevente, com foco no interlocutor e com foco no ato comunicativo, além de dar indícios de uma autoria, contribui para a construção da parcialidade e da subjetividade do Editorial. Enim, a análise do processo de Parentetização nos Editoriais do corpus selecionado mostra que esse processo é ocorrente e que suas funções se mostram signiicativas para a caracterização desse gênero à medida que contribuem com o propósito comunicativo central do Editorial: informar sem a preocupação de ser imparcial e objetivo, mas, ao contrário, ao trazer a informação, marcar o posicionamento do jornal em relação ao que se está informando. Referências BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980. DECAT, M. B. N. Orações adjetivas explicativas no português brasileiro e no português europeu: aposição rumo ao “desgarramento”. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p.104-118, jul./dez. 2001. DECAT, M. B. N. Por uma abordagem da (in)dependência de cláusulas à luz da noção de “unidade informacional”. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 23-38, jan./jun. 1999. JUBRAN, C. C. A. S. Introdução – A perspectiva textual-interativa. In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. 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Assis: Universidade Estadual Paulista, 2015. (material digitado) MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Editora Cortez, 2001. PENHAVEL, E. A multifuncionalidade do conectivo ‘e’. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 35, p. 647-656, 2006. STASSI-SÉ, J. Subordinação discursiva no português à luz da gramática discursivo-funcional. 2012. 194 f. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2012. ZAVAM, A. S. Por uma abordagem diacrônica dos gêneros do discurso à luz da concepção de tradição discursiva: um estudo com editoriais de jornal. 2009. 420 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Programa de PósGraduação em Linguística, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 Apropriação da análise de discurso crítica em uma discussão sobre comunicação social Appropriation of critical discourse analysis in a discussion about media Viviane de Melo Resende Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF / Brasil CNPq resende.v.melo@gmail.com María del Pilar Tobar Acosta Instituto Federal de Brasília (IFB), Brasília, DF / Brasil UnB acosta.pilar@gmail.com Resumo: Com o intuito de entender a forma como os street papers representam a situação de rua e em que medida oferecem espaço para pessoas nessa situação se autorrepresentarem, realizou-se uma pesquisa qualitativa em que foram analisados cinco jornais e revistas publicados no Brasil e em Portugal. Para este artigo, foi composto um corpus documental formado por cinco volumes consecutivos do jornal O Trecheiro. Com base na Análise de Discurso Crítica, este trabalho investiga a maneira como se deu a representação da situação de rua nesses volumes do periódico, explorando as seguintes categorias analíticas: signiicado de palavra, intertextualidade, representação de atores sociais e interdiscursividade. A inclusão, nos textos do jornal, de vozes de pessoas nessa condição abre espaço para sua autorrepresentação, o que possibilita a materialização de narrativas outras, por outros prismas experienciais. Nesse espaço, leitores/ as em situação de rua, público preferencial dessa iniciativa, podem se ver eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.421-454 422 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 representados/as, podem construir modos alternativos de identiicação, com base em outros modos particulares de representação (discursos), para muito além daqueles que os/as desumanizam. Palavras-chave: análise de discurso crítica; publicações de rua; situação de rua. Abstract: In order to understand how street papers represent homelessness and to what extent provide space for homeless people self-represention, a qualitative research investigating ive newspapers and magazines published in Brazil and Portugal was held. For this paper, we composed a corpus of ive consecutive volumes of the newspaper O Trecheiro. Based on Critical Discourse Analysis, we investigate the representation of homelessness in these volumes of the journal, exploring the analytical categories lexicon, intertextuality, representation of social actors and interdiscursivity. The inclusion of voices of people in homelessness in the texts of the newspaper opens space for their self-representation, which allows the materialization of other narratives, by other experiential prisms. In this space, homeless readers can see themselves represented; they can construct alternative modes of identiication, based on other particular modes of representation (discourses), far beyond those which dehumanize them. Keywords: critical discourse analysis; street papers; homelessness. Recebido em 17 de fevereiro de 2017. Aprovado em 13 de fevereiro de 2017. 1 Introdução A rua é o lugar comum por excelência; quem nela vive ica exposto/a o tempo todo ao contato com os/as demais. Contudo, nem sempre uma pessoa em situação de rua convive com os/as que passam. Apesar da apartação social (BUARQUE, 2003), ou mesmo em razão dela, emergem mobilizações que acabam se tornando recurso para a construção identitária, criando assim um lugar simbólico. É o caso de publicações voltadas para a situação de rua, os chamados street papers, alguns dos quais se articulam em uma rede internacional, a International Network of Street Papers (INSP). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 423 Com o intuito de entender como alguns desses jornais– especiicamente aqueles produzidos em língua portuguesa e integrados à INSP – representam a situação de rua e em que medida oferecem espaço para pessoas em situação de rua se autorrepresentarem, foi realizada uma pesquisa qualitativa entre 2010 e 2014, em projeto de pesquisa integrado que articulou cinco projetos particulares. O projeto integrado, coordenado por Viviane de Melo Resende, articulou os projetos de Acosta (2012), Santos, A. (2013), Santos, G. (2013) e Resende (2011), investigando cinco jornais e revistas publicados no Brasil e em Portugal e ligados à INSP. Realizado no Programa de Pós-Graduação em Linguística e vinculado ao Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (NELiS) da Universidade de Brasília, o projeto foi apoiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal e premiado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Neste artigo, a im de ilustrar como a Análise de Discurso Crítica pode ser apropriada em um projeto particular, concentramo-nos em apresentar alguns dos resultados de pesquisa pertinentes a apenas uma das publicações estudadas: o jornal O Trecheiro, produzido em São Paulo pela Rede Rua de Comunicação (<http://www.rederua.org. br/rederua/>). Foi composto um corpus documental formado por cinco volumes consecutivos do jornal – agosto de 2010, setembro/outubro de 2010, novembro de 2010, dezembro de 2010 e janeiro/fevereiro de 2011. Com base em arcabouço teórico-metodológico oferecido em Análise de Discurso Crítica (FAIRCLOUGH, 2001; FAIRCLOUGH, 2003; FAIRCLOUGH, 2010; RAMALHO; RESENDE, 2011; VIEIRA; RESENDE, 2016; PARDO ABRIL, 2008), procuramos investigar, por meio de análise textualmente orientada, a maneira como se deu a representação da situação de rua nesses volumes do periódico. Para a análise dos textos, exploramos as seguintes categorias analíticas: signiicado de palavra, tendo como foco a oposição desse jornal às práticas jornalísticas tradicionais; intertextualidade e representação de atores sociais, observando em que medida pessoas em situação de rua, de fato, participam dos/nos textos; e interdiscursividade, investigando quais discursos estão mais presentes nos textos, como aparecem e como são articulados. O artigo organiza-se em três seções. Na primeira, oferecemos um breve panorama sobre jornais de rua, observando as especiicidades do jornal O Trecheiro. Na segunda, traçamos uma revisão teórica 424 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 em Análise de Discurso Crítica, do arcabouço teórico-prático cuja apropriação intentamos exempliicar. A terceira seção dedica-se às análises discursivas, divididas em três subseções. Apresentamos por im algumas considerações sobre o trabalho realizado. 2 Jornais de rua – o caso especíico de O Trecheiro Os jornais de rua (street papers) constituem um suporte alternativo para a veiculação de informações sobre temas relativos à situação de rua, ao mesmo tempo que possibilitam um trabalho alternativo na venda das publicações. Esse tipo de publicação foi inicialmente realizado em Londres pela revista pioneira The Big Issue, em 1991. Atualmente existem mais de 100 street papers, distribuídos em 35 países e publicados em 24 línguas, nos seis continentes, reunidos em uma associação internacional, a International Network of Street Papers (INSP). Conforme a associação, esses periódicos pretendem constituir “uma só voz contra a pobreza” (INSP). O principal objetivo dessas publicações é a possibilidade de geração de renda para pessoas que foram marginalizadas pelo sistema econômico, buscando a superação de algumas das consequências nefastas da acumulação de capital. À diferença de outros periódicos destinados à população em situação de rua, O Trecheiro não tem o objetivo de ser uma ferramenta econômica, tendo em vista que sua distribuição é gratuita. Assim, O Trecheiro não atende a uma diretriz básica do funcionamento de jornais de rua conigurados como street papers: a geração de renda. Todos os demais jornais e revistas de rua investigados no projeto integrado que mencionamos na Introdução (Aurora da Rua, Boca de Rua, Cais e Ocas), de que este artigo é recorte, são ferramentas para geração de renda e alternativas de trabalho informal, já que são vendidos nas ruas por pessoas em situação de rua, para as quais é revertida uma parcela da receita das vendas. No caso de O Trecheiro, por outro lado, trata-se de jornal de distribuição gratuita, que se constitui um veículo de comunicação de questões especiicamente relacionadas à situação de rua, às mobilizações sociais referentes ao tema, às políticas públicas especíicas, às lutas e conquistas nesse campo. O jornal é uma das ações da Rede Rua de Comunicação (2011), como consta em seu site: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 425 Desde os anos de 1980, a Rede Rua promove comunicação a partir dos excluídos. Documenta e assessora a comunicação de movimentos, entidades e grupos sociais e populares. Jornal “O Trecheiro” – Há 15 anos publica a realidade do povo de rua e registra a história de luta e de esperança do povo excluído.1 Produção de Vídeos – Produz vídeos socioeducativos e documentários, acompanhando a organização dos grupos populares. Fotograia – Registra fatos e manifestações de interesse social, principalmente, da população em situação de rua. Videoteca – Dispõe de 900 títulos que retratam experiências de inclusão social: organização, formação política, humana e religiosa. A entidade pretende, dessa maneira, documentar e assessorar “a comunicação de movimentos, entidades e grupos sociais e populares” (Rede Rua de Comunicação), por meio de fotograias, vídeos e textos, tendo como objetivo atuar sobre o processo de exclusão social (ACOSTA; RESENDE, 2014b). Alderón Costa, diretor da Rede Rua e editor chefe de O Trecheiro até 2014, é também fundador da revista Ocas, que segue a fórmula dos jornais de rua. Assim, O Trecheiro é, provavelmente, uma ação complementar, dentro desse esforço por maior visibilidade às demandas da população em situação de rua (ACOSTA, 2012). Quanto à estrutura física, podemos dizer que o periódico, composto por uma folha jornal que, dobrada, resulta em quatro páginas, apresenta semelhanças com os jornais de grande circulação, no que tange a sua organização. É um suporte impresso, no qual é possível ler textos que materializam gêneros tradicionais do jornalismo – editorial, colunas de opinião, reportagens, entrevistas, entre outros –, sendo esses textos escritos no formato canônico de narrativa jornalística. Desse modo, como veriicado em trabalho anterior, “O Trecheiro atende à expectativa gerada pelo suporte jornal. As notícias são acompanhadas, na maioria dos casos, de imagens que ilustram a informação presente nos textos verbais, o que também é uma característica convencional para o suporte” (ACOSTA; RESENDE, 2014b, p. 153). 1 Em 2015, O Trecheiro comemorou os 20 anos de sua criação. 426 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 O Trecheiro focaliza questões relativas à situação de rua: todas as informações e notícias veiculadas orbitam essa temática. O jornal já publicou, por exemplo, estudos sobre o trabalho de pessoas em situação de rua, reproduções de trechos de cartilhas, relexões sobre a Política Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua, entre muitos outros textos abordando diversos assuntos, mas sempre com o foco na rua. Pela forma como é feito e distribuído, acreditamos que O Trecheiro é um instrumento de resistência social extremamente relevante na luta pela valorização de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade. Esperamos que este artigo possa ilustrar por quê. 3 Análise de Discurso Crítica como teoria e método para reletir sobre questões sociais A Análise de Discurso Crítica (ADC) inscreve-se na linguística funcionalista e baseia-se fundamentalmente na ideia de que a linguagem funciona na sociedade, sendo por ela modiicada e podendo, dialeticamente, provocar mudanças sociais. Por essa razão, seu desenvolvimento exigiu contribuições de outros estudos para viabilizar uma análise social e linguística, assim estabelecendo interfaces com diferentes áreas do conhecimento. Desse modo, a ADC constitui-se uma interdisciplina que oferece um rico quadro teórico-metodológico para investigar a linguagem em sociedade, com base na análise situada de textos. Para lograr construir crítica explanatória (conceito de BHASKAR, 1998; veja também FAIRCLOUGH; JESSOP; SAYER, 2002), todo estudo em ADC precisa se apoiar em conceitos cuidadosamente discutidos e aplicados, o que possibilita o rigor analítico necessário para se produzirem pesquisas relevantes. Nesta seção, apresentamos uma breve revisão teórica, pautando-nos por conceitos centrais à prática de pesquisa em ADC. Em nossa revisão, focalizamos versões de ADC desdobradas do trabalho de Norman Fairclough e seus desenvolvimentos na América Latina. 3.1 Linguagem e sociedade – a soisticação das tecnologias de texto Para a ADC, a instância discursiva é parte indissociável da vida social, estando interconectada com outras – crenças, valores, ideologias, atividade material, relações sociais, instituições, posições. É um ‘momento’ da prática social passível de ser analisado em função da materialidade dos Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 427 textos produzidos em eventos sociais (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999). Qualquer ato comunicativo constitui texto, estando compreendidos desde textos escritos – textos de jornais, livros, publicidade, entre muitos outros – ou textos orais – conversas, aulas, programas de televisão, entre muitos outros – até textos multimodais, que se utilizam de diferentes modalidades de linguagem (verbal escrita, verbal oral, imagética estática, imagética dinâmica, musical etc.) em sua composição. Isso signiica dizer que outras semioses, para além da linguagem verbal, são incluídas no conceito ampliado de texto e são passíveis de análise. No caso de imagens, por exemplo, temos textos imagéticos que podem ser analisados, entre outros enquadres, pelo arcabouço da Gramática do Design Visual (KRESS; van LEEUWEN, 1996) ou pelos Estudos Críticos do Discurso Multimodal (PARDO ABRIL, 2011), ou ainda, no caso de ilmes, por exemplo, pelo Método de Análise de Discurso Audiovisual, segundo D’Angelo (2012). Textos de quaisquer tipos e materializados em quaisquer gêneros são entendidos como eventos discursivos situados na medida em que existem pela/na linguagem e, ao mesmo tempo, articulam diferentes discursos, uma vez que materializam determinadas formas de ver o mundo ou parte dele. Disso depreende-se uma dupla acepção para ‘discurso’, desenvolvida nos trabalhos de Norman Fairclough: como substantivo abstrato, signiica “linguagem como momento irredutível da vida social” e, como substantivo contável, signiica um “modo particular de representar parte do mundo”, ligado a interesses especíicos (VIEIRA; RESENDE, 2016, p. 17). Com base nessa segunda acepção, sinaliza-se o estabelecimento de redes de ordens de discurso, nas quais as ações discursivas são possibilitadas e reguladas.2 As ordens de discurso são, assim como as práticas, no que se refere à relação entre estruturas sociais e a agência humana, o ponto de conexão entre o sistema abstrato (mecanismos e estruturas linguísticas) e a realização concreta (textos). Nessa perspectiva, diferentes discursos, sendo diferentes formas de signiicar o mundo, estão Ordens de discurso são “as combinações particulares de gêneros, discursos e estilos que constituem o aspecto discursivo de redes de práticas sociais” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 220), isto é, correspondem à estruturação social da linguagem. O conceito conforme proposto por Chouliaraki e Fairclough (1999) retoma a formulação de Foucault (1999 [1971]). 2 428 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 atrelados a diferentes práticas sociais e são estruturados em função de interesses particulares (FAIRCLOUGH, 2010). Essas práticas devem ser analisadas segundo a percepção de que são frutos de processos sociais e que na mesma medida os reproduzem e/ou modiicam. Partindo dos estudos da gramática funcional de Halliday (1985), houve em ADC a operacionalização das metafunções da linguagem propostas pelo linguista – ideacional, interpessoal e textual – em três signiicados da linguagem – representacional, acional e identiicacional (FAIRCLOUGH, 2003). Essa recontextualização teórica da multifuncionalidade da linguagem enfatiza que, por meio de textos, atores sociais representam o mundo, agem sobre ele e identiicam(-se). Assim, para a ADC, qualquer evento discursivo (resultando texto) articula diferentes signiicados. Esses signiicados são mais característicos de determinadas instâncias dos textos, como, por exemplo, os discursos presentes nos textos que dão a ver a forma como o mundo está sendo representado. Há, dessa maneira, uma correspondência entre o signiicado representacional e os discursos (FAIRCLOUGH, 2003). No mesmo sentido, o signiicado acional articula-se aos gêneros textuais, e o signiicado identiicacional, aos estilos. Para acessar esses diferentes signiicados nos textos, foram desenvolvidas categorias analíticas, que “são formas e signiicados textuais associados a maneiras particulares de representar, de (inter)agir e de identiicar(-se) em práticas sociais situadas” (VIEIRA; RESENDE, 2016, p. 112). Em ADC, devemos enfatizar, teoria (do funcionamento social da linguagem) e método (de análise discursiva) são importantes e andam juntos. Esse aspecto dos estudos discursivos críticos e sua relevância para a capacidade explanatória de pesquisas discursivas têm sido destacados nos desenvolvimentos da ADC na América Latina (PARDO, 2011; RESENDE, no prelo). Os procedimentos metodológicos, destacado o trabalho com categorias linguísticas, estão atrelados à instância de conceitos sociológicos, o que relete o caráter teórico-metodológico da área. Assim, para viabilizar a análise social textualmente orientada, categorias analíticas desenvolvidas na linguística funcional, em suas diversas vertentes, são articuladas em ADC, objetivando acessar a instância das práticas sociais nos usos da linguagem. Desse modo, é possível mapear as conexões entre o discursivo e o não discursivo, tendo em vista seus efeitos sociais. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 429 Outro imperativo para o/a analista em ADC é procurar compreender em profundidade a conjuntura social, para uma efetiva investigação das práticas sociais em seu aparato discursivo. Em ADC, o atual momento de desenvolvimento da sociedade é entendido como “novo capitalismo” (FAIRCLOUGH, 2006), expressão que, em contraste com outras formas de se descrever esse mesmo momento histórico – pósmodernidade, modernidade tardia, modernidade luida/liquida–, enfatiza as consequências das sucessivas reestruturações do sistema econômico para a constituição da sociedade. Essas mudanças do capitalismo são (re) adaptações cujo objetivo central é a perpetuação de práticas capitalistas que, a seu turno, perpetuam a distribuição desigual de poder que esse sistema econômico-social garante. Essas mudanças põem em curso movimentos que se fazem sentir nas mais distintas áreas da vida social (CANCLINI, 2006), e, por isso, o foco no novo capitalismo não se reduz a um foco em questões econômicas (FAIRCLOUGH, 2006). A linguagem, como parte indissociável da vida social, é afetada por esses movimentos, dos quais se deve ressaltar a tecnologização dos diferentes momentos da vida social, que acarreta a especialização de discursos na sociedade – criando ‘feudos simbólicos’, em que cada assunto da vida deve ser e só pode ser tratado de forma sistematizada por proissionais especíicos de cada área. Isso, levado às últimas consequências, desempodera pessoas que não detêm os recursos necessários para ter acesso a esses conhecimentos (MAGALHÃES, 2000; FAIRCLOUGH, 2008). Assim, é possível falar em uma tecnologia textual (discursiva), que vem sendo amplamente desenvolvida e explorada pelas mais diversas redes sociais – e aqui não nos referimos apenas à web. Desse modo, é emergente o interesse no conhecimento sobre os usos da linguagem, e cada vez mais a tecnologia é aplicada à produção de textos, com os mais diversiicados objetivos. No entanto, deve-se ponderar que aqueles/ as que detêm os meios e os recursos para ter acesso ao conhecimento especializado de construção textual ganham status (ou o mantêm) ao serem capazes de ‘distribuir’ sua forma de ver o mundo. E, assim, sobrepõem-se às/aos que, em alguma medida, estão desprovidas/os desses meios e recursos, o que incide sobre a perpetuação, pelo uso da linguagem, de assimetrias sociais existentes, em favor de interesses particulares. 430 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 Essa é uma forma – mas não a única – de associação entre linguagem e novo capitalismo. Tendo em vista que textos, como eventos discursivos, estão ligados às práticas sociais, é possível entender os motivos que impulsionaram a soisticação das tecnologias de texto. Também disso decorre a relevância de se investigarem processos sociais por meio de análise textualmente orientada. 3.2 Hegemonia e ideologia – a relevância da pesquisa em ADC Em ADC, entende-se que estruturas de poder são alvo de lutas também na esfera discursiva. Sobre a noção de hegemonia em Gramsci (1995), Fairclough (2001, p. 85) comenta que “Nessa abordagem, a hegemonia é concebida como um equilíbrio instável construído sobre alianças e geração de consenso das classes ou grupos subordinados, cujas instabilidades são os constantes focos de lutas”. A complexidade da noção de poder em ADC também lança mão do pensamento de Foucault, que nos ensina sobre a natureza multifacetada das relações de poder, que não devem ser entendidas como simples linearidades. Assim, existe a necessidade de a hegemonia dobrar-se sobre si mesma, produzindo sentidos – discursos – que mascaram os mecanismos de poder e de dominação. Para Fairclough (2010), quanto mais opacos parecerem esses modos de operação de sentidos a serviço da manutenção de relações de poder, mais o discurso trabalha na manutenção de sua estabilidade e na consequente perpetuação de relações sociais assimétricas. O autor ensina que: O poder é implícito nas práticas sociais cotidianas, que são distribuídas universalmente em cada nível de todos os domínios da vida social e são constantemente empregadas; além disso, o poder ‘é tolerável somente na condição de que mascare uma grande parte de si mesmo. Seu sucesso é proporcional à sua habilidade para esconder seus próprios mecanismos’ (1981: 86); o poder não funciona negativamente pela dominação forçada dos que lhe são sujeitos, ele os incorpora e é produtivo no sentido de que os molda e reinstrumentaliza, para ajustá-los a suas necessidades. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 75)3 3 Nesta citação, Fairclough faz referência a Foucault (1981). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 431 A hegemonia não se sustenta apenas com base na força, mas tem de dispor de processos soisticados para apaziguar as tensões imanentes à distribuição desigual de poder. Um desses processos é a produção de sentidos, estando aí o embate na esfera discursiva. Assim, entende-se em ADC que a repetição de um discurso (forma particular de ver o mundo ou parte dele) em textos é sintoma do sucesso que a hegemonia alcança na manutenção do poder. Discursos, então, podem ser elaborados e empregados ideologicamente, sendo ideologia um conceito associado a processos de disseminação de uma representação particular do mundo como se fosse a única possível e legítima, o que pode resultar no efeito de naturalizar desigualdades. A esse respeito, Fairclough (2003) observa que os efeitos de sentido que mais interessam à ADC são, justamente, os efeitos ideológicos, sendo o desvelamento das articulações ideológicas que os textos podem promover um dos principais objetivos da pesquisa na área. Assim, pretende-se perturbar a estabilidade hegemônica, com intuito de contribuir para que mudanças ocorram. Isso faz da ADC um campo da ciência social crítica. No caso do recorte de pesquisa aqui discutido, investigamos uma publicação que contribui para que a vulnerabilidade ligada ao empobrecimento seja percebida de forma relexiva. É sabido que a mídia tem grande relevância social, por ser veículo, muitas vezes, para a propagação de discursos hegemônicos (PAIVA; BARBALHO, 2005; RICHARDSON, 2007), sendo um importante território de luta hegemônica e atuando ideologicamente, a serviço de determinados grupos da sociedade. A mídia tradicional opera mascarando as causas da situação de rua, colaborando para que essa realidade seja entendida como permanente e imutável (temos destacado isso em pesquisas anteriores, como em RESENDE, 2012, 2013, 2015, 2016; RESENDE; RAMALHO, 2013). Em contrapartida, a produção de street papers e de iniciativas como O Trecheiro atua contraideologicamente, objetivando favorecer maior visibilidade para a complexidade da situação de rua e, assim, legitimar a luta da população em situação de rua (nossos trabalhos em ACOSTA; RESENDE, 2014a, 2015 chamam a atenção para isso). Tendo isso em mente, defendemos a relevância do projeto de pesquisa integrado de que este artigo traz um recorte: investigou a representação midiática de uma realidade para a qual a sociedade parece querer fechar os olhos (PARDO ABRIL, 2008; PARDO, 2012; MONTECINO; ARANCIBIA, 2013). Na próxima seção, mostraremos 432 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 um recorte analítico dos dados de O Trecheiro que investigamos no projeto.4 4 Exercício analítico: análise discursiva crítica aplicada a O Trecheiro As ferramentas básicas para uma análise discursiva crítica são as categorias analíticas, que não devem ser deinidas a priori em um projeto de investigação, sendo necessário ter acesso aos dados que os textos (objeto central da investigação em ADC) oferecem para, então, poder identificar indutivamente as categorias analíticas que serão mais produtivas para a pesquisa. Para realizar as breves análises que apresentamos nesta seção, lançamos mão de algumas categorias em função dos recortes de dados que na sequência serão apresentados. As mais relevantes serão signiicado de palavra, intertextualidade e interdiscursividade, mas outras – transitividade, modalidade, metáfora – serão mobilizadas de maneira articulada a essas principais. 4.1 A força da tradição e a via alternativa de O Trecheiro: práticas discursivas A categoria signiicado de palavra foi selecionada, tendo como foco a oposição deflagrada por esse jornal a práticas jornalísticas tradicionais. Essa é uma categoria relacionada ao significado representacional, por ser a base para a construção de representações de mundo. O sistema lexical é parte do sistema semiótico prévio aos textos, e, portanto, o léxico é compartilhado e revela as maneiras como a sociedade que produziu funcionalmente seus usos regulares entende uma realidade. Apesar do compartilhamento social de modos de uso regulados do léxico, a agência do/a produtor/a de texto não é apagada; ao contrário, ela se mostra também na seleção lexical e na atribuição de signiicados elaborada nos textos, já que os sentidos das palavras são dependentes de escolhas de padrões de colocação, sendo também foco de disputas 4 Para outras análises de O Trecheiro, ver Acosta (2012), Acosta e Resende (2015, 2014a; 2014b); para análises de Aurora da Rua, ver G. Santos (2013); para análises de Boca de Rua, ver A. Santos (2013); para análises de Ocas, ver Acosta (2012), Acosta e Resende (2014b); para análises de Cais, ver Resende (2013), Resende e Marchese (2011), Resende e Alexandre (2010). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 433 discursivas. Essa escolha coocorre com a escolha (consciente ou não) de posicionamento político-ideológico em relação ao mundo representado. O jornal produzido pela Rede Rua para atender à necessidade de se criar um espaço no meio impresso para a divulgação, a difusão e o debate de questões relativas à comunidade de pessoas em situação de rua recebe o título O Trecheiro. O nome ‘trecheiro’ não se encontra dicionarizado, mas é usado nas regiões Sul e Sudeste do Brasil para se referir a pessoas que têm uma vida nômade, não pertencendo a um determinado local, migrando e ocupando os espaços públicos (praças, baixos de pontes, viadutos, marquises etc.). O nome deriva de ‘trecho’, que se refere a um intervalo de duração deinida ou, analogamente, a um espaço físico delimitado.5 O fato de o ‘trecheiro’ ser aquele que ocupa/vive nos ‘trechos’ dos centros urbanos mostra uma maneira de entender a situação de rua sempre orientada no sentido da não pertença, da brevidade em um ou outro local, o que acaba reiicando a situação na qual se encontram as pessoas às quais se aplica o termo “trecheiro”. No contexto estudado, porém, o termo ganha um caráter valorativo do “Povo da Rua” – parte do subtítulo do jornal: “Notícias do Povo da Rua”.6 No espaço aberto por esse jornal, a rua é o foco, e com o termo ‘trecheiro’ coocorrem palavras de caráter valorativo, como “povo”, que revela a união das pessoas que se encontram marginalizadas. Esse agrupamento de pessoas contra a situação de vulnerabilidade e suas consequências é, geralmente, mascarado pela grande mídia, que insiste em fragmentar o grupo em indivíduos, fragilizando ainda mais sua condição (RESENDE, 2015, 2016). Por outro lado, seria possível argumentar que “Povo da Rua” também pode ser interpretado como um epíteto que segrega: trata-se de um povo especíico, ademais caracterizado por ser “da rua”? Na primeira interpretação, “povo” opera positivamente, uniicando esse (grande) grupo populacional e colaborando, dessa maneira, para a construção simbólica de uma identidade coletiva, o que fortalece cada indivíduo que se identiique com essa causa – e, principalmente, chamando a atenção para o expressivo contingente populacional que se 5 Trecho: s.m. Pequeno espaço de tempo ou lugar; intervalo. / Excerto, pequena passagem de uma obra literária ou musical. // loc. adv. A trecho ou a trechos, de tempo em tempo, de quando em quando. (vide Dicionário Aurélio versão online). 6 Para uma análise multimodal detalhada da apresentação verbo-imagética do título do jornal, ver Acosta e Resende (2015). 434 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 encontra nessa situação. Na segunda interpretação possível, por outro lado, pode-se sustentar que a expressão opera exclusão desse mesmo contingente populacional em relação ao povo brasileiro de modo mais amplo e que a ixação dessa parcela da população, no qualiicador “da Rua”, pode ter efeito de reiicação, assim como se observa para “morador de rua”, por exemplo. Talvez essa tensão interpretativa tenha sido a causa da mudança do subtítulo do jornal, a partir de 2016, para “Jornalismo a serviço da população em situação de rua”. No cerne dessas escolhas está um posicionamento consciente por parte dos/as editores/as do jornal, o que é expresso de forma mais direta principalmente no espaço dos editoriais. A consciência sobre o ato linguístico não é expressa apenas pelos/as editores/as do jornal, mas também por seus/suas leitores/as. A relexão acerca do léxico ocorre, por exemplo, na carta de uma leitora que se encontrava em situação vulnerável, publicada na capa da edição de janeiro/fevereiro de 2010 do jornal. A seguir reproduzimos a carta integralmente: Prezados senhores da redação do Jornal Ao O Trecheiro Eu estou me sentindo muito humilhada por ser chamada de moradora de rua. Eu trabalho na Coorpel e, por isso, os assistentes de saúde só chama nós de moradores de rua. Eu acho que moradores de rua são aqueles que dome na rua, passam dia e noite nas ruas. Quem trabalha num serviço que é pior que trabalhar na roça debaixo do sol ou da chuva, e tem um teto parra passar a noite, não podem ser chamados assim. Quero saber por que nós temos que carregar essa humilhação enquanto estivermos em atividade na Coorpel? Eu estou no hotel social e não pode nem mudar o endereço porque senão perdemos o direito assistencial da saúde da Casa da Misericórdia. Que absurdo!!!! Quero alugar um quartinho abençoado, mas o que adianta, para levar essa humilhação, é quem está de acordo com isso. Melhor continuar como estou. Assinado: Maria, agradece! (sic) Em sua carta, a senhora Maria compartilha um pouco de sua experiência laboral como catadora de materiais recicláveis e demonstra indignação por ser chamada de “moradora de rua” pelos “assistentes de saúde”. No plano textual, sua revolta contra essa classiicação constrói-se Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 435 em “Eu estou me sentindo muito humilhada”, em que o processo mental (nesse caso relexivo) ‘sentir-se’ representa, no discurso, a experiência do mundo interior da autora (“muito humilhada”), e na justaposição entre “não podem ser chamados assim” e “Quero saber por que nós temos que carregar essa humilhação”, em que se refuta a classiicação por meio do uso dos modalizadores e novamente pela escolha lexical (“humilhação”). A recorrência do campo semântico da humilhação para representar o sentimento decorrente da classiicação como “moradora de rua” revela o forte teor pejorativo da expressão e suas consequências psicológicas sobre as pessoas, expressas no sentimento que descreve essa leitora. Por outro lado, sua indignação se faz ver no ato de argumentar que de nada adianta trabalhar duro para tentar sair da rua se a sociedade não a acolhe nem, muito menos, reconhece seu esforço. Isso revela o caráter condenatório de uma expressão como “morador de rua”, segundo a qual a pessoa é “de rua” e não está na rua: a condição de vulnerabilidade é naturalizada a ponto de ser tomada como uma característica inerente da pessoa (RESENDE, 2008). Tal representação opera dissimulando a incoerência do sistema em que coexistem, por exemplo, tecnologias das mais variadas e grupos de pessoas que não têm acesso sequer a seus direitos mínimos. Ao não aceitar essa pecha, essa condenação, a leitora do jornal nos mostra como está contido no elemento linguístico todo um dramático panorama social. Cabe, no entanto, frisar que essa escolha lexical pode não ser consciente, pois, muitas vezes, reproduzem-se maneiras de representar o mundo atreladas a determinados grupos hegemônicos, em razão da pressão discursiva que esses grupos exercem sobre o conjunto da sociedade. Uma das principais estratégias ideológicas é a disseminação de discursos, fazendo com que estes colonizem variados tipos de texto, sem que haja relexividade a esse respeito. Essa reprodução é, muitas vezes, feita de maneira não intencional, pela assimilação do conjunto de saberes e formas que a hegemonia promove. Ainda sobre isso, podemos observar que, nos jornais e revistas da mídia de grande circulação, a realidade das pessoas em situação de rua é mascarada na forma de preconceitos que responsabilizam a pessoa e ocultam as causas sociais da situação de rua (RESENDE, 2016, 2015). Retomamos as palavras de Benevenuto (2006, p. 2), que resume o que é a grande mídia e como ela atua: 436 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 Por comunicação dominante, resumidamente, entende-se o fenômeno comunicacional que ocorre através de meios de comunicação de massa legalmente e tradicionalmente constituídos, reconhecidos pela audiência (público) como tal. A esse raciocínio, Madrid adiciona que são meios que “se converteram nos instrumentos mais eicientes para se obter cotidianamente, de forma massiva e quase intangível, a articulação da base material da formação histórica com a sua superestrutura de organização e regulação.” Benevenuto evidencia o poder da grande mídia, e nós, pesquisadoras e pesquisadores em ADC, podemos acrescentar que esse poder se sustenta, em grande medida, – ao lado, obviamente, do poder econômico, que se converte em poder político, que, por sua vez, converte-se em poder econômico e, assim, sucessivamente, como enfatizou Bourdieu, 2011, – pela linguagem elaborada, com o alto grau de soisticação técnica que as revistas e jornais conseguem desenvolver em sua produção. Nessa mesma direção, Pardo Abril (2008) analisa a imprensa colombiana, em uma análise que poderia facilmente ser transposta a nossa realidade: O fenômeno da pobreza é proposto na imprensa como imutável, quando se atribui a ele um caráter histórico e permanente, articulado ao fato da evidente concentração de riqueza em um setor minoritário do país [...]. A prática discursiva na imprensa colombiano aponta o compromisso que se consolidou entre interesses econômicos e políticos, e uma indústria da informação associada a esses interesses. Este fenômeno é evidente na Colômbia, pois no país o único jornal de circulação nacional, em papel e digital, pertence a uma família com laços políticos e associada a grupos econômicos multinacionais. (PARDO ABRIL, 2008, p. 419) Nesse trecho, a pesquisadora observa que a situação de vulnerabilidade econômica é representada como algo imutável, histórico e permanente, e consequentemente natural. Assim, a grande mídia opera tendo como efeito um apagamento de responsabilidades pela acumulação de renda e pela apartação social, ao mesmo tempo que enfatiza responsabilidades individuais das pessoas em situações vulneráveis. Pardo Abril também observa a suspeita ‘coincidência’ de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 437 os veículos mais importantes da mídia tradicional colombiana serem de propriedade de uma família que está ligada tanto ao poder econômico quanto ao político, tendo evidentemente interesse em mascarar certas facetas da realidade nacional. No Brasil, o controle midiático de poucos grupos ligados a algumas poucas famílias7 e a compra de veículos de mídia por políticos também são fatos conhecidos. Sobre concentração midiática, e atentando para alguns de seus efeitos sociais, Pires (2013, s/p) enfatiza que: A concentração da comunicação no Brasil é aterradora. Não fosse isso por si só péssimo, essa mídia empresarial ainda dita, à sua maneira mercadológica, padrões culturais e de comportamento atrelados à lógica do consumismo e umbilicalmente ligados ao interesse maior de manter o status quo. Ao seu modo, a mídia empresarial, controlada por essas poucas famiglias de magnatas, mantém o estado das coisas do jeitinho que está: privilégios socioeconômicos para as suas castas e seus bajuladores e ignorância cultural e miséria para o restante do povo – no meio desse fosso de disparidade, repousa o “retrato comum” da classe média brasileira, alheia aos problemas sociais, mas preocupada em comprar o novo modelo de iPhone que acabou de ser lançado. Na contramão disso, aparecem veículos de mídia alternativa como uma via para a expressão de outras vozes e interesses, entre os quais estão os street papers abordados no projeto integrado de pesquisa de que aqui fazemos pequeno recorte. Nesse contexto, O Trecheiro apresenta De acordo com o Observatório do Direito à Comunicação, “Dos anos de 1990 até recentemente, o que se conigurou de maneira acentuada foi o movimento ascendente de concentração da mídia nacional e a consequente redução drástica de grupos (em sua maioria, empresas familiares) no controle dos principais veículos de comunicação do país. Algo em torno de nove grupos familiares controlavam a grande mídia no decorrer da última década [...]. Atualmente, o número de mandatários da grande mídia de abrangência nacional encolheu para seis grupos apenas. Isso porque foram retiradas da lista as tradicionais famílias Bloch, Levy, Nascimento Brito e Mesquita, que não exercem mais controle direto sobre seus veículos de comunicação. Civita, Marinho, Frias, Saad e Abravanel [...] são os clãs que comandam o oligopólio midiático no Brasil.” Disponível em: <http://www.direitoacomunicacao.org.br/index2.php?option=com_ docman&task=doc_view&gid=342&Itemid=99999999>. Acesso em: maio 2015. 7 438 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 diferentes maneiras de tratar a situação de rua e a vulnerabilidade, posicionando-se ao lado de grupos sociais empobrecidos e, para além disso, propondo soluções para que, pelo menos, seus direitos básicos sejam garantidos. 4.2 Intertextualidade: entre ação e representação A discussão de Bakhtin (2002 [1953]) sobre dialogismo, segundo a qual qualquer texto encontra-se inevitavelmente inserido em uma cadeia dialógica com os textos que vieram antes dele e com aqueles que virão depois, foi basilar para o desenvolvimento dos estudos do discurso, especialmente para a formulação de teorias do funcionamento social da linguagem, e permanece inluente em várias vertentes de análise de discurso, inclusive na versão de ADC com que lidamos na Universidade de Brasília (VIEIRA; RESENDE, 2016). No sentido mais evidente, a intertextualidade refere-se a partes de textos articuladas em outros textos, ou seja, às citações (FAIRCLOUGH, 2003). Mas existem vários modos de se construir relações intertextuais, e eles nos dão indícios das práticas que estão na origem dos textos, pois caracterizam formas de agir e se posicionar: ao dar maior ou menor espaço a uma voz, mais ou menos explicitamente, o/a autor/a do texto demonstra qual o seu alinhamento e qual a importância que atribui às vozes que atualiza em seu ato linguístico. Isso localiza a intertextualidade como característica do signiicado acional da linguagem, pois, ao selecionar fragmentos de outros textos e incorporá-los ao seu, o/a autor/a age efetivamente sobre o mundo. Uma das grandes questões que se impõem à mídia alternativa é a efetiva participação das pessoas às quais seus produtos se destinam. Essa questão é relevante para todos os movimentos em que intelectuais ou quaisquer pessoas que tenham maior poder simbólico tentam alinhar-se às causas de pessoas que encontram usurpados seus direitos mínimos. O mesmo paradoxo que põe em xeque a verossimilhança das obras de Graciliano Ramos, por exemplo, cria entraves para os jornais de rua, na produção das notícias e da informação sobre a situação que pretendem abordar. Seja na icção, seja no jornalismo, corre-se o risco de se apresentarem vozes parcialmente mimetizadas, ouvindo-se delas apenas ecos. Os textos de O Trecheiro negociam espaço com vozes em situação de rua, o que deixa ver o grau de engajamento dos/das editores/as com a questão e sua preocupação ética. As vozes de pessoas em situação de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 439 rua presentes nos textos do jornal são, muitas vezes (veja outras formas de materialização dessa polifonia na seção seguinte), trechos de fala articulados em citações diretas ou rearticulados por meio de citações indiretas, entremeados nos textos dos/as editores/as e colaboradores/as do jornal, o que caracteriza materialização convencional do potencial genérico para textos jornalísticos. A inovação, nesses casos, é que essas vozes vêm sempre acompanhadas de trajetórias resumidas das pessoas. Observa-se essa estrutura de articulação intertextual no corpus aqui considerado, como no seguinte excerto, retirado da edição de novembro de 2010: W. S. Machado, 28 anos, está morando na rua por causa de drogas, recebe pensão por invalidez, mas encaminha todo o dinheiro para esposa e ilhos. “Já tentei fazer um tratamento, mas a droga é uma doença e não tenho mais o que fazer”, declarou Machado. Para ele essas ações [de derrubada de “casas improvisadas das pessoas em situação de rua” e recolhimento de “todos os objetos que estivessem no espaço”, segundo a mesma matéria] são abusivas e subumanas. “Mesmo usando uma calçada, a gente tem o nosso direito de, no mínimo, um lar”, completou. Nesse exemplo, a voz autoral, de Alderón Costa, então editor do jornal, é uma voz- guia que articula e atualiza as falas de outras pessoas. Nos textos analisados, esse tipo de articulação acontece tanto para as vozes de pessoas em situação de rua quanto para as vozes de pessoas que de alguma forma trabalham com essa realidade (religiosos/as, assistentes sociais, membros do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, MNPR, promotores/as de justiça, entre outros/as), o que pode ser identiicado com o que Fairclough (2003) classiica como um cenário de abertura para a diferença. Nos textos analisados na pesquisa da qual este artigo apresenta um brevíssimo recorte, a intertextualidade articula-se intrinsecamente com a representação de atores sociais (van Leeuwen, 2008), o que é mais uma característica convencional de gêneros jornalísticos como a notícia. Essa característica possibilita uma análise que combine esses dois aspectos textuais (como nas análises apresentadas em Resende, 2013). Apesar de essa segunda categoria analítica ser relacionada ao signiicado representacional (em que o texto opera representando as coisas do mundo), sabemos que os diferentes signiicados do discurso propostos em 440 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 Fairclough (2003) não devem ser tomados como separados; ao contrário, são construídos dialeticamente. Assim, pesquisas em ADC não somente devem categorizar visando sistematizar suas análises, mas devem também poder articular diferentes signiicados, bem como diferentes categorias nas análises, aproximando, dessa maneira, o modelo teórico do objeto real que pretendem descrever. Essa proximidade entre representação e intertextualidade também foi evidenciada em Resende e Ramalho (2006, p. 67), quando abordam a agência no texto e observam que a “representação no discurso não é uma mera questão gramatical, ao contrário, é um processo ideológico cuja relevância deve ser considerada”. Isso pode levar à conclusão de que esse deva ser um ponto de contato regular entre os diferentes signiicados, a representação explicitando a ação. Diferentemente de jornais da chamada grande mídia, em O Trecheiro as pessoas em situação de rua são nomeadas, suas histórias de vida e as circunstâncias que as levaram a viver nas ruas são explicitadas. Isso indica um esforço representacional de inclusão no texto pela representação dos traços humanos dos atores sociais – o que, por absurdo que possa parecer, não é recorrente na mídia tradicional (RESENDE, 2015) – e um reconhecimento de suas narrativas, do que decorre o vínculo da representação textual a uma lógica explanatória, nos termos de Fairclough (2003), já que relações causais são reconhecidas. Isso pode favorecer outro olhar sobre os mesmos problemas e, para além disso, pode servir de base para que pessoas em situação de rua se vejam representadas e possam, a partir daí, (re)formular suas identidades. 4.3 Mudança genérica e interdiscursividade Como exemplo de mídia alternativa, O Trecheiro apresenta criatividade no que concerne à maneira como, nele, são materializados gêneros jornalísticos. O suporte é bastante dinâmico, no sentido de que há adaptações evidentes para melhor atender à população em situação de rua. Com base na análise dos volumes de agosto de 2010 a janeiro/fevereiro de 2011, foi possível veriicar que houve mudanças na realização estrutural do jornal, tendo sido criadas, no decurso desse curto período, três novas colunas: “Ruagenda” (presente nos volumes de dezembro e janeiro/fevereiro), “Vida no Trecho” (presente em todos os volumes analisados, mas não em volumes anteriores a que também tivemos acesso) e “Direto do Trecho” (presente nos volumes de agosto Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 441 a novembro de 2010). Além disso, nos moldes do “Vida no Trecho”, na capa da edição de janeiro/fevereiro, aparece a transcrição e a imagem de uma carta enviada a O Trecheiro por uma pessoa em situação de rua, como vimos neste mesmo artigo. Essa reestruturação do jornal pode ter sido orientada pelo objetivo de contemplar efetivamente as pessoas em situação de rua na publicação que a elas se destina. Isso evidenciaria o caráter inclusivo dessa iniciativa, pois não se trata apenas de ecos rearticulados de vozes (vide discussão anterior sobre intertextualidade), mas da criação de um espaço ixo, a ser habitado por histórias pessoais e visões de mundo particulares. A coluna “Vida no Trecho” é um espaço aberto para a contribuição por meio de cartas ou depoimentos, retomados pelo editor Alderón Costa, de pessoas em situação de rua, ou com trajetória de rua, nas quais elas narram um pouco de sua história. A seção “Direto do Trecho” realiza o gênero coluna de opinião, e os textos são sempre assinados por Salvador d’acolá, que se encontra em situação de rua. Essa coluna é muito particular, pois a qualidade dos textos de seu autor deixa ver a capacidade relexiva da população em situação de rua, o que por um lado agrega-lhe mais valor e, por outro, permite que outras pessoas em situação de rua tenham um reforço de sua identidade, sentindo-se estimuladas, por exemplo, a também escrever suas relexões. Nesses textos assinados por pessoas em situação de rua, podemos acessar os discursos (modos de representação particulares) mais frequentes no jornal, de forma geral. Desses discursos, vale observar mais atentamente o discurso da violência, o discurso do trabalho e o discurso da esperança. Os discursos são formas particulares de representar o mundo ou parte dele; desse modo, observar quais são os discursos presentes e como eles são articulados em textos oferece fortes indícios de como as práticas representadas são compreendidas. Segundo Resende e Ramalho (2006), a articulação da diferença, que deve ser observada ao se explorar a intertextualidade, também importa na análise de interdiscursividade. O aspecto interdiscursivo dos textos presentes no suporte O Trecheiro apresenta um direcionamento contrário ao da mídia tradicional na representação da situação de rua, por desenvolver maneiras diferentes de abordagem de questões relativas à realidade da rua: dos discursos mais comuns (sobre violência, trabalho e esperança), pode-se dizer que a forma como são tratados esses aspectos do mundo é totalmente outra, 442 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 e isso mostra como um mesmo aspecto do mundo pode ser representado de maneiras muito diversas (podemos comparar às representações discursivas da violência associada à pobreza, por exemplo, nos dados de Pardo Abril, 2008, ou de Resende, 2012). A temática da violência associada à vulnerabilidade social, quando tratada pela chamada grande mídia, via de regra responsabiliza as pessoas em situação de rua, reiicando-as. No caso de O Trecheiro, é possível entender a violência sob outra perspectiva: a das pessoas em situação de rua. No jornal, são representados dois tipos básicos de violência: a violência institucionalizada e a violência da sociedade civil. A seguir, podemos ler um relato de violência institucionalizada, em um excerto de um texto publicado na coluna “Direto do Trecho”, do volume de setembro/outubro de 2010, sobre o sistema assistencial de São Paulo: A pedagogia da humilhação já começa como uma forma de triagem. Apenas somente quem realmente precisa aceita o mau tratamento destes funcionários oferecidos em parcerias onde quem mais precisa é o menos fortalecido, mais fragilizado e vulnerável socialmente falando. Nunca peguei cadeia, mas o albergue parece uma extensão do sistema penitenciário. Salvador d’acolá descreve, nesse texto de sua coluna mensal, a situação enfrentada por quem busca abrigo nos albergues da capital paulista. Ele constrói a expressão “pedagogia da humilhação”, que, segundo ele, representa a prática social que orienta as ações dos/as assistentes desses albergues. Nessa lexia, por analogia, depreende-se que, ao contrário da proposta freiriana, o resultado da dinâmica social estabelecida nesse contexto aprisiona os/as albergados/as em um ciclo de violência com base na humilhação. A violência representada nesse caso é a violência institucionalizada da assistência que não assiste. A crítica institucional também se deixa ver na avaliação depreendida da curiosa estrutura modal em “Apenas somente quem realmente precisa”, enfatizando o abrigo como última opção. A seguir, reproduzimos parte de uma carta endereçada a O Trecheiro, publicada na seção “Vida no Trecho”, também no volume de setembro/outubro de 2010. Na carta, Carlos Ferreira de Lima relata seu esforço para sair das ruas, o drama que enfrentou no albergue em que Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 443 esteve durante alguns meses e a diiculdade encontrada no trabalho como ambulante, na venda de imagens de santos. No exemplo, a violência institucional representada é a que parte das forças da ordem policial: A Prefeitura me tomou quase R$200,00 de imagens, ainda me machucaram ao me segurarem por trás como se eu fosse bandido. Tá certo, meus santos não têm nota iscal, mas será que não tenho o direito de sobre-viver? E daí? Que lei é essa? Nesse trecho da carta, o autor põe em xeque a forma como o aparato repressor o percebe, o que se materializa textualmente na negativa pressuposta em “como se eu fosse bandido”, por meio da qual airma sua identidade como trabalhador. Ao mesmo tempo, questiona a “lei” que recai sobre ele, potencialmente lançando-o de volta às ruas, por impedir-lhe o trabalho informal que lhe garante “sobre-viver”. Assim, além de rejeitar a identidade marginalizada que lhe é imposta, ele constrói uma alteridade violenta para o Estado, o que se realiza de três formas: pela escolha lexical por “tomou”, para representar a ação da prefeitura; pela representação da ação policial por meio de processo material que denota ação violenta e pressupõe avaliação negativa (“machucaram”), ainda enfatizado na circunstância também violenta (“ao me segurarem por trás”); pelo questionamento do aparato legal que legitima esse tipo de ação da prefeitura e da polícia, especialmente nas repetidas estruturas interrogativas (“será que não tenho o direito de sobre-viver? E daí? Que lei é essa?”) e no jogo de palavra que resulta da partição em “sobre-viver”. Outro tipo de violência representado no corpus é a violência da sociedade civil. Vejamos o exemplo de um trecho da matéria de capa do volume de agosto de 2010, intitulada “Em Curitiba, ‘nem olham na sua cara’”: Os curitibanos nem olham na sua cara [...]. Você não é considerado pelo próprio conterrâneo como um ser humano. Você abre a boca para pedir um pão, não te olham nem na cara. Eu acho que eles pensam que quem está na rua é lixo. Trata-se aqui de representação da violência simbólica à qual pessoas em situação de rua são constantemente expostas. Nesse trecho de fala representada, o jovem Michael Ferreira, também representado imageticamente na matéria de capa (uma análise imagética está disponível 444 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 em Acosta e Resende, 2015), usa construções negativas (com “nem”, “não” e novamente “não”) em que o traço de humanidade das pessoas em situação de rua é apagado na percepção (representada) daqueles/as que não se encontram nas mesmas condições. Novamente, nesse excerto representa-se a insatisfação pela forma como se é tratado/percebido pelos/ as demais, o que se reforça pela repetição (“nem olham na sua cara” e “não te olham nem na cara”). Considerando análises anteriores de textos publicados em meios tradicionais de comunicação social, podemos dizer que nesse trecho recusa-se a recorrente e ultrajante associação entre pessoas em situação de rua e lixo, como no texto da Folha de S. Paulo analisado em Resende (2015). Aqui, em lugar das insidiosas associações indiretas que foram observadas na Folha de S. Paulo, abre-se espaço para a denúncia direta da desumanização: “Eu acho que eles pensam que quem está na rua é lixo”. Assim, a violência da sociedade contra os/as que vivem nas ruas é denunciada pelo jornal, que põe em pauta também as inúmeras, não investigadas e impunes mortes de pessoas em situação de rua, seja pela ação assustadoramente frequente (lembremos os recentes casos de Goiânia em 2013) de grupos de extermínio, seja pelas condições precárias de vida. Isso é evidenciado no editorial do volume de dezembro de 2010, em que Alderón Costa airma que: O sistema está determinado a matar. De imediato: pode ser à bala ou a paulada. Ou a médio prazo: por inanição ou cansaço. É só escolher! A esperança é que novos atores comecem a perceber a violência desse sistema que vem arrastando pessoas para esta situação. Novamente, encontramos no corpus resistência a ideias hegemônicas, como a de inevitabilidade da desigualdade social. No trecho inicial do excerto destacado, “O sistema está determinado a matar”, a estrutura social é apresentada, por meio de personiicação (van LEEUWEN, 2008), como voluntária e construída. Dessa maneira, O Trecheiro representa a violência como sendo inerente/resultante do sistema, ao mesmo tempo que mostra a percepção da realidade, sob esse prisma, por parte de atores sociais, e sua consequente ação individual/ coletiva, como a “esperança” para a resolução do problema. O jornal se opõe à maneira como tradicionalmente o tema da violência é tratado nos meios de comunicação social (ver, por exemplo, a análise de Resende e Santos, 2012, de texto publicado no jornal A Tarde). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 445 Além da violência, o jornal O Trecheiro também aborda frequentemente a temática do trabalho. O trabalho é representado como forma de sobreviver, como forma de sair das ruas e, principalmente, como forma de conquistar reconhecimento social que afaste a sombra de humilhação em tantos textos de nosso corpus denunciada. Vejamos um exemplo extraído da matéria “Pesquisa em SP revela peril e expectativas sobre trabalho”, publicada em novembro de 2010 e assinada por Maria Carolina Ferro: Além dessas questões [“aspectos fundamentais para pensar políticas públicas de trabalho e geração de renda”: oferta de cursos profissionalizantes, encaminhamento a vagas de trabalho, acompanhamento psicossocial], a intersetorialidade das políticas públicas foi destacada como fundamental, isto é, que as políticas de trabalho estejam articuladas com as políticas de Assistência Social, Saúde, Educação e Habitação. Somente com políticas articuladas será possível a “saída das ruas” e reinserção no mercado de trabalho. Segundo revelou a pesquisa mencionada na matéria, 90% das pessoas que se encontram em situação de rua trabalham regularmente. Assim, as pessoas que estão nas ruas são, em sua expressiva maioria, trabalhadoras, mas que se encontram em condições vulneráveis, com trabalho precário e sem qualquer garantia. Conforme o trecho da matéria que destacamos, políticas públicas intersetoriais são necessárias para que isso se realize, o que se texturiza pelo adjetivo “fundamental” e pelo recurso coesivo “Somente com” ligado a “será possível”. Assim, as políticas públicas intersetoriais, como as preconizadas na Política Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua (BRASIL, 2009), são representadas num horizonte de possibilidades (“será possível ‘a saída das ruas’”), e avaliadas como indispensáveis para a superação da situação de rua. Essa questão está intimamente ligada ao discurso da esperança. Esse discurso igura principalmente nos textos em que se podem ler narrativas de pessoas que conseguiram superar a situação de rua ou que estão numa via ascendente, alcançando sucessos nessa direção. A coluna “Vida no Trecho”, de janeiro/fevereiro de 2011, intitula-se “Do trecho para Rua Oscar Freire”, e sobre o título da matéria não nos deve escapar a texturização da cidade como espaço de segregação. Nesse texto, assinado 446 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 por Alderón Costa, Marcelo Leite S. de Matos conta de sua felicidade ao ver os trabalhos que ele e sua esposa, Jaqueline Pereira, realizaram, no curso de fotograia do Instituto Brasis, expostos em uma galeria na rua Oscar Freire, uma rua dos jardins, região nobre de São Paulo. Ao inal de sua narrativa, ele diz: Agora o pai dele [Athos Daniel Pereira Leite, filho do casal, à época com três meses] vai estudar, se formar, e ele vai ter muito orgulho do pai. Não vou precisar fazer nenhuma coisa errada [referência à experiência anterior com drogadição, mencionada no texto]. O emprego do futuro composto orienta o efeito consecutivo das ações projetadas, em que Marcelo Leite encadeia “estudar”, “formar-se” e “ter orgulho”. Nessa construção, articula-se o discurso da esperança, nesse caso fortemente associado a um ‘futuro melhor’ para a família recém-constituída, e ao afastamento em relação a “coisa errada”, o que é assumido como passado pressuposto no trecho de fala, recuperável no cotexto, e relacionado à situação de rua. Em trecho anterior do mesmo texto, outra instância de discurso direto articulando a voz de Marcelo Leite retoma a desumanidade que vimos em excertos anteriores: “Eu sou gente. Estão achando que eu não sou mais gente, mas ainda eu sou gente”. Assim como o jovem Michael Ferreira, de Curitiba, também Marcelo Leite denuncia a percepção social desumanizante. Da mesma maneira, a fala de Maria Lúcia Santos Pereira, de Salvador, coordenadora do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), retoma a questão, em texto assinado por ela e publicado no mesmo volume de O Trecheiro: Durante muitos anos da minha vida, senti o desprezo e o descaso de uma sociedade que se dizia democrática. Ao entrar de cabeça no Movimento Nacional da População de Rua, de uma certa forma, foi um grito de liberdade e do desejo de ver um mundo melhor. Vontade de me sentir humana de novo, pois as ruas tiram toda a nossa dignidade e identidade. Em 2009, tive o prazer de sentar perto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vê-lo assinar o Decreto das Políticas Públicas da População de Rua que, a meu ver, é nossa carta de alforria, pois éramos escravos do descaso e da discriminação da sociedade. Num momento Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 447 pude ver de perto o rosto de um homem que havia olhado para o nosso sofrimento, que nos possibilitou sair da invisibilidade rumo ao protagonismo. O texto reproduz discurso proferido por Maria Lúcia Santos Pereira em encontro com o já ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então presidenta Dilma Rousseff, no 8º Encontro de Natal da População em Situação de Rua, realizado em São Paulo, em 23 de dezembro de 2010. Esse texto, ao mesmo tempo que denuncia a desumanização (“Vontade de me sentir humana de novo”), representando negativamente a sociedade brasileira (“o desprezo e o descaso de uma sociedade que se dizia democrática”, “éramos escravos do descaso e da discriminação da sociedade”), articula o discurso da esperança, celebrando a organização social do MNPR (“grito de liberdade e do desejo de ver um mundo melhor”) e a Política Nacional para Inclusão da População em Situação de Rua (“carta de alforria”), por meio da metáfora de abolição. Nas relações de sentido estabelecidas no excerto, a autora sugere que a trajetória “da invisibilidade rumo ao protagonismo” é possível se as pessoas em situação de rua tiverem reconhecida sua “dignidade”, para reconstruir sua “identidade” como atores coletivos organizados em movimento social. Nos textos que vimos, a narrativa jornalística opera lançando luz sobre as vidas de pessoas que nos contam de suas angústias e sucessos, mostrando que são capazes e organizadas e que, assim como todas as pessoas, desejam ter uma vida plena de direitos: casa, lar, família, trabalho, reconhecimento, dignidade. São pessoas iguais e que deveriam ser, de fato, iguais. Por isso é importante evidenciar suas trajetórias, por meio de suas próprias vozes. Trata-se de contar histórias que não costumamos ouvir, por vozes que não encontram espaço nas tantas páginas dos jornais da chamada grande mídia (seria mais adequado ‘mídia grande’), mas que nesse jornal de apenas quatro páginas mensais (ou às vezes bimensais) podem texturizar-se. Considerações inais Em textos constroem-se maneiras particulares de ver/entender o mundo, reiterando discursos ideológicos ou, na contramão, tentando superá-los. As maneiras como tradicionalmente são representadas pessoas em situação de rua na ‘mídia grande’ fazem parte de um conjunto de ações discursivas com efeito potencial de perpetuação de sistemas de 448 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 oposição entre pessoas ou grupos de pessoas em polos de carência e acumulação; de negação de acesso aos direitos básicos, de um lado, e de ‘direitos prioritários’, de outro. Resistindo a discursos preconceituosos e aviltantes sobre a situação de rua, tão frequentes nos veículos tradicionais da comunicação social, O Trecheiro propõe aos/às seus/suas leitores/as outros parâmetros para compreender a situação de rua, suas causas e consequências. A inclusão de vozes de pessoas em situação de rua nos textos do jornal abre espaço para sua autorrepresentação, o que possibilita a materialização de narrativas outras, por outros prismas experienciais. Nesse espaço, leitores/as em situação de rua, público preferencial dessa iniciativa, podem se ver representados/as, podem reletir sobre as circunstâncias sociais que os/as levaram a estar nessa condição. E, assim, podem construir modos alternativos de identiicação, com base em outros modos particulares de representação (discursos), para muito além daqueles que os/as desumanizam. Os textos veiculados por O Trecheiro criam uma porta simbólica que se abre da rua para dentro. Essa porta aberta é um convite ao diálogo com toda a sociedade. Ela estrutura um espaço no qual o debate sobre assuntos marginalizados pode ocorrer. Ao promover outra forma de retratar a realidade das ruas, na produção textual de informações em O Trecheiro, a Rede Rua de Comunicação busca a mudança social por meio da mudança discursiva. Agradecimentos Agradecemos à FAP-DF pelo apoio à realização da pesquisa da qual se apresenta aqui um recorte, ao CNPq pela bolsa concedida ao projeto “Protagonismo face à inevitabilidade da violência: vozes da rua em Ocas” e em O Trecheiro”, ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal, pelo Prêmio Jovens Investigadores, conferido ao projeto “Publicações em língua portuguesa sobre / para a população em situação de rua: a revista Cais”, e aos pareceristas anônimos que avaliaram este artigo e contribuíram com suas valiosas indicações e cuidadosa revisão. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 421-454, 2018 449 Referências ACOSTA, M. P. T. Protagonismo face à inevitabilidade: vozes da rua em Ocas e em O Trecheiro – análise de discurso crítica. 2012. 232f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de Brasília, Brasília, 2012. ACOSTA, M. P. T.; RESENDE, V. M. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Mulheres na liderança: discurso, ideologia e poder Women in leadership positions: discourse, ideology and power Vicentina Ramires1 Departamento de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco vicentinaramires@terra.com.br Dina Ferreira Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade Estadual do Ceará/UECE dinaferreira@terra.com.br Resumo: Dominação, força e autoridade são conceitos ainda circunscritos ao universo masculino, e isso pode ser constatado principalmente nas relações de trabalho, mesmo naquelas em que as mulheres exerçam funções de liderança. Esse quadro também se materializa na academia, onde os sujeitos estão, hipoteticamente, mais atentos às diferentes posições ideológicas e às formas como se manifestam, e, por conseguinte, mais ou menos a elas refratários. O objetivo geral deste estudo é demonstrar como hierarquias de poder no mundo do trabalho baseadas em diferenças de sexo são ideologicamente construídas, de maneira a reforçarem as formas dicotômicas de relações de gêneros e como as próprias mulheres, atuando em culturas androcêntricas, podem contribuir para perpetuar atitudes sexistas. Com base nos Estudos Críticos de Discursos, procuramos: a) identiicar os discursos que corroboram para construir ou desconstruir modelos de dominação nas relações de gênero; 1 Pesquisa desenvolvida em estágio pós-doutoral, com auxílio da CAPES. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.455-489 456 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 b) observar em que formações discursivas esses modelos se impõem e c) identiicar em que medida procedimentos de discriminação são veiculados nos discursos proferidos pelas mulheres. Este estudo foi desenvolvido em duas instituições de ensino superior, analisando entrevistas e respostas aos questionários dirigidos a mulheres que ocupam posições de liderança. Observamos que, ao mesmo tempo que muitas mulheres reforçam a assimetria de gêneros existente entre posições de poder na sociedade, ao repetirem/conirmarem discursos, outras vão tomando consciência de seu espaço na sociedade e agem criticamente em defesa de direitos iguais entre homens e mulheres. Palavras-chave: gênero; discurso; ideologia; poder. Abstract: Domination, power and authority are still conined to male universe, and this can be found mainly in work relationships, even those in which women occupy leadership roles. This framework is materialized in academic communities, where subjects are hypothetically more attentive to the different ideological positions and how they are presented, and thus, more or less refractory to them. The aim of this study is to demonstrate that power hierarchies in the labor world based on sex differences are ideologically constructed in order to strengthen the dichotomous forms of gender relations. We also intend to analyze how women themselves, working in male-centered cultures, contribute to perpetuate sexist attitudes against themselves. Based on Critical Discourse Studies we seek to a) identify discourses that support to build or deconstruct models of dominance in gender relations; b) observe in which discursive formations such models are imposed and c) identify to what extent discrimination procedures are found in discourses made by women. This study was conducted in two universities, by analyzing interviews and responses to questionnaires sent to women in leadership positions. We note that, while many women reinforce the asymmetry of genres between positions of power in society, repeating/conirming discourses, others are aware of their place in society and act critically in defense of equal rights for men and women. Keywords: gender; discourse; ideology; power. Recebido em 10 de julho de 2016. Aprovado em 10 de abril de 2017. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 457 1 Introdução As transformações ocorridas na condição feminina ao longo das últimas décadas ainda não são suicientes para que as mulheres possam decidir sobre suas vidas, pois não exercem o poder em sua plenitude e, principalmente, não acumulam esse poder, quando o reproduzem, não para elas mesmas, mas para aqueles que de fato controlam o poder (COSTA, 2000). Esse quadro pode parecer exagerado, em tempos de tecnologia avançada, em que se apresentam, sobretudo na mídia eletrônica e impressa, imagens de mulheres bem-sucedidas, irmes e decididas, responsáveis, muitas vezes, pelo correr do luxo da economia em alguns centros urbanos. Entretanto, analisando a situação de um tempo mais remoto, em que a passividade da mulher e a sua submissão dentro do mundo doméstico, vivenciadas durante uma longa história de opressão, foram utilizadas para impor-lhe o pagamento de salários inferiores aos dos homens, com jornadas de trabalho excessivas e insalubres, percebe-se que esse quadro ainda hoje permanece, em grande medida (MACÊDO, 2003). A dominação, a força, a autoridade central estavam circunscritos ao universo masculino, e esse fato pode ser constatado na história mais recente, principalmente nas relações de trabalho, seja naquelas em que as mulheres exercem funções de liderança/comando/direção, seja naquelas em que se encontram subordinadas ao domínio masculino. Nas posições de liderança, por exemplo, as mulheres ainda deparam com “duplos discursos”: elas têm que justiicar constantemente sua presença e suas conquistas e ainda são avaliadas com diferentes normas, ou seja, simpliicadamente, qualiicações iguais atribuídas ao sexo masculino ou feminino não são avaliadas da mesma forma. Signiicativamente subrepresentadas nesses postos, as mulheres, por outro lado, têm expressiva representação em funções tais como vendedoras, domésticas, funcionárias e professoras. Um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico divulgado no inal de 2015 revela que o salário médio de uma mulher brasileira com nível superior corresponde a 62% da renda mensal de homens com a mesma escolaridade. Dos 42 países analisados pela Organização, o levantamento mostrou que o Brasil é o país com a maior diferença salarial entre cidadãos com diploma universitário em comparação àqueles com grau de instrução inferior. A desigualdade de 458 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 gênero também se manifesta nesse quesito: 72% de homens que têm um diploma universitário ganham mais de duas vezes a média da renda nacional. Entre as mulheres, a taxa cai para 52%.2 A remuneração das mulheres com curso superior era, em média, 40% inferior à dos homens.3 Esses números causam estranheza quando se conirma que as mulheres brasileiras deixaram de ser minoria entre os doutores titulados no Brasil a partir do ano de 2004. Desde então, o número de mulheres tituladas tem sido superior ao de homens, atingindo o percentual de 51,5% de doutoras no país,4 ou seja, essas estatísticas de desigualdade na remuneração não são explicadas pela escolaridade, visto que, nesse aspecto, elas ocupam posição de destaque. Nos espaços políticos no Brasil, a divisão de gêneros consegue ser mais cruel. Em entrevista concedida à BBC Brasil, em 14 de maio de 2016, ao falar sobre a atitude do presidente em exercício no Brasil, à época, Michel Temer, em privilegiar homens brancos na composição de seu ministério, Jennifer Berdahl, professora da Universidade de British Columbia, no Canadá,5 critica veementemente essa decisão, ao airmar que essa é “uma mensagem realmente má e perigosa que ele manda à população”, pois desencoraja mulheres e minorias a buscar espaços na política brasileira. Apesar de concordar que as escolhas devam se basear em mérito, ela pondera que o mérito é igualmente distribuído entre gêneros e raças, e que, portanto, os percentuais de mulheres e minorias em posição de liderança deveriam seguir os do resto da população. Para ela, quando só são nomeados homens brancos, ou se acredita que só eles têm méritos, ou o sistema na verdade não é baseado no mérito.6 Levemos em conta que todo esse quadro descrito se materializa em comunidades acadêmicas, ou seja, em contextos de realização de Publicado originalmente na edição 878 de Carta Capital, com o título, “Injustiça de gênero”. Novembro de 2015. 3 Algumas características da inserção das mulheres no mercado de trabalho (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre) 2003-2008. 4 Doutores 2010: estudos da demograia da base técnico-cientíica brasileira – Brasília, DF: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2010. 5 O atual ministério do Canadá (em 2016) é considerado o mais diverso da história do país: há igual número de homens e mulheres, há ministros indígenas e membros de comunidades imigrantes. 6 Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil/2016/05/160513entrevistap rofessoracanadajf_cc>. Acesso em: 16 maio 2016. 2 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 459 linguagem em que os sujeitos estão, pelo menos hipoteticamente, mais atentos às diferentes posições ideológicas e como elas se manifestam, e, por conseguinte, mais ou menos a elas refratários a elas. Aparentemente – e é isso que queremos analisar –, os discursos que circulam na sociedade em geral e reproduzem o modelo tradicional de divisão sexual do trabalho atravessam espaços considerados como de “produção de saber”, a exemplo das universidades, públicas ou privadas. Outro ponto que merece atenção é o fato de que, apesar de mais mulheres terem atingido maiores status em suas proissões, ainda há, em muitas culturas organizadas, sutis (e também manifestos) procedimentos de discriminação que têm, tacitamente (e, muitas vezes, explicitamente) a cumplicidade das mulheres. De modo mais abrangente, é possível construir a hipótese de que essas mulheres – nas suas formas particulares de representar, de interagir, de situar e de se identiicarem em diferentes práticas sociais – incorporam e reproduzem os discursos discriminatórios como explicação para as condições de vida e trabalho em que estão situadas, sugerindo que as ideologias implícitas nas práticas discursivas podem ser muito eicazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de senso comum. É nessa perspectiva que a análise crítica feminista de discursos pode dar conta dessa problemática, ao criticar discursos que contribuem para manter uma ordem social patriarcal, cujas relações de poder privilegiam homens e excluem mulheres como grupo social. Tendo sido esses pontos rapidamente considerados, o objetivo geral deste estudo é demonstrar que hierarquias de poder no mundo do trabalho baseadas em diferenças de sexo são ideologicamente construídas, de forma a fazer perpetuar as formas dicotômicas de relações de gêneros. Paralelamente, sem simpliicar a questão, pretendemos também analisar como as próprias mulheres, atuando em culturas androcêntricas, contribuem para perpetuar atitudes sexistas e práticas contra elas mesmas. Para tanto, com base nos estudos críticos dos discursos, procuraremos: a) identiicar as formas discursivas (macro e microssemânticas) que corroboram para construir ou desconstruir esses modelos de dominação nas relações de gênero; b) observar em que formações discursivas (considerados gêneros, faixa etária, nível socioeconômico, formação educacional, entre outras variáveis) esses modelos se impõem e c) identiicar em que medida procedimentos de discriminação são veiculados nos discursos proferidos pelas próprias mulheres. 460 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 2 Referencial teórico 2.1 Conceito(s) de gênero A literatura apresenta uma vasta fonte de pesquisa de autores/as que abordam o conceito de gênero como instrumento teórico e empírico para a análise das relações sociais. Um dos estudos feministas que trouxe novas perspectivas para os estudos de gênero foi o desenvolvido pela historiadora norte-americana Joan Scott, cujo célebre artigo Gênero: uma categoria útil de análise histórica (1995), publicado originalmente em 1986, tornou-se um clássico, por desconstruir a visão binária de que as distinções entre o feminino e o masculino não são fatos naturais (determinismo biológico), mas, ao contrário, são forjadas pelos indivíduos em sociedade e perpassadas pela cultura. Portanto, segundo Joan Scott (1995), gênero é categoria relacional, ou seja, abrange as relações sociais entre o feminino e o masculino, de forma que um gênero só adquire sentido na relação com o outro. Desse modo, o conceito de gênero se apresenta como um meio de distinguir a prática sexual (determinado pela natureza biológica do sexo feminino e masculino) dos papéis sociais (divisão sexual do trabalho, por exemplo), identidades e comportamentos opostos atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade. As relações de gênero, assim como as de classe ou de etnia, são imbricadas pelo contexto social, cultural, político e econômico, ou seja, são construções históricas, portanto, multilineares e mutáveis. Em síntese: Estabelecidos como um conjunto objetivo de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social. Na medida em que essas referências estabelecem distribuições de poder (um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos), o gênero torna-se implicado na concepção e construção do próprio poder (SCOTT, 1995, p. 88). O determinismo biológico, que embasa a discriminação entre gêneros, primordialmente, pode ser entendido como o conjunto de teorias segundo as quais a posição ocupada por diferentes grupos nas sociedades, ou comportamentos e variações das habilidades, capacidades, padrões cognitivos e sexualidade humana, derivam de limites ou privilégios inscritos na constituição biológica, ou seja, nos corpos sexuados Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 461 (MACEDO, 2003). Essa noção fundamenta a ideia de que o poder pode ser distribuído de maneira desigual entre os sexos, cabendo às mulheres uma posição subalterna na organização da vida social, dado que elas são, nessa concepção, biologicamente inferiores aos homens. Assim é que o patriarcado concede direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, sustentando-se sobre uma base material e simbólica, conigurando-se por estruturas de poder hierárquicas e desiguais – presentes em todos os espaços – na sociedade, no estado, na cultura, na religião, e, assim, reproduzindo o binarismo do público-privado entre homens e mulheres, de forma a se garantir uma desejada “estabilidade” de todo um sistema baseado nessas diferenças, conforme assevera Scott (1995): O gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem sido concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao signiicado da oposição homem/mulher; ele também o estabelece. […] Dessa maneira, a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio signiicado de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema inteiro (SCOTT, 1995, p. 92). Ao mesmo tempo, a ideologia liberal dominante faz crer que todas as mulheres são iguais, o que não pode ser verdade. Entretanto, essa noção faz as experiências parciais, de acordo com a classe social, orientação sexual, geograia, cor, serem universalmente compartilhadas, sem que se considerem as diferentes necessidades das mulheres, descaracterizando-as, portanto. Expressando um pensamento totalmente contrário a essa ideia, para Lazar (2005), duas importantes compreensões para ACD feminista são o reconhecimento das diferenças e diversidades entre mulheres (e homens) e a prevalência dos sutis funcionamentos discursivos do poder moderno em muitas sociedades. Com essa mesma convicção, a ilósofa norte-americana Judith Butler discorda de que só se poderia fazer uma teoria social sobre o gênero e que o sexo pertenceria ao corpo e à natureza. Para ela, “por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente ixo como o sexo” (BUTLER, 2016, p. 26). Sem dúvida, não se pode negar que o feminismo é uma luta pelos direitos das mulheres, mas é preciso ter claro, segundo a própria 462 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 ilósofa tem defendido em toda a sua obra, que a questão de gênero é, principalmente, um questionamento da identidade e do princípio que rege sua lógica, isto é, um problema ontológico. Assim que, como bem ressalta Butler (2016), A complexidade do conceito de gênero exige um conjunto interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos, com vistas a resistir à domesticação acadêmica dos estudos sobre gênero ou dos estudos sobre as mulheres, e a radicalizar a noção da crítica feminista (p. 13). Decorre dessa leitura a convicção de que não se pode pensar o conceito de gênero feminino como um problema circunscrito à noção de “mulheres”, mas que envolve várias formas de opressão interligadas. É o que defende Kimberle Crenshaw, responsável pelo desenvolvimento teórico do conceito da interseção das desigualdades de raça, de gênero e de classe social, no inal da década de oitenta do século 20, ao criar o termo “feminismo interseccional”. Em documento no qual apresenta com clareza essa noção, bem como algumas recomendações, Crenshaw (2002, p. 171) adverte: A ampliação dos direitos humanos das mulheres nunca esteve tão evidente como nas determinações referentes à incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming) das conferências mundiais de Viena e de Beijing. De fato, ao mesmo tempo que a diferença deixou de ser uma justificativa para a exclusão do gênero dos principais discursos de direitos humanos, ela, em si mesma, passou a servir de apoio à própria lógica de incorporação de uma perspectiva de gênero. Tal incorporação baseia-se na visão de que, sendo o gênero importante, seus efeitos diferenciais devem necessariamente ser analisados no contexto de todas as atividades relativas aos direitos humanos. Assim, enquanto no passado a diferença entre mulheres e homens serviu como justiicativa para marginalizar os direitos das mulheres e, de forma mais geral, para justiicar a desigualdade de gênero, atualmente a diferença das mulheres indica a responsabilidade que qualquer instituição de direitos humanos tem de incorporar uma análise de gênero em suas práticas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 463 É preciso ter clareza de que a estrutura de gênero é ideológica e que a ideologia de gêneros é hegemônica, porque frequentemente não se apresenta como dominação, mas como consensual e aceitável numa comunidade, senão naturalizada. Gramsci (1987), ao deinir ideologia como concepção de mundo, questionava se haveria ideologias mais ou menos favoráveis a determinados grupos ou pessoas, individualmente. Essa preocupação encerra-se – particularmente no que se refere à temática deste nosso estudo – no fato de muitas mulheres adotarem a ideologia religiosa cristã, por exemplo, que, por ser essencialmente patriarcal7, é-lhes totalmente desfavorável, tanto pelo fato de que lhes nega os direitos sobre o seu próprio corpo, quanto por lhes assujeitar aos homens. A análise crítica feminista de discursos como práxis política, conforme defende Lazar (2005), é capaz de dar conta dessa problemática, ao estabelecer como preocupação central criticar discursos que sustentam uma ordem social patriarcal, ou seja, relações de poder que sistematicamente privilegiam homens como grupo social e que prejudicam, excluem e desempoderam mulheres como grupo social. A autora adverte que essas práticas não são neutras, mas dessa forma engendradas. A natureza de gênero dessas práticas sociais pode ser descrita, segundo a autora, em dois níveis: a) “gênero” funciona como uma categoria interpretativa que permite aos participantes de uma comunidade tomar sentido e estruturar suas práticas sociais particulares e b) “gênero” é uma relação social que penetra e parcialmente constitui todas as outras relações e atividades sociais (LAZAR, 2005). Assim é que os discursos de gênero instituem as relações sociais e as diferenças entre os sexos, o que é feito por meio de construções simbólicas que determinam e mantêm o status quo, atribuindo papéis a um ou outro gênero, ou seja, envolve o conjunto de expectativas sociais e padrões de comportamento. Martins Ferreira (2009) chama a atenção para o fato de que essas diferenças são reveladas nas práticas discursivas, em que muitas mulheres, como já foi anteriormente ressaltado, adotam a ideologia patriarcal e sexista. Em suas palavras: “No universo da dicotomia sexista patriarcal, a natureza masculina espelharia objetividade, 7 Não é por acaso que Deus é retratado como um homem velhinho de barba (o homem sábio) e que no dicionário os nomes que admitem pares feminino e masculino têm sua entrada no masculino: “moço” e não “moça”. 464 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 racionalidade e segurança, e a feminina, características de dispersão, emoção e de pouca segurança” (p. 116). 2.2 Estudos críticos de discursos Os estudos críticos de discursos almejam investigar criticamente como a desigualdade social é expressa, sinalizada, constituída, legitimada, e, também desconstruída, por meio do uso da linguagem (ou no discurso). A desconstrução desses discursos é tarefa da Análise Crítica de Discursos (doravante, ACD), cujo interesse particular centra-se na relação entre linguagem, ideologia e poder. A ACD pode, então, ser deinida como um campo dentro dos estudos críticos da linguagem fundamentalmente interessado em analisar relações estruturais, transparentes ou veladas, de discriminação, poder e controle manifestas na linguagem. Assim é que a Teoria Social do Discurso baseia-se em uma percepção da linguagem como parte irredutível da vida social dialeticamente interconectada a outros elementos sociais (RAMALHO; RESENDE, 2006), ou seja, o discurso é moldado pela estrutura social, mas também é constitutivo da estrutura social. Para garantir a dominação, o poder e a manutenção das desigualdades, Teun van Dijk (2008) assevera que grupos poderosos controlam o discurso público pela concessão ou não do acesso a esses discursos – acesso deinido pelo contexto (cenário, ações, participantes, representações mentais), pelas estruturas do texto (gêneros textuais, atos de fala) e pelos temas (macroestruturas semânticas). Em consequência, esse discurso controla as mentes e as ações dos indivíduos, que tendem a aceitar crenças, desde que produzidas por aqueles considerados fontes autorizadas, coniáveis ou críveis, ou pelo desconhecimento desses indivíduos sobre o discurso ou informação a que são expostos. É dessa forma que são formados e/ou reformulados os modelos mentais e as representações sociais, conforme postulam Chouliaraki e Fairclough (1999): Discurso, portanto, apresenta-se de duas maneiras nas práticas: práticas são parcialmente discursivas (falar, escrever, etc, é apenas um modo de ação), mas elas são também discursivamente representadas. Na medida em que tais representações ajudam a sustentar relações de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 465 dominação nessas práticas, elas são ideológicas (p. 37, tradução nossa.).8 É com base nessas considerações que os estudos do discurso são críticos e, metodologicamente, segundo van Dijk (2008), devem observar alguns dos seguintes critérios: a) estudo das relações de dominação pelo grupo dominado e do seu interesse; b) uso das experiências dos grupos dominados para avaliar o discurso dominante; c) denúncia da ilegitimidade das ações discursivas do grupo dominante; d) formulação de alternativas viáveis aos discursos dominantes. Na perspectiva de gênero, há, segundo Lazar (2005), várias razões para se fazer uma análise crítica feminista9 de discursos, entre as quais se destacam: a) ACD oferece uma teorização soisticada das relações entre práticas sociais e estruturas discursivas, além de uma gama de ferramentas e estratégias para uma análise acurada dos usos reais e contextualizados da linguagem. b) Análise crítica de discursos na perspectiva de gênero preocupa-se em desmistiicar as inter-relações de gênero, poder e ideologia nos discursos, numa visão multimodal. Relações de poder e dominação, entretanto, podem ser discursivamente confrontadas, num embate dinâmico para assegurar ou desaiar os interesses em jogo. Exatamente esta é a tarefa da ACD No original: Discourse therefore igures in two ways within practices: practices are partly discursive (talking, writing, etc. is one way of acting), but they are also discursively represented. In so far as such representations help sustain relations of domination within the practice, they are ideological. 9 Vale a ressalva de que o termo feminino pode ter signiicados ideológicos diversos, tais como a noção de gênero biológico (questão de diferenças de genitália e não de escolha práxis sexual), social e cultural (no que tange a percepção de estilização de corpo [BUTLER, 2016], preconceitos e exclusão) e político (o movimento feminista que reivindica direitos iguais, iniciado na década de 60) (MARTINS FERREIRA, 2009). 8 466 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 na perspectiva de gênero: examinar como o poder e a dominação são discursivamente produzidos e/ou confrontados de formas variadas pelas representações textuais de práticas sociais de gênero e por meio de estratégias interacionais de conversação (LAZAR, 2005). Para que sejam, pois, observados alguns critérios para uma metodologia da análise de discursos de gêneros, dois conceitos são indispensáveis para a ACD: o conceito de poder e o conceito de ideologia, que abordaremos neste estudo por responderem com mais propriedade as questões eleitas para a análise de nosso corpus. 2.3 Ideologia e poder O conceito de ideologia já se consagrou nos estudos do discurso como um conceito muito complexo. São tantos estudiosos e tantas formas de abordagem que já se cogitou não mais considerá-lo como importante, por exemplo, para se analisar determinados discursos. Como não podemos concordar com essa última tendência, digamos assim, buscamos traçar um breve panorama do que esse conceito representa nesta nossa investigação. Thompson (1990) nos lembra que o conceito de ideologia surgiu no século XVIII na França e tem sido utilizado numa gama de funções e signiicados ao longo desses mais de dois séculos. Para ele, ideologia refere-se a processos e formas sociais no interior dos quais e por meio dos quais circulam formas simbólicas no mundo social. Dessa forma, o estudo da ideologia tenta explicar como o signiicado é construído e transmitido por meio de diferentes formas simbólicas. Ao contrário da visão determinista do poder da ideologia sobre o sujeito na primeira fase da Análise do Discurso, para os analistas críticos do discurso, como Fairclough (2001), Wodak (2005), van Dijk (2008), Chouliaraki e Fairclough (1999), a ideologia é vista como um importante aspecto da criação e manutenção de relações desiguais de poder, e, nesse sentido, “[…] ideologias são signiicações/construções da realidade […] que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 17). Embutidas nas práticas discursivas – continua o autor –, as ideologias são muito eicazes quando se tornam naturalizadas e atingem o status de ‘senso comum’. Nesse caso, alguns aspectos ou níveis do texto e do discurso que podem ser investidos ideologicamente são especialmente Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 467 os semânticos (pressuposições, metáforas e coerência). Ou seja, é exatamente nos discursos que a eicácia da ideologia se consolida, pois esta deriva do fato de que se confere às palavras não só um sentido, mas também um poder: poder de persuasão, de convocatória, de consagração, de estigmatização (HAIDAR, 2000). Uma vez que o poder depende da conquista do consenso e não apenas de recursos para o uso da força, a ideologia tem importância na sustentação de relações de poder. Ricoeur (1981) tem posição um pouco diferente: a ideologia não pode se coninar a uma deinição que toma por base exclusivamente a de dominação de classe. Para sustentar isso, analisa o conceito de ideologia, considerando algumas funções: mediar a integração social, de forma a tornar um determinado grupo coeso; dominar – e para isso provê a legitimidade necessária ao exercício da autoridade sendo um sistema justiicador da dominação; deformar, que é função importante em cuja instância encontra-se a própria noção marxista de ideologia e na qual se fundem as duas outras instâncias analisadas antes. Ricouer salienta que, para garantir a coesão de um grupo e dominá-lo, alguns mecanismos são necessários, tais como: a) perpetuar um ato fundador inicial, o qual instaura uma memória que é transmitida adiante e dá identidade ao grupo; b) estimular a praxis social por meio de dinamismo e motivação; c) reduzir o grau de complexidade da análise da realidade para o grupo, por meio de simpliicação e esquematização, pelo uso de elementos retóricos, como máximas, slogans, entre outros; d) agir por meio de nós, pela operabilidade e pela atematicidade, ou seja, a ideologia serve de ponto de partida para nossos pensamentos, mesmo que pensemos que nossos pensamentos são o ponto de partida para o alcance daquela; e) demonstrar intolerância pelo novo, justiicando esse como algo perigoso e capaz de desestabilizar e separar o grupo. Fairclough, baseando-se no conceito de hegemonia elaborado por Gramsci (ver GRAMSCI, 1978; 1987), preocupa-se em acentuar a noção de discurso como “modo de prática política e ideológica” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94) e ressalta: O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas […] entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui, naturaliza, mantém e transforma os signiicados do mundo de posições diversas nas relações de poder. 468 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Considerando-se o discurso nessa perspectiva, um fenômeno que é objeto de análise de estudiosos é a naturalização do discurso, conforme postula Thompson (1990), que é uma estratégia para legitimar, dissimular, uniicar, fragmentar e reiicar relações de dominação, o que é bastante perigoso, uma vez que pode levar indivíduos a reproduzir ideologias que os prejudicam a si ou a outros. Por exemplo, é “por meio do discurso […] que muitas mulheres adotam a ideologia patriarcal e sexista que lhes é desfavorável e que muitos trabalhadores adotam a ideologia burguesa que também vai contra seus interesses e aspirações” (OLIVEIRA, 2013, p. 41), o que os faz se submeterem a relações desiguais de opressão e poder. Maffesoli (2011) elabora uma dicotomia interessante entre “poder” (pouvoir) e “potência” (puissance). Segundo o que ele denomina de dialética fundadora, ou, melhor dizendo, dialogia, considerando que um termo remete ao outro, potência (instituinte) “é exatamente o que constitui o elemento básico da vida em comum” (p. 17). É o que se pode considerar de “impulso vital”. O poder (instituído) “é, de alguma maneira, a institucionalização […], a legitimação, a racionalização dessa força primitiva, desse impulso vital” (p. 18). Retomando essa questão na obra O Tempo das Tribos (2006), Maffesoli apresenta uma segunda lei: “O poder pode e deve se ocupar da gestão da vida; a potência é responsável pela sobrevivência” (p. 115). Mas é preciso ter claro, como alerta Foucault (1979, p. 86), que o poder “é tolerável somente na condição de que mascare uma grande parte de si mesmo. Seu sucesso é proporcional à sua habilidade para esconder seus próprios mecanismos”. Em outras palavras, muitas vezes as formas como os discursos são apresentados materializam e naturalizam formas de controle do poder social – controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros – pela força potencial, locucionária, ilocucionária e perlocucionária do texto. A conquista do consentimento é, portanto, um trabalho discursivo, alicerçado em aparelhos ideológicos da sociedade, principalmente os órgãos da mídia (impressa ou eletrônica) e o sistema escolar. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 469 3 Procedimentos metodológicos 3.1 O campo do estudo Tendo em vista que o nosso objetivo é também analisar como os discursos discriminatórios se materializam e se difundem em comunidades acadêmicas, ou seja, em contextos de realização de linguagem cujos sujeitos estariam teoricamente mais atentos às diferentes posições ideológicas e aos modos de como elas se manifestam, efetuamos este estudo em duas grandes instituições de ensino superior – uma universidade federal e uma universidade particular, localizada em um dos centros urbanos mais populosos do nordeste do Brasil. Não foi nossa intenção comparar práticas de linguagem em outras regiões do Brasil, sendo, portanto, a escolha desse campo uma forma de podermos ter acesso a maior número de sujeitos nessas instituições, considerando-se o tempo do estudo, que é de doze meses, e a localização do Programa onde pretendíamos desenvolver a pesquisa. Entretanto, izemos levantamentos de dados – que serão apresentados ao longo da análise – sobre mulheres em funções públicas, apresentados por institutos na França, a exemplo da Sorbonne, em Paris, onde estivemos para aprofundar os estudos durante o período do estágio. 3.2 As entrevistadas As práticas discursivas que compõem o corpus de nossa análise vieram, majoritariamente, de mulheres que ocupam posições de liderança nas instituições pesquisadas. São coordenadoras de cursos (graduação e pós-graduação), chefes ou diretoras de departamento/centros acadêmicos, diretoras ou gerentes de setores administrativos, pró-reitoras, reitora e diretoras de instituição. Cada uma dessas posições foi representada por pelo menos uma mulher, mas houve casos em que tivemos mais de duas mulheres representando a mesma função nas diferentes instituições pesquisadas, a exemplo de coordenadoras de cursos. No caso de reitora, dado que é o maior posto a se ocupar em instituições acadêmicas, e, de forma geral, de número muito reduzido em todo o país, comparando-se com o de homens que exercem esses cargos, só uma foi entrevistada.10 10 A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – Andifes, criada em 23 de maio de 1989, é a representante oicial das universidades federais no Brasil. Entre as 67 instituições que fazem parte dessa Associação, apenas 470 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Assim, nossa amostra compreendeu o número de 12 mulheres, que pode parecer pequeno, considerando o universo de mulheres trabalhadoras no mundo todo, mas é representativo, em grande escala, do número de mulheres que atuam em altos postos de decisão, seja no setor público, seja no privado. Um estudo feito pela ONU, Mulheres do Mundo 2010: Tendências e Estatísticas,11 apresenta estatísticas e análises sobre a situação das mulheres e dos homens no mundo, destacando a situação atual e as mudanças ao longo do tempo. As análises são baseadas principalmente em estatísticas de agências nacionais e internacionais. Um dos temas analisados no relatório, que abrange 196 países ou áreas com uma população mínima de 100.000 habitantes, diz respeito ao exercício de poder e tomada de decisões das mulheres. Entre as principais constatações apresentadas nesse estudo, destacam-se as seguintes12: • Tornar-se Chefe de Estado ou Chefe de Governo permanece ilusória para mulheres. Apenas 14 mulheres no mundo atualmente detêm ou uma ou outra posição. • Em apenas 23 países, as mulheres compreendem um número expressivo – mais de 30 por cento – no seu parlamento nacional. • Em todo o mundo, em média, apenas uma em cada seis ministros é mulher. 19 são dirigidas por mulheres, o que representa um percentual de 28%. (http://www. andifes.org.br/institucional/a-andifes/) 11 The World’s Women 2010. United Nations. New York, 2010. Department of Economic and Social Affairs. 12 • Becoming the Head of State or Head of Government remains elusive for women, with only 14 women in the world currently holding either position. • In just 23 countries do women comprise a critical mass – over 30 per cent – in the lower or single house of their national parliament. • Worldwide on average only one in six cabinet ministers is a woman. • Women are highly underrepresented in decision-making positions at local government levels. • In the private sector, women continue to be severely underrepresented in the top decision making positions. • Only 13 of the 500 largest corporations in the world have a female Chief Executive Oficer. Este estudo não foi traduzido para a língua portuguesa. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 471 • As mulheres são extremamente sub-representadas em posições de tomada de decisão nos governos locais. • No setor privado, as mulheres continuam a ser fortemente subrepresentadas no topo das posições de tomada de decisão. • Apenas 13 das 500 maiores empresas do mundo têm uma mulher como Chefe do Executivo. (Tradução nossa) Na análise do corpus de nosso estudo, esses e outros aspectos foram considerados, tais como as diferenças entre mulheres, expressas nos modos de ação discursiva, que compreendem variáveis como pertencimento a diferentes classes socioeconômicas, níveis de formação educacional, base cultural e idade. Uma consideração que se faz necessária para a apresentação das entrevistadas é que todas elas se mostraram disponíveis e interessadas em fazer parte deste estudo. O fato de que todas pertencem ao universo acadêmico, em que uma das principais atividades, ao lado do ensino e da extensão, é a pesquisa, torna-as conscientes de que as suas respostas contribuirão para esclarecer algumas hipóteses que são aqui levantadas. Foi feita uma advertência formal, na ocasião da entrega dos questionários e da realização da pesquisa, relacionada ao sigilo das suas identidades, mas, independentemente disso, elas se mostraram confortáveis e cooperativas com os instrumentos de pesquisa. O tempo de permanência no cargo, na ocasião das entrevistas, variou entre 6 meses e 5 anos. Neste último caso, apenas uma delas permaneceu mais tempo. A maioria encontrava-se no cargo por mais de 3 anos. Das 12 entrevistadas, 7 pertenciam à instituição pública federal, e 5 pertenciam à instituição privada, ressaltando-se que ambas são instituições de grande porte. Como bem sabemos, nas instituições públicas, esses cargos têm, regimentalmente, um tempo de gestão que varia entre dois e quatro anos, podendo haver a recondução por igual período. Apenas 2 delas foram reconduzidas: uma por eleição e outra por indicação. As formas de ocupação do cargo foram equitativamente distribuídas entre as entrevistadas: 4 foram eleitas, 4 foram indicadas e as outras 4 foram convidadas. Um dado que muito nos interessava anotar referia-se à faixa etária das entrevistadas: 75% das mulheres tinham mais de 36 anos. Sem que precisássemos recorrer a estatísticas feitas por institutos de pesquisa, é de conhecimento geral que os cargos mencionados geralmente são 472 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 preenchidos por pessoas não tão jovens, pelo fato de que, mesmo em instituições com eleições, em que as candidaturas são livres, o acesso a esses postos requer experiência e formação, que não são tão facilmente encontradas em proissionais muito jovens. Considerando a hipótese que construímos para iniciar esta pesquisa que visa investigar o fato de muitas mulheres incorporarem e reproduzirem os discursos discriminatórios para explicar suas condições de vida e trabalho, procuramos identiicar em que medida mulheres que atuam em espaços de produção e divulgação de conhecimento, como é o caso de instituições de ensino superior, podem reproduzir as ideologias embutidas nas práticas discursivas ou a elas se contraporem. Essa assunção pode estar diretamente ligada à formação acadêmica de nossas entrevistadas, que pode torná-las, pelo menos hipoteticamente, mais atentas às diferentes posições ideológicas e aos modos de como elas se manifestam, e, por conseguinte, mais ou menos, a elas refratárias. Apresentada, na tabela seguinte, a disposição das entrevistadas nos seus diferentes níveis de estudo, podemos constatar que a maior parte delas tem curso de pós-graduação stricto sensu, como mestrado (3) doutorado (6) e pós-doutorado (1). TABELA 1 – Formação Acadêmica Especialização: 2 Mestrado: 3 Doutorado: 6 Pós-doutorado: 1 Fonte: Elaborada pelas autoras. 3.3 A análise macro e microestrutural do corpus Van Dijk (2008) sugere alguns procedimentos metodológicos para os estudos críticos do discurso que aqui tentaremos levar a cabo. Um deles, mais global, é a análise das macroestruturas semânticas, que são os tópicos ou temas dos textos, geralmente intencionais e controlados pelo enunciador, expressos em títulos, resumos, sumários. Outro, mais local, é a análise das microestruturas semânticas, que dizem respeito às Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 473 escolhas lexicais e sintáticas, às relações proposicionais e aos recursos extralinguísticos feitos pelo produtor do texto. Considerando que a ideologia se opera e se consolida por meio de estratégicas de construção simbólica (no caso, pelo discurso), que ajudam a manter estáveis relações de dominação e poder, pretendemos empreender nossa análise com a convicção de que o “que qualiica o analista do discurso é considerar que o discurso não é um simples suporte, mas que desempenha um papel constitutivo nos processos ideológicos” (MAINGUENEAU, 2010, p.75). Para esse empreendimento, tomamos por base um interessante modelo de análise de Thompson (1990) para identiicar como essas estratégias estão presentes nos discursos de forma a legitimar, dissimular, uniicar, fragmentar e reiicar relações de dominação. Desses cinco modos de operação de ideologia, destacamos os que serão utilizados e suas respectivas estratégias na análise de nosso corpus: QUADRO 1 – Modelo de Thompson (1990) Modos Gerais de Operação da Ideologia LEGITIMAÇÃO – Relações de dominação são representadas como legítimas REIFICAÇÃO – Retratação de uma situação transitória como permanente e natural DISSIMULAÇÃO – Relações de dominação são ocultadas, negadas ou obscurecidas Estratégias Típicas de Construção Simbólica FALÁCIAS ARGUMENTATIVAS (Exemplo: apelos à legalidade, a bases jurídicas, cientíicas) NARRATIVIZAÇÃO (exigências de legitimação inseridas em histórias do passado que legitimam o presente) Exemplo: tradições, costumes, pessoas NATURALIZAÇÃO (criação social e histórica tratada como acontecimento natural) DESLOCAMENTO (deslocamento contextual de termos e expressões) EUFEMIZAÇÃO (valoração positiva de instituições, ações ou relações) TROPO (sinédoque, metonímia, metáfora) Fonte: Adaptado pelas autoras. 474 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Essas estratégias se realizam nos discursos por meio de diferentes recursos da linguagem (verbais ou não verbais), tais como a presença de sons e mudanças de entonação; escolhas sintáticas de construção do enunciado (uso de orações na voz passiva ou ativa, por exemplo); escolhas lexicais (seleções de palavras mais ou menos negativas, incluindo tempos e modos verbais); dispositivos retóricos (uso de metáforas e iguras de linguagem), entre tantos outros, que respondem, direta ou indiretamente, pela construção dos discursos (discriminatórios ou não) que circulam nas sociedades. Avaliações, por exemplo, que representam uma categoria identiicacional moldada por estilos, são apreciações ou perspectivas do locutor, mais ou menos explícitas, sobre aspectos do mundo. Os modos de operação da ideologia nessa categoria se dão principalmente pela dissimulação, em que relações de dominação são obscurecidas por eufemismos, ou seja, na valoração positiva de ações e relações nada desejáveis, e pela reiicação, que torna permanente e natural a representação de uma situação transitória, por meio da naturalização. Desse modelo, são aqui destacadas algumas dessas estratégias identiicadas nos discursos dessas mulheres, ao mesmo tempo que serão observados os recursos de linguagem utilizados para a construção desses enunciados que apresentam marcas de legitimação, dissimulação e reiicação, isto é, os modos de operação da ideologia que sustentam relações de poder e dominação por meio de discursos discriminatórios. Todos esses elementos serão acionados à medida que estiverem sendo apresentados os recortes das falas das entrevistadas ou das respostas às questões formuladas no questionário, que foram divididas em duas partes. 3.4 Os instrumentos de pesquisa Foi aplicado um questionário, enviado por e-mail às mulheres desta pesquisa, e entrevistas foram realizadas, a im de compreendermos, com base nas análises de seus discursos, as relações de gênero e o papel das mulheres nos espaços que ocupam nas instituições, ao assumirem posições de liderança. Esse questionário foi elaborado levando-se em conta os modelos que dão sustentação à ACD, que orienta nossa análise dos dados e resultados desta pesquisa. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 475 Dividido em duas partes, o questionário visa avaliar a forma como essas mulheres veem sua posição no mundo do trabalho da academia e como avaliam a forma como são vistas pelos demais integrantes desse mundo foram fundamentais para tecermos nossa análise. 1. Na primeira parte, foram feitas airmações extraídas de discursos comumente repetidos na mídia (eletrônica ou impressa), na literatura (de ficção ou não-ficção), em materiais didáticos, enfim, em várias situações de usos de linguagem que legitimam, reiicam ou dissimulam relações de dominação e discriminação. Para saber o grau de concordância ou discordância relativas a essas airmações, foi utilizada a escala de Likert, que utiliza 5 pontos assim discriminados: concordo plenamente; concordo parcialmente; não concordo nem discordo; discordo parcialmente; discordo totalmente. 2. Na segunda parte, foram feitas perguntas que buscavam entender, entre tantas coisas, como elas se veem nas suas relações de trabalho e interpessoais. 4 Análise dos dados 1ª parte – Como as entrevistadas avaliam o que se diz sobre elas Na escala, encontram-se os percentuais das avaliações feitas pelas entrevistadas a respeito das airmações, que serão comentadas nesta parte da análise. 476 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 TABELA 2 – Percentuais das avaliações feitas pelas entrevistadas Airmações Concordo plenamente a) Não faz diferença ser uma empresa/instituição dirigida por homem ou mulher 5 (41%) b) A mulher é mais emocional e o homem mais racional nas tomadas de decisão. Concordo Não concordo Discordo Discordo parcialmente nem discordo parcialmente totalmente 2 (17%) 3 (25%) 2 (17%) 2 (17%) 4 (33%) 3 (25%) 3 (25%) c) As mulheres são melhores que os homens para efetuar tarefas manuais, repetitivas, que exigem atenção, paciência e coordenação motora. 1 (8%) 1 (8%) 2 (17%) 4 (33%) 4 (33%) d) Mulheres e homens têm as mesmas oportunidades para assumirem cargos de poder, desde que estejam preparados para isso. 3 (25%) 1 (8%) 1 (8%) 4 (33%) 3 (25%) 2 (17%) 10 (83%) e) A liderança é um aspecto naturalmente encontrado no homem. Fonte: Elaborada pelas autoras. a) Não faz diferença ser uma empresa/instituição dirigida por homem ou mulher. Entre as que discordaram totalmente, destacamos o seguinte comentário: O reconhecimento ou o fracasso representam a desqualiicação da mulher. No primeiro, ela é associada ao homem, e, no segundo, ela não deu certo porque é mulher. As mulheres têm mais capacidade de trabalhar as diferenças. O homem é cartesiano, maniqueísta. Para ele Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 477 uma coisa ou é boa ou é ruim. Isso é uma questão social, e não biológica.. (11A)13 Apesar de demonstrar consciência das formas de representação de “sucesso” e “fracasso” atribuídas às mulheres na condução de cargos de poder, na primeira parte de seu depoimento, a entrevistada reproduz o discurso ideologicamente naturalizado ao utilizar os termos de avaliação como “cartesiano” e “maniqueísta” para os homens, na comparação com as mulheres. Observe-se que o comentário seguinte de uma das entrevistadas que concordava parcialmente com a airmação não difere muito, em conteúdo avaliativo: Acredito que as mulheres têm um olhar mais humanizado para o outro e considero que nesse aspecto supera os homens quando administram. (3A) Butler (2016) adverte sobre o risco dessas airmações totalizantes da crítica feminista e ressalta que o “esforço de identiicar o inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer um conjunto diferente de termos” (p. 37). Essa dicotomia homem x mulher tem sido frequente nos discursos sobre relações de poder, o que reforça a necessidade de se pensar de forma conjunta as dominações, de modo a não contribuir para sua reprodução. b) A mulher é mais emocional e o homem mais racional nas tomadas de decisão. Mesmo escolhendo a alternativa “não concordo nem discordo”, que representou a maioria nessa airmação, uma das entrevistadas, ao se expressar que considerava “a mulher mais emocional, e isso pode inluenciar em algumas atitudes no trabalho (12B)”, conirma a hipótese de que relações de dominação, em que se consideram alguns comportamentos como inatos, são representadas como naturais, como um modo de operação de ideologias. É evidente que a hegemonia ideológica ‘total’, tal como denunciada em alguns estudos, é uma visão de mundo redutora e simplista. 13 LEGENDA: 1 a 12 = entrevistadas; A = instituição pública; B = instituição privada. 478 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Fairclough (2001) argumenta que essa dominação hegemônica não seria tão uniforme como se crê, pois funcionaria como uma “construção de alianças e integração” um “equilíbrio instável” [...], “muito mais do que simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento” (FAIRCLOUGH, 2001, p.122). É preciso considerar, entretanto, que, quando a ideologia presente na prática discursiva já faz parte do senso comum, esse equilíbrio não é percebido, e o sujeito considerar como seu aquilo que constrói discursivamente sem perceber que há uma luta, um jogo de poder e que esse embate se dá também por meio das práticas discursivas, isto é, da produção, reprodução e transformação dos discursos estabelecidos em outros discursos, também ideologicamente forjados. c) As mulheres são melhores que os homens para efetuar tarefas manuais, repetitivas, que exigem atenção, paciência e coordenação motora. A grande maioria das mulheres entrevistadas discordou, parcialmente ou totalmente (34% e 33%, respectivamente), dessa airmação, argumentando, em seus comentários, que a força cultural sustenta essa visão, como explicitamente defende a entrevistada 2A e implicitamente reforçam 11A e12B. Essa é uma visão cultural, mas não é verdadeira. (2A) As pessoas não são feitas para isso ou aquilo. (11A) Independe do gênero. Depende da habilidade individual. (12B) Dizem as pesquisas que sim, pela paciência e capacidade de concentração, e se percebe que elas realmente rendem mais nessas tarefas. (3A) O discurso da entrevistada 3A reforça o clichê, conhecido em todas as partes do mundo, referido por Boyer (2016): “Todos os homens seriam líderes natos, com talentos genéticos que os predispõem a se Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 479 tornarem chefes, sem esforço, enquanto as mulheres, doces e submissas, seriam secretárias perfeitas, com o seu senso de organização doméstica.”14 Clichês, assim como as falácias, funcionam com muita eiciência para legitimar relações de dominação (THOMPSON, 1990). Airmações muitas vezes e largamente repetidas, ainda que não sejam verdadeiras, passam a se tornar incontestáveis, sobretudo quando vêm respaldadas, como o faz a entrevistada, por “pesquisas”, sejam elas de qualquer natureza – ou de natureza nenhuma. d) Mulheres e homens têm as mesmas oportunidades para assumirem cargos de poder, desde que estejam preparados para isso. Surpreende o percentual de concordância com essa frase (41%), que varia na escala entre concordar plenamente até nem concordar nem discordar, uma vez que foram reiteradas as airmações, em outras falas, de que as mulheres não têm as mesmas oportunidades que os homens. Essa contradição talvez possa ser explicada por ser a ideologia de gêneros hegemônica, frequentemente, não se apresentando como dominação, mas como consensual e aceitável numa comunidade (LAZAR, 2005). Entretanto, entre as que discordaram (totalmente ou parcialmente), observamos posições bastante céticas em relação a uma suposta “igualdade de oportunidades” para homens e mulheres, como podemos ver nas falas seguintes. Têm as mesmas possibilidades, mas não as mesmas oportunidades. (2A) Não acredito na igualdade total de oportunidades. […] É fácil mudar uma lei, mas difícil e demorado mudar uma cultura machista, de mais de cinco séculos de predominância masculina no Brasil. Mulheres mais preparadas, mais escolarizadas, sendo preteridas por homens menos 14 Les femmes et la haute fonction publique : interview de Bénédicte Boyer, journaliste et auteure du livre éponyme – 25/04/2013. Disponível em: <http://www.fonctionpublique.gouv.fr/fonction-publique-1135>. Acesso em: fev. 2016. Tradução nossa. No original: « tous les hommes seraient des leaders-nés possédant des talents génétiques les prédisposant à devenir chef sans effort, tandis que les femmes, douces et soumises, feraient des secrétaires parfaites avec leur sens de l’organisation domestique ». 480 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 preparados e menos escolarizados, simplesmente por serem homens. (3A) Ela pode ser a melhor, mas a tendência é escolher o homem, pois o discurso é que as mulheres têm mais problemas biológicos que a fazem se afastar mais do trabalho, como TPM, gravidez. (11A – grifos nossos). Observe-se que uma das estratégias típicas de construção simbólica para sustentar relações de dominação como legítimas é apelar para a ciência ou dados estatísticos. A entrevistada 11A ressalta a tendência desse discurso (destacada na sua fala) e suas implicações na desigualdade de oportunidades. e) A liderança é um aspecto naturalmente encontrado no homem. Contrapondo-se ao apelo biológico do sexo, praticamente todas as entrevistadas discordaram, totalmente (83%) ou parcialmente (17%), dessa airmação, revelando a compreensão de que as distinções entre o feminino e o masculino não são fatos naturais, mas, ao contrário, são forjadas pelos indivíduos em sociedade e perpassadas pela cultura, como bem defende Butler (2016). Liderança independe de gênero, mas manifestá-la depende das circunstâncias, do contexto, da necessidade e nossa sociedade ainda apresenta restrições em relação às lideranças femininas devido à cultura machista que ainda resiste às mudanças. (3A) Muitas vezes o homem se apresenta como líder (pelo reconhecimento), mas a mulher é que está gerindo e conduzindo por trás. Há mulheres que são melhores que os homens na liderança. Liderança é carisma, por história de vida. (11A) Existem pessoas com habilidades para liderança. Não precisam ser homens. (12B) O discurso ideológico que airma que algumas características não são próprias dos seres humanos, mas sim de cada um dos sexos distintamente revela a eicácia do poder moderno (e sua hegemonia), e Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 481 este é principalmente cognitivo, baseado numa internalização de regras de gênero e operado rotineiramente nos textos e nas conversações do dia-a-dia (LAZAR, 2005). Essa naturalização, ou banalização, de características, situações, relações, fatos ou eventos cumpre um papel fundamental na manutenção das relações de poder assimétricas, que justiicam restrições, por exemplo, à presença da mulher em todos os setores sociais. 2ª parte – Como as entrevistadas se veem a) Como icam as relações interpessoais na família com os horários de trabalho, as agendas, os compromissos extras, como viagens e reuniões em horários não convencionais? A maioria responde que as relações icam comprometidas. Três delas airmam que compartilham as tarefas com o marido/companheiro, mas apenas uma entrevistada (11A) admite que o termo “ajuda”, tão largamente utilizado na divisão de tarefas domésticas, não se aplica no seu caso, uma vez que ele tem assumido o “ônus” da administração doméstica. Há reivindicação da família quando há excesso. […] mais cobrada. A conquista não é dividida. (1A) Não são 100% tranquilas. Para que seja possível exercer o cargo, tenho que contar com a ajuda de familiares e uma boa secretária do lar. (4B) Não há conlito. Boa estrutura familiar. Companheiro dedicado e sogra colaborativa. O marido não “ajuda” – divide. (11A) É importante observar que o fato de as mulheres trabalharem o mesmo número de horas que os homens e com as mesmas funções não signiica necessariamente que tenham conseguido a sua libertação; isso pode ser uma dupla escravatura, pois, ao mesmo tempo, trabalha em sua proissão e no lar, duplicando sensivelmente a sua jornada de trabalho. 482 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 b) Em que medida você se considera uma mulher especial por estar exercendo essa função? Nenhuma se considera especial, e avaliam sem arrogância suas posições nos cargos como sendo decorrência de suas competências, mas as justiicativas são frágeis e inconsistentes, como a menção à ocupação do mesmo cargo por outras mulheres anteriormente (7B). Ser especial não tem relação com o gênero, mas com o proissional. (1A) Nem um pouco especial. Tanto fazia estar no meu lugar um homem ou uma mulher. Não havia diferença entre um diretor homem ou mulher. (4B) Outro fator para eu não me considerar especial se deve ao fato de que a função que eu atualmente ocupo já foi ocupada por duas outras mulheres anteriormente. (7B) Não se considera especial, mas teve o mérito de ter sido valorizada. (11A) Apenas uma delas admite ter sido “valorizada” (11A). Essa representação de atores sociais feita de forma passivada, ou seja, tornando-os impessoais, reforça o discurso de dissimulação de relações de dominação quando essas são ocultadas, negadas ou obscurecidas, por meio de escolhas sintáticas nas formas de produção discursiva, mesmo sendo repetida pela voz de quem está do lado fraco dessas relações. c) Como você é vista pelos demais integrantes de sua equipe de trabalho e como você avalia essa visão? Apenas três entrevistadas admitem que são consideradas autoritárias, mas essa característica é amenizada com a justiicativa de que têm que se impor no cargo. Por alguns como autoritária, centralizadora, irme. Apesar de dar liberdade de execução à equipe, quando não é feita a tarefa, tem diiculdade de chamar a atenção, e daí faz a tarefa. (2A) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 483 Acho que me veem como alguém um pouco bruta e um pouco rígida. Nunca parei para avaliar essa visão, não sei... (6A) No mundo do trabalho, há a expectativa de que as mulheres sejam chefes menos exigentes, mais “boazinhas”. Isso se dá em decorrência da percepção de que as mulheres são mais emocionais do que os homens. Para muitos a assertividade ainda é vista com estranhamento quando vem da parte de uma gestora, o que a faz ser considerada autoritária. d) Sua promoção ou ocupação de seu cargo já foram questionadas de alguma forma? Explique. A maioria diz não ter conhecimento de ter sido feito algum tipo de questionamento a suas posições, pelo menos de forma explícita. Apenas três relataram terem sido questionadas, direta ou indiretamente, por questões de gênero. Entre os homens, que se queixam da diiculdade de serem mandados por mulher. (2A) […] explicitamente, na instituição de origem, por ser mulher, nova na instituição e por ser uma universidade masculina e conservadora. […] Isso porque o cargo que ocupo é predominantemente feminino, e a educação é um lugar feminino. (11A) A internalização da ideia de que a educação é um “lugar feminino” perpassa o discurso de praticamente todos que atuam nessa área, seja para criticar (raramente), seja para referendar (frequentemente). Nesse caso, faz-se não só menção ao gênero, do ponto de vista biológico, como também, e principalmente, no aspecto cultural demarcam-se essas diferenças entre homens e mulheres, o que, de certa forma, justiica as discriminações. Boyer (2016) ressalta esse aspecto nos relatos coletados de mulheres em posição de poder (com funções públicas), quando uma das entrevistadas (à época, Inspetora Geral da Educação Nacional e Reitora da Academia de Rouen em 2012, na França) declara: “A escola 484 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 é minha família, minha casa, onde eu me sinto como um peixe dentro d’água” (p. 83, tradução nossa.).15 e) A mudança estrutural representada pela entrada das mulheres de diferentes classes sociais nos diversos setores do mundo do trabalho tem sido suiciente para alterar a função da mulher na sua condição social? Justiique sua resposta. Entendemos que essa questão ica mais precisamente ilustrada por meio da Tabela 2, em que 67% (com e sem restrição) airmaram que a inserção das mulheres no mundo do trabalho trouxe mudanças para suas condições sociais. TABELA 3 – Entrada das mulheres no trabalho e mudanças sociais Mudou 5 (42%) Mudou em parte 3 (25%) Não mudou 4 (33%) Fonte: Elaborada pelas autoras. Mudou. Ela é mais respeitada, quando tem uma formação maior. (1A) Mudou. As mulheres estão mais livres, mais soltas, têm mais facilidade de concorrer no mercado, “ir à luta”, não só para seu crescimento proissional, mas também pessoal. (4B) Até que não mudemos a cultura arraigada em certos espíritos subservientes durante séculos, não haverá uma mudança efetiva, embora se percebam alguns progressos em relação a conquistas nos espaços de trabalho, ainda que os homens continuem a ganhar melhores salários, mesmo que tenham, no geral, menor escolaridade do que as mulheres. [As mulheres devem] assumir diferentes responsabilidades sem descuidar da família e, nem sempre, de si mesmas. (3A) 15 No original: « L’école, c’est ma famille, ma maison, j’y suis comme um poisson dans l’eau. » 485 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 Acredito que houve alteração na condição social da mulher, sim, mas ainda não há igualdade de tratamento […]. Por trabalhar no setor educacional, essas diferenças não aparecem tanto nos cargos exercidos por proissionais de ensino superior. (7B) Houve um avanço, mas longe do ideal. Há o uso do termo “ajuda”. A mulher tem muitas desvantagens por conta da jornada. (10A) Não. No século XXI a mulher somou as funções, mas não dividiu. A mulher tem que se mostrar muito mais competente para ter visibilidade. Se ela der certo é porque tem características masculinas. (11A) Não. E acho que vai demorar ainda para mudar. […] as mulheres ainda são vistas como executoras de tarefas domésticas e familiares. (12B) O fato de apenas 33% das entrevistadas terem admitido não ter havido mudanças efetivas para a vida das mulheres corrobora com o que tem sido largamente difundido em todos os meios quando se trata da divisão de tarefas, por exemplo. A entrevistada 3A reforça o clichê de que mulheres são capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo, como se isso fosse uma questão biológica, e não de divisão de tarefas impostas culturalmente pelas relações assimétricas de gênero. A advertência que faz sobre não “descuidar da família” vai na direção oposta à critica feita por Boyer (2013, p. 3) a essa visão: Elas trabalham 365 dias por ano, ou quase isso, sem reclamarem do peso do seu trabalho ou das horas gastas no escritório, em detrimento das saídas à noite ou nos ins de semana. Quando se busca saber se certos aspectos da função valem a pena, a resposta dessas mulheres é, invariavelmente: “ao se escolher uma posição de grande 486 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 responsabilidade, deve-se assumi-la até o im, incluindo os seus aspectos mais difíceis.” (Tradução livre)16 Essas implicações são condicionantes para determinar relações de poder vinculadas aos estereótipos de gênero, o que acaba reforçando as desigualdades entre os sexos no mercado de trabalho e contribuindo para manter a discriminação de gêneros nesse conjunto das atividades humanas. Considerações inais Nosso estudo foi principalmente movido pela necessidade de se analisar como as mulheres, atuando em culturas androcêntricas, contribuem para perpetuar atitudes sexistas e práticas contra elas mesmas e como alguns estudos têm contribuído para ampliar o conhecimento dessas relações, a exemplo dos desenvolvidos por Lazar (2005), Butler (2016), Scott (1995), entre outros, que embasam a teoria de gêneros aqui tratada. Na nossa pesquisa, icou claro que os discursos que constituem, e são constituídos, as/pelas relações sociais e as diferenças entre os sexos se manifestam por meio de construções simbólicas que determinam e mantêm o status quo, atribuindo papéis a um ou outro gênero. Em outras palavras, envolve o conjunto de expectativas sociais e padrões de comportamento distintos para homens e mulheres, que começam a se formar na menor unidade social – a família –, e continuam sendo reproduzidos, reairmados e/ou subvertidos em outros meios, como a mídia e a publicidade (KNOLL, 2012) e nas relações de trabalho. É importante também ressaltar que, ao mesmo tempo que muitas mulheres reforçam a assimetria de gêneros existente entre as posições de poder na sociedade, ao repetirem/conirmarem discursos discriminatórios, 16 Les femmes et la haute fonction publique: interview de Bénédicte Boyer, journaliste et auteure du livre éponyme – 25/04/2013. Disponível em: <http://www.fonctionpublique.gouv.fr/fonction-publique-1135>. Acesso em: fev. 2016. No original: « Elles travaillent 365 jours par an, ou presque, sans se plaindre de la lourdeur de leur tâche ni des heures passées au bureau, au détriment des soirées ou des week-ends. Quand on cherche à savoir si certains aspects de la fonction leur coûtent, la réponse de ces femmes est invariablement: quand on choisit un poste à forte responsabilité, il faut l’assumer jusqu’au bout, y compris dans ses aspects les plus durs ». 487 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 455-489, 2018 outras, como vimos neste estudo, vão tomando consciência de seu espaço na sociedade e agem criticamente em defesa de direitos iguais entre homens e mulheres. O nível de formação dessas mulheres é um dos fatores da equação que contribui para essa percepção. Tendo em vista o que já foi exposto sobre a pesquisa, ica evidente a importância do enfoque que é dado para os discursos produzidos socialmente e a carga ideológica, hegemônica, que instaura as relações de poder presentes na sociedade e que são reveladas por meio da Análise Crítica do Discurso. É, portanto, nos diferentes discursos que se sustentam ideologias em conlito, em que se pode expressar poder ou mesmo desaio de poder. Se as hegemonias são produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas no discurso, o próprio discurso apresenta-se como uma esfera da hegemonia, que depende, em parte, de sua capacidade de gerar práticas discursivas e ordens de discurso que a sustentem. Em uma concepção dialética do discurso, a contra-hegemonia tem o papel de revelar e desmistiicar essas práticas discursivas, e, dessa forma, paulatinamente, fazer essas relações de poder assimétricas – como as que aqui foram identiicadas sobre as mulheres exercendo cargos de poder – deixarem de se manifestar. Esse é o papel da Análise Crítica de discursos feministas. Referências BOYER, Bénédicte. Les femmes et la haute fonction publique. Paris: Lextenso Éditions, 2013. BOYER, Bénédicte. (Entrevista). Disponível em: <http://www.fonctionpublique.gouv.fr/fonction-publique-1135>. Acesso em: fev. 2016. 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Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 Presidente ou presidenta? Com a palavra os senadores e as senadoras da República Federativa do Brasil Presidente or presidenta? With the word the senators of the Federative Republic of Brazil1 Cássio Florêncio Rubio Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, Ceará /Brasil cassiorubio@unilab.edu.br Fábio Fernandes Torres Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, Ceará /Brasil fabioftorres@unilab.edu.br Resumo: Este artigo tem o objetivo de apresentar estudo sociolinguístico sobre a alternância das formas lexicais presidente e presidenta no contexto político especíico do interrogatório da presidente/presidenta Dilma Rousseff no processo de impeachment. O corpus é composto de amostras de fala de 48 senadores e senadoras brasileiros que interpelaram diretamente a acusada. Como referencial teórico-metodológico, consideramos os pressupostos da Sociolinguística Quantitativa Laboviana (LABOV, 1972, 1990, 1994, 2008; WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006). Foram considerados, na análise da alternância lexical, os fatores extralinguísticos: sexo, escolaridade, faixa etária, partido político, voto e posicionamento em tribuna a respeito do processo de impeachment; e os fatores linguísticos: contexto anterior e função da forma lexical na sentença. Os resultados revelaram que a escolha de uma forma em 1 Na tradução para o inglês, opta-se por manter os termos presidente e presidenta em português, tendo em vista a ausência de morfema lexional de gênero nessa língua. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.1.491-524 492 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 detrimento de outra, no contexto de uso analisado, é inluenciada pelos seguintes fatores extralinguísticos: partido político, voto no processo, posicionamento em tribuna e sexo. Palavras-chave: presidente; presidenta; impeachment; variação lexical; sociolinguística quantitativa. Abstract: This paper aims to present a sociolinguistic study about the alternation of the lexical forms presidente and presidenta in the speciic political context of the interrogation of the president Dilma Rousseff in her impeachment process. The corpus is composed of 48 Brazilian senators pronunciations, who directly questioned the accused. As theoretical-methodological support, we consider the assumptions of the Labovian Quantitative Sociolinguistics (LABOV, 1972, 1990, 1994, 2008, WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006). In the lexical alternation analysis, we considered the following extralinguistic factors: gender, educational level, age, political party, vote and positioning in the tribune on the impeachment process; and the linguistic factors: previous context and function of the lexical form in the sentence. The results pointed out that the choice of one form over another, in the context of the analyzed use, is inluenced by the following extralinguistic factors: political party, vote in the process, positioning in tribune and sex. Keywords: presidente; presidenta; impeachment; lexical variation; quantitative sociolinguistics. Recebido em 29 de novembro de 2016. Aceito em 10 de abril de 2017. 1 Introdução A discussão sobre o emprego das formas lexicais presidente/ presidenta ganhou maior notoriedade a partir do ano de 2010, quando, pela primeira vez na história do Brasil, uma mulher candidatou-se ao cargo máximo do Palácio do Planalto. Entretanto, a discussão tornou-se ainda mais intensa ao inal do processo eleitoral, com a vitória de Dilma Rousseff para a Presidência da República e com o posicionamento explícito da recém-eleita em favor do uso da forma lexical presidenta para sua referência, em detrimento da forma presidente, empregada até aquele momento para todos os homens que haviam ocupado o mesmo cargo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 493 Passada a eleição da presidente/presidenta2 da república Dilma Rousseff, não houve, até o momento, consenso sobre o emprego de uma ou outra forma, ou, ainda, sobre a possível aceitação das duas formas como mais um processo de variação do português brasileiro. Longe de caminhar para seu inal, a discussão ressurge a cada novo posicionamento de iguras públicas na mídia, independentemente da forma empregada. O presente artigo não tem a pretensão de encerrar a controversa discussão, mas, sim, buscar, em primeiro lugar, a comprovação do processo de variação entre as duas formas (presidente/presidenta) na fala dos senadores e senadoras brasileiros e, em segundo lugar, apresentar os fatores que inluenciam esse processo, destacando a sua natureza linguística ou extralinguística, no contexto especíico do cenário político brasileiro. Antecede a discussão dos resultados da pesquisa, breve revisão bibliográica da temática em gramática normativa e prescritiva, manual de morfologia, dicionário, vocabulário ortográico da língua portuguesa e textos recentes que circulam na mídia eletrônica. Optamos por não fazer uma separação formal do tópico entre as diferentes abordagens, haja vista serem maiores as convergências do que as divergências entre elas no material consultado, de modo que a organização, portanto, está pautada na revisão da temática, partindo-se de conteúdo mais amplo para mais especíico. 2 O gênero em língua portuguesa Na língua portuguesa, os substantivos estão divididos em dois gêneros: o masculino e o feminino. A deinição, segundo Bechara (2001), dá-se pela possibilidade de anteposição do artigo o, no caso do masculino, como em o sol, o homem, o pente, o ilho; e do artigo a, no caso do feminino, como em a lua, a ponte, a ilha, a mulher. Para Câmara Jr. (1984), a natureza semântica dos gêneros é pouco compreendida e, normalmente, associada ao sexo dos seres. A realidade, porém, é que o gênero distribui-se em classes móricas, nos nomes, como as conjugações se distribuem nos verbos, com a diferença de que, nesses últimos, não há implicação semântica. Perini (2010) airma que a designação de gênero é característica de todos os nominais 2 Opta-se, ao longo de todo o texto, nas referências relacionadas à presidente/presidenta Dilma Rousseff, pela menção das duas formas. 494 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 que apresentam potencial referencial, ou seja, o gênero, sem qualquer exceção, é inerente ao nominal referencial. Segundo Souza-e-Silva e Koch (2011), o processo de lexão de gênero realiza-se com o acréscimo do morfema lexional –a ao inal da forma masculina. Para as formas terminadas em vogal temática, como parente, há a supressão dessa vogal, por meio de uma mudança morfofonêmica (e+a = parenta). As morfólogas airmam, entretanto, que nem todas as palavras recebem a lexão e que a vogal inal não indica o gênero, mas, sim, a classe gramatical, como em criança, casa, cônjuge etc. Nesses casos, a marcação de gênero se dá pela anteposição do artigo (a casa, a criança, o cônjuge). A determinação do gênero nos substantivos, acrescenta Câmara Jr. (1970), não se apresenta do mesmo modo que no adjetivo ou no pronome, por simples processo lexional, embora alguns substantivos pareçam manifestar a oposição entre os gêneros pela lexão, como em garoto/garota, prefeito/prefeita. Notadamente, o acréscimo de –a (ou a permuta dele com –o), no substantivo, atualiza-o semanticamente, como em jarro/jarra (tipo especial de jarro), barco/barca (barco grande).3 Bechara (2001, p. 132) menciona ainda que, mesmo nos pares em que a atualização semântica não é tão notável, “a oposição masculino – feminino faz alusão a outros aspectos da realidade, diferentes da diversidade de sexo”, como em lobo/loba (a fêmea do animal chamado lobo). Dessa forma, o masculino é a forma semanticamente não marcada,4 geral, e o feminino expressa uma especialização de determinada natureza. 3 Os exemplos são de Câmara Jr (1984, p.79). Givón (1990, p. 5-6) defende que o princípio da marcação manifesta-se nas línguas naturais do seguinte modo: a categoria marcada é estruturalmente mais complexa, e a não marcada é mais simples. Esse princípio está associado, também, à frequência de uso das categorias nos diversos contextos de comunicação, de modo que as formas mais frequentes são categorias não marcadas, e as formas menos frequentes são marcadas. O princípio da marcação é desdobrado, então, em três subprincípios: a) o subprincípio da complexidade estrutural – a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior) do que a não marcada; (b) o subprincípio da distribuição de frequência – a categoria marcada tende a ser menos frequente do que a não marcada e c) o subprincípio da complexidade cognitiva – a categoria marcada tende a ser cognitivamente mais complexa no sentido de demandar maior atenção, maior esforço mental e maior tempo para seu processamento do que a categoria não marcada. Aplicando-se o princípio givoniano da marcação, o feminino é a categoria marcada em língua portuguesa, e o masculino é a não marcada. 4 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 495 Essas considerações justiicam o fato de o gênero, em alguns substantivos, manifestar-se pela adição de um suixo nominal, como em galo/galinha, ator/atriz; ou pelo uso de palavras diferentes, como em homem/mulher, boi/vaca, cão/cadela. Não obstante, a distinção entre os gêneros em português, assim como em outras línguas naturais, não segue tão somente questões lógicas ou biológicas, mas é fruto da norma e do próprio uso, que ica evidente quando duas ou mais línguas diferentes são comparadas, ou quando se opõem estágios diferentes da mesma língua (CÂMARA JR, 1970, p. 133-134). São exemplos os vocábulos sol e lua nas línguas portuguesa e alemã – sol (masculino) = die Sonne (feminino), lua (feminino) = der Mond (masculino) (BECHARA, 2001, p. 133). Isso também se veriica entre os seres animados, com os chamados substantivos epicenos, como a cobra, o tatu, o jacaré, a baleia, o tubarão; e com os substantivos comuns de dois gêneros, que são diferenciados pelo artigo ou por outros adjuntos que os acompanham, como o/a estudante, o/a depoente. O gênero gramatical, complementa Perini (2010, p. 281), não está relacionado diretamente com o sexo, sendo possível fazer referência a um indivíduo do sexo masculino por meio de vocábulos do gênero gramatical feminino, como em a pessoa, a vítima, a criança; ou a um indivíduo do sexo feminino com vocábulos do gênero gramatical masculino, como em o cônjuge, o personagem. Destaca, ainda, o gramático descritivo, ser “inegável que existe uma tendência a correlacionar gênero e sexo nos nominais que designam pessoas e certos animais”, ainda que esse fato não apresente relevância na gramática, que pode apresentar nominais de gênero feminino, como pessoa, que designa seres do sexo masculino e feminino, e xícara, que não designa macho ou fêmea de nenhuma espécie. Souza-e-Silva e Koch (2011) propõem a divisão dos gêneros com base nas formas feminina e masculina do artigo, considerando três grupos de substantivos: os de dois gêneros, com lexão redundante (o mestre/a mestra, o pintor/a pintora); os de dois gêneros sem lexão aparente (o/a camarada, o/a selvagem, o/a mártir); os de gênero único (a pessoa, a testemunha, o algoz, a mosca, a mesa, o disco, o livro, o homem, a mulher, o príncipe, a princesa, o sacerdote, a sacerdotisa). Especiicamente em relação às proissões femininas, Bechara (2001, p. 134) airma que a presença mais acentuada de mulheres em atividades proissionais antes ocupadas exclusivamente ou quase exclusivamente por homens “tem exigido que as línguas – não só o 496 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 português – adaptem o seu sistema gramatical a essas novas realidades”. Exemplos como mestra, professora, médica, advogada, psicóloga, ilósofa e juíza ilustrariam essa mudança. Além dessas formas, mais amplamente aceitas, o gramático ainda destaca as distinções entre algumas outras formas, como embaixadora (senhora que dirige a embaixada) e embaixatriz (esposa do embaixador); senadora (representante do sexo feminino no parlamento) e senatriz (esposa do senador). Para Souza-e-Silva e Koch (2011, p. 69), como em qualquer outra descrição linguística, na descrição do gênero, é importante haver a delimitação do plano gramatical e do plano lexical, já que a gramática trata apenas dos fatos gerais da língua, cabendo ao léxico tratar dos fatos especiais. Dessa forma, somente com o auxílio de um dicionário é que se poderia completar as regras lexicais gerais, por meio da consideração de cada uma das “propriedades idiossincráticas” de cada um dos itens lexicais. Conforme assinalam as autoras: “Caberia, então, a um dicionário do Português registrar as ocorrências de gênero não explicáveis pelos padrões gerais da gramática”. Considerado o panorama sobre a lexão de gênero do substantivo em língua portuguesa, passemos a tratar, na sequência, especiicamente, das formas lexicais alternantes presidente/presidenta. 3 Presidente x presidenta Nos dicionários, o substantivo feminino presidenta tem seu primeiro registro datado do ano de 1925, na segunda edição de Caldas Aulete e na quarta edição de Cândido de Figueiredo, conforme registra pesquisa lexicográica de Ferreira e Silva (2011), divulgada em meio eletrônico. A origem do termo, airmam as lexicógrafas, está relacionada ao vocábulo presidente, advindo do latim praesidens, entis, particípio presente do verbo latino praesidere (estar sentado diante; vigiar, proteger, governar, presidir), por derivação. A substituição da vogal temática (-e) pela desinência do feminino (-a) se deu por analogia a inúmeras outras formas como chefa, governanta e infanta (esta última registrada na língua desde o século XVIII). São muitos os registros de palavras que, independentemente da forma mais antiga, com a vogal temática –e, comum de dois gêneros, ganharam, com a substituição de –e pelo morfema –a, uma nova forma especíica para o feminino, como mestra, hóspeda, monja e giganta (todas registradas em FERREIRA, 2009, p. 981, 1059, 1318, 1352). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 497 Além do registro das formas femininas citadas, Ferreira (2009, p. 1626) apresenta também a forma lexical presidenta, juntamente com a forma mais antiga, presidente, como segue: Presidenta. [Fem. de presidente.] S. f. 1. Mulher que preside. 2. Mulher de um presidente. Presidente. [Do lat. Presidente.] S. 2 g. 1. Pessoa que preside. 2. Pessoa que dirige os trabalhos duma assembleia ou corporação deliberativa. S. m. 3. O presidente da República. Adj. 2. g. 4. Bras. Ant. Governador de Estado. Presidente da República. Chefe de Estado republicano. Cabe destaque o registro, nas duas acepções da forma presidenta, da palavra mulher, restringindo seu uso ao sexo feminino, diferentemente do que se registra na forma presidente, que apresenta, nas duas primeiras deinições, a palavra pessoa, que amplia seu emprego para ambos os sexos. A terceira acepção da forma presidente, contudo, especíica para o cargo de presidência da república, apresenta-se delimitada ao sexo masculino pelo emprego do artigo o. O registro de ambas as formas não se restringe aos dicionários. Em publicação do Vocabulário ortográico da língua portuguesa (VOLP) de 2008, organizado pela Academia Brasileira de Letras (ABL), as formas presidenta e presidente encontram-se presentes: “presidenta s. f.; presidente adj. s.2.g. s.m.” (p. 674).5 Independentemente dos comprovados registros das duas formas nos dicionários e vocabulários ortográicos e também da conirmação da forma presidenta como “correta” ou “aceita” por parte de inúmeros gramáticos normativos e lexicógrafos, a discussão permanece presente no âmbito nacional, ganhando, ao longo desses anos, novos contornos, direcionados predominantemente por fatores extralinguísticos (questões notadamente relacionadas à ideologia e à política). Ainda que não seja objetivo central deste trabalho, de cunho predominantemente sociolinguístico, propor ampla discussão de caráter político ou ideológico, procederemos à brevíssima exposição de posicionamentos relacionados ao emprego das formas variantes presidente e presidenta por iguras públicas em veículos midiáticos. Vocabulário ortográico da língua portuguesa, Academia Brasileira de Letras, 5. ed. – São Paulo: Global, 2009 (inalizada em 2008). 5 498 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 Em texto publicado originalmente pelo Diário da Manhã, no inal de 2010,6 o ex-presidente da República e membro da ABL, José Sarney, defende que o dilema envolve “semântica e política”, alertando que, do ponto de vista normativo, ambas as formas seriam “corretas”. No mesmo texto, Sarney apresenta a opção de alguns veículos da imprensa, como a Folha de S. Paulo, pela forma presidente, independentemente da escolha da recém-eleita. Em seu breve texto, Sarney já anunciava quais seriam os caminhos engendrados pela discussão, que, a princípio, parecia pertencer à lexicograia e a ramos de estudo da linguagem ligados à linguística histórica e ao emprego normativo da língua. Ressaltou o autor do texto e ex-presidente da República que as “escolhas” dos meios de comunicação, dos políticos ligados ou contrários ao governo e da própria presidente/ presidenta, certamente, levariam sempre em conta “o aspecto político”. Ao longo dos mais de seis anos que se passaram desde a primeira candidatura de Dilma Rousseff à Presidência do Brasil, conforme previa Sarney, muitos foram os textos que trataram da questão, com diferentes vieses, ora mais ligados ao emprego da norma padrão, ora com notável tendência à defesa de determinada ideologia. O fato inconteste, independentemente das intenções dos produtores dos textos, é que esses se confrontaram com ferrenhos posicionamentos, sempre permeados por conlitos político-ideológicos. Mais recentemente, em agosto de 2016, a polêmica ganhou novos contornos, por ocasião da posse de uma mulher na presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). Na ocasião, a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha recusara a forma presidenta, quando indagada pelo também Ministro do STF, Ricardo Lewandowski, sobre sua preferência entre as formas presidente/presidenta, airmando: “Eu fui estudante e eu sou amante da língua portuguesa. Acho que o cargo é de presidente, não é não?”. O gramático normativo Pasquale Cipro Neto, em artigo publicado dias depois no periódico diário Folha de S. Paulo, com o título “Data venia, ministra Carmen Lúcia, o cargo é de ‘presidente’ ou de ‘presidenta’”, defendeu o emprego da forma presidenta como 6 Disponível em: <http://www.academia.org.br/artigos/presidenta-ou-presidente>. Acesso em: 14 fev. 2017. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 499 “correto”, em resposta à fala da ministra e presidente/presidenta do STF, Carmem Lúcia.7 Os posicionamentos da ministra e do gramático, políticos ou não, deram vitalidade à antiga discussão e trouxeram à tona, novamente, a polarização entre partidários favoráveis e contrários à presidente/ presidenta da república (e não à do STF, até então, personagem central dos fatos). Muitas foram as manifestações, nos mais variados meios de comunicação; todas, incondicionalmente, comprovando a polaridade suscitada pela questão. Considerando a contextualização sócio-histórica do fenômeno variável, a proposta deste estudo é mostrar, quantitativamente, o quanto o emprego de uma ou de outra forma, por parte dos senadores e das senadoras, sofre inluência de fatores de ordem linguística e extralinguística. A nossa hipótese é de que a “opção” pelo emprego das formas em variação sofra maior inluência de fatores extralinguísticos, em especial os ligados ao posicionamento político-ideológico de cada parlamentar, cuja descrição e importância serão apresentadas na seção sobre metodologia. 4 A Sociolinguística Variacionista: alguns pressupostos A Sociolinguística Variacionista, também conhecida como Teoria da Variação e Mudança ou Sociolinguística Laboviana, surge a partir do trabalho de Weinreich, Labov e Herzog (1968) e das contribuições dos estudos de Labov, como uma ruptura aos modelos científicos de estudos da linguagem praticados até então – o estruturalismo e o formalismo. Os autores propuseram uma teoria da mudança linguística que pudesse descrever a língua e seus fatores determinantes, sejam de ordem linguística ou social, repelindo a noção de sistema homogêneo, para conceber a língua como um sistema dinâmico, heterogêneo, sensível a mudanças provocadas por fatores de ordem linguística e social, que deve ser estudado com base em dados reais de uma comunidade de fala. Segundo Camacho (2009, p.147), a ruptura mais saliente promovida pela Sociolinguística é, sem dúvidas, a nova abordagem dos 7 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/pasquale/2016/08/1804215data-venia-ministra-carmen-lucia-o-cargo-e-de-presidente-ou-presidenta.shtml>. Publicado em 18 ago. 2016. Acesso em 22 set. 2016. 500 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 fenômenos variáveis, tratados nos modelos anteriores como sujeitos à variação livre – concepção de que a alternância entre as formas disponíveis na língua estaria submetida ao livre arbítrio do falante ou à seleção facultativa – conceito apropriado ao modelo de língua homogênea, mas que não se sustenta diante da observação empírica de uma língua em uso. A noção de variação livre dá lugar ao conceito de regra variável, no modelo proposto por Labov (1978, p. 2), isto é, dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas, com o mesmo valor de verdade, constituem-se como variantes de uma mesma variável (regra variável). Os trabalhos pioneiros de Labov (1972) tinham como foco fenômenos variáveis de natureza fonológica, cujo objetivo era provar que a escolha de uma variante em detrimento de outra era motivada por fatores sociais ou estilísticos. Os resultados encontrados encorajaram pesquisas em outros níveis linguísticos, como o trabalho de Weiner e Labov (1977) sobre a alternância entre as estruturas ativa e passiva sem agente do inglês, isto é, os autores trataram essas construções como variantes linguísticas e estenderam a regra variável ao nível sintático. Esse fato desencadeou uma interessante discussão entre Lavandera (1978) e Labov (1978). Lavandera (1978) questionou se seria apropriado estender a noção de regra variável a outros níveis de análise, como o sintático, por exemplo, visto que as construções sintáticas têm traços de signiicado próprios. Em resposta a Lavandera, Labov (1978, p. 2) argumenta que a noção de signiicado referencial, também chamado de signiicado representacional ou estado de coisas, sustenta-se sob a alegação de que “dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas têm o mesmo valor de verdade” (tradução nossa).8 Em vez de alargar a noção de signiicado referencial, Labov (1978, p. 2-3) delimita-o ainda mais ao airmar que só percebemos que alguém fala como um homem do campo porque existem formas rurais e formas urbanas com o mesmo signiicado; só sabemos que alguém nos tratou de modo polido porque sabemos que esse alguém escolheu uma das várias maneiras de dizer a mesma coisa. No caso desta pesquisa, que lida com a variação lexical das formas presidente e presidenta, poder-se-ia questionar, segundo a lógica de Lavandera (1978), se seria adequado o tratamento variacionista para 8 [I would like to say that] two utterances that refer to the same state of affairs have the same truth-value. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 501 explicar a escolha entre uma forma e outra. Novamente, apoiamo-nos no próprio Labov (1978, p.5), ao airmar que o primeiro passo é reconhecer que o procedimento técnico básico para uma análise variacionista começa com o isolamento e a deinição dos termos que variam, isto é, os termos devem se referir ao mesmo estado de coisas e, por consequência, devem possibilitar a alternância de um pelo outro sem que se altere o seu valor de verdade. Nosso foco é a variação lexical entre as formas presidente e presidenta, que têm como referente biossocial a presidente/presidenta Dilma Rousseff, nos discursos proferidos pelos senadores e senadoras, durante seu julgamento de impeachment, isto é, trata-se do mesmo referente, do mesmo signiicado referencial, do mesmo estado de coisa. O uso da forma presidente, que tenha como referente biossocial um sujeito do sexo masculino, não admite variação, por razões inerentes ao próprio sistema linguístico da língua portuguesa. As formas presidente e presidenta são formas que se alternam e que exercem a mesma função sintática no contexto de investigação. Como discutido por Paiva; Scherre (1999) e Freitag (2009), entre outros, longe de se constituir empecilho, a consideração de outros fenômenos, que não os de nível fonológico, promove um alargamento do escopo da sociolinguística e a proposição de novas interfaces com outras teorias linguísticas, que proporcionam visão mais ampla dos fenômenos linguísticos, como propomos neste trabalho. Segundo Labov (2008, p. 16), a grande revelação a que se propõe a sociolinguística é conceber a mudança linguística como racional e, desse modo, possibilitar a descrição e a diferenciação das formas de determinada língua em uma comunidade. O domínio de estruturas heterogêneas, longe de ser considerado multidialetalismo, é “parte da competência linguística monolíngue”. As possíveis explicações sobre a variação e mudança linguística envolveriam três questões distintas: a origem das variações, a difusão e a propagação e a regularidade da mudança linguística. Para isso, é importante considerar o contexto social (no caso desta pesquisa, o político) em que o fenômeno variável ocorre. Cabe observar, também, o signiicado ou valor social de cada uma das formas variantes, já que é comum haver a observação da polaridade entre norma e uso na investigação de fenômenos variáveis das línguas naturais. Essas ponderações vão ao encontro do que propõe Eckert (1996), ao defender que os estudos de variação se centram nas comunidades de prática, locus 502 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 compartilhado pelos indivíduos em torno de uma meta comum, o que relaciona crenças, valores e objetivos especíicos do grupo. Há, com base nessa perspectiva, uma relação íntima entre a língua e a identidade do falante, ou seja, os estilos de cada indivíduo e as marcas de identidade social ganham destaque no estudo da variação linguística. 5 Metodologia O corpus utilizado para a análise se compõe das gravações das falas de 48 senadores da república durante a sessão de interrogatório da presidente/presidenta Dilma Rousseff, realizada no dia 29 de agosto de 2016.9,10 Foram considerados aproximadamente 250 minutos, referentes ao tempo de pronunciamento de cada um dos senadores que izeram uso da palavra na sessão. A fala de resposta da presidente/presidenta não foi considerada na pesquisa. As intervenções do presidente da sessão, ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Ricardo Lewandowski,11 foram computadas, entretanto os resultados serão apresentados separadamente, em razão da não aplicabilidade de alguns dos fatores extralinguísticos considerados na pesquisa, como voto, partido político e posição no processo. Foram analisadas todas as menções orais das formas alternantes presidente (conforme ocorrências (1), (2)) e presidenta (conforme ocorrências (3) e (4)), por parte dos senadores e das senadoras, que apresentavam como referente a interrogada na sessão, presidente/ presidenta Dilma Rousseff, constituindo-se estas as variantes da variável dependente.12 Consideramos a forma presidente uma variante As gravações foram baixadas do site oicial da TV Senado, http://www.senado.leg. br/noticias/tv/, com Acesso em 1 de set. 2016. 10 As transcrições de toda a sessão do processo de impeachment se encontram disponíveis no site do Senado, no link https://www25.senado.leg.br/web/atividade/ notas-taquigraicas/-/notas/s/3885. Acesso em 10 de out. 2016. 11 Para informação, o ministro Ricardo Lewandowski, ao se referir à presidente/ presidenta Dilma Rousseff, empregou 81 vezes (79,4%) a forma presidente e 21 vezes (20,6%) a forma presidenta. 12 As ocorrências da forma presidente para outros referentes, como o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, o senador Renan Calheiros e o presidente interino Michel Temer não foram consideradas na rodada geral de dados. Na apresentação da ocorrência, aparece o nome do senador seguido do partido político e do estado que representa. 9 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 503 “conservadora”, já que tem origem mais antiga na língua, e presidenta, uma forma “inovadora” por ser de uso mais recente. (1) ...o seu compromisso com a solução de tudo o que tive a chance de lhe apresentar foram deinitivos para que eu tivesse a certeza absoluta que a senhora é a presidente que mais atenção deu ao agronegócio brasileiro nas últimas três décadas... (Senadora Kátia Abreu, PMDB, TO) (2) e pra formar juízo é preciso compreender os fatos e conhecer os argumentos de quem é acusado da sua prática... vossa excelência... senhora presidente tem formação de economista... eu sou administrador de empresas e contador... (Senador Paulo Bauer, PSDB, SP) (3) senhor presidente Lewandowski... senhora presidenta Dilma Roussef... eu queria fazer uma saudação aqui ao ex-presidente Lula que esteve conosco há pouco tempo... pelo legado que deixou a esse país... (Senadora Gleisi Hoffmann, PT, PR) (4) presidente Lewandowski... presidenta eleita... do Brasil... Dilma Vana Rousseff... antes de ontem eu estava num comício no turvo... centro do Paraná... região pobre de agricultores que vivem em extrema diiculdade... (Senador Roberto Requião, PMDB, PR) Os grupos de fatores considerados são os seguintes: escolaridade, faixa etária, sexo, partido político, voto e posicionamento em tribuna a respeito do processo de afastamento (extralinguísticos); contexto anterior e função do SN que contém a forma lexical na sentença (linguísticos). A seguir, encontram-se a apresentação e a justiicativa de investigação de cada um dos grupos: 5.1 Fatores extralinguísticos 5.1.1 Escolaridade: ensino médio e ensino superior Concernente ao grupo de fatores escolaridade, a estratiicação possível, proposta com base no peril social dos 48 parlamentares que tiveram sua fala analisada, apresenta as escolaridades ensino médio completo e ensino superior. Não há, contudo, equivalência entre os dois estratos, haja vista 41 terem nível de escolarização superior e 7, nível de escolarização médio ou equivalente. Foram considerados (as) também no 504 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 grupo ensino superior os(as) senadores(as) que tinham, além do ensino superior, pós-graduação. A hipótese clássica para a atuação do grupo de fatores escolaridade em estudos sociolinguísticos relaciona-se, normalmente, à maior frequência de emprego da forma padrão por parte dos mais escolarizados (v., entre outros, VOTRE, 2015). Entretanto, para o fenômeno considerado, as duas formas são registradas como padrão em dicionários e no Vocabulário Ortográico Oicial da Língua Portuguesa. 5.1.2 Faixa etária: 40 a 50 anos, 50 a 60 anos, 60 a 70 anos, mais de 70 anos O grupo faixa etária também foi proposto com base no peril social da amostra, que contava com seis parlamentares com idade entre 40 e 49 anos, 19 com idade entre 50 e 59 anos, 13 com idade entre 60 e 69 anos, e 10 com idade igual ou superior a 70 anos. A hipótese para esse grupo, a considerar os inúmeros estudos do português brasileiro (ver MOLLICA, 2015, entre outros), é de que os mais idosos empreguem a forma conservadora, e os mais jovens preiram a forma inovadora no fenômeno variável. 5.1.3 Sexo: masculino e feminino Para o grupo de fatores sexo, a estratiicação se deu da seguinte forma: 38 homens e 10 mulheres. A tendência para esse grupo de fatores, destacada por Fisher (1958), Labov (1990), Paiva (2015), entre outros, é a de as mulheres demonstrarem maior preferência pelas variantes mais prestigiadas socialmente, independentemente de serem formas conservadoras ou inovadoras. Apesar da impossibilidade de se veriicar o grau de estigma ou de prestígio do vocábulo inovador presidenta, é possível se identiicar diferentes avaliações sobre a forma, a depender dos micronúcleos de seu uso, correlacionados a questões político-partidárias. Se para a forma presidente, a princípio, não se veriica estigma, também não é possível determinar, pela análise prévia dos discursos, o status do termo presidenta. Entretanto por esta ser a forma inovadora, a hipótese que se levanta é a de que ela seria a forma socialmente estigmatizada. Merecem comentário as restrições da amostra em relação ao equilíbrio de peris para fatores sociais como escolaridade, idade e sexo. Essas limitações, todavia, longe de minimizar a importância do presente Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 505 estudo, inédito até então, ou de inviabilizar a análise, apenas revelam o cuidado no trato dos resultados e a necessidade de proceder a cruzamentos especíicos que possam fornecer detalhes relacionados a cada estrato. Para os grupos de fatores extralinguísticos “tradicionais” considerados na pesquisa (escolaridade, faixa etária e sexo), ainda que tenhamos procedido à apresentação das hipóteses clássicas, cabe destacar o contexto especíico de investigação do fenômeno variável, no qual outros fatores extralinguísticos podem se mostrar, por vezes, mais atuantes. É importante considerar a natureza política da sessão na qual foram colhidas as amostras e, mais do que isso, analisar não somente o peril social individual dos/as senadores/as, mas também seu posicionamento político-ideológico. Especiicamente em relação ao sexo do falante, merece destaque o fato de o fenômeno investigado estar fortemente correlacionado ao reconhecimento ou não da identidade de gênero da referente no discurso. Além da hipótese apresentada anteriormente, que demonstra maior sensibilidade feminina ao status social das variantes linguísticas, cabe veriicar também se as mulheres seriam mais sensíveis à determinação e ao reconhecimento da identidade de gênero no discurso, haja vista, no contexto de variação investigado, apresentarem-se variantes com características identitárias ímpares, uma forma empregada indistintamente para os dois gêneros (presidente) e outra forma especíica para o gênero feminino (presidenta). Cabe diferenciar, de forma simplificada, os termos sexo e gênero, empregados ao longo desse trabalho. Sexo está relacionado às características biológicas do informante, enquanto gênero relaciona-se mais diretamente ao comportamento social do indivíduo. Dessa forma, na estratiicação das amostras, procedemos ao emprego do termo sexo, o que não exclui o emprego do vocábulo gênero em nossas discussões. Os grupos de fatores extralinguísticos que seguem não esgotam as possibilidades de medição dessa influência político-ideológica sobre a alternância lexical presidente/presidenta, mas possibilitam, minimamente, lançar um olhar objetivo e cientíico sobre o fenômeno. 506 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 5.1.4 Voto no processo de afastamento: sim ou não Entre os 48 parlamentares que fizeram uso da tribuna do Senado, no interrogatório da presidente/presidenta Dilma Rousseff, 29 manifestaram voto favorável ao impeachment, e 19, voto desfavorável. A consideração desse grupo de fatores tem o objetivo de investigar se o posicionamento do(a) senador(a) em relação ao afastamento inluenciaria o uso efetivo de uma das formas. A hipótese, com base nas observações preliminares da amostra, é a de que os senadores com voto favorável ao impeachment tenham maior tendência ao emprego da forma presidente, enquanto os que manifestaram voto contrário empregariam com maior frequência a forma presidenta. 5.1.5 Posicionamento a respeito do processo: golpe ou impeachment (afastamento) O posicionamento a respeito do processo, bastante discutido durante todas as etapas da votação na Câmara dos Deputados e do Senado, também foi considerado na investigação do fenômeno variável. Alguns dos opositores do processo denominavam-no “golpe”, enquanto alguns dos políticos favoráveis o nomeavam “impeachment” ou “afastamento”. Com base nessas observações, propomos o grupo posicionamento em tribuna a respeito do processo, considerando a menção explícita – por parte do(a) senador(a), em tribuna – da forma lexical “golpe” ou das formas lexicais “impeachment/afastamento”. Dos(as) 48 parlamentares que izeram uso da tribuna, 15 mencionaram as palavras “impeachment” ou “afastamento”, e 9 mencionaram a forma lexical “golpe”. A hipótese para esse grupo é a de que os indivíduos que empregaram as formas “impeachment” / “afastamento” demonstrem preferência pela forma presidente; por outro lado, os que mencionaram explicitamente o vocábulo “golpe” tenderiam mais ao emprego da forma presidenta.13 13 Nenhum(a) dos(as) senadores(as) empregou no seu discurso as formas impeachment/ afastamento e golpe. 24 parlamentares, em seu pronunciamento em tribuna, não mencionaram as formas analisadas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 507 5.1.6 Partido político: PMDB, PP, PSDB, PSD, PDT, DEM, PSB, PR, PC do B, PSC, PT, PV, SEM PARTIDO, REDE, PPS, PTB14 Esse grupo foi investigado com base em análise preliminar da amostra que apontou possível relação entre o partido político do falante e o emprego de uma ou outra forma lexical. A hipótese que carece de conirmação é a de que representantes de partidos políticos ligados ao governo da presidente/presidenta Dilma Rousseff apresentariam maior tendência de emprego da forma presidenta; por outro lado, partidos de oposição tenderiam ao emprego da forma presidente. É importante destacar a falta de objetividade na determinação da então base aliada do governo e também da oposição. Apenas alguns partidos, como PT e PSDB, podem ser considerados categoricamente como de situação e de oposição, respectivamente. A expectativa é de que a análise desse grupo forneça subsídios para apresentar, com base nos resultados estatísticos do fenômeno de alternância lexical presidente/presidenta, um contínuo entre favoráveis e opositores ao governo da então presidente/presidenta Dilma Rousseff. 5.2 Fatores Linguísticos 5.2.1 Contexto anterior: sem contexto anterior, forma lexical do gênero feminino, forma lexical comum de dois gêneros Na consideração do grupo de fatores contexto anterior, a investigação recai sobre a forma lexical que antecede as variantes presidente/presidenta dentro do SN. A observação preliminar dos dados possibilitou veriicar que diferentes formas poderiam anteceder o 14 As siglas dos partidos referem-se às seguintes denominações: Partido do Movimento Democrático Brasileiro-PMDB; Partido Progressista – PP; Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB; Partido Social Democrático – PSD; Partido Democrático Trabalhista – PDT; Democratas – DEM; Partido Socialista Brasileiro – PSB;Partido da República – PR; Partido Comunista do Brasil – PC do B; Partido Social Cristão – PSC; Partido dos Trabalhadores – PT; Partido Verde – PV; SEM PARTIDO (refere-se a parlamentar que não integra nenhum partido naquele momento); Rede Sustentabilidade –REDE; Partido Popular Socialista – PPS; Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. A título de informação, ao iniciar seu segundo mandato, em 2014, a então presidente/presidenta Dilma Rousseff dispunha do apoio dos seguintes partidos que compunham a base aliada ao governo: PCB, PDT, PMDB, PP,PR, PRB, PT, PTB. 508 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 vocábulo em variação, e a hipótese a ser investigada é a de que o contexto anterior inluenciaria no emprego de uma ou outra forma variante. A hipótese para esse grupo está relacionada ao “princípio do paralelismo formal”, amplamente investigado em estudos de concordância verbal e nominal do português brasileiro, que mostram que as marcas tendem a se repetir em estruturas subsequentes ao longo da sentença (“marcas levam a marcas”) (SCHERRE, 1998, p. 30 et seq.). Com base nesse princípio, a expectativa é de que as ocorrências que apresentam contexto anterior com forma lexical feminina (ocorrência (6)) favoreçam o emprego de presidenta e, por outro lado, as ocorrências que não apresentam contexto anterior ou que apresentam forma comum de dois gêneros no contexto prévio (ocorrências (5) e (7), respectivamente) favoreçam o emprego de presidente. Vejamos as ocorrências exempliicativas de cada contexto: (5) queria dizer... presidente... que eu tive o privilégio de servir a senhora... (Senador Armando Monteiro, PTB, PE) (6) vossa excelência... senhora presidenta... é um orgulho para o país... (Senador José Pimentel, PT, CE) (7) Ilustre presidente Dilma Roussef... (Senador Roberto Muniz, PP, BA) 5.2.2 Função do SN: sujeito, vocativo, complemento verbal Para o grupo de fatores função do SN, veriica-se a função exercida pelo sintagma nominal que abriga as formas em variação presidente/presidenta na sentença. Foram observadas, nas amostras, três funções, a de sujeito (ocorrência (8)), a de vocativo (ocorrência (9)) e a de complemento verbal (ocorrência (10)). A hipótese, baseada em análise prévia da amostra e na Teoria da Polidez, proposta por Brown e Levinson (1987), a ser conirmada, é de que haja maior emprego da forma presidenta nos vocativos, haja vista, nesses casos, a referente se constituir na interlocutora direta do discurso. Entre as “estratégias de polidez” apresentadas pelos autores estão a polidez positiva (inclusão do ouvinte na atividade, simulação ou explicitação da reciprocidade, uso de marcas de identidade de grupo) e a polidez negativa (emprego convencionalmente indireto, referência impessoal ao falante e ao ouvinte, deslocamento do ouvinte). Por outro lado, os SNs em posição Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 509 de sujeito e de complemento verbal têm como interlocutores todos os que acompanhavam a sessão do senado. A suposição é de que os parlamentares que optam pelo direcionamento direto do discurso à interrogada estariam optando por estratégias de polidez positiva, enquanto os que optam pelo direcionamento a todos os presentes, reportando-se à interrogada em terceira pessoa, estariam optando pela polidez negativa.15 Por consequência, essa “opção” se reletiria também no emprego das formas presidenta/presidente. A seguir, são apresentadas ocorrências exempliicativas. (8) a presidente Dilma insinuou a hipótese de que por detrás dos movimentos que levaram multidões às ruas... (Senador Álvaro Dias, PV, PR) (9) Senhor presidente do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski... senhora presidenta da República Dilma Rousseff... presidenta Dilma... eu venho lá do sul... (Senador Paulo Paim, PT, RS) (10) peço permissão para nesse exíguo lapso temporal fazer um registro sobre uma grande presidente a quem tive a honra de apoiar... (Senador Hélio José, PMDB, DF) As ocorrências foram codiicadas e submetidas a tratamento estatístico no programa GoldvarbX, que permite uma análise multivariada dos fatores condicionadores da variação linguística, conforme Sankoff, Tagliamonte (2005). Os resultados gerais e relativos aos fatores considerados são discutidos na próxima seção. 6 Análise dos resultados Foi considerado na análise um total de 232 ocorrências, entre as quais 62,5% (145) são da forma lexical presidente, e 37,5% (87), da forma presidenta, como podemos observar na tabela 1. Em relação às nuances de subjetividade e pessoalidade veriicadas entre o emprego da segunda e terceira pessoas, é importante destacar Benveniste (1991), que estabelece diferença circunstancial entre o eu / tu, autênticas pessoas, categorias do discurso; e o ele, uma categoria da língua, uma não-pessoa. 15 510 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 TABELA 1 – Resultados gerais da alternância entre as formas presidente/presidenta RESULTADO GERAL – ALTERNÂNCIA LEXICAL Presidente Presidenta % (nº de ocorrências) % (nº de ocorrências) 62,5% (145/232) 37,5% (87/232) Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados gerais apresentam um processo de variação lexical, com predomínio da forma presidente sobre a forma presidenta. Concernente aos diversos fatores linguísticos e extralinguísticos abarcados, apresentamos, no quadro 1, aqueles selecionados pelo programa estatístico como relevantes no fenômeno variável. QUADRO 1 – Ordem de seleção dos fatores na alternância lexical presidente/presidenta Fatores Alternância lexical presidente x presidenta Partido político 1º Voto no processo 2º Posicionamento em tribuna 3º Sexo 4º Faixa etária não selecionado Nível de escolaridade não selecionado Contexto anterior não selecionado Função do SN não selecionado Fenômeno Extralinguísticos Linguísticos Goldvarb X Fonte: Elaborado pelos autores. Log likelihood = -55.627 Signiicance = 0.007 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 511 Como se pode observar, somente fatores extralinguísticos foram selecionados como relevantes no fenômeno de alternância lexical entre as formas presidente/presidenta. Cabe destacar, entre os selecionados, três fatores (partido político, voto no processo e posicionamento em tribuna) mais fortemente ligados ao caráter político-ideológico do fenômeno linguístico, que é o foco desta investigação, e o último, sexo, reconhecidamente associado às discussões de gênero presentes nos debates sobre a temática. A faixa etária e a escolaridade dos senadores e senadoras não foram consideradas relevantes na alternância lexical. Da mesma forma, os fatores linguísticos contexto anterior à forma lexical e função do SN que abriga a forma lexical também não foram selecionados pelo programa estatístico. Na sequência, trataremos mais detalhadamente de cada um dos grupos considerados relevantes.16 6.1 Partido político A motivação para o controle do grupo de fatores partido político é de conirmar se o emprego de uma ou outra formas lexicais (presidente/ presidenta) seria inluenciado pelo partido político ao qual o/a senador/a pertence.17 Seguem os resultados para esse grupo na tabela 2. 16 Optamos por rodadas que considerassem como fator de aplicação uma e outra variantes, com o intuito de proporcionar apresentação que possibilite visão mais ampla do fenômeno, em função da forma “presidente” e da forma “presidenta”. Nas tabelas, exibe-se a distribuição complementar das frequências e pesos relativos. 17 Faz-se necessário destacar, neste ponto, a imprecisão na determinação de partidos e de políticos de “oposição” ou “situação”, “direita” ou “esquerda”, “aliados” ou “contrários”. 512 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 TABELA 2 – Atuação do grupo de fatores partido político na alternância presidente/presidenta18 Presidenta Presidente Variantes Partido Político % / nº de ocorrências Peso rel. PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, , PPS, PTB, PSC, PV, S/P, REDE18 98,1% (103/105) 0,907 PMDB 83,3% (20/24) 0,597 PDT 71,4% (10/14) 0,313 PC do B 42,9% (6/14) 0,228 PT 8% (6/75) 0,050 PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PPS, PTB, PSC, PV, S/P, REDE 1,9% (2/105) 0,093 PMDB 16,7% (4/24) 0,403 PDT 28,6% (4/14) 0,687 PC do B 57,1% (8/14) 0,772 PT 92% (69/75) 0,950 Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados mostram um bloco de partidos, composto de PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE, com comportamento bastante semelhante em relação à alternância entre as formas, demonstrando forte tendência ao emprego da forma presidente (frequência de 98,1% e peso relativo de 0,907). Os/As senadores/as do PMDB, apesar da considerável frequência com que empregam a forma presidente (83,3%), diferenciam-se do bloco anterior, o que pode ser veriicado também pelo peso relativo de 0,597, que revela menor tendência do que o grupo anterior ao emprego da forma conservadora. Representantes do PDT, embora empreguem com maior frequência a forma presidente (71,4%), exibiram peso relativo que indica A considerar a grande proximidade de percentuais veriicada entre os partidos PP, PPS, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE, optou-se pela amalgamação de resultados dessas siglas. A estratégia possibilitou também a rodada multivariada, com a obtenção de pesos relativos (P.R.). 18 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 513 inluência positiva no emprego da forma presidenta (peso relativo de 0,687 para essa forma). Os/As senadores/as do PC do B exibiram frequência de mais de 57,1% de emprego da forma presidenta e peso relativo de 0,772, revelando tendência positiva ao emprego da forma inovadora. Da mesma forma, os/as representantes do PT, partido da presidente/presidenta Dilma Rousseff, como previa nossa hipótese, foram responsáveis por 92% do emprego da forma presidenta, o que resultou em peso relativo de 0,950 para emprego dessa forma. Como se pode constatar, o grupo de fatores partido político do/a senador/a exerce inluência no comportamento linguístico quanto ao emprego das formas alternantes. O bloco de partidos formado por PP, PSDB, PSD, DEM, PPS, PSB, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE priorizou o emprego quase categórico da forma presidente, explicitamente preterida pela presidente/presidenta da República. Em outro extremo, os/ as representantes do PT demonstraram, em seus discursos, a tendência elevada à opção pelo uso da forma preferida de Dilma Rousseff. A análise dos outros fatores selecionados e o cruzamento entre alguns deles permitirão discussão mais ampla do fenômeno. Passemos a apresentar o próximo grupo selecionado pelo programa estatístico, voto no processo. 6.2. Voto no processo O grupo de fatores voto no processo foi controlado com o intuito de conirmar ou refutar a hipótese de que senadores/as apresentariam tendência ao emprego de uma ou de outra forma a depender de seu posicionamento político em favor ou contra o processo de impeachment. Dessa forma, os contrários ao afastamento tenderiam a empregar a forma presidenta e os favoráveis tenderiam mais ao emprego da forma presidente. A princípio, o grupo voto no processo poderia estar se sobrepondo ao grupo anterior, partido político, apresentando resultados bastante semelhantes, entretanto merece destaque o fato de haver poucos partidos nos quais todos os representantes assumiam posicionamento único em relação ao processo (apenas PT e PC do B, como veremos adiante). Na sequência, os resultados para o grupo de fatores voto no processo de impeachment. 514 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 TABELA 3 – Atuação do grupo de fatores voto no processo na alternância presidente/presidenta Variantes Presidente Presidenta Voto no processo % / nº de ocorrências Peso relativo Sim 97,1% (100/103) 0,777 Não 34,9% (45/129) 0,270 Sim 2,9% (3/103) 0,223 Não 65,1% (84/129) 0,730 Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados demonstram que, entre os senadores/senadoras favoráveis ao processo de impeachment, houve emprego quase categórico da forma presidente (97,1% e peso relativo de 0,777). Por outro lado, presidenta foi a forma lexical mais empregada pelos que votaram contra o afastamento de Dilma Rousseff (65,1% e peso relativo de 0,730 para a forma inovadora). Há de se destacar que houve, para os que votaram não ao afastamento, um processo variável, com tendência acentuada ao emprego da forma inovadora presidenta, comportamento bastante diferente dos que votaram sim, com a apresentação do emprego quase categórico da forma conservadora. Os resultados conirmam a oposição e distanciamento de frequências e pesos relativos entre o grupo de senadores que votou sim e o grupo que votou não. Esses resultados, aliados aos resultados do grupo de fatores partido político, poderiam conirmar que o emprego de uma ou outra forma, apesar de se correlacionar com posição contrária ou favorável à então presidente/presidenta, estaria mais fortemente ligado a uma ideologia político-partidária, ou seja, o emprego mais acentuado da forma presidenta, como mostrou o grupo anterior, estaria restrito a determinado(s) partido(s) e não ao posicionamento diante do processo. A seguir, apresenta-se, na tabela 4, o cruzamento entre o grupo partido político e voto no processo. 515 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 TABELA 4 – Cruzamento entre os grupos de fatores partido político e voto no processo Voto Sim Não Variantes Partido Presidente Presidenta PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, S/P, REDE 98% (78/80) 2% (2/80) PMDB 100% (12/12) 0% (0/12) PDT 91% (10/11) 9% (1/11) PC do B - - PT - - PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PTB, PSC, PV, S/P, REDE 100% (25/25) 0% (0/25) PMDB 67% (8/12) 33% (4/12) PDT 0% (0/3) 100%(3/3) PC do B 43% (6/14) 57% (8/14) PT 8% (6/75) 92% (69/75) Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados tornam possível airmar que, para o bloco de partidos composto por PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PR, PTB, PPS, PSC, PV, S/P, REDE, independentemente do voto no processo de impeachment, há recusa quase categórica ao emprego da forma presidenta. Para PMDB e PDT, interfere no emprego de uma ou outra forma o voto do parlamentar, haja vista os que votaram sim tenderem ao emprego de presidente (100% e 91%, respectivamente) e os que votaram não tenderem mais ao uso da forma presidenta (33% e 100%, respectivamente). Parlamentares do PC do B e do PT, únicos partidos com 100% de votos contrários ao impeachment, apresentaram também frequências superiores de emprego da variante presidenta (respectivamente, 57% e 92%). Os resultados até aqui apresentados denotam que o emprego das variantes no contexto investigado sofre inluência direta da posição político-ideológica do parlamentar. Ainda que tenha havido diiculdade na determinação dos partidos contrários e favoráveis ao governo, por conta da volatilidade das alianças irmadas ao longo de todo o processo, a relação entre os grupos voto no processo e partido político permite apontar com relativa assertividade as diferentes posições políticas no 516 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 senado. Os/As parlamentares do bloco composto por PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, S/P, REDE, em sua maioria, no momento do processo de impeachment, pertenceriam ao bloco de oposição ao governo, enquanto PT e PC do B, no outro polo, seriam partidos da base governamental. PDT e PMDB apresentariam maior equilíbrio entre parlamentares de oposição e situação. Essas diferentes ideologias políticas interferem diretamente no emprego das variantes presidente/presidenta, por ser conhecido o posicionamento de Dilma Rousseff, dos representantes do governo e de seu partido em relação à preferência pela forma especíica do gênero feminino.19 Na sequência, apresenta-se o terceiro grupo de fatores selecionado pelo programa estatístico GOLDVARB X, posição explícita em tribuna diante do processo. 6.3 Posição em tribuna O grupo de fatores posição em tribuna considera a menção explícita do/a senador/a aos vocábulos “impeachment” (ou “afastamento”) e “golpe”. A hipótese sobre a atuação desse grupo diante da alternância lexical se deu devido à grande discussão que antecedeu o processo em diversas redes sociais. A expectativa era de que senadores/as que explicitamente considerassem o processo como “golpe” tendessem a empregar mais a forma presidenta; enquanto senadores/as que, em tribuna, se referissem ao processo como “impeachment” ou “afastamento” tenderiam mais ao emprego da forma presidente. Seguem, na tabela 5, os resultados para esse grupo de fatores: 19 Merece registro o pronunciamento do senador Ronaldo Caiado, do DEM de Goiás, que, ao fazer a leitura de documento do ex-ministro Jaques Wagner em que constava “Quem banca é a presidenta...”, substituiu a forma presidenta por presidente. 517 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 TABELA 5 – Atuação do grupo de fatores posição em tribuna na alternância presidente/presidenta Variantes Presidente Presidenta Posição em tribuna % / nº de ocorrências Peso relativo impeachment ou afastamento 92,7% (51/55) 0,770 golpe 17,2% (11/53) 0,262 impeachment ou afastamento 7,3% (4/55) 0,230 golpe 82,8% (53/64) 0,738 Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados conirmam totalmente as expectativas, haja vista os/as senadores/as que mencionaram os termos “impeachment” ou “afastamento” terem apresentado também alta frequência de emprego da forma presidente (92,7%) e um peso relativo que mostra que o grupo tende ao emprego da forma conservadora (0,770). Por outro lado, os/as senadores/as que se referiram explicitamente ao processo como “golpe” tenderam fortemente ao emprego de presidenta (frequência de 82,8% e peso relativo de 0,738 para uso dessa forma). A validade da consideração desse grupo pode ser conirmada pela polarização entre os dois grupos, os que consideram o processo “golpe” e os que o consideram “impeachment/afastamento”. No grupo anterior, que considerava o voto no processo, ainda que tenha havido diferença considerável entre os que votaram contra e a favor, a frequência de emprego da forma presidenta pelos que votaram sim, ainda que alta, foi menor, 65,1%, contra 82,8% dos que consideraram o processo “golpe”. Cabe relembrar que, para o grupo voto no processo, foram considerados todos os 48 parlamentares que izeram uso da tribuna e, para o grupo posicionamento explícito sobre o processo, apenas os/as que mencionaram os termos “impeachment/ afastamento” ou “golpe”. Passemos a tratar do último grupo de fatores selecionado, sexo. 6.4. Sexo Para o grupo de fatores sexo, consideramos, entre os 48 parlamentares que izeram uso da tribuna, 38 homens e 10 mulheres. A hipótese presente em estudos sociolinguísticos de diferentes fenômenos do português brasileiro mostra certa tendência de as mulheres empregarem com maior frequência a forma inovadora, desde que essa forma não seja 518 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 estigmatizada, o que demonstra maior sensibilidade de representantes do sexo feminino em relação ao signiicado social das variantes linguísticas (FISHER, 1958; LABOV, 1990; PAIVA, 2015, entre outros). É importante considerar, entretanto, a natureza especíica da amostra analisada nesta pesquisa e, além disso, outros grupos de fatores, como os já apresentados, que poderiam atuar junto do grupo de fatores sexo. Reitera-se o fato de o fenômeno, e desse grupo de fatores em especial, estar fortemente ligado à identidade de gênero no discurso, já que as formas lexicais apresentam diferentes signiicações sociais, apesar de se alternarem nas mesmas funções. Seguem os resultados para esse grupo. TABELA 6 – Atuação do grupo de fatores sexo na alternância presidente/presidenta Variantes Presidente Presidenta Sexo % / nº de ocorrências Peso relativo Masculino 70,9% (122/172) 0,587 Feminino 38,3% (23/60) 0,366 Masculino 29,1% (50/172) 0,413 Feminino 61,7% (37/60) 0,634 Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados mostram maior tendência de emprego da forma presidente por parte dos senadores, com 70,9% de frequência e peso relativo de 0,587. As senadoras, por outro lado, tenderam a empregar mais em seus discursos a forma presidenta, apresentando um percentual de 61,7% e peso relativo de 0,634 para uso dessa forma. Por meio da observação dos resultados para o sexo e, considerando a premissa de que as mulheres são mais sensíveis ao signiicado social das variantes linguísticas, poderíamos concluir que a forma inovadora presidenta, por ser a mais empregada pelas mulheres, não seria estigmatizada. Entretanto, o contexto particular de investigação, com falta de equilíbrio entre os fatores sociais (como já demonstrado) sugere algumas ponderações e a consideração da relação deste com outros grupos de fatores. Como já mencionado, é pertinente também a consideração da especiicidade da alternância, que comprova, na preferência pela forma presidenta, a defesa da ideologia de gênero. No quadro que segue, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 519 apresentamos a relação entre o sexo dos/as senadores/as e o voto no processo de impeachment. QUADRO 2 – Relação entre o sexo e o voto no processo de impeachment Voto no processo Nº de Senadores / percentual Nº de Senadoras / Percentual Sim 26/69% 3/30% Não 12/31% 7/70% Total 38/100% 10/100% Fonte: Elaborado pelos autores. Entre os senadores, quase 70% foram favoráveis ao processo de impeachment (69%) e, entre as senadoras, por outro lado, 70% foram contrárias ao processo. Há, dessa forma, falta de equilíbrio entre o voto de homens e mulheres no processo, e o resultado para o grupo de fatores sexo estaria sendo condicionado pelo posicionamento político-ideológico de cada um/a dos/as senadores/as da República. A conirmação dessa hipótese pode ser obtida com o cruzamento do grupo de fatores voto no processo e sexo, apresentado na sequência. Voto Sim Não TABELA 7 – Cruzamento entre os grupos sexo e voto no processo de impeachment Variantes Sexo Presidente Presidenta Masculino 97% (92/95) 3% (3/95) Feminino 100% (8/8) 0% (0/8) Masculino 39% (30/77) 61% (47/77) Feminino 29% (15/52) 71% (37/52) Fonte: Elaborada pelos autores. Os resultados evidenciam comportamentos distintos entre os/as parlamentares pró e contra o impeachment, pois, entre os/as favoráveis ao processo, há a opção categórica ou quase categórica pelo emprego de presidente, independentemente do sexo. Já entre os/as parlamentares que votaram contra o impeachment, houve diferença no comportamento masculino e feminino, com maior tendência desse último grupo ao emprego da forma inovadora presidenta. 520 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 Assim, entre os parlamentares contrários ao impeachment, é possível veriicar diferença no comportamento masculino e feminino, com maior frequência de emprego da forma presidenta (inovadora e especíica de referente do sexo feminino) pelas mulheres. Esse comportamento revela, para além da hipótese clássica, que defende maior sensibilidade por parte de representantes do sexo feminino em relação ao status social das variantes linguísticas, maior sensibilidade das mulheres também na determinação e no reconhecimento da identidade de gênero no discurso. 7. Considerações inais Os resultados desta pesquisa conirmaram que a alternância das formas presidente e presidenta é inluenciada, predominantemente, por fatores extralinguísticos ligados à ideologia política dos/das parlamentares, haja vista o partido político, o voto no processo e o posicionamento em tribuna terem sido os três primeiros fatores selecionados pelo programa estatístico GOLDVARB X. Além da ideologia político-partidária, foi possível constatar também a inluência do grupo de fatores sexo no fenômeno variável. Pela observação especíica do grupo de fatores partido político, foi possível verificar um bloco de partidos com comportamento semelhante (PP, PSDB, PSD, DEM, PSB, PPS, PR, PTB, PSC, PV, Sem Partido e REDE), tendendo ao emprego semicategórico da forma presidente. Os representantes do PMDB e do PDT, apesar de usarem com alta frequência a forma presidente, destacam-se do bloco anterior, pois também empregaram a forma presidenta (16,7% das ocorrências para o PMDB e 28,6% para o PDT). Em comportamento inverso ao do primeiro bloco, parlamentares do PC do B e do PT revelaram maior tendência ao emprego da forma presidenta (destaque para o PT, que apresentou 92% de emprego da forma inovadora). O grupo de fatores voto no processo revelou que o posicionamento do/a parlamentar em relação ao processo exerce inluência na alternância lexical. Senadores/as favoráveis ao impeachment apresentaram maior tendência ao emprego da forma presidente do que senadores/as contrários ao processo. A análise do grupo de fatores posição em tribuna, por considerar apenas os/as parlamentares que se posicionaram explicitamente na sessão em relação ao processo, revelou com maior clareza os polos de oposição da variação e a relação entre o posicionamento político-ideológico e sua 521 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 1, p. 491-524, 2018 manifestação no discurso, revelando a preferência dos senadores que votaram sim pela forma presidente e dos que votaram não pela forma presidenta. O grupo sexo, apesar de exigir cautela em sua análise, devido à falta de equilíbrio da amostra, comprovou a maior sensibilidade feminina na determinação e reconhecimento da identidade de gênero no discurso, com as mulheres tendendo mais ao emprego da forma presidenta do que os homens. Embora o contexto de investigação desta pesquisa tenha sido restrito, os resultados possibilitam uma visão mais ampla do fenômeno de alternância lexical entre as formas presidente e presidenta, visto que, dentro e fora do Senado Federal, a discussão sobre o emprego de uma ou outra formas quase sempre extrapola os rótulos de padrão ou não padrão, prestígio ou estigma, culto ou popular. Além disso, o julgamento pessoal, social e político dos senadores em relação ao referente-alvo da forma lexical está em jogo e tem maior peso nesse contexto especíico de variação. Há, notadamente, uma polarização político-ideológica, e o falante determina o polo que irá ocupar no momento em que faz a opção por uma das formas lexicais. Referências BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. BENVENISTE, E. Estrutura das relações de pessoa no verbo. Problemas de Linguística Geral I. 3. ed. São Paulo: Pontes, 1991. BROWN, P.; LEVINSON, S. 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