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ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.26 - Nº 2 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 26 n. 2 p. 525-979 abr./jun. 2018 REvista dE Estudos da liNguagEm universidade Federal de minas gerais REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira Faculdade de letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETOR: Rui Rothe-Neves Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Revisão e Normalização Alda Lopes Durães Ribeiro Heliana Ribeiro de Mello Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Maria Cecília de Lima Capa Elson Rezende de Melo REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 REvista dE Estudos da liNguagEm V. 26 - Nº 2- abr.-jun. 2018 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Cientíico) [Spain] Sindex (Sientiic Indexing Services) [USA] Web of Science [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany] REvista dE Estudos da liNguagEm Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Editores Associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Conselho Editorial Alejandra Vitale (Universidad de Buenos Aires) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3) Ieda Maria Alves (Universidade de São Paulo-USP) Jairo Nunes (Universidade de São Paulo-USP) Scott Schwenter (The Ohio State University) Shlomo Izre'el (Tel Aviv University) Stefan Gries (University of California) Teresa Lino (Universidade Nova de Lisboa) Tjerk Hagemeijer (Universidade de Lisboa) Comissão Cientíica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Alessandro Panunzi (Univ. Degli Studi di Firenze, Itália) Alina M. S. M. Villalva (Univ de Lisboa) Aline Alves Ferreira (Univ. of California at Santa Barbara, UCSB, EUA) Ana Lúcia de Paula Müller (USP) Ana Maria Carvalho (Univ. of Arizona, EUA) Anabela Rato (University of Toronto, Canadá) Aquiles Tescari Neto (UNICAMP) Augusto Soares da Silva (Universidade Católica Portuguesa, Portugal) Beth Brait (PUC-SP / USP) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL) César Nardelli Cambraia (UFMG) Cristina Name (UFJF) Charlotte C. Galves (UNICAMP) Deise Prina Dutra (UFMG) Diana Luz Pessoa de Barros (USP / Mackenzie) Dylia Lysardo-Dias (UFSJ) Edwiges Morato (UNICAMP) Emília Mendes Lopes (UFMG) Esmeralda V. Negrão (USP) Gabriel de Avila Othero (UFRGS) Gerardo Augusto Lorenzino (Temple Univ.) Glaucia Muniz Proença de Lara (UFMG) Hanna Batoréo (Universidade Aberta, Lisboa) Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Hugo Mari (PUC-Minas) Hilario Bohn (UCPel) Heronides Moura (UFSC) Ida Lucia Machado (UFMG) Ieda Maria Alves (USP) Ivã Carlos Lopes (USP) Jairo Nunes (USP) Jean Cristtus Portela (UNESP - Araraquara) João Antônio de Moraes (UFRJ) João Miguel Marques da Costa (Univ. Nova de Lisboa) João Queiroz (UFJF) José Magalhaes (UFU) João Saramago (Universidade de Lisboa) José Borges Neto (UFPR) Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) Laura Alvarez Lopez (Stockholm University) Laurent Filliettaz (Université de Genève, Suiça) Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam) Leonel Figueiredo de Alencar (UFC) Livia Oushiro (UNICAMP) Lodenir Becker Karnopp (UFRGS) Lorenzo Vitral (UFMG) Luiz Amaral (Univ. of Massachusetts Amherst) Luiz Carlos Cagliari (UNESP) Luiz Carlos Travaglia (UFU) Marcelo Barra Ferreira (USP) Márcia Cançado (UFMG) Márcio Leitão (UFPb) Marcus Maia (UFRJ) Maria Antonieta Amarante M. Cohen (UFMG) Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP) Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP) Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ) Maria Cândida Trindade C. de Seabra (UFMG) Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR) Maria do Carmo Viegas (UFMG) Maria Luíza Braga (PUC/RJ) Maria Marta P. Scherre (UnB) Miguel Oliveira, Jr. (UFAL Milton do Nascimento (PUC-Minas) Monica Santos de Souza Melo (UFV) Patricia Matos Amaral (Indiana University, EUA) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP) Philippe Martin (Université Paris 7) Rafael Nonato (Museu Nacional / UFRJ) Raquel Meister Ko. Freitag (UFS) Roberto de Almeida (Concordia University) Ronice Müller de Quadros (UFSC) Ronald Beline (USP) Rove Chishman (UNISINOS) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS) Seung-Hwa Lee (UFMG) Sírio Possenti (UNICAMP) Suzi Lima (University of Toronto / UFRJ) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG) Tommaso Raso (UFMG) Tony Berber Sardinha (PUC-SP) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS) Vander Viana (Univ. of Stirling, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL Vera Menezes (UFMG) Vilson José Leffa (UCPel) Sumário / Contents Investigando a robustez de uma metodologia para determinação do valor de base da frequência fundamental Probing the robustness of a methodology to determine the base value of fundamental frequency Pablo Arantes Maria Érica Nascimento Linhares .................................................... 535 Desenvolvimento e validação do instrumento de compreensão de expressões idiomáticas Idioms comprehension instrument: development and validation Maity Siqueira Daniela Fernandes Marques .............................................................. 571 A gramática estadunidense como alteridade para a gramatização brasileira do português no século XIX: análise da composição da gramática Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia de Júlio Ribeiro (1886) com base no modelo do compêndio A Grammar of the English Language de George Frederick Holmes (1878) The American grammar as alterity for the Brazilian grammatization of Portuguese in the nineteenth century: analysis of the composition of the grammar “Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia” by Júlio Ribeiro (1886) from the model of the compendium “A Grammar of the English Language” by George Frederick Holmes (1878) José Edicarlos de Aquino .................................................................. 593 Duração de sílabas em fronteira de frase fonológica na produção de sentenças sintaticamente ambíguas do português brasileiro Syllable duration in phonological phrase boudaries in the production of syntactically ambiguous sentences in Brazilian Portuguese Melanie Campilongo Angelo Raquel Santana Santos ...................................................................... 633 Amostras sociolinguísticas: probabilísticas ou por conveniência? Sociolinguistic samples: random or convenience? Raquel Meister Ko. Freitag ............................................................... 667 Sociolinguística, teoria social e padronização linguística Sociolinguistics, social theory and linguistic standardization Marcos Bispo dos Santos .................................................................. 687 Algumas considerações em torno da expressão da posterioridade no passado, no contexto de completivas de verbo Some remarks about the expression of posteriority in the past in the context of verbal complement clauses Luís Filipe Cunha .............................................................................. 719 Análise de textos enciclopédicos da Simple English Wikipedia e da Wikipedia: algumas discussões para o ensino de língua inglesa Analysis of encyclopedic texts from Simple English Wikipedia and Wikipedia: some discussions for English language teaching Eduardo Batista da Silva ................................................................... 769 Distinção de ponto de articulação no Português de Belo Horizonte: exemplos em plosivas e fricativas Distinction of Place of Articulation in Brazilian Portuguese: Examples in Plosives and Fricatives Rui Rothe-Neves Fabiana Andrade Penido ................................................................... 793 A obviação em complementação sentencial no português brasileiro e sua relação com predicados não epistêmicos Obviation in Sentential Complementation in Brazilian Portuguese and its Relation to Non-epistemic Predicates Vivian Meira ..................................................................................... 843 Cláusulas de inalidade e argumentação: uma proposta de interface gramática e interação Purpose Clauses and Argumentation: a Proposal for the Interface Between Grammar and Interaction Amitza Torres Vieira Nilza Barrozo Dias ............................................................................ 879 O Zhuāngzǐ e as palavras-cálice: uma visão de linguagem pragmática radical na China do século IV aC Zhuāngzǐ and goblet words: a radical pragmatic view in China’s 4th century BC Cristiano Mahaut de Barros Barreto ................................................. 905 Sujeitos-Wh e movimento para posições focais em sentenças ininitivas do português brasileiro Wh-subjects and movement for focal positions in Brazilian Portuguese ininitive sentences Paulo Medeiros Junior ...................................................................... 945 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 Investigando a robustez de uma metodologia para determinação do valor de base da frequência fundamental Probing the robustness of a methodology to determine the base value of fundamental frequency Pablo Arantes Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil pabloarantes@gmail.com Maria Érica Nascimento Linhares Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo / Brasil erica_linhares@hotmail.com Resumo: Este trabalho testa a robustez de uma metodologia proposta pelos foneticistas suecos Traunmüller e Eriksson para determinar o valor de base, um estimador estatístico do valor típico da frequência fundamental (F0) de um falante com base na média e no desvio-padrão da F0. A metodologia consiste em estimar uma constante, k, que indica quantos desvios-padrão abaixo da média de F0 do falante o valor de base está. O método para estimar a constante foi criado e testado em amostras de fala atuada. Veriicamos neste trabalho se a aplicação da mesma técnica a amostras de fala não atuada produz resultados comparáveis aos reportados por Traunmüller e Eriksson. A investigação usou amostras de fala produzidas por falantes nativos de alemão, estoniano, francês, inglês britânico, italiano, português brasileiro e sueco, em três estilos de elocução: entrevista, leitura de frases e leitura de palavras. Os resultados indicam que a variabilidade causada pelos estilos de enunciação na F0 possibilita a aplicação da metodologia a amostras de fala não atuada. Os valores da constante derivados dos dados não atuados são próximos aos reportados pelos autores suecos, o que indica que ela é robusta tanto do ponto de vista dos falantes quanto das línguas. Palavras-chave: entoação; valor de base; frequência fundamental. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.535-570 536 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 Abstract: This paper probes the robustness of Traunmüller and Eriksson’s methodology to determine the base value of the fundamental frequency of speech, an estimator of a speaker’s typical F0 value. The methodology entails the estimation of a constant, k, indicating where the base value for a speaker lies in relation to F0 standard deviations below the F0 mean. The methodology was originally developed from acted speech samples. Here we test if k values can be successfully obtained from non-acted samples and how they compare to the ones reported by Traunmüller and Eriksson. A speech corpus of speech samples differing in speaking styles (spontaneous interview, sentence reading, word list reading) from seven languages (English, Estonian, French, German, Italian, Brazilian Portuguese, Swedish) was used. Results show that k values estimated from non-acted speech are roughly the same as those reported in Traunmüller and Eriksson’s original paper. We speculate that deviations can be explained by the fact that some speakers make extensive use of non-modal register. Keywords: intonation; base value; fundamental frequency. Recebido em 10 de dezembro de 2016 Aceito em 6 de junho de 2017 1 Introdução Ao longo de um enunciado, a frequência fundamental da voz (F0) varia em razão de fatores de diferentes naturezas: fatores linguísticos de escopo amplo, como a modalidade do enunciado, ou locais, como a composição fonética dos segmentos que formam o enunciado – cf. a distinção entre micro e macromelodia em Hirst (2005); fatores paralinguísticos, como o estado emocional do falante no momento da enunciação e, ainda, fatores orgânicos, como o sexo e as idiossincrasias do trato vocal do falante – principalmente massa e comprimento das pregas vocais (TITZE, 1994). Essa multiplicidade de fatores diiculta a estimativa do valor médio ou típico da F0 que um falante emprega em suas produções faladas. Em alguns cenários, é interessante que a estimativa de valor típico da F0 relita fatores orgânicos mais do que fatores linguísticos. Duas situações desse tipo são, por exemplo, a comparação de vozes Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 537 com inalidade forense (JESSEN, 2008) e o uso da voz como meio para autenticação da identidade de um usuário em aplicações de segurança (SCHULTZ, 2007). Em aplicações como essas, a inluência que o conteúdo linguístico de enunciados especíicos possa vir a exercer sobre os contornos de F0 produzidos por um indivíduo não está no centro das atenções. O que se busca, ao contrário, é minimizar essas inluências de forma a fazer os fatores orgânicos/biológicos ressaltarem no estimador estatístico de valor típico. Pode-se pensar em uma situação em que o inverso seja verdadeiro, isto é, em que o interesse se volta para os efeitos de um contraste linguístico sobre o comportamento da F0, independentemente dos falantes que expressam esse contraste. Pode-se estar interessado, por exemplo, em estabelecer o efeito da modalidade interrogativa sobre o contorno de F0. Não interessam, nesse caso, diferenças mais ou menos esperadas entre falantes, como o fato da F0 de homens ser em geral menor do que a de mulheres. O importante é tentar neutralizar essas características idiossincráticas e pôr em relevo o modo pelo qual a variação de F0 expressa o contraste linguístico em questão. Procedimentos de normalização da curva de F0 podem ser usados para essa inalidade e são geralmente empregados em cenários nos quais diferentes falantes produzem repetições de enunciados em que existe algum contraste linguístico sob investigação. Esses procedimentos, de forma geral, requerem o uso de uma estimativa do valor típico da F0 (em geral a média aritmética) de cada um dos falantes que contribuíram com enunciados para um determinado corpus (JASSEM, 1975; MAIDMENT; LECUMBERRI, 1996; ROSE, 1991). Ambos os cenários discutidos anteriormente deixam clara a importância e a utilidade de estudar as características estatísticas das curvas de F0, em especial a adequação das diferentes maneiras de obter uma estimativa do valor típico ou tendência central dessas amostras. No contexto da estatística descritiva, há diversos procedimentos para determinar o valor mais representativo de uma amostra de dados, cada qual com vantagens e limitações próprias (KENNEY; KEEPING, 1962). A média e mediana são estimadores de localização versáteis, no sentido de que podem ser aplicados a amostras de qualquer natureza, desde que a variável observada possa ser medida em uma escala intervalar ou proporcional (STEVENS, 1946). A média aritmética é o estimador de tendência central de F0 cujo uso é mais 538 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 prevalente na literatura, apesar de sua sensibilidade à presença de assimetria na amostra, que é bastante comum em dados de F0 (JASSEM, 1975). A mediana, mais robusta à presença de assimetrias e valores extremos, é uma alternativa à média – cf. a proposta de De Looze e Hirst (2014) para o uso da mediana como valor de referência para um procedimento de normalização de contornos de F0. O valor de base (base value ou base line em inglês) é um estimador estatístico de localização proposto pelos foneticistas suecos Traunmüller e Eriksson [s.d.] especialmente para amostras de F0 e leva em conta as especiicidades típicas desse tipo de amostra. Uma dessas especiicidades é que a variação de F0 em geral não é simétrica, como se viu no parágrafo anterior. Quando os falantes fazem excursões entoacionais, o movimento, na grande maioria das vezes, é ascendente, fato que se revela nos histogramas de distribuições de F0 como uma assimetria positiva. Eriksson (2011) sugere que o nível de F0 que pode ser considerado típico para um falante é aquele logo acima do mínimo necessário para manter a fonação modal. Movimentos abaixo desse nível seriam, segundo o autor, menos comuns porque poderiam resultar em vozeamento não modal. Em situações que fazem a variabilidade da F0 aumentar, como, por exemplo, falar com maior envolvimento emocional, essa tendência à assimetria se mostra ainda mais claramente. O gráico da igura 1 mostra o contorno de F0 normalizado temporalmente da mesma frase1 lida pelo mesmo falante – um ator, simulando três níveis de envolvimento emocional, com níveis de vivacidade crescentes. Em verde, o contorno da elocução com um nível neutro ou típico de envolvimento; em vermelho, baixo envolvimento e, em azul, alto grau de envolvimento. É bastante evidente no gráico que quanto maior é o envolvimento, maior a gama de valores explorados pelas excursões de F0. As excursões, no entanto, têm uma direção preferencial: as curvas, independentemente do nível de envolvimento, raramente descem abaixo de um ponto em torno de 100 Hz, que funciona como um piso a partir do qual o falante expande a gama tonal. Esse ponto seria o valor de base para esse falante. Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) desenvolvem uma metodologia para estimar o valor de base (base value, em inglês), Fb, de uma amostra de F0, e propõem a fórmula Fb = Fmédia – kσ, em que Fmédia e σ são, respectivamente, o valor da média aritmética e do desvio padrão de F0 1 As gravações foram cedidas por Anders Eriksson. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 539 de uma amostra de F0, e k é uma constante determinada empiricamente. Em um experimento com fala atuada emulando diferentes funções paralinguísticas, Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) obtiveram o valor de 1,5 para a constante, mas indicaram que esse valor não é ixo e pode apresentar uma variação entre 1,1 e 2 – valores obtidos com base em conjuntos de dados diferentes e replicações subsequentes da análise original. Lindh e Eriksson (2007), em um estudo posterior, revisaram o valor de k para 1,43 e sugeriram uma formulação alternativa para o cálculo do valor de base, que se mostrou mais robusta do que a original. Nessa formulação, chamada por eles de alternative base value, assumindo uma distribuição normal para os dados de F0, o ponto 1,43·σ abaixo da média corresponde, aproximadamente, ao 7º percentil da distribuição empírica de F0. No presente trabalho, testamos a robustez da metodologia apresentada por Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) para a determinação do valor de base da frequência fundamental da voz. Para isso, ela será aplicada a amostras de fala não atuada, produzidas por falantes de sete línguas: alemão, estoniano, francês, inglês britânico, italiano, português brasileiro e sueco, a im de observar se os valores da constante k estimados pela fala não atuada são comparáveis aos obtidos pelos autores por meio da fala atuada. Além disso, uma vez que a estimativa de k pode variar, investigaremos o grau de sensibilidade do valor de base em função das variações de k, que também consideramos ser uma forma de avaliar a robustez da proposta de Traunmüller e Eriksson para determinar o valor de base. Outros modelos presentes na literatura propõem conceitos comparáveis ao valor de base de Traunmüller e Eriksson. Embora o propósito central do presente trabalho seja testar a robustez do modelo proposto por eles, discutiremos brevemente as semelhanças e diferenças entre eles. Destacamos dois modelos em particular: Gårding (1983) e Fujisaki e Hirose (1984). Ambos propõem modelar o contorno de F0 de frases individuais pela sobreposição de componentes que atuam em diferentes níveis. Em Gårding (1983), os componentes são lexicais e frasais. No componente frasal estabelece-se a grade tonal, que funciona como um quadro global para a frase ao deinir continuamente valores mínimos e máximos para a variação de F0 aos quais os tons locais serão sobrepostos. A linha inferior da grade tonal poderia ser posta em comparação ao valor de base de Traunmüller e Eriksson. Na referência citada, não 540 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 há informações detalhadas a respeito do procedimento adotado para a deinição dos valores da grade para cada frase a ser analisada. Nos casos em que a linha inferior da grade tonal tem uma inclinação negativa, no entanto, ela seria mais bem comparada à tendência de declinação (VAISSIÈRE, 1983) do que ao valor de base. Em Fujisaki e Hirose (1984), o contorno observável de F0 em um enunciado é considerado o resultado da sobreposição de dois componentes – um frasal e um acentual – que modulam uma frequência de base, valor que é considerado especíico para cada falante. Nesse modelo, a frequência de base é comparável ao valor de base de Traunmüller e Eriksson. Mixdorff (2015) discute diferentes abordagens para a determinação da frequência de base. Do ponto de vista conceitual, faria sentido considerar a frequência de base um valor relativamente ixo para cada falante. Mixdorff, no entanto, determina a Fb do modelo de Fujisaki e Hirose com base em informação sobre os componentes de baixa frequência de cada curva de F0 da frase a ser modelada. Como esse procedimento é aplicado em frases relativamente curtas, ele tem o inconveniente de ser suscetível a variações locais, conforme se esteja modelando frases de diferentes modalidades, por exemplo (ver igura 3.3 em MIXDORFF, 2015, p. 39). Nesse exemplo, o valor da frequência de base da frase interrogativa extraído de forma automática não coincide com o menor valor do contorno. Além disso, é quase 30 Hz mais alto do que a frequência de base de uma declarativa produzida pelo mesmo falante. Essa breve discussão mostra a importância de discutir procedimentos de determinação de valores que podem ser postos em equivalência tanto com valor de base de Traunmüller e Eriksson quanto com a frequência de base de Fujisaki e Hirose. No caso dos procedimentos apresentados em Mixdorff (2015), a determinação do valor da frequência de base não é guiada por um critério motivado em princípios fortemente articulados ao próprio modelo de Fujisaki ou a outra teoria de produção da fala. No caso de Traunmüller e Eriksson, o modelo teórico mais geral que embasa sua proposta é a teoria da modulação (TRAUNMüLLER, 1994), que é mais ampla em escopo do que o modelo de Fujisaki e Hirose. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 541 FIGURA 1 – Contornos normalizados temporalmente de uma mesma frase interpretada em três níveis de envolvimento emocional por um ator sueco2 Fonte: Elaborado pelos autores. 2 A metodologia de Traunmüller e Eriksson Utilizamos, neste trabalho, a metodologia descrita em Traunmüller e Eriksson ([s.d.]) para derivação da fórmula do valor de base. Os autores sugerem que o valor de base pode ser entendido intuitivamente como o valor de F0 que corresponderia à situação em que o falante produzisse fala sem nenhuma variação entoacional, isto é, com variabilidade de F0 nula, condição que corresponde ao conceito de carreador na teoria da modulação, proposta por Traunmüller (1994). O desvio-padrão da F0 dessa situação idealizada seria zero, e a média observada reletiria a F0 típica ou preferida daquele falante. A fórmula proposta pelos autores, mencionada na seção anterior, calcula o valor de base por meio de duas incógnitas, Fmédia e σ, que podem ser facilmente estimadas com base em amostras de F0, e uma constante, k. A metodologia apresentada pelos autores no trabalho citado apresenta uma maneira empírica de chegar A frase, em sueco, é “Nån av mammorna hann lämna honom”, e uma tradução aproximada seria “Algumas das mães puderam deixá-lo”. 2 542 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 a um valor para k utilizando um corpus de gravações. A presente seção apresenta os princípios fundamentais dessa metodologia. Uma vez que amostras de fala reais sempre apresentarão alguma variabilidade, é preciso estimar o valor de F0 que corresponderia a um contorno perfeitamente monotônico considerando-se dados naturais. Essa estimativa é feita por meio da aplicação da técnica de regressão linear. Para tanto, é preciso dispor de uma série de pares de valores <média, desvio padrão>, extraídos de um corpus de fala natural. Traunmüller e Eriksson recorreram à fala atuada, em razão de esse estilo de enunciação possibilitar eliciar o mesmo conteúdo linguístico sob diferentes condições paralinguísticas, que induzem a produção de variabilidade nos contornos de F0. Por meio da distribuição dos dados no plano cartesiano formado pelas dimensões média e desvio-padrão, a técnica de regressão linear possibilita estimar o valor que a média de F0 teria se o desvio-padrão fosse nulo, o qual corresponderá ao valor de base para aquele falante. A aplicação da regressão linear estima a inclinação da reta que melhor descreve a relação linear entre os pontos presentes no plano. Se usarmos a equação y = a·x + b para descrever essa reta, então a inclinação corresponde ao parâmetro a, y corresponde aos valores de desvio padrão, e x, aos valores da média de F0. O valor de base corresponderia ao valor médio de F0 para o qual o desvio padrão seria nulo, o que corresponderia, linguisticamente, à F0 que um falante produziria numa fala hipotética perfeitamente monotônica, não inluenciada pelos diversos fatores que produzem variação em seu valor. Dada a reta estimada pela análise de regressão linear, o valor de base (Fb), isto é, o ponto em que a linha de regressão cruza a linha horizontal y = 0 pode ser obtido pela expressão Fb = −b/a. Assumindo que Fb é um valor que se aproxima do limite inferior da gama de valores de F0 produzida pelo falante e que a distribuição dos valores de F0 pode ser razoavelmente aproximada por uma distribuição normal, podemos propor a expressão Fb = Fmédia − kσ para determinar o valor de Fb. Substituindo Fb, Fmédia e σ pelos valores obtidos empiricamente na amostra analisada, obtém-se k. Esse valor de k pode ser usado na expressão proposta anteriormente para determinar o valor de base de qualquer amostra de F0. Mesmo sendo derivado com base em dados de apenas um falante, os autores sugerem que o valor da constante k obtido dessa maneira deve, em princípio, funcionar bem para encontrar o valor de base em amostras de fala de qualquer falante em qualquer língua. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 543 A igura 2 é uma representação esquemática das informações da regressão linear relevantes para a aplicação da metodologia de Traunmüller e Eriksson. Na igura, os pontos azuis são hipotéticos pares de valores <média, desvio-padrão> coletados em um corpus, o quadrado vermelho está localizado no ponto que corresponde à média das médias e à média dos desvios-padrão. A linha azul é a linha de regressão linear estimada a partir dos pontos, a indica o coeiciente de inclinação da reta, b, o ponto em que a reta intercepta o eixo y, e Fb é a localização do valor de base, isto é, o ponto no eixo x (média de F0) quando o desvio-padrão (eixo y) tem valor 0. FIGURA 2 – Representação esquemática das informações da regressão linear relevantes para a aplicação da metodologia de Traunmüller e Eriksson Fonte: Elaborado pelos autores. 3 Materiais e métodos 3.1 Materiais de fala O material de fala usado no experimento vem do corpus coletado no âmbito do projeto internacional “A typology for word stress and speech rhythm based on acoustic and perceptual considerations”, coordenado pelo professor Anders Eriksson da Universidade de Estocolmo, Suécia.3 3 O autores deste trabalho não têm relação com o projeto. 544 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 O corpus compreende dados de sete línguas: alemão, estoniano, francês, inglês britânico, italiano, português brasileiro e sueco. As amostras das línguas individuais foram coletadas por pesquisadores integrantes do projeto em países em que cada uma das línguas é falada. Em virtude da uniformidade dos procedimentos de coleta, o corpus possibilita a comparação interlinguística do fenômeno de interesse em línguas com características diversas. São contempladas seis línguas da família indoeuropeia (três do ramo românico e três do ramo germânico) e uma da família urálica (estoniano). Além da variedade de línguas, outra razão para a escolha desse corpus para uso no projeto é o fato de as amostras de fala variarem em termos do estilo de elocução. A literatura mostra que a variação no estilo de elocução é um dos fatores que causam variabilidade em medidas de longo termo de F0, como a média e o desvio-padrão (ESKÉNAZI, 1993; HOLLIEN; HOLLIEN; JONG, 1997; LLISTERRI, 1992). Essa variabilidade é importante no contexto do presente trabalho porque possibilita a aplicação da regressão linear como método para estimar como o valor médio de F0 varia em função do desvio-padrão, um dos fundamentos da metodologia de Traunmüller e Eriksson ([S.d.]), descrita na seção 2. Três estilos são coletados: entrevista, leitura de frases e leitura de palavras. No estilo entrevista, um entrevistador (em geral um membro da equipe do projeto) fez perguntas ao participante sobre assuntos como trabalho, estudos e outros interesses do entrevistado, visando obter respostas não planejadas e de extensão variável. Para o estilo leitura de frases, um membro da equipe do projeto selecionou frases ditas pelo participante na entrevista, transcreveu-as ortograicamente e pediu que o participante as lesse em voz alta em uma sessão de gravação realizada alguns dias após a entrevista. No estilo leitura de palavras, o procedimento consistiu na escolha de uma palavra de cada frase presente na etapa anterior e na sua apresentação ao participante na forma de uma lista a ser lida. Foram analisadas amostras de fala de dez falantes de cada língua, cinco do sexo masculino e cinco do feminino, uma amostra de cada estilo, totalizando 210 amostras de fala (= 7 línguas ×10 falantes × 3 estilos). 3.2 Extração dos dados A primeira parte da análise consistiu na extração dos valores de F0 de cada uma das 210 amostras de fala do corpus. A extração se deu em duas etapas: na primeira, o contorno de F0 foi extraído por meio do uso de um script do programa Praat (BOERSMA, 2001) escrito pelo primeiro Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 545 autor, que otimiza a escolha dos parâmetros loor e ceiling do algoritmo de extração de F0 do Praat. Essa heurística de otimização, proposta por Hirst (2011), tem o objetivo de diminuir os erros de estimação de F0 mais comuns produzidos pela função To Pitch, baseada na técnica da autocorrelação; na segunda etapa, os arquivos Pitch gerados na fase anterior foram corrigidos manualmente. Nessa fase, um segundo script foi usado para auxiliar a identiicação dos erros não eliminados na etapa anterior. O script identiica duas amostras de F0 sucessivas, separadas por 80 milissegundos ou menos, em que o primeiro valor é 1,5 vezes maior ou menor do que o segundo. Nos pontos do contorno de F0 indicados pelo script como suspeitos de conter erro de extração, o trecho do oscilograma correspondente foi examinado visualmente para que fosse possível decidir se os valores de F0 estimados pelo Praat naquele trecho correspondiam à periodicidade identiicada visualmente na forma de onda. Os valores de F0 foram mantidos na escala física Hertz (Hz) nas análises posteriores. Por conta de características típicas de amostras de F0 mencionadas na Introdução, como o fato de serem frequentemente assimétricas e não se conformarem a uma distribuição normal, é comum que dados de F0 sejam convertidos para uma escala não linear, como a escala de semitons. A decisão de manter os dados na escala Hertz, neste trabalho, foi tomada por uma questão de replicabilidade, uma vez que essa foi a escala usada por Eriksson nos trabalhos realizados no curso “Paralinguistic aspects of speech production and perception”, realizado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas entre os dias 8 e 10 de abril de 2014. Nesse curso, os autores do presente trabalho foram treinados nos aspectos práticos da aplicação da metodologia que Eriksson e Traunmüller apresentam em seu trabalho seminal. Eriksson nos informou em comunicação pessoal que, nos materiais de fala usados no referido curso, a adoção da escala Hertz ou de semitons produz diferenças negligenciáveis nos valores estimados da constante k. 3.3 Veriicação da congruência entre variação na média e no desvio-padrão Na etapa de análise seguinte, um outro script do Praat processou os contornos corrigidos de F0 das 210 amostras, para extrair os valores de média e desvio-padrão de cada um. Esses valores foram usados para veriicar um pressuposto da metodologia dos autores suecos. Para que a técnica de regressão linear possa ter sucesso na estimativa do valor da constante k, é necessário que haja variação nas médias e nos desvios- 546 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 padrão dos três estilos de fala e que a variação no desvio-padrão seja diretamente proporcional à variação na média, isto é, o estilo com maior valor de média deve apresentar também o maior valor de desvio-padrão e vice-versa. Caso isso não ocorra, a reta estimada pela regressão pode ter um coeiciente de inclinação nulo ou negativo, o que resulta em um valor negativo para a constante k. Valores negativos para k não fazem sentido, pois resultariam em valores de base localizados acima da média de F0, contrariando a intuição que fundamenta a proposição do valor de base. FIGURA 3 – Diferenças (em semitons) entre a média e o desvio-padrão dos estilos entrevista e leitura de frases e entrevista e leitura de palavras Fonte: Elaborado pelos autores. A igura 3 mostra um panorama da relação entre a variação nos parâmetros média e desvio-padrão nos três estilos de elocução nas setes línguas do corpus. A igura mostra as diferenças entre os valores da média e do desvio-padrão das amostras de fala tanto do estilo leitura de frases quanto leitura de palavras em relação à média do estilo narrativa para os dez falantes de cada língua. A diferença entre os estilos foi calculada entre os valores de média e desvio-padrão expressos na escala de semitons. Esse procedimento foi adotado para que não houvesse grandes discrepâncias entre os dados dos falantes do sexo feminino e masculino. As falantes do sexo feminino são identiicadas pela cor vermelha, e os masculinos, pela cor azul. Os cinco falantes de cada sexo são identiicados por símbolos Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 547 diferentes, conforme a legenda. Os pontos abaixo da linha horizontal pontilhada correspondem aos casos em que os valores para os estilos leitura de frases ou palavras (indicados por marcas no eixo horizontal) são menores do que os da narrativa para o falante em questão. Os pontos acima da linha correspondem a casos em que o valor do estilo narrativa é menor do que aquele ao qual ele é comparado. A observação da igura 3 mostra que a inluência dos estilos de elocução sobre a variabilidade da média e do desvio-padrão de F0 não é uniforme entre os falantes e entre as línguas. Os falantes m4 do português, m3 do sueco e m1 do inglês são exemplos em que diferenças no desvio-padrão entre os estilos vão na mesma direção das diferenças na média – no caso dos dois primeiros, frases > entrevista e palavras > entrevista e, no caso do último, frases < entrevista e palavras < entrevista. Essa coniguração favorece a aplicação da metodologia de Traunmüller e Eriksson ([s.d.]). Há casos em que a diferença entre os estilos observada na média se dá em sentido oposto no desvio-padrão, como ilustram os falantes f2 do italiano e m4 do estoniano: frases > entrevista e palavras > entrevista nas médias, mas frases < entrevista e palavras < entrevista nos desvios-padrão. No que diz respeito à inluência da língua sobre os valores de média e desvio-padrão de F0, a igura 3 mostra que, no português, o estilo entrevista tem médias e desvios-padrão maiores do que os outros dois estilos. No francês e no italiano, por outro lado, predominam casos em que o estilo entrevista tem as médias mais baixas, embora esse padrão não se relita no desvio-padrão. A tabela 1 apresenta a porcentagem de falantes em cada língua cuja variação de desvio-padrão é diretamente proporcional à da média. Para esse cálculo, as comparações entrevistafrases e entrevista-palavras foram agrupadas. A inspeção da tabela conirma que o português foi a língua na qual a estratégia de manipulação do estilo de elocução foi mais bem-sucedida no sentido de produzir dados adequados à aplicação da metodologia a ser testada. Entre os estilos, a porcentagem é de 57% tanto nas comparações entrevista-frases quanto nas comparações entrevista-palavras. Entre os sexos, a porcentagem é de 51% para as mulheres e 63% para os homens. Os dados de todas as línguas foram agrupados para a realização do cálculo nas comparações entre estilos e sexos. 548 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 TABELA 1 – Porcentagem de falantes cuja variação entre a média e o DP se dá no mesmo sentido Língua Alemão Estoniano % 60 55 Francês Inglês Italiano Português Sueco 55 55 55 75 60 Fonte: Elaborada pelos autores. Considerando todas as 140 diferenças pareadas (sexo e língua agrupados), os 60 casos de incongruência entre a variação na média e no desvio-padrão dividem-se igualmente entre as comparações frasesentrevista e palavras-entrevista. Em 82% dos casos em que não houve congruência, isso se deveu ao fato de o estilo entrevista apresentar média menor do que o outro estilo do par, embora seu desvio-padrão fosse o maior. O português apresenta o maior índice de congruência. Em uma publicação que analisa o mesmo corpus (ARANTES; LINHARES, 2017) e procura mostrar o efeito da língua, estilo de elocução e sexo dos falantes sobre descritores estatísticos de longo termo de F0, observa-se que o português é a única língua na amostra para a qual o estilo entrevista teve valores de média estatisticamente maiores do que os outros estilos. Estoniano, francês e italiano mostram a tendência inversa, signiicativa do ponto de vista estatístico. Em termos do desvio-padrão, por outro lado, o estilo entrevista apresenta valores mais altos do que os demais estilos, e essa diferença é estatisticamente signiicativa em todas as línguas. Uma das explicações para a incongruência entre o comportamento da média e do desvio-padrão, especialmente o caso em que a média da entrevista não é a maior entre os estilos, mas o desvio-padrão é, pode ser a presença de registro vocal não modal nas amostras de fala. A igura 4 mostra o histograma dos valores de F0 da amostra do estilo entrevista da falante f2 do italiano. Os valores de F0 estão expressos na escala OMe (Octave Median), proposta por De Looze e Hirst (2014). Os valores de F0 em Hz (fHz) são transformados para a escala OMe (fOMe) por meio da fórmula fOMe = log2(fHz/fmed), onde fmed é o valor da mediana de F0 do falante, estimada com base em todos os valores presentes no contorno Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 549 a ser convertido.4 O histograma indica que a amostra de F0 é bimodal.5 A parte da distribuição centrada no valor -1 está uma oitava abaixo da mediana, que para essa falante é 207 Hz. A inspeção do histograma ajuda a entender que a bimodalidade tem como efeito baixar a média da amostra (183 Hz para o contorno todo, 228 Hz excluindo da amostra de F0 os valores abaixo de -0.35 OMe), mas aumentar seu desvio-padrão (48 Hz se toda a amostra for considerada, 25 Hz se apenas os valores acima de -0.35 OMe forem considerados). No caso dessa falante, quase 38% de todos os valores de F0 da amostra estão bastante abaixo do valor mediano, concentrados em um uma região quase uma oitava abaixo da mediana da amostra completa. FIGURA 4 – Histograma da distribuição de F0 (na escala OMe) da falante italiana f2, estilo entrevista Fonte: Elaborado pelos autores. 4 A utilidade dessa escala está no fato de que ela usa um valor considerado típico para o falante – a mediana – como fator de normalização para todos os valores de um determinado contorno e expressa a variabilidade de F0 em torno do valor de referência em termos de oitavas. Essa operação possibilita identiicar facilmente os valores que estão muito acima ou abaixo do valor da mediana nos histogramas. 5 Bimodal no sentido estatístico e não no sentido de voz bitonal, que apresenta simultaneamente vibrações de duas frequências diferentes. 550 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 3.4 Extração da constante k Para estimar o valor da constante k usando a metodologia de Traunmüller e Eriksson é preciso dispor de uma distribuição de valores de média e desvio-padrão de F0. Esses valores foram gerados a partir dos contornos de F0, cuja extração é descrita na seção 3.2, segundo o procedimento descrito a seguir. Os arquivos de som foram segmentados manualmente para identiicar os trechos de fala, e as marcações foram armazenadas em arquivos TextGrid do programa Praat. Nas amostras do estilo entrevista, foram marcados os trechos de fala entre pausas maiores do que 300 ms. Nos estilos leitura de frases e leitura de palavras, foram marcadas as frases e palavras individuais. Um script do Praat foi desenvolvido para selecionar aleatoriamente trechos marcados no arquivo TextGrid até que a duração acumulada desses trechos atinja pelo menos 60 segundos. O contorno de F0 dos trechos individuais selecionados é concatenado, e a média e o desvio-padrão do contorno resultante são calculados. A operação é repetida dez vezes para cada estilo de fala, de modo que são obtidos para cada falante trinta pares <média, desviopadrão>. O procedimento de regressão linear é aplicado aos trinta pontos da amostra, e o valor da constante k é determinado pelos parâmetros relevantes, conforme explicado na seção 2. Dado o componente aleatório no procedimento descrito no parágrafo anterior, decidimos investigar se as estimativas de k para cada falante produzidas por sua aplicação é estável. Para tanto, o procedimento descrito no parágrafo anterior foi repetido dez vezes para cada falante, de modo que para cada um deles obtivemos dez estimativas para o valor de k. 4 Resultados e discussão A igura 5 mostra os gráicos de dispersão e a curva de regressão linear ajustada aos dados dos 10 conjuntos coletados para o falante f1 do português. É possível ver que, apesar de haver alguma variabilidade, a distribuição dos dados em cada gráico de dispersão é bastante similar, o que indica que a estimativa de k é estável para esse falante em particular. Os valores de k variam entre 0,73 e 0,84, com coeiciente de variação de 0,4%. Os valores altos do coeiciente de determinação (r2) da regressão linear – entre 0,88 e 0,95 – indicam um bom ajuste da reta em relação aos pontos. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 551 FIGURA 5 – Gráicos de dispersão (média e desvio-padrão da F0 em Hz) com reta de regressão linear superposta de 10 amostras da falante brasileira f1 Fonte: Elaborados pelos autores. Em contraste, a igura 6 ilustra o caso de uma falante, f2 do português, cujo padrão de variação da média e do desvio-padrão não é adequado à aplicação da metodologia de estimação da constante k. É possível observar que a reta de regressão ora tem inclinação positiva (repetições 1 e 6, por exemplo), ora, inclinação negativa (repetições 3 e 7, p.e.) e, em alguns casos, aparenta ter inclinação nula (repetição 9). Conforme é possível observar na igura 3, a falante apresenta diferenças na média entre os estilos (entrevista maior do que leitura de frases e palavras), embora o desvio-padrão seja basicamente o mesmo para os três estilos. Essa característica não faz dessa falante uma boa candidata à aplicação da metodologia de estimativa de k por meio da análise de regressão. Podemos ver isso na imensa variabilidade dos valores de k que a técnica estima para esse falante: mínimo de -11,36 e máximo de 38,89, com coeiciente de variação de 140%. Os valores de r2 são bastante baixos, variando entre 0,002 e 0,26. 552 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 FIGURA 6 – Gráicos de dispersão (média e desvio-padrão da F0 em Hz) com reta de regressão linear superposta de 10 amostras da falante brasileira f2 Fonte: Elaborados pelos autores. A igura 7 mostra a distribuição dos valores da constante k estimados para as sete línguas do corpus. Os falantes estão dispostos no eixo horizontal, e os valores estimados para a constante k aparecem no eixo vertical. Cada ponto corresponde a uma estimativa do valor de k. Em todas as línguas há falantes, como f2 do português, para os quais a aplicação da metodologia resulta em valores de k negativos, que não fazem sentido e são omitidos. O número de falantes que se enquadram nesses casos variou entre um no italiano e quatro no francês e no estoniano.6 O valor médio de k para a amostra total é 2,24 com intervalo de coniança de 95% em torno da média de ± 0,13. A tabela 2 lista a média, o intervalo de coniança em torno da média e o coeiciente de variação das estimativas do coeiciente k para cada língua. A título de comparação, podemos observar que, nos dados mostrados na igura 2 de Traunmüller e Eriksson ([s.d.], p. 8), três dos dez falantes não apresentam variação congruente entre média e desvio-padrão de F0, uma proporção semelhante à que observamos nas amostras analisadas aqui. 6 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 553 FIGURA 7 – Valores da constante k em função dos falantes e da língua Fonte: Elaborado pelos autores. 554 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 TABELA 2 – Média, intervalo de coniança de 95% e coeiciente de variação da constante k para cada língua Língua Média Intervalo de coniança CV (%) Alemão 2,8 ± 0,32 47 Estoniano 2,14 ± 0,27 48 Francês 2,23 ± 0,4 72 Inglês 1,68 ± 0,36 82 Italiano 2,71 ± 0,43 69 Português 1,54 ± 0,17 48 Sueco 2,48 ± 0,3 51 Fonte: Elaborada pelos autores. Para estabelecer a signiicância da variável independente língua sobre o valor de k, recorremos à aplicação de um teste estatístico de hipótese. A amostra não cumpre o pressuposto da homogeneidade de variância, necessário para o uso de um teste paramétrico, conforme testado pelo teste Fligner-Killeen: [Χ2 (6) = 17,3 p < 0,01]. O teste não paramétrico Kruskal-Wallis foi usado no lugar da análise de variância e indica um efeito estatisticamente signiicativo do fator língua sobre o valor médio de k [Χ2 (6) = 77 p < 0,001]. Análise das comparações pareadas indica que o português e o inglês, as línguas com os menores valores médios de k, formam um grupo homogêneo. As demais línguas não se agrupam de nenhuma maneira particular. Os valores do português e do inglês são os que mais se aproximam dos valores pontuais 1,5, usado em Traunmüller e Eriksson ([s.d.]), e 1,47, sugerido por Lindh e Eriksson (2007). A maioria das médias concentra-se em uma faixa muito próxima à indicada por Traunmüller e Eriksson ([s.d.]), que vai de 1,1 a 2. Considerando o limite inferior dos intervalos de coniança em torno da média, alemão, italiano e sueco icam acima do limiar de 2. Na igura 8, apresentamos os valores de r2, estimados nas dez amostras de cada falante, agrupados por língua. Os falantes estão dispostos no eixo horizontal e os valores de r2 no eixo vertical. Quanto mais próximo de 1 é o valor de r2, melhor é o ajuste da reta estimada por meio da técnica de regressão linear aos dados da amostra. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 FIGURA 8 – Valores do coeiciente de determinação (r2) das análises de regressão linear em função dos falantes e da língua Fonte: Elaborado pelos autores. 555 556 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 Como é possível observar, o sueco e o italiano são as línguas que apresentam as maiores proporções de falantes com valores de r2 acima de 0,75, que indica um bom ajuste da reta estimada através da técnica de regressão linear. A inspeção conjunta das iguras 7 e 8 sugere que os falantes que apresentam valores baixos de r2 tendem a apresentar maior variabilidade nos valores de k. A correlação entre o valor médio de r2 por falante e o desvio-padrão de k calculado por falante é de -0,74, o que indica uma relação forte entre as duas variáveis. Uma análise de regressão simples foi usada para predizer os valores médios de r2 com base nos valores médios de desvio-padrão de k. Uma equação de regressão signiicativa foi encontrada [F(1, 47) = 58,7 p < 0,001], com coeiciente de determinação (r2) de 0,54. O aumento de uma unidade de desvio-padrão no valor de k implica redução de aproximadamente 40% no r2 da regressão linear. A amostra de valores de k foi analisada por meio da razão F (F-ratio, em inglês) de maneira semelhante à empregada por Nolan(NOLAN, 1993, 2002). O propósito é analisar a variabilidade da estimativa de k considerando dois pontos de vista, os falantes e as línguas, e estabelecer a relação entre a variabilidade intrafalante e interfalante, de um lado, e a variabilidade intralinguística e interlinguística, de outro. A estatística F expressa numericamente a razão entre a variância das médias dos falantes/ línguas e a média das variâncias dos falantes/línguas. Seguimos aqui as indicações apresentadas em Nolan (2002) para o cálculo da razão F. A chave de interpretação do valor da razão F é que valores menores do que 1 indicam que a variabilidade intrafalante ou intralinguística é maior do que a variabilidade interfalante ou interlinguística. Do ponto de vista dos falantes, a razão F calculada separadamente para cada língua apresenta os seguintes valores: inglês (9,364), estoniano (1,037), francês (6,169), alemão (19,111), italiano (5,631), português (3,683), sueco (13,178) e média geral 8,31. Esses resultados sugerem que a variabilidade interfalante é maior do que a variabilidade intrafalante, isto é, os diferentes falantes em cada língua do corpus, com a possível exceção dos falantes estonianos, variam mais entre si do que variam relativamente a si mesmos. A inluência dos falantes sobre as estimativas de k não é surpresa, uma vez que já assinalamos que nem todos os falantes produzem dados que permitem a aplicação da técnica de regressão linear. Do ponto de vista das línguas, a razão F tem o valor de 0,127, que indica que a variabilidade intralinguística das estimativas de k é Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 557 maior do que a variabilidade interlinguística. Esse resultado sugere que a variabilidade das estimativas de k é relativamente uniforme entre as línguas analisadas. Interpretamos isso como evidência de robustez, uma vez que a metodologia produz resultados similares em termos de variabilidade a despeito das diferenças existentes entre as línguas presentes no corpus estudado. 5 Esforço vocal e frequência fundamental O modelo que embasa a proposição da metodologia de estimação do valor da constante k testado neste trabalho supõe que o nível de esforço vocal se mantenha estável e que a variação na F0 seja motivada por outros fatores. Em parte dos experimentos descritos em Traunmüller e Eriksson ([s.d.]), a simulação de diferentes graus de envolvimento ou atitude por parte de atores foi a estratégia usada para tentar obter mudanças na F0 e controlar o nível de esforço vocal. No presente trabalho, elegemos uma estratégia para induzir variação na F0, a mudança no estilo de elocução, que possibilita um grau de controle menor do que o uso de atores em uma situação de atuação. A variação em F0 devida aos diferentes estilos de elocução pode interagir de forma complexa com outros fatores, entre os quais, o aumento no esforço vocal. É possível, portanto, que, em nossos dados, parte da variação observada na média e no desvio-padrão de F0 dos diferentes estilos não seja causada por um ajuste ativo, mas seja uma consequência indireta de variações no esforço vocal. Com a inalidade de saber se os níveis de esforço vocal dos três estilos de fala presentes no corpus afetam a F0, izemos uma análise em que correlacionamos os valores do esforço vocal com os valores de média e desvio-padrão dos contornos de F0. Para uma revisão da literatura a respeito da inluência do esforço vocal sobre a F0 consultar Jessen, Koster, Gfroerer ( 2005). Adotamos como medida para detectar aumento no esforço vocal a diminuição na inclinação espectral calculada com base no espectro médio de longo termo (long-term average spectrum, em inglês, LTAS, em forma abreviada). Para a obtenção do LTAS com base na análise dos arquivos de áudio do corpus, usamos o algoritmo de extração proposto em Boerma; Kovacic (2006) e implementado no Praat na função To Ltas (pitchcorrected). A inclinação do espectro LTAS foi calculada relativamente a duas bandas. A inferior compreendeu valores de frequência entre 0 e 1,5 vezes o valor da F0 média no contorno correspondente ao arquivo de 558 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 áudio, e a banda superior incluiu frequências entre aquele valor e 5 kHz. Em seguida, foram realizados separadamente testes de regressão linear simples para predizer os valores de média ou desvio-padrão da F0 com base nos valores do esforço vocal (inclinação do espectro de LTAS). Os parâmetros mais relevantes para a presente análise são a inclinação da reta de regressão e o coeiciente de determinação (r2), isto é, a porcentagem de variância dos dados de média ou desvio-padrão explicada pela variância no esforço vocal. Os dados de falantes do sexo feminino e masculino foram analisados separadamente. Os dados das diferentes línguas foram analisados em conjunto e também separadamente. Não foram encontradas evidências fortes nos dados do corpus entre mudanças no esforço vocal e mudanças na média de F0. A inclinação do modelo de regressão não é signiicativamente diferente de zero para nenhum dos dois sexos. Os valores de r2 são 0,012 e 0,007 para o modelo dos dados dos falantes femininos e masculinos, respectivamente. A análise separada das línguas mostra que a inclinação da reta de regressão só é signiicativamente diferente de zero no caso dos falantes do francês – inclinação positiva de 2,5 (r2 = 0,5) para mulheres e 1,6 (r2 = 0,26) para homens – e do estoniano – inclinação é negativa para os falantes femininos (-4,6, r2 = 0,21) e positiva para os masculinos (1,69, r2 = 0,24). Esses resultados indicam que o impacto do esforço vocal sobre as mudanças na F0 é bastante limitado e, no caso do estoniano, a inluência se dá em direções opostas para falantes femininos e masculinos. O esforço vocal inluencia em alguma medida a variabilidade de F0. O aumento no esforço vocal parece provocar aumento no desviopadrão, mas apenas nos dados das falantes do sexo feminino. A inclinação do modelo de regressão tem o valor de 0,89 e é signiicativamente diferente de zero, embora o r2 seja baixo (0,12). A análise individual das línguas mostra que, para os falantes masculinos do inglês, a inclinação da reta de regressão é signiicantemente diferente de zero (1,05, com r2 = 0,59). A inclinação da reta de regressão é signiicativamente diferente de zero nos modelos estimados com base nas amostras das falantes do sexo feminino do estoniano (1,87, r2 = 0,36) e do francês (1,65, r2 = 0,6). O francês é a língua em que o aumento no esforço vocal parece inluenciar de maneira mais consistente o aumento no valor típico e a variabilidade da F0. No estoniano, a inluência atua de maneira heterogênea nas falantes do sexo feminino: níveis maiores de esforço vocal têm o efeito de abaixar a média e aumentar o desvio-padrão. Em Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 559 termos da magnitude do efeito, as inclinações da reta de regressão não nulas do ponto de vista estatístico tendem a não ser muito elevadas, concentrando-se entre 0,9 e 2,5. Uma análise de variância de dois fatores tendo como variáveis independentes o sexo dos falantes e os estilos de fala e como variável dependente a inclinação do espectro de LTAS mostra um efeito signiicativo (considerando um nível de rejeição da hipótese nula de 5%) do sexo [F(1, 204) = 14,1 p < 0,001] mas não do estilo de fala [F(2, 204) = 2,3 ns] ou da interação entre os dois [F(2, 204) = 2,3 ns]. A inclinação média do espectro LTAS das falantes do sexo feminino é -10,06 dB e a dos falantes masculinos é -8,16 dB. A inclinação média dos diferentes estilos apresenta-se da seguinte forma: entrevista (-9,68 dB), leitura de frases (-9,75 dB) e leitura de palavras (-10,75 dB) para os falantes do sexo feminino e entrevista (-7,21 dB), leitura de frases (-8,44 dB), leitura de palavras (-8,82 dB) para os falantes do sexo masculino. Os resultados, em seu conjunto, sugerem que há uma correlação entre o esforço vocal e a F0, embora limitada a duas línguas entre as sete presentes no corpus. Os resultados da análise de variância, no entanto, indicam que a variação no esforço vocal é estável entre os estilos de fala. Do ponto de vista do desenho do presente experimento, esse resultado é importante, já que indica que a variação observada em F0 entre os três estilos de fala é, em boa medida, independente da variação no esforço vocal observada nos dados. Jessen e colegas (2005) notam que os falantes podem diferir em sua resposta quando apresentados a condições que induzem o aumento no esforço vocal, e que, mesmo em casos em que há um aumento mensurável acusticamente no esforço, o impacto disso na F0 pode ser variável entre eles. Não é possível elaborar uma explicação para a diferença signiicativa no nível de esforço vocal observada entre os sexos, detectada nos dados de nosso corpus com base nas resenhas e dados apresentados em Jessen; Koster; Gfroerer ( 2005). 6 Sensibilidade do valor de base em relação à constante k O valor estimado para a constante k varia entre os falantes de uma mesma língua e entre línguas diferentes. Por isso, é importante ter uma ideia da variabilidade causada na estimativa do valor de base pelo uso de diferentes valores possíveis de k. Para esse im, izemos uma simulação em que o valor de k foi sistematicamente variado, e o valor 560 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 de base correspondente foi calculado. Utilizamos nessa simulação os contornos de F0 de todos os falantes e todos os estilos da amostra de dados do português brasileiro. Para cada contorno, o valor de base da F0 foi calculado por meio da fórmula Fb = Fmédia - kσ, variando o valor de k entre 0,8 e 2,2, com passos intermediários em 1,27 e 1,73. Os valores mínimo e máximo estão próximos aos limites da faixa de variabilidade encontrada nas análises reportadas na seção 1. A igura 9 mostra os resultados dessa variação, separados pelos estilos de fala. O sexo dos falantes é codiicado pela cor, e os diferentes falantes, por símbolos diferentes. No eixo horizontal, estão os quatro valores de k testados e, no eixo vertical, o valor de base para cada falante, em Hertz. FIGURA 9 – Variação do valor de base (Hz) em função do valor da constante k (formulação original) Fonte: Elaborado pelos autores. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 561 Replicamos o teste com a formulação alternativa do valor de base sugerida por Lindh; Eriksson (2007), que estima aquele valor como um determinado quantil da amostra de F0. A constante k pode ser entendida como a indicação de quantos desvios-padrão abaixo do valor da média está localizado o valor de base. Se assumirmos que os valores de F0 seguem uma distribuição normal centrada em zero e com desviopadrão unitário, a função pnorm(-k) da linguagem de programação R retorna o valor cumulativo de probabilidade da distribuição normal compreendido no intervalo [-∞, -k]. Esse valor, que chamaremos de q, pode ser interpretado como o quantil que corresponde ao valor de base. Seguindo esse método, o valor de base foi estimado como sendo os quantis 0,01, 0,04, 0,1 e 0,21. Na formulação alternativa do valor de base, Lindh e Eriksson (2007) sugerem o uso do quantil 0,074 para a determinação do valor de base. A tabela 3 a seguir mostra os valores de k selecionados para a simulação e o correspondente valor de q. TABELA 3 – Quantis correspondentes ao valor de base e sua relação com os valores de k Valor de k Quantil (q) correspondente ao Fb 0,8 0,21 1,27 0,1 1,73 0,04 2,2 0,01 Fonte: Elaborada pelos autores. A igura 10 mostra os resultados da variação do valor de base segundo a formulação alternativa, separados pelos estilos de fala. O sexo dos falantes é codiicado pela cor, e os diferentes falantes são codiicados por símbolos diferentes. No eixo vertical está o valor de base, em Hertz, para cada falante, e, no eixo horizontal, os valores do quantis que correspondem à localização do valor de base (conforme mostrado na tabela 3). 562 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 FIGURA 10 – Variação do valor de base (Hz) em função do quantil (formulação alternativa) Fonte: Elaborado pelos autores. Para os propósitos em que o uso do valor de base pode ser mais útil, robustez não signiica que os valores retornados pela fórmula sejam estritamente invariantes para um mesmo falante, mas sim a preservação das diferenças entre os valores calculados pela fórmula para os diferentes falantes. A tendência geral, dedutível por meio da fórmula, é que quanto maior k, menor será o valor de Fb. Observe-se o painel central da igura 9, que corresponde à leitura de frases. Ali, os valores de Fb obtidos quando 563 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 k é igual a 0,8 estabelecem uma ordenação entre os falantes: f1 > f5 > f3 > f2 > f4 > m2 > m3 > m5 > m1 > m4. Apesar de haver diferenças nos valores absolutos do Fb para cada falante, a ordenação observada anteriormente permanece inalterada quando o valor de k sobe para 1,27; uma única alteração aparece quando k é igual a 1,73 (m3 = m5). Finalmente, quando k é igual a 2,2 há uma inversão (m5 > m3). Pelo menos no estilo leitura de frases, veriicamos que o cálculo do valor de base segundo a formulação original é relativamente robusto em relação às possíveis variações de k no sentido que deinimos anteriormente: a ordenação dos dez falantes em termos de seu valor de base ica quase inalterada, não importando qual seja o valor deinido para k. Considere-se, agora, para o painel central da figura 10: o mesmo tipo de análise nos leva a observar que, para parte dos falantes, a ordenação tende a permanecer estável a despeito das mudanças no quantil que corresponde ao Fb, com exceção dos falantes f2, f5 e m3, que, em algum momento, apresentam mudança brusca na passagem de um valor de quantil a outro. Para poder quantiicar o grau de robustez das duas formulações do cálculo de Fb, a original e a alternativa, além dos diferentes estilos de fala, determinamos, para cada estilo e para cada valor de k ou q, a distância euclidiana entre os valores de Fb de todos os falantes, tomados em pares. O desvio-padrão das distâncias será então tomado como um indicador de robustez, considerados os diversos agrupamentos de variáveis independentes (formulação do valor de base, estilo de fala e sexo dos falantes e os valores de k e q). Menores valores de desvio-padrão indicarão maior robustez. TABELA 4 – Desvio-padrão (Hz) das distâncias entre o valor de base dos falantes, agrupado pelos estilos de fala Estilo de fala Original Alternativa Entrevista 35,3 36,8 Frases 30,6 32,8 Palavras 33,5 33,5 Fonte: Elaborada pelos autores. 564 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 TABELA 5 – Desvio-padrão (Hz) das distâncias entre o valor de base dos falantes, agrupado pelo sexo dos falantes Sexo do falante Original Alternativa Feminino 21,2 30,6 Masculino 18,5 14,3 Fonte: Elaborada pelos autores. TABELA 6 – Desvio-padrão (Hz) da distância entre o valor de base dos falantes, agrupado pelos valores de k e q Valores de k DP Valores de q DP 0,8 30,4 0,21 32,2 1,27 30,7 0,1 32,5 1,73 31,3 0,04 33,8 2,2 33 0,01 33,2 Fonte: Elaborada pelos autores. TABELA 7 – Desvio-padrão (Hz) da distância entre o valor de base dos falantes, agrupado pela interação entre estilos de fala e sexo dos falantes Estilo de fala Entrevista Frases Palavras Sexo do falante Original Alternativa Feminino 24,8 37,2 Masculino 20,9 13,6 Feminino 13,1 27 Masculino 16 16 Feminino 19 24,9 Masculino 14 11,8 Fonte: Elaborada pelos autores. As duas formulações parecem ter o mesmo grau de robustez quando se compara o fator estilo de fala, uma vez que o desvio-padrão das distâncias entre os falantes não varia muito em razão dessa variável. O sexo dos falantes apresentou uma relação de interação complexa: a formulação original parece ser mais robusta para as mulheres, e a alternativa, para os Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 565 homens; além disso, de forma geral as duas formulações parecem mais robustas quando aplicadas aos dados dos falantes masculinos. A Tabela 6, que mostra a interação entre estilo de fala e sexo do falante mostra que a diferença de robustez mais pronunciada entre os sexos se dá na formulação alternativa, em especial no estilo entrevista. Observando-se a figura 10, percebe-se que alguns falantes apresentam comportamento mais discrepante em relação aos demais em termos da mudança no valor de base em razão da variação no valor do quantil associado a ele. No estilo entrevista, os falantes f3, f4, f5 e m3 têm mudanças mais abruptas. No estilo leitura de frases, os falantes f2, f5 e m3 devem ser destacados e, no estilo leitura de palavras, os falantes f2 e f5. A observação dos histogramas dos contornos produzidos por esses falantes em cada estilo indica o uso sistemático do registro não modal de vozeamento, semelhante ao padrão mostrado na igura 4. Por conta disso, quando o valor do quantil que corresponde ao valor de base assume valores mais baixos, como 0,04 ou 0,01, o Fb estimado começa a estar localizado possivelmente na região de registo não-modal, bem mais baixo do que os valores típicos do registro modal. 6 Conclusão O principal objetivo do presente trabalho é testar a robustez da metodologia desenvolvida e apresentada por Traunmüller e Eriksson ([S.d.]) para a determinação do valor de base da F0. O valor de base seria característico de cada falante, em tese invariante ou pelo menos bastante robusto a diversos fatores que afetam a F0 se determinado com base em uma amostra suicientemente extensa. Na proposta dos autores, a fórmula para a determinação do valor de base depende do valor da média e desvio-padrão do falante, além de uma constante k, cujo valor é determinado empiricamente. No trabalho mencionado anteriormente, os autores apresentam uma metodologia para a estimação da constante, baseada na aplicação de regressão linear a dados de média e desvio-padrão de F0. Nos experimentos descritos pelos autores, lança-se mão de fala produzida por atores, que simulam o efeito de fatores paralinguísticos, como, por exemplo, diferentes graus de envolvimento em relação aos enunciados produzidos. Esse recurso é usado para produzir enunciados idênticos do ponto de vista segmental, mas variáveis do ponto de vista da média e do desvio-padrão da F0. Uma característica fundamental que 566 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 as amostras de F0 precisam exibir para que a metodologia seja aplicada é proporcionalidade direta entre a variabilidade nas médias e nos desviospadrão, isto é, que as amostras com maior média sejam também as que apresentem os maiores desvios-padrão. No presente trabalho, testamos se o uso de diferentes estilos de elocução de fala não atuada é capaz de produzir o tipo de variabilidade na média e no desvio-padrão dos contornos de F0 necessário para a aplicação da metodologia para estimar o valor da constante k. Além desse fator, testamos ainda o papel de falantes e línguas como fonte de variabilidade na estimação de k. Para tanto, nossa investigação analisa dados produzidos por 70 falantes de sete línguas diferentes. Os resultados reportados aqui indicam que a estratégia de usar diferentes estilos de elocução para conseguir variabilidade na média e no desvio-padrão dos contornos de F0 produz padrões que possibilitam a aplicação bem-sucedida da metodologia. O uso de registro não modal, bastante expressivo em termos quantitativos no caso de alguns dos falantes do corpus, no entanto, é um fator que parece em parte explicar os casos em que mudanças na média e no desvio-padrão não estão correlacionados. Em estudos posteriores pode ser interessante propor um critério objetivo para eliminar dos contornos os trechos de vozeamento não modal e veriicar o impacto dessa eliminação nos resultados. Casos discutidos na seção 5, em que o nível de esforço vocal é uma fonte de variabilidade nos níveis médios e/ou desvio-padrão de F0, também podem ser a razão para as incongruências que diicultam a aplicação da metodologia testada aqui. De modo geral, os valores de k estimados com base nas amostras de fala não atuada são bastante próximos àqueles que os autores suecos reportam em seu trabalho e que foram derivados de amostras de fala atuada. Portanto, pode-se dizer que a técnica é robusta ao uso de fala não atuada. Os resultados apresentados na seção 4 mostram que os valores da constante k estimados usando a metodologia de Traunmüller e Eriksson são, em alguma medida, dependentes dos falantes. Não consideramos que essa dependência em relação aos falantes seja uma limitação severa da metodologia. Como sua aplicação depende da existência de uma dependência linear entre variação da média e do desvio-padrão de F0, esse pressuposto precisa ser atendido. As diferenças observadas entre falantes podem ser associadas em grande parte aos casos em que a regressão linear tem um valor de r2 baixo e ocorrem nos dados dos falantes Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 535-570, 2018 567 com maior prevalência de uso do registro não modal. A variabilidade no comportamento dos falantes pode estar relacionada com o fato de a estratégia de usar estilos de elocução diferentes para induzir mudanças na média e no desvio-padrão da F0 não possibilitar, por seu caráter mais naturalístico, um controle tão grande da produção vocal como o que é possível conseguir por meio do uso da fala atuada. Em termos da robustez interlinguística, os resultados indicam a existência de diferenças na média de k entre as línguas, que, embora signiicativas do ponto de vista estatístico, não são de grande extensão. O valor médio de k de quatro das sete línguas está dentro do intervalo [1,1 2] relatado por Traunmüller e Eriksson ([s.d.]). Além disso, os resultados da análise da razão F reportados na seção 4 mostram que a variabilidade interlinguística das estimativas de k não é maior do que a variabilidade intralinguística. Finalmente, os resultados da simulação apresentados na seção 6 mostram que o próprio valor de base é uma medida que é bastante robusta às variações no valor da constante k. Dado um grupo de falantes, sua ordenação baseada no valor de base é pouco alterada pelo valor de k que se escolha usar. Uma vez que um dos usos mais interessantes para o valor de base é como um estimador do valor típico ou característico de um falante, essa quase invariância nas distâncias entre o valor de base dos falantes é uma propriedade interessante. Agradecimentos Os autores agradecem ao professor Anders Eriksson, da Universidade de Estocolmo, pela cessão do corpus analisado no trabalho e por discussões a respeito dos resultados. A segunda autora agradece à FAPESP pela Bolsa de Iniciação Cientíica (processo 2014/21161-5). Referências ARANTES, Pablo; LINHARES, Maria E. N. Efeito da língua, estilo de elocução e sexo do falante sobre medidas globais da frequência fundamental. Letras de Hoje, PUCRS, v. 52, n. 1, p. 26-39, 2017. Doi: http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2017.1.25419 BOERSMA, Paul. Praat, a system for doing phonetics by computer. 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Berlin: Springer-Verlag, 1983. p. 53-66. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 Desenvolvimento e validação do instrumento de compreensão de expressões idiomáticas Idioms comprehension instrument: development and validation Maity Siqueira Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil maity.siqueira@ufrgs.br Daniela Fernandes Marques Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil daniemarques@hotmail.com Resumo: As expressões idiomáticas são um tipo recorrente de linguagem igurada, fundamental para o entendimento de diferentes tipos de discurso. Este artigo o objetivo de apresentar o processo de desenvolvimento e de validação de um instrumento de compreensão de expressões idiomáticas. O trabalho foi desenvolvido pela perspectiva teórica da Linguística Cognitiva e estruturado conforme as seguintes etapas, consagradas em Psicometria: procedimentos teóricos, experimentais e analíticos. Foram consideradas as seguintes dimensões das expressões idiomáticas utilizadas nos itens: familiaridade, estrutura sintática, complexidade semântica e composicionalidade. A primeira foi veriicada por meio de um teste psicolinguístico, e as outras foram controladas. O estudo resultou em uma nova ferramenta de avaliação da compreensão de linguagem igurada, que poderá ser utilizada com indivíduos de diferentes faixas etárias, de populações clínicas e não clínicas. Palavras-chave: expressões idiomáticas; linguagem figurada; desenvolvimento de teste psicolinguístico; validação de teste psicolinguístico. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.571-591 572 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 Abstract: Idioms are a recurring type of figurative language, fundamental to the understanding of different discourse types. This article aims to present the development and validation process of an idiom comprehension test. The study was conducted considering the Cognitive Linguistics approach and was organized according to three well stablished steps in Psychometrics: theoretical, experimental and analytical procedures. The following dimensions of idioms were considered: familiarity, syntactic structure, semantic complexity and compositionality. The irst was veriied by a psycholinguistic test and the others were controlled. The study resulted in a new assessment tool of igurative language comprehension, which can be used with individuals from different age groups, in clinical and non-clinical populations. Keywords: idioms; igurative language; psycholinguistics’ development test; psycholinguistics validation test. Recebido em 10 de dezembro de 2016. Aceito em 21 de abril de 2017. 1 Introdução A compreensão de expressões idiomáticas (EI), fenômeno da linguagem igurada, é frequente nas nossas trocas conversacionais diárias, em diversos tipos de discurso. A habilidade de compreender expressões iguradas, portanto, é fundamental para que uma pessoa se comunique bem. Considere uma situação em que um amigo diz para o outro “o meu vizinho bateu as botas”. Um falante de português brasileiro que conheça os signiicados das palavras ‘bater’ e ‘botas’, não entenderá o signiicado idiomático da combinação dessas palavras, a menos que já tenha aprendido seu sentido igurado, que é ‘morrer’. Uma vez que se conheça o signiicado de uma expressão, é fácil entender um enunciado que contenha esse tipo de expressão, tanto contextualizado quanto fora de contexto. Deinir o que é uma expressão idiomática, no entanto, não é uma tarefa simples. Na literatura sobre EI são encontradas diferentes deinições, norteadas por diversos enfoques teóricos. As expressões idiomáticas têm sido tradicionalmente deinidas como expressões linguísticas cujo signiicado não pode ser depreendido somente pela soma dos seus constituintes. Entretanto, reduzir o conceito Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 573 de idiomaticidade ao de não composicionalidade, ou seja, à soma do signiicado dos itens lexicais, explica expressões opacas como bater as botas, mas não é suiciente para deinir o fenômeno. A Linguística Cognitiva sugere que outras dimensões, além da composicionalidade, contribuem para a compreensão de uma EI. Gibbs (1994) e Kövecses (2006) defendem a ideia de um continuum de signiicação e sustentam que as EI não são necessariamente arbitrárias e podem ser motivadas, indo de expressões bastante opacas (bater as botas) a outras mais transparentes (cozinhar em fogo brando). Em relação à arbitrariedade das EI, uma das maiores contribuições da Linguística Cognitiva para o estudo desse fenômeno linguístico, na verdade, foi chamar a atenção para o fato de que muitas EI são oriundas de mapeamentos conceituais metafóricos, ou seja, EI não são necessariamente aleatórias. As expressões idiomáticas soltar fogo pelas ventas e dar um gelo, assim como tantas outras expressões do português brasileiro, por exemplo, atualizam linguisticamente a metáfora conceitual INTENSIDADE DE EMOçÃO É CALOR. Expressões oriundas de mapeamento conceituais como esse, de fato, podem apresentar um maior grau de transparência, o que pode ser explicado justamente pelo fato de atualizarem mapeamentos percebidos pelas pessoas (ainda que não necessariamente de modo consciente). Nunberg, Sage Wasow (1994) airmam que a deinição tradicional é principalmente sintática e não contempla aspectos semânticos e pragmáticos do fenômeno. A esse respeito, Cacciari e Levorato (1989) airmam que expressões idiomáticas, quando apresentadas dentro de um contexto, são mais bem compreendidas do que fora dele, uma vez que o contexto tem informações semânticas que auxiliam na inferência do signiicado apropriado das expressões. Cabe ressaltar que o contexto pode ser ainda mais importante para EI opacas e não familiares, das quais o signiicado não pode ser derivado somente da análise semântica das palavras que o compõe (CAIN; OAKHILL; LEMMON, 2005). A deinição operacional aqui adotada parte da perspectiva da Linguística Cognitiva e trata expressões idiomáticas como construções figuradas convencionalizadas, consideravelmente fixas com duas ou mais palavras, que têm uma função primariamente discursiva e que podem apresentar idiossincrasias (LANGLOTZ, 2006). Nessa perspectiva, Langlotz (2006) sistematiza as seguintes dimensões, que servem como parâmetro para a deinição das expressões idiomáticas: o 574 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 status gramatical (grau de convencionalização ou de familiaridade), a forma (complexidade, rigidez sintática, morfossintática e lexical de uma construção) e o signiicado (a não composicionalidade propriamente dita). Esse autor reforça a ideia de haver um continuum nos parâmetros de signiicação, uma vez que propõem que esses parâmetros podem estar mais ou menos presentes em determinadas EI. Talvez seja a grande variedade observada nesses parâmetros o que diiculta a elaboração de uma deinição mais precisa e impede classiicações estanques. A operacionalização desses conceitos nas pesquisas experimentais encontradas sobre o tema tem sido feita com as expressões apresentadas aos participantes em diferentes formatos, em apresentações isoladas, em sentenças ou histórias. Diferentes pesquisadores utilizaram instrumentos com opções de respostas abertas e de múltipla-escolha – estas últimas na forma escrita ou pictórica. A escolha das EI levaram em conta parâmetros (ou combinações de parâmetros) tais como transparência e opacidade (NORBURY, 2004), familiaridade (KEMPLER; SIDTIS; MARCHMAN; BATES, 1999; QUALLS; LANTZ; PIETRZYK; BLOOD; HAMMER, 2004), familiaridade e opacidade (PAPAGNO; TABOSSI; COLOMBO; ZAMPETTI, 2004; PAPAGNO; CAPORALI, 2007), frequência (HILLERT, 2004) e contexto (CAIN; TOWSE; KNIGHT, 2009; CAIN; OAKHILL; LEMMON, 2005; LEVORATO; ROCH; NESI, 2007). Embora a maioria dos estudos tenha referido o cuidado com aspectos citados anteriormente, nenhum deles referiu um cuidado com a validação dos itens antes de sua utilização. No Brasil, encontramos somente uma tarefa para avaliação de expressões idiomáticas, que compõe a Bateria Montreal de Avaliação da Comunicação (FONSECA; SALLES; PARENTE, 2008). Entretanto, nessa bateria, as expressões idiomáticas foram tratadas como metáforas, fenômenos que a Linguística Cognitiva diferencia. As EI utilizadas nos itens da Bateria MAC sob o rótulo de metáfora foram as seguintes: pôr a mão na massa, rodar a baiana, pisar em ovos, chorar sobre o leite derramado. Apesar de existirem instrumentos disponíveis em outras línguas, não há como simplesmente traduzir ou adaptar instrumentos que testem a compreensão de expressões idiomáticas, uma vez que qualquer tratamento dado ao fenômeno deve envolver considerações sobre língua e cultura. Além disso, é importante considerar variáveis como a frequência de uso das expressões idiomáticas averiguadas, a transparência dessas expressões e a diferenciação entre metáforas, metonímias, provérbios e expressões idiomáticas; e inclusão ou não de contexto. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 575 No intuito de possibilitar a avaliação de diferentes tipos de linguagem igurada, está sendo desenvolvido pelo grupo METAFOLIA, do PPG em Letras da UFRGS, o Teste de Compreensão de Linguagem Figurada, composto de tarefas de avaliação que incluem não só expressões idiomáticas, mas também metonímias, metáforas, provérbios e ironia. Uma vez que a linguística cognitiva enfatiza o caráter distinto de cada um desses fenômenos, entende-se que seja necessário avaliá-los separadamente. Este artigo trata exclusivamente da tarefa que envolve o fenômeno das expressões idiomáticas e apresenta as etapas de construção e validação do Instrumento de Compreensão de Expressões Idiomáticas, que fará parte do teste mais abrangente de compreensão da linguagem igurada. Esse instrumento foi desenvolvido tendo como base um teste já validado, O Instrumento de Compreensão de Metáforas Primárias (SIQUEIRA, 2004), considerando o referencial teórico apresentado e seguindo etapas rigorosas já consagradas na área da psicometria, conforme o modelo proposto por Pasquali (2010), baseado em tarefas e métodos especíicos que seguem uma ordem temporal pré-determinada e subsequente. O modelo é composto de três etapas distintas, denominadas procedimentos teóricos, empíricos ou experimentais e analíticos ou estatísticos, conforme descrito no Método, a seguir. 2 Método 2.1 Participantes Esta pesquisa foi constituída por 557 participantes, selecionados por conveniência, considerando todas as fases de coleta de dados. A primeira fase, referente aos procedimentos teóricos, contou com 285 participantes (m=31,7; dp=13,9). A amostra foi composta de alunos e funcionários da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esses participantes preencheram uma escala Likert de familiaridade com as expressões idiomáticas elencadas para o estudo. O tamanho da amostra dessa primeira fase foi calculado considerando os seis itens pesquisados, supondo um percentual de familiaridade de no mínimo 70% na soma das categorias 4 (bastante familiar) e 5 (totalmente familiar) na escala (Anexo I) e uma margem de erro de 5%. A segunda fase, de realização do estudo piloto, contou com 10 participantes adultos (m=36,1 e dp=10,7). Já a terceira fase, de validação 576 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 do instrumento, foi composta de 262 participantes, divididos em três grupos (132 crianças, 58 adolescentes e 72 adultos). As crianças tinham entre 5 anos e 11 anos e 11 meses (m=7,4; dp=1,3), os adolescentes tinham entre 12 anos e 17 anos e 11 meses (m=13,9; dp=1,4), e os adultos eram maiores de 18 anos (m=41,6; dp=15,6). A linha de corte para a classiicação etária foi feita conforme as diretrizes da American Academy of Pediatrics. A seleção da amostra e a coleta dos dados da segunda e terceira fases foram realizadas em escolas e universidades públicas e particulares do município de Porto Alegre. Os grupos de crianças e de adolescentes foram constituídos pelos alunos e o de adultos, pelos pais dos alunos das mesmas escolas, além de alunos e funcionários de uma universidade pública. Como critério de inclusão estabeleceu-se que os participantes deveriam ser falantes nativos de português brasileiro. O critério de exclusão foi a presença de comorbidades sensoriais e/ou cognitivas e de queixa de diiculdade de aprendizagem referidas pela escola, no caso de crianças e adolescentes. 2.2 Procedimentos A construção do instrumento seguiu o modelo preconizado na área da psicometria por Pasquali (2010). Esse modelo é composto de três etapas distintas, denominadas (i) procedimentos teóricos, (ii) empíricos ou experimentais e (iii) analíticos ou estatísticos. Para realização dos procedimentos teóricos, o primeiro passo foi a deinição do objeto de estudo e sua conceitualização, realizada por meio da pesquisa na literatura pertinente. Como o objeto de estudo em questão (a linguagem igurada) não pode ser medido diretamente, foi selecionado, com base em sua deinição teórica (a perspectiva da Linguística Cognitiva) foi selecionado um atributo de interesse (a compreensão de expressões idiomáticas). Ainda revisando a literatura, definiu-se que as expressões idiomáticas são caracterizadas pelas seguintes dimensões: familiaridade, estrutura sintática, complexidade semântica e composicionalidade. Entre essas dimensões, deiniu-se que apenas a da familiaridade precisaria ser veriicada para a elaboração dos itens, uma vez que todas as outras poderiam ser controladas. A estrutura sintática foi controlada por meio da elaboração de sentenças com as seguintes características: (i) apresentam estruturas simples, constituídas por somente uma oração; (ii) estão na voz ativa; (iii) seguem o modelo sujeito-verbo-objeto; (iv) são constituídas Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 577 por sujeito formado por nomes próprios comuns; (v) têm núcleo do sujeito simples e (vi) têm o verbo (transitivo direto) na terceira pessoa do singular. A complexidade semântica foi controlada pela seleção de palavras comuns da língua portuguesa. Todas as palavras utilizadas (por exemplo, gato, chá, tempestade, tomar, comprar e sair), além de bem conhecidas, são palavras facilmente entendidas. Por im, o nível de composicionalidade foi controlado pela seleção de expressões idiomáticas não-composicionais. Uma evidência do caráter não-composicional das expressões selecionadas é o fato de nenhuma das sentenças utilizadas poder ser transformada em voz passiva sem perder o sentido igurado. Com base nessas dimensões, o construto pôde ser operacionalizado, ou seja, pôde ser transformado em itens mensuráveis. Neste estudo, um outro aspecto controlado na seleção dos itens foi a existência de EI derivadas de metáforas conceituais. Partindo da ideia de que um mapeamento metafórico poderia facilitar a compreensão de uma EI – mesmo quando apresentada descontextualizada – só foram consideradas EI que, aparentemente, não são atualizações linguísticas de metáforas conceituais. As possíveis expressões que constituiriam o instrumento foram selecionadas por meio de um brainstorming com sete integrantes do grupo de pesquisa das autoras do estudo. Entre essas expressões, foram pré-selecionadas seis para compor o instrumento, considerando o critério de frequência, as dimensões descritas em expressões não derivadas de metáforas conceituais. A frequência foi determinada pelo maior número de ocorrências encontradas em uma plataforma (Google) de busca na internet. Após essa pré-seleção, a im de corroborar a pertinência dos itens na comunidade linguística, foi elaborada uma escala Likert de familiaridade. A escala continha as seis expressões, seguidas por cinco opções de escolha, em que 1 era “nada familiar” e 5 era “totalmente familiar”. Com base nisso, as expressões foram transformadas em sentenças. Para que tivessem sua compreensão facilitada, foi tomado não só o cuidado de utilizar palavras semanticamente simples, mas de parear gramaticalmente todas as sentenças para que tivessem a mesma estrutura e de compô-las com o menor número possível de palavras. Essas medidas foram observadas considerando possíveis aplicações futuras do instrumento em crianças pequenas e/ou em populações clínicas. Além disso, optou-se por selecionar expressões opacas, não composicionais 578 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 e apresentá-las descontextualizadas, ou seja, em frases que não ajudam o participante a inferir o signiicado igurado das expressões. A frase Alice tomou um chá de cadeira, por exemplo, não remete ao fato de que ela esperou muito). Essa decisão metodológica de construir o item com sentenças fora de contexto foi tomada seguindo o modelo de Siqueira (2004) no Instrumento de Compreensão de Metáforas Primárias, já validado, que avalia outro tipo de linguagem igurada. Ainda seguindo o modelo de Siqueira (2004), para cada item foi elaborada uma pergunta aberta e uma pergunta fechada. O uso de uma estrutura equivalente (em relação ao número de itens, ao tipo de sentença, ao tipo de perguntas feitas e à ausência de contexto) foi escolhido em razão de o primeiro instrumento, de compreensão de metáforas, apresentar evidências de validade na forma da avaliação. O fator determinante para essa escolha é que esse teste já está validado com populações clínicas (De LEON; SIQUEIRA; PARENTE; BOSA, 2007) e não clínicas (SIQUEIRA; LAMPRECHT, 2007), no Brasil e nos Estados Unidos (SIQUEIRA; GIBBS, 2007), com participantes de diferentes faixas etárias (crianças, adolescentes e adultos) e culturas (SIQUEIRA; PARENTE; GIL, 2009). Assumiu-se, portanto, que essa estrutura também seria adequada para avaliar a compreensão de expressões idiomáticas, um fenômeno aim às metáforas. A análise de construto foi realizada por meio da apreciação de três juízes, especialistas na área. Os juízes receberam os itens juntamente com uma explicação sobre os objetivos do teste e um questionário para o julgamento do instrumento. No questionário, constavam perguntas sobre as dimensões do construto, ou seja, sobre a familiaridade, a estrutura sintática, as características semânticas, a composicionalidade das sentenças, bem como sobre a adequação das questões abertas e fechadas. Considerando-se observações dos juízes, as sentenças e as questões foram ajustadas e procedeu-se à aplicação do instrumento piloto. Para veriicar a validade aparente (a compreensão dos itens), essa versão do instrumento foi aplicada em dez participantes que representavam diferentes estratos (em termos de grau de escolaridade) da população-alvo. Subsequentemente, levando-se em conta aspectos reportados pelos aplicadores, foram feitos pequenos ajustes (tal como a eliminação de artigos deinidos antes dos nomes próprios, no início das frases). Ao inal dessa etapa, foi considerada concluída a elaboração do instrumento e realizada sua veriicação no que se refere à validade de Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 579 conteúdo. As seis expressões, as sentenças que constituem os itens, as perguntas e as diretrizes para sua correção estão descritas na Tabela 1. TABELA 1 – Instrumento de Compreensão de Expressões Idiomáticas e diretrizes para correção EI Fase de treino X. Quebrar um galho 1. Comprar gato por lebre. 2. Meter os pés pelas mãos. 3. Fazer tempestade em copo d’água. 4. Sair como um par de vasos. 5. Ser a metade da laranja. 6. Tomar um chá de cadeira. DIRETRIZES PARA CORREçÃO Luisa quebrou um O que a Luisa fez para a Carol? a) Ajudou, fez algo que a galho para a Carol. Ela ajudou ou atrapalhou a outra precisava ou queria. Carol? b) Ajudou EI 1 a) Que aconteceu com ele? a) Foi enganado, Antonio comprou b) Ele foi enganado ou não foi trapaceado, passaram a gato por lebre. enganado? perna nele. b) Compra ruim EI 2 a) Como foi a atitude dela? a) Impensada, afoita, ruim, Cristina meteu os pés b) Ela pensou ou agiu sem má, rápida demais. pelas mãos. pensar? b) Agiu sem pensar. EI 3 a) Como ele reagiu? a) Mal, brabo, irritado, João fez tempestade b) Ele é preocupado ou furioso, se preocupou em copo d’água. tranquilo? demais. b) Ficou preocupado. EI 4 a) Como elas se vestem? a) Se vestem igual, da Ana e Lia saíram b) As roupas delas são mesma forma, com as como um par de diferentes ou iguais? mesmas roupas. vasos. b) Roupas são iguais. EI 5 a) O que Laura sente por Paulo? a) Amor, paixão, gosta Paulo é a metade da b) Ela adora ele ou detesta? dele. laranja da Laura. b) Adora ele. EI 6 a) O que aconteceu com Alice? a) Esperou muito, por Alice tomou um chá b) Ela esperou muito ou pouco? horas, qualquer evento de cadeira. demorado. b) Esperou muito. ITEM PERGUNTAS Para realização dos procedimentos empíricos (aplicação do instrumento), duas etapas foram realizadas: o planejamento da aplicação do instrumento piloto e a coleta da informação empírica. Para o planejamento, o primeiro passo foi a seleção da amostra, realizada conforme os critérios já descritos. O segundo passo foi o da elaboração das instruções para aplicação do instrumento. Para tanto, foi utilizado um enunciado norteador sobre a natureza do teste, a aplicação da tarefa 580 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 e a participação do sujeito. Especiicamente, os participantes foram orientados a ouvir atentamente a cada uma das sentenças e a responder às perguntas fechadas (dicotômicas) e às abertas. Foi enfatizado que para as questões abertas não havia necessariamente uma única resposta esperada. Além disso, ressaltou-se que não havia uma relação entre os itens. Após a explicação foi fornecido um exemplo. Se o participante não respondia com o sentido figurado da expressão, o aplicador explicava e oferecia respostas possíveis. O terceiro passo foi a coleta dos dados de validação, realizada pelas autoras e por participantes do grupo de pesquisa, previamente treinados para tanto. A aplicação do instrumento foi realizada individualmente, após o consentimento da direção, dos professores e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes (adultos) e/ou responsáveis (pelas crianças ou adolescentes). 3 Resultados Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva e paramétrica, utilizando o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 18. A primeira análise realizada foi a do grau de familiaridade das expressões idiomáticas dos seis itens do teste. Os resultados revelaram que o item mais familiar foi o 3 (Fazer tempestade em copo d’água) e o menos familiar foi o 4 (Sair como um par de vasos), conforme indicado na Tabela 2. TABELA 2 – Análise percentual de familiaridade nas respostas 4 e 5 EI 1 Respostas “4” 15,05 Respostas “5” Total 2 3 4 5 6 8,96 3,94 10,04 9,32 11,11 67,74 87,10 93,91 59,86 78,85 75,27 82,79 96,06 97,85 69,90 88,17 86,38 A segunda análise realizada foi a de coniabilidade dos critérios de correção estabelecidos para as perguntas abertas dos seis itens selecionados. Todas as respostas em que houve discordância de um ou mais avaliadores foram discutidas pelo grupo até se chegar a um consenso. Essas discussões não só levaram ao ajuste de cada resposta 581 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 em que havia divergência entre os avaliadores, mas também reinaram os critérios de correção. Uma vez que o Kappa variou de 0,77 a 1,00 para as primeiras 44 questões abertas corrigidas, na avaliação de seis membros do grupo de pesquisa (p<0,001), julgou-se que os critérios estavam bem delineados, e as correções subsequentes foram realizadas de forma independente. Com relação ao desempenho no Instrumento de Compreensão de Expressões Idiomáticas, houve uma diferença estatisticamente signiicativa entre os grupos (p<0,001), levando-se em conta o total de acertos (perguntas abertas e fechadas somadas). Considerando a variável idade (Tabela 3), o grupo de adultos apresentou a maior média de acertos (m=10,6; dp=1,24), seguido pelo grupo de adolescentes (m=9,55; dp=1,82) e pelo de crianças (m= 6,08; dp=2,10). TABELA 3 – Comparação entre as faixas etárias Variáveis Crianças Média ± DP Adolescentes Média ± DP Adultos Média ± DP Total EI 6,08 ± 2,10a 9,55 ± 1,82b 10,6 ± 1,24c <0,001 Total EI Aberta 1,83 ± 1,08 b 4,05 ± 1,22 4,89 ± 0,96c <0,001 Total EI Fechada 4,26 ± 1,33a 5,50 ± 0,84b 5,72 ± 0,54b <0,001 a p* * Análise de Variância (ANOVA) one-way; a,b,c Letras iguais não diferem pelo teste de Tukey a 5% de signiicância Para todos os grupos, as perguntas fechadas tiveram maior número de acertos quando comparadas com as perguntas abertas. A análise da diferença entre perguntas abertas e fechadas por grupo também mostrou uma diferença estatisticamente signiicativa (p<0,001) em todas as faixas etárias, e os escores foram mais elevados nas perguntas fechadas. Quando avaliados os acertos por item, considerando as perguntas abertas e fechadas conjuntamente, veriicou-se que o item com mais acertos (85,5% e 94,7% para aberta e fechada, respectivamente) foi o número 5, que atualiza a expressão idiomática ser a metade da laranja. O menor percentual de acertos para as perguntas abertas (25,6%) foi veriicado no item 1, que atualiza a EI comprar gato por lebre, e o menor percentual para a pergunta fechada (69,1%) foi veriicada no item 4, que atualiza a EI sair como um par de vasos. Essas diferenças foram estatisticamente signiicativas (p<0,001) para ambos os tipos de pergunta 582 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 (aberta e fechada). Na pergunta aberta, o item 1 (comprar gato por lebre) foi signiicativamente menor do que todos os outros. Os itens 4 e 6 (sair como um par de vasos e tomar um chá de cadeira) foram os segundos com pior desempenho, sem diferença signiicativa entre eles. Em seguida, vieram os itens 2 e 3 (meter os pés pelas mãos e fazer tempestade em copo d’água), também sem diferença signiicativa entre eles, mas diferentes de todos os outros. O item 5 (ser a metade da laranja) foi aquele com o melhor desempenho e diferiu signiicativamente de todos os outros. Em relação às perguntas fechadas, os itens 4 e 1 (sair como um par de vasos e comprar gato por lebre) foram os que tiveram o pior desempenho, sem diferença signiicativa entre eles. Depois vieram as questões dos itens 3 e 6 (meter os pés pelas mãos e tomar um chá de cadeira), também sem diferença entre eles. As questões com os melhores desempenhos foram as dos itens 2 e 5 (meter os pés pelas mãos e ser a metade da laranja), que diferiram signiicativamente de todas as outras (Gráico 1). GRáFICO 1 – Percentual de acertos nas perguntas abertas e fechadas p<0,001 para ambos (aberta e fechada) Analisando conjuntamente os resultados da avaliação da familiaridade e da compreensão de expressões idiomáticas, veriicou-se que, apesar de não ter se estabelecido uma correspondência entre os resultados dos dois instrumentos, foi observada uma tendência de os itens com maior familiaridade serem também os mais compreendidos. As expressões ser a Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 583 metade da laranja, meter os pés pelas mãos e fazer tempestade em copo d´água foram julgadas mais familiares e obtiveram os maiores índices de compreensão; as expressões tomar um chá de cadeira, sair como um par de vasos e comprar gato por lebre, por sua vez, foram julgadas como menos familiares (ainda que todas elas pareçam bastante familiares) e obtiveram os menores índices de compreensão. Uma análise qualitativa das respostas das crianças (grupo com os menores índices de compreensão de expressões idiomáticas) para as expressões que obtiveram o maior e os menores escores sugere que a compreensão está bastante relacionada ao grau de transparência das expressões. Cabe aqui ressaltar que, conforme já descrito no método, foram selecionadas seis EI consideradas pouco transparentes pelas autoras. Na EI5, item que obteve o maior índice de acertos nas respostas abertas, a maioria das crianças chegou ao sentido igurado de gostar, amar ou estar apaixonada por meio da frase Paulo é a metade da laranja da Laura. Poucas foram as crianças que não chegaram ao sentido igurado e relacionaram sua resposta com o ato de comer uma laranja, como no exemplo abaixo. (sujeito 365 –7a) – Sente fome. Ainda em relação à EI5, dois exemplos ilustram bem o quanto o signiicado literal das palavras que compõem uma expressão pode ajudar a chegar ao sentido igurado. O sujeito 410 usa uma outra expressão idiomática, com o mesmo sentido idiomático da expressão metade da laranja, e que também tem a palavra ‘metade’ para explicar a primeira. Já o sujeito 411 parte do signiicado literal, explicitando a motivação para chegar ao sentido igurado. (sujeito 410 –9a10m) – É a cara metade. (sujeito 411 –11a9m) – É como se fossem completar a laranja, sentem amor. Na EI1, que obteve o menor índice de acertos nas respostas abertas, nenhuma criança deduziu o signiicado igurado ‘ser enganado’ observando a frase Antonio comprou gato por lebre. As respostas para a pergunta fechada foram invariavelmente interpretações literais do ato de comprar um gato e/ou uma lebre, como nos exemplos abaixo. 584 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 (sujeito 386 – 8a7m) – Ele ganhou o gato e icou com a lebre. (sujeito 368 – 9a3m) – Ele pegou um coelho. (sujeito 365- 7a) – Ele se arranhou todo. Na EI6, que obteve o segundo menor índice de acertos nas respostas abertas, a resposta da maioria das crianças remeteu ao ato de literalmente tomar um chá, outras relacionaram a expressão a alguma expressão conhecida (tal como chá de sumiço) e outras chegaram mais perto do sentido igurado, conforme os exemplos abaixo. (sujeito 381- 11a7m) – Tomou um chá forte, estranho. (sujeito 420- 10a3m) – Tomou um chá com gosto de cadeira. (sujeito 393 – 9a) – Ficou sumida. (sujeito 373 – 9a7m) – Ficou sentada. Respostas como a do sujeito 373 foram consideradas incorretas, ainda que o ato de sentar esteja relacionado à ideia de esperar. Respostas com o verbo sentar só foram consideradas corretas quando explicitavam o signiicado igurado da EI, o de esperar por muito tempo, como no exemplo a seguir. (sujeito 386 – 8a7m) – Ficou sentada esperando um tempão, esperando na cadeira. As respostas elencadas anteriormente ilustram dois aspectos relevantes em uma análise de expressões idiomáticas pela perspectiva da Linguística Cognitiva. O primeiro aspecto é a noção de continuum, aqui exempliicada na dimensão opacidade. Assim, mesmo em expressões bastante opacas, algumas se revelam mais transparentes (por exemplo, a EI ser a metade da laranja) do que outras (por exemplo, a EI comprar gato por lebre). O segundo aspecto é a inluência de múltiplas dimensões na compreensão de um mesmo fenômeno linguístico. A EI5, por exemplo, apesar de não ser considerada pelos participantes da pesquisa como a mais familiar, foi a melhor compreendida, possivelmente em virtude de seu grau de transparência. O fato de não ter sido observada uma correspondência direta entre familiaridade e compreensão das EI pode indicar também diferenças de Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 585 frequência de uso entre gerações. Nesse ponto, é importante ressaltar que o teste de familiaridade foi realizado somente por adultos, e o teste de compreensão de expressões idiomáticas foi realizado por crianças, adolescentes e adultos. Assim, uma EI como “como comprar gato por lebre”, julgada bastante familiar por uma pessoa mais velha, pode não ser mais usada pela nova geração de usuários da língua tanto em razão de ser opaca quanto de não ser ouvida corriqueiramente, o que justiica o fato de ela não ser mais compreendida pelas crianças. 4 Discussão Os procedimentos teóricos, primeira etapa da construção do instrumento aqui descrito, foram realizados à luz da Linguística Cognitiva, perspectiva que entende a linguagem como um processo dinâmico no qual as unidades linguísticas (sejam elas morfemas, palavras, expressões idiomáticas, entre outros) servem como gatilho para operações conceituais diversas que recrutam conhecimento prévio. Dando início a essa etapa, foram deinidas as dimensões relevantes para as EI (familiaridade, estrutura sintática, complexidade semântica e transparência). Em relação aos procedimentos empíricos, após os ajustes feitos com base no estudo-piloto, a coleta de dados deu-se sem intercorrências, passando-se aos procedimentos estatísticos. No teste de familiaridade aplicado, veriicaram-se diferenças na avaliação dos itens (com um percentual variando de 69,90%1 a 97,85% de respostas bastante e totalmente familiares respectivamente). Essa variação ocorreu apesar de itens presumidamente muito familiares (de acordo com buscas na internet e com o julgamento dos especialistas) terem sido selecionados. Alguma variabilidade, de fato, já era esperada, por dois motivos: o primeiro é que o julgamento sobre a familiaridade depende de frequência de uso e essa está em constante atualização; o segundo, que corrobora o arcabouço teórico adotado, é que familiaridade não é uma variável categórica, ainda que tenha sido tratada como tal para ins desta análise. Há, portanto, um continuum de familiaridade que envolve pelo menos a frequência com a qual se escuta determinado input linguístico e a frequência com a qual uma expressão é efetivamente usada. Além disso, 1 Decidiu-se por não descartar a EI D (sair como um par de vasos) dada a proximidade entre o percentual escolhido para o ponto de corte (70%) e o obtido (69,90). 586 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 pode-se pensar que o tipo de conceitos e a frequência das ações abordadas em uma determinada expressão idiomática (como superdimensionar um problema na EI fazer tempestade em copo d’água, por exemplo) também inluenciam a frequência com que essa será usada. Assim, uma prática pouco usual (por exemplo, andar com roupas iguais) deverá levar a um uso menos frequente de uma determinada expressão (por exemplo, sair como um par de vasos) quando comparada a expressões percebidas como mais familiares (por exemplo, ser a metade de uma laranja). Em outras palavras, falamos mais frequentemente sobre eventos que observamos com mais frequência. A primeira análise do Instrumento de Compreensão de Expressões Idiomáticas, referente à diferença entre os grupos, revelou um efeito principal de idade na compreensão dos itens. O desempenho foi melhor no grupo de adultos, seguido pelo de adolescentes e o de crianças, conforme o esperado. Assim, um maior tempo de exposição à língua levou a uma melhor compreensão das expressões apresentadas, como demonstrado em estudos com crianças, adolescentes (NIPPOLD; RUDZINSKI, 1993; NIPPOLD; TAYLOR, 2002) e adultos (NIPPOLD; DUTHIE, 2003). Esses resultados corroboram estudos anteriores que airmam ter encontrado diferenças na compreensão de EI pelas crianças quando comparadas com adolescentes e adultos (CAIN; TOWSE; KNIGHT, 2009). Os resultados também revelaram um efeito principal de tipo de pergunta. Em todos os grupos, as perguntas fechadas tiveram maior número de acertos do que as perguntas abertas. De um ponto de vista estatístico, de fato se esperava que perguntas fechadas com duas opções (com uma possibilidade de 50% de acerto) tivessem um maior percentual de acerto do que perguntas abertas, nas quais não há uma pista para a resposta certa. Quando o formato da pergunta (aberta ou fechada) foi considerado, observou-se diferença estatisticamente signiicativa na pergunta fechada entre o grupo de crianças e os demais grupos (adolescentes e adultos). Nesse caso, apesar de terem sido controladas algumas variáveis (tais como familiaridade, estrutura sintática, complexidade semântica e transparência), ainda é possível que alguma dessas tenha inluenciado esse resultado. Entretanto, se considerarmos que não somente as dimensões da expressão, mas as habilidades do sujeito estão em jogo, uma justiicativa mais plausível para essa diferença é a habilidade de inferência. Essa habilidade não é uma característica da expressão idiomática, mas uma característica do sujeito, a qual se Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 587 desenvolve com a idade, com o aumento de exposição à língua e com o desenvolvimento de capacidades cognitivas. Apesar de a familiaridade ter sido a única dimensão investigada empiricamente, por meio de uma escala, entende-se que as outras dimensões consideradas também apresentam a propriedade de serem contínuas. Em outras palavras, tanto a estrutura sintática, quanto a complexidade semântica, a transparência e até mesmo o contexto são dimensões que poderiam apresentar alguma variabilidade em uma escala que vai de nada a totalmente aplicável a cada dimensão. Neste instrumento, uma mesma estrutura sintática foi utilizada nos seis itens, palavras e estruturas de pouca complexidade semântica foram priorizadas e foram selecionadas expressões bastante opacas, conforme o julgamento das pesquisadoras e dos juízes especialistas. No entanto, mesmo que essas dimensões tenham sido controladas, assume-se que nenhuma sentença é idêntica a outra em relação a todas essas dimensões. A inluência dessas dimensões, portanto, deve ser considerada em conjunto na formulação de qualquer tarefa que envolva expressões idiomáticas, bem como na interpretação de seus resultados. Ainda que tenham sido identiicadas possíveis limitações, o desenvolvimento deste instrumento deve contribuir para suprir a ausência de propostas padronizadas para a avaliação da compreensão de expressões idiomáticas em nossa língua. O passo a passo criterioso em sua criação e validação proporcionou a veriicação de evidências iniciais de validade, e os dados obtidos poderão servir como um parâmetro inicial do que pode ser esperado para cada faixa de idade estudada. Estudos futuros deverão ser realizados para que suas evidências na avaliação da compreensão sejam mais robustas e para que sejam estabelecidos efetivamente esses dados normativos por faixa de idade. Por im, sugere-se que pesquisas sejam realizadas também com populações clínicas, que, além de contribuírem com informações pertinentes para melhor compreender o fenômeno da linguagem igurada em si, possibilitarão melhor compreensão do desenvolvimento linguístico de diferentes populações. Agradecimentos As autoras agradecem aos bolsistas de iniciação cientíica Ana Paula Anghinoni Ramos (PIBIC CNPqUFRGS), Andrea Rubert e Karoline Girardi (PROBIC FAPERGS-UFRGS) e Cristofer Tessmer (BIC UFRGS), pelo seu trabalho durante as diversas fases deste estudo. 588 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 571-591, 2018 Referências CACCIARI, C.; LEVORATO, M. C. The effect of semantic analyzability of idioms in metalinguistic tasks. Metaphor and Symbol, Francis & Taylor Online, v. 13, p. 159-177, 1989. DOI: https://doi.org/10.1006/ jecp.1995.1041 CAIN, K.; OAKHILL, J.; LEMMON, K. The relation between children’s reading comprehension level and their comprehension of idioms. Journal of Experimental Child Psychology, Elsevier, v. 90, p. 65-87, 2005. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jecp.2004.09.003 CAIN, K.; TOWSE, A. S.; KNIGHT, R. S. The development of idiom comprehension: An investigation of semantic and contextual processing skills. 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Meter os pés pelas mãos. Fazer tempestade em copo d’água. Sair como um par de vasos. Ser a metade da laranja de alguém. Tomar um chá de cadeira. 2 3 4 5 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 A gramática estadunidense como alteridade para a gramatização brasileira do português no século XIX: análise da composição da gramática Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia de Júlio Ribeiro (1886) com base no modelo do compêndio A Grammar of the English Language de George Frederick Holmes (1878) The American grammar as alterity for the Brazilian grammatization of Portuguese in the nineteenth century: analysis of the composition of the grammar “Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia” by Júlio Ribeiro (1886) from the model of the compendium “A Grammar of the English Language” by George Frederick Holmes (1878) José Edicarlos de Aquino Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo / Brasil edicarlos_aquino@yahoo.com.br Resumo: Este artigo analisa os procedimentos de Júlio Ribeiro para compor a sua gramática Holmes Brazileiro Grammatica da Puericia, em 1886, com base no modelo do compêndio A Grammar of the English Language, lançada por George Frederick Holmes em 1878. Ilustrando em detalhes o mecanismo de transferência de tecnologia entre línguas segundo o conceito de gramatização de Auroux (1992), essa análise nos permite trazer à luz um elemento pouco observado na história das ideias linguísticas no Brasil, isto é, a alteridade que a gramática estadunidense representa para a gramatização brasileira do português no século XIX. Dessa forma, detalhamos as várias modiicações que Júlio Ribeiro opera no texto de Holmes ao traduzi-lo e adaptá-lo para a escrita de uma gramática do português, mostrando como elas se realizam por eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.593-632 594 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 exigência das especiicidades da ordem da própria língua, mas também como signiicam um gesto de autoria do gramático brasileiro sobre o conhecimento linguístico, inserindo, inclusive, referências ao Brasil no discurso gramatical. Palavras-chave: gramatização brasileira; século XIX; Júlio Ribeiro; George Frederick Holmes; gramática brasileira, gramática estadunidense; gramática latina extensa. Abstract: This article analyzes the procedures of Júlio Ribeiro to compose his grammar Holmes Brazileiro Grammatica da Puericia, in 1886, from the model of the compendium A Grammar of the English Language, released by George Frederick Holmes in 1878. Illustrating in detail the technology transfer mechanism between languages according to Auroux’s concept of grammatization (1992), this analysis allows us to bring to light an unobserved element observed in the history of linguistic ideas in Brazil, that is, the alterity that the American grammar represents for the Brazilian grammatization of Portuguese in the nineteenth century. In this way, we detail the various modiications that Júlio Ribeiro operates in Holmes’s text by translating it and adapting it to the writing of a Portuguese grammar, showing how they are performed by exigency of the speciics of the order of the language itself, but also as signify a gesture of authorship by the Brazilian grammarian about linguistic knowledge, including references to Brazil in grammatical discourse. Keywords: Brazilian grammatization; nineteenth century; Júlio Ribeiro; George Frederick Holmes; Brazilian grammar, American grammar; extended Latin grammar. Recebido em 14 de julho de 2017. Aceito em 2 de setembro de 2017 1 Introdução O presente artigo tem como foco os procedimentos de composição da obra Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, publicada por Júlio Ribeiro em 1886. Além de demonstrar que a produção gramatical de Júlio Ribeiro não se restringiu à Grammatica Portugueza, de 1881, faz-se obrigatório observar que também faz parte dessa produção a Nova Grammatica Latina, de 1890, cuja importância reside no fato de Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 595 ela ser um dos raros exemplos de gramática no Brasil do século XIX escrita para crianças no início do processo de escolarização. Sobretudo sob efeito do Programa de Português para os Exames Preparatórios, de 1887, conforme consta em trabalho de Orlandi e Guimarães (2001), as gramáticas brasileiras eram produzidas para preparar os jovens para a entrada nos cursos universitários, voltadas, portanto, para os anos inais da escola. A análise dos procedimentos de Júlio Ribeiro para compor a Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia nos permite ilustrar em detalhes como se opera uma transferência tecnológica entre línguas e, dessa forma, compreender na prática o conceito de gramatização, deinida por Auroux (1992, p. 65) como “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”. Essa análise nos permite igualmente mostrar como esse processo se realiza especiicamente nas condições particulares do início da gramatização brasileira do português no século XIX, processo que tem como efeito a constituição do português como língua nacional do Brasil, segundo Orlandi e Guimarães (2001). Nesse ponto, nosso trabalho procura lançar luz sobre um elemento pouco avaliado na história das ideias linguísticas no Brasil, isto é, a alteridade que a gramática estadunidense representa para a gramatização brasileira, pois a Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, como o título anuncia, é uma tradução de A Grammar of the English Language, lançada em 1878 por George Frederick Holmes, professor de história, literatura e retórica na Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos da América. Como explica Rodríguez-Alcalá (2011, p. 205), “as transferências tecnológicas não são processos lineares nem se efetuam por uma simples transmissão, mas, sim, por meio de gestos de elaboração e de reinvenção determinados pelas circunstâncias culturais, sociais e políticas”, sendo, nesse sentido, importante perguntar “quem faz essas transferências, em que direção, como, com que inalidade”. Respondendo a essas questões, podemos airmar que quem faz a transferência é Júlio Ribeiro, um gramático brasileiro do século XIX, e que essa transferência é feita de uma gramática do inglês dos Estados Unidos em direção ao português no Brasil, com a inalidade de fornecer material para o estudo do português para crianças das séries iniciais da escola. O como é justamente o que vamos mostrar em detalhes neste artigo. 596 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 2 A busca de Júlio Ribeiro no compêndio de George Frederick Holmes por um modelo tido como cientíico para composição de uma gramática brasileira do português destinada ao público infantil no Brasil do século XIX A Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, de Júlio Ribeiro, traz em seu título o texto de origem, a iliação com um autor e uma tradição: George Frederick Holmes e a sua gramática A Grammar of the English Language, uma gramática do inglês para uso nos Estados Unidos. Traz também uma modiicação pelo uso do adjetivo “brasileiro”, marcando uma diferença que é também de autoria, ou seja, sob a perspectiva de um brasileiro, ou melhor, segundo um gramático brasileiro. Tem ainda como alvo um público: o infantil. Como metonímia de gramático, a nomeação Holmes Brazileiro nos remete ao título da mais antiga gramática do francês, Donait françois, um modo de intitular que, com base em Auroux (1992) e Timelli (1996), tem a ver com o fato de as Ars Minor de Donato terem sido o principal modelo das primeiras gramáticas dos vernáculos europeus, de forma que o que está em jogo é a transmissão de um modelo de tradição gramatical. No prefácio de sua própria gramática, Holmes elege como objetivo inicial adaptar para o uso das escolas nos Estados Unidos o que de melhor aparecia nas várias gramáticas inglesas publicadas na época na Inglaterra: When this Grammar was undertaken, little more was contemplated than to adapt to the use of American schools what appeared to be best in the numerous Grammars of the English tongue recently published in England, with such additions and improvements as might be derived from other sources, including the results of private studies previously pursued. (HOLMES, 1878, p. 1)1 Num movimento que mostra os caminhos da gramatização brasileira em termos de modelos, Júlio Ribeiro adapta para falantes de português no Brasil (todos os falantes de português, mas o público é 1 Quando esta Gramática foi iniciada, pouco mais foi contemplado que a adaptação para uso em escolas americanas do que parecia ser o melhor de várias gramáticas da língua inglesa recentemente publicadas na Inglaterra, com adições e melhorias derivadas de outras fontes, incluindo os resultados de estudos privados previamente realizados. (HOLMES, 1878, p. 1) Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 597 brasileiro) uma gramática dos Estados Unidos da América que, por sua vez, já foi pensada e construída como uma adaptação de uma gramática da Inglaterra. Na contracapa da obra do gramático brasileiro, pode-se ler “TRADUCCÃO DA Introduction to English Grammar de G. F. Holmes, LL.D. E ADAPTAÇÃO DELLA á LÍNGUA PORTUGUEZA POR JULIO RIBEIRO”. O que Júlio Ribeiro traduz para compor sua própria gramática é uma espécie de resumo gramatical que Holmes apresenta no início de sua obra, com o título de Introduction do the English Grammar. No prólogo da primeira edição, Júlio Ribeiro comenta seu trabalho de traduzir para o português a introdução da gramática de Holmes, qualiicada como “um monumento de sciencia e bom senso”. É o próprio Júlio Ribeiro quem utiliza o verbo traduzir para falar do seu trabalho, justiicando, no entanto, e isso é o importante para nós, que esse trabalho de tradução exige modiicações impostas pela própria índole do português: “Traduzir essa «INTRODUCTION», modiicando-a nos logares em que o exige a indole do Portuguez, é um relevante serviço aos que nesta lingua encetam o tirocinio das lettras” (1891, p. 3). A gramática é modiicada e não apenas traduzida, algo que tem certamente a ver com o que diz Auroux (1992, p. 44) sobre o que é da ordem do próprio procedimento da gramatização como uma transferência de tecnologia, quando explica que “a construção da rede supõe adaptações locais e um certo viezamento das descrições”, mas que também pode ser enxergado como um gesto de autoria do gramático brasileiro. É a língua (e o procedimento de tradução) que demanda modiicações, mas é o autor quem vai ter que escolher, entre outros, que exemplo em português pode substituir o exemplo em inglês para explicação dessa ou daquela proposição. Segundo consta no prólogo, não é o simples fato de escrever uma gramática que aparece como “um relevante serviço” de Júlio Ribeiro para os falantes de português, mas escrever uma gramática diferente das que andavam sendo escritas. No mais, cabe apenas notar que, no im do século XIX, um gramático brasileiro está se pondo numa posição de escrever uma gramática não apenas para brasileiros, mas para os falantes de português em geral, aos que, reaproveitando o texto do próprio autor, “nesta lingua encetam o tirocinio das lettras”, aos que dão os primeiros passos no estudo do português, enim. De fato, apresentando-se como quem presta um relevante serviço para esse im, Júlio Ribeiro marca a mesma diferença tantas vezes repetidas por ele em relação a seus pares, 598 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 isto é, num meio de gramáticas metafísicas, sua gramática, por não ser justamente metafísica, prestaria uma importante contribuição aos que estudam português: “O presente livrinho constitue uma verdadeira preparação para o estudo da alta grammaticologia, e não é um dos muitos compendios soit disant elementares, que só se differençam das grammaticas metaphysicas grandes por serem impressos em typo miudo e fomato reduzido.” (1891, p. 3). Por esse trecho, vemos novamente essa especiicidade de a gramática de Júlio Ribeiro ser um instrumento para um nível mais elementar de estudo gramatical. E pelo modo como formula sua crítica, aparentemente sua gramática não é a única dessa natureza, embora ainda conheçamos muito pouco a história dessas gramáticas para iniciantes nos estudos escolares, por assim dizer. Nesse conjunto, talvez possamos citar a Primeira Grammatica da Infância e a Segunda Gramática da Infância, lançadas por Francisco Ferreira de Vilhena Alves em 1897. De qualquer forma, uma diferença é marcada por Júlio Ribeiro: sua gramática não é metafísica. Júlio Ribeiro e Holmes dizem procurar um modelo cientíico para escrever suas gramáticas. Há nesse ponto uma diferença fundamental, pois o brasileiro recusaria a princípio as teorias linguísticas dos colonizadores, algo que o estadunidense não faz, uma vez que ele invoca justamente a tradição gramatical na Inglaterra para compor uma gramática do inglês nos Estados Unidos. Na busca pelo modelo cientíico, Holmes vai olhar para a Alemanha, sem deixar de considerar a Inglaterra e os próprios Estados Unidos da América, ressaltando que o projeto inicial de adaptação de uma gramática inglesa para escrever sua própria gramática foi aprimorado por meio da observação dos princípios da “ilologia moderna” (modern philology), fazendo referência aos nomes de Grimm, Wallis, Horne Tooke, Taylor, Latham, Marsh, Clark, Alford e Max Müller. Júlio Ribeiro, por sua vez, como já mostramos em outros trabalhos (2016, 2012a, 2012b), só olha para Portugal para se referir a autores que trabalham com o método histórico-comparativo, caso de Adolfo Coelho e Teóilo Braga. Para Júlio Ribeiro, o cientíico aqui é o próprio Holmes e a tradição da gramática inglesa. No final do seu prólogo, o procedimento de adaptação do trabalho de Holmes aparece como argumento para facilitação daqueles que estão no começo do estudo do português: “Imitando o benemerito grammaticographo americano, nós sacriicamos a belleza do estylo á clareza da phrase, mais curando do proveito de quem começa a estudar, do Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 599 que da gloriola de arredondar periodos rhetoricamente correctos” (1891, p. 3). A modiicação serve, assim, a ins pedagógicos, à facilitação de um estudo. A imitação de Holmes, por seu turno, não apenas serve pela forma reduzida como é organizado o texto, prestando-se a estudos iniciais, mas também, poderíamos argumentar, para romper com as gramáticas metafísicas. Não se deve esquecer do que mostramos anteriormente sobre a gramática de Holmes ser apresentada por Júlio Ribeiro como “um monumento de sciencia e de bom senso”. O que Júlio Ribeiro imita é a ciência, e, imitando a ciência, ele se diz diferenciar das gramáticas metafísicas. 3 A divisão da gramática de Júlio Ribeiro com base no manual de Holmes Seguindo Holmes, a gramática de Júlio Ribeiro é dividida em XV partes, com algarismos romanos, e cada parte é subdividida em outras, em números indo-arábicos: I. Prolegomenos; II. Palavras que signiicam cousas; III. Palavras que signiicam qualidades ou limitações de cousas; IV. Palavras empregadas para restringir a signiicação dos substantivos; V. Palavras que substituem os Substantivos; VI. Palavras que signiicam ações e condições de cousas; VII. Palavras que denotam o caracter ou qualidade de acções ou atributos; VIII; Palavras que signiicam a relação ou a direcção de uma cousa para outra; IX. Palavras que ligam outras palavras ou asserções; X. Palavras usadas para exprimir emoção ou sentimento; XI. Enumeração das classes de palavras; XII. Sentença; XIII. Sentença simples; XIV. Sentenças Compostas; XV. Sentenças Complexas. Diferentemente de Holmes, que apenas enumera o ponto I, Júlio Ribeiro vai chamar essa parte de Prolegômenos. Nessa parte, subdividida em 12 pontos, explica-se que 1. usamos da linguagem para explicar os pensamentos ou emoções; 2. a linguagem se compõe de palavras; 3. palavras tomadas em separado não constituem linguagem; 4. para constituir linguagem as palavras devem ser juntas de modo que exprimam um sentido completo; 5. palavras ajuntadas de um modo que exprimem um sentido completo formam sentenças; 6. uma sentença é uma coleção de palavras que encerra um sentido distinto; 7. no estudo da linguagem procura-se conhecer as palavras e o seu modo de emprego na formação das sentenças; 8. a linguagem é falada ou escrita; 9. palavras faladas constam de um ou mais sons que encerram uma signiicação distinta; 600 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 10. palavras escritas constam de uma ou de mais letras, usadas como sinais dos sons empregados na formação das palavras; 11. diferentes palavras servem para diferentes usos na construção das sentenças; 12. as palavras são de espécies diferentes conforme os diferentes usos para que elas servem na construção das sentenças. No texto de Júlio Ribeiro, a conclusão não é numerada, diferentemente do de Holmes, em que essa parte aparece com o número XVI. Cabe notar que Júlio Ribeiro altera a ordem do tratamento das sentenças estabelecido por Holmes, que, em sequência, fala de Sentença Simples (XII), Sentenças Complexas (XIV) e Sentenças Compostas (XV). O brasileiro vai tratar das sentenças compostas antes de falar sobre as sentenças complexas. Júlio Ribeiro vai acrescentar no inal de sua gramática um “aditamento” sobre os principais fatos léxicos e sintáticos da língua portuguesa, dividido em dois pontos: I. Principais fatos léxicos da Língua Portuguesa; II. Principais fatos sintáticos da Língua Portuguesa. 4 As reformulações de Júlio Ribeiro ao traduzir e adaptar o texto de Holmes para a escrita de uma gramática brasileira do português: acréscimos, supressões, inversões e substituições de elementos na transposição de um modelo gramatical à luz das diferenças entre o português do Brasil e o inglês dos Estados Unidos e da posição autoral sobre o conhecimento linguístico Acompanhemos linearmente as várias modiicações que Júlio Ribeiro opera no texto de Holmes ao traduzi-lo e adaptá-lo para a escrita de uma gramática brasileira do português. Essas modiicações se realizam sob forma de acréscimos, supressões, inversões e substituições de termos, frases, trechos e itens inteiros do compêndio do estadunidense, abrangendo as várias partes da gramática, como os exemplos, os exercícios, a terminologia, as deinições e divisões das classes de palavras, as explicações e descrições do funcionamento e das propriedades das categorias gramaticais. Numa das primeiras intervenções de Júlio Ribeiro, notamos um caso em que a descrição do fenômeno e a natureza do exemplo são as mesmas de Holmes, mas as palavras para exempliicar são diferentes, pois, se as palavras usadas em inglês fossem simplesmente traduzidas, elas não serviriam ao público de língua portuguesa, por não ilustrarem o fenômeno com a justeza necessária. Assim, numa relação entre regra e Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 601 exemplo, no item 11 dos Prolegômenos, quando se explica que diferentes palavras servem para diferentes usos na construção das sentenças, Júlio Ribeiro repete, exatamente como Holmes, que palavras diversas são às vezes representadas pelo mesmo som. O exemplo de Júlio Ribeiro é: cessão, secção, sessão – Pena, penna. Em inglês, Holmes usa as palavras: I, eye, aye; ale, ail. No item 13, quando se explica que muitas palavras signiicam coisas que podem ser tocadas ou manejadas, Júlio Ribeiro apresenta um exemplo a menos do que Holmes, suprimindo a palavra chair (cadeira). Do mesmo modo, ele suprime a palavra anger (raiva) da lista de palavras usadas por Holmes no item 17, em que se explica que muitas palavras denotam coisas que não podem ser diretamente percebidas pelos nossos sentidos, mas podem ser reconhecidas pelas nossas mentes. Talvez seja possível argumentar aí em favor de um gesto de autoria que considere que um número menor de palavras seja suiciente para exempliicar uma deinição, enxergando, assim, no texto de Holmes, um excesso. Vemos isso em muitas passagens. No item 18, quando se explica que existem palavras que signiicam coisas que não têm existência própria em separado, Júlio Ribeiro exclui dois exemplos dados por Holmes, que havia usado as palavras color, heat, whiteness, warmth, length e truth. Júlio Ribeiro usa apenas cor, calor, comprimento e verdade, excluindo, portanto, whiteness (brancura) e warmth (calor). Mas aqui existe também algo da ordem da língua, pois a distinção do par heat e warmth não teria cabimento em português, reduzidas em uma única palavra: calor. Assim, com o corte da palavra whiteness, podemos argumentar, pelo gesto de autoria de Júlio Ribeiro, que ele vê um excesso na quantidade de exemplos de Holmes. Por outro lado a supressão da palavra warmth representa algo da ordem da língua que determina a adaptação e o corte de exemplos, uma vez que o par heat e warmth não teria um outro par equivalente em português. No item 19, quando se deine que substantivos são palavras que dão nomes às coisas, vemos uma vez mais esse corte do excesso, quando Júlio Ribeiro retira a palavra crime (crime) da lista de palavras que exempliicam coisas que podem ser concebidas pela mente. Holmes emprega virtue, vice e crime; enquanto Júlio Ribeiro, apenas virtude e vício. Em seguida, observamos um caso em que o brasileiro atribui uma função a mais a um tipo de palavra descrito pelo estadunidense. Essa operação se dá por meio da forma como os adjetivos são conceituados. 602 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 Holmes nomeia o item III como “Words signifying Qualities of things”, ao passo que Júlio Ribeiro vai escrever “Palavras que signiicam qualidades ou limitações de cousas”, ajuntando “ou limitações”, para dizer, portanto, que, nessa categoria de palavras considerada por Holmes, os adjetivos podem signiicar também limitações e não apenas qualidade das coisas. Para teorizar a questão, o brasileiro tem que escrever mais, completando o texto de Holmes. Assim, Ribeiro (1891, p. 12), depois de traduzir a passagem de Holmes que diz que as coisas se distinguem umas de outras por qualidades ou propriedades que lhes pertencem, adiciona: “E tambem por limitação de numero, de posição, etc., exemplos: «Um homem-dois homens-este cavallo-aquelle cavallo.»”. E aqui poderíamos pensar que se trata de um gesto de autoria que até pode ter algo a ver com o que impõe o funcionamento da língua, mas que parece corresponder antes de tudo ao conhecimento metalinguístico. Não é que o mesmo tipo de palavra possa menos em uma língua, mas que um gramático julgue que ele pode mais. Ainal, essa introdução da gramática de Holmes que Júlio Ribeiro traduz, e a própria motivação para traduzi-la, presta-se a mostrar considerações gerais sobre a língua, de qualquer língua, da linguagem, portanto. Tanto é assim que Júlio Ribeiro vai acrescentar, no inal de sua gramática, um aditamento com o que chama de principais fatos léxicos e sintáticos da língua portuguesa. No item 22 dessa mesma parte, no qual se explica que as qualidades e propriedades podem ser consideradas à parte das coisas em que existem e podem ser nomeadas em separado, Júlio Ribeiro corta a parte inal do texto de Holmes no qual o autor estunidense dá o nome do tipo de palavra do qual está falando: “When the qualities are so considered and named, their names are nouns” (HOLMES, 1878, p. 11). Diferentemente de Holmes, que encerra com essa airmação o tratamento dessa questão, Júlio Ribeiro acrescenta dois pontos ao texto de Holmes. No ponto 23, Júlio Ribeiro explica que a limitação das coisas se faz por meio de palavras que indicam a posição em relação a nós, o seu número, entre outros. No ponto 24, ele explica que a limitação pode ser de posição, de número, de possessão, de conjunção e por designação apenas de grupos de classe. São dois pontos, então, que Júlio Ribeiro insere para poder desenvolver a sua posição de que há palavras que signiicam qualidades e também limitações. Por inserir esses dois pontos, o paralelismo de numeração entre os dois textos é quebrado. O item 23 da gramática de Holmes vai corresponder, então, ao item 25 da de Júlio Ribeiro. Nesse item, Holmes Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 603 (1878, p. 11-12) airma que “Words which name qualities connected with things, or Attribute words, are called Adjectives,. Essa passagem é assim traduzida por Ribeiro (1891, p. 15): “Palavras que nomeiam qualidades connexas com cousas, e palavras que indicam a limitação de cousas chamam-se Adjectivos”. Mais uma vez, Júlio Ribeiro insere a questão da limitação das coisas como função de uma classe especíica de palavras. Assim, ainda nesse mesmo ponto (23 de Holmes e 25 de Júlio Ribeiro), quando se explica que os adjetivos são nomes assim como os substantivos, o brasileiro escreve: “Os substantivos nomeiam as cousas; os adjectivos nomeiam as qualidades ou propriedades das cousas, ou indicam a sua limitação” (RIBEIRO, 1891, p. 15). O estadunidense, por sua vez, havia posto somente: “Adjectives name qualities or properties existing in things” (HOLMES, 1878, p.12). O fato de Júlio Ribeiro cortar a passagem em que Holmes explicava que o nome do tipo de palavra do qual está falando era o substantivo, bem como o fato de ele inserir mais dois pontos no texto para dizer como se faz a limitação das coisas, enumerando como essa limitação pode ser, leva-nos a pensar que o que Holmes trata como substantivo Júlio Ribeiro já trata como adjetivo. No mesmo item 23, Holmes dá como exemplos de adjetivos as palavras green (verde), beautiful (bonito) red (vermelho) e bright (luminoso), ao passo que Júlio Ribeiro escolhe como exemplos as palavras: verde, bonito, este, esse, um, dois, cada, cada um, qual, cujo, um, algum. São essas palavras que se encontram nos itens 23 e 24 do texto de Júlio. No item 23, por exemplo, ele diz “«Este-esse-aquelle» são palavras que servem para indicar a limitação das cousas pela posição que ellas occupam” (1891, p. 14). No item 24, ele explica de que tipo pode ser a limitação: A limitação pode ser 1) de posição, exemplos: «Este cavallo-esse cavallo-aquelle cavallo.» 2) de numero, exemplos: «Um cavallo-dois cavallos-tres cavallos». 3) de distribuição, exemplos: «Cada cavallo-cada um cavallo». 4) de posessão, exemplos: «Meu ilho-teu pae-nosso amigo-seu thio». 5) de conjuncção, exemplo: «O qual cavallo». 6) por designação apenas de grupos de classe, exemplos: «Um cavallo-alguns cavallos». (RIBEIRO, 1891, p. 14-15) 604 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 Se Júlio Ribeiro modiica a parte do texto de Holmes que trata de substantivos para já tratar de adjetivos, quando o estadunidense vai deinir os adjetivos, no item 24 da introdução de sua gramática, Júlio Ribeiro traduz o texto, que aparece com o número 26 da sua gramática, mencionando “Adjectivos Limitativos”, uma noção que não está na passagem de Holmes, como se pode veriicar a seguir: Adjectives are words which name qualities or properties attributed to things.When we say a graceful lady, the quality of grace is ascribed to a lady. When we say a violent wind, the property of violence is attributed to the wind. When we say an ungainly person, the quality of ungainliness is ascribed to a person. The words graceful, violent, ungainly, name qualities considered in connection with “a lady,” “a wind,” “a person,” respectively, and are adjectives. (HOLMES, 1878, p. 12) Júlio Ribeiro, em tradução desse item, diz o seguinte: ADJECTIVOS são palavras que nomeiam qualidades ou propriedades attribuídas a cousas, ou que indicam a limitação dellas. Quando dizemos «Graciosa senhora», a qualidade «graça» é adscripta a uma senhora. Quando dizemos «Vento violento», a qualidade «violencia», é attribuida ao vento. As palavras «graciosa-violento» nomeiam qualidades consideradas em connexão com «senhora-vento», e são, por conseguinte, Adjectivos Qualificativos. Quando dizemos «Um homem», a palavra «um» limita o substantivo «homem». Quando dizemos «Alguns negocios» a palavra «alguns» limita o substantivo «negocios». As palavras «um-alguns» indicam a limitação de «homem-negocios» e são, por conseguinte, Adjectivos Limitativos. (RIBEIRO, 1891, p. 15-16) Vemos que Júlio Ribeiro corta uma das três sequências de exemplos de Holmes. No lugar, ele vai colocar uma outra série em que vão aparecer as palavras: um e alguns, concluindo que elas limitam o substantivo e, por isso, são adjetivos limitativos. Na verdade, com os exemplos que toma de Holmes, Júlio Ribeiro diz se tratar de “Adjectivos Qualiicativos” e, com a série de exemplos que ele próprio cria, diz se tratar de “Adjectivos Limitativos”. Assim, o que é apenas adjetivo para Holmes é separado em duas categorias por Júlio Ribeiro, adjetivos qualiicativos e adjetivos limitativos. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 605 No ponto 22, vale notar ainda que Júlio Ribeiro altera a ordem dos exemplos dados por Holmes. O estadunidense põe, por ordem: blackness, whiteness, heat, ao passo que o brasileiro ordena da seguinte forma: Brancura, negrura, calor. Ainda sobre as modiicações nos exemplos empregados, notamos que, no item 27 do texto de Júlio Ribeiro (25 de Holmes), quando se explica que os adjetivos sempre se referem a substantivos, quer expressos, quer subentendidos, Holmes apresenta três séries de exemplos: When we say, “Here is a piece of white cloth,” the adjective white refers to the noun cloth, which is expressed.When we say “White may be seen further than black,” the adjectives white and black refer to a noun -color, or colors- which is understood without being expressed.In the phrase, “The Holy One of Israel,” Holy refers to One, which is understood to mean God, the name of the Supreme Being – therefore a noun. (HOLMES, 1878, p. 12)2 Júlio Ribeiro vai apresentar apenas um exemplo, em que guarda as palavras branco e preto usadas em um dos exemplos de Holmes, mas numa frase completamente nova e, ao que parece, com usos completamente diferentes, tanto semanticamente quanto distribucionalmente: “Beba cerveja PRETA»; a BRANCA não é tão nutritiva” (RIBEIRO, 1891, p. 16-17). Um outro ponto da gramática em que notamos frequentes alterações do texto de Holmes por parte de Júlio Ribeiro são os exercícios. De forma geral, o brasileiro vai trazer os mesmos exercícios propostos pelo estadunidense. No primeiro exercício da parte III, assim como Holmes, Ribeiro (1891, p. 17) pede: “Nomear as qualidades ou propriedades em connexão com cada uma das seguintes cousas”. No entanto, à diferença de Holmes, ele completa: “e depois limital-as”. Esse pedir algo a mais no exercício tem a ver com as propriedades a mais que Júlio Ribeiro dá ao tipo de palavra de que está tratando e que não foram consideradas por Holmes. Dessa forma, nesse mesmo exercício, após 2 Quando dizemos “Temos aqui um pedaço de tecido branco”, o adjetivo branco refere-se ao substantivo tecido, que é expressado. Quando dizemos “O branco pode ser melhor visto que o preto”, os adjetivos branco e preto referem-se ao substantivo cor ou cores – que é entendido sem ser expressado. No sintagma “O Ser Divino de Israel”, Divino refere-se a Ser, que é entendido como Deus, o nome do Ser Supremo – ou seja, um substantivo. (HOLMES, 1878, p. 12) 606 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 dada a lista de palavras, Júlio Ribeiro pergunta: “Que palavras são as que qualiicam ou limitam deste modo os substantivos?”, enquanto Holmes havia perguntado apenas: “What kind of words are those which denotes qualities in this way?” (HOLMES, 1878, p. 12). Esse é um ponto que vai afetar inclusive o tamanho do exercício, o que mostra que ele não é gratuito, não se podendo airmar, portanto, que se trata apenas de uma vontade pessoal do autor brasileiro. No exercício III, por exemplo, da mesma forma que Holmes, Júlio Ribeiro vai pedir: “Pôr os substantivos que faltam nas phrases seguintes” (1891, p. 17). Holmes (1878, p. 13) escreve, então, 13 elementos: “Muddy___, broad___, deep___, bright___, wooden___, white___, heavy___, long___, righteous___, wise___, soft___, gentle___, true___”. Júlio Ribeiro vai aproveitar esses elementos, mas incluir 20 outros, e esses elementos a mais trabalham justamente a questão da limitação da palavra e dos adjetivos qualiicativos e dos limitativos, o que não foi tratado por Holmes: ........lodoso;........larga;........fundas;........brilhantes;........ duro;........branco; ........pesadas; ........compridos; ........justo;........ sabia;........branco;........manso; ........verdadeira;........triste. Este........; essa........; aquella........; Aquelles........; Um........; Uma........; Dez........; Vinte........; Duzentas........; Quinhentas........; Cada........; Cada um........; O qual........; as quaes........; O homem cujo........; A mulher cujo........; O homem cuja........; A mulher cuja........; Algum........; Todos........; Quaesquer…….. (RIBEIRO, 1891, p. 17-18) Em outro caso, no exercício IV, Júlio Ribeiro pede o mesmo que Holmes: “Indicar quaes os substantivos e quaes os adjectivos nas phrases seguintes” (1891, p. 18). No entanto, dos vários elementos dados por Holmes, Júlio Ribeiro aproveita apenas dois e substitui os outros por frases que trabalham aquelas questões da limitação da palavra e dos adjetivos qualiicativos e dos limitativos l: “Bons meninos–Cousas boas e más–Este cavallo–Aquelle cachorro grande–Essa linguagem desabrida– Um caminho estreito–Homens cujos chapéos pardos–Aldeia suja–Vinte e cinco casas–Oitenta e quatro lindas raparigas–Calças pretas–Gravatas azues” (RIBEIRO, 1891, p. 18). As modiicações se dão igualmente no emprego da terminologia. Na parte IV, Palavras empregadas para restringir a signiicação dos substantivos, quando se explica que a maior parte dos substantivos são Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 607 nomes de classes ou de espécies de coisas, Júlio Ribeiro insere uma modiicação na terminologia, pois, enquanto Holmes fala apenas em “Common Nouns”, ele emprega a nomenclatura “Substantivos Communs ou Appelativos”, adicionando, portanto, um segundo nome para esse tipo de classe de palavra. No item seguinte (28 de Holmes e 30 de Júlio Ribeiro), o que se vê, contrariamente, é que Júlio Ribeiro suprime uma palavra do texto de Holmes, mas aqui a questão já não é de terminologia, mas de caracterização das propriedades da classe de palavras, por assim dizer. Nesse item, Holmes fala de restringir “the signiication or application” do nome, ao passo que Júlio Ribeiro fala apenas de restringir “a signiicação” do nome. As modiicações impostas pela ordem da língua são bastante claras no tratamento do artigo na parte IV. Essas imposições vão determinar a natureza dos exemplos empregados pelos dois gramáticos. No item 29 de sua gramática (31 da de Júlio Ribeiro), Holmes explica: “A or an, and the are the words employed to limit the application of nouns in this way” (1878, p. 14). Em seguida, exempliica: “We say, a chair, an owl; the chair, the owl; the chairs, the owls”. Júlio Ribeiro, por sua vez, trata desse item, traduzindo-o da seguinte maneira: “«–O–a–os–as» são as palavras que empregamos para restringir deste modo a applicação dos SUBSTANTIVOS” (1891, p. 20). E exempliica da seguinte forma: “O mocho–a coruja–os mochos–as corujas”. Na gramática do inglês, a palavra owl (coruja) serve para marcar a propriedade da palavra “an”, que introduz palavras que começam por som vocálico. É por isso que, em Holmes, o par é chair (cadeira) e owl (coruja), pois a questão é se a palavra começa por som vocálico ou consonantal. Em Júlio Ribeiro, pelo próprio funcionamento do artigo em português, o par mocho/coruja é empregado para mostrar a diferença entre masculino e feminino. Justamente para marcar essa especiicidade da língua inglesa, Holmes vai escrever o item 30, que será completamente excluído por Júlio Ribeiro, pois essa explicação não cabe em português: A or an is employed to signify that a single member of the class is spoken of, and that no particular individual of the class in meant. A chair denotes a single chair, and is applied to any chair, without indicating any chair in particular. An owl means a single owl, but does not mean any particular owl. A is use before words beginning with a consonant sounds; as, a boat. An is used before 608 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 words beginning with a vowel sound; as, an apple. (HOLMES, 1878, p. 14)3 Da mesma forma, os itens 34, 35 e 36 da gramática de Holmes serão inteiramente apagados por Júlio Ribeiro. Nesses itens, Holmes estabelece uma diferença entre “Indeinitive Article” e “Deinitive Article”: 34. A or an is called the Indefinite Article, because it leaves undeined or undetermined the particular member of the class signiied by the noun. A man is any man. No particular man is meant. The article a shows that no particular man is meant. 35. The is called the Definite Article, because it points out or deines the particular member or members of the class mentioned. The man is not any man, but a certain speciied man.The men is not any men indifferently, but certain deinite men. 36. When nouns are not limited by an article, they embrace the whole class named by them.Man embraces the whole human family. Men includes all men. Birds comprehends all birds without limitation. Iron, silver, gold mean everything consisting of those metals. (HOLMES, 1878, p. 15)4 A ou an são empregados para signiicar que um único membro de uma classe é referido no que se diz, e que nenhum membro em particular da classe é apontado. A chair denota uma única cadeira, e é empregado para qualquer cadeira, sem a indicação de qualquer cadeira em particular An owl signiica uma única coruja, mas não se refere a qualquer coruja em particular. A é utilizado antes de palavras que sejam iniciadas por som consonantal, como a boat «um braco». An é utilizado antes de palavras que sejam iniciadas por som vocálico, como an apple «uma maçã». (HOLMES, 1878, p. 14) 4 34. A ou an é referido como Artigo Indeinido porque ele deixa indeinido ou subdeinido o membro particular da classe representada pelo substantivo. A man é qualquer homem. Nenhum homem em particular é referido. O artigo a mostra que nenhum homem em particular é apontado. 35. The é chamado de Artigo Deinido porque ele aponta ou deine o membro ou os membros da classe mencionada. The man não é qualquer homem, mas um certo homem especiicado. The men não são quaisquer homens indiferentemente, mas certos homens deinidos. 36. Quando substantivos não são limitados por um artigo, eles abarcam toda a classe por eles nomeada. Man abarca toda a família humana. Men inclui todos os homens. Birds compreende todos os pássaros sem limitação. Iron, silver, gold (ferro, prata, ouro) signiicam tudo feito destes metais. (HOLMES, 1878, p. 15) 3 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 609 Excluindo toda essa parte, Júlio Ribeiro não considera em sua gramática a diferença entre artigo deinido e indeinido, distinção que ele estabelece normalmente na sua Grammatica Portugueza em 1881. O autor também não trata do funcionamento coletivo do substantivo que, quando não limitado por um artigo, contempla uma classe inteira nomeada por ele. Com o artigo, Júlio Ribeiro faz inversamente o que fez com o adjetivo. Se com esse último, ele acrescentou uma classiicação que Holmes não contemplava, aqui ele desconsidera uma classiicação considerada pelo estadunidense. Nesse ponto, não é algo da ordem da língua que está em jogo, mas a própria posição (teórica) do gramático que o leva a considerar ou desconsiderar uma classiicação, contemplar ou não um determinado funcionamento de uma classe de palavra. De fato, a própria deinição de artigo de Júlio Ribeiro não vai corresponder àquela encontrada por ele em Holmes. O brasileiro deine artigo da seguinte forma: “ARTIGO é uma palavra que restringe a signiicação do nome a um ou mais individuos determinados de uma classe” (RIBEIRO, 1891, p. 21). E Holmes assim o faz: “Articles are words employed to show the manner in which nouns are used in a sentence, and to determine their application” (HOLMES, 1878, p. 15). De início, como diferença na deinição, Holmes diz para que serve o uso da palavra artigo, enquanto Júlio Ribeiro diz o que ela é. Para Holmes, o artigo mostra a maneira como um substantivo é usado numa frase e para determinar sua aplicação. Fala-se, portanto, de forma mais geral, em uso e aplicação. A deinição de Júlio Ribeiro põe acento justamente sobre a aplicação, explicando que a função que cumpre o artigo é restringir a signiicação do nome a um ou mais indivíduos. Vemos mais modiicações do texto de Holmes por Júlio Ribeiro nos exercícios trazidos no im dessa parte IV da gramática. No exercício II, a diferença se dá em razão de Júlio Ribeiro não ter feito a distinção entre adjetivo deinido e indeinido, como havia feito Holmes. Assim, enquanto Holmes pede “Use the Indeinite Article with the nouns”, Júlio Ribeiro pede apenas “Ponha artigo antes de cada um dos nomes da lista seguinte”. Nesse exercício, Ribeiro aproveita a maior parte das palavras listadas por Holmes. Justamente por não fazer essa distinção, Júlio Ribeiro não insere na sua gramática o exercício III proposto por Holmes, no qual ele pede para usar o artigo deinido na lista de palavras que ele propõe. 610 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 Na parte V da gramática, Palavras que substituem os Substantivos, em que se explica que, quando se menciona uma coisa mais de uma vez, pode-se tornar inconveniente repertir-lhe sempre o nome, Júlio Ribeiro aproveita apenas o tema das frases de Holmes, usando como exemplo a palavra sol, que, colocada em várias frases na posição de sujeito, serve para mostrar como seria extravagante repetir a mesma palavra em toda frase. Nas frases do brasileiro, escritas com um tom bem poético (inversão da ordem direta, uso de adjetivos, imagens bucólicas e românticas) que não encontrado em Holmes, que utiliza frases mais diretas e curtas, o sol é repetido sempre na posição de sujeito, como em Holmes, mas uma outra palavra é repetida em todas as frases – a palavra terra. Júlio Ribeiro mostra, assim, o inconveniente da repetição em mais de uma posição sintática, o inconveniente da repetição de duas palavras: When a thing is mentioned more than once, it is often inconvenient to repeat its name on each occasion.It would be awkward if we were obliged to say: The sun returns every morning. The sun rises in the east. The sun ascends the sky. The sun stands at noon above our heads. The sun then descends. The sun sets in the west. The sun passes out of sight in the evening.Instead of repeating the name of the sun so often, and multiplying sentences, we say: The sun returns every morning; it ascends the sky; it stands at noon above our heads; it then descends; it sets in the west; and it passes out of sight in the evening.The word it supplies the place of the noun sun, and refers to it. (HOLMES, 1878, p. 16) Quando se menciona uma cousa mais de uma vez, pode-se tornar inconveniente repertir-lhe sempre o nome.Seria extravagante dizer-se: «Em tudo e por tudo é o sol o pae da vida da terra: o sol dá á terra os annos e os mezes; o sol dá á terra a mudança dos céos, o sol dá á terra a alternativa das estações. Do sol vem á terra a luz esplendida dos dias de verão, do sol vem á terra a meiguice feiticeira das noutes de luar. É o sol que á terra veste os campos, é o sol que á terra enche os rios, é o sol que a terra fecunda. Gloria ao sol, gloria ao pae da vida!» Em vez de repetir tanto «terra» e «sol», diz-se mais acertadamente: «Em tudo e por tudo é o sol o pae da vida da terra: elle dá-lhe os annos e os mezes; ele dá-lhe as mudanças dos céos, dá-lhe a alternativa das estações. Delle lhe vem a luz esplendida dos dias de verão, delle lhe vem a meiguice feiticeira das noutes de luar. É elle que lhe veste os campos, é elle que lhe enche os rios, é elle que a fecunda. Gloria ao sol, gloria ao pae da vida!» (RIBEIRO, 1891, p. 22-23) Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 611 Assim como Holmes, Júlio Ribeiro vai reescrever as frases mostrando que as palavras repetidas podem ser evitadas. Notamos então que sol é substituído pelas palavras ele e dele, dependendo da posição sintática, e que terra é substituída por lhe e a. Em Holmes, originalmente, as frases são reescritas com a substituição da palavra sun (sol), sempre em posição de sujeito, pela palavra it. No im desse ponto, como transcrevemos acima, Holmes explica: “The word it supplies the place of the noun sun, and refers to it”.5 Esse trecho é completamente cortado por Júlio Ribeiro, não sendo reaproveitado em sua gramática. É apenas pelo próprio emprego do exemplo que Júlio Ribeiro deixa entender que as palavras usadas (nas frases reescritas) substituem e se referem às palavras repetidas (nas frases com palavras repetidas). É o próprio exemplo que funciona, portanto, como explicação gramatical. Dito de outro modo, é a própria explicação gramatical que é cortada por Júlio Ribeiro, uma vez que o entendimento poderia se dar pelo exemplo. Ainda nessa parte V, depois de explicar que pronome é uma palavra que se põe no lugar do substantivo (na verdade, Holmes fala em “word which supplies the place of”, ao passo que Júlio Ribeiro diz “palavra que se põe em lugar de”), o estadunidense diz: “Some pronouns stand for nouns. Other pronouns stand for adjectives”6 (HOLMES, 1878, p. 17). Ao retomar essa passagem, Júlio Ribeiro vai cortar a explicação sobre os adjetivos. No seu lugar, ele vai expor que alguns pronomes substituem e limitam ao mesmo tempo os nomes: “Alguns pronomes substituem simplesmente os nomes: outros substituem-n-os, limitando-os ao mesmo tempo” (RIBEIRO, 1891, p. 23). Em virtude disso, os exemplos de Holmes vão ser completamente substituídos por Júlio Ribeiro: Bring wood to the ire. Its is at the door. Here it supplies the place of wood. It stands for a noun. This tree is an oak, that tree is a chestnut. Here this supplies the place of an adjective, such as nearest; that, of an adjective like furthest. (HOLMES, 1878, p. 17) «Preciso muito da chave, e não sei onde ella está.» Aqui «ella» substitue simplesmente o substantivo «chave».«Olhe as vigas: está é de peroba; aquella é de pinheiro». Aqui «esta» e «aquella» substituem o substantivo «viga», e ao mesmo tempo limitam-n-o, 5 6 A palavra it supre o local do substantive sun (sol), e se refere a ele. Alguns pronomes substituem substantivos. Outros pronomes substituem adjetivos. 612 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 mostrando a posição differente que occupam as duas cousas que elle representa. (RIBEIRO, 1891, p. 23-24) Ao explicar os exemplos, Holmes vai dizer, segundo o caso, que a palavra toma o lugar do nome ou do adjetivo, chamando atenção, portanto, ao nomear, para a classe da palavra substituída, substantivo e adjetivo, no caso. Júlio Ribeiro, por sua vez, quando vai explicar os seus exemplos, ele também vai dar o nome da classe a ser substituída, no caso somente o substantivo, pois ele não considera o adjetivo em sua explicação, mas acrescenta ainda, por meio de um exemplo, a propriedade do pronome de limitar o substantivo. Nessa parte V, Júlio Ribeiro não segue a classificação dos pronomes adotada por Holmes, propondo, em seu lugar, uma divisão de menos classes, mas com subclasses. Assim, Holmes (1878, p. 17) faz a seguinte consideração sobre os pronomes: “Pronouns are divided into Personal, Relative, Interrogative, and Adjective”. Júlio Ribeiro, ao tratar do assunto, estabelece: “Ha duas classes de pronomes: Pronomessubstantivos e Pronomes-adjectivos” (RIBEIRO, 1891, p. 24). Como se nota, é Júlio Ribeiro quem fala em classe, enquanto Holmes apresenta simplesmente a divisão dos pronomes. O brasileiro vai então acrescentar dois pontos em sua gramática que não estão na de Holmes: o item 40, para explicar que os pronomes substantivos são os que substituem simplesmente os substantivos, e o item 41, para explicar que os pronomes adjetivos são os que substituem os substantivos, limitando-os ao mesmo tempo. No item seguinte, 42, a numeração das duas gramáticas volta a se emparelhar. No seu texto, Holmes (1878, p.17) explica por que os pronomes pessoais são assim chamados: “The Personal Pronouns are so called, because they distinguish between the person speaking, the person spoken to, and the person or thing spoken of.” O texto de Júlio Ribeiro vai mudar sutilmente, pois ele vai explicar por que os principais pronomes substantivos são chamados de pronomes pessoais, mantendo a mesma explicação de Holmes: “Os principaes pronomes-substantivos chamam-se PRONOMES PESSOAES, porque estabelecem distincção entre a pessoa que falla, a pessoa a quem se falla, e a pessoa de quem se falla” (RIBEIRO, 1891, p. 24-25). Os pronomes pessoais entram na classiicação de Júlio Ribeiro como uma classe dos pronomes substantivos. Ele insere, portanto, uma subclassiicação que não foi contemplada por Holmes. Também retira completamente nesse ponto a observação de Holmes sobre como Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 613 é pouco praticável substituir os pronomes pessoais I (eu) e you (você): “It is scarcely practicable to substitute nouns for the personal pronoun ‘I’ and ‘you.’ But nouns may be easily substituted for ‘it’ and ‘him’. Thus we may say, “I wish you to tell the secret to a friend” (HOLMES, 1878, p. 17).7 Essa observação, na verdade, vai ser deslocada por Júlio Ribeiro, sendo recolocada dois pontos à frente, após explicar, no item 44, quais sãos os pronomes pessoais da primeira, segunda e terceira pessoa. É nesse lugar, depois de listar todos os pronomes pessoais das três pessoas, portanto, que o autor brasileiro julga ser adequado fazer tal observação, e não, como Holmes, depois de simplesmente explicar por que os pronomes pessoais são assim chamados. A quantidade de pronomes listados por Júlio Ribeiro é bem maior do que aquela listada por Holmes. Seria possível argumentar que a questão aqui é da própria ordem da língua, pois o português teria, de fato, mais pronomes pessoais que a língua inglesa. Há, no entanto, algo que tem a ver com a descrição da língua, revelando antes mais um gesto de autoria do gramático brasileiro. Júlio Ribeiro lista todos os pronomes pessoais possíveis em português. Holmes, todavia, lista apenas uma parte dos pronomes pessoais possíveis em inglês, ignorando me, you, him, her, us e them. Nesse ponto, é importante ver os cortes e a reorganização textual que Júlio Ribeiro faz na explicação de Holmes sobre o que é a primeira, a segunda e a terceira pessoa: The Personal Pronouns are–I, We, of the irst person; Thou, You, of the second person; He, She, It, They, of the third person.The irst person denotes the person or persons speaking.The second person denotes the person or persons spoken to, or addressed.The third person denotes the person or persons, thing or things spoken of. (HOLMES, 1878, p. 17-18) Os pronomes pessoaes são: da 1.ª pessoa: «Eu, me, mim, migo; nós, nos, nosco». da 2.ª pessoa: «Tu, te, ti, tigo, vós, vos, vosco». da 3.ª pessoa «Elle, ella, o, a, lhe, se; elles, ellas, os, as, lhes, se.» A primeira pessoa é aquella que falla. 7 É pouco prático substituir substantivos pelos pronomes pessoais I (eu) e you (tu, você). Substantivos, porém, podem ser facilmente substituídos por it e him. Assim, podemos dizer, “I wish you to tell the secret to a friend” (Eu desejo que você conte o segredo para um amigo). 614 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 A segunda pessoa é aquella a quem se falla. A terceira pessoa é aquella de quem se falla. Qualquer das tres pessoas pode ser constituida por uma só ou por mais pessoas. OBSERVAÇÃO: Não é quasi possivel substituir os pronomes da primeira e da segunda pessoa por substantivos. Com os pronomes da terceira pessoa a substituição é facil. (RIBEIRO, 1891, p. 25-26) Júlio Ribeiro corta, portanto, a consideração de Holmes sobre a segunda pessoa considerada também aquela a quem se endereça e quanto à terceira pessoa, que para ele é também a coisa ou coisas de quem se fala. A deinição de Júlio é mais enxuta, por assim dizer, e talvez mais geral, na medida em que não faz distinção entre pessoa e coisa, por exemplo. Júlio Ribeiro corta os últimos dois itens da parte V da gramática de Holmes, justamente aqueles em que o estadunidense explica e apresenta os pronomes relativos e interrogativos. No tratamento dos pronomes adjetivos, é possível ver que até a própria classiicação proposta pelos dois gramáticos é realizada de maneira diferente em virtude das modiicações operadas por Júlio Ribeiro no texto de Holmes. Assim, esse último explica que os pronomes adjetivos são divididos em possessivos, demonstrativos, distributivos e indeinidos, listando os adjetivos de cada uma dessas classes: The Adjective Pronouns are divided into several classes: 1) The Possessive Pronouns; as, my, our, thy, your, his, her, its, their. 2) The Demonstrative Pronouns; as, this, that, these, those. 3) The Distributive Pronouns; as, each, every, either. 4) The Indeinite Pronouns; as, some, other, any. (HOLMES, 1878, p. 18) Júlio Ribeiro, por sua vez, vai explicar o que são os adjetivos, sem dividir classes nem listar quais são esses pronomes adjetivos. No tratamento que dá à questão, Júlio Ribeiro vai fazer ainda uma observação sobre o fato de alguns adjetivos limitativos não poderem ser empregados pronominalmente: Os Pronomes-adjectivos são exactamente os adjectivos limitativos empregados pronominalmente, isto é, sem substantivo claro. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 615 OBSERVAÇÃO: Alguns adjectivos limitativos não podem ser empregados pronominalmente, isto é, sem substantivo claro. «Cada», por exemplo, nunca pode estar só na phrase. (RIBEIRO, 1981, p. 26) No exercício ao im da parte V, no qual se pede para indicar quais são os pronomes, distinguindo-lhes a classe (Júlio Ribeiro fala em classes, Holmes em tipos), o brasileiro utiliza outras frases que aquelas empregadas por Holmes, como se as usadas pelo estadunidense não servissem para sua gramática: Point out the Pronouns in the following sentences, distinguishing their kinds. I went to see your father at his house. He had gone to a neighbor’s. You found the axe before it was needed. Now give it to him. Every thing should be put in its place, that you may know where each thing is. This is the knife which James found. Whose knife is it? (HOLMES, 1878, p. 18)8 Indicar os pronomes, distinguindo-lhes as classes, nas sentenças seguintes: «Eu comi as laranjas de José, e tu comeste as minhas.– Vós me não amais.– Olhe os cavallos: este é meu; esse é de meu pae; aquelle não sei de quem é.–Quer peras? Cada uma custa meia pataca.– Gosto muito de Maria, e não posso tolerar a Pedro: ella é uma menina intelligente e mansa, elle é um diabinho estupido e bravio.» (RIBEIRO, 1891, p. 26) Na parte VI, Palavras que signiicam acções e condições de cousas, Júlio Ribeiro passa uma frase de Holmes da forma passiva para a forma ativa, dando destaque, portanto, ao sujeito que exprime a ação. Após explicar que, quando se menciona alguma coisa, menciona-se com o im de dizer qualquer outra coisa a respeito dela, Holmes (1878, p. 19) exempliica da seguinte forma: “If I say, ‘Stars shine’, a thought is 8 Aponte os pronomes nas seguintes frases, distinguindo os seus tipos. Eu fui ver o seu pai na casa dele. Ele havia ido à casa de um vizinho. Você encontrou o machado antes de ele ser necessitado. Agora, dê-me-lo. Tudo deve ser colocado em seu lugar, de forma a que você saiba onde cada coisa está. Esta é a faca que James encontrou. De quem é esta faca? (HOLMES, 1878, p. 18) 616 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 expressed, and some information conveyed”.9 Retomando essa passagem, Ribeiro (1891, p. 27) a traduz da seguinte forma: “Si eu digo «Estrellas brilham», exprimo um pensamento, e dou uma informação”. Parece um detalhe banal, mas não é de forma alguma gratuito, na medida em que mostra justamente um ajuste de Júlio Ribeiro no texto de Holmes. Várias modiicações por alterações ou substituições de exemplos podem ser encontradas na gramática de Júlio Ribeiro. Ainda na parte VI, por exemplo, ele substitui um dos quatro exemplos dados por Holmes na deinição de verbo como uma palavra que exprime existência, condição de existência, ato ou ação. Holmes usa I am here; I weep; I run; I strike a blow. Júlio Ribeiro, por sua vez, substitui o terceiro exemplo (I run, eu corro) por “Eu como”. Para o gramático brasileiro, esse exemplo é melhor do que aquele dado pelo estadunidense. Nesse mesmo ponto, Júlio Ribeiro aproveita integralmente o texto de Holmes, mas altera a ordem das frases e substitui palavras. Holmes (1878, p. 20) escreve: “No sense will be made by the other words, if the verbs are left out of the sentences”. Invertendo a ordem da frase, Ribeiro(1891, p. 29) apresenta a seguinte tradução : “Si tirar-se o verbo das sentenças em que elle não possa facilmente subtender-se, icam as outras palavras sem sentido”. Imediatamente em seguida, Holmes escreve o seguinte enunciado: “No sense will be made by the words, I ––– sick; The kind lady ––– me. But the sense is complete in the sentences, I was sick; The kind lady nursed me”. Júlio Ribeiro, por sua vez, aproveita os exemplos de Holmes, mas substitui a palavra sense por conexão no primeiro uso, traduzindo-a como sentido mais à frente: “Não ha connexão em «Eu..... um ataque; a boa senhora..... me.». Completa-se o sentido quando se diz: «Eu TIVE um ataque; a boa senhora SOCCORREU-me.»”. Num caso de substituição de exemplos motivada por algo que não é da ordem do funcionamento estrito da língua, Júlio Ribeiro exempliica com o prolóquio “muito riso, pouco siso” a observação do item 50 relacionada ao fato de muitas vezes ser possível fazer arranjos de sentenças sem verbos, que, nesses casos, são sempre subentendidos. Holmes, para exempliicar casos como esses, utiliza o provérbio “many men, many minds”. Nessa mesma observação, Júlio Ribeiro exclui algo da parte do texto de Holmes, pois o gramático estadunidense explica 9 “Se eu disser, ‘Estrelas brilham, um pensamento é expressado, e alguma informação transmitida” Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 617 que um verbo é “understood, or implied”, enquanto o brasileiro emprega uma única palavra: subentendido. Ainda no mesmo lugar, Ribeiro (1891, p. 30) reescreve o texto de Holmes quando diz “Há, porém, implicito um verbo que se tem de subtender, mentalmente ao menos, para que haja sentido”. O texto em inglês está escrito da seguinte maneira: “no verb is expressed, but a verb is implied, and must be supplied, in thought at least, before any meaning can be communicated by the words” (HOLMES, 1878, p. 52). No texto de Júlio Ribeiro, a frase “before any meaning can be communicated by the words” é reduzida a “para que haja sentido”, sem referência à signiicação comunicada por palavras. No tratamento dado ao verbo, é possível encontrar modiicações realizadas por Júlio Ribeiro por meio de substituição de termos. Ele explica que o verbo muitas vezes é deinido como palavras de “enunciação ou de asserção”, termos diferentes de Holmes, que, na mesma explicação, diz que o verbo é muitas vezes deinido como palavras de “Assertion or Afirmation”. Júlio Ribeiro, portanto, fala em enunciação e asserção, enquanto Holmes fala em asserção e airmação. Na mesma passagem, Júlio Ribeiro altera ligeiramente o exemplo dado por Holmes, que traz a formulação combater na “guerra” (My brother fought throughout the war), ao passo que ele fala em combater na “China” (Meu irmão combateu na China). Nessa parte, como exemplo de modiicação de terminologia, quando toma a explicação de Holmes de que os verbos são também chamados de “Time-Words, or Tense-Words” por indicarem a época da existência, da condição ou da ação, Júlio Ribeiro usa apenas um único termo, “Palavras de Tempo”. É possível pontuar outras situações em que Júlio Ribeiro modiica o exemplo dado por Holmes, acrescentando mais palavras, sem que isso, no entanto, corresponda aparentemente a uma questão da língua ou da teoria. O gramático brasileiro adiciona elementos à frase do estadunidense como se o que ele havia usado não fosse suiciente. Na parte VII, Palavras que denotam o caracter ou qualidade de acções ou attributos, quando se explica que ações e atributos variam em caráter ou qualidade, em grau ou soma, Holmes (1878, p. 21) usa a seguinte frase como exemplo: “A ship sails on the sea. One ship may sail well; another may sail badly; a third may sail slowly; a fourth may sail very quickly”.10 Júlio Ribeiro, 10 “Um navio navega no mar. Um navio pode navegar bem; outro pode navegar mal; um terceiro pode navegar devagar; um quarto pode navegar muito rapidamente.” 618 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 por sua vez, vai empregar também lagos e rios como lugares por onde os navios navegam, ao passo que Holmes havia mencionado somente o mar: “Os navios navegam no mar, nos lagos e nos rios. Um navio navega bem; outro navega mal; um terceiro navega devagar; um quarto navega rapidamente” (RIBEIRO, 1891, p. 32). No mesmo item (56 de Holmes e 54 de Júlio Ribeiro), recuperando as palavras destacadas nos exemplos para indicar advérbios, vemos que o brasileiro traz pelo menos uma palavra a mais do que o estadunidense, cuja lista é a seguinte: well, badly, slowly, more, exceedingly. A lista de Júlio Ribeiro é formada por bem, mal, de vagar, rapidamente, mais, muito. Ainda nesse mesmo ponto, Júlio Ribeiro faz também o movimento contrário, isto é, o de cortar palavras empregadas por Holmes, uma alteração não na lista de exemplos, mas na descrição das propriedades da classe de palavras. Assim está escrito o texto de Holmes: “‘Dificult’ is an adjective expressing the character or quality of a lesson”. No de Júlio Ribeiro, encontramos a seguinte formulação: “‘Dificil’ é um adjectivo que exprime o caracter da lição”. Para Holmes, portanto, o adjetivo expressa o caráter ou a qualidade do verbo, enquanto que para Júlio Ribeiro o adjetivo exprime apenas o caráter do verbo. Um outro caso de diminuição da quantidade de exemplos pode ser visto no exercício em que se pede para indicar os advérbios nas sentenças. Júlio Ribeiro aproveita e traduz todos os exemplos dados por Holmes, com exceção de um (“Many persons would have acted otherwise”). Num outro exercício, em que se pede para formar frases com os advérbios dados, na lista de Júlio Ribeiro (Alli, então, rectamente, bem, mal, muito, pouco, sempre, nunca, lindamente, correctamente) são excluídos alguns dos advérbios da lista de Holmes (There, then, otherwise, rightly, frequently, sometimes, quickly, soon, justly, wisely, always, never, not, sweetly, cheerfully). Num outro exercício, em que também se pede para indicar os advérbios nas frases, Júlio Ribeiro não subtrai nenhuma das frases de Holmes, mas substitui uma palavra por outra. Em Holmes, a frase a ser completada é: “The morning is ––– beautiful”, traduzida por Júlio Ribeiro como: “A manhã está ...... triste”. Não é uma imposição da ordem da língua, não é tampouco decorrente de uma discordância teórica, mas revela um gesto de autoria. Para o gramático brasileiro, triste vai melhor na frase do que linda. Na parte VIII, Palavras que signiicam a relação ou a direcção de uma cousa para outra, quando se explica que uma palavra ou uma Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 619 frase é muitas vezes limitada pela expressão da relação que ela tem com alguma outra coisa, ou pela adição de alguma coisa a que se dirige a signiicação dela, na explicação do exemplo, Holmes mostra qual palavra é limitada por qual palavra e a que palavra se dirige tal palavra, isto é, ele marca as conexões entre as palavras: The farmer is ploughing in his ield on the hill before us. Here the phrase “is plouhing” is limited by expressing its relation to the farmer’s own ield, and the meaning of “ield” is directed to the particular ield “on the hill”, and the meaning of “hill” is directed and confined to the field in sight, or “before us.” (HOLMES, 1878, p. 23). Com base no texto de Holmes, Júlio Ribeiro explicita as mesmas relações, mas vai acrescentar também a natureza da expressão que é limitada, isto é, ele não apenas mostra as ligações entre as palavras, mas também especiica a função da palavra, dizendo que a expressão limitada é de circunstância de lugar: «O macuco está pousado em um galho de canelleira.»Aqui a phrase «está pousado» é limitada pela expressão de circumstancia de logar «em um galho», e a signiicação de «galho» é dirigida a um galho de canelleira. (RIBEIRO, 1891, p. 35) Quando se explica que as preposições são assim chamadas porque usualmente se colocam antes das palavras às quais se dirige a signiicação de uma outra palavra, ou que são restringidas por essa signiicação, Júlio Ribeiro corta completamente a seguinte observação de Holmes (1878, p. 24): “Prepositions do not always precede the nouns dependent upon them, nor are nouns always required with them; as, It was spoken of”.11 Esse funcionamento não se aplicaria ao português ou o brasileiro não julgou necessário falar sobre isso em sua gramática? Em outro momento, Júlio Ribeiro altera parte da deinição de preposição apresentada por Holmes. A deinição dessa classe de palavras é a seguinte em Holmes: “A Preposition is a word which expresses the relation or direction of the meaning to another word or thought” (HOLMES, 1878, p. 24). A deinição assim aparece em Ribeiro (1891, p. 36): “PREPOSIçÃO é uma “Preposições nem sempre precedem os substantivos que são seus dependentes, e nem sempre substantivos são necessários com elas; como, It was spoken of)”. 11 620 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 palavra que exprime a relação ou a direcção de uma palavra ou de um pensamento para outra palavra ou para outro pensamento”. Na formulação de Júlio Ribeiro, “of the meaning” vem a ser “de uma palavra ou de um pensamento”, isto é, signiicado dá lugar a palavra e pensamento. Quando Júlio Ribeiro retoma o exercício proposto por Holmes, no qual se pede que se identiiquem as preposições nas sentenças, vemos modiicações que parecem estar aí simplesmente pelo fato de Júlio Ribeiro preferir outra palavra àquela usada por Holmes, mas isso também não deixa de signiicar um gesto de autoria. Desse modo, no exercício em que se pede para inserir preposições nas sentenças, Júlio Ribeiro traduz as frases apresentadas por Holmes, mas substitui a palavra dog (Drive the dog ––– the house) pela palavra cavalo (Tire o cavallo ..... dentro ..... casa). Nesse caso, a tradução fornece, em português, dois ambientes para inserir a preposição, o que demonstra haver algo da ordem da própria língua, mas que não tem absolutamente nada a ver com o fato de Júlio Ribeiro trocar cachorro por cavalo na frase. Da mesma forma, o brasileiro troca the street (The regiment marched ––– the street) por cidades despovoadas (O regimento passou ...... cidades despovoadas). Num terceiro exercício, em que o comando é formar sentenças em que entrem as preposições listadas, Júlio Ribeiro reduz o número de preposições apresentadas por Holmes, talvez porque algumas das preposições em inglês usadas pelo estadunidense (About, above, under, below, in, into, upon, within, without, through, by, to) correspondam a uma única preposição em português na lista do brasileiro (A–para–em– de–sobre–sob–com–ante–sem). Cabe marcar a decisão de Júlio Ribeiro de traduzir, em duas ocasiões, o termo statement, utilizado por Holmes, como juízo. No item 62 (64 de Holmes), por exemplo, ele explica que, nas frases “cão ladra E morde–O cão morder-te-á SI tu lhe bateres”, “duas palavras ou dois juízos estão ligadas pelas palavras e e si”. Já no item 63 (65 de Holmes), ele airma que se empregam “certas palavras para ligar outras palavras entre si, ou para ajunctar juizos”. Em Holmes, as frases estavam assim escritas: “In these examples, two words or two statements are conected together by the words ‘and’ and ‘if.’” e “Certain words are employed to join other words or statements together”. O interessante, contudo, é notar que, em todas as outras ocasiões em que Holmes usa a palavra “statements”, e são mais de vinte ocorrências ao longo de todo o texto, Júlio Ribeiro a traduz como asserção na maioria das vezes, mas duas Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 621 vezes, pelo menos, ela é traduzida como asserto; uma vez, como sentença, e não como juízo. Nesses dois casos, no entanto, ele julgou melhor falar justamente em juízo. Nos exercícios ao inal da parte sobre as conjunções, Júlio Ribeiro vai alterar a quantidade de itens, listando menos conjunções (E–ou; nem–; porque–porquanto–pois–si–que–mas–porém–como) que Holmes (And, or, either: nor, neither: because, for, since, till, if, that, but, though, unless, lest, yet) no momento em que pede para formar sentenças com as conjunções listadas, ou simplesmente acrescentando frases que não se encontram em Holmes, quando, no exercício em que pede para identiicar as conjunções, ele escreve: “Si eu fosse rico, mandava-te para a Europa”. É possível destacar outros momentos em que Júlio Ribeiro insere mais elementos do que Holmes para mostrar o funcionamento de uma classe de palavra. Quando explica que algumas palavras são empregadas somente com o im de indicar emoção, ele traduz e lista os mesmos cinco tipos de emoção descritos por Holmes (grief, joy, disgust, surprise, fear), mas insere uma a mais, o receio. Por outro lado, o gramático brasileiro, na mesma passagem, mostra menos exemplos de palavras dessa espécie (Ah! Oh! Ai! Ih!) do que o estadunidense (Ah! Hurrah! Ugh! Ha! Oh! Alas!). Ainda no tratamento das interjeições, no item 69 (71 de Holmes), Júlio Ribeiro corta completamente os exemplos de interjeições dadas por Holmes e deixa somente a própria deinição, como se os exemplos fossem desnecessários diante da deinição. Assim, como Holmes, ele vai dizer: “Palavras que podem ser introduzidas em qualquer parte das sentenças chamam-se Interjecções, isto é, «palavras lançadas no meio da sentença»” (RIBEIRO, 1891, p. 42). No entanto, ele vai cortar essa passagem do texto de Holmes: “Ah! Oh! Alas! are Interjections” (HOLMES, 1878, p. 27). Na parte XI, Enumeração das classes de palavras, quando são retomadas as deinições de classes de palavras, temos uma nova oportunidade de notar algumas das alterações que Júlio Ribeiro faz nas deinições apresentadas por Holmes. Quando retoma o adjetivo, por exemplo, vemos mais uma vez que ele introduz a limitação das coisas como uma propriedade dessa classe de palavras, algo que, como já mostramos, não está presente no texto de Holmes. No caso dos artigos, o brasileiro considera como sua propriedade individualizar e particularizar a signiicação dos substantivos, enquanto o estadunidense fala em determinar a aplicação ou acepção dos substantivos. Assim é apresentada a deinição no texto de Holmes (1878, p. 8): “Words determining the 622 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 application or acceptation of nouns, or Articles”. No de Ribeiro (1891, p. 44), a formulação se faz desta maneira: “Palavras que individualizam e particularizam a signiicação dos substantivos, ou Artigos”. Quanto aos verbos, ele acrescenta como descrição que eles enunciam, dizem ou declaram: “Palavras que signiicam a existência, a condição, o acto ou a acção das cousas, ou, em outros termos, palavras que enunciam, dizem ou declaram, chamadas Verbos” (RIBEIRO, 1891, p. 44). Essa segunda parte da frase de Júlio Ribeiro não se encontra na deinição de Holmes (1878, p. 28): “Words signifying the existence, condition, act, or actions of things, or Verbs”. Alguns outros casos de mudanças de exemplos operadas por Júlio Ribeiro podem ser encontrados na parte XII, Sentença. Holmes utiliza o seguinte exemplo de sentença complexa: “The night cometh when no man can work”. A frase de Júlio Ribeiro é a seguinte: “A noute é triste por que é a ausência do sol”. Um exemplo de sentença simples para Holmes é: “The summer is pleasant, and it is adorned with lowers”. O mesmo exemplo é vertido por Júlio Ribeiro da seguinte maneira: “O Verão é agradável, e a Primavera é risonha”. Em outro caso, Holmes escreve: “To die for the right is worthy of all praise”. Já Júlio Ribeiro prefere: “Morrer pela pátria é doce e glorioso”. Quando ensina que o que se diz acerca do sujeito se chama predicativo, Júlio Ribeiro mais uma vez acrescenta palavras no texto de Holmes. A modiicação de Júlio Ribeiro nomeia qual a classe de palavra para a qual se chama a atenção, enquanto Holmes (1878, p. 31) somente indica a palavra sobre a qual se chama atenção: “In the sentences, Birds ly, ishes swim, men walk, we travel, it is said of birds that they “ly;” of ishes, that the “swim;” of men, that they “walk;” of the persons represented by “we,” that they “travel”. Para o gramático brasileiro, é importante dizer que o nós na frase nós viajamos é um pronome: “Nas sentenças «Passaros vôam–Peixes nadam–Homens andam–Nós viajamos», diz-se dos passaros que elles «vôam»; dos peixes que «nadam»; dos homens que «andam»; e das pessôas representadas pelo pronome «nós» que «viajam»” (RIBEIRO, 1891, p. 49). Em duas ocasiões (itens 87 e 89 do brasileiro e 89 e 91 do estadunidense), Júlio Ribeiro vai acrescentar uma palavra no texto de Holmes para precisar o funcionamento do elemento gramatical explicado. Nos dois casos, ele vai inserir a palavra “sempre” no texto que toma de Holmes. Assim, na primeira vez, Holmes (1878, p. 32) diz: “The subject Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 623 of a simple sentence does not necessarily consist of a single word” . E Júlio Ribeiro traduz: “O sujeito de uma sentença simples não consta sempre, forçosamente, de uma palavra só” (RIBEIRO, 1891, p. 51). Na segunda ocorrência, Holmes (1878, p. 32) escreve: “The predicate of a simple sentence does not necessarily consist of only a single word”. E Ribeiro (1891, p. 52) airma: “O predicado de uma sentença simples não consta, sempre forçosamente de uma só palavra” Em um terceiro caso ainda (item 90 de Júlio Ribeiro e 92 de Holmes), o brasileiro insere outros elementos que atuariam no funcionamento gramatical de um item. Assim, Holmes, quando explica que certos verbos que exprimem ação requerem que se junte algo para completar o predicado, descreve a necessidade de adição de um substantivo ou pronome: “Certain verbs expressive of action require the addition of a noun or pronoun to complete the predicate, by showing on what the action takes effect” (HOLMES, 1878, p. 33) Ao traduzir essa passagem, Ribeiro (1891, p. 52) vai acrescentar como necessidade uma parte do discurso ou uma frase substantivada: “Certos verbos que exprimem acção, para que ique completa a sua predicação, requerem que se lhes ajuncte um substantivo, um pronome, uma parte do discurso ou uma phrase substantivada: este additamento mostra a cousa sobre a qual se exerce acção signiicada pelo verbo”. Cabe ainda notar que Júlio Ribeiro fala em predicação enquanto Holmes fala de “predicate”. Na observação de que esse tipo de verbo se chama transitivo, Júlio Ribeiro volta a reformular a frase de Holmes: “Os verbos que assim requerem a addição de um substantivo ou de qualquer outra palavra ou phrase que lhe faça as vezes, chamam-se Verbos Transitivos” (RIBEIRO, 1891, p. 53). No texto do estadunidense, assim estava escrito: “Verbs that thus require the addition of a noun or pronoun, are called Transitive Verbs” (HOLMES, 1878, p. 33). A mesma estratégia será seguida no ponto seguinte (91 de Júlio Ribeiro e 93 de Holmes), quando Holmes ensina o que é o objeto do verbo: “The noun or pronoun added to complete the predicate of a transitive verb is called the Object of the verb” (1878, p. 33). Já no texto de Júlio Ribeiro, a lição aparece da seguinte maneira: “O nome, pronome, parte do discurso ou phrase substantivada, que se juncta para completar a signiicação de um verbo transitivo, chama-se o «objecto do verbo.»” (RIBEIRO, 1891, p. 53). Cabe notar que Holmes fala em completar o predicado do verbo, enquanto Júlio Ribeiro fala em completar a sua signiicação. No ponto seguinte (92 de Júlio Ribeiro e 94 de Holmes), Júlio Ribeiro corta uma parte da explicação de Holmes 624 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 em que se airma que tanto o sujeito quanto o predicado podem constar de uma só ou de muitas palavras, suprimindo especiicamente a parte em que ele explica que o predicado sempre contém um verbo (“The predicade always contains a verb”). Nessa passagem, Júlio Ribeiro também altera o tamanho do exemplo dado por Holmes, elaborando a frase com mais termos: A simple sentence, then, consists of one subject and one predicate; as, Fire burns. The subject and the predicate may each consist of one, or of several words; as, Bees hum; The busy bee improves each shining hour. The grammatical subject consists of a noun, or a pronoun, or of something equivalent and used as a noun. The logical subject includes all the words which describe the subject of discourse. The predicate always contains a verb. The grammatical predicate consists of the verb only. The logical predicate embraces whatever is said of the logical subject. The grammatical predicate sometimes requires to be completed by the addition of a word denoting on what the action takes effect, and this word is called the object; as, The boys broke–––the bottle. (HOLMES, 1878, p. 33-34) Uma sentença simples, pois, consta de um só sujeito e de um só predicado, exemplo: –«o fogo queima». Tanto o sujeito como o predicado pode constar de uma só palavra ou de muitas, exemplos: –Abelhas zumbem–As diligentes, zumbidoras abelhas colhem das lores o mel de seus favos.» O sujeito grammatical consta de um substantivo, de um pronome, ou de qualquer palavra usada como substantivo. O sujeito logico comprehende todas as palavras que descrevem o sujeito do discurso. O predicado grammatical consta só do verbo. O predicado logico abraça tudo o que se diz do sujeito logico. Por vezes o predicado grammatical requer, para ficar completo, que se lhe addicione uma palavra designativa daquillo sobre o que se effectua a acção, e tal palavra chama-se objecto; exemplo: –«Os meninos quebraram A GARRAFA».(RIBEIRO, 1891, p. 53-54) É interessante notar a oscilação nas escolhas lexicais para o tratamento da sentença complexa. Tanto Holmes quanto Júlio Ribeiro vão intercambiar os termos sentença e proposição, como se fossem equivalentes. No entanto, algumas vezes, o brasileiro vai traduzir como proposição o que o estadunidense chamou de sentence e, contrariamente, preferir sentença quando o outro escolheu falar de proposition. Assim, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 625 num primeiro momento, Holmes (1878, p. 34) explica: “In a complex sentence the leading or limited proposition is called the principal sentence or clause”. E continua: “The secondary or limiting proposition is called the subordinate sentence or clause” (HOLMES, 1878, p. 35). Em Ribeiro (1891, p. 56). por seu turno, vamos ler: “Em uma sentença complexa a sentença limitada ou mais importante chama-se «clausula ou proposição principal»”. E em seguida: “A proposição secundaria ou limitadora chamase «clausula ou proposição subordinada»” (RIBEIRO, 1891, p. 56). Nessa mesma parte, Júlio Ribeiro corta um elemento na deinição de Holmes (1878, p. 35) de sentença composta: “A Compound Sentence is one in which two or more simple and independent sentences are joined together by means of a conjunction”. Na deinição tal como escrita por Júlio Ribeiro, não se marca que as sentenças simples que se juntam para formar uma sentença composta são também independentes: “SENTENÇA COMPOSTA é uma sentença em que duas ou mais sentenças simples junctam-se por meio de uma conjunção” (RIBEIRO, 1891, p. 55). No im, como já comentamos, Júlio Ribeiro vai apresentar um aditamento dos fatos essenciais léxicos e sintáticos da língua portuguesa. 5 A introdução de referências ao Brasil no discurso gramatical por meio da seleção dos exemplos As modiicações de Júlio Ribeiro no texto de Holmes foram fortemente percebidas no emprego dos exemplos, o que tem a ver com a airmação de Auroux (1992, p. 67) de que “os exemplos testemunham sempre uma realidade linguística”, podendo ser utilizados para disfarçar a ausência de certas regras ou a impossibilidade do gramático de formulálas, bem como para justiicar ou questionar regras ou descrições. Na forma de testemunhas de realidades linguísticas diferentes, para guardar a formulação de Auroux (1992), os exemplos utilizados por Holmes não puderam ser mantidos por Júlio Ribeiro em certos casos, como vimos detalhadamente no item anterior, Ainal, Ribeiro trabalha com o português falado no Brasil enquanto Holmes lida com o inglês dos Estados Unidos. É interessante marcar a explicação de Holmes de que os exemplos usados em sua gramática são os mesmos aproveitados tradicionalmente pela maior parte das schools grammars: “The examples and exercises have been usually taken without hesitation from preceding works of a similar nature, – a procedure adopted in most school grammars”. (HOLMES, 626 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 1878, p. 1-2). Não são, portanto, invenções do próprio Holmes, mas obra de uma tradição, o que ilustra bem a airmação de Auroux (1992, p. 67) de que os “exemplos se beneiciam de uma espantosa estabilidade no tempo”, encontrados, “por um procedimento de tradução, de língua a língua”, sendo que “a constituição de um corpus de exemplos é um elemento decisivo da gramatização”. Além de reutilizar esses exemplos recuperados pelo próprio Holmes da tradição da gramática inglesa, Júlio Ribeiro vai modiicá-los muitas vezes para introduzir no discurso gramatical referências ao Brasil e também a Portugal. No item 19, quando se deine que substantivos são palavras que são nomes de coisas, vemos a substituição de um exemplo que parece funcionar para situar algo que se imagina mais próximo da realidade do público da gramática de Júlio Ribeiro. Holmes usa as palavras kettle e andiron como exemplos de coisas que podem ser manejadas ou tocadas. Júlio Ribeiro traduz kettle aproximadamente como caçarola, e andiron como formão. O andiron, no entanto, tem a função especíica de ser o ferro que se utiliza nas lareiras, um instrumento provavelmente pouco conhecido num país com temperaturas elevadas como o Brasil. Mais do que uma palavra, o que parece ser traduzido por Júlio é um modo de vida na medida em que ele substitui a palavra usada por Holmes por outra que evoque um objeto mais conhecido pelos brasileiros. No exercício I da parte IV da gramática, quando o comando é de identiicar os chamados substantivos próprios e apelativos em uma lista, Júlio Ribeiro traz nomes que evocam a geograia do Brasil (S. Paulo) e de Portugal (Lisboa, Portugal), além de listar nomes correntes nos dois países (Amelia, Julio, Gouvêa), enquanto Holmes havia posto nomes usados nos Estados Unidos (Macon, Jackson, Joshua). Diferentemente de Júlio Ribeiro, os nomes de cidade listados por Holmes não evocam a geograia do seu próprio país (Mexico, Pompey, Palestine, Paris). As modiicações de Júlio Ribeiro continuam nos exercícios referentes aos verbos. Quando se pede para indicar os verbos nas sentenças apresentadas e explicar por que são verbos, Júlio Ribeiro aproveita praticamente todas as frases de Holmes, mas muda algumas para trazer imagens da fauna e da geograia do Brasil (e mesmo uma provocação aos portugueses!), em substituição a imagens talvez mais típicas dos Estados Unidos. Assim, Holmes dá como exemplo “Fox live in the holes”, ao passo que Júlio Ribeiro escreve “Os tatus fazem buracos”. No lugar de escrever como Holmes “Pigs squeal”, Júlio Ribeiro escreve “Os portugueses Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 627 grunhem”. Holmes escreve “The snow covers the ground”, ao passo que Júlio Ribeiro escreve “Cahiu neve um dia deste no Rio de Janeiro”. Uma outra ocorrência em que Júlio Ribeiro adapta o exemplo dado por Holmes com elementos mais comuns ao Brasil pode ser vista quando se explica que os advérbios podem ser empregados para limitar ou qualiicar outros advérbios. O exemplo de Holmes (1878, p. 22) é o seguinte: “Jenny Lind sang marvellously well. Your friend paints very beautifully” Júlio Ribeiro (1891, p. 34), por sua vez, escreve: “Sarah Bernhardt inge paixões maravilhosamente bem, e pinta muito correctamente”. A atriz francesa Sarah Bernhardt era bastante famosa no Brasil, tendo visitado o país quatro vezes. A soprano sueca Jenny Lind fez uma grande turnê pelos Estados Unidos, sendo provavelmente por isso mais conhecida por lá do que por aqui. Na sequência, os exemplos de Holmes usados para exempliicar a deinição de advérbios como palavras que se juntam a verbos, adjetivos e a outros advérbios para qualiicar-lhes a signiicação são atribuídos à cantora (“She sings sweetly; she is entirely helpless; she rides very gracefully”); os de Júlio Ribeiro se referem à atriz (“Ella falla docemente, ella é bem linda, ella sabe-se conduzir-se muito bem”). Assim, os exemplos são alterados para se adequarem à mudança de objeto, de cantora famosa nos Estados Unidos para atriz famosa no Brasil. Na parte VIII, Palavras que signiicam a relação ou a direcção de uma cousa para outra, Júlio Ribeiro modiica o exemplo empregado por Holmes, fazendo menção à fauna brasileira. O exemplo de Holmes é “The farmer is ploughing in his ield on the hill before us”. O utilizado por Júlio Ribeiro é o seguinte: “O macuco está pousado em um galho de canelleira”. Quando Júlio Ribeiro retoma o exercício proposto por Holmes em que se pede para identiicar as preposições nas sentenças, o brasileiro aproveita todas as frases do estadunidense, mas substituindo novamente as menções a elementos dos Estados Unidos por itens brasileiros. Ele insere, assim e mais uma vez, por meio dos exemplos, a geograia e a história do Brasil, bem como os hábitos alimentares. A frase em Holmes (1878, p. 24) é: “We went from Boston to Savannah” . Em Ribeiro (1891, p. 370), por sua vez, lê-se: “Elle veio da Côrte para S. Paulo”. A frase de Holmes, se traduzida sem modiicações para o português, serviria perfeitamente ao propósito do exercício, isto é, identiicar as preposições. O gramático brasileiro, no entanto, prefere fazer certas adaptações e trazer imagens brasileiras. Assim, nesse mesmo exercício, ele vai acrescentar 628 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 duas outras sentenças, duas a mais que Holmes, portanto, e nelas se fala justamente da história e de hábitos do Brasil: “Pedro II é ilho de Pedro I” e “Como pão com manteiga”. Nos exercícios ao inal da parte sobre as conjunções, quando se pede para identiicar as conjunções nas sentenças, Júlio Ribeiro aproveita todas as frases criadas por Holmes, mas fazendo mais uma vez a substituição dos nomes próprios em inglês usados pelo estadunidense. Assim, a frase de Holmes “Henry and Fred are good boys, but Tom and Bob are not” é traduzida por Júlio Ribeiro com a substituição dos nomes próprios corriqueiros nos Estados Unidos por nomes comuns no Brasil: “Jorge e Joel são bons meninos, mas Arthur e Osorio não são”. Quando se apresenta de forma mais direta a deinição de interjeição como uma palavra introduzida no corpo de uma sentença para exprimir qualquer emoção súbita da pessoa que fala (item 70 de Júlio Ribeiro e 72 de Holmes), Júlio Ribeiro, uma outra vez, reformula o exemplo dado por Holmes, trazendo novamente menções à geograia do Brasil. A frase de Holmes é: “Strange! that the letter should never have reached me!”. A de Júlio Ribeiro fala de São Paulo e da corte no Rio de Janeiro: “Famoso! a carta partiu de S. Paulo ha oito dias, e ainda não chegou á corte!”. Na parte das sentenças, quando se explica que qualquer palavra ou frase pode ser substantivada e formar sujeito da sentença, Júlio Ribeiro modiica o exemplo para citar o nome de uma obra literária da língua portuguesa quando Holmes havia citado uma obra literária da língua inglesa. Holmes (1878, p. 31) se refere ao Corvo de Poe: “To write Poe’s Raven required high genius”. A referência de Júlio Ribeiro é aos Lusíadas: “ESCREVER LUSIADAS só é dado aos genios”, dando assim publicidade à literatura em língua portuguesa enquanto Holmes dava publicidade à literatura em língua inglesa. 6 Para inalizar: entre as imposições da ordem própria da língua e marcação de uma posição autoral : Holmes Brazileiro como um caso de gramática latina extensa e gesto de constituição de lugar brasileiro de autoria sobre a língua e o conhecimento linguístico Júlio Ribeiro e George Frederick Holmes são dois gramáticos do continente americano que guardam a semelhança de escreverem gramáticas de línguas que já foram gramatizadas nas ex-metrópoles europeias. Pelo menos na gramatização brasileira do português, o Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 629 processo de colonização marca a identidade linguística pelo que Orlandi (2005) chama de memória heterogênea, que posiciona a língua portuguesa no Brasil entre o imaginário de autonomia e de unidade com Portugal. Na comparação da situação linguística nos três primeiros séculos de colonização no Brasil e nos Estados Unidos, Mariani (2004, p. 168) airma que a “relação língua-nação constituída na metrópole inglesa e na colônia americana a partir de sua independência é distinta daquela constituída na metrópole portuguesa e na colônia brasileira”, mostrando, por exemplo, que a colônia brasileira do século XVIII é herdeira de uma concepção de língua submissa ao falar e escrever corretamente, com o português brasileiro sendo apresentado por meio de rubricas como brasileirismos ou provincialismos. Do lado norte-americano, o foco está no vínculo da norma aos usos que possibilitam a expressão ou comunicação dos pensamentos adequadamente, com uma narrativa histórica da língua que enfatiza o plurilinguismo e o multiculturalismo e dá pouco espaço para a designação língua americana. Ainda que reconheça diferenças entre o inglês dos Estados Unidos e o da Inglaterra, Holmes trabalha na ilusão de compor uma gramática da mesma língua da ex-metrópole. Pensando na airmação de Auroux (1992, p. 74) de que o processo de gramatização corresponde a “uma transferência de tecnologia de uma língua para outras línguas”, poderíamos dizer que Júlio Ribeiro escreve sua gramática na ideia de um mesmo funcionamento gramatical entre duas línguas distintas. Na verdade, o que temos aqui é um bom exemplo do que Auroux (1992, p. 78) chama de “gramática latina extensa” quando explica que o “plano relativamente ixo das gramáticas deine o quadro para se preencher por uma descrição de língua e também os termos teóricos necessários para uma primeira apreensão dos fenômenos”. Dessa forma, notamos que, apesar das reformulações de Júlio Ribeiro, as categorias com as quais ele trabalha se mantêm mais ou menos as mesmas daquelas de Holmes e, no fundo, de toda a tradição gramatical ocidental. Nesse ponto, é importante citar a tese de Auroux (1992, p. 42) de que o “fundo latino constitui um fator de uniicação teórica que não tem equivalente na história das ciências da linguagem”, o que explicaria “a homogeneidade conceptual dessas disciplinas”. Dessa forma, ainda segundo Auroux (1992, p. 43-44), o estabelecimento de “identidade de metalinguagem” possibilitou “uma certa equivalência entre as gramáticas das diferentes línguas redigidas em qualquer dos vernáculos em uso”, de forma que “as gramáticas podem ser 630 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 simples traduções umas das outras”. Daí provém a sua observação de que a “gramatização (a base do latim) de um vernáculo europeu pode igualmente servir de partida para uma outra língua e lhe transmitir sua ‘latinidade”. Acentuando modiicações, cabe reforçar a existência de todo um trabalho de ressigniicação do material de Holmes por parte de Júlio Ribeiro. Nesse sentido, vale lembrar a airmação de Orlandi (2004, p. 14) de que “qualquer modiicação na materialidade do texto corresponde a diferentes gestos de interpretação, compromisso com diferentes posições do sujeito, com diferentes formações discursivas, distintos recortes de memória, distintas relações com a exterioridade”. Pensando essa airmação para o entendimento especíico da composição da obra de Júlio Ribeiro no processo de gramatização brasileira no século XIX, vale igualmente recordar o que diz Orlandi (2009, p. 122) sobre a vinculação dos gramáticos brasileiros com a produção internacional na sua airmação de que “as referências a autores estrangeiros, feitos por nossos autores, são uma maneira de argumentar em relação a uma história própria”, de modo a não serem “nem simples inluências nem mera recepção”, mas antes “formas de argumentar em função de ideias que dão a especiicidade de uma iliação de memória intelectual linguística brasileira na relação com a ciência em geral”. “Não há reprodução teórica, mas transferência, re-signiicação”, teoriza Orlandi (2000, p. 23) ao marcar que é preciso “considerar como nossos autores se iliam a linhas de relexão linguísticas para poderem formular suas ideias e constituírem o nosso pensamento gramatical assim como a ideia de uma língua nossa, no Brasil”. É nessa perspectiva inalmente que Orlandi (2009, p. 154) defende que os gramáticos brasileiros do inal do século XIX e início do século XX “assumem a posição-autor de um saber linguístico que não relete meramente o saber gramatical português”, sendo a gramática “o lugar em que se institui a visibilidade de um saber legítimo para a sociedade brasileira e torna visível a língua que falamos”, num “processo de resigniicação, de historicização, tanto da língua quanto do saber sobre ela”. Como um gramático brasileiro do século XIX, no movimento de busca de outras iliações teóricas que não as vindas somente de Portugal e de assumir uma posição de um saber linguístico que não se reduz a reletir meramente o saber gramatical português, Júlio Ribeiro encontra na obra A Grammar of the English Language, do estadunidense George Frederick Holmes as bases para a composição de sua Holmes Brazileiro ou Grammatica da Puericia, uma gramática pretendida como cientíica e Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 593-632, 2018 631 construída com base em uma outra avaliada igualmente como cientíica, num movimento que nos possibilita lançar luz sobre a alteridade que a gramática estadunidense representa para a gramatização brasileira do português. Na transposição de um modelo gramatical, submetido ao engenho dos procedimentos de transferência de tecnologias entre línguas, isto é, ao que é da própria dinâmica da gramatização, Júlio Ribeiro não apenas traduz, mas modiica o compêndio de Holmes. Assim, por exigência das diferenças entre o português do Brasil e o inglês dos Estados Unidos, Júlio Ribeiro reformula o texto de Holmes levado pelas especiicidades da ordem própria da língua. No entanto, não é apenas essa imposição da ordem própria da língua que está em jogo nas reformulações de Júlio Ribeiro, sendo possível enxergar nelas um gesto de autoria do gramático brasileiro sobre a língua e o conhecimento linguístico, gesto signiicado pelas escolhas lexicais para a deinição e classiicação das categorias gramaticais, pela própria redistribuição dessas categorias, descrição de seu funcionamento e consideração de suas propriedades; pelo acréscimo de elementos ao texto de Holmes, como se o que ele havia colocado não fosse suiciente, ou, contrariamente, pela supressão de outros elementos, como se enxergasse um excesso; pelos rearranjos nas frases e dos itens do tratado e pela substituição de exemplos, como se os usados pelo estadunidense não servissem para a sua gramática, inserindo por meio deles referências ao Brasil no discurso gramatical. Referências ALVES, Francisco Ferreira de Vilhena. Primeira Grammatica da Infância. Pará: Pinto Barbosa & Cia, 1896. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 Duração de sílabas em fronteira de frase fonológica na produção de sentenças sintaticamente ambíguas do português brasileiro Syllable duration in phonological phrase boudaries in the production of syntactically ambiguous sentences in Brazilian Portuguese Melanie Campilongo Angelo Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil melanie.angelo@usp.br Raquel Santana Santos Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo / Brasil raquelss@usp.br Resumo: Este artigo investiga a duração de sílabas na produção de sentenças ambíguas do tipo SN1-V-SN2-Atributo no português brasileiro, tais como ‘O pai visitou o ilho feliz’. Fonologicamente, as diferentes leituras são explicadas pelo fato de o atributo poder ou não se juntar ao SN2 na construção do domínio da frase fonológica (NESPOR; VOGEL, 1996). Angelo e Santos (2015) testaram essas sentenças e encontraram apenas um direcionamento de comportamento, mas não uma diferença significativa nos resultados a depender da duração. No entanto, a quantidade de dados e seu balanceamento afetavam os resultados. Aqui, aplicamos o experimento a mais informantes e balanceamos as estruturas para ins de comparação. Os resultados encontrados revelaram diferenças signiicativas observando o tipo de estrutura – os falantes alongaram as sentenças com interpretação não local. Os resultados chamam a atenção ainda para dois tipos de estruturas que podem interferir no processo de eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.633-666 634 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 alongamento, impedindo-o: sentenças em que o atributo é formado por adjetivos deverbais e sentenças que possibilitam construções de small clause. Palavras-chave: aposição local; aposição não local; fronteira prosódica; adjetivos deverbais. Abstract: This article discusses the production of syllable duration in Brazilian Portuguese as a prosodic cue in ambiguous sentences with a NP1-V-NP2-attribute structure (e.g. ‘The father visited his son happy’). Phonologically, the two different interpretations can be explained by the fact that attributes may or may not join NP2 in the construction of the phonological phrase domain (NESPOR; VOGEL, 1996). Angelo and Santos (2015) tested these sentences and found only a bias toward a lengthening when the interpretation is non-local (the father is happy). However, their study lacks a reasonable quantity of data and balance of structures. Here, we rerun the experiment controlling the mentioned problems. Overall results showed signiicant differences for type of syntactic structure - speakers produced high attachment sentences longer than low attachment ones. The indings signal also to two kinds of structures that may interfere in the process, blocking the lengthening: sentences which the attribute is formed by a non-verbal adjective and sentences which allow small clause constructions. Keywords: low Attachment; high attachment; prosodic boundary; deverbal adjective. Recebido em 29 de julho de 2017 Aceito em 14 de setembro de 2017 Introdução Esta pesquisa parte do estudo de Angelo e Santos (2015) sobre o uso da pista prosódica de duração de sílabas na produção de sentenças sintaticamente ambíguas do português brasileiro (doravante PB) e busca explicações para os resultados encontrados. Magalhães e Maia (2006) avaliaram a interpretação da leitura de sentenças que apresentam ambiguidade entre as posições local/não local Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 635 do atributo,1 em sentenças como em (1), que podem ter as leituras com aposição não local (a) e com aposição local (b): (1) A menina venerou a santa sorridente. a. A menina estava sorridente. b. A santa estava sorridente. Angelo e Santos (2012, 2015) reformularam os testes aplicados por Magalhães e Maia (2006) para observar o que acontecia com a duração no trecho onde pode haver uma reestruturação prosódica. Segundo Nespor e Vogel (1986), a interface Fonologia-Sintaxe se dá na construção da frase fonológica. Segundo o algoritmo de construção do domínio de frase fonológica, um constituinte de frase fonológica é formado por um núcleo lexical e pode ser reestruturado com seu complemento. Desse modo, as leituras em (1a) vs. (1b) podem ser explicadas pelo fato de o atributo poder ou não se juntar ao SN2 na construção do domínio da frase fonológica, como exempliicado em (2) e (3): (2) A menina venerou [a santa f] [sorridente f] >> a menina venerou [a santa sorridente f] • A santa estava sorridente (‘sorridente’ é complemento de ‘santa’). (3) A menina venerou [a santa f] [sorridente f] >> *a menina venerou [a santa sorridente f] • A menina estava sorridente (‘sorridente’ não é complemento de ‘santa’, por isso, não pode se reestruturar e compor apenas uma frase fonológica). Além do mais, sabe-se que sílabas tônicas e sílabas inais de palavras são alongadas no inal de domínios prosódicos (FOUGERON; KEATING, 1997). Se quanto mais próximo das fronteiras, maior a duração das sílabas (CHO; KEATING, 2001; KEATING et al., 2003), deveria acontecer uma variação na duração das sílabas de ‘santa’ apenas na aposição não local, seja na tônica ‘san’ ou na átona ‘ta’, por serem próximas à fronteira nessa interpretação. Ou seja, deveria ocorrer 1 Este trabalho será apresentado com mais detalhes na seção 3. 636 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 um alongamento nas sílabas do objeto, pois é ele que se encontra em diferentes domínios prosódicos conforme a interpretação escolhida. Um alongamento nas primeiras sílabas do atributo na interpretação não local como, no caso, a sílaba ‘so’ em ‘sorridente’, também se justiicaria por estar próximo à fronteira. Já na leitura com aposição local, essas sílabas não estariam no inal/começo de domínio e, portanto, deveriam ser mais curtas do que com a leitura não local, quando estão no começo/inal do domínio. Como em Magalhães e Maia essas medições não foram feitas, Angelo e Santos (2012, 2015) veriicaram se havia alguma variação nesse contexto e o que se concluiu foi que não há distinção de duração signiicativa entre as leituras, embora, sempre que tenha havido um alongamento relevante, ele tenha ocorrido em direção do esperado, ou seja, quando havia uma fronteira prosódica e a leitura de aposição não local. As autoras concluem seu artigo sugerindo que saber esse alongamento possa ser opcional – o que, para ser respondido, precisa de um maior volume de dados. Além disso, esse trabalho fornece poucos dados e não apresenta uma comparação entre diferentes interpretações das sentenças por um mesmo falante. Por im, nele se analisam conjuntamente estruturas sintáticas locais diferentes (estruturas atributivas e predicativas – cf. seção 1.1). O objetivo deste artigo é, assim, discutir o que acontece com as sílabas dentro versus às margens de domínios prosódicos em tais sentenças pois, uma vez que há diferentes mapeamentos estruturais a depender da interpretação (aliado ao fato de haver na literatura trabalhos que concluam que sílabas em início e/ou inal de domínios prosódicos são mais longas e melhor articuladas), espera-se que, quando o objeto e o atributo não puderem se reestruturar, a duração das sílabas que beiram a fronteira seja maior. Buscamos também responder à questão suscitada pelas autoras sobre a opcionalidade desse processo. Para tanto, reaplicamos o experimento de produção de Angelo e Santos (2012, 2015), com alguns novos cuidados metodológicos, visando buscar evidências da existência ou não do processo de alongamento em fronteiras de frases fonológicas de sentenças ambíguas do PB. Este artigo está organizado da seguinte maneira: na primeira seção, trazemos os aspectos da descrição sintática, prosódica e fonética necessários para a descrição destas sentenças ambíguas. Na segunda seção, retomamos os estudos sobre desambiguização de sentenças Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 637 ambíguas no português. A terceira seção apresenta a descrição dos objetivos, hipóteses e predições e metodologia quanto ao experimento conduzido. A quarta seção traz os resultados encontrados. Na quinta e sexta seções, faz-se uma discussão dos resultados e, por im, na sétima seção, apresentamos as considerações inais. 1 A estrutura de sentenças do tipo SN1- Verbo - SN2 - Atributo 1.1 Perspectiva sintática De acordo com Mioto (2004), de um modo geral, as construções sintáticas se dão por meio de um núcleo X que rege diretamente seu complemento e que é comandado pelo seu especiicador. Partindo dessa descrição, podemos distinguir as sentenças do tipo SN1-Verbo-SN2Atributo em duas estruturas: uma com o atributo modiicando o sujeito e outra com o atributo modiicando o objeto (cf. Estruturas 4 e 5 a seguir):2 (4) [[[O aluno]DP [[consult-]V [o monitor]DP]V’]VP [cismado]AP]VP. (5) [[[O aluno]DP [[consult-]V [[[o]D [[monitor]N [[cismado]AP]N’]NP] ] ] ] ] . D’ DP V’ VP VP Como se pode observar, na estrutura em (4), o AP [cismado] pende de VP, enquanto o DP [o monitor] é nó irmão de V [consult-], conduzindo à interpretação de que ‘o aluno estava cismado’. Na estrutura de (5), [cismado] é nó irmão de [monitor], compondo ambos o mesmo NP e gerando a interpretação de ‘monitor cismado’. Além disso, há que se considerar que mesmo nessas estruturas há uma diferença entre sentenças como ‘A Maria trabalhou magoada’ e ‘O João considera a Maria bonita’. Segundo Foltran (1999), no primeiro caso, o verbo ‘trabalhar’ só seleciona um argumento, o de sujeito, no caso [A Maria], o que não exclui a relação evidente entre o AP [magoada] e o DP [A Maria]. No segundo exemplo, o verbo ‘considerar’ seleciona, além Por questões de espaço e para não fugir do escopo da presente pesquisa, não cabe nesta seção discutir os sintagmas acima do sintagma verbal (VP), e pretende-se com as estruturas apenas ilustrar como se explica na Sintaxe a diferença de signiicado das sentenças. 2 638 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 do sujeito, o constituinte [a Maria bonita] inteiramente, o que, de acordo com a autora, é uma evidência para classiicar [a Maria bonita] como uma pequena oração selecionada pelo verbo, ou seja, uma small clause. Esses dois tipos de sentença apresentam diferentes estruturas sintáticas. Para Foltran e Mioto (2007), o adjetivo está dentro de um DP nas estruturas de adjunção (sendo adjunto de um sintagma nominal (NP) (cf. (6a)), enquanto que ele é um predicativo de um argumento nas estruturas de small clause. Se o argumento é um DP, o adjetivo não pertence a ele, mas forma com ele a small clause (cf. (6b)): (6) A mãe encontrou a ilha suada. a. Adjunção: [DP a ilha suada] b. Small clause: [SC a ilha suada] Fonte: Angelo e Santos (2017, p. 1.172) Tendo esse fato em mente, é necessário um cuidado especial na escolha do verbo ao se trabalhar com ambiguidade entre as aposições não local e local de uma sentença. Verbos como ‘visitar’, ‘ajudar’, ‘consultar’ selecionam entidades: visitar [o ilho feliz] / ajudar [a mãe carinhosa] (estruturas adjuntivas), ao passo que outros verbos, como ‘comprar’, ‘encontrar’, ‘considerar’, ‘julgar’, entre outros, têm a possibilidade de Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 639 selecionar uma situação, um estado de coisas: comprar [o carro quebrado] / considerar [o réu inocente] (small clauses, estruturas predicativas). A diferença sintática acaba trazendo consequências para a estrutura prosódica, já que, como veremos, estruturas locais por small clause apresentam a mesma estrutura prosódica que leituras apositivas não locais. 1.2 Perspectiva prosódica Assumimos, neste artigo, a proposta de Nespor e Vogel (1986), para quem há 7 níveis prosódicos: sílaba, pé, palavra fonológica, grupo clítico, frase fonológica, sentença e frase entoacional. Os níveis da palavra prosódica e acima são construídos levando-se em conta informações de outros componentes gramaticais (morfologia, sintaxe, semântica), o que signiica que a fonologia de uma frase não diz respeito apenas à concatenação das sequências fonológicas das palavras. No caso das sentenças ambíguas, por exemplo, há um mesmo conjunto de palavras, mas que subjacentemente se organizam em estruturas sintáticas diferentes e, consequentemente, em diferentes estruturas prosódicas. De acordo com Nespor e Vogel (1986), a estrutura prosódica é independente, mas gerada levando-se em conta informações provenientes da sintaxe: as informações sintáticas são mapeadas no nível da frase fonológica (f) por meio das regras de mapeamento apresentadas em (7) – (NESPOR; VOGEL, 1986, p.168-173): (7) Phonological Phrase formation: I. domain: The domain of F consists of a clitic group (C) which contains a lexical head (X) and all Cs on its nonrecursive side up to the C that contains another head outside of the maximal projection of X. II. construction: Join into an n-ary branching F all Cs included in a string delimited by the deinition of the domain of F. F Restructuring (optional): A nonbranching F which is the irst complement of X on its recursive side is joined into the F that contains X. 640 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 De acordo com o algoritmo apresentado em (7), uma palavra lexical juntamente com seus clíticos forma o grupo clítico (C) (e.g. ‘o ilho’, ‘cismado’). Um adjetivo, além de compor ele mesmo uma frase fonológica, pode ser incorporado ao domínio que contém a palavra que ele modiica em um processo de reestruturação: anexar a uma frase fonológica o primeiro complemento de X que esteja em seu lado recursivo, ou seja, o lado em que se encontram os complementos do núcleo lexical (e.g. ‘o ilho cismado’) (NESPOR; VOGEL, 1986, p.173).3,4 Essa reestruturação só pode ocorrer se o complemento for composto de uma só palavra (logo, não é possível que as frases fonológicas ‘o ilho’ e ‘muito cismado’ sejam reestruturados em ´o ilho muito cismado´). Esse mapeamento relete diferenças estruturais de sentenças ambíguas de adjunção, como em (8). A princípio, na interpretação de que o monitor está cismado, ‘cismado’ é complemento de ‘monitor’, formado por um único grupo clítico, e, portanto, as duas frases fonológicas podem ser reestruturadas (8b); na interpretação de que o aluno está cismado, não há relação entre ‘monitor’ e ‘cismado’; portanto, a reestruturação não é possível entre as frases fonológicas (8a): (8) O aluno consultou o monitor cismado. a. leitura: O aluno cismado. [o aluno F] [consultou F] [o monitor F] [cismado F] >> *[o aluno F] [consultou F] [o monitor cismado F] >> [o aluno F] [consultou o monitor F] [cismado F] As autoras também propõem que a reestruturação é especíica da língua, ou seja, há línguas que não possibilitam a reestruturação, há línguas que obrigatoriamente exigem a reestruturação nos casos possíveis, enquanto que há línguas em que a reestruturação é possível, mas opcional. Estudos como os de Abousalh (1997), Santos (2003), Sândalo e Truckenbrodt (2002) sobre o português brasileiro defendem que nessa língua a reestruturação é possível; no entanto, eles não discutem se é uma reestruturação opcional ou obrigatória, dado que o fenômeno que eles analisam é opcional (o stress shift). 4 Enfatizamos, porém, que a proposta de Nespor e Vogel é de 1986, quando não havia distinção na Teoria X-Barra entre complemento e adjunto e, da mesma forma, NP era a projeção lexical máxima em vez de DP. Hoje, há trabalhos que mostram que adjuntos funcionam como complementos (cf. SANTOS, 2003, que demonstra a retração acentual acontece entre o verbo e o adjunto). Existem diversos trabalhos que reveem Nespor e Vogel (e.g. GUIMARÃES, 1997; FROTA, 2000; VIGÁRIO, 2003). 3 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 641 b. leitura: O monitor cismado. [o aluno F] [consultou F] [o monitor F] [cismado F] >> [o aluno F] [consultou F] [o monitor cismado F] Até onde sabemos, Angelo e Santos (2015) foi o primeiro trabalho sobre a estrutura prosódica de small clauses no português brasileiro. Aplicando estritamente a proposta de Nespor e Vogel, a reestruturação das frases fonológicas entre o adjetivo e o nome não pode ocorrer porque, embora a interpretação seja local, o adjetivo não está inserido na projeção máxima do nome (cf. (6) acima e o algoritmo em (7)). O resultado é que essas estruturas são mapeadas com uma fronteira entre o núcleo e o complemento – cf. (9). (9) [O joséF] [encontrouF] [o carroF] [quebradoF] Observe-se, então, que a estrutura prosódica das sentenças por small clause, embora tenha leitura local, é igual a estrutura prosódica das sentenças com leitura não local. 1.3 Perspectiva fonética Trabalhos sobre a fonética dos segmentos em fronteiras prosódicas nas mais diversas línguas mostram que contrastes fonêmicos são maximizados/ mais bem realizados no começo dos domínios prosódicos (cf. CHO; KEATING, 2001; KEATING et al., 2003). Interessantemente, esses efeitos variam conforme os níveis prosódicos em que aparecem. Esses estudos comprovaram que os contrastes foram maximizados e o alongamento aumentava à medida que os domínios prosódicos icavam mais altos. Ou seja, um alongamento em fronteira de frase fonológica é menor do que um alongamento em fronteira de sentença, mas maior do que aquele em grupo clítico, por exemplo. O efeito do alongamento foi encontrado tanto na fronteira inicial (BYRD; SALTZMAN,1998; CHO; KEATING, 2001; CHO, 2006; FOUGERON, 2001; KEATING et al., 2003; TABAIN, 2003), quanto na inal (BYRD, 2000; BYRD; SALTZMAN, 1998; CHO, 2006; TABAIN, 2003; TABAIN; PERRIER, 2005) dos domínios prosódicos. Santos e Leal (2008) investigaram se os mesmos efeitos são encontrados em PB por meio de um experimento com palavras inseridas em 642 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 fronteiras de diferentes domínios prosódicos em sentenças não ambíguas. Tanto na fronteira esquerda quanto na direita dos domínios prosódicos, só houve diferença signiicativa (com maior duração) na fronteira de frase entoacional. Assim, em PB, não haveria como distinguir pela duração se há fronteira, por exemplo, de frase fonológica, em uma sentença. As autoras, no entanto, sugerem que pode ser o caso de o PB fazer uso do alongamento quando para desambiguizar sentenças ambíguas como (8). 2 Estudos anteriores em PB Inúmeros trabalhos discutem o papel da prosódia na interpretação de sentenças sintaticamente ambíguas (cf. GRAVINA; SRVARTMAN, 2013; PIERREHUMBERT, 1980; LADD, 1996; MAIA, 2011; LOURENçO; MAIA; MORAES, 2004; FODOR, 2002; FONSECA, 2008; FRAZIER, 1979). No entanto, o foco desses trabalhos está mais no processamento do que na explicação do fato de a estrutura prosódica poder ser diferente nas distintas interpretações. Magalhães e Maia (2006), por exemplo, procuram por padrões de desambiguação de estruturas prosódicas por aposição de atributo. Aos autores interessava descobrir se há uma preferência por algum tipo de aposição quando algumas segmentações prosódicas são inseridas nas orações, o que indicaria uma prosódia implícita guiando a interpretação de sentenças não marcadas. Os resultados mostraram que há uma preferência para a interpretação como aposição local. Em sentenças do tipo SN1-V-SN2-Atributo, os autores mediram o inal do atributo. Os resultados indicaram uma duração maior quando a aposição é não local, mas, interessantemente, esse resultado não é previsto pela estruturação prosódica, já que, nessa fronteira (fronteira direita do atributo), o domínio prosódico é o mesmo tanto em interpretação local quanto não local (compare o mapeamento prosódico de (8a) vs (8b)). Magalhães e Maia creditam seus resultados a efeitos do Princípio de Aposição Local (com base no princípio de late closure (FRAZIER, 1979) e prosódia implícita (FODOR, 1998). Segundo o princípio de late closure, um sintagma só se fecha quando não há outro elemento que possa ser aposto a ele, e, em ambos os casos, esse elemento é existente, pois o atributo modiica o objeto. Segundo o princípio de prosódia implícita, em sentenças simples, sem modiicações prosódicas, os falantes preferem intepretações locais a não locais. Em outras palavras, as interpretações locais seriam default e só seriam encontradas variações prosódicas no caso de interpretações não locais. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 643 Angelo e Santos (2012, 2015), com base nos resultados de Magalhães e Maia (2006) e Santos e Leal (2008), investigaram se em sentenças ambíguas haveria uma distinção prosódica (do ponto de vista da duração das sílabas em fronteiras de frases fonológicas) entre as interpretações de sentenças ambíguas por aposição de atributo. Para ins metodológicos, as autoras adaptaram nove sentenças do experimento de Magalhães e Maia (2006) de forma a facilitar a medida de duração, substituindo, por exemplo, os segmentos oclusivos para fricativos (que tinham seu início mais fácil de detectar acusticamente. As nove sentenças foram selecionadas e inseridas em histórias que direcionavam a determinada interpretação. Trinta informantes nascidos em São Paulo, adultos e de nível universitário, foram escolhidos e divididos em dois grupos. Um grupo leu as histórias com uma interpretação, ao passo que o outro grupo leu as histórias com a segunda interpretação (ambos apresentavam leituras dos dois tipos, ou seja, direcionando à aposição não local e à aposição local). As leituras foram feitas, primeiramente, em silêncio, para que a interpretação desejada fosse garantida e, em seguida, em voz alta, quando gravadas. Tendo como hipótese uma relação entre o alongamento e a estrutura prosódica, a predição era de que haveria alguma distinção entre as leituras e de que as leituras do tipo não local apresentariam algum alongamento das sílabas realizado pelo falante se comparadas às mesmas sentenças na leitura local (fosse esse alongamento na sílaba anterior ou posterior do local de reestruturação da frase fonológica ou, até mesmo, na pausa). Sendo assim, em uma frase como em (10), o trecho medido foi de ‘lho’ até ‘fe’. (10) O pai visitou o iLHO FEliz. Os resultados encontrados não confirmaram as hipóteses das autoras, mas observou-se uma tendência: os informantes que diferenciaram as durações sempre o izeram em favor de uma maior duração das sentenças em aposição não local. Quando se comparavam apenas as estruturas (local vs. Não local), as sentenças com reestruturação foram sempre mais longas, mostrando certa tendência do falante em realizar esse alongamento, embora também não tenha sido uma diferença estatisticamente signiicativa. Porém, não houve diferença na duração entre fronteira de frase fonológica (que indicava aposição não local) e grupos clíticos (o domínio imediatamente inferior, quando não há fronteira de frase fonológica). 644 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 O trabalho de Angelo e Santos, no entanto, não possibilita comparar as diferentes versões de cada sentença lidas por um mesmo informante, o que pode ser um problema, pois cada informante tem seu ritmo e velocidade de leitura. Ao mesmo tempo, esse trabalho também não controlou separadamente a distinção da aposição local por adjunto ou predicativa. Pela quantidade de dados, também não possibilita discutir a opcionalidade do processo. Finalmente, nesse estudo e nos que lhe serviram de base, sentenças apositivas por adjunto e sentenças apositivas por small clause foram analisadas conjuntamente. Se o alongamento obedece a fronteiras prosódicas, o resultado não signiicativo pode ter sido causado por essas duas estruturas terem sido analisadas conjuntamente. 2.1 O experimento Para investigar o uso do alongamento no PB em fronteiras prosódicas de sentenças ambíguas como forma de desambiguação, um experimento com falantes brasileiros produzindo sentenças-alvo ambíguas torna possível veriicar a existência do processo na língua.5 Replicamos os experimentos de Angelo e Santos (2012, 2015) da seguinte maneira: recuperamos informantes e pedimos a eles que lessem a versão oposta das sentenças de Angelo e Santos. Em seguida, gravamos informantes novos, que leram as duas versões das sentenças. Isso gerou um corpus mais robusto. Somente após o experimento rodado foi que se percebeu a possibilidade de diferença estrutural nas sentenças de aposição local. Assim, analisamos os resultados encontrados levando em conta essas diferenças sintáticas das sentenças. 2.2 Objetivos, hipóteses e predições Partindo da hipótese de que há uma interação entre fonologia e sintaxe que se concretiza em pistas fonológicas para o falante, as quais servem para desambiguizar as sentenças ambíguas, nosso objetivo é observar se o falante direciona a produção de sentenças ambíguas (lidas dentro de um contexto de desambiguação) por meio de diferenças na duração do trecho em que pode haver reestruturação Nossa hipótese leva às seguintes predições quanto ao nosso experimento: Aprovação do Comitê de Ética para pesquisas com seres humanos deferida pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e registrada por meio do CAAE: 45791815.5.0000.5561. 5 645 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 i. Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015), ocorrerá ao menos uma tendência à produção de alongamento para as sentenças de aposição não local em comparação às sentenças de aposição local (hipótese nula: sentenças com aposição não local e local terão a mesma duração no trecho medido); ii. Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015), espera-se que a realização do alongamento seja um processo opcional dos falantes para marcar a interpretação não local (hipótese nula: O alongamento vai ocorrer em toda produção não local para todos os falantes); Além disso, esperamos observar os efeitos de duração em estruturas em que small clauses são possíveis. Nenhuma previsão a esse respeito é elencada, já que as sentenças que podem ser sentenças por small clause também podem ser sentenças por adjunção. 3 Metodologia As sentenças analisadas no experimento foram as mesmas de Angelo e Santos (2015), baseadas nas sentenças de Magalhães e Maia (2006) – cf. Quadro 1. QUADRO 1 – Sentenças analisadas e interpretações Sentenças Interpretações possíveis S1. O pai visitou o ilho feliz. A, B S2. A babá ninou a menina chorando. A, B S3. O aluno consultou o monitor cismado. A, B S4. O sobrinho cumprimentou o tio sonolento. A, B S5. O assessor auxiliou o presidente furioso. A, B S6. O repórter entrevistou o político sozinho. A, B S7. A mãe procurou a ilha magoada. A, B S8. A mãe encontrou a ilha suada. A, C S9. O réu encontrou o advogado nervoso. A, C Fonte: Elaborado pelas autoras. 646 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 Todas as sentenças possibilitavam interpretações não locais (A) e locais. A interpretação local pode ser feita de duas formas: algumas sentenças favoreciam apenas a adjunção do atributo ao verbo (sentenças 1 a 7, identificadas como interpretação (B)), enquanto que outras possibilitavam para as locais, além da adjunção, a estrutura de small clause (sentenças 8 e 9, identiicadas como interpretação (C)).6 As sentenças foram inseridas no final de histórias que as desambiguizavam, dando margem apenas a uma interpretação, quer de aposição não local (versão A), quer de aposição local (versão B ou C), totalizando 18 histórias. As 18 histórias foram agrupadas em duas listas, que continham, cada uma, apenas uma ou outra versão de cada sentença, mais 6 histórias distratoras. Participaram do teste 30 falantes adultos, com nível universitário, nascidos e moradores de São Paulo. Os 30 informantes leram as duas listas em momentos diferentes (sendo que 10 deles, informantes de Angelo e Santos (2015), leram apenas a lista que não haviam lido no experimento das autoras). Em suma, o corpus é composto de 540 dados de produção (9 sentenças x 2 interpretações x 30 informantes). As histórias foram integralmente gravadas utilizando-se o programa Audacity 1.3. Beta Unicode. Posteriormente, por meio do software Praat, foram recortadas apenas as sentenças ambíguas e medidas a duração, em milissegundos, desde a sílaba inal do objeto até a sílaba inicial do atributo (por exemplo, em ‘ilho feliz’, o trecho medido foi lho fe). Dessa forma, captura-se qualquer diferença que o falante possa estar fazendo na sílaba inal de SN2, na sílaba inicial do Atributo, ou mesmo uma maior duração de pausa entre esses dois argumentos. Todos esses eventos fonéticos podem ser relexos de uma fronteira de frase fonológica entre SN2 e Atributo, resultante de uma estrutura com aposição não local. 4 Resultados Os resultados foram analisados quanto à estrutura sintática, informante e sentença. A análise estatística foi com o programa R. Os Como a detecção desse tipo de estrutura por small clause só foi percebida após o teste ter sido rodado, não há um equilíbrio quantitativo entre sentenças com verbos atributivos (adjunção) e sentenças com possibilidade de leitura atributiva ou predicativa. (small clause). 6 647 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 testes estatísticos utilizados para a produção foram o Teste (paramétrico) T de Student para amostras pareadas (dependentes) – utilizado quando se pretende comparar medidas repetidas do mesmo falante (médias) – , e o teste de Wilcoxon (não-paramétrico) para amostras pareadas (medianas). Os dados são analisados por estrutura, por sentença e por informante. 4.1 Por estrutura de aposição A Tabela 1 discrimina os valores dos testes estatísticos para a aplicação por tipo de estrutura. Na primeira linha, um geral das nove sentenças (comparação A vs. B/C) é pautado. As estruturas de A em comparação com as B representam as sete sentenças que não possibilitam small clause. Por im, a comparação de A com C, na última linha, é apenas para as duas sentenças que possibilitam small clause. TABELA 1 – Comparação da média e mediana de duração da leitura (em milissegundos) conforme a estrutura, para os 30 falantes Teste t Estrutura Teste de Wilcoxon Média das diferenças entre as médias (IC95%) p-valor Pseudo-mediana das diferenças entre medianas (IC95%) p-valor A B/C 21,13 (13,82; 28,45) <0,001 16,26 (12,09; 20,81) <0,001 A B 21,98 (13,92; 30,03) <0,001 17,79 (12,99; 23,00) <0,001 A C 18,18 (0,72; 35.63) 0,042 10,79 (2,04; 21,31) 0,019 Fonte: Angelo (2016, p. 79) O Teste t para amostras pareadas compara as médias de duração das estruturas de A e B (ou A e C) que foram medidas nos mesmos falantes. Foi aplicado, também, um teste não paramétrico devido à assimetria da distribuição dos tempos de duração.7 O teste não paramétrico é baseado na comparação das medianas e, assim como no caso das médias, assinala O Teste t tem pressupostos que precisam ser atendidos para que seu resultado seja idedigno, como dados provenientes de distribuição normal, que é simétrica. 7 648 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 para diferenças entre as estruturas, com maior mediana para a estrutura de A em ambas as comparações. É interessante notar que, nos dois testes, os resultados foram similares: podemos airmar que as médias das estruturas não local e local são estatisticamente distintas, com a média das não locais (A) superior em todas as comparações de ambos os testes.8 Porém, apesar de o valor da comparação de A e C (p-valor de 0,042 (média) e 0,019 (mediana)) ser signiicativo, não foi tão baixo como na comparação geral (A vs. B/C) e na especíica de A vs. B, o que pode indicar não só a necessidade dessas estruturas serem olhadas mais cuidadosamente, como também uma variação de resultado por se tratar de apenas duas sentenças. 4.2 Por sentenças A segunda comparação considerou cada sentença contrapondo as leituras A (aposição não local) versus as leituras B ou C (aposição local, sendo B apenas adjunção, e C, ambíguo entre adjunção e small clause), desconsiderando os falantes. Os valores estatísticos estão dispostos na Tabela 2 a seguir. Os valores da Tabela não respondem diretamente qual estrutura foi mais longa que a outra, mas sim se há signiicância entre a diferença das durações. Por isso, a média/mediana de B ou C foi subtraída da média / mediana de A. Assim, valores positivos na coluna de IC95% mostram que as produções com leitura não local (A) foram mais longas; semelhantemente, valores negativos indicam que B ou C foram mais longas. Para cada valor signiicativo, deve-se olhar para o IC95% em busca de saber qual das estruturas foi alongada. Isso pode ser veriicado pelos valores positivos (maiores que zero) dos valores IC95%, pois, para calcular as médias/medianas, subtraiu-se de A os valores de B/C. 8 649 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 TABELA 2 – Comparação da média e mediana da duração (em milissegundos) conforme a sentença e suas estruturas, para os 30 falantes Sentença S1 Estruturas A B Teste t Média das diferenças entre as médias (IC95%) 39,97 (18,28; 61,66) p-valor <0,001 Teste de Wilcoxon Pseudo-mediana das diferenças entre p-valor medianas (IC95%) <0,001 32,05 (14,26; 60,28) 19,73 (-4,93; 44,39) 0,113 12,22 (-0,88; 26,49) 0,064 B S3 A B 7,44 (-31,63; 46,51) 0,700 -0,035 (-18,10; 18,49) 0,984 S4 A B 20,67 (9,97; 31,37) <0,001 19,49 (8,32; 32,17) 0,001 S5 A B A B A B A C A C 29,64 (13,28; 46,00) 21,00 (7,09; 34,89) 15,41 (-0,42; 31,24) -3,62 (-23,71; 16,46) 39,98 (7,67; 53,43) <0,001 26,31 (12,60; 42,90) 20,26 (9,14; 31,94) 14,60 (5,53; 26,66) 0,71 (-12,66; 13,55) 22,25 (7,67; 53,43) <0,001 S2 S6 S7 S8 S9 A 0,004 0,056 0,715 0,006 0,001 0,008 0,952 0,001 Fonte: ANGELO (2016, p. 82-83) Os testes para comparação das médias e medianas mostram que, nas comparações de A com B, há diferenças signiicativas da média e mediana das sentenças S1, S4, S5 e S6 e também da mediana da sentença S7. Para a comparação de A e C, apenas a sentença S9 apresentou média e mediana signiicativas. Todos os valores signiicativos indicam uma maior duração da estrutura de A (IC95% > 0). Observando as médias das diferenças entre as médias (Coluna 3) e médias das diferenças entre as medianas (Coluna 5), apenas a mediana da S3 e a média da S8 apresentaram a versão local (B ou C) mais longa que a não local (A), mas essa diferença não foi signiicativa. Em suma, apenas S2, S3 e S8 não apresentam diferença signiicativa entre as leituras nem nas médias, nem nas medianas. 650 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 4.3 Por falantes Estatisticamente, buscou-se conirmar que nenhum dos falantes foge dos padrões de leitura. A Tabela 3 traz o valor de signiicância das diferenças entre as médias de todas sentenças não local (A) versus local (B). Como destacado no início dessa seção de resultados, as sentenças C foram produzidas mais longas do que as sentenças B (cf. Tabela 3). No entanto, não é possível analisar a variabilidade de sentenças C isoladamente, pois, como a análise aqui conduzida é por falante, há apenas duas medidas desse tipo de interpretação para cada um deles, o que resulta em pouca variabilidade. TABELA 3 – Comparação da duração (em milissegundos) para cada falante9 Teste t9 Falante Estrutura Média das diferenças entre as médias (IC95%) p-valor F5 A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B 27,57 (-80,97; 136,13) 28,53 (-85,18; 142,25) 80,99 (-109,17; 271,16) 10,93 (-153,95; 175,83) 7,59 (-110,69; 125,88) 106,13 (-90,75; 303,02) -17,8 (-127,37; 91,58) 16,14 (-80,05; 112,32) 28,55 (-65,25; 122,34) 39,94 (-13,66; 93,54) 19,64 (-33,89; 73,17) 0,5899 F13 F14 F16 F17 F18 F19 F23 F25 F27 F31 9 0,5945 0,361 0,8874 0,8902 0,2504 0,7279 0,7184 0,5198 0,1302 0,4389 Apenas o Teste t foi realizado, pois compara medidas repetidas do mesmo indivíduo. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 F32 F33 F34 F35 F36 F37 F38 F39 F40 F41 F42 F43 F44 F45 F46 F47 F48 F49 F50 A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B A B Fonte: Angelo (2016, p. 99-101) -28,48 (-10,45; 67,44) 9,03 (-71,46; 89,52) 1,70 (-44,55; 47,96) -31,82 (-106,26; 48,62) 35,38 (-52,3; 123,49) -5,84 (-71,12; 59,44) 35,03 (-23,11; 93,18) 47,75 (-23,67; 119,17) 9,67 (-84,14; 103,48) 16,77 (-47,31; 80,85) -25,96 (-128,12;76,22) 9,04 (-86,08; 104,16) 43,31 (-34,82; 121,43) 44,67 (-12,85; 102,19) -6,47 (-72,83; 59,88) 46,14 (-21,35; 113,64) 32,72 (-68,43; 133,88) 37,47 (-30,60; 105,53) -0,35 (-63,91; 64,62) 651 0,1402 0,8110 0,9374 0,4245 0,3987 0,8485 0,2105 0,1701 0,8205 0,5747 0,5900 0,8387 0,2504 0,1153 0,8351 0,1613 0,4915 0,2535 0,9906 652 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 Salientamos que a análise por falante tem a inalidade de observar se há algum informante desviante. Ela leva em consideração as diferenças de interpretação, mas não de estrutura (B vs. C) nem de sentença (1 a 9), o que pode mascarar os resultados. Como podemos observar na Tabela 3, não houve casos de signiicância estatística entre as leituras A ou B. Isso signiica que, estatisticamente, nenhum dos nossos falantes pode ser considerado desviante e que a variabilidade nas produções deve ser interpretada como este fenômeno podendo ser considerado opcional.10 5 Discussão Direcionamos nossa discussão com base nas predições elencadas em 3.2. 5.1 Diferença de alongamento por diferença de aposição Dados os resultados de Angelo e Santos (2012, 2015), esperávamos que pelo menos uma tendência à produção de alongamento ocorresse para as sentenças de aposição não local em comparação às sentenças de aposição local. Para investigar essa questão, a predição para a hipótese nula que se estabelece é que sentenças com aposição não local e local teriam a mesma duração no trecho medido. Para veriicar nossa hipótese nula precisamos analisar se o valor de A por estrutura é signiicativo em direção ao alongamento comparando com B.11 A Tabela 1 nos mostrou que, tanto no teste para médias quanto no teste para medianas, encontramos diferenças signiicativas em todas as comparações de estruturas não local e local. Em todos os casos, as aposições não locais foram signiicativamente mais longas, negando nossa hipótese nula em que não haveria diferenças entre as leituras. Uma explicação alternativa para esses resultados próximos pode ser o fato de só haver 14 sentenças em cada variável (falante) – ou seja, 7 versões A versus 7 versões B, o que é um valor considerado baixo estatisticamente. Por isso o cálculo a ser mais enfaticamente considerado para os resultados e análise são os do tipo de sentença e estrutura (n = 30), apresentados anteriormente, pois o falante é apenas nossa variável de observação. 11 Consideraremos aqui a comparação com as estruturas B como mais relevantes para veriicar a hipótese nula, já que a única estrutura possível era de adjunção. 10 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 653 Além dos resultados por estrutura, os resultados por sentença revelaram diferenças parecidas. A Tabela 2 mostrou que, com exceção da mediana da S3 (maior em B), tanto as médias quanto as medianas de todas as sentenças A foram maiores que suas versões B. Observamos que cinco das nove sentenças (S1, S4, S5, S6 e S9) tiveram as versões A signiicativamente mais longas que B, negando, novamente a hipótese nula 1. A negação dessa hipótese nula, então, conirma a existência de alongamento em PB em fronteira de frases fonológicas, o que contraria os achados de Santos e Leal (2008) para sentenças não ambíguas, assim como Angelo e Santos (2012, 2015) para sentenças ambíguas. Em ambas as pesquisas, as autoras não encontraram resultados signiicativos para a existência de alongamento em fronteira de frases fonológicas no PB. No caso de Santos e Leal (2008), ressaltamos que, apesar de resultados diferentes, as autoras não investigaram sentenças ambíguas e sugeriram que talvez os falantes do português façam uso da duração para a desambiguação de sentenças. Em suma, encontramos exatamente o que foi sugerido por elas: que o processo se dá apenas em caso de ambiguidade (quando então o falante lança mão dessa pista para marcar na prosódia a interpretação desejada). Angelo e Santos já haviam encontrado uma tendência ao alongamento, embora não estatisticamente signiicativa, e sugeriram que fosse feito um comparativo com os falantes lendo ambas as versões da ambiguidade. De fato, a leitura de ambas as versões se mostrou importante, pois aqui, em um mesmo teste, com os mesmos parâmetros, os resultados foram signiicativos para o alongamento. Um outro resultado importante desse trabalho é a análise por tipo de estrutura sintática e prosódica. Angelo e Santos não distinguiram, em sua análise, sentenças com aposição por adjunto de sentenças por aposição por small clause. De fato, a detecção desses dois tipos de estruturas só ocorreu depois de o teste ter sido rodado, e, por isso, ocorre o desbalanceamento na quantidade de sentenças aqui apresentado. Tendo então em conta apenas as sentenças A vs. B, com evidentes estruturas sintáticas e mapeamento prosódicos diferentes, nossos resultados são comprovações de que o alongamento nessas sentenças obedece às fronteiras dos domínios prosódicos (cf. NESPOR; VOGEL, 1986, p. 21-31). A signiicância nos resultados decorrentes das diferentes leituras é consequência do diferente mapeamento prosódico que as leituras de aposição não local e local por adjunção têm. 654 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 5.2 A opcionalidade do processo A partir de Angelo e Santos (2012, 2015), nossa predição era de que a realização do alongamento é um processo opcional dos falantes para marcar a interpretação não local. Por consequência, a hipótese nula prediz que o alongamento deve ocorrer em toda produção não local. Uma vez encontrado alongamento em PB, para saber se se trata de um processo opcional ou obrigatório, precisamos veriicar se ele sempre ocorre em nossos dados por falante. Para garantir que a estrutura prosódica das sentenças com aposição local por small clause não afetasse os resultados, excluímos as sentenças S8 e S9 da análise. Em primeiro lugar, ressaltamos que nenhum falante desviou do padrão. No entanto, com a redução de sentenças, o número de variáveis icou reduzido para 14 medidas por falantes e, quanto menor as variáveis, menor a chance de signiicância estatística. Em todo caso, pudemos airmar que nenhum falante é desviante, sendo possível, então, seguir a análise com todos os dados disponíveis. Sabendo, portanto, que, mesmo que as sentenças A sejam sempre mais longas na análise descritiva por falante (cf. ANGELO, 2016), como nem sempre esse alongamento é signiicativo, negamos nossa predição para a hipótese nula 2 (em que haveria alongamento em todos os casos). Com isso, podemos concluir que o alongamento é um processo opcional em PB, pois se não fosse, teria sido realizado por todos os falantes em todos os contextos. Desse modo, conirmamos as sugestões de Angelo e Santos (2012, 2015) e Santos e Leal (2008). As primeiras autoras sugeriram que o alongamento pudesse ser opcional e perceberam a necessidade de testes com amostras pareadas para veriicar essa possibilidade; já as segundas autoras não encontraram alongamento, mas sugeriram que ele pudesse ser realizado em contextos ambíguos, como um processo opcional. Levando em conta os resultados anteriores e os aqui apresentados, sugerimos que a ambiguidade seja justamente o gatilho necessário para que o falante lance mão do processo com mais frequência. Por im, ressaltamos que o fato de não haver alongamento signiicativo em todas as sentenças (e não só para todos os falantes) também nega a predição da hipótese nula para a opcionalidade do processo. Baseamos essa airmação nos resultados por falante para discutir essa predição, pois, na análise por sentença, precisaríamos primeiramente entender se não seria o caso, também, de haver alguma Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 655 divergência pragmática/sintática com as sentenças em que o alongamento não foi signiicativo, o que será discutido na Seção 7. 5.3 Os casos de small clause Como mostramos nos Métodos, só percebemos que as sentenças do experimento com leitura de aposição local variavam – quanto a possibilitarem ou não mais de um tipo de estrutura – depois de rodado o teste. Assim, observamos aqui se esse último tipo de estrutura apresentaria um comportamento igual ou diferente daquele das estruturas locais por adjunção. Na Tabela 1 vimos que o alongamento se conirmou estatisticamente em aposições não locais A, considerando a comparação entre A vs. B. Há, então, três situações possíveis para os resultados de C: A) Não haver diferença signiicativa entre A e C: isso nos levaria a concluir que a estrutura escolhida pelos falantes na interpretação local de S8 e S9 foi a de small clause, pois a duração seria similar a A, a qual foi alongada em comparação a B por haver fronteira entre as frases fonológicas; B) C ser signiicativamente maior que A: sugeriria um bloqueio da reestruturação e, interessantemente, indicaria a possibilidade de, em C, o processo de alongamento ser obrigatório, pois, se há alongamento em A vs. B, e C foi ainda mais longa, este deve ser um contexto mais propício ao alongamento pelo falante. C) C ser signiicativamente menor que A: essa situação não nos daria muitas pistas sobre o que acontece com C, pois as sentenças em C podem ter estrutura de small clause, mas também podem ser estruturas de adjunção. No caso de C ser menor que A, delineiamse três possíveis respostas: (i) não há distinção na produção entre B e C; (ii) o informante preferiu a estrutura de adjunção; (iii) o alongamento, sendo opcional, não foi aplicado. A Tabela 1 mostrou que, estatisticamente, ambas aposições locais (B e C) foram mais curtas que A, levando-nos então à opção C acima – A é mais longa que C. Tal resultado deixa em aberto, em princípio, as 3 possibilidades de respostas para esse achado. Porém, observe que o p-valor de A vs. C não é tão baixo quanto o de A vs. B (p-valor de A vs. B = 0,001 656 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 (média e mediana); e p-valor de A vs. C = 0,042 (média) e 0,019 (mediana)), indicando que pode haver algum tipo de diferença nessas estruturas. Essa diferença entre os resultados de B e C nos leva a crer que a resposta para A pode ser signiicativamente maior que C porque as sentenças C são na realidade ambíguas quanto a serem de adjunção ou small clause. Pode ter sido também o caso de algumas produções terem sido produções de uma estrutura do primeiro tipo, enquanto algumas outras estruturas, do segundo tipo. Uma maneira de se investigar se é o caso seria aplicar um teste entre sentenças em que só fossem possíveis estruturas de aposição não local vs. estruturas de aposição local por small clause. Em outras palavras, sentenças que não possibilitassem também a estruturação de sentenças com aposição local por adjunto. Infelizmente, o tipo de estrutura testado não torna possível essa contraposição. No tipo de estrutura de nosso teste, toda sentença que possibilita a estrutura de aposição local por small clause possibilita também a estrutura de aposição local por adjunção. Não podemos esquecer, também, que há apenas duas sentenças nesse padrão, o que é considerado um número pequeno estatisticamente; assim, os resultados não são conclusivos, mas sugerem um comportamento diferente para essas sentenças, que precisa ser mais bem investigado. Na comparação por sentenças (cf. Tabela 2), das sete sentenças que possibilitam apenas adjunção, quatro delas apresentaram diferença signiicativa entre A e B. Nas duas sentenças que possibilitam também small clause, uma delas não apresentou diferença entre as versões não local e local. Embora não possamos airmar que os resultados por sentença negaram a predição da hipótese nula, os resultados por estrutura o izeram. Ou seja, os resultados de produção, ainda que somente com dois tipos de sentenças que possibilitam small clause, demonstraram uma tendência a um comportamento um pouco diferente. Vale ainda ressaltar que, apesar de termos utilizado como base as sentenças de Magalhães e Maia (2006), o objetivo dos autores na análise de sentenças ambíguas era encontrar indícios prosódicos de desambiguação na leitura silenciosa partindo do pressuposto de que fazemos uso de uma prosódia implícita que se comporta similarmente à prosódia explícita, auxiliando nossas interpretações no parsing (FODOR, 2002). Embora algumas pistas tenham sido encontradas, o objetivo dos autores não era veriicar a existência de alongamento em fronteiras prosódicas. Nossos resultados nos levam a perguntar se os resultados de Magalhães e Maia também não podem ter sido inluenciados por Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 657 sentenças que possibilitavam small clause, pois, assim como em Angelo e Santos (2012, 2015), os autores não analisaram separadamente essas sentenças. Em Magalhães e Maia havia quatro sentenças com essa possibilidade: “A mãe encontrou a ilha irritada”, “O bandido reconheceu o cúmplice agonizante”, “O réu encontrou o advogado nervoso”, “O cão pegou o coelho faminto”, mas as duas primeiras estavam entre as consideradas pragmaticamente ruins por seus informantes. Em suma, dada a diferença entre o comportamento de B e C, é possível que os falantes tenham alternado entre produzir estruturas de adjunção e de small clause nas versões C, mas há que se aplicar um novo teste para comparar estruturas em que só um dos tipos é possível e em maior quantidade. 6 O que pode estar ocorrendo com as sentenças que fugiram do padrão encontrado no experimento? Tendo em vista os resultados encontrados, apesar da opcionalidade do processo, há que se perguntar o porquê de não haver alongamento signiicativo em todas as sentenças. Na seção 4.2, conduzimos resultados sentença a sentença para observar se não haveria sentenças específicas que pudessem estar afetando os resultados, fosse por razões sintáticas (caso das estruturas small clause), fosse por razões pragmáticas. Contávamos com n=30 falantes para cada variável analisada (sentenças), considerado um número estatisticamente suiciente. Como vimos, cinco sentenças foram produzidas com as versões não-locais signiicativamente mais longas que as versões locais (tanto na comparação de médias quanto na comparação de medianas). No entanto, as sentenças S2, S3 e S8 não apresentaram resultados signiicativos em nenhum dos testes. A sentença S7 foi signiicativa apenas no teste de Wilcoxon e, ainda assim, com um p-valor = 0,008, mais alto que as outras (em torno de 0,001, cf. Tabela 2). A seguir, repetimos essas sentenças. S2. A babá ninou a menina chorando. S3. O aluno consultou o monitor cismado. S7. A mãe procurou a ilha magoada. S8. A mãe encontrou a ilha suada. 658 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 Como se pode observar, três das sentenças aceitam apenas leitura local por adjunto (S2, S3, S4), e uma sentença é ambígua entre adjunto e predicativo (S8). Assim, não é o caso de airmar que o verbo da sentença estivesse inluenciando os resultados – até porque outras sentenças com os mesmos tipos de leitura apresentaram signiicância. Interessantemente, as quatro sentenças apresentam atributos deverbais: ‘chorando’, ‘cismado’ ‘magoada’ e ‘suada’ (derivados dos verbos ‘chorar’, ‘cismar’, ‘magoar’ e ‘suar’, respectivamente). Nas sentenças em que a signiicância ocorreu, os atributos eram: ‘feliz’, ‘sonolento’, ‘furioso’, ‘sozinho’ e ‘nervoso’, todos não verbais. Segundo Hornstein, Nunes e Grohmann (2005), a computação sintática se dá fase a fase, sendo a construção do CP uma delas, antecedente ao spell-out: Computational options (merger or movement, for instance) are compared within a single phase. This approach raises several interesting conceptual questions. Note, for instance, the radical derivational nature of computations under this view. Not only are syntactic objects built in a step-by-step fashion, but the interfaces are fed with information as the derivation proceeds. This raises the possibility that as the derivation proceeds, the interfaces access syntactic computations directly, in a dynamic fashion, without the mediation of LF or PF. [...] Another question that arises in this approach is why exactly VPs and CPs should be phases and, more generally, how many kinds of phases there are. (HORNSTEIN; NUNES; GROHMANN, 2005, p. 350-351). Assumindo que o CP é uma fase, Ximenes e Nunes (2009) contrapõem sentenças como as apresentadas a seguir. (11) A hipótese de os meninos terem viajado é implausível. (12) A hipótese dos meninos terem viajado é implausível. (13) *A hipótese de os meninos é implausível. (14) A hipótese dos meninos é implausível. As sentenças (11) e (12) contêm um verbo no ininitivo lexionado (‘terem’), e os autores mostram que é opcional a utilização da não Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 659 contração da preposição com o artigo para os falantes de PB (os autores partem do princípio de que a forma contraída é a canônica). Porém, na sentença (13), sem a presença desse verbo, vemos que a contração é obrigatória, devendo ser produzida como em (14). Ximenes e Nunes argumentam que isso ocorre devido a uma fronteira de CP vazio. Para os autores, a preposição e o sujeito no ininitivo em (11) são adjacentes, como mostrado a seguir, em (15), que explica por que a opção canônica é a contração ‘de’, pois carrega a marca de um CP vazio, que pode se realizar quando o ininitivo lexionado está presente. Porém, na ausência do verbo, não há um CP, então apenas a forma canônica (contraída) pode ser usada. Em (15) as formas contraída e não contraída podem ser utilizadas, pois o ‘de’ introduz um C de CP. Já em (16), não há CP, então a contração é obrigatória. (15) [[a hipótese [CP de [os meninos terem viajado]]] (16) [[a hipótese [PP dos meninos]] Em suma, os autores sugerem que CP é interpretado pela fonologia, bloqueando a aplicação de um processo fonológico. Em outras palavras, a contração é bloqueada quando os segmentos estão em duas sentenças. Como vimos, os atributos das sentenças de nosso teste que não apresentaram signiicância são todos deverbais. Seguindo a mesma linha de Ximenes e Nunes, sugerimos, então, a possibilidade de que os falantes tenham introduzido um CP antes dos atributos. Rizzi (2004) propõe que C (de CP) introduz um novo constituinte prosódico, como se fosse uma nova sentença. Se esse determinado constituinte sintático inicia uma nova sentença prosodicamente, isso signiica que inicia uma nova frase entoacional (Intonational Phrase). Em sendo uma nova sentença, não há como haver reestruturação das frases fonológicas que o formam com as frases fonológicas de uma outra frase entoacional. Essa fronteira sintática impediria, então, a reestruturação na fonologia, assim como possibilitou a não contração nos dados de Ximenes e Nunes (2009). Se estivermos no caminho certo, é então interessante, em uma análise futura, rodar um teste com adjetivos que são pares mínimos (verbais e não verbais), como, por exemplo, ‘gelado’ vs. ‘frio’, vs. ‘quente’, ‘entristecido’ vs. ‘triste’, em sentenças como ‘A mãe a encontrou 660 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 entristecida’ vs. ‘A mãe a encontrou triste’.12 A proposta é que, nos casos de deverbais, não tenha havido diferença entre as produções de A e B/C, pois esse CP impediria a reestruturação das frases fonológicas na interpretação local (note-se que, embora não explícito no algoritmo de Nespor e Vogel, para a reestruturação ocorrer, os domínios prosódicos devem estar dentro de um domínio prosódico superior. Se C introduz uma nova sentença, então não há como reestruturar o nome e o atributo, pois pertenceriam a sentenças diferentes. Considerações inais A presente pesquisa teve o objetivo de apresentar uma reanálise do processo de alongamento em fronteira de frase fonológica em contexto de desambiguação de sentenças do tipo SN1-V-SN2-Atributo, buscando trazer mais luzes sobre a questão da interação entre os componentes gramaticais (LIGHTFOOT, 1976; CHOMSKY; LASNIK, 1978; JAEGGLI, 1980). Constatamos que essa interação se dá indiretamente, ou seja, há especiicamente na Fonologia um componente interpretativo que mapeia informações de outros componentes (no caso, a Sintaxe) em níveis e domínios fonológicos (SELKIRK, 1984; NESPOR; VOGEL, 1986). Com base nessa proposta, a pesquisa teve como fundamento estudos que vêm mostrando que as pessoas produzem pistas fonológicas para acessar a estrutura sintática das sentenças (SANTOS, 2003; MAGALHÃES; MAIA, 2006, 2007; GREGOLIM, 2008). Existe na literatura uma discussão a respeito da realização fonética dos segmentos em fronteiras prosódicas em diferentes línguas. Constatouse, por exemplo, que há alongamento na produção de segmentos em fronteiras iniciais (cf. OLLER, 1973) ou finais (cf. FOUGERON; KEATING, 1997; KLATT, 1976; OLLER, 1973; WIGHTMAN et al., 1992) de domínios prosódicos e que efeitos como esse variam conforme os níveis prosódicos em que estão inseridos tornem-se mais altos. Há três trabalhos principais em pauta que nortearam as predições deste artigo. Primeiramente, Santos e Leal (2008) observaram a não existência de alongamento de sílabas nos domínios prosódicos do português brasileiro a não ser no nível mais alto, da frase entoacional (I) Agradecemos aos Doutores Jairo Nunes e Marcelo Ferreira Barra, do Departamento de Linguística da FFLCH-USP, pelas discussões a respeito dessas sentenças. 12 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 661 (cf. NESPOR; VOGEL, 1986), mas levantaram a questão de o falante realizar ou não esse efeito quando necessitasse desambiguar uma sentença. Em segundo lugar, Magalhães e Maia (2006), em um estudo a respeito da leitura silenciosa de sentenças sintaticamente ambíguas do tipo SN1Verbo-SN2-Atributo, encontraram, entre outros efeitos, um alongamento na sílaba tônica do atributo. Por im, Angelo e Santos (2012, 2015), com base nos dois trabalhos acima citados, observaram se havia alongamento em algumas sentenças extraídas e/ou modiicadas de Magalhães e Maia, mas em contexto em que poderia (ou não) haver reestruturação fonológica, esperando que houvesse maior duração nas aposições não locais. As autoras não encontraram alongamento signiicativo, mas sempre que ele era realizado, era em favor da aposição não local. Buscamos com esta pesquisa, então, trazer contribuições para esses trabalhos; mais especificamente, analisar o comportamento de informantes na produção de sentenças ambíguas e, assim, buscar evidências de que o alongamento, quando realizado, seria devido a uma fronteira prosódica existente. Para isso, a metodologia utilizada contou com as mesmas nove sentenças de Angelo e Santos, gravadas com 30 informantes, aplicando o mesmo método, mas lendo ambas as versões da ambiguidade, de forma a tornar o corpus de produção ainda mais robusto, e obter resultados estatísticos mais seguros. Optou-se, também, por observar separadamente duas das sentenças por poderem ser sintaticamente estruturadas como small clauses na interpretação local. As sentenças testadas eram ambíguas quanto a terem estrutura de aposição não local (A), estrutura de aposição local por adjunção (B) ou permitirem duas possíveis estruturas (C): de adjunção ou small clause. Os resultados, de forma geral, corroboraram as predições levantadas. Mais do que uma tendência, encontramos que o processo de alongamento acontece em PB em contexto de desambiguação de sentenças do tipo SN1-Verbo-SN2-Atributo: as estruturas não locais foram signiicativamente mais longas que as locais, e em cinco das nove sentenças a versão não local (A) foi mais longa que as locais (B) ou (C). Além disso, observamos que o processo nem sempre é realizado pelos falantes, indicando, assim, que este se trata de um processo opcional na língua, e é favorecido em situações de necessidade de desambiguação de sentenças. Sobre as sentenças que permitem small clause, o experimento não nos forneceu muitas pistas, tendo em vista que elas também podem ter 662 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 633-666, 2018 sido produzidas como adjunção, mas foi suiciente para negar a hipótese de que B se comportaria como C, pois embora ambas as estruturas tenham sido mais curtas que A, em C essa diferença foi menor. Uma vez que tínhamos no corpus apenas duas dessas sentenças, deixamos para trabalhos futuros a investigação do que acontece com essas estruturas, em um experimento que inclua mais dados de sentenças desse tipo e de sentenças que, na versão local, tenham a possibilidade apenas de serem estruturadas em small clause. Nossos resultados também sugerem a necessidade de um trabalho que discuta o tipo de atributo das sentenças SN1-Verbo-SN2-Atributo, já que as sentenças com atributo deverbal apresentaram um resultado diferente daquelas em que o atributo não era deverbal. Nossa hipótese, neste caso, sujeita a maiores investigações, é que sentenças com atributos deverbais sejam precedidas por uma fronteira de CP. Pelas regras de mapeamento, esse tipo de fronteira inicia um novo domínio prosódico que impede a reestruturação entre o atributo e o SN2. Assim, as sentenças com aposição local por atributo deverbal também não poderiam ser reestruturadas com o verbo e teriam, como resultado, um comportamento mais próximo das sentenças com aposição não local. Agradecimentos Agradecemos aos participantes da banca de mestrado de Angelo (2016) e a dois pareceristas anônimos da RELIN, pelos comentários e discussão do texto, a quem eximimos de qualquer problema remanescente. Angelo agradece o auxílio em forma de bolsa de Mestrado do Departamento de Linguística da FFLCH/USP (CAPES Proex 2013-2015). Santos agradece o auxílio do CNPq (Bolsa Produtividade 308135/2009-1). Referências ABOUSALH, E. F. Resolução de choques de acento no português brasileiro. 157 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos Linguísticos, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 1997. ANGELO, M. C. Produção e percepção na desambiguação de sentenças sintaticamente ambíguas do português brasileiro através da pista prosódica de duração. 2016. 215 f. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 Amostras sociolinguísticas: probabilísticas ou por conveniência? Sociolinguistic samples: random or convenience? Raquel Meister Ko. Freitag Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, Sergipe / Brasil rkofreitag@uol.com.br Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir questões relacionadas à amostragem na sociolinguística variacionista, considerando a dimensão probabilística e não probabilística. Conceitos de estatística, como população e amostra, descrição e inferência, são revisados, e os procedimentos de amostragem aleatória e não aleatória são discutidos considerando o viés de seleção e as especiicidades da coleta de dados sociolinguísticos para pesquisa de orientação variacionista. Palavras-chave: sociolinguística; amostragem por cotas; estatística. Abstract: This paper goal is to discuss sampling in the variationist sociolinguistic approach, both in its random and non-random dimensions. Statistic concepts, such as population and sample, descriptive and inferential statistics are presented; additionally random and non-random sampling procedures are discussed, taking into account the selection bias and the speciicity of data collection within variationist sociolinguistics. Keywords: sociolinguistics; stratiied sample; statistics. Recebido em: 19 de setembro de 2017 Aceito em: 9 de outubro de 2017 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.667-686 668 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 1 Introdução A prática metodológica da sociolinguística variacionista, no Brasil, tem-se pautado tradicionalmente em uma técnica de amostragem dita “aleatória estratiicada”. Essa técnica consiste em dividir a população por grupos de interesse (células sociais), de modo que todos os falantes1 pertençam a um e somente um grupo e tenham a mesma chance de ser selecionados. Esse padrão de amostragem, por hipótese, confere coniabilidade e replicabilidade às análises. Neste trabalho, a amostragem é discutida a im de veriicar o quão estratiicado é um banco de dados sociolinguísticos. Inicialmente, são revisados conceitos de estatística, como população e amostra, descrição e inferência. Em seguida, são discutidos os procedimentos de amostragem aleatória e não aleatória, considerando as implicações de escolha (viés) e as especiicidades da coleta de dados sociolinguísticos para pesquisa de orientação variacionista. 2 Estatística e tipos de amostra Dois conceitos básicos em estatística são população e amostra. População refere-se ao conjunto total de elementos; amostra, a um subconjunto dessa população. Com base na amostra, passa-se aos procedimentos de estatística descritiva, que trata da distribuição das frequências um dado fenômeno. A estatística inferencial corresponde ao conjunto de procedimentos que leva à generalização de resultados da amostra para a população. A estatística descritiva responde a perguntas feitas à amostra (quantos? quais?). A estatística inferencial testa hipóteses utilizando informações da amostra para generalizar as respostas para a população. A sociolinguística variacionista tem evoluído em termos de estatística inferencial: o modelo estatístico para lidar com regras Na pesquisa sociolinguística, diferentes rótulos têm sido empregados para identiicar as pessoas que cedem seu tempo para constituírem amostras linguísticas: informante, falante, sujeito, indivíduo, participante, colaborador, etc. À escolha de um rótulo subjazem matizes do papel que é dado a essa pessoa na pesquisa (embora se reiram a uma pessoa, “informante” e “sujeito” têm cargas semânticas distintas). Fiz a opção por adotar, em todo o texto, o termo “falante”, designando a pessoa que fala a língua, ainda que, em alguns contextos, essa escolha resulte em repetições do tipo “ o falante falou”. 1 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 669 variáveis (CEDEGREN; SANKOFF, 1974; SANKOFF, 1988) vem sendo aprimorado à medida que os níveis de análise vão se ampliando, e novos fatores passam a ser controlados. Hoje, as questões relativas à estatística inferencial da sociolinguística variacionista estão relacionadas à comparação entre as modelagens de efeitos ixos – como as adotadas pelo pacote estatístico VARBRUL e sucessores, como GOLDVARB X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005) – e efeitos mistos – como RBrul e outros pacotes estatísticos comerciais, como o SPSS – (OLIVEIRA, 2009; JONHSON, 2009, GOMES, 2012; SCHERRE, 2012; GORMAN; JOHNSON, 2013, entre outros), além do uso do pacote estatístico R (R CORE TEAM, 2017) em abordagens da sociolinguística variacionista (TAGLIAMONTE; BAAYEN, 2012; OUSHIRO, 2015, entre outros). O avanço tecnológico, com computadores dotados de processadores mais ágeis e maior capacidade de memória, possibilita a testagem de outros modelos de análise estatística, com a inclusão de mais variáveis e com diferentes níveis de efeitos. O núcleo de discussão não recai sobre o modelo mais apropriado para lidar com a variação linguística (parece ser consenso que modelos de efeitos mistos são mais adequados ao tipo de variáveis que são exploradas na sociolinguística variacionista), mas, sim, sobre o diálogo possível entre as análises nesses últimos 40 anos em modelo de efeitos ixos (pesos relativos). No entanto, é preciso considerar que “muitas das airmativas estatísticas mais abomináveis são causadas por bons métodos estatísticos aplicados a amostras ruins, e não o contrário” (WHEELAN, 2016, p. 142). Em estatística, costuma-se dizer que, “se entra lixo, sai lixo”, não importa o modelo que é adotado na análise; por isso, a atenção aos procedimentos de amostragem é importante. O foco deste trabalho é justamente tecer relexões sobre a base para a estatística inferencial da sociolinguística variacionista: a constituição de amostras de fala apropriadas para o estudo da variação linguística. Se, do ponto de vista diacrônico, é preciso fazer o melhor uso de maus dados (LABOV, 1982), do ponto de vista sincrônico, muitas vezes o erro fundamental da análise consiste em uma amostra linguística com vieses: “A análise estatística está em ordem, mas os dados sobre os quais os cálculos são realizados são espúrios ou inadequados” (WHEELAN, 2016, p. 148). Essa é uma questão que vem sendo discutida de modo tangencial em estudos que abordam a metodologia da sociolinguística variacionista. 670 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 Com o aforismo do inglês He can’t see the forest for the trees (em tradução livre, “não se pode ver a loresta pelas árvores”), Guy (2014) discute a correlação entre população e amostra e a possibilidade de generalização. Inferências só são válidas se há à disposição informações mais amplas, não um conjunto seletivo: “Na loresta, quantas árvores você vê e quantas árvores você poderia encontrar? Você encontrou apenas carvalhos ou passou por centenas de bordos para achar seu quinto de carvalhos?” (GUY, 2014, p. 216, tradução minha). Considerando esse aforismo, o plano da estatística descritiva consiste em descrever a loresta, com base em informações das suas árvores. Para extrapolar da parte para o todo, é preciso recorrer à estatística inferencial, mas, para isso, antes, é preciso o corpus da loresta... 2.1 Amostragem aleatória A estatística inferencial, que generaliza os resultados da amostra para a população, preconiza um processo de amostragem aleatório: a chance de cada um dos falantes ser selecionado para constituir a amostra deve ser a mesma. Exemplo de estudo sociolinguístico com base em amostra aleatória é o Linguistic Atlas of the Gulf States (LAGS) realizado por meio de contatos telefônicos (BAILEY et al, 1991).2 No Brasil, a constituição de uma amostra aleatória simples da comunidade seria possível por meio de uma seleção de falantes, utilizando-se o cadastro de eleitores ou, melhor ainda, recorrendo ao banco de dados constituído por agentes de saúde para ins de cadastro no Programa Saúde da Família, como foi feito no povoado Açuzinho, em Lagarto/SE, que contém a informação de todas as pessoas que efetivamente residem no local e que chega a ser muito mais coniável do que o cadastro de eleitores ou do que as estimativas do IBGE (FREITAG; SANTANA; ANDRADE, 2014). É possível ainda estratiicar essa amostra (amostra aleatória estratiicada), considerando a proporção de adultos e idosos, homens e mulheres, por exemplo. A amostragem aleatória por conglomerados explora a existência de grupos em uma dada população. Se esses grupos representam adequadamente a população em relação à característica que queremos medir (os grupos apresentam a variabilidade da população), é possível 2 No entanto, ainda assim, a aleatoriedade não garante isenção do viés da seleção: a representatividade dos falantes potenciais a serem selecionados resume-se àqueles que possuíam linha telefônica, um bem de consumo de difícil acesso à época da pesquisa. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 671 selecionar um ou mais de um desses conglomerados. Por exemplo, o padrão de comportamento de estudantes de uma escola pública estadual de uma dada comunidade tende a ser estável (estatísticas descritivas providas pela secretaria de educação mostram que os estudantes de escola pública estadual da região metropolitana de Aracaju são oriundos de famílias de uma mesma faixa de renda e estão na mesma faixa etária). Então, estudar o padrão de comportamento de uma dada escola – escolhida aleatoriamente – é como estudar o comportamento de todas as escolas que compõem aquele conglomerado (ver, por exemplo, a amostra Atheneu Sergipense (FREITAG et al., 2016), detalhada na seção 3.2.2). Raramente é possível realizar amostragens aleatórias.3 E, para estudos sociolinguísticos de orientação variacionista, essa parece ser a regra. 2.2 Amostragens não aleatórias As amostras não aleatórias podem ser classiicadas em três tipos: por conveniência (acidental), por julgamento (intencional) e por cotas (proporcional), escolhidas por conveniência ou por julgamento. Em uma amostra por conveniência, o pesquisador de campo seleciona falantes da população em estudo que se mostrem mais acessíveis, colaborativos ou disponíveis para participar do processo, algo do tipo “caiu na rede é peixe”. Amostra de julgamento envolve o juízo do pesquisador de campo para selecionar, na população, falantes que sejam boas fontes de informação para os propósitos do processo. A amostragem de cotas prevê um número ixo de falantes em cada uma das categorias, que são preenchidas pelo pesquisador de campo por conta da conveniência e/ou julgamento. Parece icar bem claro que a técnica de amostragem que predomina na sociolinguística variacionista é esta: a quantidade de falantes das categorias (células sociais) é pré-deinida, e o pesquisador de campo vai em busca de falantes disponíveis a participar como voluntários do processo de entrevista sociolinguística (que demanda certo tempo), que sejam representativos da comunidade de fala (que não 3 É interessante observar como outras áreas das ciências sociais lidam empiricamente com a questão da amostragem. No marketing, Kovacks et al. (2004) realizaram análise bibliométrica cujos resultados revelam que 52% dos estudos utilizam amostras de conveniência, 14%, amostras aleatórias simples, 11%, por julgamento, 5%, por cotas e 3%, bola de neve (os outros 15% não especiicaram como constituíram suas amostras). 672 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 causem estranhamento, que não destoem do padrão da comunidade, etc.). A amostragem não é, portanto, aleatória, pois não são todos os falantes da população que têm igual chance de ser selecionados para a amostra. A amostragem aleatória parte do pressuposto de que o documentador não conhece os sujeitos, o que não ocorre no processo de seleção de falantes para a constituição de amostras sociolinguísticas.4 3 Representatividade da amostra Diferentemente da amostra probabilística (aleatória), a amostra não probabilística apresenta viés amostral. Wheelan (2016) apresenta os vieses amostrais que podem levar a resultados equivocados, dos quais são aplicáveis à abordagem da sociolinguística variacionista o viés de seleção e o viés de publicação.5 O viés da seleção incide diretamente na representatividade da amostra. Em propostas para descrever a comunidade em geral, os efeitos do viés de seleção se manifestam, por exemplo, pela inluência humana da escolha (sentimentos, ainidades, atitudes, etc.), pela cobertura inadequada da população, pela inabilidade para encontrar certos segmentos da população, pela falta de cooperação em alguns subgrupos (TAGLIAMONTE, 2006). Considerar a representatividade da amostra barra vieses nos dados que poderiam tornar a generalização impossível (BUCHSTALLER, KHATTAB, 2014). A amostra precisa ser representativa para os propósitos do estudo. Para estudos de cunho sociolinguístico de orientação variacionista, os propósitos costumam estar relacionados à descrição de padrões da comunidade de fala. É nesse ponto que a técnica de amostragem da sociolinguística variacionista começa a 4 Mesmo quando possível uma amostra aleatória, nem sempre, do ponto de vista da sociolinguística, a aleatoriedade é possível; a distribuição de uma população nunca é geográica e socialmente aleatória (TAGLIAMONTE, 2006). 5 Neste texto, trato apenas do viés da seleção. No entanto, o viés de publicação também merece relexões: achados positivos têm maior probabilidade de ser publicados do que achados negativos. Na abordagem da sociolinguística variacionista, esse viés se manifesta quando os pesquisadores omitem/não informam as variáveis extralinguísticas (preditoras) que foram controladas no modelo, mas que não apresentaram signiicância estatística. O fato de um fator não ser estatisticamente signiicativo é sociolinguisticamente signiicativo! Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 673 se distanciar das demais ciências sociais. Uma comunidade de fala é deinida não em função de um padrão de uso, mas de um padrão de atitudes (LABOV, 1972); existe um conjunto de atitudes em relação à língua que é compartilhado por quase todos os membros, mas que não necessariamente usam as mesmas formas. Há um viés de intencionalidade para tornar o processo de seleção de falantes compatível com o construto da população: a comunidade de fala. É também nesse ponto que é importante considerar a distinção entre amostra signiicativa e amostra representativa: às vezes, um número menor de falantes, quando for possível estabelecer comparação entre grupos, possibilita que se chegue a resultados mais consistentes dos que o recurso de uma única amostra mais numerosa (MARTINS; PINTO, 2015, p. 9). A construção de uma amostra de fala para ins de estudos variacionistas é diferente do modo como é feito nas outras ciências sociais, já que, geralmente, não se pode predizer o quão frequente é uma dada forma/fenômeno linguístico no luxo da conversação. Uma amostra sociolinguística de orientação variacionista precisa de poucos falantes (20 a 120) cuidadosamente escolhidos para representar a diversidade de comportamentos linguísticos de uma comunidade, com grande volume de material documentado para cada falante (SANKOFF, 2001). A mesma amostra pode ser utilizada para outros estudos, de fenômenos linguísticos diferentes, já que é representativa da estrutura e do uso da fala daquela comunidade. A amostra sociolinguística opera na razão inversa das demais ciências sociais: enquanto as ciências sociais operam com amostras com muitos falantes que cedem poucos dados, a sociolinguística opera com amostras com poucos falantes que cedem muitos dados. (SANKOFF, 2001, p. 823) A conveniência e o julgamento em uma amostra induzem a um viés em relação à população total, produzindo resultado distorcido (LAMEIRÃO, 2014). Manuais de estatística recomendam que sempre que essas técnicas de amostragem são adotadas, os resultados sejam acompanhados por uma descrição detalhada de como a amostra foi obtida, de modo que o leitor possa avaliar qual credibilidade pode dar aos resultados. No caso da amostragem de comunidades de fala, na sociolinguística variacionista, é pertinente incluir os critérios de inclusão e seleção de falantes na metodologia de constituição da amostra, 674 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 especiicando, por exemplo, de que modo um falante será julgado (por testes de reação subjetiva, por exemplo). 3.1 Amostra por cota ixa ou proporcional Estratiicar uma amostra pressupõe identiicar os estratos (células sociais) e calcular a proporção da população de cada estrato representado na amostra. Para o procedimento de estratiicação, é preciso considerar as forças sociais que operam sobre a língua (TAGLIAMONTE, 2006), como a classe socioeconômica, o grupo étnico, sexo/gênero, especialmente o papel da mulher (FREITAG, 2015a), idade, com o efeito de pares no grupo (FREITAG, 2005). Em termos operacionais, a estratificação é implementada em função de características sociodemográicas; algumas podem ser validadas de forma oicial, sem causar constrangimentos, como idade, onde nasceu, o quanto estudou e o sexo (registro civil). Algumas categorizações são mais delicadas, como o quanto ganha (faixa de renda, classe socioeconômica) e o gênero do falante, considerando identiicação e orientação. Outras são arbitrárias, feitas pelo pesquisador (à revelia do falante), como ser falante de “português culto” ou “português popular”.6 A conluência entre os peris sociais conigura as células sociais, ou os estratos, que devem ser preenchidos por falantes que apresentem concomitantemente esses conjuntos de características. Assim, uma amostra hipotética que considere onde mora (centro/subúrbio), sexo civil (masculino/feminino) e idade (jovens e idosos) gera oito estratos, ou células sociais, todas potencialmente ortogonais, ou seja, preenchíveis:7 – Homem, jovem, morador do centro – Homem, jovem, morador do subúrbio – Homem, idoso, morador do centro Se este critério for especiicado previamente, é mais provável que um falante colabore para a constituição de uma amostra de fala culta do que para uma de fala popular, por exemplo. 7 A quebra da ortogonalidade de uma amostra sociolinguística por cotas se dá, por exemplo, quando se considera a faixa etária e a escolaridade. A célula social para falantes que simultaneamente sejam crianças e universitários tem forte probabilidade de ser vazia (pode existir criança superdotada que curse a graduação antes dos 12 anos, mas é um caso excepcional), quebrando a ortogonalidade da amostra (FREITAG, 2005). 6 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 675 – Homem, idoso, morador do subúrbio – Mulher, jovem, moradora do centro – Mulher, jovem, moradora do subúrbio – Mulher, idosa, moradora do centro – Mulher, idosa, moradora do subúrbio Deinidas as células sociais, resta a decisão de como preenchê-las: cotas ixas (sempre o mesmo número de falantes em cada célula) ou cotas proporcionais (a proporção de falantes em cada célula corresponde à sua proporção na população). Em bancos de dados brasileiros, o VARSUL, por exemplo, assume uma cota ixa de falantes para cada uma das cidades representadas, independentemente do tamanho da amostra; já o Iboruna assume uma distribuição por cotas proporcionais à população de cada uma das cidades que compõem o banco de dados (FREITAG, 2011; FREITAG; MARTINS; TAVARES, 2012). A escolha do procedimento de estratiicação traz implicações metodológicas. Manter o padrão fixo possibilita comparação com outras amostras, cuja distribuição proporcional pode não ser a mesma. Atribuir proporções (pesos) aos estratos da amostra representa mais idedignamente a realidade da população. 3.2 Amostras não estratiicadas O relaxamento do rigor da representatividade estatística precisa ser compensado com a convergência de métodos de amostragem de outras disciplinas, como a adoção de modelos de redes sociais e de comunidades de práticas, para garantir diversidade analítica. Para esses modelos, a etnograia é uma etapa necessária, que possibilita captar em que lugar essa língua está (não que isso não seja necessário também nas outras técnicas de amostragem). Na sociolinguística variacionista, o estudo de Penelope Eckert em comunidades escolares de Detroit é o pioneiro a usar esta técnica de abordagem (ECKERT, 1989). Não há uma metodologia padrão, nem há como fazer um planejamento rigoroso da etnografia de uma dada comunidade; é o acesso do pesquisador de campo e o seu envolvimento na/com a comunidade que vão permitir o desenho da pesquisa. Meyerhoff, Schleef e Mackenzie (2015, p. 59) sugerem que a etnograia da comunidade na 676 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 abordagem sociolinguística siga o acrônimo SPEAKING proposto por Hymes (2003[1974]): Settings; Participants; Ends; Act sequence; Keys; Instrumentalities; Norms; Genres. Em linhas gerais, essa orientação sugere que seja observado como os participantes veem a interação documentada, do ponto de vista físico e psicológico (settings); a descrição dos participantes e e daquilo sobre o que eles falam (participants); os objetivos das interações documentadas (goals); a forma, o conteúdo e o que acontece nas interações (act sequence); o tom, o modo e o estado psicológico da fala (key); os registros e as formas da fala (instrumentalities), assim como as normas e os gêneros discursivos. 3.2.1 Comunidade de práticas A comunidade de prática é caracterizada como um agrupamento de falantes (comunidade) que partilham perspectivas em comum, valores e conhecimento (domínio), e que interagem entre si para se aperfeiçoarem e replicarem esses valores e conhecimentos (prática) (WENGER, 1998; ECKERT; MCCONNELL-GINET, 1997). Estudos de comunidade de práticas não necessitam de amostragem; idealmente, toda a população é considerada, a exemplo do estudo de uma comunidade de práticas religiosas, Praesidium Mãe da Divina Graça da Legião de Maria (católica), situada na zona rural, no povoado Açuzinho, um dos mais de 100 povoados do município de Lagarto, no centro-sul do estado de Sergipe. A documentação sociolinguística dessa comunidade faz parte do banco de dados Falares Sergipanos (FREITAG, 2013) e subsidiou diferentes análises (FREITAG, 2014, 2015b; FREITAG; SANTANA; ANDRADE, 2014, entre outros). O grupo é constituído por 13 participantes, os quais se reúnem sistematicamente duas vezes por semana para tratar das atividades religiosas. As gravações das reuniões e a realização das entrevistas icaram sob a responsabilidade de Cristiane Conceição Santana e Thais Regina Conceição Andrade. A primeira pesquisadora de campo é residente na localidade, e sua avó foi membro da comunidade de práticas sob análise, o que facilitou o contato e minimizou os efeitos do paradoxo do observador. Paralelamente, foram realizadas entrevistas com vistas a coletar informações acerca da constituição da comunidade, além de investigação documental em atas e livros de registro dessa comunidade; essa investigação possibilitou traçar o peril da comunidade, fazendo o resgate histórico, e pode ser conferido Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 677 em Freitag, Santana e Andrade (2014). Embora no povoado Açuzinho existam mais de 20 grupos religiosos, a escolha não foi aleatória; a acessibilidade foi um dos critérios – talvez o principal – que viabilizou a coleta. Considerando a existência de vários grupos religiosos na mesma comunidade, poderíamos pensar que a amostra de comunidades de práticas é uma amostra por conglomerados. A amostragem por conglomerados explora a existência de grupos em uma dada população. Se esses grupos representam adequadamente a população em relação à característica que queremos medir (os grupos apresentam a variabilidade da população), é possível selecionar um ou mais de um desses conglomerados; foi o que izemos com a amostra Atheneu Sergipense (FREITAG et al., 2016). Essa técnica de amostragem reduz o poder explanatório da análise (não podemos generalizar os resultados obtidos em um grupo de estudantes para a fala de Aracaju), mas garante a replicabilidade (está em andamento a coleta em mais duas escolas, nos mesmos moldes). No entanto, tanto na escolha da amostra da comunidade de práticas religiosa, como na escolha da comunidade de práticas escolares, há um viés de seleção por conveniência – acidentalmente, foi a essas e não a outras que tivemos acesso – e de julgamento – as comunidades de práticas a que tivemos acesso são representativas do padrão de comportamento das demais – conigurando uma amostra não aleatória, de composição heterogênea (diferentemente da amostra por cotas). A composição heterogênea e hierarquizada é uma característica de comunidades de práticas, pois todo agrupamento de pessoas que se reúnem com um propósito comum necessita que alguém sempre esteja à frente para tomar decisões e posicionamentos que favoreçam o progresso da comunidade diante dos objetivos almejados – uma composição mais realista da sociedade o que a estratiicação homogeneizada de comunidades de fala. A comparação dos resultados entre o estudo baseado em amostras de comunidades de fala e de comunidades de práticas torna possível a detecção de padrões de emergência e regularização de variantes na amostra de comunidade de fala e a observação da atuação de valores sociopessoais em comunidades de práticas. A conluência de abordagens tem sido testada em novos bancos de dados (FREITAG; MARTINS; TAVARES, 2012, FREITAG, 2013). O estudo em comunidades de fala possibilita que os resultados sejam aprofundados, desde que se tomem como referência estudos microetnográicos de comunidades de práticas. 678 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 3.2.2 Redes sociais/bola de neve A técnica de amostragem bola de neve, ou amigo do amigo, é um tipo de amostragem utilizado para atingir uma população de difícil acesso ou de baixa incidência de falantes. A rede social, considerando os diferentes hábitos de socialização e o grau de envolvimento com a comunidade local dos falantes iniciais, é utilizada para ter acesso ao coletivo, e cada falante selecionado indica mais um falante (linear) ou dois falantes (exponencial), e assim sucessivamente. Os laços que ligam cada um dos falantes podem ser de primeira ordem (falantes que diariamente estão interagindo), ou de segunda ordem, (falantes que se interligam indiretamente). Redes são caracterizadas também quanto à sua densidade e “plexidade”. Quando todos os membros se conhecem, a rede é de alta densidade; quando não há o contato entre todos os membros, a rede é de baixa densidade. Em relação à plexidade, os membros podem estabelecer laços multiplex, ou seja, duas pessoas se relacionam em mais de um papel social e estão presentes em mais de um grupo, e laço uniplex, quando o laço entre duas pessoas é baseado em apenas um relacionamento. Na sociolinguística variacionista, o modelo de rede social foi adotado no estudo de Milroy (1980), em três comunidades de classe trabalhadora (duas católicas e uma protestante) em Belfast, Irlanda, que examinou diferentes tipos de redes, dentro das quais os falantes se socializavam, e a correlação da força da rede com variáveis linguísticas. Para medir a força da rede, Milroy (1980) propôs uma combinação de traços para controlar multiplexidade e densidade da rede, baseada em uma escala de seis pontos, do 0 a 5, controlando os seguintes parâmetros: se o falante faz parte de uma rede territorialmente constituída (rede densa), se tem laços fortes de parentesco (rede multiplexa), se trabalha no mesmo lugar com ao menos dois outros membros da mesma comunidade (rede multiplexa), se compartilha o mesmo local de trabalho com ao menos dois outros membros do mesmo sexo da mesma área (rede multiplexa), se desenvolve trabalhos voluntários nas horas vagas (rede multiplexa). Na perspectiva da sociolinguística brasileira, a abordagem de redes tem sido adaptada e utilizada na seleção de falantes para as amostras Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 679 estratiicadas considerando a plexidade e a densidade (BATTISTI, 2014; ARAUJO; SANTOS; FREITAG, 2014).8 4 Tamanho da amostra O tamanho da amostra, para ins da generalização da estatística inferencial, requer que sejam consideradas a margem de erro (probabilidade de o intervalo conter a média verdadeira) e a signiicância (grau de acurácia para que determinado resultado seja considerado válido) em amostras aleatórias. Em amostras não aleatórias, o tamanho envolve a decisão de quantos falantes vão preencher cada cota/célula social. Normalmente, essa decisão envolve disponibilidade de tempo e recursos do pesquisador. No exemplo da seção 3.1, se as oito células sociais forem preenchidas por cotas de um falante, a coleta necessitará de oito falantes. Trabalhar com o número mínimo não é uma situação adequada, pois, ainda que haja um teste de julgamento para incluir ou não o falante na amostra, sem um parâmetro da célula. Fica difícil julgar. Então, vamos aumentar a cota para dois, o que leva a uma amostra de 16 falantes. Dois falantes é um número mínimo para a constituição de amostras sociolinguísticas por cotas ixas; no entanto, podemos ampliar a amostra para garantir representatividade. Com cinco falantes por cota, a amostra necessitará de 40 falantes. E assim sucessivamente. No entanto, a amostra sociolinguística opera na razão inversa das demais ciências sociais (SANKOFF, 2001), operando com amostras com poucos falantes que cedem muitos dados. A depender dos recursos e disponibilidade, pode ser realizada ampla coleta, mas tratamento estatístico de apenas uma parte dos dados. E é nesse ponto que é preciso considerar o fenômeno linguístico sob análise. Muito mais importante do que a cota por célula é garantir a representatividade do fenômeno Com base na proposta de Blake e Josey (2003), Oushiro (2011) e Araujo, Santos e Freitag (2014) desdobram-se critérios para controle de densidade e plexidade da rede de falantes: Grau 1 – Bastante próximo. Os falantes têm laços fortes (amizade, parentesco, colega de trabalho ou escola etc.) e interagem diariamente; Grau 2 – Próximo. Os falantes interagem frequentemente, mas não têm laços fortes; Grau 3 – Próximo. Os falantes não interagem frequentemente e não têm laços fortes; Grau 4 – Neutro. Os falantes se conhecem, mas não interagem com frequência; Grau 5 – Distante. Os interlocutores não se conheciam anteriormente e só conversaram no momento da gravação da interação. 8 680 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 linguístico no modelo de análise construído. Meyerhoff, Schleef e Mackenzie (2015) recomendam que, para garantir resultados coniáveis e acurados quando submetidos ao tratamento estatístico, cada fator tenha, no mínimo 30 ocorrências por células. Isso implica dizer que, após a estratiicação social da amostra (8 células sociais), é preciso computar as células das outras variáveis preditoras dependentes e garantir que o tamanho da amostra possibilite identiicar pelo menos 30 ocorrências para cada variável preditora independente. Em fenômenos fonológicos, isso é possível com o número mínimo de falantes por cota. Já em fenômenos sintáticos mais raros, esse dimensionamento requer ou mais horas de fala por falante, ou mais falantes por cotas. Em termos de nível de rigor e critério, não existe estudo perfeito, não existem condições ideais. Cada fenômeno e cada realidade impõem restrições e dimensionamentos especíicos. Por conta disso, amostras não probabilísticas não possibilitam avaliar a precisão do resultado. O quantitativo de ocorrências necessário para uma análise de um fenômeno levanta a questão dos custos: o desenho, a coleta e o armazenamento de uma amostra linguística envolvem recursos humanos altamente especializados (treinados não só para a pesquisa de campo e abordagem de falantes, mas também para os procedimentos de transcrição do áudio e anotação dos dados), o que implica recursos inanceiros. Os órgãos de inanciamento da pesquisa sociolinguística no Brasil – assim como ocorre nas demais áreas da ciência – têm valorizado projetos que possibilitem o compartilhamento de amostras por mais bancos de dados sociolinguísticos, que possam ser utilizados mais de uma vez e por mais pesquisadores, para estudar diferentes fenômenos (FREITAG, 2016, 2017). 5 Comparabilidade versus realibilidade Considerando os aspectos de amostragem discutidos, o leitor que chegou a este ponto do texto pode se perguntar se o que vem sendo feito não tem validade. A resposta é, deinitivamente, sim! A tarefa de constituição de bancos de dados é dispendiosa, mas, acima de tudo, é irreplicável temporalmente. Uma vez feita a coleta, não é possível voltar no tempo para corrigir os erros de amostragem que porventura tenham ocorrido. Daí a importância de um planejamento, considerando o objeto do estudo (sua recorrência) e os recursos disponíveis (pessoas Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 681 que estarão envolvidas na coleta dos dados, tempo disponível para os procedimentos de coleta e armazenamento dos dados, infraestrutura e equipamentos disponíveis). Na constituição de novos bancos e na expansão dos bancos já existentes, é desejável seguir o padrão de estratificação já convencionalizado e difundido, o que possibilita a comparação de resultados. É possível revisar o dimensionamento amostral, a im de garantir a reabilidade, ou seja, a consistência da aplicação de métodos estatísticos após a sua repetição. No entanto, a comparabilidade das amostras, garantindo a série histórica, tem primazia em relação à reabilidade estatística (FREITAG; ROST-SNICHELOTTO, 2015). 6 Conclusão O tipo de amostragem que tem sido utilizado em estudos sociolinguísticos de orientação variacionista, de fato, não é probabilística aleatória estratiicada, e, sim, de cotas por conveniência e julgamento, na medida em que os falantes são selecionados pelo critério de disponibilidade e voluntariedade em aceitar os termos da coleta, especialmente as amostras que são chanceladas por Comitê de Ética em Pesquisa (FREITAG, 2017). A conveniência possibilita a operacionalidade da coleta, mas impõe à análise menor poder explanatório; por não atender a um critério estatístico, não pode (ou, melhor, não deve) ser generalizada a uma população. Amostras assim constituídas não poderiam, em tese, subsidiar generalizações sobre “a” língua falada em tal lugar por não garantirem a representatividade da população. E, por serem pautadas na conveniência, limitam a replicabilidade, na medida em que há um viés de seleção. Essa opção metodológica levanta questões relacionadas à generalização dos resultados e o poder explanatório da estatística inferencial subjacente ao modelo de análise utilizado: o quão acurada é a representação da população na amostra? o quão generalizáveis são os resultados? Nossa prática se pauta pelo dimensionamento de tempo e recursos e não necessariamente pela representatividade da amostra. Muitas vezes temos que fazer bom uso de “maus dados”. Assim, cabe a recomendação de manuais de estatística: em estudos com amostragem por conveniência, os resultados devem acompanhar uma descrição detalhada da metodologia de obtenção da amostra para permitir ao leitor o juízo de credibilidade da análise. 682 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 667-686, 2018 Agradecimentos Este texto foi debatido no encontro do GT de Sociolinguística da Anpoll, ocorrido durante o 31º Enanpoll, em 2016. Agradeço aos debatedores pelos comentários e pela audiência, especialmente a Livia Oushiro, Rosane Andrade Berlinck, Marco Antonio Martins e Silvia Rodrigues Vieira, assim como aos pareceristas anônimos da Relin, que contribuíram signiicativamente para o aprimoramento do texto. Referências ARAUJO, Andréia Silva; SANTOS, Kelly Carine; FREITAG, Raquel Meister Ko. Redes sociais, variação linguística e polidez: procedimentos de coleta de dados. In: FREITAG, Raquel Meister Ko. (Org.). Metodologia de coleta e manipulação de dados em Sociolinguística. 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No segundo, situou-se o componente propriamente sociológico da sociolinguística no contexto das teorias sociais. A análise evidenciou que a metodologia da pesquisa, no contexto da sociolinguística variacionista, é marcadamente positivista e não se coaduna com os princípios da pesquisa social contemporânea. Veriicou-se ainda que a tese da ideologia dominante, elemento central da teoria social da sociolinguística brasileira, além de não exercer inluência signiicativa na metodologia da pesquisa, já foi amplamente questionada e não exerce inluência na pesquisa social contemporânea. Palavras-chave: padronização linguística; sociolinguística variacionista; teoria social. Abstract: In this article, we discuss the pertinence and relevance of Brazilian variationist sociolinguistics as applied science in the approach of issues related to linguistic standardization. In order to do so, we conducted a bibliographical research divided into two axes, the linguistic one and the sociological one, aiming at understanding the theoretical eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.687-718 688 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 bases of Brazilian sociolinguistics. In the irst axis, we discussed the nature of sociolinguistics taking Labov’s research as a starting point. Then, we situated the sociological component of sociolinguistics in the context of Social Theories. The analysis showed that in the context of variationist sociolinguistics, the research methodology is markedly positivist and does not conform to the principles of contemporary social research. We also observed that the Dominant Ideology Theory, a central element in the social theory of Brazilian sociolinguistics, not only did not exert signiicant inluence in the methodology of the research works carried out in the area, but also had already been widely questioned in the context of social research and does not present satisfactory answers to the problems it is supposed to explain. Keywords: linguistic standardization; variacionist sociolinguistics; social theory. Recebido em 3 de agosto de 2017 Aceito em 3 de outubro de 2017 1 Introdução A sociolinguística variacionista, aquela que tem em Labov seu maior expoente, é hoje a principal referência teórica acerca de questões relativas à variação linguística. Embora essa ciência adote uma metodologia que articula fatores linguísticos e sociais com o objetivo precípuo de explicar a mudança linguística, os resultados das pesquisas orientadas pelo modelo laboviano se tornaram referências para orientar o discurso acadêmico nos debates que envolvem a padronização linguística no Brasil. Diante desse contexto, o problema central discutido neste texto é o seguinte: uma teoria que surge com o propósito de explicar a mudança linguística pode ser usada como fundamentação para reorientar a forma de conceber e implementar as políticas de regulamentação linguística? Com o objetivo de reletir sobre a pertinência da sociolinguística variacionista como ciência aplicada para abordar questões relativas à padronização linguística, dividiu-se o texto em três partes apresentadas a seguir. Na primeira, confronta-se a sociolinguística com a sociologia da linguagem no que se refere ao tratamento da variação estilística e da Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 689 padronização linguística. Na concepção de Labov, essa é uma distinção fundamental para a deinição da natureza da sociolinguística como uma teoria da língua, que não contempla questões políticas amplas relativas a seu funcionamento social. Por outro lado, a abordagem sociológica de Bourdieu apresenta as limitações de uma perspectiva linguística estrita para lidar com processos sociais que envolvem a variação estilística e o funcionamento da língua legítima. Paradoxalmente, na abordagem que chamaremos aqui de sociolinguística aplicada brasileira1, mesmo admitindo-se o princípio metodológico da articulação entre língua e sociedade, tem-se defendido a negação de critérios sociais como prioritários na deinição do padrão linguístico uniicador. Com base no princípio da regularidade interna das variedades linguísticas, propõe que a padronização da língua se dê levando em conta as regras inerentes ao próprio sistema linguístico. Diante disso, uma vez reconhecida a necessidade de um padrão linguístico nacional pelos próprios sociolinguistas aplicados, a alternativa adotada foi buscar a deinição de uma norma culta real, extraída da análise da fala de pessoas arbitrariamente deinidas como cultas pelos pesquisadores. A partir daí, instaurou-se a distinção entre norma culta, concebida como real, por, supostamente, reletir o uso efetivo e intuitivo do grupo social selecionado, e a norma padrão, vista pelos pesquisadores como idealizada, artiicial e abstrata, por não ser a língua natural de nenhum falante. A seção apresenta alguns problemas da solução proposta pelos sociolinguistas aplicados e inaliza com a seguinte questão: uma ciência aplicada que O uso da expressão sociolinguística aplicada, neste texto, baseia-se na distinção entre antropologia teórica e antropologia aplicada proposta por Bastide (2009), que atribui a esta última o papel de transferir os conhecimentos da primeira à compreensão e à resolução de problemas práticos da vida sociocultural. Assim, a expressão sociolinguística aplicada recobre as discussões de linguistas que se propõem a utilizar conceitos, métodos e resultados das pesquisas sociolinguísticas variacionistas como fundamentos de propostas para reformar as políticas linguísticas e o ensino de língua na educação básica. Esses linguistas compõem um grupo heterogêneo, uma vez que alguns deles são realmente pesquisadores que utilizam os princípios teórico-metodológicos de Labov, como Lucchesi (2015) e Scherre (2005), enquanto outros, que não realizam pesquisas sociolinguísticas propriamente ditas, como Bagno (2003, 2009, 2010), Mattos e Silva (2005), Faraco (2008), por exemplo, voltam-se para discussões sobre a necessidade de aplicar os saberes da sociolinguística teórica a contextos sociais mais amplos que os contemplados nas pesquisas empíricas. 1 690 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 se propõe ao estudo das relações entre língua e sociedade pode excluir deliberadamente de seu campo de interesse a língua institucionalizada e socialmente reconhecida como padrão? Para responder a essa questão, na segunda parte, discutem-se os fundamentos epistemológicos da sociolinguística, iniciando pela compreensão dos fatores que caracterizam a disciplina no modelo de Labov até sua perspectiva aparentemente interdisciplinar. A análise do caminho percorrido pela disciplina revela a existência de dois eixos que se justapõem na sociolinguística brasileira: o linguístico, de base positivista, e o sociológico, que busca aplicar, de maneira transpositiva, os resultados da pesquisa às políticas de regulamentação linguística, aliando à proposta uma concepção da teoria social clássica conhecida como tese da ideologia dominante. A mera justaposição entre os dois eixos é decorrente de uma separação entre duas atividades que deveriam ser realizadas de maneira harmônica em uma disciplina constituída segundo os princípios da interdisciplinaridade, ou seja, pesquisa e interpretação. Dessa forma, não há uma integração entre os eixos linguístico e sociológico para a constituição da metodologia da pesquisa, que, em razão disso, é ainda marcadamente positivista e orientada para o estudo dos fenômenos puramente linguísticos, enquanto a interpretação se dá com base na tese da ideologia dominante, baseada na versão ortodoxa do marxismo. Nesses termos, a revolução social no campo da regulamentação linguística darse-ia pela aplicação dos conhecimentos cientíicos às questões sociais, pela via exclusiva da interpretação, uma vez que as questões sociológicas não são consideradas na metodologia de pesquisa. Na terceira parte, são discutidos os problemas da teoria social em que se fundamentam as interpretações dos sociolinguistas brasileiros acerca da padronização linguística (LUCCHESI, 2015; FARACO, 2008; ZILLES; FARACO, 2015; MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014; SCHERRE, 2005; BAGNO, 2003). A tese da ideologia dominante é situada no contexto geral da teoria social para que seja avaliado seu potencial de apresentar explicações pertinentes das relações sociais. A análise evidencia que a teoria social contemporânea se afastou do consenso ortodoxo sobre a teoria social clássica de base marxista, que fundamenta a tese da ideologia dominante, por dois fatores igualmente problemáticos para o estudo da sociedade: o reducionismo econômico e o de classe, ambos estabelecidos pelo reducionismo estrutural. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 691 2 A variação estilística e o problema da padronização linguística A história do estilo como objeto de estudo da linguística tem início com os trabalhos de Charles Bally no início do século XX. Hoje os fenômenos abordados por ele são estudados por várias disciplinas, entre as quais estão as teorias da enunciação (BENVENISTE, 2006; BAKHTIN, 2003), a pragmática (MAINGUENEAU, 1996, 2002), a análise conversacional (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006) e a sociolinguística. Quanto à sociolinguística, os trabalhos de Labov (2008) foram os primeiros a utilizar a variação estilística como procedimento metodológico importante para determinar o vernáculo, ou seja, o registro de fala em que ocorre o menor grau de monitoramento do falante no sentido de ajustar seu discurso a níveis de maior formalidade. Contudo, embora a sociolinguística se caracterize por propor um estudo social da língua, em geral, os contextos de fala propostos por Labov (2008) para veriicar a variação estilística (entrevista, testes de reação subjetiva, leitura monitorada, entre outros) não correspondem a qualquer situação social concreta, ou seja, que tivesse qualquer vínculo com as práticas sociais efetivamente vivenciadas ou vivenciáveis pelos sujeitos. Da forma como apresentada na metodologia laboviana, a variação contextual não busca compreender como a variação estilística afeta o envolvimento dos sujeitos nas práticas sociais (ECKERT; McCONNELL-GINET, 1992; ECKERT, 2012) ou em que medida os gêneros textuais decorrentes dessas práticas exercem possíveis coerções sobre as adequações que os falantes precisam fazer quando usam a língua em situações reais de comunicação. Trata-se, na verdade, de um procedimento por meio do qual o pesquisador cria situações devidamente controladas e conduzidas de maneira a eliciar ocorrências de dados linguísticos de acordo com os objetivos de pesquisa. A falta de vínculo da variação estilística do modelo laboviano com a realidade social em que as práticas comunicativas interpelam os sujeitos reais tem relação com a forma como Labov (2008, p. 313) concebe a variação social no quadro teórico da sociolinguística: A variação social e estilística da língua desempenha papel importante na mudança linguística? Por “social” entendo aqueles traços da língua que caracterizam vários subgrupos numa sociedade heterogênea; e por “estilística” as alternâncias pelas quais um falante adapta sua linguagem ao contexto imediato do 692 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 ato de fala. [...] A variação social e estilística pressupõe a opção de dizer “a mesma coisa” de várias maneiras diferentes, isto é, as variantes são idênticas em valor de verdade ou referencial, mas se opõem em sua signiicação social e/ou estilística. Ao restringir a variação social aos traços linguísticos que caracterizam os grupos sociais e a variação estilística às diferentes formas de se transmitir o mesmo conteúdo referencial na fala de um mesmo indivíduo, Labov situa de maneira bastante clara a natureza da sociolinguística tal qual ele a compreende: trata-se de uma disciplina que estuda a estrutura da língua entendida como heterogênea devido a fatores de ordem social. Logo, o estudo da variação social e estilística constitui etapa auxiliar cujo valor teórico está relacionado apenas aos processos de compreensão e descrição do sistema da língua. Numa abordagem propriamente sociológica da linguagem, aquela em que a relação entre língua e sociedade é estudada tendo como foco precípuo a compreensão de aspectos constitutivos da sociedade considerando contextos reais e não a descrição da estrutura da língua, Bourdieu (2008) ressalta que o ato de falar consiste na apropriação por parte do sujeito de opções estilísticas já constituídas no e pelo uso (entre as variantes prosódicas e de articulação ou lexicológicas e sintáticas). Assim, ao optar por uma ou outra forma dos estilos expressivos disponíveis, o sujeito se situa na ordem da hierarquia dos grupos correspondentes e esse posicionamento institui um sistema de diferenças sociais. A variação estilística é entendida, então, não como um recurso metodológico utilizado para a coleta de dados linguísticos, mas como sistema de diferenças classiicadas e classiicantes, hierarquizadas e hierarquizantes, que marca aqueles que dela se utilizam. Nesse caso, uma vez que a necessidade de comunicação entre pessoas de grupos diferentes é uma constante nas sociedades complexas, não serão raras as situações de conlitos decorrentes de tensões entre dois processos que deveriam ser complementares: a produção e a reprodução de uma língua comum, entendida como legítima, e sua distribuição igual pelos grupos. Com base nesses pontos, faz todo sentido a crítica que Bourdieu (2008, p. 41-42) dirige à forma como o social tem sido tratado pela linguística: Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 693 Ao privilegiar as constantes linguisticamente pertinentes em detrimento das variações sociologicamente signiicativas para construir este artefato que é a língua “comum”, tudo se passa como se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida, fosse identiicável à maneira socialmente condicionada de realizar esta capacidade natural, cujas variedades são tantas e quantas sejam as condições sociais de aquisição. A competência suiciente para produzir frases suscetíveis de serem compreendidas pode ser inteiramente insuiciente para produzir frases suscetíveis de serem escutadas, frases aptas a serem reconhecidas como admissíveis em quaisquer situações nas quais se pode falar. Também neste caso, a aceitabilidade não se reduz apenas à gramaticalidade. Os locutores desprovidos de competência legítima se encontram de fato excluídos dos universos sociais onde ela é exigida, ou então, se veem condenados ao silêncio. Por conseguinte, o que é raro, não é a capacidade de falar, inscrita no patrimônio biológico, universal e, portanto, essencialmente não distintiva, mas, sim, a competência necessária para falar a língua legítima que, por depender do patrimônio social, retraduz distinções sociais na lógica propriamente simbólica dos desvios diferenciais ou, numa palavra, da distinção. (Grifos do autor) A posição de Bourdieu acerca do papel social da língua legítima (padrão) e suas implicações para estudos de sociologia da linguagem contrasta com as ideias comumente difundidas pelos sociolinguistas variacionistas. Labov, desde o início, deiniu a fala vernácula como objeto de estudo da sociolinguística. Os sociolinguistas brasileiros também rejeitaram a língua padrão como objeto de estudos cientíicos. Mesmo quando defendem o princípio da adequação do uso da língua ao contexto, argumento muito utilizado para justiicar a rejeição dos acadêmicos à noção de erro de português, fundamentam a crítica em bases naturais, ou seja, em conformidade com o pressuposto de que a língua tem suas próprias regras. No entanto, quando se avaliam os usos sociais efetivos da língua, aí incluída a variação estilística, não está em questão a capacidade natural, biológica do locutor para falar, e sim sua competência para usar os estilos aceitáveis e admissíveis em diferentes contextos sociocomunicativos, inclusive aqueles em que se exige o domínio da língua padrão. Outro problema que pode ser considerado no princípio da adequação é seu caráter pseudocientíico. Aqueles que o defendem veem- 694 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 no como uma espécie de conclusão de um raciocínio silogístico cujas premissas seriam fundamentadas em resultados de pesquisas cientíicas. No entanto, como a metodologia variacionista da chamada “primeira onda da sociolinguística” (ECKERT, 2012) não contempla a variação estilística em situações efetivamente reais, a conclusão de que os falantes costumam adequar o uso linguístico às situações comunicativas em que se encontram é, na verdade, um truísmo cuja compreensão independe de pesquisas ou de qualquer respaldo de natureza cientíica, como bem observou Corbeil (2001, p. 201): “O paradoxo de uma língua de grande difusão é integrar a variação sempre respeitando uma norma uniicadora. O paradoxo parece se resolver mais comodamente no exercício da língua pelos falantes do que nas relexões daqueles que falam dela oicialmente”. Os desenvolvimentos futuros do tratamento da variação estilística, sobretudo após a adoção do conceito de norma como índice de processos de hierarquização social, a partir do qual a sociolinguística estabeleceu os conceitos classiicatórios de norma culta e norma popular, não representaram um desvio da metodologia laboviana concernente ao funcionamento da variação estilística nas práticas sociais. A esse respeito, é oportuna a crítica de Lucchesi ao tratamento da variação estilística no âmbito do Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta2 (NURC), em cujos dados muitos pesquisadores têm-se baseado para defender a legitimidade da norma culta em oposição à norma padrão: Embora possa ser considerado o primeiro grande projeto de pesquisa sociolinguística desenvolvido no Brasil, o NURC não segue a metodologia laboviana. Assim, as suas entrevistas não adotam os procedimentos sugeridos por Labov para superar o paradoxo do observador e obter uma amostra do vernáculo do falante. As entrevistas ainda seguiam a metodologia da dialetologia tradicional e tinham por tema determinada área lexical (como alimentação, viagem, vestuário etc.). Com isso, o nível de formalidade das entrevistas não foi controlado e é variável, comprometendo a observação dos dados no que concerne à variação estilística. (LUCCHESI, 2015, p. 219) Os acervos de fala “culta” do NURC foram constituídos na década de 1970, em cinco capitais brasileiras: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. A coleta de dados se deu por meio de entrevistas com falantes naturais das cinco capitais, todos com nível superior completo. 2 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 695 Apesar dos problemas metodológicos identiicados no NURC, Lucchesi defende o que considera como contribuições de estudos sobre a modalidade oral da norma culta brasileira, partir dos acervos do Projeto, para uma discussão pública sobre a normatização linguística no Brasil. Sendo assim, como aceitar que estudos realizados com base em dados coletados por meio de uma metodologia reputada como problemática constituam referências para o debate sobre a padronização linguística no país? Como aceitar, num país com a extensão territorial e a diversidade sociocultural do Brasil, que se deina uma norma culta pretensamente amparada em dados reais da fala nacional por meio de amostras da língua falada unicamente por falantes de nível superior de apenas cinco capitais do país, tal como se veriica no Projeto de Gramática do Português Falado (JUBRAN; KOCH, 2006; ILARI E NEVES, 2008; KATO; NASCIMENTO, 2009)? Ainal, o nível superior é condição suiciente para alguém ser considerado falante culto de uma língua num país como o Brasil, em que a qualidade da educação básica está bastante aquém do desejável e tem levado muitos estudantes com formação precária para as universidades? Sabemos bem que os cursos de nível superior não reservam espaço em seus currículos para desenvolver atividades capazes de remediar as precariedades decorrentes de uma formação ineiciente na educação básica. As respostas a essas questões têm sido causas de uma série de divergências entre os pesquisadores. Entre eles, a designação norma culta tem-se mostrado problemática não necessariamente pelo fato de o qualiicativo “culta” revelar um comprometimento ideológico do discurso cientíico, que passa a instituir formas de distinção social, quando, na verdade, deveria analisar as formas de distinção em vigor na sociedade. A principal diiculdade que os sociolinguistas encontram para lidar com a diferenciação social marcada pela instituição da norma culta tem ligação com outro termo classiicatório que seria sua contraparte natural: como o antônimo de culta é inculta, a norma culta deveria instituir de imediato seu oposto para recobrir todos os usos linguísticos que fogem de seu escopo, ou seja, a norma inculta. No entanto, diante de razões sócio-antropológicas bastante razoáveis, optou-se pela solução aparentemente mais simples: manter a norma culta e instituir, não sem grande carga de arbitrariedade no âmbito do próprio signo, a norma popular como seu contraponto. 696 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 Apesar do esforço empreendido pelos pesquisadores para marcar de maneira bastante incisiva a distância teórica e política que separa ambas as normas, paira no senso comum, no discurso pedagógico referente ao ensino de língua portuguesa e em trabalhos de muitos linguistas, uma identiicação entre norma culta e norma padrão, entendida como equivocada por pesquisadores de formação sociolinguística mais especializada. Os que defendem a distinção entre essas normas denunciam a língua padrão como um modelo idealizado e artiicial de língua fortemente comprometido com processos de dominação e exclusão social das classes dominantes sobre as classes populares (FARACO, 2008; LUCCHESI, 2015). A nova concepção de norma culta, por sua vez, não obstante sua controversa correlação com o grupo ou grupos sociais de referência, é consensualmente entendida como a variedade linguística efetivamente utilizada pelos falantes mais escolarizados, distinguindo-se estruturalmente em muitos aspectos da norma padrão. Por esse motivo, é vista por seus proponentes como a real língua do Brasil, razão pela qual os sociolinguistas aplicados a elegeram como referência para as discussões sobre a padronização linguística. Adotando essa posição, relegaram a norma padrão a uma espécie de limbo, ou seja, a um lugar de indeinição tanto no contexto acadêmico quanto no escolar. Esse gesto suscita o seguinte problema: uma ciência aplicada que se propõe ao estudo das relações entre língua e sociedade pode excluir deliberadamente de seu campo de interesse a língua institucionalizada, histórica e socialmente reconhecida como padrão? 3 A resposta da sociolinguística positivista brasileira As justiicativas para a exclusão da norma padrão do conjunto de objetos de estudo da sociolinguística revelam, antes de tudo, sua iliação ao paradigma cientíico positivista, segundo o qual os critérios de cientiicidade das pesquisas devem estar alinhados aos estabelecidos pelas ciências naturais. Isso explica o fato de autores como Perini3 e Após negar que o estudo de gramática tenha alguma contribuição a dar para que os estudantes desenvolvam capacidades de leitura e escrita, Perini estabelece qual deve ser seu lugar na escola: “[...] o que a gramática poderia fazer enquanto disciplina escolar? Minha resposta é que a gramática é uma disciplina cientíica, tal como a química, a geograia e a biologia. Assim como a biologia estuda os seres vivos (sua forma, isionomia, hábitos, etc.) e a química estuda os elementos e suas combinações, 3 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 697 Bagno,4 entre vários outros, propugnarem que o estudo da língua e/ou gramática deva receber na escola o mesmo tratamento de disciplinas cientíicas como a química, a física, a biologia e a geograia, por exemplo. A sociolinguística laboviana segue à risca os princípios epistemológicos do paradigma positivista (HUGHES, 1983) no tocante à objetividade ou neutralização da inluência do pesquisador na observação dos fenômenos estudados, na metodologia proposta para o tratamento da variação estilística e em suas sugestões para minimizar o chamado paradoxo do observador, ou seja, o desaio que o pesquisador enfrenta para descobrir como as pessoas falam quando não estão sendo monitoradas, visto que só é possível obter esses dados por meio de alguma técnica que pode induzir o falante ao monitoramento de sua fala (LABOV, 2006). Acrescenta-se a essa lista a forma como se concebe a delimitação do campo disciplinar. Labov (2008, p. 215) circunscreve a sociolinguística ao estudo da “língua em uso dentro da comunidade de fala, com vistas a uma teoria linguística adequada para dar conta desses dados”. Mais adiante, na mesma obra (p. 216), reairma que seu objetivo é estudar a estrutura e a evolução da língua dentro do contexto social da comunidade de fala, considerando exclusivamente tópicos da linguística geral, quais sejam, da fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. Parece icar bem claro que o estudo dos usos da língua dentro da comunidade de fala está a serviço do desenvolvimento da teoria linguística e não da compressão das relações entre língua e sociedade. Essa hipótese se conirma quando o pesquisador, ainda atendendo a propósitos de delimitação disciplinar, distingue a sociolinguística da sociologia da linguagem: Uma área de pesquisa que tem sido incluída na “sociolinguística” talvez seja rotulada mais adequadamente de “sociologia da linguagem”. Lida com fatores sociais de larga escala e sua interação mútua com línguas e dialetos. Há várias questões a gramática estuda um aspecto da linguagem – um fenômeno tão presente em nossas vidas quanto os seres vivos ou os elementos químicos (PERINI, 2010, p. 35). 4 Bagno vê como necessário um ensino de língua fundado em bases cientíicas, livre do senso comum: “A educação linguística precisa ter como base as teorias e metodologias contemporâneas das ciências da linguagem e da educação, das ciências sociais e humanas, e não um aparato obsoleto e pré-cientíico”. (BAGNO, 2010, p. 25). Para conhecimento de críticas de pensadores da área de educação ao modelo de ensino orientado pela ciência, ver Zaballa (2002) e Perrenoud (2002, p. 89-106). 698 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 abertas e diversos problemas práticos associados com o declínio e a assimilação de línguas minoritárias, o desenvolvimento do bilinguismo estável, a padronização de línguas e o planejamento do desenvolvimento da língua em nações recém-surgidas. O estímulo linguístico para esses estudos é primordialmente o de que dada pessoa ou grupo usa a língua X num contexto ou domínio social Y. (LABOV, 2008, p. 215) (Aspas do autor, negritos meus) A distinção entre as disciplinas, tal qual propõe Labov, está na maior ou menor ênfase concedida aos aspectos da estrutura da língua ou aos fatores sociais mais amplos. Assim, a sociolinguística estaria “preocupada com as formas das regras linguísticas, sua combinação em sistemas, a coexistência de vários sistemas e a evolução dessas regras e sistemas com o tempo” (LABOV, 2008, p. 216). Em contrapartida, os aspectos práticos ligados ao funcionamento social da língua, entre os quais se incluem as políticas linguísticas, seu planejamento e seus instrumentos, seriam objetos da sociologia da linguagem. A hegemonia do paradigma positivista nas ciências sociais passou a ser objeto de muitas contestações e hoje já é possível airmar que se trata de um modelo amplamente superado no campo das ciências humanas. Um olhar, mesmo supericial, sobre suas características é suiciente para entendermos as razões dessa virada. Santos (2008) apresenta as seguintes características desse paradigma ainda dominante no campo da sociolinguística variacionista: i) modelo totalitário, na medida em que nega qualquer racionalidade a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e por suas regras metodológicas. Esse princípio instaura a cisão entre conhecimento científico (válido) e senso comum (conhecimento inválido); ii) o conhecimento cientíico avança pela observação descomprometida e isenta de subjetividade, sistemática e rigorosa dos fenômenos estudados; iii) conhecer signiica quantiicar. O rigor cientíico é consequência do rigor das medições; logo, o que não é quantiicável é cientiicamente irrelevante; iv) o método cientíico se assenta na redução da complexidade. Conhecer signiica dividir e classiicar para, depois, poder determinar as relações entre as partes separadas; v) é um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, com base nas regularidades observadas a im de prever o comportamento futuro dos fenômenos. As leis são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona as coisas em detrimento de qual o agente ou qual o im das coisas. Todas essas características, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 699 presentes na metodologia laboviana, opõem-se a características que Santos (2008, p. 36) considera constitutivas das ciências humanas: As ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões iáveis porque os seres humanos modiicam seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e como tal não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se, no ato da observação, dos valores que informam sua prática em geral e, portanto, de sua prática de cientista. Se essa é a condição da sociolinguística face à oposição entre a restrição de seu campo ao estudo das formas linguísticas e as complexidades do funcionamento social da língua, como explicar o crescente interesse dos sociolinguistas de formação variacionista por temas como padronização linguística e ensino de língua e as posições veementes que têm manifestado a respeito dessas questões? Penso que estamos mais uma vez diante do transbordamento semântico do social como elemento de composição que forma o nome da disciplina sociolinguística. Isso já aconteceu na passagem da concepção de língua de Saussure para a de Labov e está acontecendo na sociolinguística brasileira em virtude de seu alinhamento com as teorias sociais de base marxista que estão na base das interpretações dos sociolinguistas a respeito do caráter heterogêneo da língua e suas implicações sociais. Uma das principais razões desse transbordamento do social em relação ao modelo laboviano está naquilo que é tido como sua incapacidade de apreender os conlitos sociais decorrentes da variação social e estilística. Como alternativa para as limitações do modelo do consenso social adotado por Labov, Lucchesi (2015) propõe a manutenção dos procedimentos metodológicos essenciais da sociolinguística, seguida de uma nova forma de interpretar os resultados das pesquisas. Na verdade, da intenção de Lucchesi de salvar o edifício teórico-metodológico da sociolinguística laboviana, surgiu uma solução aporética. Isso porque, enquanto no modelo de Labov havia um 700 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 programa de pesquisas coeso, em que a metodologia estava a serviço da explicação da mudança linguística – e era esse o objetivo das pesquisas sociolinguísticas –, a solução de Lucchesi defende o uso da metodologia de Labov para explicar os conlitos sociais decorrentes da avaliação social da variação linguística. Cabe questionar, nesse caso, se a interpretação social dos conlitos que tem sido feita pelos linguistas é realmente amparada na metodologia empregada ou se seria possível formulá-la independentemente da metodologia sociolinguística. Essa seria uma questão relevante por dois motivos: primeiro porque há várias publicações em que os autores apresentam discussões de cunho social a respeito da variação sem terem desenvolvido nenhum projeto de pesquisa utilizando a metodologia laboviana (FARACO, 2008; FARACO, ZILLES, 2015; BAGNO, 2009; MATTOS E SILVA, 2005); segundo porque é bastante discutível que dados quantitativos sobre a variação linguística, coletados por meio de uma metodologia marcada pelo apagamento da subjetividade e por dados produzidos em condições artiiciais de uso da linguagem, justiiquem, automaticamente, as teses sobre a falta de legitimidade da língua padrão. Disso decorre outro problema importante: a separação entre pesquisa e interpretação. Os autores que publicam trabalhos de cunho sociológico, com ênfase na suposta relação conlituosa entre a variação linguística e sua avaliação social, airmam que suas interpretações estão amparadas nos dados de pesquisas. No entanto, o que efetivamente se veriica é que a avaliação social da variação, componente importante da metodologia de Labov, teve sua importância minimizada na pesquisa sociolinguística brasileira. Assim, as airmações sobre os conlitos sociais decorrentes da variação não se amparam nos dados coletados pela metodologia sociolinguística. A assunção do princípio da heterogeneidade linguística torna a simples ocorrência de qualquer variante linguística empregada pelos falantes, ainda que não seja objeto de pesquisas sociolinguísticas especíicas, como suiciente para subsidiar interpretações sobre as relações entre língua e sociedade. Diante da separação entre pesquisa e interpretação ou, em outros termos, entre teoria linguística e teoria social, é preciso avaliar se o desenvolvimento disciplinar ou interdisciplinar das áreas envolvidas consegue responder de maneira satisfatória ao problema da padronização linguística, como tem feito os sociolinguistas aplicados. A primeira Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 701 questão suscitada é se isso constitui, de fato, um objeto de estudo das disciplinas envolvidas em nível mono ou interdisciplinar. Labov sempre se mostrou refratário à designação “sociolinguística” por considerar que, dado o caráter eminentemente social da língua, seria um contrassenso pensar uma teoria linguística geral que não fosse social. Então, mesmo após ter acatado a designação, é possível questionar se ele situa a teoria que propõe no campo da interdisciplinaridade. Por outro lado, a distinção que propõe entre sociolinguística e sociologia da linguagem, seguida de seus respectivos objetos, parece deixar muito claro que a padronização seria objeto apenas da segunda. Como bem frisou, o estudo desses objetos mais amplos só apresenta em comum com os objetos da teoria linguística o fato de considerar que o falante usa determinada língua em determinado contexto. Relacionando a posição de Labov com o estágio atual da sociolinguística aplicada brasileira, seria coerente airmar que houve uma passagem do campo disciplinar para o interdisciplinar, condição necessária para que fosse possível abordar, de maneira satisfatória, um objeto tão amplo como a padronização linguística. No entanto, para isso, seria necessária também a revisão de sua metodologia. Já vimos, porém, que Lucchesi (2015) defende a manutenção dos princípios básicos da metodologia laboviana. Veriica-se, dessa forma, a existência de dois campos distintos no interior da sociolinguística tal qual vem se desenvolvendo no Brasil: um que investiga processos de variação e mudança, caracterizando a pesquisa sociolinguística propriamente dita ou ciência pura, e outro que se baseia nesses dados para realizar interpretações sobre a avaliação social da variação, além de questões ligadas à padronização linguística. A segunda acepção estaria, a rigor, no âmbito da sociologia da linguagem e seria classiicada como ciência aplicada. A distinção entre esses campos é fundamental para uma avaliação adequada dos saberes oriundos da investigação sociolinguística e de suas possibilidades de aplicação. Penso que a falta de clareza quanto a essa distinção está na base dos projetos reformistas de alguns sociolinguistas aplicados, que buscam a transferência direta dos resultados de pesquisa para contextos sociais mais amplos do que os previstos nos objetivos das investigações que os produziram. Quanto a esse ponto, poder-se-ia objetar que as interpretações sociais são feitas com base nos dados. Como essa objeção só faria sentido se houvesse uma relação interdisciplinar entre os campos, torna- 702 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 se necessário avaliar a pertinência e a adequação das teorias e métodos compartilhados, a im de veriicar se há realmente uma relação harmônica entre ambos a ponto de constituírem uma única disciplina. Toda disciplina se caracteriza pela deinição de um quadro teórico e da concepção metodológica de que se utiliza no processo de produção do conhecimento sobre os fenômenos que estuda. A indissociabilidade entre teoria e método é, portanto, condição sine qua non para a constituição de uma disciplina. É essa relação constitutiva que explica, por exemplo, as diferenças entre os pensadores da teoria social clássica: Durkheim, com o método funcionalista, Marx, com o materialismo, e Weber, com os tipos ideais. Em abordagens interdisciplinares, a falta de harmonia entre teoria e método acarreta sempre o risco de que sejam reunidas, em um mesmo contexto, posições teóricas formalmente válidas, mas totalmente incompatíveis do ponto de vista metodológico ou dos paradigmas em que cada uma se encontra. Essas são observações fundamentais para que não se confunda a interdisciplinaridade com uma bricolagem intuitiva. Diante desse quadro, a classiicação da sociolinguística como campo interdisciplinar impõe que desconsideremos a independência entre teoria linguística e teoria social (a separação entre pesquisa e interpretação não teria sentido). Sendo assim, podemos apresentar, de maneira mais explícita, o problema que queremos discutir: a sociolinguística aplicada brasileira coaduna objetos, teorias e métodos da linguística e da teoria social de maneira suficientemente harmônica em sua constituição interdisciplinar? Esse problema só pode ser satisfatoriamente abordado se examinarmos os aspectos teórico-metodológicos que cada uma oferece para o compartilhamento e como essas contribuições passaram a funcionar no projeto de reconiguração da disciplina. A sociolinguística surge com o objetivo de explicar a mudança linguística (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006). Labov veriicou que, antes de uma mudança se consolidar, os fenômenos linguísticos observados passam por uma fase de transição5. Diante da constatação de que há sempre formas em variação ou em competição no interior do sistema da língua, sem que isso implique qualquer prejuízo ao seu funcionamento, concluiu que a língua é um sistema heterogêneo. É importante assinalar que a heterogeneidade, em si, não representa uma Labov observou também que nem todas as vezes que formas linguísticas estavam em variação havia mudança. 5 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 703 novidade trazida pela linguística, como se pode erroneamente supor. A novidade está no valor que a linguística laboviana lhe confere como fenômeno que possibilita explicar a mudança. Outro princípio metodológico importante da teoria laboviana é o reconhecimento de que a variação só é veriicável por meio do uso da língua pelos falantes situados em comunidades de fala. A veriicação da heterogeneidade linguística no contexto social levou à conclusão de que todas as variantes ou variedades da língua são sistemáticas, ou seja, são produzidas de acordo com as regras possíveis de estruturação do sistema da língua. Essa conclusão, plenamente defensável do ponto de vista de uma teoria linguística positivista, redunda em um problema sociológico básico: se todas as variantes e variedades são igualmente sistemáticas, o que justiica o prestígio de umas e a estigmatização social de outras? Embora essa não fosse uma questão passível de explicação por meio de uma teoria linguística, Labov não a ignorou de todo. Antes, buscou compreender de que maneira a avaliação social sobre a variação poderia contribuir para a mudança linguística, chegando à conclusão de que a estratiicação social exerce inluência considerável nesse processo. Não era seu interesse abordar processos sociais mais amplos. Essa ausência de discussão sociológica não pode simplesmente ser atribuída a uma falta de vontade ou de compreensão de Labov acerca dos impactos socioideológicos da avaliação social da variação estilística, mas ao reconhecimento das limitações da metodologia adotada, tendo em vista os objetivos de seu projeto investigativo, que tinha como foco a explicação da mudança linguística. A falta de uma teoria social que possibilitasse uma abordagem dos conlitos sociais em consequência da avaliação social negativa de variantes estigmatizadas foi considerada por Lucchesi (2015) como a principal limitação da sociolinguística laboviana, e essa se tornou uma questão proeminente no desenvolvimento da sociolinguística. O problema é que, nesse caso, não existe apenas uma teoria social que possa servir de base para explicar as relações sociais, como ocorre no caso do tratamento da variação linguística. Considerando que cada teoria social busca constituir-se como um modelo geral de análise e explicação da sociedade, é sempre crucial conhecer as razões que levam um pesquisador à escolha de uma ou outra abordagem. Esse não é um problema de pouca monta, pois, ainda que essa escolha possa se mostrar amparada em critérios 704 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 objetivos, não podemos perder de vista que a marca mais característica do ato de escolher é a subjetividade. A sociolinguística brasileira considerou a tese da ideologia dominante como mais adequada para explicar a forma como as variedades linguísticas são valoradas socialmente e os conlitos que daí podem advir. O argumento central dessa tese, de base marxista, consiste em airmar que as classes subordinadas tendem a aceitar sua condição porque a cultura em que vivem é controlada por classes dominantes. Esses grupos, detentores do capital e dos bens culturais socialmente mais valorizados, teriam o controle das instituições educacionais e da mídia, de maneira que delas se utilizariam para transmitir seus valores e, dessa forma, garantir a reprodução de uma ordem social que fosse amplamente favorável à manutenção de um status quo marcado, prioritariamente pela manutenção de privilégios que não apenas produzem como também reforçam as desigualdades sociais. Essa ordem social seria naturalizada por meio de diversos dispositivos ideológicos que ocultariam das classes dominadas a verdadeira face da realidade. A tese da ideologia dominante assentase em dois fundamentos teórico-metodológicos da teoria marxista: o materialismo e o determinismo econômico. Apresentados os aspectos da teoria linguística e da teoria social utilizados pelos linguistas na constituição de uma sociolinguística interdisciplinar, restam ainda duas tarefas a cumprir: caracterizar essa nova disciplina e avaliar suas condições para abordar a questão da padronização linguística. A primeira e mais notável mudança na caracterização da disciplina está na deinição de seus objetivos. Se no modelo laboviano o objetivo geral era explicar a mudança linguística e, nesse contexto, o estudo da variação representava um objetivo especíico, na sociolinguística interdisciplinar, o foco se desloca para a avaliação social da variação linguística sem se apoiar numa concepção atomista de comunidade de fala, mas levando-se em conta toda a extensão territorial coberta por um idioma. Para isso, seria necessário, numa metodologia orientada rigorosamente para uma compreensão ampla do objeto, que fossem realizadas coletas de dados que pudessem constituir amostras representativas de toda a realidade sociolinguística do país. Essa concepção ampliada dos limites da comunidade de fala, ainda um ideal teórico, levou em conta a tese da ideologia dominante e, em razão disso, correlacionou variedades de prestígio a classes Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 705 dominantes e variedades estigmatizadas a classes subordinadas ou populares. Assim, a avaliação negativa dos usos linguísticos das classes populares passou a ser vista como extensiva aos próprios membros dessas classes. Como consequência desse processo de classiicação fundado em critérios socioideológicos, e sem nenhuma justiicativa baseada nos dados de pesquisa, a avaliação social negativa da fala popular foi classiicada pelos sociolinguistas como expressão de preconceito linguístico. Ainda com base nos dados e conclusões da pesquisa empírica, os sociolinguistas passaram a conceber a língua padrão como um modelo de língua idealizado, em total desacordo com a realidade linguística do país e imposto pela classe dominante, para garantir às elites letradas a reprodução de uma sociedade marcada pela garantia de privilégios para poucos e a exclusão de muitos. A alternativa para o problema, no entanto, não poderia ser mais paradoxal. Numa acintosa negação da tese da ideologia dominante, os linguistas penderam para o lado dos aspectos exclusivamente linguísticos da disciplina em detrimento dos sociais. Mantendo a correlação entre variedades linguísticas e classes sociais, instituíram uma oposição entre norma ideal (padrão) – abstrata, idealizada, distante da realidade linguística brasileira –, e normas reais (cultas e populares) – concretas, condizentes com o uso efetivo dos falantes em suas práticas comunicativas. Nessa nova classiicação, a norma popular continuou reletindo os usos linguísticos estigmatizados. No entanto, se a norma padrão teve sua validade negada do ponto de vista cientíico, a que classe social a norma culta estaria correlacionada? Ainda que o NURC tenha usado o critério da escolaridade (nível superior completo) e não o da classe social para deinir o falante culto, se levarmos em conta que, no período da coleta de dados (década de 1970), o acesso à universidade era privilégio de poucos no país, seremos conduzidos à conclusão de que a maioria desses sujeitos pertencia à elite. Dessa forma, a primazia do linguístico sobre o social recoloca o problema da separação entre a teoria linguística e a teoria social no âmbito de uma sociolinguística supostamente interdisciplinar. Os problemas mostrados nas etapas anteriores acabaram por antecipar as respostas ao terceiro aspecto a ser examinado. De fato, se as soluções apresentadas ao problema da avaliação social da variação linguística contrariam as pretensões de construção de uma abordagem interdisciplinar, o questionamento da competência da sociolinguística 706 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 para abordar a padronização linguística se impõe como uma consequência lógica. Apesar disso, há certos aspectos conceituais e metodológicos que, por reletirem posições amplamente consensuais no meio acadêmico, merecem um exame, ainda que breve. No âmbito da teoria linguística, a tese de que a norma culta deve ser a base para os projetos de padronização esbarra, inicialmente, no problema da falta de critérios por meio dos quais seja possível estabelecer quem seria o falante culto ou quais usos seriam considerados cultos. Na seção anterior foram apresentados alguns problemas metodológicos do projeto: população de amostra muito reduzida (apenas falantes de cinco capitais), falta de rigor nas estratégias de coleta de dados e controvérsias relacionadas aos critérios para deinição do falante culto. Faraco (2008) reconhece a arbitrariedade dos critérios utilizados pelo NURC para deinir o falante culto e adverte que esse é um dos nós que precisam ser desatados para a se estabelecer a norma culta: O primeiro deles – e não certamente o menor – é saber quem são os letrados da sociedade brasileira, ou seja, qual ou quais grupos sociais servem de referência para delimitarmos objetivamente os fenômenos que constituem a norma culta brasileira. Como vimos anteriormente, o projeto NURC restringiu a classificação de “cultos” (de mais letrados) aos falantes com educação superior completa. No entanto, numa sociedade que distribua de maneira mais equânime os bens educacionais e culturais, é mais adequado considerar letrados todos os que concluem pelo menos o ensino médio. Este é um critério que se constitui historicamente nas sociedades industriais modernas nos últimos duzentos anos. (FARACO, 2008, p. 59). Mattos e Silva (2005, p. 78-79) admite a impossibilidade de se deinir a norma padrão com base na realidade linguística, um dos objetivos do NURC: “impossível, parece-me, será estabelecer uma norma padrão com base na realidade linguística. Esse padrão estará sempre carregado de arbitrariedade”. Bagno (2011) considera que os dados do NURC, coletados na década de 1970, não representam com idelidade a norma culta contemporânea. Apesar de todos esses problemas, devido ao fato de o NURC ser o único projeto com acervos de fala deinida como culta pelos pesquisadores, muitos linguistas têm-se baseado nesses acervos para fundamentar suas posições acerca da padronização linguística. Outro problema está na proposta de substituir um padrão tido como Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 707 ideal por outro tido como real, tomando como base a modalidade falada da língua. Essa decisão atende aos princípios do paradigma positivista em nome do qual se busca o alinhamento da prática cientíica com a metodologia das ciências naturais. Nesse sentido, é preciso apreender a ordem interna do sistema linguístico por meio de sua manifestação natural para, em seguida, estabelecê-la como referência para a ordem social. Já mencionamos, na seção anterior, o contraste que Bourdieu estabelece entre a capacidade biológica de falar uma língua e a competência para utilizar a língua legítima (padrão) em situações comunicativas especíicas. Ocorre que, na sociolinguística, o real só pode ser entendido como sinônimo de natural, uma vez que é impossível negar a realidade social da língua padrão, presente em diversas práticas sociais. Um projeto de padronização linguística baseado na modalidade falada teria de resolver, ainda, o problema da relação entre sincronia e diacronia. A língua padrão, da forma como a conhecemos, está intrinsecamente ligada à modalidade escrita desde o seu surgimento. Essa característica tem sido alvo de críticas dos linguistas, primeiro por atribuir um lugar secundário à língua falada (não à oralidade), depois por conservar aspectos formais e estruturais da língua muito distantes dos conhecimentos linguísticos dos falantes. Contudo, uma das características mais marcantes de sociedades historicamente letradas é o acúmulo de grandes quantidades de materiais escritos que atravessaram séculos e até milênios, sem que isso afete sua atualidade ou importância como patrimônio histórico-cultural. Além disso, a língua padrão constitui um instrumento que possibilita estruturar práticas sociocomunicativas nos mais diversos campos da atividade humana, desde as mais tradicionais às mais modernas. Ou seja, a língua padrão é capaz de contemplar tanto aspectos sincrônicos quanto aspectos diacrônicos. Os estudos sobre a língua falada, ao contrário, concentram-se apenas numa abordagem sincrônica e, por essa razão, jamais poderiam servir de referência para a padronização linguística, uma vez que não teria como integrar formas e estruturas da língua muito recuadas no tempo. Os problemas apresentados nesta seção corroboram a posição de Rajagopalan no tocante à distinção entre ciência linguística e política linguística, reairmando, em outros termos, a especiicidade da sociologia da linguagem em relação à sociolinguística: 708 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 [...] muitos se apressam para pleitear que o fato de ter sido treinado como linguista deve propiciar uma nítida vantagem a uma pessoa quando se trata de opinar sobre questões de política linguística. MINHA RESPOSTA É UM SONORO NÃO. Explico. O conhecimento que o linguista diz ter é um conhecimento cientíico sobre a estrutura e o funcionamento das línguas. Ele sabe, por exemplo, que a estrutura fonológica de uma língua funciona com base em contrastes e complementaridades entre unidades e não entre sons isiológica ou acusticamente distintos. Mas, conhecimentos desse tipo não tem nada a ver com questões que interessam no campo da política linguística. A posição do linguista em relação aos assuntos de interesse político que envolve a língua é idêntica à do biólogo ou ginecologista, ou jurista, ou quem quer que seja em relação à decisão de legalizar aborto. (RAJAGOPALAN, 2013, p. 23) (Grifo do autor). 4 Problemas da teoria social na sociolinguística brasileira No contexto da teoria social, a tese da ideologia dominante representa o alinhamento da linguística ao que foi chamado, na sociologia, de “consenso ortodoxo” (GIDDENS, 2009), um conjunto de proposições explicativas baseadas na teoria social clássica, que teve grande inluência na forma como se analisavam as sociedades até o inal da década de 1960 e início da de 1970, quando surgiu outro conjunto de perspectivas teóricas concorrentes que provocou a dissolução de praticamente todo o consenso anterior. Conquanto apresentassem divergências teóricas, as novas vozes se alinharam na rejeição a um princípio básico do consenso ortodoxo, que tinha grandes implicações na construção de seu edifício teórico-metodológico: a asserção de que o comportamento humano é consequência do funcionamento de mecanismos de poder que os sujeitos não controlam nem compreendem. É essa forma de conceber a relação entre o social e o individual que caracteriza a tese da ideologia dominante, fortemente marcada pelo marxismo ortodoxo, que orienta a teoria social utilizada pelos sociolinguistas aplicados para orientar seus projetos reformistas. Hall sintetiza bem os pontos críticos da teoria marxista que conduziram à sua rejeição pela teoria social contemporânea: Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 709 Dizer que as ideias são “meros reflexos” estabelece seu materialismo, porém as deixa sem efeito especíico, um domínio de pura dependência. Afirmar que as ideias são determinadas “em última instância” pelo econômico é tomar o caminho do reducionismo econômico. Em última análise, as ideias podem ser reduzidas à essência de sua verdade – seu conteúdo econômico. [...] Dizer que o domínio de uma classe garante o predomínio de certas ideias é dar àquela classe a posse absoluta das ideias; é também deinir as formas particulares de consciência como algo especíico a uma classe. Deve-se observar que, embora estejam diretamente dirigidas contra as formulações que concernem ao problema da ideologia, essas críticas de fato recapitulam a substância de uma crítica mais geral e ampla contra o próprio marxismo: seu rígido determinismo estrutural, seu duplo reducionismo – econômico e de classe –, bem como sua forma de conceber a própria formação social. (HALL, 2003, p. 270-271) A derrubada de princípios estruturantes do consenso ortodoxo impôs uma revisão radical das teorias e métodos de todas as áreas que, direta ou indiretamente, lidavam com objetos relacionados à vida social. Na teoria crítica da escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer (1985) destacam o papel que a indústria cultural atribui à linguagem popular na cultura de massa, incluindo a mídia de massa, como estratégia para favorecer uma comunicação mais eicaz com esse público consumidor. Foucault (1979) se opõe a uma visão exclusivamente negativa do poder como mecanismo de opressão pertencente a uma classe dominante que o exerceria contra uma classe dominada. Sua concepção de poder como uma prática difusa, como uma rede produtiva que atravessa todo o tecido social, obriga-o a rejeitar uma compreensão de ideologia fundada na ideia de ocultação de verdades que só poderiam ser percebidas pelos críticos. No âmbito dos estudos culturais, Hall propõe uma releitura das contribuições da teoria marxista, em que ica evidente a oposição à teoria da ideologia dominante e aos pontos cruciais do consenso ortodoxo: A análise não se organiza mais em torno da distinção entre o “falso” e o “verdadeiro”. O obscurecimento ou a mistiicação dos efeitos da ideologia não é mais visto como um produto de truque ou ilusão mágica. Tampouco se pode atribuí-los à falta de consciência, na qual nossos pobres, ignorantes e não teóricos 710 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 proletários estão irrevogavelmente imersos. As relações nas quais as pessoas existem são as “relações reais” que as categorias e conceitos por elas utilizadas lhes permitem apreender e articular em seu pensamento. Porém – e aqui podemos estar em um caminho contrário à ênfase à qual o “materialismo” é geralmente associado – as próprias relações econômicas não podem prescrever uma forma única, ixa e inalterável de conceber essas relações. (HALL, 2003, p. 284-285). Os sociolinguistas aplicados têm-se mantido alheios ao debate que reavalia o potencial analítico e explicativo das contribuições do consenso ortodoxo como referencial teórico-metodológico para investigar a vida social. O qualiicativo “ortodoxo” evidencia uma concepção de teoria social baseada na ideia de verdade ixa, em tudo contrária à dinâmica inerente à vida social. Nesse sentido, o consenso relete também uma visão estruturalista de história, em que determinismo econômico, organização social em classes e ideologia aparecem como estruturas invariantes ao longo da história. Nada mais contraditório para uma teoria que surge com o objetivo de explicar a mudança linguística do que admitir a mudança da língua e, contraditoriamente, com base em uma concepção de história como continuidade, negar a mudança social. Não obstante, os sociolinguistas aplicados brasileiros continuam buscando no passado colonial as explicações causais para as desigualdades sociais que geram a exclusão social e linguística das classes populares. No contexto das relexões próprias da sociologia da linguagem, Bourdieu, mesmo inluenciado por várias ideias da crítica marxista, nega que a legitimidade da língua padrão seja resultado de medidas jurídicas coercitivas às quais as classes dominadas simplesmente se submeteriam. Em suas palavras: [...] os efeitos de dominação correlatos à uniicação do mercado linguístico só se exercem por intermédio de todo um conjunto de instituições e de mecanismos específicos cujo aspecto mais superficial se manifesta justamente através de uma política propriamente linguística e mesmo das intervenções expressas dos grupos de pressão. E o fato de que tais efeitos pressuponham a unificação política ou econômica que eles contribuem por sua vez para reforçar não signiica de modo algum que se devam imputar os avanços da língua oficial à eficácia direta de coerções jurídicas ou quase jurídicas. Tais coerções Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 711 podem, no máximo, impor a aquisição, mas não a utilização generalizada e a reprodução autônoma da língua legítima. Toda dominação simbólica supõe, por parte daqueles que sofrem seu impacto, uma forma de cumplicidade que não é submissão passiva a uma coerção externa nem livre adesão a valores. O reconhecimento da legitimidade da língua oicial não tem nada a ver com uma crença expressamente professada, deliberada e revogável, nem com um ato intencional de aceitação de uma “norma”. Através de um lento e prolongado processo de aquisição, tal reconhecimento se inscreve em estado prático nas disposições insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado linguístico e que se encontram, portanto, ajustadas, fora de qualquer cálculo cínico ou de qualquer coerção conscientemente sentida, às possibilidades de lucro material e simbólico que as leis de formação dos preços característicos de um determinado mercado garantem objetivamente aos detentores de um certo capital linguístico. (BOURDIEU, 2008, p. 37-38) (Negritos meus) As relexões de Bourdieu, juntamente com as críticas ao consenso ortodoxo, revelam que, até o momento, a busca pela compreensão de como se dá o processo de ixação de uma língua padrão e suas relações com a vida social tem-se guiado por princípios teórico-metodológicos equivocados. Isso se deve, sobretudo, à concepção de ciência que tem orientado as pesquisas e a problemas com a teoria social que fundamenta as interpretações de seus resultados. Tanto a metodologia da sociolinguística quanto os recortes de teoria social que a ela se juntam na composição de sua face como ciência aplicada excluem o ponto de vista dos atores sociais envolvidos no uso da linguagem. A adoção de estratégias que visam garantir o controle da situação de coleta de dados, o apagamento da subjetividade tanto do pesquisador quanto do sujeito de pesquisa são princípios positivistas necessários à depreensão de um objeto natural e, portanto, livre da interferência humana. A utilização de aspectos de teorias sociais também orientadas por princípios teóricometodológicos que concebem o sujeito como assujeitado a forças sociais que não conhecem nem podem controlar completa o quadro de um modelo de estudos sociolinguísticos com profundas limitações para se chegar a uma relexão adequada sobre os processos de padronização linguística. 712 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 5 Considerações inais Desde seu surgimento, a linguística está às voltas com a questão do social e seu lugar tanto na concepção quanto na descrição da língua. Em geral, nas teorias linguísticas stricto sensu, mesmo que prevaleça o consenso acerca do caráter social da língua, as metodologias de estudo enfatizam, sobretudo, os fenômenos linguísticos. Foi assim com Saussure, em Curso de linguística geral, e com Labov, que, embora considere os fatores sociais na descrição linguística, está, de fato, interessado em explicar como eles inluenciam a mudança linguística. Dessa forma, a relação entre variáveis linguísticas e sociais, aí incluído o tratamento da variação estilística e sua avaliação social, tem o objetivo de possibilitar a explicação da língua como sistema heterogêneo e ordenado. Por essa razão, Labov distinguiu a sociolinguística da sociologia da linguagem. No entanto, essa é uma posição que ainda hoje divide os linguistas. Fasold (1996) identiica duas tendências no interior da sociolinguística: uma que considera a inluência de fatores sociais sobre a língua, tendo em vista a compreensão de sua natureza (a sociolinguística da língua), e uma que parte da sociedade para compreender o papel social desempenhado pela língua (sociolinguística da sociedade). A segunda, para abordar satisfatoriamente as funções sociais das línguas no âmbito da organização sociopolítica, deve abarcar a linguística antropológica e a etnograia da comunicação, o que implica reconhecer a relevância dos métodos qualitativos, que caracterizam a pesquisa nesses dois campos. Nessa perspectiva, as políticas linguísticas seriam objetos de estudo da sociolinguística da sociedade, embora os estudiosos não tivessem poder para determiná-las. A sociolinguística brasileira, conforme demonstrado neste texto, ainda pode ser deinida como uma teoria da língua. De modo geral, a maior parte das pesquisas consiste em estudos de fenômenos linguísticos com base em corpora constituídos por meio de procedimentos de coleta de dados controlados pelo pesquisador e nos quais o sujeito exerce o papel de mero informante. Uma vez coletados os dados, os pesquisadores elegem os fenômenos que serão estudados e procedem a análises prioritariamente quantitativas.6 As amostras de fala são os únicos códigos coletados e, Entre os principais projetos de pesquisa que se enquadram nessa metodologia, estão o Projeto Variação Linguística no Estado da Paraíba (VALPB), o Programa de Estudos sobre o Uso da Língua (PEUL), Rio de Janeiro, Análise Contrastiva de Variedades do 6 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 713 mesmo quando tratam da escrita, estão interessados na transferência de variações da fala para a escrita. A metodologia também não contempla os testes de avaliação subjetiva da variação estilística, aspecto bastante valorizado na metodologia laboviana. Nesse sentido, a sociolinguística brasileira radicaliza o formalismo linguístico e aprofunda o abismo que a separa de uma abordagem social da língua (CAMACHO, 2013). Diante das limitações da sociolinguística como ciência pura para lidar com questões sociais mais amplas que envolvem a natureza e o funcionamento sociopolítico da linguagem, os projetos reformistas sobre padronização linguística propostos por alguns sociolinguistas aplicados, orientados pelo ideal de transferência dos saberes cientíicos à vida social, revelam-se não apenas frágeis e inconsistentes, mas, sobretudo, incoerentes com aquilo que se espera de uma teoria social da linguagem. Uma abordagem adequada do problema que envolve a relação entre norma padrão e variação linguística na sociedade não se pode limitar a uma abordagem naturalista da língua. Não é possível negar factualidade social à norma padrão, ao mesmo tempo que não é possível ignorar a legitimidade social das diversas variedades que constituem uma língua. Calvet (2002) assinala que o fato de a sociolinguística variacionista partir da ideia de que a língua relete a sociedade foi responsável por fechar a língua nessa deinição Diante disso, apresenta-se o problema: “como a língua, uma língua, poderia reletir a sociedade quando ela é plurilíngue?” (p. 106). Esse questionamento leva-o à conclusão de que a noção de comunidade de fala, na metodologia de Labov, é um artifício utilizado para conferir certa unidade ao objeto de estudo. Para Calvet, a saída desse paradoxo é sair da língua e tomar como ponto de partida a realidade social. Esse entendimento amplia radicalmente o escopo da sociolinguística em direção à comunidade social sob seu aspecto linguístico. Por essa razão, Calvet argumenta que não há mais possibilidade de distinção entre sociolinguística e linguística, e ainda menos entre sociolinguística e sociologia da linguagem. Assim sendo, a tarefa do linguista é descrever as mútuas relações entre grupos sociais, falantes, códigos, variedades de códigos e relações dos falantes com esses códigos e situações de comunicação. O autor enumera essas tarefas (CALVET, 2002, p. 108): Português (VARPORT), Projeto de cooperação internacional Brasil/Portugal, Variação Linguística Urbana no Sul do País (VARSUL), Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta (NURC). 714 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 1. Descrever os códigos em presença (é o que fazem, grosso modo, as diferentes linguísticas), mas levando em conta a dimensão diacrônica, a história desses códigos e das pessoas que os utilizam (o que nem todas as linguísticas fazem); 2. Estruturar a comunidade em função desses códigos, ou seja, descrever os subgrupos de acordo com as línguas que eles falam, com os lugares onde falam, com quem falam, por que lhes falam etc., descrever também as redes de comunicação, os comportamentos, as atitudes...; 3. Descrever as variações no uso dos códigos em função das diversas variáveis sociais (sexo, categorias sociais, idade etc.); 4. Descrever os efeitos dessa coexistência sobre os próprios códigos: empréstimos, interferências etc.; 5. Descrever os efeitos da situação social sobre os códigos: é o problema das relações entre forma e função. De acordo com Calvet, cada uma dessas tarefas é, ao mesmo tempo, linguística e sociológica, o que exige uma abordagem interdisciplinar em que teorias e métodos da linguística, da sociologia, da linguística antropológica e da etnograia da comunicação se articulam para a compreensão da natureza e do funcionamento social da língua. Calvet e Fasold estão de acordo quanto à concepção da sociolinguística como ciência social, cujas descrições e explicações podem ser aplicadas às políticas linguísticas. A esse respeito, os autores concordam também que apenas o Estado tem o poder e os meios de fazer esses conhecimentos passarem ao estágio do planejamento – da implementação concreta de uma política linguística –, de pôr em prática suas escolhas políticas. A despeito de todas essas considerações, os sociolinguistas aplicados brasileiros têm optado por considerar os resultados das pesquisas empíricas, voltadas, sobretudo, para ins de descrição linguística, como principais argumentos para justiicar suas teses acerca da padronização linguística. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 687-718, 2018 715 Agradecimento Agradeço aos (às) pareceristas pela leitura atenta e cuidadosa do texto, bem como pelas problematizações e sugestões que contribuíram para o amadurecimento das relexões nele apresentadas. Os equívocos que porventura persistam são de minha inteira responsabilidade. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos ilosóicos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985. BAGNO, M. A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defesa do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. BAGNO, M. Gramática pra que te quero? Os conhecimentos linguísticos nos livros didáticos de português. Curitiba: Aymará, 2010. BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENVENISTE, E. Problemas de linguística geral II. Tradução de Eduardo Guimarães. 2. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006. BASTIDE, R. Antropologia Aplicada. Tradução de Maria Lúcia Pereira e J. Guinsburg. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Algumas considerações em torno da expressão da posterioridade no passado, no contexto de completivas de verbo Some remarks about the expression of posteriority in the past in the context of verbal complement clauses Luís Filipe Cunha Centro de Linguística da Universidade do Porto, Faculdade de Letras Universidade do Porto, Porto / Portugal luisilipeleitecunha@gmail.com Resumo: A expressão da posterioridade num domínio passado pode ser alcançada, em Português Europeu, por meio do recurso a diferentes tempos gramaticais, destacando-se o Imperfeito Simples do Indicativo, o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo. O presente trabalho procura evidenciar as diferenças interpretativas decorrentes da utilização de cada uma dessas formas verbais. Tendo em vista o objetivo aqui delineado, e após uma breve caracterização semântica de cada uma delas, o artigo explora as suas possibilidades interpretativas no contexto de quatro tipos de completivas de verbo, a saber: verbos declarativos, como dizer ou airmar; verbos orientados para o futuro, como prometer ou decidir; verbos factivos, como constatar ou descobrir, e verbos que favorecem leituras modais de cariz intensional do gênero de acreditar, sonhar ou imaginar. Concluiremos que as interpretações futurativas derivam de um conjunto de elementos linguísticos em interação dinâmica, que em muito ultrapassam o simples papel dos tempos gramaticais, já que envolvem fatores como as propriedades lexicais do verbo matriz, a presença de certos adverbiais temporais ou o peril aspectual das situações representadas. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.719-767 720 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Palavras-chave: semântica; tempos gramaticais; posterioridade no passado; orações completivas de verbo. Abstract: In languages such as European Portuguese, the expression of a posteriority relation within a past domain can be achieved through the use of different tenses, the most relevant being the Imperfeito do Indicativo (Imperfect), the Condicional (a tense that somehow corresponds to would + Ininitive) and the structure ir (‘go’) in the Imperfect + Ininitive. The paper aims to shed some light on the interpretative differences corresponding to the selection of each of these verbal forms. With this purpose in mind, and after a brief semantic characterisation of the three tenses under discussion, the article explores their interpretative possibilities arising in the context of four kinds of complement clauses, namely those headed by saying verbs like dizer (‘to say’) and airmar (‘to claim’); by future-oriented verbs such as prometer (‘to promise’) or decidir (‘to decide’); by factive verbs like constatar (‘to ind’) or descobrir (‘to ind out’) and by verbs that favour an intensional modal reading like acreditar (‘to believe’), sonhar (‘to dream’) or imaginar (‘to imagine’). I conclude that the future-in-the-past readings typically derive from several linguistic factors interacting dynamically. Beside the central role played by tenses, the inal interpretation of these constructions depends on a complex computation of grammatical features such as the lexical properties of the verb in the matrix clause, the presence or absence of certain temporal adverbials or the aspectual proile of the situations involved. Keywords: semantics; tense; posteriority in past domains; verbal complement clauses. Recebido em 4 de julho de 2017. Aceito em 4 de setembro de 2017. 1 Introdução A expressão da posterioridade em relação a um dado tempo passado pode ser obtida, em línguas como o Português Europeu (doravante PE), por meio de diferentes mecanismos linguísticos. Em Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 721 particular, são várias as formas verbais que licenciam uma leitura desse gênero, como os seguintes exemplos parecem demonstrar: (1) O João decidiu que comprava um carro novo. (2) O João decidiu que compraria um carro novo. (3) O João decidiu que ia comprar um carro novo. Nas frases de (1) a (3), a situação representada na oração subordinada é interpretada como posterior em relação ao intervalo disponibilizado pela principal, independentemente de surgir o Imperfeito do Indicativo (cf. (1)), o Condicional (por vezes também designado como Futuro do Pretérito (veja-se, por exemplo, CUNHA; CINTRA, 1984; Peres, 1993; (cf. (2)) ou a construção ir no Imperfeito + Ininitivo (cf. (3)). Por outras palavras, a compra do carro novo pelo João é interpretada como sendo posterior ao intervalo de tempo em que ele toma a sua decisão.1 Signiicará essa proximidade, em termos interpretativos, que os três tempos gramaticais2 aqui representados são semanticamente idênticos? A resposta a essa questão deverá ser, naturalmente, negativa, uma vez que, como tem sido frequentemente observado na literatura, cada uma dessas formas exibe propriedades semânticas e comportamentos linguísticos bastante distintos. Como explicar, então, que tempos gramaticais tão diferentes entre si revelem a capacidade de exprimir futuridade em relação a um tempo passado? No sentido de encontrar uma resposta tão satisfatória quanto possível para essa questão, é nosso objetivo, no presente trabalho, Sublinhe-se que nem todos os tempos gramaticais do PE permitem uma tal interpretação. Por exemplo, o Pretérito Perfeito resulta anômalo numa frase deste gênero na medida em que não se revela capaz de veicular uma leitura de futuro do passado, como (i) deixa bem claro. (i) * O João decidiu que comprou um carro novo. 2 Ao longo deste nosso trabalho, utilizaremos o termo “tempos gramaticais” como o equivalente, em português, à palavra inglesa tense. Para evitar ambiguidades e seguindo a sugestão de um revisor anônimo, a quem agradecemos, preferiremos a expressão “formas verbais”, quando estão em causa relações estritamente anafóricas. 1 722 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 averiguar os diversos contextos em que o Imperfeito Simples, o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Infinitivo veiculam posterioridade em relação a um dado intervalo passado, procurando aferir em que medida as propriedades semânticas que possibilitam identiicar cada uma dessas formas verbais nos ajudam a compreender as suas (im)possibilidades combinatórias. Para isso, começaremos por fornecer uma breve descrição do comportamento típico desses três tempos gramaticais, passando, em seguida, à veriicação e à comparação sistemática das condições em que as interpretações de tipo futurativo são viabilizadas. Finalmente, tentaremos propor uma correspondência entre as propriedades semânticas que caracterizam cada um desses tempos gramaticais e as restrições que exibem no que se refere à capacidade de exprimirem futuridade em domínios temporais passados no contexto de diferentes tipos de completivas de verbo. Como veremos, a interação com outros elementos linguísticos como as propriedades lexicais do verbo matriz, a presença ou ausência de adverbiais temporais ou o peril aspectual das situações envolvidas vão ser cruciais para a computação da interpretação inal das estruturas sob análise. 2 Breve caracterização semântica de alguns tempos gramaticais do PE Para melhor compreendermos as semelhanças e as diferenças que se podem observar entre o Imperfeito Simples, o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, no que diz respeito à expressão da futuridade em contextos do passado, importa, antes de mais, proceder a uma análise, ainda que breve, das principais propriedades semânticas que possibilitam identiicar cada uma dessas formas verbais, com particular ênfase na sua caracterização temporal, mas sem esquecer os eventuais efeitos aspectuais e modais que a elas estejam associados. Nessa medida, recorreremos essencialmente às propostas de análise temporal desenvolvidas por Kamp e Reyle (1993) e por Declerck (1991, 2006). Da abordagem temporal adotada por Kamp e Reyle (1993), na sua Teoria das Representações Discursivas (DRT), importa sobretudo destacar a noção de Ponto de Perspectiva Temporal (PPT), que corresponde à relação que se estabelece entre uma dada situação e o intervalo de tempo a partir do qual esta é “vista” ou “perspectivada”. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 723 Sob um certo ponto de vista, podemos airmar que o PPT se constitui como um intervalo de tempo que possibilita articular, de uma forma mais precisa e complexa, a relação entre o tempo do discurso (que pode ou não coincidir com o tempo da fala ou “speech time”) e o tempo em que decorre a situação (“situation time”). Assim, o PPT pode ser [+Passado], se se localiza num intervalo anterior ao momento da enunciação, ou [-Passado], caso se veriique a coincidência entre o intervalo do PPT e o momento da enunciação. Por outro lado, o intervalo em que decorre a situação pode ser anterior, sobreposto ou posterior ao respectivo PPT.3 Nesse sentido, o recurso ao PPT é capaz de dar conta de relações de anterioridade, de sobreposição ou de posterioridade, não apenas em relação a um intervalo coincidente com o momento da fala, mas também a intervalos que se localizam no domínio do passado. Uma abordagem desse gênero possibilita-nos dar conta de relações temporais que manifestem uma certa “soisticação”, nomeadamente no que concerne às interdependências que se estabelecem no interior de frases complexas. Possibilita, por exemplo, descrever adequadamente as várias relações temporais representadas numa coniguração como a de (4): (4) A Maria disse que ia estudar na biblioteca. Em (4), a situação da oração principal, “A Maria dizer”, é localizada num intervalo anterior ao respectivo PPT, que, nesse caso, é coincidente com o momento da enunciação (i.e. TS < PPT; PPT = TE).4 Já a situação representada na subordinada, “A Maria estudar na biblioteca”, toma como Ponto de Perspectiva Temporal a eventualidade descrita na frase matriz, o que signiica, em última instância, que o seu PPT é passado em relação ao momento da enunciação. Por outro lado, veriicamos que Dado que o objeto de análise da DRT é o discurso como um todo, e não apenas frases isoladas, Kamp e Reyle (1993) reconhecem a necessidade de distinguir o seu Ponto de Perspectiva Temporal do Ponto de Referência, que, nesta abordagem, é sobretudo utilizado para possibilitar o encadeamento de situações na progressão narrativa. Sob esse ponto de vista, o PPT de Kamp e Reyle exibe pontos de contato importantes com a noção de Reference Time, tal como deinida em Reichenbach (1947), embora, como veremos, a ideia de perspectiva temporal se aigure mais adequada para dar conta de relações temporais que envolvam um maior grau de complexidade. 4 Em que TS corresponde a Tempo da Situação; PPT a Ponto de Perspectiva Temporal e TE a Tempo da Enunciação ou Tempo de Fala. 3 724 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 a situação na subordinada é interpretada como decorrendo num intervalo que sucede ao PPT selecionado, obtendo-se, assim, uma relação de posterioridade no passado (i.e. TS > PPT; PPT < TE). Das propostas de Declerck (1991, 2006) a que recorreremos ao longo do presente trabalho importa destacar a distinção que o autor sugere, no domínio temporal, entre a esfera do não-passado (ou do presente) e a esfera do passado. A esfera temporal não passada (ou presente) referese a um período indeinido de tempo que inclui necessariamente T0, o momento da enunciação.5 Já a esfera temporal do passado abarca um período indeinido de tempo que antecede inteiramente T0 sem o incluir. As esferas temporais dão conta do designado tempo absoluto, no sentido em que estabelecem uma relação direta (deítica) com o momento da enunciação. Sempre que uma dada situação é localizada no interior de cada uma das esferas temporais, o TS (Tempo da Situação) estabelece uma localização relativa de anterioridade, de sobreposição ou de posterioridade em relação ao tempo absoluto em que se insere. Assim, numa frase como (4), a situação da matriz poderia ser caracterizada como anterior a Presente, ao passo que a situação da subordinada, dado que se inscreve na esfera do passado, seria descrita como posterior a Passado. Com essas deinições em mente, passemos, agora, à análise dos três tempos gramaticais que, em PE, possibilitam leituras de posterioridade no passado, a saber, o Imperfeito Simples, o Condicional e a estrutura ir com Imperfeito + Ininitivo. 2.1 O Imperfeito Simples Em termos gerais, o Imperfeito pode ser caracterizado como um tempo passado que apresenta uma dada eventualidade6 como estando em progressão, i.e., sem fazer qualquer referência aos seus momentos inicial e inal (cf. OLIVEIRA, 1987; DELFITTO; BERTINETTO, 1985; SMITH, 1991; GIORGI; PIANESI, 1997; FERREIRA, 2004; ANAND; Declerck propõe a existência de três setores que dividem a esfera do presente: o pré-presente, o presente e o pós-presente. Dado que não iremos recorrer a essa divisão ao longo do nosso trabalho, optamos por não discutir aqui os pormenores da sua caracterização. 6 Na esteira de Bach (1986), utilizaremos aqui o termo eventualidade com o signiicado de situação ou de estado de coisas. 5 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 725 ACQUARD, 2009, entre outros). Como tal, o Imperfeito representa a situação com que se combina como homogênea e não terminada. Por outro lado, o Imperfeito é tendencialmente uma forma verbal anafórica (ou relativa, na terminologia de DECLERCK, 1991, 2006) na medida em que requer a presença de um outro intervalo que não o momento da enunciação para ser adequadamente interpretado. Assim, o Imperfeito toma como seu PPT um dado tempo passado com o qual estabelece uma relação de sobreposição (cf. BERTHONNEAU; KLEIBER, 1993; MATOS, 1996; GIORGI; PIANESI, 1997). Esse intervalo pode ser fornecido por um adverbial temporal explícito, por orações temporais, pelo verbo principal de uma estrutura de complementação ou recuperado por meio de indicações contextuais. Sob esse ponto de vista, diversos autores consideram o Imperfeito como exprimindo um “presente do passado” (cf. e.g. PERES, 1993; GIORGI; PIANESI, 1997). Tomando em linha de conta esse tipo de caracterização, Kamp e Rohrer (1983) defendem a ideia de que o Imperfeito se comporta como as predicações estativas, na medida em que, tal como elas, não introduz um novo Tempo de Referência no discurso, limitando-se a selecionar um dado intervalo preexistente com o qual estabelece uma relação de sobreposição.7 Por conseguinte, parece lícito concluir que o Imperfeito, para além do seu valor estritamente temporal de sobreposição a passado, comporta frequentemente importantes consequências ao nível aspectual. A conirmar essa hipótese, podemos invocar o fato de que, quando combinado com eventos, o Imperfeito atribui, por vezes, propriedades típicas de estatividade às predicações com que se combina.8 Uma conclusão semelhante é avançada em de Swart (1998), que considera que o Imperfeito é um tempo gramatical que apenas se revela compatível com situações homogêneas, i.e., com estados e processos, ocasionando mudanças aspectuais quando se combina com outros tipos de eventualidades. 8 Embora uma análise detalhada das propriedades de estatividade associadas ao Imperfeito esteja fora do âmbito do presente trabalho, discutiremos aqui, a título ilustrativo, um exemplo que vai ao encontro dessa linha de análise. Tendencialmente, no contexto de orações subordinadas introduzidas por quando, os estados estabelecem uma relação de inclusão com os eventos da principal com que coocorrem, mesmo se o tempo gramatical selecionado for o Pretérito Perfeito (cf. a leitura preferencial de uma frase como “Quando esteve em Paris, a Maria jantou num restaurante famoso” é aquela em que o evento de “jantar num restaurante famoso” se encontra incluído no 7 726 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Assim, é possível observar que, em contextos apropriados, o tempo gramatical em questão propicia alterações aspectuais signiicativas quando se combina com eventos. Em particular, favorece leituras de tipo habitual (cf. (5)) ou semiprogressivo (cf. (6)) para as predicações eventivas no seu escopo (cf. CUNHA, 2004/2007). (5) Quando entrei na sala, o João tocava (= estava a tocar) piano. (leitura semiprogressiva) (6) O João tocava piano no bar dos artistas (todos os sábados). (leitura habitual) Comutações aspectuais desse gênero parecem ser essenciais para que a leitura continuativa de sobreposição a um dado intervalo passado, típica do Imperfeito, possa ser preservada. Como observado em Moens (1987) e Cunha (1998), para o Progressivo, e em Chierchia (1995), Lenci (1995), Lenci e Bertinetto (2000), Cunha (2006) e Bertinetto e Lenci (2012), para as frases habituais, essas conigurações apresentam comportamentos linguísticos que as aproximam inequivocamente dos estativos (e.g. o tipo de interações que estabelecem com adverbiais temporais, com quantiicadores sobre situações ou com verbos de operação aspectual), o que nos permite concluir que, nessas condições, o Imperfeito funciona, efetivamente, como um verdadeiro “estativizador”.9 intervalo do estado representado por “A Maria estar em Paris”. Ora, sempre que temos o Imperfeito em subordinadas introduzidas por quando, o mesmo tipo de relação de inclusão é favorecido, ainda que as predicações básicas envolvidas sejam eventos (cf. numa frase como “Quando atravessava o jardim, a Maria telefonou ao ilho”, a leitura de inclusão parece evidente, i.e., o telefonema está localizado dentro dos limites temporais do intervalo ocupado por “A Maria atravessar o jardim”). Uma interpretação desse tipo contrasta com o que se passa quando o tempo gramatical escolhido é o Pretérito Perfeito, que, em PE, parece ser aquele que revela maior neutralidade em termos aspectuais: assim, numa frase como “Quando atravessou o jardim, a Maria telefonou ao ilho”, deparamos tipicamente com uma relação de sucessividade, i.e., o telefonema só tem lugar após o atravessamento do jardim. Dados como esses fazem-nos acreditar que o Imperfeito, ao exibir comportamentos semelhantes aos dos estativos e distanciando-se do que se passa com os eventos prototípicos, manifesta marcas inequívocas de estatividade. Para mais argumentos nesse sentido, veja, por exemplo, Cunha (2004/2007). 9 Para uma discussão aprofundada de alguns argumentos em favor do cariz estativo do Imperfeito em PE, veja-se, por exemplo, Cunha (2004/2007, 4.1.1.2). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 727 Finalmente, importa destacar que, para além dos seus valores temporais e aspectuais, o Imperfeito desempenha um papel crucial no que diz respeito à veiculação de informação de natureza modal. Com efeito, autores como Oliveira (1987), Travaglia (1987), Matos (1996), Cipria e Roberts (2000), Ippolito (2004), Ferreira (2004), Anand e Acquard (2009) ou Arregui, Rivero e Salanova (2014) defendem que a modalidade é parte essencial do núcleo semântico desse tempo gramatical.10 Nos seus usos modais, o Imperfeito remete, tipicamente, para a consideração de mundos possíveis, de alguma forma diferentes do designado mundo de referência, o que se traduz na emergência de leituras hipotéticas, potenciais ou não reais das proposições em causa. Dentre os inúmeros valores modais que a literatura atribui ao Imperfeito, podemos destacar os seguintes: a) Imperfeito onírico ou iccional, em que é descrito o conteúdo de sonhos ou de acontecimentos imaginários (cf. (7)); b) Imperfeito lúdico, normalmente associado a jogos e brincadeiras infantis (cf. (8)); c) Imperfeito hipotético, que dá conta de situações prováveis ou possíveis, mas que, por alguma razão ou impedimento, ainda não se veriicaram no mundo real (cf. (9)); d) Imperfeito de cortesia, utilizado para atenuar a força ilocutória de ordens ou de pedidos (cf. (10)); e) Imperfeito de planiicação, que projeta para o futuro uma situação que está a ser planeada ou preparada pelo locutor no momento da enunciação (cf. (11)): (7) O João sonhou que tinha asas e que voava sobre a cidade. (8) Agora chegavam os extraterrestres e nós fugíamos para a loresta. (9) Eu telefonava à Maria (se tivesse comigo a agenda). (10) Queria um bolo e um café, por favor. (11) Então, amanhã, eu trazia um bolo e fazíamos uma festa!11 Autores como Anand e Acquard (2009) ou Arregui, Rivero e Salanova (2014) chegam mesmo a defender que o núcleo semântico do Imperfeito seria essencialmente constituído por relações modais (“modal accessibilty relations”), sendo a componente temporal de passado obtida por meio de uma pressuposição de anterioridade. 11 Embora o valor de planiicação associado ao Imperfeito seja frequentemente invocado na literatura como um dos argumentos que reforçam a ideia de que esse tempo gramatical exprime futuridade, as análises divergem bastante a esse respeito. 10 728 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 2.2 O Condicional Na literatura sobre o Condicional, tem sido alimentada alguma controvérsia no que diz respeito ao seu tratamento semântico, sendo essa forma encarada ora como um tempo pertencente ao sistema do Indicativo, utilizado para exprimir posterioridade em relação a um dado intervalo passado, ora como um modo independente de pleno direito. Uma hesitação dessa natureza em termos classiicatórios relete o facto bem conhecido de que o Condicional veicula tanto informação temporal quanto modal. Os autores que valorizam o seu caráter temporal incluem-no tipicamente no sistema do indicativo, denominando-o frequentemente “Futuro do Passado” (cf. e.g. CUNHA; CINTRA, 1984; PERES, 1993); aqueles que reconhecem a prevalência da sua natureza modal defendem a ideia de que estamos, efetivamente, perante um Modo Condicional autônomo (cf. OLIVEIRA; LOPES, 1995). Finalmente, há investigadores que, numa tentativa de conciliar essas duas perspectivas, propõem designações alternativas como a de “forma em -ria”, que remete diretamente para a constituição morfológica da estrutura em causa, evitando, desse modo, tomar partido por uma das posições em confronto (cf. e.g. SILVA, 1997). Cipria e Roberts (2000), por exemplo, defendem que, apesar de a eventualidade relevante estar localizada num intervalo posterior ao momento da enunciação, esse tipo de interpretação intencional não afeta obrigatoriamente a atribuição, comum a muitos outros casos, de uma perspectiva de anterioridade ao Imperfeito, na medida em que os autores consideram que o que aqui está em causa não é tanto a situação em si, mas antes a “intenção” que lhe está associada e que se localiza num intervalo que lhe é anterior. Por outras palavras, é a fase (pré)-preparatória, tal como descrita em Moens (1987) ou em Moens e Steedman (1988) que ocorre (e se localiza) num intervalo passado, sendo a situação principal projetada para um tempo indeterminado do futuro. Em favor desse ponto de vista, destaca-se o fato de que apenas construções inequivocamente intencionais podem receber uma interpretação deste gênero, como o contraste entre (i) e (ii) deixa transparecer: (i) Eu amanhã telefonava ao cliente e resolvia o problema. (leitura intencional possível) (ii) * Amanhã chovia. (leitura intencional impossível) Como veremos mais adiante, esse tipo de contraste (i.e. intencional vs não intencional) não se revela relevante quando o Imperfeito exprime futuridade em relação a um PPT passado. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 729 Em qualquer dos casos, os gramáticos e linguistas que se dedicam ao estudo do Condicional estão de acordo quanto ao facto de que, reunidas as circunstâncias adequadas, essa forma pode exprimir tanto valores temporais quanto modais, embora, no estágio atual da língua, tal como demonstrado por Silva (1997, 3.2.8) para o Português do Brasil, os usos de natureza modal pareçam ser prevalentes. No que se refere à sua caracterização temporal, podemos dizer que o Condicional localiza as situações com que se combina num intervalo de tempo posterior em relação ao PPT passado a que se associa. Por outras palavras, o Condicional fornece informação de “futuro do passado” (cf. CUNHA; CINTRA, 1984) ou, seguindo a terminologia adotada por Declerck (1991, 2005), enquadra as eventualidades relevantes no setor posterior da esfera temporal do passado. Tal como izemos notar para o Imperfeito, o Condicional pode ser considerado, sob um certo ponto de vista, uma forma verbal de cariz eminentemente anafórico, na medida em que, para ser apropriadamente interpretado, requer a presença de um intervalo de tempo passado que lhe sirva como PPT, já que a sua signiicação temporal nunca pode ser computada de forma direta, tomando exclusivamente por base o tempo da enunciação. Dada a necessidade da presença de um PPT passado para a sua interpretação, o Condicional com valor temporal é tipicamente encontrado em frases linearmente ordenadas no discurso (cf. 12)) ou em orações completivas de verbo (cf. (13)): (12) O presidente chegou ao aeroporto às dez da manhã. Entraria no avião uma hora mais tarde. (13) O presidente afirmou que responderia às perguntas dos jornalistas. Assim, em (12), o evento “O presidente chegar ao aeroporto”, representado num domínio passado, funciona como PPT para o Condicional, que localiza a situação a que se aplica, i.e., a entrada no avião, num intervalo que lhe é posterior. De forma semelhante, em (13), a oração principal no Pretérito Perfeito, “O presidente airmou”, constitui-se como o PPT passado com o qual o Condicional estabelece uma relação temporal de posterioridade para a localização da situação descrita na completiva, i.e., “responder às perguntas dos jornalistas”. 730 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Uma consequência previsível da sua dependência obrigatória face a um intervalo passado manifesta-se no fato de o Condicional nunca estabelecer uma vinculação direta com o tempo da fala (speach time). Com efeito, e tal como salientado, e.g., em Oliveira e Duarte (2012), em Martínez-Atienza (2012) ou em Vatrican (2014), as eventualidades expressas no Condicional podem exibir livremente uma relação de anterioridade, de sobreposição ou de posterioridade com o momento da enunciação, como a plena compatibilidade com os diferentes adverbiais temporais em (14) deixa transparecer: (14) (No passado sábado), o editor assegurou-me que o livro sairia ontem / hoje / amanhã. Considerando que a eventualidade expressa pelo Condicional – no caso em apreço “o livro sair” – é interpretada como temporalmente dependente do intervalo passado disponibilizado pela frase matriz, a sua ligação com o momento da enunciação será sempre alcançada de uma forma indireta, pelo que, a partir da relação de posterioridade que estabelece com o respectivo PPT, é possível que anteceda, que se sobreponha ou que siga o tempo da fala, como ilustrado em (14). Uma tal observação permite-nos concluir que, no contexto em apreço, a ordenação entre Tempo da Situação e Tempo da Fala se revela tipicamente indeterminada. Para além da sua interpretação essencialmente temporal, o Condicional integra um vasto conjunto de valores de natureza eminentemente modal que importa ter em conta. Um dos contextos em que o Condicional veicula valores de natureza modal é, sem dúvida, o das frases condicionais. Em PE, o Condicional surge frequentemente nas apódoses12 desse tipo de estruturas, manifestando um valor hipotético ou potencial quando se combina com o Imperfeito do Conjuntivo (cf. (15)): (15) Se o crocodilo aparecesse no rio, os gnus fugiriam para a savana. Como se sabe, a apódose é a oração principal de uma frase condicional, cuja função primordial será a de apresentar uma ou mais consequências tidas como expectáveis. A prótase, por seu lado, é a oração subordinada, tipicamente introduzida pela conjunção se, que dá conta das condições consideradas necessárias para que a consequência esperada possa vir a ter lugar. 12 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 731 O Condicional pode, igualmente, surgir em frases condicionais com valor contrafactual. Nesse caso, o verbo da prótase ocorre normalmente no Mais-que-Perfeito do Conjuntivo, tal como (16) nos revela: (16) Se os leões tivessem corrido mais depressa, caçariam um gnu. É importante sublinhar que, em qualquer dos casos (na sua leitura potencial ou na interpretação contrafactual), o Condicional expressa uma proposição que não teve lugar no mundo real ou no mundo de referência, ou seja, uma proposição que se inscreve no domínio do não realizado (cf. VATRICAN, 2014). Nessa medida, o Condicional manifesta aqui inequivocamente um valor de cariz modal que se substitui ao seu peril temporal de posterioridade no passado. Um outro uso modal tradicionalmente associado ao Condicional prende-se com a expressão da mitigação ou da cortesia. De acordo com Vatrican (2013, 2014), estamos na presença de um Condicional de cortesia quando essa forma verbal é usada para obter uma reação por parte do interlocutor. A referida interpretação ocorre sobretudo em conigurações que envolvem solicitações ou pedidos indiretos, como ilustrado em (17). O Condicional de mitigação difere do de cortesia na medida em que se centra essencialmente no locutor. Neste último caso, a função central do Condicional será a de mitigar ou a de diminuir a força ilocutória de uma dada asserção (cf. (18)): (17) Eu gostaria de uma bebida fresca. (= Por favor, dê-me uma bebida fresca) (18) Eu diria que vamos ter um problema grave. (forma mitigada equivalente a Eu digo que vamos ter um problema grave) Abouda (2001) sugere que o Condicional de mitigação se relaciona com outros usos modais dessa forma verbal, em particular os designados Condicional jornalístico e Condicional polêmico, constituindo uma categoria a que é dada a designação genérica de “Conditionnel de la non prise en charge” e que pode ser caracterizada pelo facto de o referido tempo verbal, nos contextos em causa, servir essencialmente para exprimir proposições cuja veracidade não é inteiramente assumida 732 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 pelo locutor, ou seja, para dar conta de informação cujo valor de verdade não se encontra completamente conirmado ou assegurado. Esses usos do Condicional são, portanto, geralmente caracterizados pela ausência de comprometimento por parte do falante em relação à factualidade das proposições expressas. A informação pode, assim, ser apresentada simplesmente como incerta ou não veriicada no mundo de referência (cf. (19)) ou como proveniente de uma fonte externa ao locutor, caso em que nos encontramos perante o designado Condicional reportivo ou evidencial13 (cf. (20)): (19) O terrorista estaria no hotel quando a bomba explodiu. (= o terrorista estava provavelmente no hotel quando a bomba explodiu) (20) Segundo os jornalistas, o ministro teria mais de um milhão de euros em paraísos iscais. Sublinhe-se que, em casos como os apresentados nas frases (19) e (20), a informação temporal de posterioridade relativamente a um intervalo passado perde completamente a sua relevância e é suplantada pelo valor modal de incerteza. Em particular, a relação temporal mais frequente nesse tipo de sequências parece ser a de sobreposição a um intervalo passado (por exemplo, em (19), o estado descrito, i.e. “o terrorista estar no hotel”, inclui – e, por conseguinte, sobrepõe-se a – o respectivo PPT fornecido pela oração temporal, “a bomba explodir”). O Condicional deixa, pois, de funcionar como expressão do futuro do passado para representar uma situação potencial que eventualmente teve lugar num intervalo anterior ao momento da enunciação. Finalmente, importa assinalar um último uso modal do Condicional a que Martínez-Atienza (2012) chama Condicional de probabilidade e que Vatrican (2014) designa como Condicional de conjetura. O Condicional de conjetura funcionaria como uma espécie de operador epistêmico de possibilidade. Ao contrário do que ocorre com os usos evidenciais, nesse caso é o próprio locutor que exprime o seu ponto de vista, perspectivando a ocorrência de uma dada eventualidade como uma possibilidade, como uma hipótese ou mesmo como uma Para uma análise mais detalhada do funcionamento do Condicional reportivo ou evidencial, vejam-se, entre outros, Dendale (2001), Squartini (2001) ou Vatrican (2014). 13 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 733 probabilidade a ter em conta, em razão dos conhecimentos e informações de que dispõe acerca da realidade em que se insere. Um exemplo claro desse uso é oferecido em (21): (21) A Maria faltou às aulas porque estaria doente. Embora o uso conjetural do Condicional seja pouco frequente em PE e se encontre sujeito a diversas restrições – apenas estativos, por exemplo, parecem surgir sem problemas nesse tipo de conigurações, obtendo-se a leitura de possibilidade epistêmica para os eventos por meio do recurso ao Condicional Perfeito –, é interessante observar que esse valor modal emerge também em construções que combinam probabilidade e concessão (cf. (22)), muito próximas dos exemplos que Martínez-Atienza (2012) invoca para o Espanhol. (22) O João teria pouco dinheiro, mas comprou um BMW. Note-se que, mais uma vez, nos usos conjeturais do Condicional, não é a localização em termos de posterioridade de uma situação relativamente a um intervalo de tempo passado que está em causa (na verdade, em muitos dos casos, encontramo-nos face a uma relação de sobreposição a um PPT passado), mas antes uma interpretação que conduz à expressão da hipótese ou da probabilidade, ou, dito de outra forma, para a não concretização do conteúdo proposicional descrito no mundo real, o que indica que estamos perante mais um caso de manifestação da modalidade (cf. PORTNER, 2009). 2.3 Ir no Imperfeito + Ininitivo A construção ir no Imperfeito + Ininitivo partilha um conjunto bastante signiicativo de propriedades semânticas com o Condicional, em particular no que diz respeito à sua caracterização temporal. Com efeito, e tal como observamos para o Condicional, a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo possibilita localizar uma situação num intervalo posterior ao Ponto de Perspectiva Temporal passado com que se combina, ou seja, exprime uma relação que pode ser descrita como a de “futuro do passado” (cf. PERES, 1993). Tratando-se de uma forma verbal de cariz anafórico, i.e., que estipula a presença de um intervalo diferente do momento da enunciação 734 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 para ser adequadamente interpretada, ir no Imperfeito + Ininitivo surge preferencialmente no contexto de orações encaixadas – caso em que o intervalo relevante é fornecido pela situação da matriz (cf. (23)) – ou em frases sequencialmente ordenadas num discurso de tipo narrativo – caso em que será uma das eventualidades descritas a disponibilizar o PPT requerido (cf. (24)): (23) Os bombeiros avisaram que o edifício ia ruir. (24) O edifício foi construído em 1999. Ia ruir dois anos mais tarde por causa de um grande incêndio. Mais uma vez, dado que a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo determina que a situação com que se combina se encontre ligada a um intervalo passado que lhe serve de PPT, não sendo viabilizada qualquer relação direta com o momento da enunciação, é perfeitamente possível encontrar casos em que se veriica anterioridade, sobreposição ou posterioridade com o tempo da fala, como a compatibilidade com adverbiais temporais dêiticos que remetem para o passado (cf. ontem), para o presente (cf. hoje) ou para o futuro (cf. amanhã) deixa transparecer:14 (25) (No sábado), a Maria disse que ia assistir a uma conferência ontem / hoje / amanhã. O fato de a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo desencadear uma relação temporal de posterioridade num domínio passado abre caminho para a possibilidade da sua associação com interpretações de cariz modal, na medida em que, como é frequentemente reconhecido na literatura, a projeção para o futuro envolve invariavelmente um certo grau de incerteza e, assim, a necessidade de consideração de “ramiicações” que remetem para diferentes mundos possíveis (veja-se a noção de inertia worlds proposta por DOWTY, 1979). Nesse sentido, Cunha (2015) sugere que, para além da sua interpretação puramente temporal, a construção ir no Imperfeito + Infinitivo pode igualmente dar lugar a leituras modais de tipo hipotético. Nessas circunstâncias, as proposições expressas não ocorrem A única restrição relevante nesses casos é, naturalmente, que a situação em causa se veriique num intervalo posterior ao respectivo Ponto de Perspectiva Temporal passado. 14 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 735 obrigatoriamente no mundo de referência, mas são concebidas como meras hipóteses ou possibilidades a ter em conta em determinados mundos alternativos. Ora, tomando em consideração que, como já referimos, a coniguração sob análise não estabelece uma relação direta com o momento da enunciação, não é difícil conceber contextos em que a situação que é projetada para o futuro a partir de um PPT passado ainda não tenha tido lugar no momento da fala, sendo, por conseguinte, impossível avaliar a veracidade da sua ocorrência em t0,15 o que, naturalmente, favorece a emergência de interpretações de natureza modal. Parece-nos, pois, lícito concluir que os usos modais associados a ir no Imperfeito + Ininitivo derivam, em grande medida, das propriedades temporais que caracterizam essa estrutura. Como teremos oportunidade de constatar mais adiante, esse fato poderá ajudar-nos a compreender melhor as divergências, em termos de comportamento linguístico, no contexto de orações completivas de verbo, que se podem observar entre a coniguração em causa e o Condicional, forma que manifesta valores modais bem mais abrangentes. No que diz respeito às interpretações modais desencadeadas pela coniguração ir no Imperfeito + Ininitivo, podemos distinguir dois casos principais: (i) a situação pode ser perspectivada como não tendo sido ainda realizada no mundo de referência, mas encarada, ainda assim, como uma possibilidade ou como uma hipótese a ter em conta no curso futuro dos acontecimentos (cf. (26)); (ii) ou ela pode ser concebida como irrealizável, i.e., como inscrita num domínio que se encontra inteiramente fora da realidade (cf. (27)). Essa última leitura corresponderia aos usos contrafactuais que Martín (2008) atribui à construção ir a no Imperfeito + Ininitivo do Espanhol. (26) O presidente da empresa garantiu que ia aumentar o salário dos seus funcionários. (27) O presidente da empresa ia aumentar o salário dos seus funcionários quando a companhia entrou em falência. Utilizaremos, ao longo do presente trabalho, a notação t0 para indicar o tempo da enunciação ou momento da fala e w0 para aludir ao mundo de referência ou mundo real. 15 736 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Sublinhe-se que a atribuição de uma interpretação hipotética ou contrafactual às frases envolvendo a construção ir no Imperfeito + Infinitivo depende essencialmente do contexto (linguístico ou extralinguístico) em que os enunciados são produzidos. Na verdade, numa grande parte dos casos, não dispomos de informação suiciente para saber se a situação em causa irá ou não ter lugar no mundo real. Por exemplo, num enunciado como o de (25), a indicação de que a companhia entrou em falência direciona de forma bem clara para uma leitura contrafactual da proposição “O presidente da empresa aumentar o salário dos seus funcionários”.16 No entanto, se procedermos a algumas alterações no contexto em que se insere a proposição sob análise, é possível obter uma sequência em que a interpretação preferencial é a de possibilidade, tal como ilustrado em (28): (28) O presidente da empresa ia aumentar o salário dos seus funcionários, mas, antes disso, precisa consultar os acionistas. Em suma, concluímos que a construção ir no Imperfeito + Ininitivo, dadas as circunstâncias adequadas, desencadeia interpretações de cariz modal, que tanto podem tender para a possibilidade quanto para a contrafactualidade, dependendo de fatores contextuais como o tipo de informação que se encontra disponível ou as características das diferentes orações que com ela interagem no discurso. No que se refere à análise da construção ir no Imperfeito + Ininitivo, seguiremos a proposta de Cunha (2015) segundo a qual as suas interpretações temporais e modais podem ser uniicadas sob uma mesma descrição semântica. Assim, independentemente do valor de verdade a atribuir às proposições no seu escopo, ir no Imperfeito + Ininitivo parece veicular consistentemente um signiicado temporal de posterioridade em relação a um dado intervalo passado. Na realidade, mesmo as proposições que expressam valores modais – hipotéticos ou contrafactuais – preservam tipicamente a informação temporal de posterioridade no passado, tal como ilustrado no seguinte exemplo: (20) A Maria ia ligar a televisão quando o telefone tocou. De um modo geral, podemos airmar que a comparência de frases de natureza contrastiva exibindo tempos do passado favorece uma leitura contrafactual para as conigurações que integram a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo. 16 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 737 Ainda que a proposição expressa por “A Maria ligar a televisão” não seja de todo verdadeira no mundo real, o que é certo é que ela parece estabelecer uma relação consistente de posterioridade com o intervalo em que ocorre a situação descrita pela oração introduzida por quando, o que nos leva a acreditar que, mesmo nos casos em que uma interpretação modal é preponderante, as interdependências de natureza temporal que caracterizam a construção sob análise se mantêm, em certa medida, inalteradas. Ou seja, a relação de posterioridade no passado é sempre preservada, independentemente de a eventualidade em apreço ocorrer ou não no mundo de referência. Com base nas observações que acabamos de efetuar, encontramonos inalmente em posição de propor a seguinte formulação para a caracterização semântica da estrutura analisada na presente subsecção: (i) ir no Imperfeito + Ininitivo exprime uma relação temporal consistente e obrigatória de posterioridade em relação a um determinado Ponto de Perspectiva Temporal passado; (ii) a diferença que se pode observar entre as duas principais interpretações associadas a essa construção deriva do fato de que, em certos casos, a situação descrita é considerada verdadeira no mundo de referência (leitura temporal) e, noutros, o seu valor de verdade está indeterminado ou chega mesmo a ser concebido como falso em w0, sendo necessário o recurso à noção de mundos alternativos para a sua adequada computação (leitura modal). Por outras palavras, ir no Imperfeito + Ininitivo recebe um valor positivo para o traço temporal de [posterioridade], sendo indeterminado no que se refere à atribuição dos valores de verdade às situações com que se combina. Ou seja, em qualquer caso, estamos perante um futuro do passado, podendo as eventualidades ser verdadeiras no mundo real ou inscritas em mundos alternativos (inertia worlds).17 Nesse sentido, advogamos para o Português Europeu um tratamento eminentemente temporal da estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, na esteira de trabalhos como os de Rodrigues (2011) para o PB ou os de Oliveira e Duarte (2012) e Cunha (2015) para o PE. O caso do espanhol aparenta ser algo diferente, já que um tratamento no âmbito aspectual em termos de Aspecto Prospectivo se revela a opção preferida pelos linguistas que reletem sobre essa questão (cf. MARTíN, 2008; BURGOS, 2013). No entanto, não parecem existir em PE evidências que justiiquem a adoção desse tipo de abordagem que, mesmo na literatura sobre o espanhol, suscita algumas dúvidas, críticas e oscilações. 17 738 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 3 A expressão da futuridade em orações completivas de verbo Até ao momento, e com base na caracterização que propusemos para os três tempos gramaticais em apreço, constatamos que tanto o Imperfeito como o Condicional e a construção ir no Imperfeito + Ininitivo se revelam capazes de exprimir a localização de uma eventualidade num intervalo futuro em relação a um dado PPT situado na esfera do passado. Veriicámos igualmente que partilham a possibilidade de induzir interpretações de cariz modal às proposições a que se aplicam. Isso não signiica, no entanto, que as referidas formas verbais se revelem semanticamente idênticas entre si. Como tivemos oportunidade de veriicar, o Imperfeito é essencialmente um tempo que se caracteriza pela sobreposição a um dado intervalo passado, sendo os seus valores futurativos e modais obtidos em circunstâncias muito específicas; o Condicional, por seu lado, embora capaz de estabelecer uma relação temporal de posterioridade no passado, exprime fundamentalmente modalidade, ao passo que ir no Imperfeito + Ininitivo reporta primariamente uma relação temporal de futuridade em relação a um determinado PPT passado, sendo as suas leituras modais derivadas desse seu peril temporal básico e, nesse sentido, sujeitas a um número bastante signiicativo de restrições. Um contexto em que essas diferenças e similaridades são particularmente visíveis é, sem dúvida, o das orações completivas de verbo, na medida em que a situação da frase matriz fornece um Ponto de Perspectiva Temporal explícito em relação ao qual a proposição da subordinada vai ser localizada. Nesse sentido, dedicaremos a presente seção deste trabalho à análise das possibilidades interpretativas manifestadas pelo Imperfeito, pelo Condicional e pela estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo em orações encaixadas subcategorizadas por diferentes tipos de verbos introdutores. Com o objetivo de determinar o papel desempenhado pelos diferentes elementos linguísticos que interagem na determinação das interpretações prospectivas dos tempos gramaticais que temos vindo a discutir, propomo-nos, nas páginas que se seguem, explorar as leituras mais relevantes ostentadas pelas orações completivas associadas a quatro categorias de verbos introdutores: (i) verbos como dizer ou airmar, que, por si só, parecem não condicionar grandemente a localização temporal das eventualidades na subordinada com que se combinam; (ii) verbos Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 739 como prometer ou decidir, que, em certa medida, induzem orientação para o futuro; (iii) verbos de cariz factivo como constatar ou descobrir, que requerem tipicamente a veracidade da proposição no seu escopo e (iv) verbos intensionais como imaginar, sonhar ou acreditar, que favorecem leituras não verídicas das proposições com que coocorrem.18 3.1 Verbos dicendi: dizer e airmar Começaremos a nossa análise do comportamento do Imperfeito, do Condicional e de ir no Imperfeito + Infinitivo no contexto de completivas por estruturas que integram verbos como dizer ou airmar, que parecem ser aqueles que menos condicionam a localização temporal das situações representadas na subordinada. Com efeito, seguindo propostas como as avançadas por Cunha e Silvano (2006), considerarei aqui que esses verbos são temporalmente “neutros”, no sentido em que as eventualidades por eles subcategorizadas não se encontram sujeitas a restrições especíicas no que se refere à sua localização temporal. Assim, tal como os exemplos que se seguem nos conirmam, as situações que se combinam com verbos como dizer ou airmar tanto podem ocorrer num período de tempo anterior (cf. (30)), sobreposto (cf. (31)) ou posterior (cf. (32)) ao intervalo em que decorre o evento da oração matriz, dependendo do tempo gramatical selecionado. (30) O jornalista disse que entrevistou / tinha entrevistado o Presidente da República. (anterioridade) (31) O jornalista disse que estava a entrevistar o Presidente da República. (sobreposição) (32) O jornalista disse que ia entrevistar o Presidente da República. (posterioridade) Exemplos como os que acabamos de apresentar parecem demonstrar que verbos do gênero de dizer ou de airmar não afetam Dado que o nosso objetivo, de momento, é apenas o de tentar compreender os constrangimentos que condicionam as interpretações futurativas no contexto de certas orações completivas de verbo, não nos será possível, naturalmente, fornecer uma panorâmica geral do funcionamento semântico desse tipo de construções em PE. Para uma discussão mais aprofundada do tema, veja-se Silvano (2002). 18 740 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 diretamente a localização temporal das situações com que se combinam, na medida em que elas podem surgir, livremente, antes, durante ou depois do respectivo PPT, aqui fornecido pela frase matriz. Tendo em conta essas observações, será de prever que as propriedades semânticas básicas dos diferentes tempos gramaticais envolvidos em completivas introduzidas por dizer ou por afirmar sejam globalmente preservadas na interpretação inal desse tipo de configurações. Como veremos em seguida, essa predição parece conirmar-se, pelo menos para formas verbais como o Imperfeito, o Condicional e ir no Imperfeito + Ininitivo. Como referimos em 2.1, o Imperfeito, em geral, localiza a situação a que se aplica num intervalo de tempo que coincide, total ou parcialmente, com um dado PPT passado, i.e., estabelece preferencialmente uma relação de sobreposição num domínio temporal [+passado] (cf. DECLERCK, 1991; PERES, 1993). Se considerarmos frases completivas encabeçadas por dizer ou airmar em que a subordinada exprime uma predicação de cariz estativo, essa relação de sobreposição parece, de fato, ser a mais natural, tal como ilustrado em (33) e (34):19 (33) A Maria disse que o João vivia em Paris. (e1 o e2) (34) O entrevistado airmou que era escritor. (e1 o e2)20 Nesses exemplos, os estados representados na subordinada, nomeadamente “O João viver em Paris” e “[o entrevistado] ser escritor”, ocupam um intervalo que coincide parcialmente com o tempo passado estabelecido pelas proposições nas respectivas frases matriz.21 A observação de que, em PE, os estados no Imperfeito se sobrepõem ao intervalo de tempo fornecido pelo verbo matriz em construções completivas envolvendo dizer ou airmar é relativamente consensual na literatura, tendo já sido efetuada por autores como Oliveira (1998), Silvano (2002) ou, mais recentemente, Oliveira e Duarte (2012). 20 A notação que usamos nesses e nos próximos exemplos é a seguinte: e1 representa a eventualidade da oração principal; e2, a da subordinada; o, uma relação temporal de sobreposição; <uma relação de anterioridade e>, uma relação de posterioridade. 21 Tratando-se, tipicamente, de uma interação entre eventos (na principal) e estativos (na subordinada), a relação temporal de inclusão parece ser a preferida nesses contextos (para uma explicação mais detalhada, vejam-se, a esse respeito, as propostas de KAMP; ROHRER, 1983 e de KAMP; REYLE, 1993). 19 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 741 Quando, porém, na oração subordinada de completivas introduzidas por dizer ou airmar surgem eventos, a computação das suas possibilidades interpretativas torna-se bastante mais complexa. Na realidade, e como já procuramos deixar claro anteriormente, o Imperfeito funciona, tipicamente, como um estativizador, ou seja, converte os eventos com que se combina em predicações derivadas de natureza estativa (cf. os argumentos avançados, entre outros, por KAMP; ROHRER, 1983; OLIVEIRA; LOPES, 1995; MATOS, 1996; CUNHA, 2004/2007). Nesse sentido, a relação de sobreposição no passado que caracteriza o Imperfeito é, naturalmente, preservada também nesses contextos, desde que os eventos básicos que neles tomam parte tenham sido previamente convertidos ou em estados habituais ou em estados semiprogressivos. Os exemplos que se seguem ilustram o que acabamos de expor: os eventos das subordinadas em (35) e (36), graças à intervenção de um mecanismo de repetição de situações, são perspectivados como estruturas que descrevem rotinas ou hábitos, ao passo que os de (37) e (38), que apenas são encarados como prolongando-se indeinidamente no tempo, sem referência aos seus momentos inicial ou inal, assemelhamse às construções de cariz progressivo. Em qualquer dos casos, a interpretação de sobreposição no passado parece ser a mais adequada para dar conta das interdependências temporais presentes nestas frases. (35) O João disse que jogava tênis (= tinha o hábito de jogar tênis). (e1 o e2) (36) O jornalista afirmou que entrevistava pessoas famosas (= costumava entrevistar pessoas famosas). (e1 o e2) (37) A Maria disse que as crianças brincavam no jardim (= estavam a brincar no jardim). (e1 o e2) (38) Os bombeiros airmaram que as chamas consumiam a loresta (= estavam a consumir a loresta). (e1 o e2) Em todas essas frases parece existir uma relação de sobreposição entre os tempos em que decorrem as eventualidades na subordinada e o PPT passado fornecido pela frase matriz. Assim, por exemplo, em (36), o intervalo em que o jornalista entrevista pessoas famosas começa antes e prolonga-se para além do tempo em que ele faz a airmação, i.e., 742 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 observa-se aqui uma relação de inclusão temporal semelhante à que observamos para os estados básicos em (33) e (34). O mesmo se passa com os exemplos de leituras semiprogressivas: em (37), o tempo em que a Maria fez a sua airmação está incluído – e, nesse sentido, encontra-se também sobreposto – no intervalo em que as crianças brincam no jardim. Embora a relação de sobreposição a um tempo passado pareça ser preferencial no caso do Imperfeito no contexto de completivas introduzidas por dizer ou airmar, na medida em que pode ser obtida com todas as classes aspectuais de predicações, mesmo que os eventos tenham de ser previamente convertidos em estados de natureza derivada, é igualmente possível encontrar casos em que ocorre posterioridade no interior de um domínio passado.22 As leituras prospectivas com o Imperfeito em completivas introduzidas por verbos relativamente “neutros” em termos da localização temporal da subordinada encontram-se, no entanto, sujeitas a algumas restrições que importa destacar. Se é certo que será suficiente a presença de um adverbial temporal prospectivo para o licenciamento de interpretações desse tipo quando estão em causa predicações eventivas, os estados parecem ser sistematicamente excluídos, tal como o contraste entre (39) e (40), com eventos, e (41) e (42), com estados, nos indica: (39) A Maria disse que chovia amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) (40) O presidente airmou que entregava o relatório amanhã / daí a dois dias.23 (e1 < e2) (41) * A Maria disse que estava doente amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) (42) * O presidente airmou que vivia nos Estados Unidos amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) Essa possibilidade foi já referida na literatura para o PE, por exemplo, em Oliveira (1998), Silvano (2002) e Oliveira e Duarte (2012). 23 Note-se, de passagem, que, no contexto de leituras prospectivas do Imperfeito, os eventos representados parecem manter as suas propriedades aspectuais básicas inalteradas, não sendo convertidos em estados de tipo derivado. 22 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 743 Na ausência de adverbiais temporais prospectivos, são igualmente possíveis leituras futurativas do Imperfeito com eventos, desde que estes se encontrem associados a algum tipo de intencionalidade ou de planiicação (cf. CIPRIA; ROBERTS, 2000). Observe-se o seguinte contraste, em que apenas numa frase como (43), que manifesta algum tipo de planiicação, o Imperfeito pode receber uma leitura de posterioridade no passado, sendo esse tipo de interpretação completamente excluída em (44), que não exibe essas características: (43) O João disse que entregava a tese. (e1 < e2) (44) # O João disse que partia o braço. (e1 < e2) Os dados que acabamos de discutir sugerem, pois, que a leitura preferencial para o Imperfeito no contexto de completivas introduzidas por verbos relativamente neutros no que toca à localização temporal da subordinada, do gênero de dizer ou de airmar, será a de sobreposição ao respectivo PPT passado, sendo as interpretações de cariz futurativo viabilizadas apenas em condições bastante particulares, nomeadamente na presença de adverbiais prospectivos ou em conigurações em que a intencionalidade ou a planiicação se revelam muito evidentes.24 Contrariamente ao que sucede com o Imperfeito, o Condicional, no contexto de verbos introdutores temporalmente neutros, como dizer ou airmar, parece receber uma interpretação consistente de posterioridade no passado, independentemente da classe aspectual da situação representada na subordinada. Por outro lado, e tal como notado em Oliveira e Duarte (2012), esse tempo gramatical veicula adicionalmente informação de natureza modal associada à presença de uma oração condicional implícita. Sob esse ponto de vista, o Condicional combina, nas conigurações sob análise, propriedades temporais e modais, como nos sugerem os seguintes exemplos: Excluímos desta nossa análise, naturalmente, os casos em que dizer não se assume como um verdadeiro verbo “reportivo” e é lexicalmente equivalente a formas do gênero de prometer ou de comprometer-se. Nessas circunstâncias, o seu comportamento semântico será semelhante ao dos verbos que abordarei na próxima subsecção deste trabalho. Em particular, pode mesmo surgir com estativos numa leitura prospectiva como em “O ministro disse (= prometeu) que estava no parlamento amanhã”. 24 744 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (45) O João disse que compraria um BMW (se tivesse dinheiro suiciente). (e1 < e2) (46) O ministro airmou que aumentaria os salários (se o país recebesse fundos da União Europeia). (e1 < e2) (47) A Maria disse que seria professora (se conseguisse concluir o curso). (e1 < e2) (48) O escritor airmou que viveria em Paris (se tivesse de abandonar a sua terra natal). (e1 < e2) Em todas essas frases a situação descrita pelo verbo na oração matriz fornece o intervalo passado que se constitui como Ponto de Perspectiva Temporal para a localização das eventualidades na subordinada, que, independentemente do seu peril aspectual, estabelecem com o referido PPT uma relação de posterioridade. Assim, por exemplo, o estado descrito por “[A Maria] ser professora” em (47), a realizar-se, será sempre concebido como posterior ao evento introduzido por “A Maria dizer”. Por outro lado, tendo em conta que, tal como observamos em 2.2, o Condicional se revela particularmente apto para a expressão de valores modais, não surpreende que as construções que aqui estamos analisando surjam frequentemente associadas a orações condicionais implícita ou explicitamente realizadas. De fato, e pelo menos no entender de alguns falantes do Português Europeu, a total supressão da oração condicional nos contextos em questão conduz frequentemente à sensação de incompletude da estrutura ou mesmo a um certo grau de anomalia. Uma outra observação que reforça a ideia de que o Condicional, para além do seu valor temporal, veicula fundamentalmente uma signiicação de cariz modal está relacionada ao fato de que, no contexto de completivas introduzidas por dizer ou airmar, essa forma viabiliza leituras reportivas ou evidenciais, típicas do designado uso de “incerteza” ou de “informação não conirmada” que lhe é habitualmente atribuído (cf. ABOUDA, 2001). Vejam-se os seguintes exemplos: (49) Os pastores disseram que os lobos estariam na aldeia. (e1 o e2) (50) Os jornalistas airmaram que o ministro possuiria dinheiro no estrangeiro. (e1 o e2) Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 745 É interessante constatar que, nas interpretações em que o Condicional exprime sobretudo incerteza ou informação não conirmada, não se observa a relação temporal de posterioridade com o PPT passado fornecido pela frase matriz, que, como já referimos, normalmente caracteriza essa forma verbal. Nesses casos, o Condicional exprime essencialmente um valor modal “potencial”, ou seja, indica que a informação veiculada pela proposição da oração subordinada não é certa ou não se encontra ainda conirmada, embora constitua uma possibilidade em aberto. Como uma consequência desse valor modal, a relação temporal que se estabelece entre as situações referidas é tipicamente a de sobreposição, o que indicia que a contribuição em termos de modalidade associada ao Condicional acaba por suplantar as suas propriedades temporais básicas. Paralelamente ao que sucede com o Condicional, a construção ir no Imperfeito + Ininitivo, no contexto de completivas introduzidas por verbos como dizer ou airmar, induz uma leitura de posterioridade em relação ao respectivo PPT passado, seja qual for a classe aspectual da situação descrita, como ilustrado nos exemplos que se seguem: (51) O João disse que ia comprar um BMW. (evento) (e1 < e2) (52) O ministro airmou que ia aumentar os salários. (evento) (e1 < e2) (53) A Maria disse que ia ser professora. (estado) (e1 < e2) (54) O escritor airmou que ia viver em Paris. (estado) (e1 < e2) Em todas essas frases as proposições da subordinada são localizadas num intervalo ulterior ao PPT fornecido pela situação descrita na matriz, estabelecendo-se consistentemente uma relação de posterioridade no passado. No entanto, e ao contrário do que sucede com o Condicional, a construção ir no Imperfeito + Ininitivo pode veicular informação puramente temporal de futuridade no passado, não requerendo a presença, implícita ou explícita, de uma oração condicional para a sua plena interpretabilidade. Não queremos com isso airmar, contudo, que a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo não possa estar envolvida em interpretações de natureza modal, o que, aliás, sucede com alguma frequência, mas simplesmente que a modalidade parece não estar 746 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 intrinsecamente associada às leituras que essa forma desencadeia no contexto de completivas introduzidas por verbos como dizer ou airmar. Por outro lado, as condições em que ir no Imperfeito + Ininitivo envolve valores modais diferem substancialmente daquelas que tivemos oportunidade de destacar para o Condicional. Em particular, como (55) e (56) demonstram, ir no Imperfeito + Ininitivo entra essencialmente em conigurações que exprimem contrafactualidade, semelhantes às que Martín (2008) reconhece para a construção equivalente do Espanhol: (55) O João disse que ia comprar um BMW, mas não teve dinheiro suiciente para o fazer. (e1 < e2) (56) O ministro airmou que ia aumentar os impostos mas desistiu por causa das manifestações. (e1 < e2) É importante sublinhar que, nessas frases, a relação temporal de posterioridade no passado parece estar plenamente preservada (i.e., por exemplo, “[o João] comprar um BMW” é necessariamente concebido como posterior a “O João dizer”). Na verdade, a única particularidade que as distingue relaciona-se ao fato de que a proposição representada na subordinada não se atualiza no designado mundo real ou w0, sendo, em vez disso, avaliada em relação a um mundo possível alternativo.25 Um último argumento a favor da ideia de que a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, no contexto de completivas introduzidas por verbos temporalmente neutros, preserva o seu signiicado básico de posterioridade no passado diz respeito ao fato de essa forma, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com o Condicional, não tolerar interpretações evidenciais, reportivas ou de “incerteza”, na medida em que as referidas leituras favoreceriam, tipicamente, uma relação de sobreposição ao PPT passado. Observem-se os seguintes exemplos ilustrativos: 25 (57) Os pastores disseram que os lobos iam estar na aldeia. (* e1 o e2) (58) Os jornalistas airmaram que o ministro ia possuir dinheiro no estrangeiro. (* e1 o e2) Para uma discussão um pouco mais aprofundada sobre essa questão, ver Cunha (2015). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 747 A serem interpretáveis, frases como (57) e (58) apenas poderão receber leituras de posterioridade no passado, i.e., por exemplo, em relação a (57), uma interpretação em que a permanência dos lobos na aldeia é inteiramente posterior ao intervalo em que ocorre a airmação produzida pelos pastores. Em suma, é possível concluir que os dados referentes ao comportamento do Imperfeito, do Condicional e da estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo no contexto de verbos introdutores de completivas relativamente neutros, em termos de localização temporal, como dizer ou airmar, sugerem a preservação de uma grande parte das propriedades semânticas básicas de cada um desses tempos gramaticais. Nesse sentido, as conigurações com o Imperfeito revelam uma tendência notória para a sobreposição no passado, sendo as leituras futurativas igualmente possíveis, embora sob certas condições especíicas; o Condicional está essencialmente envolvido em interpretações de cariz modal, seja pela associação a orações de tipo condicional, seja pela expressão da evidencialidade ou da possibilidade; inalmente, a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo exprime consistentemente a posterioridade em relação a um PPT passado, mesmo que esta se encontre articulada com valores modais como o de contrafactualidade. 3.2 Verbos orientados para o futuro: prometer e decidir Verbos como prometer ou decidir diferem consideravelmente de dizer ou de afirmar na medida em que impõem interpretações futurativas às situações que ocorrem nas suas subordinadas. Por outras palavras, e tal como, de resto, já foi observado em Cunha e Silvano (2006), esses verbos inluenciam decisivamente a localização temporal das eventualidades que subcategorizam, conferindo-lhes uma leitura obrigatória de posterioridade. Não surpreende, por isso mesmo, que interpretações que não contemplem, de forma clara, uma relação de posterioridade sejam completamente impossíveis com verbos como prometer ou decidir, tal como os seguintes exemplos nos comprovam: (59) * O João prometeu que telefonou / tinha telefonado à Maria. (anterioridade) (60) * O João prometeu que estava a telefonar à Maria. (sobreposição) 748 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (61) O João prometeu que ia / vai telefonar à Maria. (posterioridade) (62) * A mãe decidiu que a Rita estudou / tinha estudado japonês. (anterioridade) (63) * A mãe decidiu que a Rita estava a estudar japonês. (sobreposição) (64) A mãe decidiu que a Rita ia / vai estudar japonês. (posterioridade) Uma consequência previsível dessa caracterização sugere que as formas do Imperfeito, do Condicional e de ir no Imperfeito + Ininitivo, quando combinadas com verbos como prometer ou decidir, apenas possam ser licenciadas em contextos em que se veriica uma interpretação de posterioridade no passado. Vejamos se essa predição se conirma efetivamente. Começando pelo Imperfeito, observamos que, quando, na subordinada de verbos como prometer ou decidir, estão em causa predicações de cariz eventivo, uma leitura de posterioridade no passado é facilmente obtida (cf. (65)-(66)), sendo, de resto, a única alternativa viabilizada: (65) O ministro prometeu que falava com os jornalistas. (e1 < e 2) (66) Os bombeiros decidiram que abandonavam o local. (e1 < e 2) Pelo contrário, os estativos no Imperfeito parecem ocasionar anomalia semântica quando combinados com verbos como prometer ou decidir, tal como notado por Oliveira e Duarte (2012). Esse resultado deve-se provavelmente ao fato de que, com estados, a leitura de sobreposição no passado é praticamente obrigatória, o que entra em conlito com as propriedades semânticas que caracterizam os verbos introdutores sob análise.26 Reira-se, no entanto, que, com certos tipos de estativos, nomeadamente com os designados estados faseáveis (cf. CUNHA, 2004/2007), é possível encontrar construções envolvendo verbos do tipo de prometer ou decidir que se revelam bastante mais aceitáveis, ostentando uma interpretação prospectiva, como ilustrado em (i) e (ii). Por vezes, a aceitabilidade destas frases melhora consideravelmente se a elas for associado um adverbial temporal prospectivo. 26 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (67) * A Joana prometeu que era médica. (68) * A Maria decidiu que estava grávida. 749 Tomando em consideração que o Condicional, por si só, é capaz de desencadear uma localização de posterioridade em relação a um PPT passado, não surpreende que ele ocorra livremente no contexto de subordinadas introduzidas por verbos orientados para o futuro, do gênero de prometer ou de decidir, independentemente da classe aspectual das predicações envolvidas (cf. (69)-(70) com eventos e (71)-(72) com estados), embora, na maioria das vezes, e tal como observamos para as completivas com dizer e airmar, surja associado a uma oração de tipo condicional com valor claramente modal. (69) O ministro prometeu que falaria com os jornalistas (se a situação política assim o exigisse). (e1 < e2) (70) Os bombeiros decidiram que abandonariam o local (se a sua segurança estivesse posta em causa). (e1 < e2) (71) A Joana prometeu que seria médica (se esse fosse o desejo dos seus pais). (e1 < e2) (72) O João decidiu que viveria em Paris (se fosse obrigado a emigrar). (e1 < e2) Em qualquer dos exemplos apresentados anteriormente, a situação associada ao verbo matriz, que se constitui como o PPT relevante, é tomada como ocorrendo num intervalo anterior ao da eventualidade representada na subordinada, independentemente de esta vir ou não a ser realizada no mundo de referência, o que signiica, em última instância, que estamos perante casos de posterioridade no passado. (i) ? A Maria prometeu que era simpática com os colegas (na festa que vai dar amanhã). (ii) ? O João decidiu que vivia em Paris. Dado que, no presente texto, não nos é possível debater a questão da faseabilidade em toda a sua extensão, não nos alongaremos mais na discussão desses exemplos, airmando apenas que a subclasse de estativos em apreço manifesta um comportamento muito próximo do que caracteriza os eventos. 750 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Leituras evidenciais ou de possibilidade que, de alguma forma, envolvam a sobreposição da situação da subordinada ao PPT fornecido pela frase matriz são, no caso de verbos como prometer ou decidir, completamente descartadas, mesmo que se revelem perfeitamente compatíveis com as propriedades semânticas do Condicional, como já observamos anteriormente. Uma restrição desse tipo deve-se, naturalmente, aos pré-requisitos temporais associados a esses tipos de verbos, que impõem uma localização futurativa às predicações com que se combinam. Tal como seria de prever, a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo parece ser aquela que melhor se conjuga com as propriedades semânticas de verbos como prometer ou decidir, uma vez que o valor temporal de posterioridade no passado é o seu traço distintivo mais relevante. Os exemplos que se seguem conirmam essa ideia: (73) O ministro prometeu que ia falar com os jornalistas. (e1 < e2) (74) Os bombeiros decidiram que iam abandonar o local. (e1 < e2) (75) A Joana prometeu que ia ser médica. (e1 < e2) (76) A Maria decidiu que ia estar grávida. (e1 < e2) Em configurações como essas, parece existir uma plena compatibilidade entre os pré-requisitos impostos pelo verbo matriz e as propriedades semânticas básicas que caracterizam a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, na medida em que ambos convergem para uma interpretação de posterioridade num domínio temporal passado. Dados como os discutidos na presente subsecção deste trabalho sustentam a ideia de que, apesar de se mostrar muito relevante, não é unicamente a contribuição dos tempos gramaticais que determina as relações temporais na computação inal das orações completivas. Nesse caso concreto, o papel desempenhado pelo verbo introdutor é de inegável importância e revela-se muitas vezes fundamental para o licenciamento e para a interpretação das conigurações em apreço. 3.3 Verbos factivos: constatar e descobrir Verbos introdutores do gênero de constatar ou de descobrir manifestam a propriedade de requererem a veracidade da situação Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 751 com que se combinam no mundo real, i.e., possibilitam assumir que as proposições no seu escopo são verdadeiras em w0, o mundo de referência. Embora se mostrem perfeitamente compatíveis com todas as possibilidades de ordenação temporal que se possam estabelecer entre os intervalos relevantes, verbos factivos como constatar ou descobrir favorecem tipicamente relações de anterioridade ou de sobreposição da situação subordinada face ao tempo do verbo introdutor, na medida em que, desse modo, a atualização da eventualidade em questão no mundo de referência se encontra, à partida, assegurada. A projeção de situações para o futuro só parece ser admissível se existir forte evidência de que elas terão efetivamente lugar no mundo real. Dadas as observações que acabamos de explicitar, colocaremos aqui a hipótese de que, com verbos factivos do gênero de constatar ou de descobrir, as leituras futurativas se revelam as menos representativas, sendo evitadas sempre que possível. Vejamos se uma tal predição se conirma no que se refere à interpretação dos tempos gramaticais que analisamos ao longo do presente trabalho. Começando pelo Imperfeito, veriicamos que, no contexto de predicações estativas, prevalece uma leitura de sobreposição no passado, como os exemplos seguintes nos conirmam: (77) O professor constatou que os alunos eram barulhentos. (e1 o e2) (78) Os jornalistas descobriram que o ministro estava no hotel. (e1 o e2) Quando, na subordinada, estão envolvidos eventos, o Imperfeito continua, ainda assim, a favorecer uma leitura de sobreposição no passado. Nessas circunstâncias, ou são conferidas interpretações semiprogressivas (cf. (79)-(80), ou são viabilizadas leituras habituais (cf. (81)-(82) para as predicações em questão. (79) A Maria constatou que chovia (= estava a chover). (e1 o e2) (80) A polícia descobriu que os bandidos assaltavam (= estavam a assaltar) o banco. (e1 o e2) (81) Os pastores constataram que os lobos lhes comiam as ovelhas (sempre que entravam na aldeia). (e1 o e2) 752 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (82) A polícia descobriu que os bandidos traficavam droga (habitualmente). (e1 o e2) Tanto nos casos em que o Imperfeito exprime semiprogressividade quanto naqueles em que expressa quantificação sobre situações ou habitualidade, a sobreposição da eventualidade na subordinada relativamente ao PPT conferido pela frase matriz parece ser a única conexão temporal viabilizada (e.g. em (80) a descoberta por parte da polícia é perspectivada como sendo simultânea com respeito ao assalto e, em (82), encontramo-nos perante um caso em que a sobreposição resulta do estabelecimento de uma relação de inclusão: em particular, a situação de “os bandidos traicarem droga” parece incluir o momento da descoberta). As interpretações futurativas do Imperfeito com verbos como constatar ou descobrir revelam-se normalmente bastante problemáticas, mesmo quando estão envolvidos adverbiais orientados para o futuro. Assim, e ao contrário do que normalmente sucede com os verbos dicendi descritos em 3.1, os verbos factivos manifestam alguma diiculdade em combinar-se com subordinadas no Imperfeito que contenham expressões que inequivocamente remetam para a posterioridade, tal como os exemplos que se seguem nos conirmam: (83) ?? A Maria constatou que chovia amanhã / daí a dois dias. (84) ?? A polícia descobriu que os bandidos traicavam droga amanhã / daí a dois dias.27 No que diz respeito ao Condicional, a sua interpretação puramente temporal de posterioridade em relação a um PPT passado revela-se – pelo menos para alguns falantes do PE – igualmente problemática no contexto de verbos factivos como constatar ou descobrir, independentemente da classe aspectual das predicações envolvidas: Sublinhe-se, no entanto, que, mesmo no contexto de verbos factivos como constatar e descobrir, uma interpretação futurativa do Imperfeito, quando acompanhado de adverbiais temporais que expressam posterioridade, é, por vezes, perfeitamente aceitável, sobretudo se o contexto mostra inequivocamente a veracidade da subordinada no mundo de referência, como ilustrado em (i): A Maria constatou que a nova loja abria amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) 27 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 753 (85) ?? A Maria constatou que choveria. (86) ?? O Pedro descobriu que o vizinho compraria uma casa nova. (87) ?? A Rita constatou que estaria grávida. (88) ?? Os policiais descobriram que o assaltante seria japonês.28 Todavia, as subordinadas envolvendo o Condicional no contexto de verbos factivos melhoram signiicativamente se, para além do seu valor temporal, essa forma verbal manifestar concomitantemente algum tipo de modalidade associada, particularmente se for introduzida uma oração condicional, como ilustrado nos seguintes exemplos: (89) O polícia constatou que os bandidos fugiriam da cadeia se a vigilância não fosse reforçada. (90) O Pedro descobriu que o vizinho compraria uma casa nova se ganhasse a lotaria. Se, nesses casos, a veracidade da proposição na subordinada não está assegurada em w0, como seria de esperar no contexto de verbos factivos, ela parece, no entanto, ser encarada como uma inevitabilidade logo que as condições descritas na prótase da condicional se encontrem plenamente satisfeitas, o que parece ser suiciente para o licenciamento deste tipo de conigurações. É curioso observar que, para alguns falantes, frases como essas se revelam perfeitamente aceitáveis. Por exemplo, um revisor anônimo deste trabalho airma que não encontra qualquer diiculdade em interpretar as conigurações em (85)-(88) como casos de posterioridade da situação na subordinada face ao tempo estabelecido pela matriz. As oscilações de interpretabilidade observadas no que diz respeito a esse gênero de estruturas poderão constituir um argumento interessante em favor da ideia de que o Condicional se constitui, de fato, como um caso de fronteira entre a temporalidade e a modalidade. Para os falantes que aceitam frases como (83)-(88) com valor de posterioridade, o que parece preponderar é o valor temporal de “futuro do passado” associado ao Condicional; para os falantes que as consideram algo anômalas, pelo contrário, o Condicional estará mostrando a perda acentuada das suas propriedades temporais, o que teria como consequência a prevalência das características lexicais do verbo matriz sobre a sua capacidade de induzir leituras futurativas. 28 754 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 Outros usos modais do Condicional no contexto sob análise parecem ser mais problemáticos. É o que sucede com o Condicional com valor evidencial ou potencial, na medida em que, exprimindo um certo grau de incerteza, parece entrar em contradição ou em conlito com os prérequisitos que lexicalmente caracterizam os verbos factivos (cf. (91)-(92)): (91) # A mãe constatou que a Maria estaria grávida. (e1 o e2) (92) # Os jornalistas descobriram que o ministro estaria no gabinete. (e1 o e2) Finalmente, será interessante referir que, em circunstâncias adequadas, o Condicional em proposições subcategorizadas por verbos como constatar ou descobrir pode receber uma interpretação que exprime a designada modalidade disposicional ou de capacidade (cf. e.g. PORTNER, 2009). Considerem-se os seguintes exemplos: (93) O professor constatou que a Maria seria uma excelente cantora. (94) O treinador descobriu que o Tiago jogaria tênis. Nas suas interpretações mais naturais, frases como essas, embora não assegurem, de forma direta, a veracidade das proposições envolvidas nas respectivas subordinadas, validam em w0 as condições necessárias e suicientes para que tal possa vir a suceder no futuro. Por outras palavras, em (93), por exemplo, o professor veriica que, no mundo de referência, a Maria tem reunidas todas as capacidades, características e disposições para que, num intervalo posterior ao PPT relevante, venha a ser uma excelente cantora. Em síntese, diremos que o Condicional, quando combinado com verbos factivos do tipo de constatar ou de descobrir, veicula preferencialmente valores de natureza modal que, no entanto, terão de ser, de alguma forma, compatíveis com os requisitos de veracidade associados aos verbos introdutores com que coocorre. Observe-se, inalmente, o comportamento da estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo no contexto de verbos factivos. Tendo em conta que essa forma expressa essencialmente posterioridade no passado, decorrendo os valores modais que por vezes manifesta do seu peril temporal básico, não surpreende que se revele capaz de estabelecer, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 755 também nesses casos, uma relação de futuridade face ao PPT fornecido pelo verbo matriz, estejam envolvidas predicações de natureza eventiva ou estativa: (95) Os jornalistas constataram que o ministro ia discursar. (e1 < e2) (96) A polícia descobriu que os bandidos iam assaltar o banco. (e1 < e2) (97) O Rui constatou que o vizinho ia viver em Paris. (e1 < e2) (98) Os jornalistas descobriram que o ministro ia estar no hotel. (e1 < e2) Naturalmente, tendo em conta que frases como essas descrevem situações projetadas para o futuro, não será possível, à partida, garantir a veracidade da sua realização no mundo de referência. No entanto, o valor factivo associado a verbos como constatar ou descobrir faz supor que uma interpretação verídica para essas proposições é a preferencial, pelo menos na perspectiva dos sujeitos da oração matriz, i.e., o uso dos verbos em questão implica a consideração de fortes indícios conducentes à realização das eventualidades em w0. Assim, em (96), por exemplo, mesmo que os bandidos nunca cheguem a assaltar efetivamente o banco em w0, essa situação é encarada como o resultado previsível dado o decurso normal dos acontecimentos no momento de avaliação, ou seja, é concebida como o inertia future preferencial no contexto em questão (cf. DOWTY, 1979). Em síntese, diremos que verbos factivos do gênero de constatar ou de descobrir, na medida em que favorecem uma leitura verídica das situações nas subordinadas com que se combinam, evitam interpretações em que a veracidade dessas eventualidades possa ser posta em causa. Nessa medida, com o Imperfeito, estabelecem leituras de sobreposição no passado, em que, tipicamente, a verdade das situações se encontra desde logo assegurada; com o Condicional, por seu lado, selecionam os usos modais que, de alguma forma, se mostrem mais compatíveis com a realização das proposições em w0 e, inalmente, com a construção ir no Imperfeito + Ininitivo, admitem interpretações temporais de posterioridade no passado, que, no entanto, se devem constituir como inertia futures preferenciais. 756 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 3.4 Verbos intensionais: sonhar, imaginar e acreditar Um último grupo de verbos introdutores de completivas que analisaremos no presente trabalho é constituído pelos designados verbos iccionais (iction verbs; cf. FARKAS, 1992, 2003), como sonhar ou imaginar, e por verbos de atitude proposicional não factivos, como acreditar (cf. HEIM, 1992; FARKAS, 2003). Em comum, essas formas revelam a característica de veicular, em certa medida, algum tipo de intensionalidade, i.e., trata-se de verbos que favorecem leituras não verídicas das proposições representadas no seu escopo. Nesse sentido, vamos designá-los aqui, ainda que de um modo um pouco informal, como verbos intensionais. A principal questão que aqui nos vai ocupar é a de saber se o fato de as proposições encaixadas não poderem ser tipicamente encaradas como verdadeiras no mundo de referência inluencia, de algum modo, as relações temporais que se estabelecem entre principal e subordinada no contexto deste gênero de completivas. No que toca ao uso do Imperfeito, observamos que uma relação de sobreposição no passado parece ser preferencial, não só quando estão envolvidas predicações estativas (cf. (99)-(100)), mas também quando ocorrem eventos (cf. (101)-(102)): (99) O João imaginou que tinha um cavalo branco. (e1 o e2) (100) A Rita acreditou que estava grávida. (e1 o e2) (101) A Maria sonhou que corria pela loresta. (e1 o e2) (102) O Rui imaginou que pilotava um avião. (e1 o e2)29 A relação de sobreposição no passado ostentada pelos eventos em frases como (101) ou (102) sugere que, mais uma vez, o Imperfeito atua aqui como um verdadeiro estativizador, nomeadamente dando origem a leituras de tipo semiprogressivo. No entanto, em contextos favoráveis, podemos encontrar Imperfeitos com leituras quantiicacionais / habituais (cf. (i)) ou mesmo disposicionais (cf. (ii)), mantendo-se sempre, porém, inalterada a relação preferencial de sobreposição no passado: (i) O Cristiano sonhou que jogava futebol todos os dias. (e1 o e2) (ii) A Maria acreditou que cantava ópera (= era capaz de cantar ópera). (e1 o e2) 29 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 757 Embora, em termos gerais, as proposições da subordinada não sejam verdadeiras no mundo de referência, revelam-se, não obstante, cotemporais em relação às situações descritas na oração principal, sendo avaliadas, nesses contextos, não relativamente ao mundo real, mas a um mundo possível alternativo a w0. Se procedermos à introdução de adverbiais temporais orientados para o futuro na oração subordinada, observamos que, com predicações estativas, o resultado é, quase sempre, anomalia semântica, o que indicia que, com essa classe aspectual, a leitura de sobreposição no passado, no contexto de verbos intensionais, é praticamente obrigatória. (103) * O João sonhou que era alto amanhã / daí a dois dias. (104) * A Maria acreditou que gostava de linguística amanhã / daí a dois dias. Os eventos, por sua vez, manifestam uma maior variabilidade de comportamentos: em alguns casos, as leituras futurativas do Imperfeito parecem perfeitamente aceitáveis (cf. (105)-(106)), ao passo que, noutros, a sua admissibilidade suscita algumas dúvidas (cf. (107)-(108)): (105) O João imaginou que comprava um BMW amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) (106) O jornalista acreditou que entrevistava o presidente amanhã / daí a dois dias. (e1 < e2) (107) ?? A Maria sonhou que passeava no jardim amanhã / daí a dois dias. (108) ?? O jornalista acreditou que escrevia um artigo amanhã / daí a dois dias. A ocorrência de formas do Condicional nas subordinadas de completivas introduzidas por verbos como sonhar, imaginar ou acreditar dá origem a um conjunto bastante diversiicado de interpretações. Em primeiro lugar, podemos obter leituras futurativas, em que o Condicional localiza uma situação num intervalo subsequente ao Ponto de Perspectiva Temporal passado fornecido pelo verbo matriz, tal como ilustrado nos exemplos que se seguem: 758 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (109) O Rui acreditou que estaria no Brasil no próximo ano. (e1 < e2) (110) O João imaginou que encontraria um poço de petróleo no seu quintal. (e1 < e2) É, no entanto, importante sublinhar que essas leituras eminentemente temporais do Condicional são frequentemente acompanhadas por certas aceções com valor modal, particularmente relacionadas com a expressão da vontade, do desejo ou da predição. Uma segunda interpretação que poderá ser conferida ao Condicional nesse gênero de contextos tem relação com a expressão de uma proposição hipotética decorrente da introdução de uma oração condicional na estrutura, possibilidade que, como já vimos, é partilhada por outros tipos de completivas (cf. (111)-(112)). (111) O Rui imaginou que voaria se tivesse asas. (112) O candidato acreditou que seria eleito presidente se passasse à segunda volta das eleições. Uma outra interpretação do Condicional que emerge frequentemente nesse tipo de contextos, sobretudo quando o verbo matriz selecionado é acreditar, tem a ver com a denotação de capacidades ou de disposições gerais associadas às entidades envolvidas (cf. PORTNER, 2009)). Nessa medida, em frases como as que se seguem, o Condicional manifesta essencialmente um valor modal que se traduz na atribuição, num intervalo futuro, de capacidades especíicas ao sujeito da subordinada. (113) O Cristiano acreditou que jogaria futebol (= seria jogador de futebol). (114) O professor de desenho acreditou que a Ana pintaria belos quadros (= teria, no futuro, a capacidade de pintar belos quadros). As proposições “jogar futebol”, em (113), e “pintar belos quadros”, em (114), não são aqui preferencialmente interpretadas como eventos singulares localizados num intervalo posterior ao PPT relevante, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 759 mas antes como airmações de âmbito geral acerca das capacidades ou das disposições futuras das entidades envolvidas, tal como as paráfrases apresentadas deixam bem claro. Finalmente, o Condicional pode, em circunstâncias adequadas, favorecer uma relação de sobreposição no passado entre a subordinada e a matriz no contexto de completivas introduzidas por verbos intensionais. É o que constatamos nos exemplos que se seguem: (115) O Rui imaginou que a Rita viveria em Paris (nessa altura / nesse momento). (e1 o e2) (116) Os pastores acreditaram que os lobos estariam na aldeia (e por isso fecharam os seus rebanhos no redil). (e1 o e2) Em exemplos como os que acabamos de apresentar, a relação de cotemporalidade entre as eventualidades representadas na matriz e na subordinada parece perfeitamente natural, o que pode ser comprovado pela compatibilidade com adverbiais temporais do gênero de “nessa altura” ou de “nesse momento” com uma leitura anafórica (cf. (115)). Estaremos, pois, perante casos de um Condicional de probabilidade (cf. MARTíNEZ-ATIENZA, 2012) ou de conjetura (cf. VATRICAN, 2014), tal como discutido na seção 2.2. Com efeito, nas suas leituras mais naturais, frases como (115) e (116) parecem expressar situações que possivelmente estão a decorrer no intervalo fornecido pelo PPT mas cujo valor de verdade não foi ainda assegurado (e.g. é possível que a Rita esteja a viver em Paris no intervalo de tempo em que o Rui o imagina ou é possível que os lobos estejam na aldeia no período de tempo em que decorre a crença dos pastores, mas essas proposições não são perspectivadas como verdadeiras ou devidamente conirmadas em w0). Sob esse ponto de vista, portanto, o Condicional veicula, em exemplos como os apresentados anteriormente, um valor estritamente modal, funcionando como uma espécie de operador epistémico de possibilidade. Quanto à estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo, quando surge em subordinadas de completivas introduzidas por verbos como sonhar, imaginar ou acreditar, parece veicular preferencialmente informação temporal de posterioridade em relação ao PPT passado fornecido pelo verbo matriz, independentemente de estarem em causa estados ou eventos, como ilustrado nos exemplos que se seguem: 760 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 (117) O Rui imaginou que ia viver em Paris. (e1 < e2) (118) Os jornalistas acreditaram que o ministro ia estar no hotel (daí a duas horas). (e1 < e2) (119) A Maria sonhou que ia partir de férias. (e1 < e2) (120) Os policiais acreditaram que iam prender o assaltante. (e1 < e2) Tendo em consideração que a estrutura ir no Imperfeito + Infinitivo expressa consistentemente uma relação temporal de posterioridade no passado, não surpreende que a ocorrência de leituras potenciais ou conjeturais, perfeitamente naturais com o Condicional, seja, no contexto em apreço, praticamente impossível, na medida em que, como já referimos anteriormente, supõe a sobreposição entre os intervalos em que decorrem as situações descritas. (121) Os jornalistas acreditaram que o ministro ia estar no hotel (* nessa altura / * nesse momento).30 (e1 < e2) O fato de a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo não poder comparecer em conigurações que expressem conjetura ou evidencialidade não signiica, no entanto, que, com verbos como sonhar, imaginar ou acreditar, não possa, igualmente, veicular valores de cariz modal. Na realidade, desde que a condição de posterioridade em relação ao PPT passado seja satisfeita, são viabilizadas diversas interpretações, incluindo casos de contrafactualidade como os ilustrados nos exemplos que se seguem: (122) A Maria imaginou que ia ser médica, mas acabou por estudar direito. (123) Os polícias acreditaram que iam prender o assaltante, mas ele escapou. No que se refere a esse gênero de exemplos, os casos de anomalia semântica limitam-se unicamente a estruturas em que se veriica cotemporalidade, i.e., à interpretação em que os adverbiais “nessa altura” ou “nesse momento” estabelecem uma relação anafórica de retomada do tempo fornecido pela eventualidade na frase matriz; quaisquer outras leituras possíveis desses adverbiais serão irrelevantes para a discussão que aqui nos ocupa. 30 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 761 Em suma: dado que verbos intensionais como sonhar, imaginar ou acreditar projetam tipicamente as proposições das subordinadas com que coocorrem num mundo possível diferente do mundo de referência, eles favorecem leituras modais das predicações no seu escopo. Em termos estritamente temporais, esses verbos comportam-se de forma bastante “neutra”: o Imperfeito surge tendencialmente em estruturas de sobreposição ao PPT passado disponibilizado pela frase matriz, embora, sob certas condições, compareça igualmente em conigurações futurativas, ao passo que o Condicional e a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo dão lugar a posterioridade no passado. Sublinhe-se, no entanto, que o Condicional está envolvido maioritariamente em interpretações de cariz modal, sejam elas de desejo, de possibilidade, de hipótese, de conjetura, de potencialidade ou mesmo de expressão de capacidades ou disposições gerais, leituras que, em muitas ocasiões, se sobrepõem à componente temporal que caracteriza a forma verbal em causa, o que se traduz, por exemplo, em casos evidentes de sobreposição entre as situações envolvidas. A construção ir no Imperfeito + Ininitivo, por seu lado, conquanto sempre sujeita à restrição temporal de futuridade, não deixa de veicular informação modal, particularmente no que se refere à expressão da contrafactualidade. 4 Conclusões Foi possível observar, ao longo do presente artigo, que a expressão da futuridade no passado em PE, no contexto de completivas de verbo, depende de um vasto conjunto de fatores que interagem dinamicamente entre si. Nessa medida, podemos destacar (i) a inluência do verbo matriz – como tivemos oportunidade de constatar, certos verbos do gênero de prometer ou de decidir requerem obrigatoriamente a posterioridade da situação com que se combinam; (ii) o papel de dados adverbiais temporais orientados para o futuro ou de expressões equivalentes – no caso do Imperfeito, a presença de elementos desse tipo pode ser mesmo decisiva para a obtenção de leituras de cariz futurativo; (iii) o peril aspectual das eventualidades representadas na oração subordinada – com o Imperfeito, as interpretações futurativas são tendencialmente obtidas quando estão envolvidos eventos, mas rejeitadas logo que surgem estativos; com o Condicional, as leituras modais de sobreposição no 762 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 719-767, 2018 passado ocorrem preferencialmente com estados, mas não com eventos; (iv) a natureza dos tempos gramaticais selecionados – apenas a estrutura ir no Imperfeito + Ininitivo veicula clara e consistentemente uma relação de posterioridade no passado, ao passo que o Condicional possibilita, em determinados contextos modais, a sobreposição entre as situações, e o Imperfeito é visivelmente um tempo que favorece a simultaneidade entre as eventualidades descritas, estando as suas leituras futurativas sujeitas a diversas restrições de caráter semântico. Agradecimentos Agradeço à Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal, pelo apoio inanceiro ao projeto de que este artigo faz parte; os meus agradecimentos estendem-se igualmente ao Centro de Linguística da Universidade do Porto, à equipe editorial e aos revisores anônimos da RELIN, bem como ao grupo de semântica do CLUP, pelas discussões e sugestões que tanto contribuíram para a versão inal deste trabalho. Trabalho inanciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do QREN – POPH (Programa Operacional Potencial Humano) – Tipologia 4.1 – Formação Avançada, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por fundos nacionais do MEC Referências ABOUDA, L. Les emplois journalistique, polémique, et atténuatif du conditionnel. Un traitement unitaire. In: DENDALE, P.; TASMOWSKI, L. (Ed.). Le conditionnel en français. Metz: Université de Metz, 2001. p. 277-294. ANAND, P.; HACQUARD, V. The role of the imperfect in Romance counterfactuals. In: SINN UND BEDEUTUNG, 14., 2009. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 Análise de textos enciclopédicos da Simple English Wikipedia e da Wikipedia: algumas discussões para o ensino de língua inglesa Analysis of encyclopedic texts from Simple English Wikipedia and Wikipedia: some discussions for English language teaching Eduardo Batista da Silva Universidade Estadual de Goiás, Morrinhos, Goiás / Brasil eduardo.silva@ueg.br Resumo: Tomamos como objeto de pesquisa o conteúdo lexical do texto enciclopédico, mais precisamente o peril lexical de textos presentes em duas enciclopédias colaborativas: uma destinada a aprendizes de língua inglesa (Simple English Wikipedia) e outra destinada a um público falante nativo de língua inglesa (Wikipedia). Nosso objetivo geral é apresentar o texto enciclopédico como um recurso didático para o enriquecimento e prática de vocabulário em língua inglesa. Os objetivos especíicos são os seguintes: 1) proceder uma análise do peril lexical de artigos da Simple English Wikipedia e da Wikipedia; 2) comparar os artigos nas duas enciclopédias e 3) checar se os artigos adaptados da enciclopédia destinada aos aprendizes realmente empregam vocabulário mais elementar. O embasamento teórico recorre aos estudos de Lexicologia (NATION, 2001, 2003, 2015) e da Linguística de Córpus (BERBER SARDINHA, 2004, 2012). Com relação à metodologia, os 35 melhores artigos da Simple English Wikipedia, na opinião do editor do site, foram convertidos no formato texto simples e posteriormente analisados pelo software VocabProile, versão 4, um programa on-line que divide um texto em faixas de frequência lexical. Após o processamento dos arquivos, o VocabProile veriicou o peril lexical dos textos enciclopédicos. Os resultados indicam que, do ponto de vista léxico-quantitativo, não há eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.769-792 770 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 diferença signiicativa entre o peril lexical da Simple English Wikipedia e da Wikipedia. As duas enciclopédias se diferenciam primordialmente pela extensão dos artigos. Palavras-chave: vocabulário; língua inglesa; Wikipedia; Simple English Wikipedia. Abstract: We tackle the lexical content of encyclopedic texts as our research object, more precisely, the lexical proile of texts in two collaborative encyclopedias: one is designed for English language learners (Simple English Wikipedia) and the other is designed for an Englishspeaking audience (Wikipedia). We aim at introducing the encyclopedic text as a pedagogical resource for the enhancement and practice of vocabulary in English. Our speciic goals are the following: 1) proceed an analysis of the lexical proile of texts from Simple English Wikipedia and Wikipedia; 2) compare the texts of both encyclopedias and 3) check whether the adapted texts from the encyclopedia designed for English language learners do employ more simple vocabulary. The theoretical background resorts to studies concerning Lexicology (NATION, 2001, 2003, 2015) and Corpus Linguistics (BERBER SARDINHA, 2004, 2012). Regarding methodology, the 35 best articles from Simple English Wikipedia, in the editor´s opinion, were converted to simple text format and later analyzed by the software VocabProile, version 4, an online software that divides a text into frequency bands. After processing the iles, VocabProile veriied the lexical proile of the encyclopedic texts. The indings show that, from a lexicoquantitative perspective, there is no signiicant difference between the lexical proile in Simple English Wikipedia and Wikipedia. Both encyclopedias primarily differ in terms of article length. Keywords: vocabulary; english language; Wikipedia; Simple English Wikipedia. Recebido em 8 de setembro de 2017 Aceito em 17 de outubro de 2017 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 771 1 Introdução Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa em andamento na Universidade Estadual de Goiás intitulado “Estudos em Lexicologia e Linguística de Córpus para o Professor de Língua Inglesa”. O presente estudo toma como objeto de pesquisa o conteúdo lexical do texto enciclopédico, mais precisamente o peril lexical de textos presentes em duas enciclopédias colaborativas: uma destinada a aprendizes de língua inglesa (Simple English Wikipedia) e outra destinada a um público falante nativo de língua inglesa (Wikipedia). Wikipedias são lugares nos quais as pessoas trabalham em equipe para escrever enciclopédias em diferentes línguas. Para contextualizar o instrumento no qual se insere nosso objeto de pesquisa, apresentamos, nos próximos parágrafos, as características das duas enciclopédias e, na sequência, detemo-nos na Simple English Wikipedia. Desde a sua criação, no ano de 2001, a Wikipedia vem sendo utilizada como uma obra de consulta gratuita, de fácil acesso, destacandose pelo quesito coniabilidade, na maioria das vezes, e atraindo milhões de visitantes diariamente. No que concerne à utilização dos artigos escritos de forma colaborativa na prática de leitura em língua inglesa, vale ressaltar que, além da Wikipedia, existe outra enciclopédia colaborativa chamada Simple English Wikipedia (doravante, SEW), criada no ano de 2004, que se propõe a ser um recurso informacional destinado a um público que inclui estudantes, crianças, adultos com diiculdades de aprendizagem ou de leitura e aprendizes de inglês. Outrossim, outras pessoas usamna graças à linguagem simples, o que possibilita o conhecimento de conceitos com os quais não têm familiaridade. No inal do mês de agosto de 2017, a SEW contava com 127.167 artigos em seu banco de dados (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2017a). Em comparação, a Wikipedia em língua inglesa, na mesma época, possuía 5.468.078 artigos (WIKIPEDIA, 2017a). No tocante ao léxico empregado, na SEW, opta-se pela utilização de palavras simples da língua inglesa, acompanhada de estruturas gramaticais também mais simples. Ao preocupar-se com a qualidade do conteúdo léxico-gramatical de seus artigos, uma equipe de editores avalia todos os novos artigos ou suas atualizações. Na redação dos textos, existe uma preocupação em usar um repertório lexical mais básico e 772 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 frases mais curtas, com o intuito de tornar a leitura dos aprendizes mais fácil. Os colaboradores são estimulados a expandir os artigos, adicionando detalhes e adotando o vocabulário básico, sem a premissa de que os textos criados devam necessariamente ser curtos. Com base na orientação de que apenas 2.000 palavras são suicientes para se escrever um bom artigo (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2016), não ica claro se esse quantitativo relaciona-se à quantidade de palavras consideradas isoladamente, sem repetições (types) ou todas as ocorrências de palavras no artigo (tokens). Para os autores dos textos, sugere-se que tomem como parâmetro e procurem as palavras em quatro grandes listas de palavras (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2016), a saber: Basic English 850 (“Basic”é um acrônimo para British American Scientiic International Commercial). Essa lista de palavras foi criada por Charles Kay Ogden em 1935. Trata-se de uma tentativa de explicar conceitos considerados complexos com 850 palavras básicas do inglês: são 100 palavras denominadas “operations”, 400 palavras na categoria “things”, 100 “general”, 200 “picturable words” e 50 “opposites”); Basic English 1500 (uma lista mais avançada que a Basic English 850, que contém, na verdade, mais de 2.600 palavras, constituída das 850 palavras da Basic English; 179 palavras internacionais; 50 substantivos internacionais; 12 nomes de áreas cientíicas; 50 palavras sobre o tempo e números, entre outros); Voice of America Special English Word Book (lista que contém 1.580 palavras com 6 categorias gramaticais, 8 termos que denominam os mais conhecidos órgãos do corpo humano, 32 termos cientíicos, 5 preixos, entre outros) e uma lista de Inglês Simpliicado da European Association of Aerospace Manufacturers (lista criada para auxiliar engenheiros a escrever manuais de maneira a tornar a redação mais simples. No entanto, a lista da associação não se encontra disponível no site). Uma vez que a Simple English Wikipedia importa-se com a seleção e utilização do vocabulário presente no corpo de seus verbetes, partimos da hipótese de que seu conteúdo lexical diferencia-se da Wikipedia , que potencialmente contém palavras simpliicadas. Frente ao exposto, nossa pesquisa tem o objetivo geral de apresentar o texto enciclopédico como um recurso didático para o enriquecimento e prática de vocabulário em língua inglesa. Os objetivos especíicos são os seguintes: 1) proceder uma análise do peril lexical de artigos da Simple English Wikipedia e da Wikipedia; 2) comparar os Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 773 artigos nas duas enciclopédias e 3) checar se os artigos adaptados da enciclopédia destinada aos aprendizes realmente empregam vocabulário mais elementar em seus textos. A fundamentação teórica recorrerá basicamente à Lexicologia e Linguística de Córpus. Trata-se de campos independentes de investigação que, explorados conjuntamente, enriquecerão nossas relexões. 2 Fundamentação teórica A utilização de obras de consulta como apoio na formação linguística de modo geral não constitui uma novidade propriamente dita. Na área de língua inglesa, existem trabalhos relacionados especialmente à Lexicograia Pedagógica ou à Terminologia Aplicada, comprometidos com a associação entre obras de consulta e ensino. Empreendemos aqui uma discussão que tangencia a mesma linha, porém, recorrendo à enciclopédia, que , ao nosso ver, constitui ainda um recorte incipiente no contexto brasileiro de ensino de língua inglesa. A im de situar o estudo de uma obra de consulta como a enciclopédia, adaptamos para um mapa conceitual o esquema desenvolvido por Welker (2005, p. 44): 1. 1.1 1.1.1 1.1.1.1 1.1.1.1.1 1.1.1.1.2 1.1.1.2 1.1.1.2.1 1.1.1.2.2 1.1.2 1.1.2.1 1.1.2.1.1 1.1.2.1.2 1.1.2.2 1.1.2.2.1 1.1.2.2.2 OBRAS DE CONSULTA Dicionário de língua impresso/convencional monolíngue geral especial bi/multilíngue geral especial eletrônico monolíngue geral especial bi/multilíngue geral especial 774 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 1.2 1.2.1 1.2.1.1 1.2.1.2 1.2.1.3 1.2.1.4 1.2.2 1.2.2.1 1.2.2.2 1.2.2.3 1.2.2.4 Outras obras de consulta impresso/convencional enciclopédias atlas almanaques etc eletrônico enciclopédias atlas almanaques etc No que se refere às enciclopédias eletrônicas, o mapa conceitual mostra que tanto as enciclopédias em formato papel (impresso/ convencional) quanto as enciclopédias eletrônicas gozam de mesma importância quanto à categorização hierárquica. Entretanto, quanto ao nível 1.2 (outras obras de consulta), o referido autor falha em registrar a diferenciação entre obras monolíngues e bi/multilíngues. Salientamos que o escopo de nossa pesquisa reside no nível 1.2.2.1, monolíngue (em língua inglesa). Cremos ser oportuna a explicação de Rey-Debove (1971) quanto à especificidade da enciclopédia, ou melhor, da definição enciclopédica: o dicionário de língua diz o que signiica o signo leão, ao passo que a enciclopédia diz e mostra o que é um leão. Trazendo essa noção para o contexto da pesquisa, partimos do princípio de que, no artigo enciclopédico, encontram-se disponíveis inúmeras palavras para descrever – em alguns casos, exaustivamente – o objeto ou fenômeno. Dessa forma, encontramos um vasto repositório linguístico que pode ser explorado para ins didáticos. Ao voltar nossas atenções para o vocabulário utilizado no texto enciclopédico, ressaltamos que temos interesse direto no vocabulário mais frequente da língua inglesa, ou seja, no vocabulário fundamental. Iniciamos na sequência algumas discussões inseridas na seara da Lexicologia, que pode ser deinida como uma divisão da Linguística, cuja preocupação é o estudo cientíico do repertório de palavras presentes em um idioma, ou seja, o léxico propriamente dito. Sua manifestação mais concreta encontra-se no vocabulário, as palavras em uso pelos falantes. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 775 Sob os auspícios da Lexicologia, podemos explorar, analisar, reletir, comparar e identiicar as unidades léxicas. Os benefícios da leitura para o aprendiz de língua estrangeira são destacados por Nation (2015), especialmente o contato com textos simpliicados por parte dos iniciantes. Acatamos as ideias de Nation (2001, 2003) quanto ao fato de que, já que algumas palavras ocorrem com uma frequência muito maior que outras, as mais frequentes revelam-se potencialmente mais úteis aos alunos – conhecimento que é um pré-requisito seminal para o planejamento de um programa de vocabulário e para a tomada de decisão no dia a dia sobre como lidar com determinadas palavras. Com relação à frequência e extensão das palavras, Nation (2001, 2003), propõe a divisão do vocabulário em língua inglesa em quatro grupos. O primeiro grupo é constituído por palavras de alta frequência composto de aproximadamente 2.000 famílias de palavras. Correspondem de 80% a 95% das palavras que ocorrem em um texto qualquer. O segundo grupo abarca as palavras acadêmicas que costumam ocorrer em textos acadêmicos e não fazem parte das 2.000 palavras mais frequentes. Essas palavras compõem entre 8,5% e 10% de um texto qualquer. Para Nation (2003), a melhor lista para essa classe é a Lista de Palavras Acadêmicas. No entanto, Silva (2015) detecta deiciências nessa lista e propõe outra lista acadêmica com forte apelo estatístico. O terceiro grupo abrange as palavras técnicas, ou seja, palavras comuns e de signiicado restrito à determinada área de especialidade. Por im, podemos visualizar outro grupo dentro do qual seriam inseridas as palavras de baixa frequência, ou seja, que não fazem parte dos grupos citados anteriormente. Leffa (2000) faz uma síntese a respeito do vocabulário e destaca seu imprescindível papel para o aprendizado de uma língua, o que faz do léxico instrumento fundamental. Partindo do princípio de que a simples instrução especíica do vocabulário não garante a compreensão de leitura, o aluno deve aprender as palavras novas dentro de um contexto signiicativo, que pode ser dado por relações intratextuais, onde o signiicado da palavra desconhecida pode ser inferenciado dentro do próprio texto, e por relações intertextuais, considerando aí as disciplinas do currículo escolar. (LEFFA, 2000, p. 37). Sob essa perspectiva, um trabalho direcionado para o enriquecimento lexical por meio de verbetes enciclopédicos pode 776 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 contemplar as ideias expostas pelo referido autor. O mesmo autor ressalta a importância de uma tríade fundamental no trabalho linguístico: a seleção do vocabulário que deve ser ensinado (o que), os textos que serão usados (com o que) e as estratégias empregadas (como). Ora, tendo em mente o que será ensinado, com quais instrumentos e de que maneira serão aplicados, percebemos pontos-chave para o aprendizado do aluno. Nesse sentido, o uso de dispositivos que são acessíveis e de uso comum para todos tornam-se excelentes instrumentos de ensino. Essa visão abarca nossa proposta de trabalho com textos enciclopédicos como input para o desenvolvimento do repertório lexical em língua inglesa. Frente à responsabilidade que o professor de língua inglesa carrega quanto à instrução lexical, concordamos com a seguinte airmação: Cabe ao professor incluir o vocabulário nas suas preocupações ao preparar suas aulas, propondo atividades em que determinadas palavras consideradas chave sejam explicitamente ensinadas. Dessa forma, o professor chama a atenção do aluno para aquelas palavras, possibilitando uma maior discussão e relexão sobre elas, o que é imprescindível para facilitar sua retenção. (RODRIGUES, 2006, p. 17). A tarefa do professor de problematizar o conhecimento do léxico leva a práticas que envolvam o vocabulário no contexto da sala de aula de língua estrangeira. Como mostram Oliveira e Silva (2016), pode-se aprimorar a língua inglesa via leitura, a im de manter o aprendiz em contato com conteúdo linguístico do programa pedagógico. Soma-se ao material oicial de um curso de idiomas, por exemplo, um valioso repositório de estudo disponível on-line contendo uma grande variedade de textos, destinado a um público com faixa etária e nível de proiciência diversos. Destacamos, assim, a inserção do texto enciclopédico como mais um recurso para se estudar a linguagem (tanto para o professor de língua inglesa como para o aprendiz). Até o momento, discutimos aspectos mais quantitativos estudados pela Lexicologia, no contexto do ensino de língua inglesa. Subsidiariamente, acreditamos que a Linguística de Córpus (doravante, LC) desempenhe um papel fundamental com foco na descrição, compreensão, ensino, entre outros. Uma maneira de se estudar a linguagem ou de como chegar até ela, pode ser por meio das contribuições dessa área. A utilização de córpus sempre foi um recurso Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 777 empregado em pesquisas linguísticas (ALUISIO; ALMEIDA, 2006). Para tanto, usaremos a abordagem da LC como corpo de linguagem natural (autêntica) que pode ser usado como base para pesquisa linguística. Na presente pesquisa, essa abordagem possibilitará a coleta dos dados necessários para a análise, fornecendo evidências advindas do processamento de uma grande quantidade de textos e das palavras neles presentes. Dessa maneira, realizamos uma exploração do conteúdo lexical dos textos enciclopédicos para aplicações no ensino. Recorremos à conceituação de Berber Sardinha (2004) para deinir essa abordagem linguística: A Linguística de Córpus ocupa-se da coleta e exploração de corpora, ou conjuntos de dados linguísticos textuais que foram coletados criteriosamente com o propósito de servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. Como tal, dedicase à exploração da linguagem através de evidências empíricas, extraídas por meio de computador. (BERBER SARDINHA, 2004, p. 325). A investigação no âmbito da LC leva em consideração uma série de fatores no desenvolvimento de corpora eletrônicos, como destaca Berber Sardinha (2004, 2012): origem: os dados devem ser autênticos; propósito: o córpus deve ter a inalidade de ser objeto de estudo; composição: os dados do córpus devem ser criteriosamente escolhidos; formatação: os dados devem ser legíveis por computadores; representatividade: deve representar uma linguagem ou variedade; extensão: deve ser vasto para se tornar representativo. O trabalho com córpus também exige a observância de certas características para que possamos enxergar uma tipologia. Berber Sardinha (2004, 2012) destaca sete elementos: modo: pode ser oral ou escrito; tempo: sincrônico, diacrônico, histórico e contemporâneo; seleção: amostragem, monitor, dinâmico, estático e equilibrado; conteúdo: especializado, regional e multilíngue; autoria: aprendiz (não nativo) e língua nativa; disposição interna: paralelo e alinhado; inalidade: estudo, referência e treinamento. Berber Sardinha (2012) destaca que o avanço dos recursos computacionais contribuiu para conferir rapidez e capacidade de processamento de dados linguísticos. Ao adotar uma abordagem empirista da linguagem, compreendida como um sistema probabilístico, sugere que 778 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 existe uma primazia dos dados provenientes da observação da linguagem, em geral, reunidos sob a forma de um córpus (BERBER SARDINHA, 2004). Embora o escopo dessa área de estudos da linguagem possa ser deinido em termos do que as pessoas fazem com corpora, seria um engano supor que a LC seja somente um meio rápido de descrever como a linguagem funciona. A análise de um cóorpus pode revelar, e frequentemente revela, fatos a respeito de uma língua que nunca se pensou em procurar (KENNEDY, 1998) – o que torna a língua um objeto de estudo sem precedentes. Para o ensino de línguas estrangeiras, a LC pode fornecer insumos relevantes no que se refere à frequência de palavras, às colocações, ao estudo de ocorrência e coocorrência de determinados itens. Um córpus de aprendizes, por exemplo, possibilita identiicar pontos que apresentam mais diiculdades ao aprendiz. O professor ou o pesquisador tem a seu dispor ferramentas computacionais que revelam em poucos segundos informações preciosas. Assim, a pesquisa baseada em córpus pode ser desenvolvida de modo a lançar luz sobre certos usos, o que favorece uma tomada de consciência. Corpora da ordem de milhões de ocorrências retratam a língua em movimento, tal como é usada pelos falantes de determinada comunidade linguística. O professor ou o pesquisador passa a poder contar com a observação direta dos fenômenos linguísticos, o que garante certo nível de coniança ao trabalho, uma vez que os eventos são retratados tal como ocorrem e não como se acredita que possam ocorrer. Hunston (2010, p. 137) atesta que o córpus tem um impacto direto na atividade proissional do professor de língua estrangeira de duas maneiras: em primeiro lugar, modiica a maneira pela qual a língua é percebida, a partir das descrições linguísticas e, em segundo lugar, pode ser explorado para produzir material de ensino, formando uma base para o planejamento de novos conteúdos e metodologia. Biber, Conrad e Reppen (2004) destacam que uma das grandes vantagens de uma abordagem baseada em córpus é que ela proporciona um alcance e uma idedignidade antes impossível. Vale ressaltar que as análises baseadas em córpus não estão limitadas meramente a uma análise quantitativa estanque. É essencial que o trabalho com córpus possibilite a inclusão de análises de cunho qualitativo a respeito dos padrões quantitativos discutidos na pesquisa. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 779 3 Metodologia A presente pesquisa tem cunho exploratório, uma vez que tem como objetivo principal o aprimoramento de ideias que envolvem levantamento bibliográico e análise de exemplos que instiguem a compreender o assunto em tela. Embora possa ser rotulada como exploratória, a pesquisa tem, também, características descritivas. Utilizamos o software VocabProile (VP), versão 4 para traçar o peril lexical dos artigos tanto na SEW quanto na Wikipedia. Como explica Silva (2011), o VP é software de tratamento linguístico que divide o texto em várias faixas de frequência lexical e fornece como resultado um peril lexical em termos quantitativos. O software analisa as palavras do texto nele inserido por meio da comparação com seu próprio banco de dados, ou seja, tomando como referência as listas de palavras pré-carregadas, é executado o trabalho de comparação entre a palavra arquivada no VP e as palavras do texto inserido para a pesquisa. Ainda segundo Silva (2011), o resultado é a identiicação das palavras e a indicação da faixa de frequência à qual a palavra pertence: K1 (as primeiras 1.000 palavras mais frequentes da língua inglesa), K2 (as próximas 1.000 palavras mais frequentes), AWL (as palavras mais comuns encontradas em textos acadêmicos) e OFF (todas as palavras que não pertencem às faixas anteriores). Com relação aos procedimentos metodológicos, por meio do processo de copiar (“ctr+c”) e colar (“ctr+v”), salvamos e organizamos os 35 melhores artigos da SEW (na opinião do editor do site), no formato texto simples. Cada artigo foi salvo em um arquivo independente. O mesmo procedimento foi adotado na recolha dos 35 artigos da Wikipedia. Utilizando o título do artigo da SEW, procuramos seu par na Wikipedia, para então criar outros arquivos. Por exemplo, o artigo intitulado Jupiter foi pesquisado nas duas enciclopédias. Ao inal, constituímos um córpus com 70 artigos em língua inglesa. Os dados foram tabulados em uma planilha eletrônica do MS Excel 2016, com duas abas, uma para cada enciclopédia. Após a tabulação dos dados oriundos do VocabProfile, os cálculos utilizados foram “soma” e “desvio-padrão”, funções de fórmulas da própria planilha. Optamos por incluir também o cálculo do desvio-padrão, que é uma medida de dispersão, ou seja, uma medida de variabilidade dos dados de uma distribuição de frequências. Em outras palavras, o desvio-padrão 780 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 possibilita que sejam medidos os valores para cima ou para baixo da média. Consequentemente, o desvio-padrão pode ser usado para descrever o grau de dispersão na distribuição da frequência. Todos os dados obtidos e tabulados podem ser consultados nos Apêndices A e B. 4 Resultados e análise dos dados Nesta seção, será estudado o peril lexical dos artigos das duas enciclopédias. Na sequência, uma exposição do número de types (palavras consideradas isoladamente, sem suas repetições no texto) e tokens (palavras consideradas com as repetições) presentes na amostra. Depois, uma comparação de forma mais pontual com base no texto enciclopédico integral de um verbete para ilustrar uma análise linguístico-estatística. Por im, será apresentado um excerto oriundo do texto enciclopédico das duas enciclopédias. Nos 35 artigos da SEW selecionados para a análise amostral, percebe-se que, na média, 75,07% do conteúdo lexical pertence ao grupo das primeiras 1.000 palavras mais frequentes do inglês, ou seja, encontram-se na faixa K1. Como pode ser visualizado na Tabela 1, tendo em mente que o valor do desvio-padrão é 2,27, podemos airmar que existe uma lutuação para mais e para menos na amostra. Isso quer dizer que, na maioria dos casos, a variação dos artigos encontra-se entre 77,34 e 72,8. No que se refere à Wikipedia, levando-se em conta o desvio-padrão, vemos uma variação na faixa K1 que vai de 66,01 a 77,33. Graças à variação do peril lexical na faixa K1 nas duas enciclopédias, podemos notar que ambas acabam apresentando índices equivalentes nesse nível – o que atesta que vários textos das duas enciclopédias compartilham palavras do mesmo grupo de frequência. Dito de outra forma, vários textos da SEW, do ponto de vista lexical, não fazem jus ao título de “simples”. 781 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 TABELA 1 – Peril lexical (%) dos artigos das duas enciclopédias colaborativas SEW DP W DP K1 75,07 2,27 71,67 5,66 K2 5,74 1,78 5,66 1,41 AWL 2,54 1,31 4,29 2,07 OFF 16,73 2,19 18,37 2,38 Fonte: Dados da presente pesquisa. Nota: SEW: Simple English Wikipedia; W: Wikipedia; DP: Desvio-padrão. Ainda consultando a Tabela 1, percebemos que as palavras pertencentes à faixa K2 apresentam uma porcentagem de uso nos textos praticamente idêntico nas duas enciclopédias. Do ponto de vista lexical, a SEW não se mostra como mais simples em comparação com a Wikipedia. Efetivamente, observamos uma baixa utilização do vocabulário acadêmico na SEW. Porém, ao avaliarmos a variação do desvio-padrão, mais uma vez, do ponto de vista lexical, a SEW acaba se mostrando praticamente no mesmo nível da Wikipedia, sem se diferenciar pela simplicidade de seu vocabulário. Por último, os nomes próprios e as palavras menos comuns são abarcadas na faixa OFF. Não é percebida diferença que justiique o nome de simples para a SEW. O desvio-padrão indica que as duas enciclopédias mantêm uma porcentagem muito próxima no que se refere à porcentagem de nomes próprios e palavras menos comuns em seus textos. Frente ao exposto, do ponto de vista lexical, a diferença entre o peril lexical dos textos da SEW e dos textos da Wikipedia é mínima. Reiteramos que essa diferença é tão pequena que prejudica o título de “simples” da SEW. A causa da ausência de diferença entre ambas enciclopédias pode residir no fato de os autores não serem especialistas na elaboração de material didático para aprendizes, tendo em mente o conteúdo dos verbetes da SEW. Outra possível explicação pode estar no julgamento e nos critérios subjetivos para a seleção dos artigos pelo editor da SEW. Quais seriam as razões que tornaram os 35 artigos da SEW os melhores? Paradoxalmente, a escolha pode ter se pautado muito mais pela presença de vocabulário menos simples em detrimento do vocabulário fundamental recomendado nas listas de palavras. 782 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 Com relação ao número de types e tokens presentes nas duas enciclopédias, podemos airmar que na Wikipedia, os artigos são mais extensos – conforme Tabela 2. Alguns artigos têm um tamanho duas vezes maior na Wikipedia quando comparados à SEW. No entanto, houve casos nos quais o artigo da SEW era maior que seu similar da Wikipedia. TABELA 2 – Número médio de types e tokens presentes nas duas enciclopédias SEW DP W DP Types 394,80 175,67 687,03 429,94 Tokens 1.583,40 1.054,24 3.433,66 2.922,83 Fonte: Dados da presente pesquisa. Nota: SEW: Simple English Wikipedia; W: Wikipedia; DP: Desvio-padrão. De fato, os textos da SEW analisados trazem em média 1.583 palavras, com um desvio-padrão de 1.054, conforme dados da Tabela 2. Essa constatação possibilita concluir que os textos da amostra analisada seguem a sugestão de que contenham por volta de 2.000 palavras (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2016). Os dados obtidos levam ao entendimento que as 2.000 palavras fazem referência aos tokens, número total de palavras do texto. Percebemos que os textos da Wikipedia costumam ser mais extensos. A im de proceder uma comparação de forma mais pontual, selecionamos o verbete BRAZIL e seu texto enciclopédico integral para ilustrar uma análise linguístico-estatística. O verbete em questão não faz parte da amostra analisada neste estudo, como pode ser visto no Apêndice. No entanto, sua escolha justiica-se porque servirá para atestar se as inferências quanto à qualidade dos melhores artigos encontram amparo em um texto que não está na categoria dos melhores artigos. A Figura 1 apresenta o resultado da análise obtida pelo processamento do texto da SEW no VocabProile: Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 783 FIGURA 1 – Peril lexical do texto enciclopédico do verbete BRAZIL na SEW Fonte: VocabProile (2017). Na SEW, como indica a Figura 1, percebemos o seguinte peril lexical: K1: 68,28%; K2: 3,03%; AWL: 2,62% e OFF: 26,07%. O número total de palavras (tokens) no texto é de 725. Existem 323 palavras diferentes (types) nesse texto. Os dados linguístico-estatísticos apresentados podem servir para chamar a atenção do aluno para determinadas palavras, como ressalta Rodrigues (2006), o que possibilita uma maior discussão, relexão e, consequente, retenção. 784 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 FIGURA 2 – Peril lexical do texto enciclopédico do verbete BRAZIL na Wikipedia Fonte: VocabProile (2017). Por sua vez, na Wikipedia, como indica a Figura 2, identiicamos o seguinte peril lexical: K1: 67,06%; K2: 4,26%; AWL: 6,81% e OFF: 21,87%. O número total de palavras (tokens) no texto é de 15.362. Existem 3.492 palavras diferentes (types) nesse texto. Recorrendo às informações tanto da Figura 1 quanto da Figura 2, no caso do conteúdo lexical do verbete BRAZIL, a soma das faixas K1 e K2 da SEW resulta no seguinte índice acumulado: 71,31%. A mesma somatória das faixas K1 e K2 da Wikipedia resulta no índice acumulado de 71,32%. Depreendemos que as enciclopédias encontram-se no mesmo patamar em termos lexicais, já que foi identiicado esse empate técnico. Essas descobertas ilustram a ideia de Kennedy (1998) de que a análise de um córpus pode revelar fatos a respeito da língua que nunca se pensou em procurar. Por limitação de espaço, a inserção do texto integral neste trabalho não é viável. Reproduzimos abaixo, então, um excerto do texto com as informações constantes na seção intitulada Geography do verbete BRAZIL na SEW: Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 785 Brazil has the world’s largest rainforest, the Amazon Rainforest. It makes up 40% of the country’s land area. Brazil also has other types of land, including a type of savanna called cerrado, and a dry plant region named caatinga. The most important cities are Brasília (the capital), Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo (the biggest city) and Vitória. Other cities are at list of largest cities in Brazil. Brazil is divided into 26 states plus the Federal District in ive regions (north, south, northeast, southeast and centrewest): North: Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins Northeast: Maranhão, Pernambuco, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Bahia Centre-West: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal/ Federal District Southeast: São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais South: Paraná, Santa Catarina and Rio Grande do Sul The country is the ifth largest in the world by area. It is known for its many rainforests and jungles. It is next to every country in South America except Chile and Ecuador. (SIMPLE ENGLISH WIKIPEDIA, 2017b). A leitura dessa seção revela a presença marcante de nomes próprios e uma preocupação em apresentar informações acerca da geograia brasileira. Retomando Leffa (2000), é possível que o aluno aprenda palavras novas nesse contexto signiicativo, que pode se dar por relações intratextuais, nas quais o signiicado da palavra desconhecida pode ser inferenciado dentro do próprio texto. Na sequência, um excerto do texto com as informações constantes na mesma seção intitulada Geography do verbete BRAZIL na Wikipedia: Brazil occupies a large area along the eastern coast of South America and includes much of the continent’s interior, sharing land borders with Uruguay to the south; Argentina and Paraguay to the southwest; Bolivia and Peru to the west; Colombia to the northwest; and Venezuela, Guyana, Suriname and France (French overseas region of French Guiana) to the north. It shares a border with every South American country except Ecuador and Chile. It also encompasses a number of oceanic archipelagos, such as Fernando de Noronha, Rocas Atoll, Saint Peter and Paul Rocks, 786 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 and Trindade and Martim Vaz. Its size, relief, climate, and natural resources make Brazil geographically diverse. Including its Atlantic islands, Brazil lies between latitudes 6°N and 34°S, and longitudes 28° and 74°W. Brazil is the ifth largest country in the world, and third largest in the Americas, with a total area of 8,515,767.049 km2 (3,287,956 sq mi),[156] including 55,455 km2 (21,411 sq mi) of water.[15] It spans four time zones; from UTC−5 comprising the state of Acre and the westernmost portion of Amazonas, to UTC−4 in the western states, to UTC−3 in the eastern states (the national time) and UTC−2 in the Atlantic islands. Brazil is the only country in the world that has the equator and the Tropic of Capricorn running through it. It is also the only country to have contiguous territory both inside and outside the tropics. Brazilian topography is also diverse and includes hills, mountains, plains, highlands, and scrublands. Much of the terrain lies between 200 metres (660 ft) and 800 metres (2,600 ft) in elevation. The main upland area occupies most of the southern half of the country. The northwestern parts of the plateau consist of broad, rolling terrain broken by low, rounded hills. The southeastern section is more rugged, with a complex mass of ridges and mountain ranges reaching elevations of up to 1,200 metres (3,900 ft). These ranges include the Mantiqueira and Espinhaço mountains and the Serra do Mar.[158] In the north, the Guiana Highlands form a major drainage divide, separating rivers that low South into the Amazon Basin from rivers that empty into the Orinoco River system, in Venezuela, to the north. The highest point in Brazil is the Pico da Neblina at 2,994 metres (9,823 ft), and the lowest is the Atlantic Ocean. Brazil has a dense and complex system of rivers, one of the world’s most extensive, with eight major drainage basins, all of which drain into the Atlantic. Major rivers include the Amazon (the world’s second-longest river and the largest in terms of volume of water), the Paraná and its major tributary the Iguaçu (which includes the Iguazu Falls), the Negro, São Francisco, Xingu, Madeira and Tapajós rivers. • Geography of Brazil • Trindade and Martin Vaz is a volcanic archipelago off the coast of the Brazil. • Serra dos Órgãos, part of the Serra do Mar. • Chapada Diamantina, in the Chapada Diamantina National Park, Bahia. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 787 • Iguazu Falls, Paraná, is the largest waterfalls system in the world. • Pico da Neblina, Amazonas, the highest mountain in Brazil. • Cavern in Bonito, Mato Grosso do Sul. (WIKIPEDIA, 2017b). Nesse caso, considerando apenas as informações do excerto por ora analisado, podemos perceber que se trata de uma seção mais longa. O presente excerto pode ser dividido em diferentes grupos, como lembra Nation (2000). Essa divisão possibilita a criação de exercícios (orais e escritos) de forma a estudar e ixar cada grupo de palavras. O aporte dos recursos computacionais apresenta-se como uma ferramenta importante nessa perspectiva de ensino. Haja vista a facilidade de acesso aos verbetes das duas enciclopédias, entendemos que ambas podem servir como base para a aquisição ou prática de vocabulário, dentro ou fora da sala de aula. Entendemos que o texto enciclopédico conigura-se como um instrumento de input (entrada de informações) estimulante para o aprendizado da língua inglesa, já que relete o uso de vocabulário e de estruturas gramaticais – podendo ser selecionado em função dos assuntos preferidos dos estudantes. 5 Considerações inais Iniciamos o presente trabalho abordando questões relevantes para o ensino de língua inglesa com a Lexicologia e a Linguística de Córpus. Acreditávamos que essas linhas de estudo seriam fundamentais para a relexão entre o vocabulário e o texto enciclopédico no ensino de língua inglesa. Essa pesquisa procurou lançar luz sobre uma estratégia de ensino de vocabulário, com foco no texto enciclopédico eletrônico. O contato do aprendiz com o léxico frequente pode contribuir no para ampliar seu repertório lexical. Ao longo do trabalho, apresentamos o texto enciclopédico como um recurso didático para o enriquecimento e prática de vocabulário em língua inglesa; procedemos uma análise do peril lexical de 35 artigos da Simple English Wikipedia e 35 artigos análogos da Wikipedia; comparamos os artigos nas duas enciclopédias sob um viés quantitativo e checamos se os artigos adaptados da enciclopédia destinada aos aprendizes realmente empregam vocabulário mais elementar em seus textos. 788 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 Os resultados obtidos indicam que, do conteúdo lexical dos textos da SEW, 80,81% das palavras dos textos encontram-se nas faixas K1 e K2 – o vocabulário fundamental. Da mesma forma, os resultados revelam que do conteúdo lexical dos textos da Wikipedia, 77,33% das palavras dos textos encontram-se nas faixas K1 e K2. Como estamos tratando de médias, merece atenção a variação indicada pelo desvio-padrão. A variação em todas as categorias (K1, K2, AWL e OFF) mostra que a diferença entre as duas enciclopédias é muito pequena – o que, se não as torna muito semelhantes, consegue torná-las muito pouco distintas, em uma visão léxico-quantitativa. Apesar de haver uma preocupação com vocabulário adaptado e mais simples e várias sugestões de listas, a análise da amostra de textos do presente estudo indica que, levando em consideração apenas o peril lexical, a SEW não se justiica. Não existe uma diferença expressiva com relação à qualidade das palavras utilizadas entre a SEW e Wikipedia. A utilização das listas Basic English 850, Basic English 1500, Voice of America Special English Word Book e o Inglês Simpliicado da European Association of Aerospace Manufacturers parece não ter garantido uma acuidade na seleção do vocabulário empregado nos textos. Com base na amostra de nosso estudo, parece ser equivocado o termo “Simple English”. Portanto, nossa hipótese inicial de o conteúdo lexical da Simple English Wikipedia ser diferente do encontrado na Wikipedia não se conirmou. A despeito da não diferenciação em termos da qualidade lexical, ou seja, da grande ainidade entre a Simple English Wikipedia e a Wikipedia, a leitura de seus textos pode ser benéica em uma dupla perspectiva: além de expor os aprendizes a um grande número de vocabulário comum na língua inglesa, também pode potencialmente ser usada dentro ou fora da sala de aula. Em tempo, ressaltamos que o item que pode diferenciar as duas enciclopédias analisadas seja a estrutura gramatical, que não foi contemplada nesse trabalho. Destacamos que a leitura aqui proposta contempla apenas uma das quatro habilidades comunicativas da língua inglesa, nomeadamente a leitura. Não obstante, o vocabulário adquirido/praticado implicará a autonomia lexical necessária para a consecução das demais habilidades, seja na recepção ou na produção linguística. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 789 A presente pesquisa traz uma contribuição para o enriquecimento das discussões relacionadas ao vocabulário fundamental, utilização de software de análise linguística e, neste caso, do texto enciclopédico, conhecimentos que são relevantes para pesquisadores, professores em atuação, professores em formação e para formadores de professores de língua inglesa. Referências ALUISIO, S. M; ALMEIDA, G. M. B. O que é e como se constrói um corpus? Lições aprendidas na compilação de vários corpora para pesquisa linguística. Calidoscópio, São Paulo, v. 4, n. 3, p. 155-177, 2006. BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. Barueri: Manole, 2004. BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. In: GONÇALVES, A. V.; GÓIS, M. L. S. (Org.). Ciências da linguagem: o fazer cientíico? Campinas: Mercado de Letras, 2012. v. 1, p. 321-347. BIBER, D.; CONRAD, S.; REPPEN, R. Corpus Linguistics: investigating language structure and use. 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Acesso em: 21 ago. 2017. 791 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 APÊnDICE A – Peril lexical dos textos dos verbetes da Wikipedia 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 Verbetes Hanami Geisha Kamikaze Evolution Violin Ana Ivanović Daniela Hantuchová American Airlines Flight 11 Anna Kournikov Jessica Alba Powderinger Baseball Uniform Red Hot Chili Peppers Gothic Architecture Crich Tramway Village Ipswich Town F.C. Bobby Robson Bloc Party Tropical Storm Barry Victoria Line Hermann Göring Jupiter Portman Road Blackpool Tramway Billy Graham Yellow (song) Tropical Storm Gabrielle Kingsway Tramway Subway Hurricane Vince Epping Ongar Railway City of Manchester Stadium 1910 Cuba hurricane Dan Kelly Tropical Depression Saturn (Planet) Fonte: Wikipedia. K1 K2 AWL OFF Types Tokens 72,47 70,37 75,03 5,18 6,4 4,55 2,02 5,24 2,07 20,33 17,99 18,35 16,67 16,59 21,3 24,08 20,22 21,93 17,11 18,72 17,45 18,64 22,26 19,64 15,12 18,21 19,36 23,17 14,23 19,94 16,51 16,81 18,19 20,52 18,76 18,11 14,86 16,47 15,76 18,25 14,78 17,23 15,61 19,87 391 1284 437 1381 2097 655 542 591 988 357 322 392 364 1049 57 252 901 525 339 473 1531 382 195 901 1011 1373 352 364 549 806 744 535 524 619 763 1383 5818 1419 8313 15508 4795 5388 2214 5168 1124 1220 1533 1720 5653 90 971 4387 2204 1323 1507 7479 1613 663 4901 4349 6803 1203 1415 3301 3427 3220 1730 2618 2266 3452 67,84 4 11,49 68,78 70,08 68,21 68,5 6,24 5,89 5,58 6,41 8,38 2,72 2,13 4,86 5,77 4,29 77,65 72,35 69,68 73,13 3,02 5,66 7,11 5,91 2,21 3,26 5,76 2,32 68,01 66,38 4,96 6,39 72,32 75 70,23 70,65 3,57 7,43 7,05 5,2 4,46 2,45 4,51 4,79 65,74 6,21 4,88 75,98 71,54 79,61 73,9 4,72 4,12 2,74 6,02 72,34 5,06 5,07 4,4 1,14 3,26 71,2 71,61 68,07 78,58 4,75 6,02 8,78 3,61 3,57 3,61 5,04 2,95 75,05 6,02 2,45 71,02 69,26 72,07 75,06 7,06 6,09 8,52 6,7 6,17 6,4 4,63 1,01 7,52 5,81 69,82 4,25 6,06 71,06 4,41 792 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 769-792, 2018 APÊnDICE B – Peril lexical dos textos dos verbetes da SEW 01 02 03 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 Verbetes Hanami Geisha Kamikaze Evolution Violin Ana Ivanović Daniela Hantuchová American Airlines Flight 11 Anna Kournikov Jessica Alba Powderinger Baseball Uniform Red Hot Chili Peppers Gothic Architecture Crich Tramway Village Ipswich Town F.C. Bobby Robson Bloc Party Tropical Storm Barry Victoria Line Hermann Göring Jupiter Portman Road Blackpool Tramway Billy Graham Yellow (song) Tropical Storm Gabrielle Kingsway Tramway Subway Hurricane Vince Epping Ongar Railway City of Manchester Stadium 1910 Cuba hurricane Dan Kelly Tropical Depression Saturn (Planet) Fonte: Simple English Wikipedia. K1 K2 AWL OFF Types Tokens 73,74 77,37 5,19 4,24 1,98 2,51 19,08 15,87 19,35 13,95 15,25 16,86 20,87 17,98 18,41 17,26 18,76 16,84 18,67 18,42 19,18 14,93 18,26 16,94 17,63 13,03 17,03 16,46 16,14 18,96 19,05 14,91 14,44 15,12 17,75 11,53 16,72 12,19 17,14 12,96 17,58 345 455 328 1211 341 551 229 311 278 354 322 403 364 655 294 253 288 369 557 460 269 376 225 305 539 408 308 365 289 340 512 362 524 176 452 1060 1606 992 6188 1267 2312 823 903 895 1117 1217 1921 1716 4222 889 963 1092 1769 2733 1569 945 1528 842 1154 1882 1307 1031 1409 945 1220 1963 935 2378 450 2176 74,07 4,96 1,63 74,72 75,99 76,95 70,96 4,86 8,16 4,42 6,73 7,36 0,6 1,76 1,44 72,48 7,36 2,18 74,66 77,56 72,3 73,42 5,2 2,96 5,67 5,71 1,73 2,22 3,27 4,03 73,08 5,92 2,32 74,61 74,27 75,09 69,76 5,58 4,55 7,51 7,78 1,39 2 2,47 4,19 75,13 5,14 2,78 73,09 78,16 79,02 79,44 6,48 5,16 2,55 2,68 2,8 3,66 1,4 1,42 74,5 6,57 2,79 75 75,74 73,37 73,53 3,86 3,57 8,72 9,29 2,18 1,63 2,99 2,74 78,31 3,61 2,95 74,41 79,84 74,08 77,22 74,98 74,85 75,64 7,75 5,66 6,11 9,41 7,11 6,38 4,05 2,09 2,97 3,1 1,18 0,77 5,8 2,73 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Distinção de ponto de articulação no Português de Belo Horizonte: exemplos em plosivas e fricativas Distinction of Place of Articulation in Brazilian Portuguese: Examples in Plosives and Fricatives Rui Rothe-Neves Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil rothe-neves@ufmg.br Fabiana Andrade Penido Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil fabianapenido@gmail.com Resumo: Este artigo trata das pistas auditivas utilizadas para a distinção de ponto de articulação no português brasileiro (PB). Na primeira parte, descrevemos as propriedades acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] seguidas da vogal [a]. Foram analisadas amostras de fala de sete falantes nativos de PB registrados em Belo Horizonte. Foram obtidos valores de duração semelhantes para [ʃ] e [s], bem como para a fase de soltura da oclusão oral nas plosivas. A fase de pré-sonorização foi maior para [b] do que para [d]. Picos de amplitude mais proeminentes e concentração de energia em regiões de maior frequência foram obtidos em [s] quando comparado a [ʃ]. Registramos picos de energia em regiões de maior frequência para [d] em comparação com [b]. Finalmente, F2 foi maior no início da transição de formantes após [ʃ] e [d] quando comparado a [s] e [b]. Na segunda parte, oito falantes nativos de Belo Horizonte realizaram uma tarefa de classiicação. Tanto a transição de F2 e F3 quanto o centro de gravidade foram usados para distinção de / ʃapa/-/sapa/. O uso do ruído fricativo foi diferente em razão da transição de formantes, o que é compatível com a descrição acústica em que a eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.793-842 794 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 transição foi praticamente nula para [s]. Os participantes não utilizaram a pista de burst para a classiicação de /bata/-/data/, apenas a transição de formantes. Os resultados conirmam que diferenças linguísticas afetam a percepção da distinção de ponto de articulação e mostram quais características da fala são utilizadas por falantes do PB. Palavras-chave: percepção da fala; análise da fala; características acústicas; segmentos fonéticos; fonética; linguística. Abstract: This article deals with the auditory cues used for the distinction of the place of articulation in Brazilian Portuguese (PB). In the irst part, we describe the acoustic properties of the fricatives [ʃ] and [s] and the stops [b] and [d] followed by the vowel [a] of Brazilian Portuguese (BP). We analyzed speech samples of seven native BP speakers recorded in Belo Horizonte. Similar duration values were obtained for [ʃ] and [s], as well as for the release phase of oral occlusion in the stops. The prevoicing phase was longer for [b] than for [d]. More prominent amplitude peaks and energy concentration in higher frequency regions were obtained in [s] when compared to [ʃ]. We registered energy peaks in higher frequency regions for [d] as compared to [b]. Finally, F2 was higher at the beginning of formant transition for [a] following [ʃ] and [d] when compared to [s] and [b]. In the second part, eight native speakers of Belo Horizonte performed a classiication task. Both the F2 and F3 transition and the center of gravity aided in the distinction of /ʃapa/-/sapa/. The use of fricative noise was different as a function of formant transition, what is compatible with the acoustic description in which the transition was almost null for [s]. For /bata/-/data/, the participants did not use the burst cue for the classiication of [b] and [d], only the formant transition. The results conirm that linguistic differences affect the perception of the place of articulation and show which characteristics are used by BP speakers. Keywords: speech perception; speech analysis; acoustical properties; phonetic segments; phonetics; linguistics. Recebido em 4 de maio de 2017 Aceito em 31 de outubro de 2017 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 795 1 Introdução Este estudo investiga, por meio de análise acústica e de uma tarefa de classiicação, as pistas auditivas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/ sapa/ e /bata/-/data/. O termo “pistas auditivas” refere-se à informação do sinal acústico que permite ao ouvinte perceber a existência de um contraste fonológico (WRIGHT, 2004). Por exemplo, como a principal propriedade acústica que diferencia as fricativas [ʃ] e [s] é a altura da frequência do ruído fricativo, essa pista pode ser utilizada pelos ouvintes para distinguir esses sons (HARRIS, 1958). No caso das plosivas [b] e [d], a pista que melhor auxilia na distinção desses sons é a diferença entre as amplitudes do ruído de explosão (do inglês, burst) que se registra na fase de soltura da oclusão. A transição dos formantes vocálicos também auxilia os ouvintes na distinção das fricativas e das plosivas. No português brasileiro (PB), há alguns estudos acústicos sobre fricativas e plosivas com grupos de falantes, porém poucos tratando especiicamente das propriedades acústicas relevantes para investigar a percepção desses sons (SANTOS, 1987; RUSSO; BEHLAU, 1993; BARBOSA, 1999; HAUPT, 2007), tais como os valores de amplitudes do ruído fricativo e os valores das amplitudes do burst no caso das plosivas. Além disso, não nos foi possível encontrar estudos do PB que tenham realizado uma investigação da pista de transição dos formantes vocálicos seguintes às fricativas e às plosivas, na região de transição e na região de estabilização dos formantes. Finalmente, tanto quanto nos seja dado conhecer, nenhum estudo procedeu à investigação da percepção da fala manipulando essas características acústicas. Ao possibilitar a comparação de segmentos produzidos em diferentes pontos de articulação, por exemplo, os estudos sobre a acústica desses sons podem revelar características da produção do som. Entretanto, não podem responder à pergunta: em que ponto os falantes da língua deixam de perceber um som e passam a perceber o outro? Com este artigo, espera-se poder fazer afirmações sobre as propriedades acústicas que os falantes usam para diferenciar as fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] associadas a vogal [a] do PB, em posição inicial de palavra, de modo a enriquecer a caracterização desses segmentos. Para isso, na primeira parte deste texto, analisamos e descrevemos propriedades acústicas dessas consoantes seguidas da vogal [a] em posição inicial de palavra (estudo 1). Na segunda parte, realizamos um experimento de classiicação com os estímulos sintetizados, em que a 796 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 manipulação das propriedades acústicas descritas no estudo 1 possibilitou avaliar a distinção entre as fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] por falantes da língua (estudo 2). Apresentam-se a seguir as propriedades acústicas sabidamente utilizadas para a distinção de ponto de articulação, com base em estudos sobre o PB e outras línguas. Em seguida, relatam-se o estudo de fonética acústica e, então, o experimento de classiicação. 2 Estudos precedentes Diversos autores contribuíram para a compreensão das propriedades acústicas dos sons fricativos (FANT, 1960; HEINZ; STEVENS, 1961; HIXON, 1966; LADEFOGED; MADDIESON, 1996), cujas características espectrais dependem sobretudo do lugar da constrição no trato vocal, do formato do orifício na constrição e da queda de pressão nessa região. Durante a produção do [s], temos a formação de um canal mais estreito. O canal mais largo para o [ʃ] faz o ar ter menos velocidade. Devido à diminuição da velocidade da corrente de ar, ao arredondamento dos lábios (característica coarticulatória desse som em diversas línguas) e à extensão maior do trato vocal depois da constrição, [ʃ] tem maior concentração de energia em regiões mais baixas do espectro quando comparado a [s].1 Embora as características articulatórias sejam semelhantes, há diferenças acústicas entre as línguas. No inglês, o espectro de [ʃ] aparece com a principal concentração de energia na faixa de frequência de 2-3 kHz. Para [s], o espectro mostra um aumento de energia que começa em torno de 3,56-4,4 kHz (STEVENS; KLATT, 1968). No italiano, observou-se a frequência central de [s] em torno dos 4 kHz e de [ʃ], em torno dos 2 kHz (SHINDLER, 1974). No espanhol argentino, [s] apresenta picos espectrais ao redor de 5-8 kHz, e [ʃ], por volta de 2,5-5 kHz (BORZONE DE MANRIQUE; MASSONE, 1981). No português europeu, Lacerda (1982) concluiu, por meio de testes perceptivos, que [s] é mais bem percebido quando o estímulo tem altos níveis de intensidade e picos espectrais na região de 5 kHz, e [ʃ] é normalmente associado a altos níveis de intensidade juntamente com 1 Esta apresentação é restrita por razões de espaço. Para detalhes sobre a produção de sons da fala em geral, ver Marchal e Reis (2012) e, para uma introdução à análise acústica dos sons da fala, Barbosa e Madureira (2015). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 797 picos espectrais na região dos 3 kHz. No português brasileiro, [s] aparece como um som mais agudo, com faixa de frequência entre 4,5-8 kHz, enquanto a alveolopalatal [ʃ] também apresenta uma faixa de frequência ampla, semelhante a [s], porém mais grave, entre 2,5-6 kHz (RUSSO; BEHLAU, 1993; SANTOS, 1987; HAUPT, 2007). Gordon, Barthmaier e Sands (2002) compararam fricativas não-vozeadas em sete línguas da América do Norte, Escócia e ásia. Um dos parâmetros analisados foi o centro de gravidade (do inglês, center of gravity, CG), que pode ser deinido como a frequência abaixo (ou acima) da qual estão concentradas 50% da energia de determinado som. Indica, portanto, a faixa de frequências mais intensas no ruído fricativo. Os autores concluíram que a fricativa [s] também apresentou CG maior do que a fricativa [ʃ] em seis línguas. O valor do CG da fricativa [ʃ] foi maior somente em tuda, uma língua dravidiana falada na Índia. Outro parâmetro que parece importante para distinção nos sons fricativos é a duração. Diversos estudos evidenciaram que os sons fricativos alveolares [s, z] são mais longos que os alveolopalatais [ʃ, ʒ], e os sons não-vozeados são, por sua vez, mais longos do que os vozeados (STEVENS; KLATT, 1968; BORZONE DE MANRIQUE; MASSONE, 1981; SANTOS, 1987; HAUPT, 2007). Quanto às consoantes plosivas, são segmentos produzidos com o bloqueio total da corrente de ar em algum ponto do trato vocal, com posterior soltura desse bloqueio. A plosiva bilabial vozeada [b] é produzida por meio da constrição dos lábios com vibração concomitante das pregas vocais, enquanto a plosiva [d] é produzida com a constrição da ponta da língua contra a face interna dos dentes incisivos superiores ou dos alvéolos, também com vibração das pregas vocais (LADEFOGED; MADDIESON, 1996). Do ponto de vista da dinâmica articulatória, a produção das plosivas é identiicada por duas fases distintas: a fase de oclusão e a fase de soltura (ISTRE, 1983). A fase de oclusão corresponde ao intervalo em que os articuladores interrompem completamente a passagem de ar. Essa fase é caracterizada somente pelo período de silêncio, no caso das plosivas não-vozeadas, ou pelo período de silêncio associado à sonorização, no caso das plosivas vozeadas. A fase de soltura, que corresponde à liberação da corrente de ar previamente bloqueada em algum ponto do trato vocal, é caracterizada pela espícula de plosão ou burst, seguida da região de transição dos formantes para a vogal seguinte. Em geral, observa-se uma 798 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 espícula mais intensa para as plosivas não vozeadas [p, t, k] do que para as plosivas vozeadas [b, d, g]. O burst se mostrou uma pista importante para a distinção de consoantes plosivas (STEVENS; BLUMSTEIN, 1978) – o burst das plosivas bilabiais tem energia concentrada em regiões de frequência mais baixas quando comparado ao das plosivas alveolares. Em português brasileiro, os segmentos plosivos [p, b] são os mais graves e têm energia em torno de 0,5-1,5 kHz. Os segmentos [t, d] são considerados os mais agudos, com energia concentrada por volta de 4 kHz, com um pico secundário fraco, em torno de 0,5 Hz (RUSSO; BEHLAU, 1993). Por im, também a transição de formantes ao início ou ao im da consoante são pistas auditivas importantes para o ponto de articulação. “As cavidades dentro do trato vocal agem como um iltro multirressoante sobre o ar transmitido e nele imprimem uma estrutura correspondente de formantes superposta à ina estrutura harmônica” (FANT, 1973, p. 5). Os três primeiros formantes (F1, F2 e F3) são os mais importantes e considerados suicientes para diferenciar as vogais. A transição, isto é, a mudança nos valores dos formantes nessa região é considerada uma pista auditiva importante para distinções lingüisticamente relevantes. Por exemplo, espera-se observar diferenças nos valores do segundo formante vocálico (F2) da vogal [a] que segue as fricativas [s] e [ʃ], com uma frequência mais alta de F2 na vogal que segue a fricativa [ʃ], quando comparada àquela que segue [s].2 Assim como nas fricativas, a diferença entre [ba] e [da] se concentra principalmente na região de transição de F2. Dessa forma, espera-se veriicar valores do F2 para [da] maiores quando comparado a [ba], na região de transição dos formantes. 3 Análise acústica Nesta parte do artigo, analisamos e descrevemos as propriedades acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] associadas à vogal [a], em posição inicial de palavra. A análise visa a uma descrição acústica desses sons considerando as características apresentadas na literatura, incluindo aquelas ainda não descritas para o PB. A explicação físico-acústica dos movimentos dos formantes em função das consoantes vizinhas foi oferecida pela Teoria da Perturbação; ver apresentação resumida em Barbosa e Madureira (2015, p. 106 et seq.) 2 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 799 3.1 Métodos Os participantes deste estudo foram sete adultos do sexo masculino, falantes nativos do português brasileiro de Belo Horizonte (MG), com faixa etária entre 20 e 45 anos de idade. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após serem informados sobre os aspectos gerais da pesquisa. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE – 62617616.0.0000.5149). As fricativas [ʃ] e [s] e as plosivas [b] e [d] foram registradas em início de palavra, seguidas da vogal [a], nas palavras “chapa”, “sapa”, “bata” e “data”. A gravação foi realizada em uma sala acusticamente tratada, com a utilização de um notebook (Macbook Air), de um microfone de cabeça (Philips) e do software Praat (versão 5.2.35) (BOERSMA; WEENINK, 2011), com taxa de amostragem de 22,05 kHz. Cada palavra foi produzida três vezes por cada um dos sete participantes. As palavras foram inseridas na seguinte frase veículo: “Eu digo _______ para ela”. Após a gravação, os dados de fala foram etiquetados e analisados. A análise acústica dos dados de fala iniciou-se pela inspeção visual do sinal de fala e do espectrograma. Em seguida, todas as produções dos informantes foram segmentadas e etiquetadas, ou seja, cada som foi identiicado em sua porção inicial e inal. Após a realização da etiquetagem, os sons foram analisados separadamente. A análise acústica dos segmentos fricativos, plosivos e da vogal [a] compreendeu os seguintes parâmetros: (a) (b) (c) (d) (e) (f) (g) Duração total dos segmentos fricativos, plosivos e vocálicos; Centro de gravidade (CG) do ruído fricativo; Picos de amplitude e formantes do ruído fricativo; Duração da pré-sonorização do segmento plosivo; Duração da soltura da oclusão (do inglês, burst), representada pela barra de plosão, nos segmentos plosivos; Picos de amplitude e formantes da soltura da oclusão; Valores dos três primeiros formantes vocálicos (F1, F2 e F3) nas porções inicial e estável da vogal. Descrevemos em maior detalhe a maneira como se obtiveram essas medidas para cada classe de segmento analisada. 800 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 3.1.1 Propriedades acústicas dos segmentos fricativos O ruído fricativo foi selecionado excluindo-se a região de transição de formantes da vogal [a] seguinte às fricativas. Selecionado o ruído, os valores dos formantes foram obtidos por LPC com base nos seguintes parâmetros de análise: quantidade máxima de formantes = 6; formante máximo = 8,5 kHz; janela = 0,025. Foram obtidos os valores de frequência dos formantes de toda a porção selecionada do ruído fricativo e calcularam-se os valores médios das seis frequências proeminentes do ruído fricativo (F1 a F6). A obtenção dos valores das amplitudes dos formantes do ruído fricativo foi realizada com base nos valores dos formantes. A Figura 1 a seguir mostra a coniguração espectral dos ruídos fricativos de [s] e [ʃ] de um dos informantes do estudo. FIGURA 1 – Coniguração espectral dos ruídos fricativos em [ʃ] (linha pontilhada) e em [s] (linha contínua) obtidos de um dos informantes do estudo Fonte: Elaborada pelos autores. O valor de CG foi obtido somente com a seleção de todo o ruído fricativo excluindo a região de transição dos formantes da vogal [a] seguinte às fricativas. Esse parâmetro não foi investigado separadamente, ou seja, porção inicial, medial e inal do ruído, devido à constatação de que há uma variação pequena nesses valores. Por im, a duração total do Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 801 ruído fricativo foi obtida selecionando-se o ruído fricativo, sem a porção de transição dos formantes entre o ruído e a vogal subsequente. 3.1.2 Propriedades acústicas dos segmentos plosivos O parâmetro acústico mais relevante nos segmentos plosivos para a distinção entre [b] e [d] são as amplitudes do burst. Nos segmentos [b] e [d], as amplitudes foram obtidas selecionando a soltura da fase de oclusão. Para a seleção do burst utilizou-se como referência as informações disponibilizadas pelo oscilograma e pela barra de explosão, quando presente (FIG. 2). Na ausência da barra de explosão utilizaram-se como referência as informações disponibilizadas pelo oscilograma. Dessa forma, selecionou-se o ponto onde se observa a modiicação do traçado no oscilograma e o início da produção vocálica com a identiicação de F2. Após a identiicação e a seleção do burst, foram obtidos os valores das amplitudes. Os valores dos formantes do burst foram obtidos da mesma forma como se deu para as fricativas. Outro parâmetro analisado foi a duração da fase de pré-sonorização e do burst dos segmentos plosivos [b] e [d]. Esses parâmetros são mostrados na Figura 3, onde é possível visualizar a barra de vozeamento, que corresponde à vibração das pregas vocais durante a articulação desses sons, a região de soltura da oclusão (burst) e a fase de pré-sonorização representada pela fase de oclusão da plosiva. 3.1.3 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às plosivas e às fricativas As medidas temporais e espectrais dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) foram obtidas manualmente por meio da análise do espectrograma e do oscilograma. Na análise espectral dos formantes vocálicos, os valores dos formantes foram obtidos por LPC com base nos seguintes parâmetros de análise: amplitude (Hz) = 0 a 8 kHz; janela(s) = 0,005; e amplitude dinâmica (dB) = 70 dB. Os valores dos formantes vocálicos foram extraídos automaticamente pelo Praat, pelo método LPC, em dois principais momentos: 1) na porção inicial da vogal (onset vocálico; porção de transição dos formantes entre a consoante e a vogal) e na porção estável da vogal, ou seja, no momento em que se observou pequena variação entre os valores dos formantes. 802 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 O ponto inicial da vogal, ou seja, de transição dos formantes, foi selecionado com base nas informações oferecidas pelo oscilograma e espectrograma. No oscilograma, é possível visualizar uma mudança abrupta na amplitude entre a consoante e a vogal (FIG. 3). Após a identiicação desse ponto no oscilograma, marcou-se o ponto no qual se observou o início do primeiro pulso glótico e o início do segundo formante vocálico visualizado no espectrograma. Nesse ponto, foram obtidos os valores das frequências dos formantes (F1, F2 e F3), que representaram a porção inicial da vogal. FIGURA 2 – Sinal de fala e espectrograma da palavra /sapa/. Ponto de análise da porção inicial da vogal [a] e seus formantes vocálicos (F1, F2 e F3) Ponto de análise da porção inicial da vogal – primeiro pulso glótico F3 F2 F1 Fonte: Elaborada pelos autores. As iguras a seguir mostram o movimento do F1 e F2 na região de transição dos formantes entre as fricativas [ʃ] e [s] e a vogal [a], nas palavras “chapa” e “sapa”. Na igura da esquerda, observa-se um decréscimo do valor do segundo formante (F2) entre a fricativa [ʃ] e a vogal [a], conforme esperado. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 803 FIGURA 3 – F1 e F2 da vogal [a] seguinte à fricativa [ʃ], na palavra “chapa” (à esquerda) e F1 e F2 da vogal [a] seguinte à fricativa [s], na palavra “sapa” (à direita) Fonte: Elaborada pelos autores. No caso da vogal precedida pelas fricativas, selecionou-se uma porção de 0,03 s de ruído e 70 ms de vogal, com o intuito de auxiliar no estabelecimento do ponto inicial da porção vocálica para extração dos valores dos formantes. Em seguida, solicitou-se o “Formant listing” disponibilizado pelo Praat, nas conigurações em “Formant”. Os valores dos formantes da porção estável da vogal foram deinidos pela visualização do movimento dos formantes no espectrograma (pontos vermelhos) e pelos pulsos glóticos regulares no oscilograma. Além disso, com o auxílio do “Formant listing”, selecionou-se 20 ms da parte estável da vogal para obtenção do F1, F2 e F3. Diante da vogal [a] precedida pelas plosivas, os valores dos formantes foram obtidos da mesma forma como se deu nas fricativas. O ponto inicial da vogal foi estabelecido a partir do primeiro pulso glótico vocálico, logo após a barra de soltura da oclusão da consoante plosiva, e com base na identiicação do segundo formante (F2). Já os valores dos formantes da porção estável da vogal foram deinidos conforme a descrição anterior. As medidas de duração da vogal [a] foram obtidas selecionando a vogal a partir do primeiro pulso glótico regular até o último pulso regular dessa mesma vogal. 804 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 3.2 Resultados e considerações do estudo 1 Os resultados desse estudo são apresentados a seguir. Optou-se por descrever os valores de cada informante, para possibilitar posterior reanálise ou outra utilização desses dados. Apresentam-se também as médias do grupo para cada parâmetro acústico, bem como os desviospadrão (dp). A normalidade dos dados foi estimada pelo teste de ShapiroWilks, e todos os resultados relatados aqui não violam a suposição de normalidade, exceto quanto dito em contrário. A homogeneidade de variância foi estimada pelo teste de Levene, e todos os resultados aqui relatados também não violam essa suposição. As diferenças entre médias foram avaliadas por meio de testes t de Student para amostras pareadas (graus de liberdade = 6) ou pelo teste dos postos sinalizados de Wilcoxon, nos poucos casos em que os dados violaram a normalidade.3 3.2.1 Propriedades acústicas das fricativas [s] e [ʃ] 3.2.1.1 Duração das fricativas A duração total dos segmentos fricativos pode ser observada na tabela abaixo. TABELA 1 – Duração das fricativas [s] e [ʃ] (ms) Informante 1 [s] [ʃ] 192 194 2 160 145 3 176 189 4 183 177 5 158 171 6 141 142 7 178 197 Média dp 169,7 17,5 173,6 22,5 Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: dp = desvio padrão 3 Todas as análises estatísticas foram realizadas no software R (R CORE TEAM, 2016) utilizando os seguintes pacotes: stats, car (FOX; WEISBERG, 2011) e pastecs (GROSJEAN; IBANEZ, 2014). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 805 A Tabela 1 mostra que os valores médios de duração das fricativas [s] e [ʃ] foram 169 ms e 173 ms; respectivamente. Esses valores são próximos daqueles veriicados por Santos (1987): em posição inicial de palavra seguido da vogal [a], a autora obteve valores médios de 165 ms para [s] e 180 ms para [ʃ]. A duração das fricativas é considerada um parâmetro acústico robusto para diferenciar as fricativas vozeadas das não-vozeadas. Em geral, as fricativas não vozeadas são mais longas do que as vozeadas. Esse fato foi observado nos trabalhos de Samczuk e Gama-Rossi (2004) e Haupt (2007) para o português brasileiro. Entretanto, os resultados aqui apresentados não possibilitam airmar que a duração seja uma pista segura para diferenciar fricativas vozeadas das não-vozeadas, já que a diferença entre elas não foi signiicativa (t = 0,85; p = 0,43). 3.2.1.2 Formantes e picos de amplitude do ruído fricativo A Tabela 2 apresenta os valores dos seis formantes (F1-F6) das fricativas [s] e [ʃ]. Esses valores não apresentam grande importância para a síntese desses sons. No entanto, só é possível obter os valores dos picos de amplitude dos sons fricativos a partir dos valores dos formantes. Para a síntese das fricativas, o que importa são os valores dos picos de amplitude A2F a A6F, que deinirão as regiões do espectro que serão excitadas pelo ruído de fricção. Dessa forma, a discussão desse tópico vai concentrar-se nos valores de amplitude, e a divulgação da Tabela 2 é apenas informativa. A última linha da tabela apresenta os resultados dos testes de diferença entre as médias. Os valores de F6 não condizem com normalidade de dados, nem para [s] (W = 0,76; p = 0,016) nem para [ʃ] (W = 0,624; p < 0,001). 806 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 2 – Frequência dos formantes das fricativas [s] e [ʃ] (Hz) Informante 1 2 3 4 5 6 7 Média dp Diferença Fricativa F1 F2 F3 F4 F5 F6 [s] 1904 3369 4635 5396 6224 7116 [ʃ] 2282 2999 3753 4913 5791 6810 [s] 1562 2719 3951 5063 5752 6390 [ʃ] 1721 2360 3108 4399 5307 6225 [s] 1430 2612 3856 5104 5762 6377 [ʃ] 1943 2554 3627 5430 5541 6270 [s] 1547 2813 4148 5120 5837 6440 [ʃ] 2248 2846 3410 4439 5490 6242 [s] 1734 2908 4106 5120 5742 6406 [ʃ] 1976 2781 3460 4722 5397 6153 [s] 1416 2973 4126 4723 5401 6180 [ʃ] 1993 2451 3287 4432 5519 6167 [s] 1674 2980 4337 5061 5892 6505 [ʃ] 1885 2662 3426 4594 5462 6208 [s] 1609,5 2910,5 4165,5 5083,8 5801,4 6487,7 [ʃ] 2006,8 2664,7 3438,7 4704,1 5501 6296,4 [s] 174,2 242,9 257,2 196,4 243,5 294,5 [ʃ] 198,1 226,9 211,3 369,7 150,6 230 5,11 -3,27 -8,09 -2,949 -3,967 28* (0,002) (0,017) (0,0002) (0,025) (0,007) (0,015) Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: dp = desvio padrão; Diferença = estimada pelo teste t de Student para amostras pareadas (entre parênteses, a probabilidade associada ao teste t), exceto (*) estimada pelo teste de Wilcoxon. A tabela abaixo apresenta os picos de amplitude das fricativas [s] e [ʃ], propriedade acústica que, tanto quanto se saiba, ainda não foi investigada em nenhum estudo realizado para o Português Brasileiro. 807 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 3 – Amplitude dos formantes das fricativas [s] e [ʃ] (dB) Informante 1 2 3 4 5 6 7 Média dp Diferença Fricativa A2 A3 A4 A5 A6 [s] 17 29 39 38 29 [ʃ] 43 40 35 34 24 [s] 33 34 44 50 41 [ʃ] 61 50 37 38 30 [s] 35 39 44 44 34 [ʃ] 44 44 39 35 27 [s] 31 34 45 44 36 [ʃ] 55 48 39 37 28 [s] 17 23 46 43 28 [ʃ] 49 41 35 36 26 [s] 36 47 52 43 39 [ʃ] 59 52 46 44 40 [s] 30 41 44 47 39 [ʃ] 57 58 45 40 37 [s] 28,4 35,2 44,8 44,1 35,1 [ʃ] 52,5 47,5 39,4 37,7 30,2 [s] 8 7,9 3,8 3,7 5 [ʃ] 7,3 6,4 4,4 3,4 5,9 8,762 5,944 -3,99 -4,172 -3,104 (<0,001) (0,001) (0,007) (0,006) (0,021) Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: dp = desvio padrão; Diferença = estimada pelo teste t de Student para amostras pareadas (entre parênteses, a probabilidade associada ao teste t). A Tabela 3 mostra que as fricativas [s] e [ʃ] diferem substancialmente em relação aos valores dos picos de amplitude. A fricativa [s] apresenta as maiores amplitudes concentradas em regiões mais altas de 808 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 frequência quando comparada com [ʃ]. Assim, a fricativa [s] apresentou valores mais altos da quarta e da quinta amplitude (A4F e A5F), enquanto a fricativa [ʃ] apresentou valores mais altos da segunda e da terceira amplitude (A2F e A3F). Os informantes 1 e 5 apresentaram valores mais baixos da segunda e terceira amplitudes (A2F e A3F) para a fricativa [s] em relação aos demais informantes. Dessa forma, o desvio padrão foi maior nesse caso. Porém, tal fato não foi relevante, uma vez que se analisou a tendência geral do grupo. Se esses informantes fossem excluídos da análise, teríamos os valores de 33 dB para A2F e 39 dB para A3F e, ainda assim, a quarta e a quinta amplitude apresentariam os maiores valores. Tanto o informante 1 quanto o informante 5 apresentaram A4F e A5F mais altos em relação aos demais valores de amplitude (A2F, A3F e A6F). O mesmo ocorreu com a fricativa [ʃ]. Esses informantes apresentaram valores mais baixos da segunda e terceira amplitudes quando comparados ao grupo e, consequentemente, o desvio padrão foi maior. Comparando as tabelas acima, observa-se que, como a fricativa [s] apresentou valores maiores da quarta e da quinta amplitude (A4F e A5F), os picos espectrais mais proeminentes desse segmento estão entre 5 kHz e 5,8 kHz. Esses valores de frequência foram extraídos da Tabela 2 e representam os valores médios da quarta e da quinta frequência (F4 e F5) da fricativa [s] (5083,8 Hz e 5801,4 Hz respectivamente). Analisando a fricativa [ʃ], observa-se que os picos espectrais mais proeminentes concentram-se entre 2910,5 Hz e 3438,7 Hz, ou seja, em regiões de frequências mais baixas quando comparada com [s]. Essa questão será conirmada adiante com a extração dos valores do centro de gravidade. 3.2.1.3 Centro de gravidade do ruído fricativo De acordo com a descrição realizada na seção 2, o centro de gravidade (CG) pode ser deinido como a frequência abaixo (ou acima) da qual estão concentradas 50% da energia de determinado som. A Tabela 4 mostra os valores desse parâmetro para as fricativas [s] e [ʃ]. 809 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 4 – Centro de gravidade das fricativas [s] e [ʃ] (Hz) Informante Fricativa [s] Fricativa [ʃ] 1 5717 3499 2 5349 2601 3 4994 3200 4 5649 3097 5 5395 3461 6 4401 2745 7 5112 3166 Média dp 5230 449,2 3109,8 336,2 Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: dp = desvio padrão Conforme esperado, a fricativa [s] apresentou valor signiicativamente maior de CG do que a fricativa [ʃ] (t = -13,91, p < 0,001). Quando comparado com os demais estudos, observa-se que os valores do CG obtidos com o estudo piloto são inferiores em relação aos valores divulgados na pesquisa de Jongman, Wayland e Wongs (2000) para o inglês americano. O CG da fricativa [s] foi 6882 Hz, e o da fricativa [ʃ] foi 3712 Hz. Os valores obtidos aqui são mais próximos dos valores descritos no trabalho de Gordon, Barthmaier e Sands (2002). O valor maior de CG para a fricativa [s] foi 5463 Hz, e o menor para a fricativa [ʃ] foi 4134 Hz. Embora não relatem valores de CG para o português brasileiro, Russo e Behlau (1993) observaram que a fricativa [s] tem faixas de frequência acima de 4,5 kHz chegando a 8 kHz, enquanto a fricativa [ʃ] apresenta uma faixa de frequência entre 2,5 e 6 kHz, valores compatíveis com os alcançados neste estudo. 3.2.2 Propriedades acústicas das plosivas [b] e [d] 3.2.2.1 Duração absoluta dos segmentos A medida de duração absoluta dos segmentos plosivos foi obtida por meio da análise da fase de pré-sonorização e da fase de soltura da oclusão, ou seja, burst, conforme mostra a Tabela 5. 810 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 5 – Duração das fases de pré-sonorização e de soltura da oclusão em [b] e [d] (ms) Informante Pré-sonorização Soltura da oclusão [b] [d] [b] [d] 1 146 96 13 13 2 74 52 11 12 3 101 56 12 15 4 97 80 12 9 5 93 75 11 10 6 92 72 9 12 7 108 73 12 11 Média 101,6 72 11,4 11,7 dp 22,2 14,75 1,3 1,9 Fonte: Elaborada pelos autores. O valor de duração absoluta da fase de pré-sonorização encontrado neste estudo foi maior para a plosiva [b] quando comparado com a plosiva [d] (t = 5,71; p = 0,0012). Outros trabalhos do PB também revelaram resultados semelhantes. Melo et al. (2011) investigou e comparou as características acústicas das plosivas vozeadas e não vozeadas na fala de crianças com desenvolvimento fonológico típico e de adultos, que pertenciam ao grupo controle. Os pesquisadores analisaram a fala de 11 adultos e obtiveram os valores de duração da fase de oclusão de 98 ms para [b] e 91 ms para [d], em posição de onset medial. Barbosa (1999) também veriicou valores da fase de pré-sonorização maiores para a plosiva [b] (86 ms) quando comparada com a plosiva [d] (71 ms). Da mesma forma, em seu estudo dos parâmetros acústicos de plosivas realizado com cinco informantes do sexo feminino, oriundas da região de Criciúma, no sul do Estado de Santa Catarina, Alves (2015) observou que a plosiva [b] apresentou o valor de duração absoluta de 101 ms, enquanto a plosiva [d] apresentou a duração de 94 ms. Por im, a Tabela 5 mostra os valores de duração da fase de soltura da oclusão para as plosivas [b] e [d], onde observa-se que os valores desse parâmetro foram muito próximos, sem diferenças signiicativas entre esses dois segmentos (t = -0,34; p = 0,74). Lieberman e Blumstein Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 811 (1988) veriicaram que a duração do burst pode ser de 5 a 15 ms, valores corroborados pelos achados deste estudo. 3.2.2.2 Picos de amplitude e formantes da soltura da oclusão Nesta seção apresenta-se uma análise qualitativa dos parâmetros de amplitude e dos formantes do burst das plosivas [b] e [d]. Essa análise tornou-se necessária pela curta duração desse parâmetro. Dessa forma, em 11 produções da plosiva [b] e em 5 produções da plosiva [d] não foi possível obter o valor exato do sexto formante (F6). No entanto, como as plosivas não têm valores altos de frequência que ultrapassem os 6 kHz, o valor do sexto formante não foi considerado relevante para a posterior síntese dos estímulos. Assim como nos sons fricativos, são os picos de amplitude que irão determinar as regiões do espectro das plosivas que serão excitadas pelo ruído de fricção. Experimentos perceptuais realizados com as plosivas sintetizadas no inglês, mostraram que o burst é considerado uma pista auditiva importante para que os ouvintes façam a distinção entre essas categorias de sons. Esses estudos também veriicaram que o pico espectral do burst apresentou valores mais altos para as plosivas alveolares (acima de 4 kHz) quando comparado com as plosivas bilabiais (entre 0,5 kHz e 1,5 kHz) (STEVENS; BLUMSTEIN, 1977; HALLE; HUGHES; RADLEY, 1957). No português brasileiro, Alves (2015) realizou um estudo das características espectrais do burst das plosivas vozeadas e não vozeadas, que envolveu a análise dos picos e dos momentos espectrais (centróide ou média, variância, assimetria e curtose). Direcionando-se à análise das plosivas vozeadas [b] e [d], assim como no inglês, a pesquisadora também observou que a plosiva bilabial apresentou pico de energia em regiões mais baixas de frequência quando comparada com a plosiva alveolar (1189 Hz e 2324 Hz; respectivamente). No entanto, apesar de a plosiva alveolar apresentar o valor do pico espectral mais elevado do que a plosiva bilabial, esse valor icou abaixo dos valores obtidos no inglês. Neste estudo, não se realizou uma análise detalhada dos momentos espectrais do burst, uma vez que essas informações não são relevantes para a posterior síntese dos estímulos. Conforme relatado, a análise do burst concentrou-se nos picos de amplitude, parâmetro fundamental para a geração dos estímulos sintéticos. Dessa forma, após a extração e a análise das amplitudes do burst, observou-se que a plosiva 812 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 bilabial [b] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais baixas de frequência, referente à região do segundo e terceiro formantes (A2F-A3F). Já a plosiva alveolar [d] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais altas de frequência, compatível com a região de frequência do quarto e do quinto formantes (A4F-A5F). A forma espectral da plosiva [b] foi mais plana quando comparada com a plosiva [d] (FIG. 4). À esquerda, observa-se a forma espectral do burst da plosiva [b] na palavra /bata/ e da plosiva [d] na palavra /data/. Essa tendência corrobora os achados descritos anteriormente para o inglês e para o PB. FIGURA 4 – Forma espectral do burst da plosiva [b] (linha contínua) e da plosiva [d] (linha pontilhada) obtidas de um dos informantes do estudo Fonte: Elaborada pelos autores. A seguir, serão abordados os últimos parâmetros analisados neste estudo que são as medidas de duração vocálica e dos valores dos formantes da vogal [a] seguinte às fricativas e às plosivas. Os valores de duração da vogal foram obtidos apenas com o intuito de contribuir com a síntese de fala baseada nas propriedades acústicas dos falantes nativos do PB. 813 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 3.2.3 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às fricativas A Tabela 6 mostra os valores de duração da vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ]. Observa-se que a vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ] apresentou valores de duração próximos, porém estatisticamente diferentes (t = 4,38; p = 0,005). TABELA 6 – Duração da vogal [a] seguinte às fricativas (ms) Informante [s_] [ʃ_] 1 127 129 2 142 155 3 173 178 4 150 155 5 119 131 6 145 149 7 170 177 Média 146,6 153,4 dp 20,1 19,5 Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: [s_] = valores de duração da vogal [a] seguinte a [s]; [ʃ_] = valores de duração da vogal [a] seguinte a [ʃ]; dp = desvio padrão A Tabela 7 apresenta os valores dos três primeiros formantes da vogal [a], na região de transição dos formantes e na região estável da vogal. Os valores dos formantes na região de transição foram retratados na tabela com a palavra “inicial”, ou seja, os valores do F1, F2 e F3 inicial relacionam-se à região de transição dos formantes entre o segmento fricativo e a vogal. Além disso, a descrição [s_] na coluna “Contexto” refere-se aos valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [s], enquanto a descrição [ʃ_] refere-se aos valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [ʃ]. 814 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 7 – Frequência dos formantes da vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ] (Hz) Informante 1 2 3 4 5 6 7 Média dp Diferença Contexto F1 inicial F1 estável F2 inicial F2 estável F3 inicial F3 estável [s_] 526 717 1433 1413 3084 2837 [ʃ_] 505 687 1550 1396 3077 2844 [s_] 529 739 1211 1210 2491 2447 [ʃ_] 502 732 1530 1228 2331 2335 [s_] 496 661 1263 1208 2570 2397 [ʃ_] 441 631 1607 1218 2602 2242 [s_] 554 679 1375 1415 2595 2503 [ʃ_] 545 670 1694 1536 2775 2767 [s_] 616 768 1389 1366 2863 2584 [ʃ_] 613 819 1579 1369 2878 2444 [s_] 537 662 1285 1311 2453 2310 [ʃ_] 543 696 1511 1370 2375 2300 [s_] 582 768 1224 1348 2400 2366 [ʃ_] 540 797 1641 1362 2984 2379 [s_] 548,5 713,4 1311,4 1324,4 2636,6 2492 [ʃ_] 527 718,8 1587,4 1354,1 2717,4 2473 [s_] 39,7 46,9 87,1 86,7 247,8 176,8 [ʃ_] 52,7 68,2 64,8 107,8 291,4 236,6 -2,63 0,44 7,1 1,7 0,87 -0,35 (0,039) (0,673) (<0,001) (0,14) (0,416) (0,74) Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: [s_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [s]; [ʃ_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [ʃ]; dp = desvio padrão. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 815 Conforme esperado, observa-se uma pequena variação nos valores do primeiro formante (F1), tanto na região de transição dos formantes, em que a diferença foi signiicativa, quanto na porção estável da vogal. Como este estudo analisou somente a vogal [a], esse fato era esperado, uma vez que o F1 relaciona-se ao grau de abertura de uma vogal e a altura da língua. O valor do segundo formante (F2) na região de transição dos formantes foi maior para a vogal [a] seguinte à fricativa [ʃ] quando comparada com a fricativa [s] (1578 Hz e 1311 Hz, respectivamente), uma diferença altamente signiicativa. Esse fato também era esperado porque o valor do F2 está diretamente relacionado com o grau de anteriorização da língua. Como na produção do segmento [ʃ] a língua encontra-se mais posterior na cavidade oral quando comparado com o segmento [s], espera-se que valor do F2 seja mais alto para [ʃ]. No entanto, observa-se uma pequena variação nos valores médios da frequência do F2 da vogal [a] seguinte a fricativa [s], quando se compara os valores da região de transição dos formantes e da região estável da vogal (1311-1324 Hz). Nos estudos de percepção da fala que investigam a ponderação de pistas auditivas,4 desenvolvidos por Nittrouer no inglês americano, a pesquisadora produziu a vogal [a] sintetizada que seguiu as fricativas [s] e [ʃ] com os seguintes valores (inicial e estável) dos formantes: F1 (450 Hz-650 Hz), F2 (1250 Hz-1130 Hz) e F3 (2464 Hz-2300 Hz) para a vogal [a] seguinte a fricativa [s]; F1 (450 Hz-650 Hz), F2 (1570 Hz1130 Hz) e F3 (2000 Hz-2300 Hz) para a vogal [a] seguinte a fricativa [ʃ] (NITTROUER, 2002). Esses valores foram obtidos por meio da análise das propriedades acústicas de um falante nativo do inglês americano. Dessa forma, constata-se uma variação maior dos valores do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a fricativa [ʃ] (440 Hz) quando comparado com a fricativa [s] (120 Hz), assim como se veriicou no presente estudo. Porém, observa-se que essa variação nos valores do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a fricativa [s], veriicada neste estudo (1311 Hz1324 Hz), foi menor quando comparada com os estudos desenvolvidos por Nittrouer (1250 Hz-1130 Hz). A ponderação de pistas auditivas pode ser deinida como o peso perceptivo atribuído pelos ouvintes às pistas auditivas ao distinguir os sons da fala. 4 816 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 3.2.4 Propriedades acústicas da vogal [a] seguinte às plosivas A Tabela 8 mostra que a vogal [a] seguinte às plosivas [b] e [d] apresentou valores de duração muito próximos, cuja diferença não se revelou signiicativa (t = 0,81; p = 0,45). TABELA 8 – Duração da vogal [a] seguinte às plosivas (ms) Informante [b_] [d_] 1 185 133 2 143 101 3 165 188 4 145 151 5 149 189 6 171 165 7 204 157 Média 166 154,8 dp 22,7 30,9 Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: [a]_/ba/ = valores de duração da vogal [a] seguinte a [b]; [a]_/da/ = valores médios da duração da vogal [a] seguinte a plosiva [d]; dp = desvio padrão Os valores dos três primeiros formantes (F1, F2 e F3) da vogal [a] seguinte às plosivas [b] e [d] podem ser visualizados na Tabela 9. 817 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 TABELA 9 – Frequência dos formantes da vogal [a] seguinte às plosivas [b] e [d] (Hz) Informante Contexto F1 inicial F1 estável F2 inicial F2 estável F3 inicial F3 estável [b_] 603 715 1268 1374 2725 2804 [d_] 419 721 1814 1608 2568 2396 [b_] 513 751 1062 1223 2397 2505 [d_] 487 669 1717 1596 2297 2183 [b_] 457 625 1045 1016 2502 2417 [d_] 439 750 1972 1537 2572 2572 [b_] 576 692 1199 1356 2233 2441 [d_] 422 625 2090 1317 2708 2562 [b_] 524 744 1146 1258 2490 2480 [d_] 518 803 1826 1742 2436 2546 [b_] 508 739 1111 1265 2352 2474 [d_] 465 640 1996 1563 2806 2424 [b_] 586 720 1166 1288 2349 2321 [d_] 544 889 1701 1485 2968 2310 [b_] 538,1 712,3 1142,4 1254,3 2435,4 2491,7 [d_] 470,6 728,1 1873,7 1549,7 2622,1 2427,5 [b_] 52 43,4 77,9 118,1 157,1 150,2 [d_] 48,2 94,7 148,1 129,8 226 145,8 2,517 -0,397 -11,537 -4,103 1,545 0,776 (0,045) (0,705) (<0,0001) (0,006) (0,17) (0,467) 1 2 3 4 5 6 7 Média dp Diferença Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: [b_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [b]; [d_] = valores dos formantes da vogal [a] seguinte a [d]; dp = desvio padrão A Tabela 9 mostra que, na região de transição dos formantes, o valor de F2 para [da] é maior quando comparado com [ba]. Isso ocorre, 818 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 pelo fato da plosiva alveolar [d] apresentar ponto de articulação mais posterior do que a plosiva bilabial [b]. Nos estudos que investigaram a percepção do ponto de articulação das plosivas do inglês americano, desenvolvidos por Stevens e Blumstein (1978) e Walley e Carrell (1983), os pesquisadores produziram a vogal [a] sintetizada, que seguiu as plosivas [b] e [d], com os seguintes valores (inicial e estável) dos segundo e do terceiro formantes: F2 (900 Hz1240 Hz) e F3 (2000 Hz-2500 Hz) para a vogal [a] seguinte a plosiva [b]; F2 (1700 Hz-1240 Hz) e F3 (2800 Hz-2500 Hz) para a vogal [a] seguinte a plosiva [d]. Estes estudos veriicaram valores maiores do F2 para a vogal [a] seguinte a plosiva [d]. Além disso, observa-se um aumento de 340 Hz dos valores do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a plosiva [b] e uma diminuição de 460 Hz dos valores do F2 da vogal [a] seguinte a plosiva [d]. No presente estudo, nota-se um aumento de 112 Hz dos valores médios do F2 (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a plosiva [b] e uma diminuição de 324 Hz dos valores do F2 da vogal [a] seguinte a plosiva [d]. Por im, a Tabela 9 revela um decréscimo nos valores do terceiro formante (inicial e estável) da vogal [a] seguinte a plosiva [d], o que foi veriicado nos estudos desenvolvidos com o inglês (STEVENS; BLUMSTEIN, 1978; WALLEY; CARRELL, 1983). Assim como o F2, o terceiro formante também foi considerado uma pista importante para distinção do ponto de articulação das plosivas. Entretanto, no presente estudo, a diferença nos valores de F3 não foi signiicativa nem na posição inicial nem na parte estável da vogal. 3.3 Resumo dos achados da análise acústica Neste estudo, analisaram-se o dados de fala de sete falantes nativos do PB com o intuito de caracterizar as propriedades acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] seguidas da vogal [a] em posição inicial de palavra. Essa análise foi desenvolvida enfocando duas questões: quais as principais pistas auditivas que auxiliam os ouvintes a diferenciar esses sons e que parâmetros acústicos contribuem para uma posterior síntese desses sons em estudos perceptivos? Com base na análise dos dados, veriicou-se que as fricativas [ʃ] e [s], por serem sons não-vozeados, apresentaram valores de duração próximos. Isso é condizente com a observação que se nota na literatura, ou seja, de que a duração é utilizada principamente para distinguir Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 819 vozeamento, característica não analisada aqui. No caso das plosivas [b] e [d], observou-se que a duração absoluta da fase de pré-sonorização foi maior para a plosiva [b] quando comparada com a plosiva [d]. No entanto, foram observados valores próximos de duração da fase de soltura da oclusão. Em relação às principais pistas auditivas que contribuem para a distinção das fricativas [ʃ] e [s], ou seja, os picos de amplitudes dos sons fricativos e a região de maior concentração de energia, veriicouse que a fricativa [s] apresentou picos de amplitude mais proeminentes em regiões mais altas de frequência quando comparada com a fricativa [ʃ] e apresentou também valor médio maior de CG do que a fricativa [ʃ] (5231 Hz e 3110 Hz; respectivamente). Quanto às plosivas, observouse que a plosiva alveolar [d] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais altas de frequência quando comparada com a plosiva bilabial [b]. Por fim, os resultados relacionados à vogal [a] mostraram pequenas diferenças nos valores de F1 e de F3 da vogal [a] seguinte às fricativas [ʃ] e [s], enquanto F2 apresentou valores mais altos para a vogal [a] seguinte a fricativa [ʃ]. Em relação a vogal [a] seguinte às plosivas, observaram-se valores próximos do F1 da vogal [a] tanto diante da plosiva [b] quanto da plosiva [d]. No entanto, veriicou-se uma variação nos valores inicial e estável do F2 e do F3, com valores maiores desses formantes para a vogal [a] seguinte a plosiva [d]. Após descrição e análise das propriedades acústicas dos estímulos, na próxima seção será abordado o experimento de classiicação. 4 Experimento de classiicação Este estudo tem o objetivo de investigar, por meio de uma tarefa de classiicação, as pistas auditivas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/ sapa/ e /bata/-/data/. Essa tarefa induz a utilização de representações fonológicas, o que possibilita aos ouvintes demonstrarem percepção categórica. Com as informações obtidas no estudo anterior, de análise acústica, é possível conhecer valores que descrevem as variáveis em foco. Porém, a fala é variável, e é preciso, além disso, conhecer também qual o limite no qual esses parâmetros podem variar sem comprometer a identiicação do segmento. Por meio da técnica apresentada nesta seção, é possível estimar até que ponto o ouvinte tolera a mudança em determinado parâmetro, a partir do qual ele/ela começa a ouvir outro segmento. 820 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 4.1 Métodos 4.1.1 Participantes do estudo Participaram oito adultos do sexo feminino, falantes nativos do português brasileiro de Belo Horizonte, com faixa etária entre 20 e 45 anos de idade, sem histórico signiicativo de otite média, de colocação de tubo de ventilação ou de perda auditiva. Qualquer comprometimento da audição foi descartado por meio de triagem auditiva, utilizando um audiômetro AD28. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após serem informados sobre os aspectos gerais da tarefa de classiicação. 4.1.2 Estímulos A síntese de estímulos foi realizada de acordo com Nittrouer e Miller (1996). Criaram-se dois contínuos de sons da fala para investigar a distinção de fricativas e dois, para a distinção de plosivas. Isto é, para as fricativas criaram-se duas séries de dez sons cada, com o primeiro som mais semelhante a [ʃ], e o último mais próximo a [s]. Para plosivas, duas séries entre [b] e [d]. Em cada série, um som difere pouco a pouco do som anterior, formando um contínuo que varia ao longo de uma única dimensão. Assim, manipulam-se duas variáveis: uma ao longo do contínuo e outra, entre os contínuos. Esse tipo de desenho experimental possibilita uma investigação do efeito perceptual das duas pistas. Um ouvinte que não é inluenciado pela pista que muda entre os contínuos, ou seja, a pista de transição dos formantes para as fricativas e a pista de amplitudes do burst para as plosivas, perceberá os dois contínuos como sendo uma mesma série. Ao contrário, um ouvinte que é inluenciado pela pista que muda entre os contínuos perceberá diferença entre as duas séries. Além disso, a pista que muda lentamente ao longo do contínuo possibilita avaliar em que ponto da série (isto é, a partir de quais características acústicas) o ouvinte passa a identiicar o som como pertencente a outra categoria sonora.5 Os detalhes da investigação da percepção da fala por meio de tarefas psicoacústicas estão além dos limites do presente trabalho, que pode ser complementado com a discussão mais técnica sobre as tarefas, em SCHOUTEN; GERRITS; VAN HESSEN (2003). Uma breve introdução ao assunto em português encontra-se em SILVA; ROTHE-NEVES (2009). 5 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 821 Todos os estímulos foram sintetizados por meio do software Sensyn, implementação de KLATT (KLATT, 1990). O sintetizador de formantes proposto por Klatt (1979) requer dois tipos de parâmetros de controle: 12 parâmetros que permanecem constantes ao longo de todo o enunciado sintetizado e 48 parâmetros variáveis em que os valores podem ser modiicados ao longo do tempo. Os parâmetros variáveis são atualizados a cada 5 ms. Os valores de referência desses parâmetros, utilizados para a síntese de todos os estímulos, foram baseados na amostra de fala de um dos informantes que participaram do estudo citado anteriormente (informante 5, Tabelas 8 e 10), que apresentou os valores dos formantes vocálicos mais próximos da média. Os sons da primeira sílaba de cada palavra foram sintetizados separadamente, uma vez que as pistas auditivas dinâmicas e estáticas do experimento foram manipuladas somente na primeira sílaba de cada palavra. Por exemplo, a fricativa [s] e a vogal [a] da primeira sílaba da palavra /sapa/ foram sintetizadas separadamente, enquanto a segunda sílaba /pa/, da palavra /sapa/, foi sintetizada em conjunto. Feito isso, os sons foram concatenados no Praat. A segunda sílaba das palavras foi sintetizada somente com o intuito de produzir a fala de forma natural, sendo que nenhuma pista auditiva foi manipulada. 4.1.2.1 Contínuos /sapa/-/ʃapa/ No caso das fricativas, a altura da frequência do ruído fricativo foi manipulada ao longo do contínuo e, entre os contínuos, a transição de F2 e F3 no início da vogal. Manipulou-se a altura da frequência do ruído fricativo a partir de uma frequência apropriada para [s] (5633 Hz) para uma frequência apropriada para [ʃ] (3830 Hz). Os demais oito ruídos do contínuo foram gerados por interpolação, amostra por amostra, entre as amplitudes relativas dos envelopes espectrais desses dois sons de ruído.6 O primeiro e o décimo ruído constituíram as extremidades do contínuo fricativo. Observa-se, na Figura 5, que o ruído 1 (em preto, linha contínua) apresenta os picos de amplitude em regiões de frequência mais baixas quando comparado ao ruído 10 (em vermelho). Dessa forma, o ruído 1 representou a fricativa [ʃ], enquanto o ruído 10 representou a fricativa [s]. A duração dos ruídos fricativos foi de 160 ms, e a intensidade foi ajustada em 55 dB com base na análise dos estímulos naturais de fala. O script pode ser encontrado em <http://www.holgermitterer.eu/HM/sample_ interpolation.praat>. Acessado em: 17 mar. 2017. 6 822 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 FIGURA 5 – Envoltórios espectrais obtidos em 50 ms em torno do ponto central do primeiro (em preto, linha contínua) e décimo (em vermelho) ruídos fricativos Fonte: Elaborada pelos autores. Essa técnica de interpolação dos envelopes espectrais está de acordo com o fato de que é o todo que parece ser importante para a percepção da distinção de ponto, mais a transição de formantes subsequente, e não uma ou outra característica espectral (WHALEN, 1991). Por outro lado, isso coloca um problema para a manipulação experimental. A investigação psicofísica envolve a manipulação de uma variável contínua que provoca efeitos descontínuos (ou categóricos, neste caso). Em geral, utiliza-se a frequência central (center frequency) para indicar a altura da frequência do ruído fricativo. Mas a interpolação resulta numa série de ruídos cujos envelopes espectrais formam, de fato, um contínuo (como se vê na igura anterior), sem que isso se relita num contínuo de valores de centro de gravidade cujos estímulos se diferenciem em passos de igual tamanho. A Tabela 11 abaixo mostra os valores obtidos de CG (em Hz) para cada ruído obtido por interpolação entre o primeiro e o último da série. Nota-se que a diferença de um valor a outro de frequência (coluna “∆ Hz”) nunca é a mesma. Por isso, optou-se por utilizar como variável independente contínua a ordem dos 823 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 estímulos no contínuo (coluna “Item”). Para manter a homogeneidade de procedimentos, o mesmo foi utilizado para a classiicação das plosivas. FIGURA 6 – Envoltórios espectrais obtidos em 50 ms em torno do ponto central dos ruídos fricativos de [ʃ] (esquerda) e de [s] (direita). Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: Em linha contínua, sons originais obtidos de um dos informantes do estudo; em linha pontilhada, sons sintetizados. A Figura 6 possibilita apreciar a qualidade da síntese, comparandose os espectros obtidos de um informante com os sons sintetizados. TABELA 10 – Valores de CG (Hz) do ruído fricativo dos estímulos produzidos por interpolação e a diferença (Hz) entre um estímulo e o antecedente no contínuo Item Centro de Gravidade (Hz) ∆ Hz 1 3830 182 2 4012 400 3 4412 440 4 4852 336 5 5188 211 6 5399 121 7 5520 65 8 5585 33 9 5618 15 10 5633 - Fonte: Elaborada pelos autores. 824 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Quanto à transição de formantes, sintetizou-se um contínuo com transições vocálicas apropriadas, para acompanhar [s], e outro, para acompanhar [ʃ]. A pista auditiva manipulada no caso das vogais foi a transição do segundo e do terceiro formantes (F2 e F3). A Tabela 12 apresenta os valores inicial e estável das frequências dos formantes vocálicos (F1, F2 e F3). TABELA 11 – Valores das frequências dos formantes da vogal [a] seguinte às fricativas [s] e [ʃ] em (Hz) Contexto F1 F2 F3 inicial estável inicial estável inicial estável [s_] 616 768 1389 1366 2863 2584 [ʃ_] 613 819 1579 1369 2878 2444 Fonte: Elaborada pelos autores. A duração da vogal foi de 140 ms, e a intensidade foi ajustada em 70 dB. Os valores dos formantes estabilizaram em 50 ms. A f0 do informante, copiada para a síntese, apresentou o valor inicial de 124 Hz e o valor inal de 112 Hz. 4.1.2.2 Contínuos /bata/-/data/ Os contínuos compostos de par mínimo /bata/-/data/ foram criados de maneira diferente dos sons anteriores. Isso porque, no caso das plosivas, as duas pistas auditivas manipuladas foram a amplitude da explosão de soltura (burst) e a transição de F2 e F3 no início da vogal. Criaram-se duas amplitudes de burst e nove vogais que diferiram em relação aos valores de transição do segundo e do terceiro formantes (F2 e F3). Ou seja, diferentemente das fricativas, a pista que variou de forma idêntica nos dois contínuos do par mínimo /bata/-/data/ foi a transição de F2 e F3, com valores dos formantes apropriados para [b] num extremo até valores dos formantes apropriados para [d] no outro. Os valores iniciais de F2 foram modiicados em passos uniformes de 88 Hz, de uma frequência apropriada para acompanhar [b] (vogal 1) para uma frequência apropriada para acompanhar [d] (vogal 9). Da mesma forma, os valores iniciais de F3 foram manipulados em passos uniformes de 34 Hz. A tabela a seguir mostra os valores inicial e estável de F2 e F3. 825 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Os valores estáveis do F2 e do F3 também foram idênticos para todos os exemplares de vogal do contínuo, em 1400 Hz e 2460 Hz, respectivamente (TAB. 12). Esses valores foram obtidos pela média dos valores estáveis do F2 e do F3, descritos no estudo anterior. O primeiro formante (F1) apresentou valores idênticos para todas as vogais, iniciando em 503 Hz e alcançando o valor de 710 Hz em 50 ms. A duração das vogais [a] foi de 140 ms, e a intensidade foi ajustada em 70 dB. Os valores dos formantes estabilizaram em 50 ms. A f0 iniciou em 132 Hz e manteve-se 128 Hz ao longo da vogal. TABELA 12 – Valores de frequência dos formantes do contínuo vocálico [a] seguinte às plosivas [b] e [d] (em Hz) Valores das frequências dos formantes da vogal [a] sintetizada seguinte às plosivas Vogal F2 inicial F2 estável F3 inicial F3 estável 1 1111 1400 2352 2460 2 1199 1400 2386 2460 3 1287 1400 2420 2460 4 1375 1400 2454 2460 5 1463 1400 2488 2460 6 1551 1400 2522 2460 7 1639 1400 2556 2460 8 1727 1400 2590 2460 9 1815 1400 2624 2460 Fonte: Elaborada pelos autores. A amplitude do burst foi a pista manipulada entre contínuos. Foram produzidas duas amplitudes do burst: uma amplitude com picos de energia mais intensos em regiões mais baixas de frequência (compatível com [b]), e outra com picos de energia mais intensos em regiões mais altas de frequência (compatível com [d]). A duração total dos estímulos para plosivas foi de 100 ms, isto é, 85 ms de fase de pré-sonorização e 15 ms de burst. A intensidade das plosivas foi ajustada em 55 dB. As iguras a seguir mostram os melhores exemplares dos pares mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/ após a síntese. 826 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 FIGURA 6 – Espectrogramas dos melhores exemplares das palavras fricativas sintetizadas. À esquerda /ʃapa/ e à direita /sapa/ Fonte: Elaborada pelos autores. FIGURA 7 – Espectrogramas dos melhores exemplares das palavras plosivas sintetizadas. À esquerda /bata/ e à direita /data/ Fonte: Elaborada pelos autores. 4.2 Procedimento experimental Os estímulos foram apresentados aos participantes por meio de fones de ouvido Philips, acoplados a um laptop HP Pavilion dv2000. Com o software PercEval (versão 3.0.5.0), realizou-se uma tarefa de classiicação em que os participantes ouviam cada estímulo e tinham de decidir em qual categoria classiicá-lo entre as possibilidades dispostas na tela do laptop (por exemplo, /ʃapa/ ou /sapa/). As Figuras 8 e 9 mostram a tela de exibição dos estímulos no software PercEval para os pares mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/. Abaixo das imagens, à esquerda, inseriu-se um círculo vermelho e, abaixo das imagens, à direita, um Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 827 círculo azul. Os mesmos símbolos coloridos também estavam dispostos nas teclas “ctrl” do lado direito e do lado esquerdo do laptop, utilizadas pelos participantes para registro de sua resposta. O intervalo para registro da resposta foi de cinco segundos, após o que, se o participante não respondesse, iniciava-se uma nova prova, com a tela vazia exibida por um segundo, antes da apresentação do próximo estímulo. Foram apresentadas seis repetições para cada estímulo, para ambos os pares mínimos. FIGURA 8 – Tela de exibição do par mínimo /ʃapa/-/sapa/ Fonte: Elaborada pelos autores. FIGURA 9 – Tela de exibição do par mínimo /bata/-/data/ Fonte: Elaborada pelos autores. 828 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 4.3 Plano de análise Para esse paradigma experimental, em que se obtêm respostas numa curva, a análise estatística mais apropriada é a regressão logística, que possibilita estimar a probabilidade de uma resposta binária (categórica) a partir da mudança em uma variável contínua. Utilizou-se a análise de regressão logística com função probito num modelo misto por meio do pacote lme4 (BATES; MAECHLER; BOLKER; WALKER, 2015) do software R (R CORE TEAM, 2016). Um modelo misto incorpora tanto efeitos fixos, que são os parâmetros associados a certos níveis reprodutíveis de fatores experimentais (isto é, a manipulação experimental), e fatores aleatórios, associados a unidades experimentais individuais amostradas aleatoriamente de uma população (isto é, aquela variação devida aos participantes da pesquisa) (PINHEIRO; BATES, 2000; QUENÉ; VAN DEN BERGH, 2004). Assim, modelos mistos levam em consideração a correlação entre as observações dentro de uma unidade experimental – ou medidas repetidas. Com isso, é possível modelar, ao mesmo tempo, a separação e a inclinação das curvas de resposta, bem como quantiicar a importância da variância no nível dos sujeitos em apenas um passo analítico. Embora os modelos de efeitos mistos venham se tornando padrão na pesquisa linguística quantitativa (BAAYEN; BATES, 2008; JAEGER, 2008; JOHNSON, 2009; QUENÉ; VAN DEN BERGH, 2004, 2008), tanto quanto se saiba, apenas uma vez foi utilizado para investigar a ponderação de pistas na pesquisa de percepção da fala (CHRABASZCZ; WINN; LIN; IDSARDI, 2014).7 4.4 Resultados e considerações da tarefa de classiicação Os objetivos de uma tarefa de classiicação são (1) veriicar se a mudança progressiva na variável manipulada dentro do contínuo produziu o efeito de percepção categórica; (2) veriicar se há diferença na inclinação da curva de respostas em função da variável manipulada entre os contínuos, o que indica interação entre as variáveis; e (3) veriicar se a distância entre as curvas de respostas é signiicativa, o que indica Mais recentemente, Nixon et al. (2016) investigaram a variação intracategórica na percepção de vozeamento e tom no cantonês, utilizando a mesma técnica de análise aplicada a dados obtidos a partir de outro método experimental. 7 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 829 a necessidade de dois níveis na variável entre contínuos (ou seja, que a manipulação entre contínuos se justiica). FIGURA 10 – Curvas de resposta para classiicação de fricativas Fonte : Elaborada pelos autores. Legenda: Círculos e triângulos representam a percentagem média de resposta [(s)a] para cada nível de frequência de ruído em ambos os contínuos. Barras verticais indicam o erro padrão da média. Linhas contínua e pontilhada representam valores preditos pelo modelo não linear misto. A Figura 10 apresenta as respostas dos participantes para classiicação das fricativas, bem como resultados da análise estatística (erro padrão da média e curvas de valores preditos pelo modelo não linear misto). Nessa igura, apresenta-se a proporção em que os participantes indicaram ter ouvido /sapa/ entre todas as repetições de cada estímulo. Isso foi feito de modo a tornar possível visualizar um S alongado em função do aumento da frequência do ruído fricativo. Como já dito, a frequência do ruído fricativo é mais alta para [s] do que para [ʃ]. Os traços verticais representam o erro padrão da média, uma medida da 830 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 variabilidade de respostas dos participantes; note-se que os traços são mais longos no centro, na parte ascendente das curvas, que é a região de maior incerteza. Consoante ao objetivo (1) supramencionado, a Figura 10 possibilita avaliar se a resposta dos participantes muda abruptamente de [ʃ] para [s]: os participantes apresentaram curvas de classiicação íngremes, em formato de S alongado, o que indica o efeito de respostas categóricas. Além disso, observa-se que as curvas de classiicação encontram-se mais íngremes quando se trata dos estímulos compostos das transições de formantes apropriadas para acompanhar [ʃ], e essa diferença de inclinação resulta em curvas que parecem mais próximas no topo da fase ascendente do que na sua base. Se conirmado pela análise estatística, isso quer dizer que há interação entre essas variáveis, a inclinação é diferente em função da transição de formantes que acompanha o ruído. Finalmente, o contínuo de estímulos com transições apropriadas para [s] mostra que o grupo atinge o limiar de 50% de respostas [s] entre o 5º e o 6º estímulos do contínuo, antes daquele com transições apropriadas para [ʃ], em que esse ponto é alcançado após o 6º estímulo. Isso quer dizer que, utilizando a transição adequada, ou seja, a pista que melhor serve à resposta [s], os mesmos ruídos são avaliados como pertencentes à outra classe, um passo antes no contínuo, o que indica o uso dessa pista auditiva pelos ouvintes. O modelo não linear misto serviu para avaliar estatisticamente essas observações. O melhor modelo estatístico foi o que levou em consideração a interação entre Transição e Item nos efeitos ixos e incluiu diferentes interceptos e inclinações de curva para cada sujeito nos efeitos aleatórios. Em comparação a um modelo nulo que se obteve apenas com o intercepto e os efeitos aleatórios, a diferença para o melhor modelo foi muito signiicativa (χ²(3) = 48,39; p < 0,0001). Utilizando o teste das variáveis no modelo no formato mais comumente utilizado de análise de desvios (Type II Wald χ² tests), vê-se que tanto a variável Item (χ²(1) = 46,7; p < 0,0001) quanto a variável Transição (χ²(1) = 22,7; p < 0,0001) foram estatisticamente muito signiicativas, enquanto a interação entre elas foi marginalmente importante (χ²(1) = 3,78; p < 0,052), quase icando abaixo do valor de α = 0,05. Em outras palavras, tanto a mudança de altura das frequências mais intensas no ruído fricativo quanto a transição de formantes da vogal subsequente ao ruído foram pistas muito importantes para esse grupo de participantes distinguir entre /ʃapa/-/ Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 831 sapa/, mas a interação entre essas pistas não foi signiicativa. Ou seja, o uso da altura de frequência não parece ter sido diferente em função da transição na vogal. Mesmo assim, o modelo que inclui a interação entre essas variáveis foi melhor para explicar a variância nos dados do que outro sem a interação (χ²(1) = 4,12; p = 0,042). Isso pode indicar que a quantidade de participantes não é suiciente para que o efeito da interação seja estatisticamente signiicativo. Neste ponto, é oportuno lembrar que, na análise acústica, a diferença entre o início e o inal da transição de formantes da vogal subsequente às fricativas foi maior para [ʃ] do que para [s]. Após [s], quase não se observou mudança nos valores de F2, entre a região de transição e a região estável, ao contrário dos falantes do inglês. Isso pode explicar a interação de pistas marginalmente signiicativa na percepção: seria natural que o uso dos formantes fosse mais importante para distinguir aquela categoria em que a transição é mais diferente. Relacionada ao objetivo (3), já testado, a estimativa dos valores de fronteira entre as categorias sonoras /ʃ-s/ pode ser calculada por meio dos coeicientes do modelo, que incluiu a variação entre os sujeitos. Para cada participante, há um ponto no contínuo de altura de frequência do ruído fricativo em que se obteve 50% de respostas [s]. É o ponto de dúvida absoluta quanto à classiicação do estímulo, que resulta numa resposta completamente aleatória. Na literatura, esse ponto é chamado de “fronteira de fonema”, a partir do qual a percepção de um estímulo como pertencente a uma categoria diminui e aumenta na outra. A Tabela 13 apresenta as fronteiras entre as categorias para cada participante, como um ponto no contínuo de estímulos apresentados e em valores de CG estimado (em Hz). O cômputo de CG foi realizado com base nos valores já apresentados, obtidos para cada estímulo do contínuo, bem como o tamanho da diferença entre eles. A grande variabilidade entre os participantes na região ascendente das curvas, já aparente no erro padrão das médias (FIG. 10), mostra-se aqui nos valores de diferença entre as fronteiras estimadas para cada participante em cada contínuo. Isso é comum em estudos de percepção da fala, pois o sistema perceptivo de cada um apresenta diferenças individuais impossíveis de controlar. O valor identiicado como “Geral”, na última linha da tabela, foi calculado utilizando-se apenas os efeitos ixos estimados, uma vez que a variação individual já foi apreciada nos efeitos aleatórios. Assim, não é um valor médio do grupo, mas um valor que representa a proporção 832 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 da variação comum ao grupo. Esses valores nos mostram que, embora a altura da frequência central típica para [ʃ] seja a do 1º estímulo do contínuo (3830 Hz), os falantes do português do Brasil podem tolerar até em torno de 5400 Hz e, ainda assim, classiicar o som nessa categoria. Utilizando também a informação oferecida pela transição de formantes da vogal subsequente, porém, essa tolerância é menor, e, antes, o participante já começa a apresentar mais respostas na outra categoria, quando a altura da frequência central do ruído fricativo ultrapassa aproximadamente 5280 Hz.8 TABELA 13 – Estimativas de fronteira de fonema [ʃ-s] para cada participante Contínuo [ʃ] Participantes Contínuo [s] ∆ Hz Step CF (Hz) Step CF (Hz) CC 6,59 5470 6,10 5411 59 GF 6,21 5424 5,41 5274 150 LB 5,92 5308 5,39 5270 38 LD 4,57 5043 3,07 4443 600 MP 7,04 5523 6,53 5463 60 PS 5,63 5321 5,01 5190 131 RC 5,88 5374 4,41 4990 384 TM 6,54 5464 6,02 5401 63 Geral 6,10 5411 5,43 5279 132 Fonte: Elaborada pelos autores. Na classificação das plosivas, os participantes também demonstraram percepção categórica, como pode ser visto na igura a seguir. A bem da completude, um modelo que não leva em consideração a variável Transição possibilita estimar a fronteira em 5350 Hz. A estimativa da fronteira (p=0,5) é feita dividindo-se o valor negativo do intercepto estimado pelo modelo probito pelo valor estimado para Item (-β1/ β2), ajustado para a diferença de Transição e interação, quando for o caso. 8 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 833 FIGURA 11 – Curvas de resposta para classiicação de plosivas Fonte: Elaborada pelos autores. Legenda: Círculos e triângulos representam a percentagem média de resposta [(d)a] para cada nível de frequência inicial da transição de formantes em ambos os contínuos. Barras verticais indicam o erro padrão da média. Linhas contínua e pontilhada representam valores preditos pelo modelo não linear misto Consoante ao objetivo (1), a Figura 11 também possibilita airmar que a resposta dos participantes muda abruptamente de [b] para [d], mostrando o efeito de respostas categóricas. Contudo, aqui as curvas de classiicação não se encontram mais íngremes quando se trata dos estímulos compostos dos ruídos transientes (burst) apropriados para acompanhar [d]. De fato, a curva com os estímulos associados a [b] atingem um pouco antes o limiar de 50%. Se conirmado pela análise estatística, isso quer dizer que a pista do burst é de pouca valia para os falantes de português. Nesse sentido, é importante notar que as duas curvas não resultam muito separadas. 834 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Numa primeira análise, veriicamos se o modelo estatístico utilizado para avaliar os dados de classiicação de fricativas também seria adequado para a classiicação de plosivas. As variáveis independentes foram Burst (entre os contínuos) e Item, que aqui codiica a variação contínua da frequência inicial de F2 e F3 na transição de formantes que inicia a vogal subsequente à plosiva. Como fatores aleatórios, utilizaramse diferentes interceptos e inclinações de curva para cada sujeito. Comparado ao modelo nulo, em que apenas a média geral dos sujeitos e sua variação individual são utilizados como preditores, o modelo com interação entre os fatores foi altamente signiicativo (χ²(1) = 14,8; p = 0,00012). Entretanto, o melhor modelo estatístico foi o que considerou como variável explicativa apenas Item, desprezando a variação entre os contínuos. Em comparação ao modelo com interação, o modelo simples (apenas Item) foi signiicativo, ou seja, explica melhor a variância dos dados para a quantidade de parâmetros utilizados (χ²(2) = 6,14; p = 0,046). Desse modo, o melhor modelo para explicar a tarefa de classiicação foi aquele em que apenas a mudança ao longo do contínuo de formantes (variável Item) possibilita estimar a probabilidade de classiicação em /bata/ ou /data/ (χ²(1) = 36,63; p < 0,00001). Isso quer dizer que os falantes adultos do português do Brasil não utilizaram a pista de ruído transiente (burst) para a classiicação de plosivas que variam em ponto de articulação, ao contrário dos falantes do inglês. TABELA 14 – Estimativas de fronteira [b-d] para cada participante Participante Fronteira F2 F3 CC 4,82 1447 2482 GF 3,78 1356 2447 LB 3,89 1365 2450 LD 4,28 1400 2464 MP 4,09 1383 2457 PS 4,36 1407 2466 RC 4,32 1403 2465 TM 4,20 1393 2461 Geral 4,17 1390 2460 Fonte: Elaborada pelos autores. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 835 A Tabela 14 apresenta as estimativas de fronteira de fonema entre /bata/ e /data/ obtidas com base nos parâmetros calculados para cada participante usando os efeitos ixos e os efeitos aleatórios. Neste caso, a variável contínua foi a ordem dos estímulos no contínuo. Assim, o modelo estatístico possibilita prever o ponto imaginário numa linha contínua de itens em que a curva atinge a probabilidade de 50% de respostas /data/ (coluna “Fronteira”). Importante lembrar que cada estímulo foi produzido com um ou outro ruído transiente (burst), como variável entre contínuos, e com diferentes valores para o ponto inicial das transições de F2 e F3. Para isso, produziram-se duas séries de valores, uma para F2, variando em passos de 88 Hz, e outra, para F3, em passos de 34 Hz (TAB. 12). Com base nos valores originais de F2 e F3 do estímulo, estimaram-se os valores dos pontos correspondentes a 50% de respostas /data/ (colunas “F2” e “F3”, respectivamente). A linha “Geral” ao inal da tabela foi calculada utilizando-se os valores previstos levando-se em conta apenas os efeitos ixos do modelo inal, sem considerar diferença entre contínuos. Portanto, os valores estimados representam os valores iniciais de F2 e F3 em transições de formantes na vogal subsequente às plosivas, para a qual cada falante teria 50% de chance de responder /pata/ ou /bata/. Assim como para as fricativas, aqui também temos variação entre os indivíduos, que foi capturada pelo modelo estatístico. Os participantes GF e LB, à exceção dos demais, mudam de categoria antes do 4º estímulo do contínuo. Para o participante CC, a fronteira entre categorias está mais próxima do 5º estímulo do contínuo. A fronteira geral, obtida após levar em conta as diferenças individuais, resultou bastante próxima, mas justamente após o 4º estímulo do contínuo. 4.5 Resumo dos achados do experimento de classiicação O segundo estudo deste artigo investigou as pistas auditivas que podem ser utilizadas pelos ouvintes para diferenciar as palavras /ʃapa/-/ sapa/ e /bata/-/data/. Por meio de uma tarefa de classiicação, buscou-se veriicar: (1) se a mudança progressiva na variável manipulada dentro do contínuo produziu o efeito de percepção categórica; (2) se há diferença na inclinação da curva de respostas em função da variável manipulada entre os contínuos e (3) se a distância entre as curvas de respostas é signiicativa. 836 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Os participantes apresentaram curvas de classiicação íngremes, em formato de S alongado, diante do par mínimo /ʃapa/-/sapa/ e do par mínimo /bata/-/data/. Esse fato indicou o efeito de respostas categóricas. No par de palavras compostas das fricativas, observou-se que as curvas de classiicação foram mais íngremes quando se tratava dos estímulos compostos das transições de formantes apropriadas para acompanhar [ʃ]. Além disso, o contínuo de estímulos com transições apropriadas para [s] mostrou que o grupo atingiu o limiar de 50% de respostas [s] entre o 5º e o 6º estímulos do contínuo, antes do que no outro contínuo, com transições apropriadas para [ʃ], em que esse ponto é alcançado após o 6º estímulo. No par de palavras compostas das plosivas, as curvas de classiicação não foram mais íngremes quando se tratava dos estímulos compostos dos ruídos transientes (burst) apropriados para acompanhar [d], e a distância entre as curvas de resposta não foi signiicativa. Em relação à importância que os ouvintes atribuem às pistas auditivas para classiicar o par /ʃapa/-/sapa/ observou-se que tanto a mudança de altura das frequências mais intensas no ruído fricativo quanto a transição de formantes da vogal subsequente ao ruído foram pistas muito importantes para o grupo de participantes deste estudo distinguir entre /ʃapa/-/sapa/, mas a interação entre essas pistas não chegou a ser signiicativa. Diante do par /bata/-/data/ veriicou-se que os falantes adultos do português brasileiro não utilizaram a pista de ruído transiente (burst) para a classiicação de plosivas que variam em ponto de articulação. 5 Conclusões Este artigo foi dividido em dois estudos. O primeiro teve o objetivo de analisar e descrever as propriedades acústicas das fricativas [ʃ] e [s] e das plosivas [b] e [d] associadas à vogal [a] em posição inicial de palavra. Feita a análise, os estímulos foram sintetizados. O segundo teve o objetivo principal de investigar, por meio de uma tarefa de classiicação, as pistas auditivas utilizadas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/. Os resultados do primeiro estudo mostraram que as fricativas [ʃ] e [s] apresentaram valores de duração próximos, assim como a fase de soltura da oclusão (burst) das plosivas [b] e [d]. Já a fase de présonorização foi maior para a plosiva [b] quando comparada com a plosiva Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 837 [d]. Em consonância com os estudos realizados com as fricativas do inglês americano, do português europeu, do espanhol argentino e do italiano, observou-se que a fricativa [s] apresentou picos de amplitude mais proeminentes em regiões mais altas de frequência quando comparada com a fricativa [ʃ] e apresentou também valor médio maior do CG do que a fricativa [ʃ]. Diante das plosivas, veriicou-se que a plosiva alveolar [d] apresentou picos de energia mais intensos em regiões mais altas de frequência quando comparada com a plosiva bilabial [b]. Os resultados direcionados à análise do segundo formante vocálico (F2) mostrou que a diferença entre o início e o im da transição de formantes da vogal subsequente às fricativas foi maior para [ʃ] do que para [s]. Após [s], quase não se observou mudança nos valores de F2, entre a região de transição e a região estável, ao contrário dos estudos que se basearam nas propriedades acústicas dos falantes do inglês. Parece que,, no inglês, a transição do F2 seguinte às fricativas é mais marcada, o que pode tornar a pista de transição do F2 mais informativa nesta língua quando comparada com o PB. Por im, os resultados do segundo estudo revelaram que os participantes apresentaram curvas de classiicação íngremes, diante dos pares mínimos /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/, com efeito de respostas categóricas. No que diz respeito às pistas auditivas utilizadas para diferenciar as palavras /ʃapa/-/sapa/ e /bata/-/data/, observou-se que, para o par /ʃapa/-/sapa/, tanto a transição dos formantes vocálico quanto a altura das frequências mais intensas no ruído fricativo auxiliaram os ouvintes na distinção desse par. Para o par /bata/-/data/ ,veriicou-se que os participantes desse estudo não utilizaram a pista de ruído transiente (burst) para a classiicação das plosivas [b] e [d], como fazem os falantes nativos do inglês. Assim, os resultados deste estudo indicam diferenças linguísticas que afetam a percepção da distinção de ponto de articulação das fricativas e das plosivas por falantes do PB. Agradecimentos Ao CNPq, pela bolsa Pq 312277/2015–6 para o primeiro autor, e à CAPES, pela bolsa de estágio sanduíche no exterior para a segunda autora. 838 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p.793-842, 2018 Referências ALVES, M. A. 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Tradicionalmente, assume-se que a obviação é uma propriedade de complementação subjuntiva ou um fenômeno resultante, juntamente com o controle, da competição entre formas initas / não initas. No entanto, os dados das línguas analisadas não condizem com essas hipóteses. Assumindo a teoria de seleção semântica e a versão minimalista de subcategorização (cf. ADGER, 2004), propõe-se que a obviação, exibida em complementação sentencial, é uma restrição semântica exigida por três tipos de predicados: os causativos, os volitivos e os perceptivos físicos, que serão tomados como predicados capazes de impor restrições semânticas aos seus complementos. Palavras-chave: referência disjunta; predicado matriz; interface sintaxesemântica; línguas românicas/línguas da área balcânica. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.3.843-877 844 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 Abstract: This paper investigates patterns of referentiality in sentential complementation in Portuguese, Italian and Modern Greek, especially the phenomenon known as obviation or disjoint reference. This is a constraint attested in languages, and it is characterized by the fact that the subject of the subordinate clause must be disjoint in reference to the subject of the matrix sentence. Traditionally, obviation has been assumed to be a property of subjunctive complementation, or a phenomenon arising along with the control from the competition between inite/non-inite forms. However, the data are not consistent with these hypotheses. Based on the theory of semantic selection and a minimalist version of subcategorization (cf. ADGER, 2004), this thesis proposes that obviation, in sentential complementation, is a semantic constraint required by three types of predicates, the causative, volitional and physical perceptive predicates, which will be taken as predicates able to impose semantic constraints on their complements. Keywords: disjoint reference; main predicate; syntax-semantics interface; Romance and Balkan languages. Recebido em 28 de novembro de 2017. Aceito em 19 de dezembro de 2017. 1 Introdução Uma propriedade semântica das línguas é possibilitar que elementos mantenham relações de referencialidade uns com os outros em diferentes posições nas sentenças. Por exemplo, em (1), himself, ocupando a posição de objeto, faz referência ao sujeito John. Em (2), o objeto him não pode ser correferente ao sujeito John e, em (3), a categoria vazia, na posição de sujeito do complemento encaixado, pode fazer referência ao sujeito matriz, Giovanni, ou a outro elemento que não está na sentença. (1) John1 loves himself1/*2. (Inglês) ‘João se ama’ (2) John1 loves him*1/2. (Inglês) ‘João o ama.’ Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (3) 845 Giovanni1 ha detto che cv1/21 comprerà una nuova casa. (Italiano) ‘João disse que comprará uma nova casa.’ Essas relações semânticas de referencialidade nas línguas podem ser de três tipos: correferência, como em (1), não correferência, como em (2), e referência livre, como em (3). Tendo como base a Teoria de Princípios e Parâmetros (cf. Chomsky, 1981), quadro teórico no qual nos basearemos nesta investigação, essa propriedade semântica de referencialidade pode ser capturada por meio da Teoria da Ligação, que trata das condições/exigências de ligação de três tipos de sintagmas nominais: as anáforas, os pronomes e as expressões referenciais, bem como por meio da Teoria do Controle, que diz respeito às relações sintáticas e interpretativas entre uma categoria vazia (PRO) e seu antecedente em conigurações não initas. Nos contextos de complementação sentencial, essas relações interpretativas podem ser exibidas entre os DPs sujeitos da sentença matriz e encaixada, como nas sentenças em (4), e entre o objeto da oração matriz e o sujeito da oração complemento, ilustrado em (5). (4) a. João quer viajar. b. João quer que ele viaje. c. João pensa que ele vai viajar. (5) João lamentou a Maria eles irem embora. Nesta pesquisa, desenvolveremos uma investigação sobre as relações de referencialidade entre sujeitos sintáticos nos contextos de complementação sentencial, especiicamente nos tipos de construções delineados em (4). Os contextos apresentados em (1), (2) e (5) não serão alvo de nossa análise, já que (1) e (2) não representam contextos de complementação sentencial e (5) trata de relação de referencialidade entre objeto e sujeito de complemento, não se assemelhando ao contexto em (3) e (4). 1 Nos exemplos, a sigla cv abrevia categoria vazia, referindo-se ao sujeito nulo em questão. 846 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 O padrão de referencialidade denotado em (4a) é tratado pela literatura como contexto de correferência ou controle. Em (4b), a ausência de correferência entre os sujeitos é denominada referência disjunta ou obviação e, em (4c), há possibilidade tanto de correferência quanto de não correferência entre os sujeitos, o que se convencionou chamar de referência livre. Tomaremos dados do português do Brasil para análise e teceremos comentários sobre esse fenômeno no italiano e em línguas da área balcânica, como o grego moderno, que não exibe esse fenômeno no mesmo contexto exibido pelas línguas românicas. A nossa hipótese é a de que a referência disjunta obrigatória (RD) em complementação sentencial é uma restrição semântica imposta pelo tipo de predicado matriz, o que faz esse efeito semântico ser uma propriedade universal de línguas que dispõem desses contextos em complementação sentencial. Nas próximas seções, apresentaremos nosso objeto de estudo, a problemática que o envolve, algumas tentativas da literatura que tentam explicá-lo, bem como a análise e os resultados dos dados investigados. 2 Tentativas na literatura para explicar controle e obviação nas línguas Há duas hipóteses muito debatidas na literatura que se propõem explicar os contextos nos quais controle e obviação são exibidos nas línguas. A primeira delas é a Hipótese da Rivalidade Subjuntivo / Ininitivo (HRSI), que toma initude como uma noção importante para explicar padrão de referencialidade nas línguas. Segundo essa hipótese, apenas línguas que exibem sentenças finitas / não finitas podem desencadear obviação e controle, já que se assume que esses fenômenos são desencadeados pela competição entre estruturas initas / não initas (cf. BOUCHARD, 1984; FARKAS, 1992; KRAPOVA, 2001). Essas pesquisas se baseiam na ideia de que há marcação de Caso na estrutura inita e seu bloqueio na não inita, como está ilustrado no contraste entre (6a) e (6b) do português do Brasil (PB). (6) a. João1 quer cv1/*2 comprar a bola. b. João1 quer que ele*1/2 compre a bola. Uma descrição supericial do contexto em (6a) nos permite dizer que é uma estrutura de ininitivo, na qual é desencadeada correferência Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 847 pronominal e não há licenciamento de sujeito nominativo visível na complementação não inita da encaixada, o que desencadeia o chamado controle. Por outro lado, a sentença (6b) ilustra um contexto de oração inita, licenciando complementação subjuntiva com sujeito nominatvo disjunto referencialmente do sujeito matriz. As abordagens que se baseiam nessa hipótese conirmam que o contraste obviação/controle é possível nas línguas românicas, já que estas exibem complementação inita /não inita, mas não é possível em línguas da área balcânica, como o grego moderno, já que estas não dispõem de ininitivos. Como a obviação tem sido documentada nos contextos de volitivos, a outra linha de investigação tenta associar a obviação à modalidade subjuntiva, tomando-a como uma propriedade de modo subjuntivo (cf. BORER, 1989; KEMPCHINSKY, 1998). Nesse caso, toma-se como base a Teoria da Ligação (TL) e a noção de Domínio de Ligação (DL) para explicar a ausência de correferência pronominal nesses contextos. A relação de referencialidade entre um pronominal e seu antecedente nessa linha é capturada pelo Princípio B, que trata do comportamento dos pronomes e exige que estes sejam livres em seu Domínio. No entanto, esse pressuposto não tem conseguido dar conta das construções com sujeitos pronominais obviativos, e o problema que resulta disso é tentar explicar por que as restrições de ligação sobre pronomes obviativos, como em (7), parecem ser mais rigorosas do que aquelas impostas sobre os pronomes em outras estruturas, como em (8). Observe o par de sentenças em (7) e (8). (7) a. João1 quer que ele*1/2 viaje. b. *Eu quero que eu viaje. (8) a. João1 acha que ele1/2 vai viajar. b. Eu acho que eu vou viajar. O pronome obviativo da encaixada nas sentenças em (7) obedece não apenas ao Princípio B da TL, como também deve ser livre em relação ao sujeito da oração matriz, comportando-se diferentemente dos pronomes nas sentenças em (8). Esta diferença no comportamento do pronome obviativo em relação a outros pronomes levou Bouchard (1984) a sugerir que a referência disjunta não fosse analisada a partir de pressupostos da TL. 848 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 Outras abordagens, seguindo a linha de investigação da Teoria de Regência e Ligação – TRL, tentam explicar a diferença de comportamento entre as construções em (7) e (8), sugerindo que sentenças subjuntivas como em (7) se caracterizam por ter tempo dependente em relação à oração matriz. Essa anaforicidade temporal desencadeia uma extensão do Domínio de Ligação da encaixada, que se estende para a oração matriz e, portanto, o sujeito pronominal da encaixada tem de ser diferente referencialmente do sujeito matriz, já que estão no mesmo domínio, a im de não violar o Principio B (cf. RAPOSO, 1985; BORER, 1989; KEMPCHINSKY, 1998). Essas abordagens sugerem duas direções. Por um lado, a obviação tem sido tomada como uma propriedade de modo subjuntivo, especialmente dos contextos de predicados volitivos. E, em outra direção, muitos trabalhos desenvolvidos na década de 80, seguindo orientações da TRL, tentam correlacionar o ‘controle’ à questão de não initude sentencial, de modo que o locus por excelência de ocorrência desse fenômeno é o de construções não initas. Argumenta-se que o DP matriz controla a interpretação da posição de sujeito vazio da oração ininitiva, desencadeando a correferência, como exempliicado em (9), em que João e PRO – sujeito do ininitivo – mantêm uma relação anafórica entre si. (9) João quer PRO comprar um livro.2 No entanto, essas hipóteses podem ser contestadas com base em dados do português, italiano e grego moderno, o que será exposto na próxima seção. 3 Contraevidências para a Hipótese da Rivalidade Subjuntivo/ Ininitivo e para a obviação subjuntiva Os dados do português brasileiro nos mostram que a obviação pode ser desencadeada em outros contextos, além da complementação subjuntiva, como nos contextos de complementação indicativa selecionada por predicados perceptivos físicos, como em (10a), nos contextos de ininitivo lexionado selecionados por predicados causativos e perceptivos 2 Para uma análise semântica da sentença em (9), ver Chierchia (1989) https://scholar. harvard.edu/iles/chierchia/iles/1989_de-se.pdf Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 849 no português, como em (10b), além dos contextos de volitivos e causativos com complementação subjuntiva, como em (10c). E controle não é exibido apenas em contextos não initos, pois a relação ‘anafórica’ entre sujeitos pode ser observada em alguns casos de complementação indicativa, no PB, como em (11) (cf. FERREIRA, 2000). (10) a. João1 viu que ele*1/2 foi embora. b. João e Maria1 mandaram/viram eles*1/2 irem embora. c. João1 queria/mandou que ele*1/2 fosse embora. (11) João1 disse que cv1/*2 vai viajar hoje. (PB) O grego moderno também fornece evidências contrárias à hipótese que tenta ligar a obviação à modalidade subjuntiva, pois os predicados volitivos, nessa língua, não exibem referência disjunta, mas referência livre, como em (12). (12) Ta koritsia1 thelun na pane1/2 sto sinema. ao cinema.’ ‘ As meninas1 querer-IND que-SBJV ir ‘As meninas querem que elas vão ao cinema.’ Para explicar esse dado, costuma-se assumir na literatura, tomando como base a HRSI, que o grego, por não exibir ininitivos, não desencadeia obviação, o que explicaria a referência livre nos volitivos em (12). No entanto, os fatos não corroboram essa hipótese, pois, nos contextos de predicados causativos e de perceptivos físicos, há obviação no grego, como ilustrado no par de sentenças em (13). (13) a. O Yanis1 parigile na cv*1/2 plini ta piata pio grigora. (GM) O João mandou que-SBJV lavar-IMP-3SG os pratos mais rapidamente ‘O João mandou que lavasse os pratos mais rapidamente’ b. O Yanis1 idhe na cv*1/2 erxete. vir-3SG O João viu-3SG ‘O João viu que ele vinha’ Outra contraevidência para a obviação subjuntiva foi encontrada no ininitivo lexionado. No português, há dois contextos especíicos que 850 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 selecionam ininitivo lexionado e que exibem dois diferentes padrões de referencialidade: 1) os causativos/perceptivos e 2) os factivos / epistêmicos (cf. MEIRA, 2013). Nestes, há desencadeamento de referência livre; naqueles, de obviação, conforme ilustrado, respectivamente, em (14a) e (14b): (14) a. João e Maria1 mandaram / viram eles*1/2 saírem mais cedo b. João e Maria1 lamentaram eles1/2 sairem mais cedo Todos esses dados constituem forte evidência de que obviação e controle não estão em distribuição complementar, visto que são exibidos em contextos variados. Adicionalmente, esses dados podem ser tomados como evidência também para a airmação de que essas restrições parecem não dizer respeito ao tipo de complemento selecionado, mas ao tipo de predicado matriz que os seleciona, já que, de forma geral, os contextos de predicado causativo, de percepção física e volitivo são os únicos que exigem obviação nas línguas analisadas, o que torna evidente dois fatos sobre o desencadeamento desse fenômeno: (i) não se trata de uma competição entre formas initas/não-initas, já que não se tem ininitivo no grego, mas há obviação em outros contextos nessa língua, e a (ii) obviação não é uma propriedade restrita de contextos de morfologia de modo subjuntivo, pois é exibida também nas estruturas de predicados de percepção física, de complementação indicativa e de ininitivo lexionado selecionado por predicado causativo/perceptivo. Neste artigo, tentaremos resolver os problemas apresentados, especialmente aqueles relacionados aos contextos obviativos, com base em análises de dados do português, fazendo comparação com sentenças do italiano e do grego moderno, que constituirão nossa fonte de investigação. Na próxima seção, apresentaremos os dados que tomaremos como base para a realização desta pesquisa. 3.1 Padrões de referencialidade em complementação sentencial nas línguas Os padrões de referencialidade pronominal serão analisados em contextos de complementação sentencial com sujeitos, matriz e da encaixada, de 3ª pessoa. Nossos dados serão divididos em três grupos, conforme descrito a seguir, na Tabela 1. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 851 TABELA 1 – Contextos de referencialidade em complementação sentencial a) Predicados que exigem Obviação (Referência Disjunta) b) Predicados que desencadeiam Controle (Correferência) c) Predicados que exibem Referência Livre Fonte: Meira, 2013, p. 48. Os predicados de complementação subjuntiva analisados no português, italiano e grego foram os de verbos volitivos, causativos, factivos e psicológicos, respectivamente ilustrados em (15a), (15b), (15c) e (15d). (15) a. O João1 quer que ele*1/2 compre uma casa nova. (PB) b. O Yanis1 parigile na plini*1/2 ta piata pio grigora. (GM) lavar-imper-3ªsg os pratos O João mandou que-subj mais rapidamente. ‘João mandou que ele lavasse os pratos rapidamente.’ c. Giovanni1 si lamenta che cv*1/2 compri una vecchia casa. (ITAL) d. O João1 teme que cv1/2 reprove no exame. (PE) No italiano, todos os predicados que selecionam morfologia de modo subjuntivo desencadeiam RD, sendo o sujeito realizado ou nulo, conforme exemplo (15c), o que parece indicar que se trata de uma peculiaridade especíica dessa língua. Por outro lado, o grego apresenta dois padrões de referencialidade em sentenças subjuntivas: as que desencadeiam RD nos predicados causativos, como ilustrado em (15b), e as que desencadeiam RL nos factivos, psicológicos e volitivos.3 No português foram observados dois padrões de referencialidade nos contextos de subjuntivo: (i) a RD, nos contextos de complementação a predicados volitivos e causativos, e (ii) aquele que licencia RL nos contextos de factivos e de verbos psicológicos. O grupo de predicados causativos e volitivos será tratado separadamente dos demais por exigirem OBV. A tabela a seguir sintetiza esse resultado. 3 Remeto o leitor a Meira (2013) para uma visualização completa dos dados investigados. 852 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 TABELA 2 – O padrão de referencialidade nos predicados subjuntivos no português, italiano e grego Predicados Correferência Referência Disjunta RL Causativos --- PB/ITAL/GM --- Volitivos --- PB/ITAL GM Factivos/Psicológicos --- ITAL PB/GM Fonte: Meira, 2013, p. 53. Esses dados demonstram que morfologia de modo subjuntivo não é uma condição sine qua non para se desencadear RD, pelo menos não o é no português e no grego. O predicado causativo foi o único contexto em que a RD foi exibida em todas as línguas analisadas. Com relação aos predicados indicativos, foram investigados quatro grupos: os predicados de percepção física, como no conjunto de sentenças em (16), de percepção mental, como em (17), epistêmicos, como em (18), e os declarativos, como ilustrado em (19). (16) a. O João1 viu que ele*1/2 estava dormindo. (PB) b. O João1 viu que cv*1/2 comprou o livro. (PE) c. Giovanni1 ha visto che cv*1/2 ha comprato il libro. (ITAL) d. O Yanis1 idhe cv*1/2 na erxete. (GM) O João viu-3sg comp vir-3sg. ‘O João viu que ele vinha.’ (17) a. O João1 se lembrou que ele1/2 perdeu as chaves. (PB) b. O João1 lembrou-se que cv1/2 perdeu as chaves. (PE) c. Giovanni1 si è ricordato che cv1/2 ha perso le chiavi. (ITAL) d. The Yanis1 thimithike oti cv1/2 aghorase tsighara. (GM) O João lembrou-3sg que comprou-3sg cigarros. ‘João se lembrou que comprou cigarros.’ Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (18) 853 a. O João1 acredita que ele1/2 comprará uma casa nova. (PB) b. O João1 acredita que cv1/2 comprará uma casa nova. (PE) c. Giovanni1 pensa che cv1/2 comprará una nuova casa. (ITAL) d. Yanis1 pistevi oti cv1/2 tha perasi stis eksetasis. (GM) João acredita-3sg que FUT passar-3sg nos exames. ‘João acredita que ele passará nos exames. (ele ou outra pessoa). (19) a. O João1 disse que ele1/2 comprará uma casa nova. (PB) b. O João1 disse que cv1/2 comprará uma casa nova. (PE) c. Giovanni1 ha detto che cv1/2 comprerà una nuova casa. (ITAL) d. O Yanis1 lei oti cv1/2 tha iji, (GM) O João dizer-3sg que FUT ir-3sg ‘João disse que ele partirá.’ Foi observado o mesmo padrão de referencialidade na complementação indicativa: (i) RD, quando a sentença encaixada é selecionada por predicados de percepção física, e (ii) RL, nos contextos de percepção mental, epistêmicos e declarativos. Esse fato merece investigação já que se trata de um caso excepcional no contexto de indicativo, por apresentar propriedade que seria a priori apenas peculiar à modalidade subjuntiva. O perceptivo físico, apesar de ser semanticamente diferente do perceptivo mental, compartilha com este a mesma forma verbal, ao menos no português. Em (20), o verbo matriz ver possibilita duas acepções: (20a) a física e (20b) a mental. (20) a. João1 viu ele*1/2 dormindo b. João1 viu que ele1/2 chegou atrasado A primeira acepção diz respeito ao sentido físico da visão. João viu alguém (diferente de João) dormindo, percepção física (cf. FELSER, 1999). Essa acepção de ver desencadeia apenas OBV. A segunda acepção faz referência a um sentido mental, de perceber algo 854 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 com base em alguma inferência, um relógio, por exemplo. Nesse caso, João percebeu que alguém ou ele mesmo chegou atrasado. Essa segunda acepção possibilita RL e, por ser uma fonte mental, relaciona-se mais a uma leitura epistêmica. Verbo perceptivo, quando seleciona ininitivo lexionado como complemento no PB, pode apenas ser interpretado como de percepção física, admitindo apenas OBV.4 Tomando como base os contextos de OBV apresentados, esse fenômeno, de forma geral, é desencadeado nos contextos de complementação sentencial independente do tipo de morfologia de modo (indicativo ou subjuntivo) e independente do contraste entre formas initas/não-initas. Por isso, investigaremos esses dados considerando os três tipos de contextos já expostos na Tabela 1 e, com base nisso, sintetizamos, na Tabela 3, uma descrição das línguas analisadas a respeito dos padrões de referencialidade. 4 Agradeço ao parecerista anônimo pelas observações a respeito do fato de que o perceptivo físico pode, em alguns contextos, levar a uma leitura de referência livre, como (ib, ic e id), e essa mudança na referencialidade parece ser direcionada, segundo o parecerista, pelo tipo de predicado da encaixada, conforme se observa nos seguintes exemplos: a. O João1 viu que ele*1/2 estava dormindo (PB) b.João1 viu que ele1/2 estava pegando fogo. c. Pavarotti1 viu que ele1/2 estava com as suas calças pegando fogo. d. João1 viu ele1/2 correndo (Supondo o contexto de um espelho) No entanto, mantenho minha opinião de que os contextos em (ia) e (id), tendo o sentido de percepção física, levam apenas a leitura de OBV, e de que os contextos em (ib) e (ic) possibilitam referência livre, já que o verbo da matriz tem o sentido de perceber, de sentir – portanto, de percepção mental. Na verdade, para o perceptivo isico denotar essa leitura sugerida de correferência em (id), por exemplo, necessitaria de um pronome relexivo, como em (ie), o que modiica o contexto analisado neste trabalho. (i) e. João se viu (correndo) no espelho Certamente, em alguns dialetos, diferentes leituras serão possíveis, mas a preferencial no contexto de perceptivo físico será a OBV. 855 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 TABELA 3 – Tipos de padrões de referencialidade em complementação sentencial e seu contexto de ocorrência no Português, Italiano e Grego Contextos Predicados Finitos não-initos OBV Causativos/Percepção física (Todas as línguas) Causativos/Percepção Física (Português) (Ininitivo lexionado) Volitivos (Português/italiano) Factivos/Psicológicos (Italiano) RL Factivos/Psicológicos (PE/PB/GM) Factivos (Português) (Ininitivo lexionado) Volitivos (GM) Epistêmicos/Declarativos/Percepção Mental (Todas as línguas) Volitivo/Declarativo (PB) (Ininitivo não-lexionado) Controle Fonte: Meira, 2013, p. 64. A conclusão a que se pode chegar com base na Tabela 3 é a de que os contextos por excelência de ocorrência de OBV nas línguas analisadas são os predicados causativos e perceptivos físicos. O predicado volitivo apresenta variação, pois na complementação inita exibe RD e, na ininitiva, controle. Por outro lado, no GM, esse contexto exibe apenas RL, apesar da leitura padrão ser a de correferência. Na Tabela 4, apresentamos os contextos de RD obrigatória, de acordo com o que foi investigado até aqui. TABELA 4 – Contextos de ocorrência de Obviação nas línguas analisadas Línguas Predicados Grego Moderno Causativos – Perceptivos Físicos Português Causativos – Perceptivos Físicos Volitivo Italiano Causativos – Perceptivos Físicos Predicados com morf. de SUBJ. Fonte: Meira, 2013, p. 65. Esses fatos deixam evidente que há algo em comum entre verbos de percepção física, causativos e volitivos que os levam a desencadear a OBV 856 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 nas línguas. Mas qual seria essa propriedade? Na seção 4, apresentaremos alguns pontos em comum entre os predicados que exigem OBV, e são essas noções que nos guiarão no desenvolvimento deste trabalho. Antes disso, na próxima seção, será apresentada uma nota sobre alguns predicados que selecionam complementação indicativa e subjuntiva no grego, bem como os tipos de complementizadores que estruturam essas sentenças. 3.2 Nota sobre os predicados de complementação indicativa e subjuntiva no grego A complementação sentencial a predicados de percepção física no grego com o complementizador –na pode ser constituída de duas maneiras diferentes: (i) sentença com um clítico, em que há subida do pronome para a oração matriz, como em (21a), e (ii) um predicado com Marcação Excepcional de Caso, do inglês Exceptional Case Marking (ECM), em que o sujeito da encaixada é marcado por Caso, pelo verbo matriz, como em (22b), ou seja, o iniciador da eventualidade encaixada será realizado como pronome clítico ou como DP. Em todos esses contextos, há RD obrigatória. Esses contextos se assemelham aos casos de predicado complexo admitidos também pelas línguas românicas. (21) a. O Yanis1 ton2 idhe cv*1/2 na erxete. O Joao ele/o viu-3SG PRT vir-3SG ‘João o viu vindo’ b. O Yanis idhe tin alepu na erxete. O João viu-3sg PRT a raposa-ACUS que vir-3sg ‘O João viu que a raposa vinha’ Em contextos especíicos, é também possível sentenças do tipo (22), como complemento de predicados de percepção física. (22) O Yanis1 idhe cv*1/2 na erxete. O João viu-3sg comp vir-3sg ‘O João viu que ele vinha’ No entanto, tanto o padrão de referencialidade quanto o sentido do verbo é alterado nos contextos de perceptivos com um complementizador –oti, como ilustrado em (23). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (23) 857 O Yanis1 idhe oti cv1/2 efaje kala. O João viu-3sg PRT que-comp comeu-3sg bem ‘João viu que ele comeu bem’ (Ou João ou alguém comeu bem) No grego, há dois tipos de complementos a verbos de percepção mental: (i) complementos-oti (que): admitem apenas referência livre: (24) O Yanis1 thimithike oti cv1/2 aghorase tsighara. (GM) O João se lembrou-3sg que comprou-3sg cigarros ‘O João se lembrou de que ele comprou cigarros’ (ii) complementos-na (que): desencadeiam como leitura padrão a correferência, mas a depender do contexto há leitura de RL. (25) O Yanis1 thimithike na cv1/*2 aghorasi tsighara. (GM) O João se lembrou-3sg PRT que comprar-3sg cigarros ‘João se lembrou de comprar cigarros’ No contexto de predicado epistêmico e de declarativos com -oti, admite-se apenas RL, conforme ilustrado respectivamente em (26a) e (26b/26b’). (26) a. O Yanis1 pistevi oti cv1/2 tha perasi stis eksetasis. O João acredita-3sg que PRT-FUT-passar-3sg no exame. ‘João acredita que ele passará no exame. (ou ele ou outra pessoa) oti cv1/2 tha pane sto sinema. (GM) b. Ta koritsia1 ipan As garotas disseram-3pl que PRT-FUT ir-3pl para o cinema. ‘As garotas disseram que elas iriam para o cinema.’ (ou as próprias garotas ou outras) oti cv1/2 tha iji. b’. O Yanis1 lei O João diz-3sg que PRT-FUT partir-3sg ‘O João diz que ele partirá.’ (ou o próprio João ou alguma outra pessoa) 858 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 No grego, há diferentes tipos de complementizadores. Por exemplo, predicados cujo complemento oracional é de subjuntivo terão complementizadores –na (que + subjuntivo). Oti, por outro lado, é um complementizador indicativo. Há ainda complementos com pu (que), como nos perceptivos físicos, factivos e psicológicos. Pu como relativizador ocorre em contextos de correferência, como em (27). (27) Idha ton Petro pu efthase argha xthes vradi. ‘Eu vi Pedro que chegou tarde noite passada.’ Por outro lado, complementos -pu, com um sujeito nulo, ocorrem nos predicados perceptivos físicos e OBV.5 (28) a. Idha pu katharize. ‘Eu1 vi que ele*1/2/ela estava limpando.‘ b. *idha pu kathariza. ‘Eu vi que eu estava limpando.’ Apesar das diferentes formas de complementizadores (-pu, -na, -oti) no grego, a RD obrigatória é exibida nos contextos de causativos e em construções de perceptivos físicos, o que parece sugerir que essa restrição é direcionada pelo tipo de predicado matriz. 4 A relação entre os predicados causativos/volitivos e os de percepção física: as modalidades proposicional e de evento A categoria de modalidade tem sido classiicada no mínimo em dois tipos nas línguas: a Epistêmica e a Deôntica (cf. LYONS, 1977; PALMER, 1986). Palmer (2001) redistribui as modalidades em deôntica e dinâmica, por um lado, e epistêmica e evidencial, por outro. Modalidade epistêmica pode ser deinida como a categoria que descreve a opinião do falante diante de um índice proposicional, de uma situação (cf. PIETRANDREA, 2005). Por outro lado, a modalidade deôntica expressa obrigação e permissão, necessidade ou possibilidade de ações realizadas por um determinado agente (cf. HATAV, 1997, LYONS, 1977). 5 Construções de perceptivo físico com –pu desencadeiam OBV. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 859 Predicados causativos e volitivos denotam o mesmo tipo de modalidade: a deôntica (cf. PALMER, 1986; HATAV, 1997; NORDSTROM, 2010; WYMAN, 2010). Causativos e volitivos estão inseridos dentro da chamada Modalidade Raiz (Root Modality), que expressa os sentidos de obrigação, permissão ou habilidade (cf. SWEETTSE, 1990; FRAWLEY, 1992; PIETRANDRE, 2005). Modalidade raiz inclui as modalidades deôntica e dinâmica: obrigação, permissão, habilidade, volição, i.e., agrupam as noções ligadas aos predicados causativos e volitivos (cf. LYONS, 1977; FRAWLE, 1992). Outra evidência de que volitivos também se relacionam semanticamente com a modalidade deôntica está no fato de eles indicarem mais uma ação possível do que a verdade de uma proposição (cf. PALMER, 1986). Nosso foco nesta pesquisa são os predicados causativos, volitivos e perceptivos físicos, já que nesses contextos a RD é exigida obrigatoriamente entre sujeitos. Os dois primeiros predicados são classiicados como de modalidade raiz. Os perceptivos físicos são tomados, pela literatura, como evidenciais (cf. GIVÓN, 1982 apud PIETRANDREA, 2005; WILLET, 1988; PALMER, 2001). Nesta pesquisa, argumentaremos que eles se distinguem dos perceptivos mentais por serem não epistêmicos, não proposicionais. Palmer (2001) classiica os sistemas Epistêmico e Evidencial como tipos de modalidade Proposicional e os sistemas deôntico e dinâmico, como tipos principais da Modalidade de Evento. A relação entre eles pode ser interpretada da seguinte forma: A modalidade epistêmica e a evidencial fazem referência à atitude do falante a um valor de verdade ou a um status factual da proposição (modalidade Proposicional). Por outro lado, as modalidades deôntica e dinâmica se referem a eventos que não são reais, eventos que não ocorreram, mas são meramente potenciais (modalidade de Evento). (PALMER, 2001, p. 08)6 6 “[...] epistemic modality and evidential modality are concerned with the speaker’s attitude to the truth- value or factual status of the proposition (Propositional modality). By contrast, deontic and dynamic modality refer to events that are not actualized, events that have not taken place but are merely potential (Event modality)” (PALMER, 2001, p. 8) 860 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 Eventos e proposições são noções que indicam as informações denotadas pelos predicados. Proposições se referem a pensamentos e a crenças (cf. PARSONS, 1990), indicam entidades mais abstratas, ligadas à mente do falante. Sentenças que expressam condições são também proposições. Proposição não pode ser tomada como uma entidade concreta, real, existe apenas na mente do falante. Eventos, por sua vez, são propriedades concretas e particulares, realizados em um tempo e espaço determinados, podendo ser mais genéricos ou mais especiicos (cf. MONTAGUE, 1969; HIGGINBOTHAM, 2000).7 Como nosso foco é propor uma relação entre o tipo de modalidade denotada pelos predicados causativos, volitivos e perceptivos e mostrar a forma como isso se relaciona com a OBV, que é exigida por eles, apresentaremos nos parágrafos seguintes a modalidade denotada por esses predicados, que tipo de leitura (eventiva ou proposicional) eles denotam, a forma como essas noções semânticas são capturadas pela sintaxe e como a RD pode ser entendida nesse contexto. Palmer (2001) classifica os evidenciais, que englobam os predicados perceptivos, como denotadores de modalidade proposicional. No entanto, não há um consenso na literatura a esse respeito. Butler (2004) toma ininitivos selecionados por predicados perceptivos físicos como denotadores de modalidade eventiva. Tomando proposição como uma noção que se refere a pensamentos, argumentamos que, como predicados perceptivos abarcam duas acepções – o perceptivo físico e o perceptivo mental –, a acepção denotada pelo perceptivo mental é mais ligada a impressões, a inferências causadas por determinada situação, tendendo a se relacionar mais a uma leitura proposicional, com um valor epistêmico. Por outro lado, a outra acepção dos perceptivos, a física, denota modalidade eventiva, relacionando-se com o que é mais concreto, não-epistêmico. Observe as sentenças em (29a) e (29b). (29) a. João viu Maria sair. (evento/percepção física da visão) b. João viu que Maria gostava dele. (proposição/percepção mental, sentido de perceber) 7 Para uma discussão mais aprofundada sobre a diferença entre proposição e evento, remetemos o leitor aos trabalhos de Montague (1969), Chisholm (1970), Pianesi e Varzi (2000), Higginbotham (2000), Parsons (1990), Asher (2000), dentre outros. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 861 A sentença em (29a) denota o que foi visto pelo sujeito, a ação realizada, o evento, ao passo que (29b) indica a impressão que o sujeito da sentença tem de determinada situação, denota uma leitura proposicional. Butler (2004) observou que verbos infinitivos em inglês selecionados por predicados perceptivos físicos e epistêmicos possibilitam dois tipos de leituras. Os primeiros denotam uma leitura eventiva, enquanto que os verbos epistêmicos fazem referência a uma leitura proposicional. Sua argumentação se baseia nos dois tipos de ininitivos em inglês: o ininitivo nu e o precedido pela partícula to. E ele chega à conclusão de que verbos de percepção física são seguidos por um ininitivo nu, denotando uma leitura eventiva, ao passo que verbos epistêmicos selecionam ininitivo precedido por to e denotam uma leitura proposicional. Para ilustração, apresentamos o par de sentenças a seguir. (30) a. I saw Mary sing. (Evento) b. *I saw Mary to sing. ‘Eu vi Maria cantar.’ (31) a. I believe Mary to have sung. (Proposição) b. *I believe Mary sing. ‘Eu acredito que Maria tenha cantado.’ Tomando como base essas pesquisas, assumimos proposição como objeto de crenças (cf. PARSON, 1990) e classiicamos predicados epistêmicos e perceptivos mentais (cf. PALMER, 2001), como denotadores de proposições. Por outro lado, predicados perceptivos físicos serão tomados como denotadores de eventos, assim como os predicados de modalidade deôntica/dinâmica. Modalidade deôntica expressa obrigação e permissão de ações realizadas por um determinado agente (cf. LYONS, 1977); causativos e volitivos denotam esse tipo de modalidade (cf. PALMER, 1986; NORDSTROM, 2010; WYMANN, 2010), possibilitando leitura eventiva. Predicados perceptivos físicos são classiicados como Evidenciais (cf. HIGGINBOTHAM, 1983; PALMER, 2001) e denotam leitura não epistêmica (cf. FELSER, 1999). Os mentais, por sua vez, estão ligados aos epistêmicos. 862 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 Predicados causativos, volitivos e perceptivos físicos em comum se caracterizam por propiciar leitura de RD obrigatória entre o pronome de 3ª pessoa da oração complemento e o sujeito nominal de 3ª pessoa da oração matriz. Esses predicados são denotadores de leitura eventiva, tem um caráter não epistêmico e propiciam leitura de OBV, em contraste com a leitura proposicional e a possibilidade de RL dos predicados epistêmicos. Isso é interessante na medida em que assumimos que uma leitura eventiva desencadeia, sintaticamente, uma estrutura diferente de um predicado que propicia leitura proposicional (cf. ROCHETTE, 1988; HORNSTEIN, MARTINS e NUNES, 2006). Como a OBV é uma propriedade semântica de certos predicados, isso pode ser capturado na sintaxe pelo licenciamento de estruturas sintáticas distintas. De alguma forma, a OBV é admitida nos contextos de modalidade não epistêmica e nosso objetivo é demonstrar como isso é mostrado pela sintaxe. No PB, os causativos e verbos de percepção física admitem OBV tanto na complementação inita quanto na ininitiva; por outro lado, os volitivos exigem esse fenômeno apenas na complementação inita. Duas razões podem explicar esses fatos: (i) a força causadora (deôntica) nos predicados causativos é maior do que nos volitivos, de acordo com uma perspectiva tipológica (ver PALMER, 1986; FELSER, 1999), uma vez que os volitivos expressam a modalidade dinâmica, o subtipo de modalidade deôntica e (ii ) a semântica do volitivo querer expressa pelo menos dois signiicados para denotar a ação realizada pelo sujeito: um ligado ao desejo de alguém para outra pessoa, vinculado a noções deônticas, de causalidade (ordem/pedido/desejo), que chamaremos de volitivo causativo, e outro ligado ao desejo de alguém para si mesmo, mais vinculado à noção de vontade. Nesse caso, assemelha-se mais a um auxiliar e não a um verbo principal e seleciona apenas o complemento ininitivo em português, que chamamos de volitivo padrão (default). Para resumir esses dados, veja a tabela 5. TABELA 5 – Signiicados do predicado volitivo querer nas línguas românicas Volitivo causativo = indica o desejo de alguém para outra pessoa realizar (OBV/não controle); Volitivo default = ligado ao desejo de alguém para si mesmo (Controle/correferência). Fonte: Meira, 2013, p. 37. 863 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 Em outras palavras, para explicar por que o verbo volitivo, nas línguas românicas, exibe duas estratégias para expressar referencialidade, OBV, em orações initas e controle em frases ininitivas, adotamos, com base em Meira (2013), que, assim como o perceptivo (físico e mental), os verbos volitivos denotam dois signiicados, duas leituras, com diferentes propriedades semânticas e sintáticas, denominado por nós de volitivo causativo e volitivo padrão. A primeira, assim como o perceptivo físico e o causativo, exige OBV, licencia sujeito com caso nominativo na encaixada, seleciona CP em orações initas e exibe dependência temporal entre TPs encaixado e matriz; o último não licencia sujeito visível na oração encaixada, requer leitura de controle, seleciona TP ininitivo, sem traço de Caso, e esse TP não é marcado por Tempo. Nesse caso, o predicado volitivo exibe dois tipos de acepções, com propriedades semânticas e conigurações sintáticas diferentes, o que está ratiicado na Tabela 6: TABELA 6 – Propriedades do predicado volitivo Tipos de predicados Padrão Ref. Estrutura selecionada Sujeito visível Leitura Volitivo causativo OBV TP inito √ Evento Volitivo padrão Controle TP não inito --- Evento Fonte: Meira, 2013 No tzotzil, língua da família maia, o verbo volitivo k’an (querer) diferencia as duas acepções do volitivo por meio da inserção de um aixo verbal. O volitivo padrão indica que o sujeito da matriz é idêntico referencialmente ao sujeito da encaixada, o que está ilustrado na sentença em (32a). Por outro lado, a acepção denotada pelo volitivo causativo é marcada pela construção ak’o + verbo subjuntivo, seguida ao verbo matriz. Nesse caso, o predicado matriz expressa a vontade de alguém que um outro faça alguma coisa; os sujeitos nesse contexto são disjuntos referencialmente, como mostram (32b) e (32c). 864 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (32) a. Ta jk’an chkuch’ vo. ‘Quero beber água.’ b. Ali Xun e tzk’an ak’o xchan kastiya e. João 3-quer 3-aprender castelhano. ‘João quer que ele (outra pessoa) aprenda castelhano (HAVILAND, 1981, p. 354) c. Ta jk’an ak’o avuch’ vo. ‘Quero bebas água.’ (HAVILAND, 1981, p. 353) Só é possível a construção com –ak’o quando os sujeitos são diferentes. Construções com predicado volitivo k’an (querer) e a diferença semântica quando a construção com –ak’o é introduzida são evidências de que há diferenças morfológicas no predicado volitivo querer para denotar seus dois tipos de acepções, de leituras. Os dados sugerem que restrições de referencialidade podem, de fato, estar ligadas a predicados não epistêmicos, e, nesse sentido, a OBV pode ser orientada pelo tipo de predicado matriz. A nossa hipótese é de que a RD obrigatória, do tipo investigado aqui, não é especíica apenas a línguas românicas e ao grego, mas se estende a outras línguas, já que pode ser um fenômeno relacionado às noções semânticas do predicado matriz, especiicamente dos causativos, perceptivos físicos e volitivos causativos. Como indica várias pesquisas, esses predicados são denotadores de leitura eventiva e sintaticamente desencadeiam uma estrutura diferente de um predicado que propicia leitura proposicional (cf. ROCHETTE, 1988; HORNSTEIN; MARTINS; NUNES, 2006). Rochette (1988)8 propõe uma Teoria da Complementação e difere sintaticamente complementos por meio de suas classes semânticas de predicados (Ação, Evento e Proposição), atribuindo-os, respectivamente, a realizações estruturais distintas, como VP, IP e CP. Em outras palavras, ela argumenta que esses tipos semânticos de complementos diferem estruturalmente e, nesse caso, complemento eventivo é uma projeção de INFL (casos de complementos ininitivos e subjuntivos), apresentando tempo dependente da oração matriz; complementos de ação são projeções 8 Pesetsky (1982, 1992) também sugere relacionar um tipo semântico de predicado a determinada estrutura sintática. 865 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 de VP, e complementos de proposição são projeções de CP. Raposo (1987), Pesetsky (1992), Cinque (2001) e Wurmbrand (2001) também mostram evidências de que complementos proposicionais são estruturas expandidas, CPs. Rochette (1988) propõe uma análise para dar conta do efeito da OBV exibida nos complementos de verbos volitivos sob a luz da teoria de seleção semântica e sugere que volitivos sejam gerados como uma projeção da categoria INFL, subcategorizando IP, e o que é analisado como um elemento Case-spelling, elemento nucleando o CP, numa posição entre o IP encaixado e o VP, matriz. Nesta pesquisa, tomaremos volitivo causativo como predicado que seleciona TP e leitura eventiva. A tabela a seguir resume algumas das propriedades listadas dos predicados de OBV. TABELA 7 – Propriedades semânticas e conigurações sintáticas de predicados de OBV Predicados Propriedades Estrutura Sujeito visível Perceptivo Físico/ causativo/volitivo causativo Caráter nãoepistêmico OBV Evento TP √ Perceptivo mental/ epistêmico Caráter epistêmico RL Proposição CP √ Fonte: Meira, 2013. Como vemos na Tabela 7, volitivo causativo é uma projeção de TP inito e não CP, mas como explicar os complementos subjuntivos volitivos das línguas românicas que são introduzidos pelo complementizador que. Como dissemos, Rochette (1988) argumenta que o que é um ‘casespelling element’ que evita adjacência entre o verbo principal e o sujeito encaixado. Rochette airma que o fato de que orações subjuntivas sejam projeções INFL explica algumas generalizações sintáticas subjuntivas, tais como: as restrições de tempo; o fato de orações subjuntivas não coocorrerem com wh-words. Outra evidência para analisar orações subjuntivas como IP é o fato de que complementos indicativos e subjuntivos se comportam diferentemente no que diz respeito à extração. A extração do ‘tous’ em francês é possível apenas quando há sentenças ininitivas e subjuntivas, sendo agramatical com complementos no 866 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 indicativo. A extração de ‘tous’ é possível apenas em complementos VP e IP. Observe os seguintes exemplos: (33) a. Jean a tous voulu les lire John has-3SG all wanted them PRO to read ‘John has wanted to read them all’ b. Jean veut tous que Marie les lise John wants-3SG all that Marie them reads-3SG-SBJV ‘John wants Marie to read them all’ c. *Jean croit tous que Marie les lira John believes-3SG all that Marie them will-read-3SG ‘John believes that Marie will read them all’ (ROCHETTE, 1998, p. 301) Sugerimos ainda que predicados de OBV se caracterizam por serem de caráter modal, já que semanticamente impõem restrições aos seus complementos, como a referência disjunta entre os sujeitos matriz e da encaixada. Além disso, sintaticamente selecionam uma estrutra TP. Resumiremos na Tabela 8 os tipos de conigurações de RD obrigatória. TABELA 8 – Predicados de referência disjunta obrigatória Predicados Estrutura Arg. ext. encaixada Padrão ref. Leitura não-epistêmica/ não proposicional/ eventiva P&C ECM TP não-inito Acusativo OBV √ P&C-Ininitivo lexionado TP NOM OBV √ Volitivo causativo/ P&C TP NOM OBV √ Fonte: Meira, 2013, p. 158. Tomaremos a versão minimalista do conceito de subcategorização proposta por Adger (2004), aliada à proposta de s-seleção, para derivar as sentenças de OBV e para explicar seu efeito nas línguas, o que será exposto na próxima seção. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 867 5 Uma proposta sintática para a RD em complementação sentencial Sintaticamente, predicados modais,9 tanto os de RD obrigatória quanto os de controle, terão as mesmas estruturas, complemento TP, diferenciando-se pela capacidade do T, nas estruturas de RD, de dispor de traço de caso. O TP das estruturas de controle, no português, será tomado como não inito, não dispondo de traço de caso e de tempo. Predicados de OBV são tomados como marcados em relação aos predicados de controle, já que ambos são selecionados por predicados modais. Predicados epistêmicos são contextos neutros, por possibilitarem referência livre. Sintaticamente, esses predicados se distinguem dos predicados modais por selecionarem complemento CP. A OBV, em termos sintáticos, pode ser capturada da seguinte forma: o sujeito tem de ter seu Caso na encaixada checado, na posição de [Spec, TP], bem como todos seus outros traços. Em termos semânticos, o predicado matriz, da mesma forma que c-seleciona um complemento 9 Diante das funções semânticas restritas que predicados de OBV desempenham na sentença, sugerimos que eles possam ser similares a verbos modais. Verbos modais constituem um conjunto pequeno de verbos que semanticamente expressam noções como obrigação, possibilidade, permissão, futuridade, dentre outras. Os exemplos tomados por nós para exempliicar essa classe de verbo, grifado em negrito, vêm do inglês. (i) a. John must buy the house ‘João deve comprar a casa’ b. John can buy the house. ‘João pode comprar a casa’ Predicados de RD obrigatória também exibem noções semânticas como ordem, desejo, vontade e são capazes de exigir sujeito na encaixada referencialmente independente do sujeito matriz, o que é impossível para os outros predicados, como mostra o contraste entre (ii) e (iii) a seguir. (ii) a. João pode comprar a casa b. *João pode Pedro comprar a casa (iii) João mandou Pedro comprar a casa A sugestão de tomarmos predicados de RD obrigatória como verbos modais se deve ao fato de estes compartilharem restrições semânticas assim como aqueles. Nesse caso, uma das restrições semânticas impostas por volitivos, causativos e perceptivos físicos aos seus complementos é a RD. 868 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 TP, também s-seleciona a referencialidade disjunta entre os DPs sujeitos, na posição de [Spec, TP], o que se torna possível pela c-seleção de TP. A OBV também poderia ser tomada como um traço transmitido pelo predicado matriz ao sujeito da encaixada, e isso é justiicado pelo caráter modal dos predicados de RD obrigatória, por conter restrições semânticas. Nos contextos de ECM, esse traço [obv] poderia ser transmitido ao DP da encaixada no momento em que o núcleo v da oração superior checa o traço de caso [acus] do DP na posição de [Spec,TP] da encaixada. De qualquer forma, como o predicado matriz de contextos de OBV seleciona um TP na encaixada, não há violação do Princípio B da Teoria da Ligação, o que possibilita a OBV. Os traços de Tempo (TP) podem ser apresentados como: traços-φ , de [tempo] e o traço EPP, do inglês Extended Projection Principle (Princípio de Projeção Estendida); além disso, T pode ser associado a Caso, no sentido de conseguir valorá-lo. Os traços-φ do verbo [+T] são não interpretáveis e, portanto, não são legíveis para os sistemas externos da interface, devendo ser valorados em uma relação de concordância. Chomsky diferencia dois tipos de T, de acordo com sua relação com traços-φ: (i) aquele com traços-φ completos, T-completo e (ii) aquele com traços-φ incompletos, T-defectivo. Predicados de RD obrigatória selecionam TP inito, nos contextos de subjuntivo e indicativo, e TP não inito nos contextos de ECM. O TP inito é incompleto no sentido de que o T só conseguirá checar o traço de [caso] do DP depois que seus traços de [tempo] forem checados e valorados pelos traços de [tempo] da oração matriz, o que conigura uma dependência temporal entre as orações. Essa será a análise que tomaremos para o TP inito incompleto. Por outro lado, o TP não inito não dispõe de traço de [caso], nem de traço de [tempo], como o TP do predicado ECM. Adotaremos a posição de que predicados ECM selecionam complemento TP não inito. Esse TP carregará traço EPP não interpretável, e o DP será concatenado na posição de [Spec,TP] da encaixada para checar esse traço. Como o TP é não inito, o traço de [caso] do DP não será checado e entrará em uma relação de checagem de caso com núcleo do vP matriz. Este valorará o caso do DP como [acus], o que conigurará uma estrutura ECM. Essa será a análise que tomaremos para os predicados ECM P&C do PB. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 869 Com relação aos complementos de ininitivo lexionado, nossa hipótese é a de que esses complementos são distintos estruturalmente a depender do tipo de predicado matriz que os seleciona, P&C ou factivos/epistêmicos. Estes permitem RL, e aqueles, RD obrigatória. A RL é desencadeada em complementos CP, por factivos, declarativos / epistêmicos (cf. RAPOSO, 1987; MADEIRA, 1994; SITARIDOU, 2002) e a OBV, em causativos e perceptivos, em complementos TP. Assumiremos, com base na literatura já mencionada sobre ininitivo lexionado, que o TP do ininitivo lexionado é capaz de checar traço de [caso] do DP da encaixada, e o TP desses complementos terá traços-phi completos e será capaz de checar [caso]. Apesar de o ininitivo lexionado não ter marcas morfológicas de tempo, exibe marcas de número/pessoa. No volitivo causativo, devido à dependência temporal da encaixada em relação à matriz, o núcleo T, do complemento TP encaixado, só checará [caso] do DP, depois de ter seus traços de T valorados pelo T matriz, e o núcleo de TP encaixado tem traços de T não valorados nessas conigurações. O complemento indicativo, subcategorizado por perceptivo físico, seleciona TP, e o núcleo T só checará Caso do DP depois de ter seus traços de T valorados pelo T matriz. A derivação dos complementos dos predicados de OBV depende diretamente de requerimentos de Caso, já que há necessidade de dois sujeitos diferentes nas sentenças. Sabe-se que o núcleo T, de complemento ininitivo lexionado de perceptivo e causativo do português, pode atribuir Caso para o seu DP sujeito. Adicionalmente, verbo matriz ECM é capaz de atribuir caso para seu DP objeto, já que esses predicados c-selecionam um TP não inito, cujo núcleo T é incapaz de valorar caso. A tabela a seguir ilustra algumas propriedades dos predicados de OBV, de controle e de referência livre. 870 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 TABELA 9 – Propriedades dos predicados em complementação sentencial e sua relação com a RD Predicados Traço [obv] Leitura Referência Estrutura Contruções Volitivo padrão Modais Aspectuais - traço [obv] Deôntica (raiz) (volição/ habilidade) Controle TP (volitivo padrão) -----------VP (Modais/ aspectuais) – ininitivos – orações –na Epistêmico Factivo Perceptivo mental Neutro Epistêmica RL CP – Ininitivo lexionado – orações –oti – indicativos com que Causativo Volitivo causativo Percepção física +traço [obv] Eventiva/nãoepistêmica Deôntico (permissão) RD (obviação) TP - subjuntivos com que - ininitivo lexionado - orações –na - ininitivo Fonte: Meira, 2013, p. 193. 5.1 Derivação de sentenças Para simpliicar as derivações nos complementos analisados, serão descritas apenas as projeções TP, vP e VP, seguindo a hierarquia T – v – V e tomando como base a Teoria de Seleção Semântica (cf. CHOMSKY, 1986; ROCHETTER, 1988) e a versão minimalista de Subcategorização, proposta por Adger (2004). Por limitação de espaço, apresentaremos, neste artigo, apenas a derivação do volitivo causativo. As derivações para as demais sentenças estão disponíveis em Meira (2013) para onde remeto o leitor. A derivação da sentença (34) pode ser aplicada aos contextos de predicados volitivos causativos com tempo encaixado dependente do da matriz. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (34) 871 João1 quer que ele*1/2 compre a casa. Numeração = {João [N, caso], T2 [pres, nom, uN*], v [uInl: ], querer [uN, uTP], ele [N, caso], T1 [uN*, uInl: , nom, iTP], v [uInl: ], comprar [uN, V] a casa [N]} 1º passo: A derivação tem início com a relação de checagem no VP. Comprar é concatenado com o DP a casa e checa seu traço [uN], como mostra a coniguração em (1). (1) a casa [N]] VP [ comprar [uN] 2º e 3º passos: v é selecionado da Numeração e concatenado com a estrutura (1). Nessa etapa, o verbo se move para v e o DP ele entra na derivação, é concatenado na posição de [Spec,vP] e recebe seu traço temático. (2) vP ele [N] [nom] comprar [uInl: ] v’ VP (comprar) a casa 4º passo: T1 é selecionado e concatenado com a coniguração em (2). Como é um T dependente do T matriz, não pode valorar os traços de tempo de v, nem checar [caso] do DP, na posição de [Spec,vP], que sobe para a posição de [Spec,TP] para checar o traço [uN*], que é o EPP em T. 872 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 (3) TP2 Ele [N] [caso] T’ T [uInl: ] [uN*] [nom] [iTP] vP (Ele [N] [caso]) v’ comprar [uInl: ] VP a casa 5º passo: Querer é selecionado da Numeração e concatenado com a estrutura em (3), checando seu traço [uTP]. Obviação, para Rochette (1988), pode ser explicada pelo Princípio B da Teoria da Ligação, quando complementos subjuntivos a verbos emotivos são analisados como IP, assumindo, assim, que o ‘que’ não bloqueia regência dos sujeitos encaixado e matriz. Se o regente do sujeito encaixado é o verbo matriz, então o Domínio de Ligação é a oração matriz. (4) v’ v [uInl: ] VP querer [uTP] TP ele T’ T [iTP] vP 873 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 6º passo: O DP, João, é concatenado na posição de [Spec,vP]. T2 entra na derivação e é concatenado com a estrutura em (4). O núcleo T2 concorda com o T1 e valora seu traço de tempo como [+presente], como o da matriz e T1 valora o traço de caso [nom] de ele e valora os traços de tempo do v encaixado. O núcleo de TP2 valora o traço de caso [nom] do DP João, que sobe para a posição de [Spec,TP2] para checar o traço [uN*] em T2. Adicionalmente, T e v da matriz entram em concordância, T checa e valora os traços lexionais em v, como [presente]. Sendo traços de T forte, o verbo na posição de núcleo de vP sobe para a posição de núcleo de TP. No português, francês e italiano, quando traços lexionais (Inl) em v são valorados como tempo, eles são sempre fortes, subindo para a posição de T, em TP. (5) TP2 João [N] [nom] T’ T [uN*] [pres] vP (João [N] [nom]) v’ (querer) [uInl: pres] VP Com relação aos predicados que exigem OBV no grego e sobre o volitivo nessa língua, que possibilita RL, diacronicamente, o grego perdeu tanto seu ininitivo, quanto marcas de subjuntivo. Este é marcado pela partícula –na. Construções com –na subjuntivo abarcam no grego tanto os contextos que eram antes de ininitivo, quanto contextos de subjuntivo. Pesquisadores sobre línguas da área balcânica têm tratado tradicionalmente a questão da subcategorização de predicados subjuntivos de duas formas: (i) a partícula –na tem sido tomada como 874 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 um complementizador que assume diferentes formas dependendo do complemento verbal, se indicativo –oti, se subjuntivo –na (cf. SAN MARTIN, 2007) ou (ii) assume-se que a partícula –na é um marcador subjuntivo (cf. TERZI, 1992; RIVERO, 1988). A primeira impressão é a de que sentenças volitivas e causativas são idênticas estruturalmente, já que ambas têm seu complemento encabeçado pela partícula –na, como em (35a) do volitivo e (35b), causativa. Uma diferença entre elas é que o volitivo permite RL, e o causativo, OBV. (35) a. O Yanis1 theli O João quer na subj iji1/2. (SITARIDOU, 2007, p. 201) partir plini*1/2 ta piata pio grigora b. O Yanis1 parigile na O João mandou PRT-subj lavar-3ªsg os pratos mais rapidamente A nossa hipótese é a de que complementos que desencadeiem RL, como em (35a), sejam tomados como CP, e complementos que exijam OBV sejam um TP, como (35b). Trataremos o volitivo grego como selecionador de estrutura CP (cf. BALLESTA, 1993), já que o –na é tomado como um complementizador. Isso conirma a nossa hipótese, pois o volitivo permite RL. A alternativa que temos para explicar essa diferença do volitivo grego com o volitivo de outras línguas parte de uma perspectiva histórica. Provavelmente, com a perda do ininitivo no grego e com a perda das marcas lexionais do subjuntivo no verbo, passando para um C subjuntivo, e com o surgimento de um comp subjuntivo –na (cf. SAN MARTIN, 2007), o volitivo tenha perdido sua função modal e, com isso, suas restrições semânticas (controle obrigatório ou RD obrigatória) e passou a permitir a RL, funcionando, assim, como um verbo lexical. Isso seria uma alternativa para explicar a não predominância nas sentenças do grego de um volitivo padrão, com controle, ou de um volitivo causativo, com OBV. O volitivo grego permite a RL, o que conigura que não há restrição semântica imposta por esse predicado. Essa ideia dá conta do volitivo nessa língua, com seu complemento CP, exibindo RL, conirmando a nossa proposta. Ballesta (1993) observa que predicados causativos no grego não podem ser classiicados como similares estruturalmente a volitivos e sugere que as restrições e algumas peculiaridades daqueles verbos Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 843-877, 2018 875 sejam consequência de fatores semânticos. Com relação aos predicados perceptivos físicos, funcionam como verbos ECM. 6 Considerações inais Nesse artigo, tivemos como objetivo: (i) mostrar que initude e a relação que a literatura faz entre controle/ininitivo e obviação/subjuntivo não é suiciente para explicar as estruturas de controle e obviação nas línguas e (ii) mostrar que a obviação é uma restrição semântica imposta por um grupo de predicado matriz aos seus complementos, sendo isso capturado sintaticamente. Diante disso, a obviação exibida em complementação sentencial não é um fenômeno restrito a línguas românicas ou a línguas que exibam a distinção inito / não inito, mas é uma restrição semântica imposta por predicados de obviação (não epistêmicos) a seus complementos e, devido a isso, essa restrição semântica será exibida por línguas que dispõem desses contextos em complementação sentencial. Referências ADGER, David.Core Syntax. A Minimalist Approach. Oxford. University Press, 2004. BORER, Hagit. Anaphoric AGR. 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Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 Cláusulas de inalidade e argumentação: uma proposta de interface gramática e interação Purpose Clauses and Argumentation: a Proposal for the Interface Between Grammar and Interaction Amitza Torres Vieira Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil amitzatv@yahoo.com.br Nilza Barrozo Dias Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil nilzabarrozodias@id.uff.br Resumo: O artigo analisa dados reais de fala-em-interação em situação de conlito e propõe investigar o papel das cláusulas de inalidade na fala argumentativa dos participantes em uma audiência no Juizado Especial Criminal. A proposta de trabalho entrelaça a vertente Funcionalista à perspectiva da Sociolinguística Interacional, com o objetivo de examinar a interface gramática e interação. Teoricamente, são empregadas ferramentas do discurso, e a análise sequencial da argumentação nos turnos de fala é sua ferramenta principal de trabalho. A essa perspectiva alia-se a abordagem da sintaxe funcionalista na identiicação e descrição do uso de cláusulas de inalidade (DIAS, 2001) na argumentação dos participantes das audiências investigadas. Na análise argumentativa, são utilizados os componentes da argumentação propostos por Schiffrin (1987): posição, disputa e sustentação. Em um estudo de caso qualitativo, acompanhamos a trajetória do processo argumentativo em um caso de agressão verbal entre duas mulheres, e mostramos, especiicamente, como as cláusulas hipotáticas de inalidade estão ligadas às sustentações de posições nesse contexto institucional. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.879-904 880 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 Palavras-chave: cláusulas de inalidade; argumentação; gramática e interação. Abstract: The paper analyzes actual data of talk-in-interaction in a conlict situation and proposes to investigate the role of purpose clauses in the argumentative talk of the participants in a hearing in the Special Criminal Court. The work proposal intertwines the Functionalist dimension to the perspective of Interactional Sociolinguistics, in order to examine the interface between grammar and interaction. Theoretically, discourse tools are employed, inding in the sequential analysis of the argumentation in talk shifts their focus. This perspective is joined with a functionalist syntax approach in the identiication and description of the use of purpose clauses (DIAS, 2001) in the arguments of the participants of the audience investigated. In the argumentative analysis, the components of the argumentation proposed by Schiffrin (1987) are used: position, dispute and sustentation. In this qualitative case study, we follow the trajectory of the argumentative process in a case of verbal aggression between two women, and show speciically how hypothetical purpose clauses are linked to the support of positions in this institutional context. Keywords: purpose clauses; argumentation; grammar and interaction. Recebido em 8 de outubro de 2017. Aceito em 8 de novembro de 2017. 1 Introdução Este trabalho busca estabelecer um diálogo entre duas importantes abordagens linguísticas: a sintaxe funcionalista e a argumentação discursiva, ambas relevantes nos estudos que veem a linguagem como forma ou processo de interação. Pretende-se relacionar a estrutura da linguagem e seu uso orientado pelo contexto situacional e pela ordem interacional. Nesse intento, ambiciona-se mostrar como as cláusulas hipotáticas adverbiais de inalidade funcionam na argumentação, tomando como exemplo uma audiência Preliminar no Juizado Especial Criminal. Ochs, Schegloff e Thompson (1996) consideram a matriz da Gramática Interacional como um modo diferente de tratar a descrição Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 881 linguística. Essa nova possibilidade de análise posiciona a gramática como parte de uma gama mais ampla de recursos que subjazem à organização da vida social (FORD; THOMPSON, 1996). Nessa visão, estruturas gramaticais têm signiicado, em parte, devido às práticas sociais e atividades que ajudam a constituir. A gramática é imbuída de subjetividade e sociabilidade: é vista como um comportamento vivido, cuja forma e signiicado se desenvolvem em tempo histórico e em interacões experenciadas. Os autores defendem ser a gramática não apenas um recurso da interação ou o seu resultado, mas parte da essência da própria interação. Nessa mesma direção, os estudos editados por Selting e Couper-kuhlen (2001) examinam estruturas linguísticas que emergem dos contextos em que ocorrem e mostram que seu uso se relete na estrutura conversacional e constitui recurso para vários tipos de trabalho interacional. Nessa perspectiva, a análise do fenômeno linguístico pode ser vista como a convergência de uma relação estreita e dependente entre o contexto que modela e é modelado pela gramática. O contexto compreende especiicamente as ações que os participantes projetam por meio de suas falas. Pesquisas realizadas revelam regularidades em alguns fenômenos linguísticos já investigados.1 Esses fenômenos constituem práticas que os falantes desenvolvem na solução das necessidades mais recorrentes do tempo real, das atividades diárias de interação e execução de ações relevantes. Em ambientes jurídicos, tais como os dos Juizados Especiais Criminais, as atividades e tarefas desempenhadas pelos conciliadores, que coordenam as audiências, são orientadas pelas metas inerentes à prática proissional e institucional (DREW; HERITAGE, 1992). O Juizado Especial Criminal é o órgão do poder judiciário responsável por processar e julgar contravenções penais e crimes de menor potencial ofensivo cujas penas não ultrapassem dois anos de prisão. São duas as fases desse órgão: a Audiência Preliminar e a Audiência de Instrução Reportamos, especiicamente na publicação organizada por Ochs, Schegloff e Thompson (1996), os capítulos de Schegloff, Goodwin e Lerner que mostram estruturas gramaticais revisualizadas como estruturas interacionais que têm sua própria morfologia e sintaxe interacional intra e interturnos de fala. Reportamos também os estudos editados por Selting e Couper-kuhlen (2001) e trabalhos desenvolvidos com dados do português em uso (DIAS; VIEIRA, 2008, 2013; FERREIRA, 2009). 1 882 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 e Julgamento. A primeira, contexto do nosso estudo, ocorre antes do oferecimento da denúncia e constitui uma possibilidade para que as partes se reconciliem, evitando, assim, um processo criminal. Essa conciliação se dá, principalmente, por meio de um acordo para pagamento de eventuais prejuízos sofridos pela vítima. Caso não seja possível a conciliação, é oferecido ao réu primário o benefício da transação penal, que consiste no pagamento, em dinheiro ou em serviços, a uma entidade carente. Não havendo conciliação entre as partes ou não sendo aceita a transação penal pelo réu, o processo é encaminhado ao Ministério Público, que poderá arquivá-lo ou aceitar a denúncia. No último caso, será aberta a fase de instrução, com agendamento da Audiência de Instrução e Julgamento, quando o juiz profere a sentença, e o réu poderá ser absolvido ou condenado. Nesse cenário institucional, a meta maior do conciliador na Audiência Preliminar é celebrar o acordo entre as partes e arquivar o processo nessa instância, de modo a não sobrecarregar os trabalhos no judiciário. Já as partes, querelante e querelado, buscam defender seus pontos de vista e, normalmente, relutam em aceitar a conciliação. Nesse sentido, essas audiências constituem um lócus profícuo para o exame da argumentação, pois todo o processo de negociação do acordo ocorre por meio da argumentação dos participantes durante a interação realizada no órgão. Como uma análise prévia da audiência Preliminar do Juizado Especial Criminal aqui investigada mostrou o uso recorrente de cláusulas de inalidade na fala argumentativa dos participantes, interessa-nos compreender qual o papel dessas construções na argumentação nessa instância judicial. Trabalho desenvolvido por Dias e Vieira (2008), com dados de audiências de conciliação no PROCON, já mostrara expressiva ocorrência das cláusulas hipotáticas de finalidade na sustentação das posições dos participantes de encontros no órgão de proteção ao consumidor. As autoras mostram que, como as cláusulas de inalidade são utilizadas para descrever a execução de objetivos dos participantes, são preferencialmente inseridas em narrativas, pois, por meio da narração, podem ser relatados fatos que realcem intenções ou metas dos protagonistas. Assim, na argumentação do PROCON, as cláusulas de inalidade estariam contribuindo para a evidência das provas. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 883 Uma diferença importante entre esse estudo e o nosso trabalho é o fato de que, no contexto de conciliação examinado por Dias e Vieira (2008), embora os conciliadores exerçam poder sobre o que pode ou não ser feito na interação, eles não têm poder legal para fazer as partes chegarem a um acordo. Ao contrário, nas audiências preliminares criminais, objeto de nosso estudo, o conciliador tem o poder legal para processar o caso. Questionamos, então, se, em audiências preliminares no Juizado Especial Criminal, o uso de cláusulas de inalidade poderia estar também orientado para a construção de provas no processo em julgamento. A análise argumentativa será realizada assumindo uma visão interacional de linguagem (SCHIFFRIN, 1987). A autora define argumentação como um discurso por meio do qual os falantes sustentam posições contrárias e propõe uma análise discursiva que capte as propriedades textuais (ou monológicas) e as propriedades interativas (ou dialógicas) do discurso argumentativo. É ponto central na sua deinição a discussão dos três componentes da argumentação – posição, disputa e sustentação – cujo entendimento requer atenção tanto para os muitos aspectos da organização discursiva quanto para os traços característicos das narrativas. Essa tipologia será utilizada como ferramenta para a análise da argumentação dos participantes da audiência, investigada neste trabalho. Para a investigação sintática das cláusulas de finalidade, utilizamos os trabalhos de Dias (2001, 2002, 2010). Segundo a autora, as cláusulas de inalidade indicam o propósito ou a inalidade de um sujeito ou locutor, desencadeando um movimento de X a Y no mundo das intenções. Esse deslocamento no mundo das intenções pode se sobrepor ao deslocamento no mundo físico ou pode ocorrer somente no mundo das intenções. Pode ainda esse movimento ser projetado por um locutor para o próprio ato de fala. Com o intuito de contribuir para o melhor entendimento sobre as cláusulas de inalidade e seu uso orientado pelo contexto, realizamos aqui um estudo exploratório de caso, de base interpretativa e qualitativa, com base em dados reais de fala em interação. 884 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 2 Cláusulas de inalidade De acordo com a proposta de Dias (2001), as cláusulas de inalidade codiicam um movimento de uma origem para um objeto da inalidade, no mundo das intenções. O sujeito e/ou locutor estabelecem um propósito ou inalidade, cuja execução do objetivo demanda o deslocamento de uma origem a uma meta, com uma trajetória, no mundo das intenções. Esse deslocamento da origem para o objeto da inalidade pode ser marcado por um sujeito agentivo, por um sujeito experenciador (que projeta sua experiência e seus sentimentos no mundo das intenções) ou por um locutor. Embora normalmente o mundo não físico se sobreponha ao mundo físico, pode ocorrer que o deslocamento se dê apenas no mundo das intenções, ou ainda pode haver um deslocamento direcionado para o próprio ato de fala, quando o sujeito agentivo remete ao locutor que projetou o movimento da inalidade. Para a autora, a articulação do valor semântico de inalidade ocorre em dois níveis: no primeiro, há a articulação de uma cláusula de inalidade a uma cláusula-núcleo – representando as amostras mais recorrentes – seguida da articulação com dois ou mais núcleos; no segundo nível, a articulação da cláusula de inalidade se realiza com o próprio ato de fala, o que exclui a cláusula-núcleo. Dias (2010) mostra ainda que as cláusulas de inalidade mantêm uma estreita relação com as posições que ocupam: anteposta, medial e intercalada são formas marcadas, e a posição posposta é não marcada. Após a investigação dos dados de língua falada e escrita, Dias (2001) postulou os seguintes tipos de cláusulas de inalidade: as hipotáticas canônicas, as hipotáticas discursivas e as cláusulas de inalidade parentética e de adendo. As duas últimas não foram encontradas na audiência selecionada para este estudo. As hipotáticas canônicas indicam função semântica, isto é, especiicam e delimitam a informação contida na cláusula-núcleo. Segundo Dias (2001), a hipotática de inalidade canônica indica o im ou propósito de um sujeito predominantemente agentivo e controlador, expresso na cláusula-núcleo. Elas ocorrem, por excelência, na posição posposta à cláusula núcleo, e o evento motivador codificado pela hipotática canônica ocorrerá após o período do evento expresso pela cláusula núcleo. As cláusulas hipotáticas de inalidade canônicas foram consideradas por Dias (2001, 2010) como prototípicas, devido à alta frequência nos corpora investigados pela autora. 885 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 Já as hipotáticas discursivas de inalidade superpõem uma função discursiva à função hipotática de realce. Isso quer dizer que elas podem ser usadas para salientar uma peça de informação do material que as antecede (ou que seja inferível do próprio contexto), evidenciando essa informação, bem como podem ser usadas para articular a informação que as antecede com aquela que as sucede (DIAS, 2002). Com essa função, elas se habilitam a auxiliar na coesão discursiva, podendo funcionar, na posição anteposta, como domínio de referência (frame) para o qual a cláusula-núcleo indicará a solução. As cláusulas de finalidade parentéticas e de adendo não apresentam cláusulas-núcleo; elas constituem uma informação em relação a outra informação, no nível textual-discursivo. A cláusula parentética constitui uma interrupção da continuidade tópica. Ela codiica a interferência do locutor na sequência do luxo discursivo para dar algum esclarecimento ou inserir algum tipo de informação que ele julgue necessário. As cláusulas de adendo ocorrem como acréscimo de informação, quer como resultado de uma incitação conversacional, quer como informação adicional. Podemos visualizar, a seguir, as cláusulas de inalidade, conforme Dias (2001). QUADRO I – Cláusulas de inalidade [+ hipotáticas] [- hipotáticas] [-textual] [+textual] [+textual] canônica discursiva parentética (posposta) (anteposta) (intercalada) [+textual] de adendo (posposta) Fonte: Elaborado pelo autor. 3 Argumentação e interação As teorias da argumentação têm uma longa história que pode ser traçada desde os escritos da Grécia Antiga, especialmente as obras de Aristóteles. Para o pensador da Antiguidade, raciocinar é saber extrair conclusões de proposições estabelecidas pela linguagem (ARISTÓTELES, 886 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 1978).2 Esses estudos se formaram e se ramiicaram durante mais de dois milênios, diversiicando-se acentuadamente no século XX. A variação existente entre os tratamentos das diferentes disciplinas que estudam o fenômeno (por exemplo, os estudos literários, a ilosoia, a jurisprudência, a lógica ou a linguística) é bastante considerável. Também nos estudos da linguagem, a diversidade teórica é notória, e há entre as disciplinas importantes entrelaçamentos.3 No âmbito linguístico, os estudos contemporâneos ampliam as noções aristotélicas e propõem a construção de modelos do discurso argumentativo com base em dados empíricos (falados ou escritos). Por exemplo, a teoria Pragma-Dialética (EEMEREN; GROOTENDORST, 1984; EEMEREN, 1992) ampara-se na Teoria dos Atos de Fala (AUSTIN, 1962; SEARLE, 1969) e analisa os argumentos apresentados em interações em que há divergência de opinião. Já a abordagem discursivo-interacional de Schiffrin (1987), adotada neste trabalho, considera que a argumentação é coconstruída na interação. Nessa visão, o desenho sequencial da fala argumentativa pode mostrar como os interagentes fazem uso da fala para alcançar seus objetivos comunicativos em situações reais. A autora propõe uma análise do discurso argumentativo que capte tanto suas propriedades textuais – como um monólogo – quanto suas propriedades interativas – como um diálogo. Fundamental para este estudo é sua discussão sobre os três componentes da argumentação – posição, disputa e sustentação. Segundo Schiffrin (1987, p.19), a posição é composta da ideia (isto é, as informações descritivas de situações, estados, eventos e ações no mundo) e do compromisso do falante com aquela ideia. A demonstração mais simples do compromisso com a ideia se dá por meio de uma asserção, a qual reivindica a verdade da proposição. Em demonstrações mais complexas, o falante pode modalizar a força da proposição, maximizando-a ou mitigando-a. Além do compromisso, interpretado no presente estudo como O plano estrutural do argumento, previsto por Aristóteles, pode ser descrito pelo clássico silogismo “se D, então C”, terminologia utilizada por Toulmin (1958). Nesse modelo, raciocinamos com base em fatos (datum) ‘D’, e deles chegamos a conclusões ou airmações ‘C’ (TOULMIN, 1958, p. 97-99). 3 Aos leitores em busca de uma historiograia das teorias da argumentação, remetemos às exposições de Eemeren et al. (1996), e, em forma mais condensada, a Cox e Willard (1982). 2 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 887 o alinhamento (cf. GOFFMAN, 1981) que o falante assume em relação à produção e à recepção de enunciados, Schiffrin (1987) ainda identiica outra parte da posição, sua representação, que, em outros termos, seria o estilo adotado pelo falante para apresentar a ideia. Para Shiffrin (1987), a representação das posições não só pode revelar ideias, como também valores morais e reivindicações de competência e de caráter. Na análise do presente trabalho, essa terceira parte da posição será tratada também como integrante daquilo que Schiffrin denomina compromisso, visto que esse conceito engloba, a nosso ver, questões relativas a estilo ou “tom”, se esse componente é tratado como alinhamento (GOFFMAN, 1981). Ao tratar da disputa em relação a uma posição, Schiffrin (1987) observa que o desacordo pode ser orientado para qualquer um (ou mais) de seus elementos: uma oposição pode estar centrada no conteúdo proposicional, em seu alinhamento, ou em implicações pessoais e morais do desempenho verbal. A autora destaca que alguns desacordos são obscurecidos porque são apresentados indiretamente ou mitigados por meio de dispositivos de mitigação. O componente inal no modelo de Shiffrin (1987) é a sustentação. De acordo com a autora, um falante pode sustentar uma posição em qualquer nível em que ela pode ser disputada, explicando uma ideia ou justiicando uma asserção. Para a autora, sustentação, em qualquer um desses níveis, pode ser classiicada como diferentes atos de fala, isto é, a pessoa pode explicar, justiicar, ou defender.4 Cada um desses atos de fala fornece informação por meio da qual o falante induz o ouvinte a tirar uma conclusão a respeito da aceitabilidade ou legitimidade/ verossimilidade da posição. Schiffrin (1987, p. 20) enfatiza que o exame da sustentação em uma argumentação envolve não somente atos de fala, mas também relações inferenciais entre ideias, acrescentando ainda que, em muitas argumentações por ela examinadas, tanto o conteúdo da sustentação quanto a relação inferencial entre sustentação e posição são amplamente variáveis. Assim, formas de sustentação diferentes, como a exempliicação pessoal, a analogia e o apelo à autoridade podem ser interpretadas como validando uma posição. Nos dados aqui investigados, as sustentações constituem o lócus privilegiado de ocorrência de cláusulas hipotáticas de inalidade. Entendemos “defender” como o ato de compromisso que o locutor irma com a ideia, ou seja, o grau de adesão ou alinhamento, nos termos de Goffman (1981). 4 888 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 4 Contexto do estudo e metodologia O estudo inscreve-se no tipo de metodologia qualitativa e interpretativa (DENZIN; LINCOLN, 2006), pois se alinha àqueles que veem como as principais tarefas do pesquisador descrever e compreender o signiicado das ações humanas, e identiicar o que os atores sociais estão fazendo ao utilizarem a linguagem. Realiza-se um estudo exploratório (GIL, 1999), combinando duas teorias sociolinguistas – a Funcionalista e a Interacional – em um mesmo processo de análise, que pode servir de base para estudos futuros. No método qualitativo de pesquisa, os conceitos e as teorias emergem dos dados e são exempliicados neles. Há uma interação dinâmica entre os dados e a teoria. A pesquisa qualitativa procura descrever as principais ocorrências relevantes e faz uma correlação entre essas ocorrências e o contexto social mais amplo, a im de que possam ser usadas como excertos concretos dos princípios abstratos que regem a organização social (ERICKSON, 1992). A perspectiva que assumimos combina a gravação e a transcrição de interações naturalísticas com técnicas etnográicas de observação e entrevistas. Nossos materiais integram o acervo do Projeto “O português falado na Zona da Mata de Minas Gerais: constituição de um banco de dados de Audiências do Juizado Especial Criminal” (BIC/ UFJF, 2013/2016).5 Respeitando a ética, os nomes de pessoas, lugares, instituições ou quaisquer outros nomes que pudessem ser identiicados foram trocados por nomes ictícios. A gravação dos dados foi feita inicialmente em um aparelho analógico de gravação, marca Panasonic, modelo RQ-L11. Atualmente, os dados encontram-se digitalizados. A transcrição dos corpora foi realizada segundo o modelo Jefferson, cujas convenções, adotadas pelos analistas da conversa (ver SACKS et al., 1974; GAGO, 2002), encontram-se no Anexo 1. Nossa pesquisa conta, ainda, com outros tipos de evidências: observação não participante das audiências, entrevista semiestruturada e conversa informal com a conciliadora, além de acesso a alguns documentos. Ao adotarmos essa conduta, a situação investigada se tornou menos distante de nós, pesquisadores, e pudemos nos alinhar a uma agenda de pesquisa O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana da Universidade Federal de Juiz de Fora (CAAE 03965712.5.0000.5147, Parecer nº 153.335). 5 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 889 colaborativamente construída (SARANGI, 2001), postura metodológica que possibilita olhar para um determinado problema com um novo enfoque (o do pesquisado). Nesse sentido, podemos chamar nosso desenho investigativo de semicolaborativo. As audiências preliminares no Juizado Especial Criminal têm como meta maior a conciliação entre as partes. Nessa instância judicial, não há a fase de “julgar um processo legal”, pois não ocorre o proferimento da sentença; o objetivo de uma audiência preliminar é processar o caso, de modo que ele não seja encaminhado ao Ministério Público, fato que poderá gerar outro processo legal. A organização macroestrutural de uma audiência Preliminar no Juizado Especial corresponde a: a) Esclarecimento sobre o processo;6 b) Tentativa de conciliação; c) Oferecimento da transação penal. O contexto do estudo contém dados representativos do que é denominado fala de conlito (GRIMSHAW, 1990), um campo de pesquisa que estuda centralmente o conlito nas suas mais diversas formas. De acordo com Vuchinich (1990, p. 118), um conlito ocorre quando, ao longo de sucessivos turnos de fala, os participantes opõem suas elocuções e ações. Para expressar oposição, direta ou indiretamente, recursos linguísticos, paralinguísticos ou sinestésicos podem ser usados. O encerramento do conlito verbal ocorre quando os turnos de oposição terminam e outras atividades são iniciadas. Selecionamos para nosso trabalho a segunda parte de uma audiência denominada “Parede e meia (Parte 2)”,7 que envolve um caso de agressão verbal entre duas mulheres. Laís, a querelante, registrara um Boletim de Ocorrência contra Maria, sua vizinha, a querelada, que não havia chegado a tempo de participar da primeira audiência, quando Laís decidira encerrar a ação. Assim, o caso fora arquivado pela Embora não seja denominada coleta de depoimentos, pois esse procedimento ocorre quando é elaborado o Boletim de Ocorrência, a fase de esclarecimento sobre o processo corresponde, na prática, a uma coleta de depoimentos sobre o caso, com o objetivo de conirmar as informações relatadas ao policial de plantão na Delegacia da Polícia Militar. 7 A audiência “Parede e meia (Parte 2)” foi gerada, no ano de 2012, em uma cidade da Zona da Mata de Minas Gerais. 6 890 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 conciliadora Sônia. Entretanto, após chegar ao Fórum, Maria pleiteia continuar com o processo. A conciliadora concorda em recebê-la e, nessa segunda parte da audiência, contexto de nosso estudo, Maria diz ter sofrido constrangimento e, por isso, deseja prestar nova ocorrência. A conciliadora expõe as desvantagens dessa decisão, e o caso é encerrado. Devido a esses aspectos contextuais, a organização macroestrutural dessa audiência é idiossincrática, constituindo-se apenas pela fase “Esclarecimento sobre o processo”. 5 Análise Participam da audiência Parede e meia (Parte 2) a conciliadora, Sonia, a querelada, Maria, e o estagiário, Davi. Essa audiência foi selecionada para este estudo por ser profícua em estratégias de argumentação e representar um bom exemplo de uso de cláusulas de inalidade. Além disso, ela é relativamente breve, 10min35s, o que possibilita investigar a situação interacional de forma mais completa e aprofundar a análise. Foram identiicadas, no total, doze ocorrências de cláusulas hipotáticas de inalidade, todas atuando na sustentação das posições dos participantes. Ou seja, não houve nenhuma ocorrência de cláusulas de inalidade na posição dos participantes. No início da audiência, há duas posições antagônicas: a querelada reivindica o prosseguimento da ação, alegando ter-se sentido constrangida pela querelante, e a conciliadora defende o arquivamento do processo. Logo nos primeiros momentos do encontro, Sonia comunica à Maria que o processo havia sido arquivado por desejo de Laís, a quem cabia esse direito, pois fora ela quem o iniciara com o registro no Boletim de Ocorrência. Entretanto, Maria não aceita a decisão e continua sua argumentação, defendendo agora a abertura de um processo legal contra Laís, por constrangimento moral, como pode ser observado no excerto (1). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 891 Excerto (1) 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 Maria 35 Sonia → → eu posso fazer alguma coisa por constrangimento no entanto na época eu estava no primeiro dia de serviço ela praticamente ( ) ela falou pra ele que ele era obrigado a ir até o meu serviço pra me: repre:ender↓ ele falou que como ele conhecia a lei ele não iria fazer isso(.) que ele iria na minha casa pra conversar mesmo assim nem era obrigado a ir (.)pegou na época meu marido estava aqui estava trabalhando em Macaé estava em casa com meu ilho bateram na porta fui lá ver quem e↑ra (.)era a polícia humhum As primeiras ocorrências de hipotáticas adverbiais de inalidade na audiência aparecem na sustentação da querelada, realizada via narrativa factual,8 tal como já identiicado por Dias e Vieira (2008) em dados de audiências no PROCON. No excerto (1), Maria narra como o policial, incitado por Laís, foi procurá-la em sua casa. As cláusulas de inalidade, nesse caso, constituem uma projeção do que a querelante pretendera fazer no passado, segundo a narrativa de Maria. Observa-se, por exemplo, o contraste entre a intenção de Laís incitar o policial a ir ao trabalho da querelada (“pra me repre:ender”, linha 28) e a intenção do policial de se dirigir à sua casa “pra conversar” (linha 30). Na fala de Maria, a ação intencionada por Laís – a repreensão do policial – é negativa,9 diferentemente da ação intencionada pelo policial – uma conversa –, que tem um tom mais conciliatório. Nesse caso, as hipotáticas adverbiais de inalidade canônicas pospostas (linhas 28 e 30) estariam contribuindo para a evidência da posição defendida por Maria: ela se sentira constrangida pela querelante. O excerto (2) a seguir mostra a refutação da conciliadora à alegação de Maria de que Laís a constrangera ao incitar o policial a procurá-la em sua casa. As narrativas factuais são aquelas que narram fatos pretensamente reais, pois apresentar uma informação de uma dada situação é um lance conversacional ativo que transforma fundamentalmente a natureza do que foi dito (TANNEN, 1989, p. 105). 9 O verbo repreender sugere uma avaliação negativa do objeto da repreensão (de censura e advertência, por exemplo). 8 892 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 Excerto (2) 50 51 Maria E ela sempre comentou que tomava remédio controlado ela e a ilha dela 52 53 54 55 56 Sonia tá então vamos lá (1,0) é:: quando a pessoa chega pra fazer uma ocorrência policial e o policial preci↑sa contactar a outra parte até <pra pegar os da::dos (.) pra dar até ciência de que vai- né, que foi fei↑to [uma ocorrência policial>]= 57 Maria [(mas foi feito)][( 58 59 60 61 62 Sonia =>ele pode procurar em qualquer lugar< (.) ele pode procurar em qualquer lugar>ele pode te procurar na sua casa ele pode procurar no seu local de trabalho< ele pode te abordar na rua “ô fulana” (.) é: eu não sei se na hora eles te dão um documento ou só te informa → )] Em sua fala, Sonia sustenta a legalidade da ação do policial ao procurar a querelada em sua residência. A meta ou intenção do policial é justiicada em termos legais, por meio de evidências, explicitadas em três cláusulas de inalidade canônicas pospostas (linha 52 a 55), inseridas em uma narrativa ictiva. Segundo Oliveira et al. (2007), as narrativas ictivas diferem das factuais por não se referirem a fatos localizados num tempo determinado, mas a fatos que se repetem e que constituem padrões exemplares de ações rotineiras no contexto do trabalho. A primeira ocorrência (linhas 52-53) projeta a meta do cidadão ao lavrar um Boletim de Ocorrência. As duas outras hipotáticas adverbiais de inalidade (linhas 54 e 55) projetam as metas usuais dos policiais no cumprimento de seu trabalho. Observa-se que essas duas últimas cláusulas são produzidas em ritmo mais lento que a fala em entorno. Imediatamente após a completude sintática das hipotáticas de inalidade, a conciliadora acelera sua fala (linhas 58-60). Ela ignora a tentativa de interrupção de Maria (linhas 56 e 57) e continua a descrever os procedimentos seguidos pelos policiais após o registro de um Boletim de Ocorrência. Entretanto, a querelada não é convencida por Sonia de encerrar o caso e expressa seu desejo de registrar novo Boletim de Ocorrência, alegando constrangimento por parte de Laís. A conciliadora, então, continua sua argumentação com o objetivo de demover Maria de seu intento, como pode ser observado no excerto (3). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 893 Excerto (3) 71 Maria [(mas eu)] 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 Sonia [ porque ]se ela hoje tivesse formulado a queixa crime né falando que fulana me xingou disso e disso e disso falou( ) isso isso e aquilo e tivesse por exemplo ( ) testemunhas falsas para dar depoimento e no inal você comprovasse que você nunca falou essas coisas com ela que você nesse dia NEM estava em Que↑da saí sim você poderia constituir um advogado, vir diversas vezes aqui, caberia um dano alguma coisa nesse sentido (.) mas aponto dela ter feito uma ocorrência de cabeça quente e chegou aqui hoje e arquivou↓ (.) eu não visualizo nenhum dano que você possa:: que va↑le a pe:na você mexer 83 84 85 86 Maria → eu digo assim constrangimento porque eu nunc- polícia nunca foi atrás de mim no entanto uma vez eu vim aqui porque eu caí de moto e aí não deu em nada eu estava na garupa do meu ex-namorado Desta vez, a conciliadora desenvolve uma narrativa hipotética10 que prevê em que condições Maria poderia dar prosseguimento à ação. Inserida na narrativa, a hipotática adverbial de inalidade canônica posposta, cuja cláusula núcleo traz o verbo no subjuntivo (“tivesse”), mostra a meta das testemunhas em um processo legal (“para dar depoimento”, linha 75). No fechamento de seu turno de fala, Sonia apresenta sua posição de arquivamento do processo: não há nenhum dano para a querelada que valha a pena dar andamento ao caso (linhas 81 e 82). No entanto, a argumentação da conciliadora não surte o efeito esperado, pois Maria continua a argumentar ter sido constrangida por Laís e apresenta sustentações de sua posição nos turnos subsequentes. Na sequência dessa argumentação, Maria constrói uma narrativa em que descreve atitudes da querelante, mostrada no excerto (4), a seguir. Logo após o fecho dessa narrativa, a querelada faz uso de uma construção com valor de inalidade (“se fosse pra denunciar, eu tenho prova de que ela faz coi↑sas”, linhas 102-103). As narrativas hipotéticas relacionam-se à possibilidade de se criar no discurso uma realidade cuja existência constitui apenas matéria de criação retórica para fundamentar uma posição (VIEIRA, 2007). 10 894 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 Excerto (4) 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 Maria e o pior é que ela falou pra todo mundo que enquanto eu não saísse da ca:sa que ela faria da minha vida um inferno (.) ela falou isso pra todo mundo aí (.) no dia que o policial foi lá- lá em casa >ela esperou eu chegar do serviço e falou assim< é realmente eu consegui (.) e icou rindo da minha cara (1,0) entendeu? então ó↑ ela veio, fez esse escarcéu todo, fazendo um escarcé↑u (.)se fosse pra → denunciar eu tenho prova de que ela faz coi↑sas (1,0)o meu ilho passava pela janela que a janela dava pra dentro do meu quintal, ela gritava [(vai )] 106 107 108 Sonia [>tá tátá<] é o seguinte: ela já infernizou sua vida tanto que você preferiu até mudar certo? No excerto (4), encontramos uma construção PARA + ininitivo, que pode ser analisada ora como uma cláusula de inalidade, ora com um valor de cláusula predicativa, o que faz dela uma construção ambígua;11 ou ainda como uma construção para + INF (TORRENT, 2009), em que se destaca a modalidade de “seria pra”. Portanto, evidencia-se que temos uma interessante estratégia linguística em que, além da projeção do movimento de inalidade no mundo das intenções, na cláusula iniciada por PARA, Maria reforça o foco na leitura epistêmica sobreposta no uso da modalidade deôntica [SER+PRA+ VERBO INFINITIVO] em relação ao evento descrito como denunciar. Além disso, pode-se perceber a projeção da modalidade irrealis do verbo “ser”, própria do modo subjuntivo. Todas as escolhas sintáticas e semântico-discursivas estão em harmonia e servem para fundamentar a narrativa hipotética. Convém destacar que o valor de inalidade pode ser percebido como um silogismo em que a conclusão é inferencial. A premissa maior, expressa pela construção ambígua “se fosse pra denunciar”, apresenta a possibilidade de ser registrada uma ocorrência policial; a premissa menor expõe que Maria tem provas contra Laís. Está implícita a conclusão: Maria pode registrar uma ocorrência policial contra Laís. O tema foi discutido, informalmente, com as professoras Violeta Virgínia Rodrigues (UFRJ) e Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG), mas as informações são de nossa inteira responsabilidade. 11 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 895 Dessa forma, nova argumentação se inicia: Maria defende o direito de instaurar outro processo contra Laís, e Sonia argumenta não ser viável essa ação. Todas as outras ocorrências de cláusulas hipótaticas adverbiais de inalidade encontradas na audiência “Parede e meia (Parte 2)” estão na fala da conciliadora. Até o im do encontro, ela sustenta a posição de não ser aberto outro processo. Essa argumentação de Sonia é mostrada nos excertos (5), (6) e (7) a seguir. Excerto (5) 104 105 Maria ilhopassava pela janela que a janela dava pra dentro do meu quintal, ela gritava [(vai já) ( )] 106 107 108 Sonia [>tá tátá< (mas o que)( )] aqui é o seguinte (.) ela já↑(.)infernizou sua vida (.) tanto que você preferiu até mudar certo? 109 Maria foi 110 Sonia você nem encontra nem cruza mais 111 Maria graças a deus não 112 113 114 Sonia → → então eu acho que não VA↑le a pe↓na você perde:r tempo, gasta:r dinheiro com advogado <pra montar um proce↓sso,pra fazer↓ ela vir aqui↓>pra mostrar [>aqui ó↓eu iz um BO<] 115 116 Davi [porque mesmoque você] entre com um processo e ganhe uma indeni[zaçã:o] 117 118 119 120 Sonia [pois é↑] aonde eu ia chegar(.) quando a gente entra com uma coisa dessas querendo uma indenização um dano no moral no fundo no fundo o que a gente quis uma compensação em dinheiro No início do excerto (5), a conciliadora interrompe a sustentação por narrativa de Maria, em sobreposição e com aceleração da fala (linha 106). A tomada de turno abrupta lhe é facultada pelo papel institucional de gerenciadora de tópicos discursivos e de alocação de turnos nesse contexto. Na sequência, Sonia mostra evidências de que não há possibilidade de mais discórdia entre as duas vizinhas, visto que Maria se mudara de perto de Laís (linhas 107-108) e não “encontra nem cruza mais com ela” (linha 110). Após a concordância avaliativa de Maria (linha 111), Sonia fecha sua argumentação com a apresentação de sua posição (implícita) de não 896 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 ser aberto outro processo: “eu acho que não VA↑le a pe↓na você perde:r tempo, gasta:r dinheiro com advogado”(linhas 112-113). Na sequência, três hipotáticas de inalidade discursivas sustentam por evidência essa posição: “<pra montar um proce↓sso (.) pra fazer↓ ela vir aqui↓>pra mostrar >aqui Ó↓ eu iz um BO<” (linhas 113-114). Todas elas projetam movimentos não físicos, mas no mundo das intenções, em relação às suas cláusulas núcleos. Thompson (1985) airma que as cláusulas de inalidade pospostas expressam a inalidade do estado de coisas descrito na cláusula núcleo e apresentam uma função deinida no discurso, ao dar uma motivação orientacional para uma série de ações. Observa-se a harmonização nessas construções: primeiramente, uma cláusula núcleo (“gasta:r dinheiro com advogado”) e sua inalidade (“<pra montar um proce↓sso”), que funciona como núcleo da segunda cláusula hipotática (“pra fazer↓ ela vir aqui”); em seguida, a última cláusula de finalidade (“pra mostrar >aqui Ó↓ eu iz um BO<”) tem como cláusula núcleo as duas cláusulas de inalidade antecedentes. As duas primeiras construções são produzidas com desaceleração da fala, em ritmo lento, marcado por descidas acentuadas na entonação. Essas marcas paralinguísticas parecem sugerir que a instauração de um processo percorre uma trajetória lenta e tediosa na justiça. A terceira cláusula, ao contrário,é produzida com fala acelerada. A mudança no ritmo da fala da conciliadora pode ser justiicada pela iminência da tomada de turno por Davi (linha 115), o que de fato ocorre. Mas também pode ser creditada à diferença de intenção expressa por essa última cláusula. As duas primeiras mostram intenções orientadas pelos procedimentos de instauração de um processo no Juizado Especial Criminal, isto é, metas de todos que registram ocorrências nessa instância. Já a cláusula de inalidade que fecha a argumentação de Sonia expressa uma intenção particular, a de Maria, ou seja, dizer a Laís que havia feito um Boletim de Ocorrências. Como não é esperado que audiências ocorram para que os querelantes comuniquem aos querelados que registraram ocorrência contra eles, podemos inferir que a conciliadora chama a atenção para a inutilidade dessa meta naquele contexto. Assim, a intenção de Maria de retaliar Laís, expressa nas hipotáticas adverbiais de inalidade discursivas (linhas 113-114), é avaliada pela conciliadora como perda de tempo e de dinheiro, explicitada na cláusula núcleo (“não VA↑le a pe↓na você perde:r tempo, gasta:r dinheiro com advogado”, linha 112). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 897 O excerto (6), a seguir, mostra outra ocorrência de cláusula de inalidade na argumentação da conciliadora. Excerto (6) 139 140 141 Maria é a terceira pessoa que ela faz um BO contra um vizinho assim é a terceira casa que ela mora que ela faz um BO contra a vizinha 142 143 144 145 146 147 148 149 150 151 Sonia ᵒpois éᵒ (.)mas isso não- não impede por exemplo se em qualquer outra situação você passando por ela em Quedas se ela debochar de você se ela mexer com você (.) faça você a ocorrência (.) né? ai você que vai ter sido agredi:daofendi:dadesacata:da por ela (.) agora, NEssa questão que vocês trouxeram aqui hoje: (.) <não vale a pena não> (1,0) não vale a pena não↓ >você vai se aborrecer você vai se desgastar perder serviço perder seu TEM:po dar → dinheiro a advogado<<pra fazer ela presta↑r um serviço (.) paga↑r uma [cesta bá:↑sica>] 152 153 Maria [ela passou por] mim deu uma risadinha de lado igual eu falei com a minha mãe Tal como no excerto (3), aqui também Sonia utiliza uma narrativa hipotética como estratégia argumentativa (linhas 142-146), mostrando possíveis atitudes de Laís que poderiam justiicar uma ocorrência contra ela. A conciliadora contrapõe essa hipótese à situação atual e reitera sua posição de não ser registrado novo Boletim de Ocorrência com uma avaliação: “<não vale a pena não> (1,0) não vale a pena não↓” (linhas 147-148). Na sequência, as várias cláusulas núcleos acrescentam outras perdas, além de tempo e dinheiro já citados pela conciliadora,12 caso Maria decida prosseguir com a ação: desgaste emocional e proissional (“você vai se aborrecer você vai se desgastar perder serviço perder seu TEM:po dar dinheiro a advogado”, linhas 148-149). As cláusulas nucleares são morfossintaticamente constituídas de perífrases de futuro, que projetam movimento no tempo, em harmonia com as hipotáticas adverbiais, que projetam movimento no mundo das intenções, em acordo com o princípio da harmonia (LYONS, 1977; BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994). Observamos que as hipotáticas de inalidade canônicas, pospostas, representam a meta da querelada (“<pra fazer ela presta↑r um serviço(.) 12 Conforme excerto (6). 898 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 paga↑r uma [cesta bá:↑sica>”, linha 150), e constituirão evidências legais projetadas para a meta de um movimento no mundo das intenções. Assim como no excerto (6), as hipotáticas de finalidade são produzidas com desaceleração da fala. Entretanto, as marcas paralinguísticas são outras: há subidas acentuadas na entonação de determinadas palavras. Essa estratégia da conciliadora parece questionar a intenção de Maria como não compensável em termos práticos, pois ela não teria nenhuma vantagem pessoal com a abertura de um processo contra Laís. Essa interpretação é corroborada pelo fecho da argumentação da conciliadora no excerto (7), a seguir, que mostra o encerramento da audiência. Excerto (7) 162 Sonia ela trabalha pra quem? 163 164 Maria ela trabalha para o Daniel lá em Eldorado (.) ele tem lá uma uma vendinha ilho da dona Eva 165 166 167 168 169 170 171 172 173 174 175 176 Sonia eu sei quem é. (1,0) certi:↑nho, entendeu? o que foi feito? foi arquivado o processo porque é direito dela arquivar ou seguir com processo que era Dela que o processo era DE↑la porque ELA, segundo o relatório, entrou como ví↑tima, CER↑to?e↑ eu te aconselho a não buscar advogado a não mexer com isso mais não (.) vai perder meu tempo vai se aborrecer e (.) não vai dar nada. ela não tem dinheiro grande pra te indeniza↓r. ela não vai ser presa por causa disso. ela quando muito vai prestar um serviço ou pagar uma cesta básica aí ( ) compensa não (.) tem coi:sas que: >como diz o outro, Deus te dá em dobro< entendeu? releva que é melhor (1,0) certi:nho? 177 Maria mas se ela passar [na minha frente] 178 179 Sonia [se E:↑la izer]alguma ameaça alguma coisa, vai na polícia militar e faz a ocorrência → Na última sequência argumentativa da audiência, Sonia retoma posição anterior sobre o arquivamento do processo (linhas 165-168) e reintroduz sua argumentação sobre a instauração de nova ação (linhas 169-171). Ela utiliza a cláusula núcleo + cláusula hipotática de inalidade canônica posposta (“pra te indeniza↓r”, linha 172) para que seja expressa uma das intenções de Maria caso ela decida abrir uma ocorrência contra Laís. A cláusula-núcleo explicita a inviabilidade dessa meta no mundo das intenções: “ela não tem dinheiro grande” (linhas 171-172), e a cláusula Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 899 de inalidade, a meta do movimento no mundo de intenções, reforçando a inviabilidade da utilização de um processo por parte de Maria. 6 Considerações inais Este estudo acompanhou, em uma audiência no Juizado Especial Criminal, a trajetória do processo argumentativo de um caso envolvendo agressão verbal entre duas vizinhas. Mostramos sequências argumentativas desse processo nas quais foram encontradas cláusulas hipotáticas adverbiais de inalidade. Segundo a classiicação proposta por Dias (2001), encontramos expressiva ocorrência de cláusulas hipotáticas de inalidade canônicas (pospostas), seguidas pelas hipotáticas discursivas (antepostas), encontramos apenas uma ocorrência híbrida que recebeu mais de uma análise. Não encontramos as demais cláusulas de inalidade propostas. Identiicamos, na argumentação dos participantes do encontro, a sustentação como o lugar preferencial para ocorrência de cláusulas de inalidade, sobretudo as hipotáticas canônicas. A maior ocorrência de cláusulas de inalidade canônicas pospostas pode estar relacionada à diiculdade da sustentação da posição em situações de fala conlituosa. As cláusulas canônicas são mais fáceis de serem acessadas e utilizadas pelo locutor em uma atividade de fala na qual ele necessite de “agilidade mental” para chegar a um acordo. Também essa orientação para o contexto poderia explicar a maior ocorrência das cláusulas de inalidade na sustentação dos participantes dessa audiência. Como nesse componente são apresentadas as provas para defender a posição, as cláusulas de inalidade, que ocorrem principalmente como evidência empírica (excertos 2, 5, 6 e 7), estariam contribuindo para a evidência das provas. Elas aparecem também inseridas em narrativas (excertos 1, 2 e 3), pois é por meio de narração que podem ser relatados fatos que realcem intenções ou metas dos protagonistas, o que constituem também evidência. No caso da narrativa factual (excerto 1), ela projeta a meta pretendida pelo protagonista no passado; na narrativa ictiva (excerto 2), projeta metas rotineiras de trabalho; e na narrativa hipotética (excerto 3), a cláusula de inalidade projeta a meta futura do protagonista no mundo das intenções. Por im, o uso de uma cláusula de inalidade como parte de um silogismo, no excerto 4, constitui uma sustentação mais complexa. Esse tipo de sustentação, previsto em Aristóteles (1978), 900 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 constitui a prova por excelência. De acordo com o pensador grego, é com base na anatomia da forma lógica básica (ou modelo silogístico formal) de premissa e conclusão que é alicerçado todo tipo de raciocínio (ou de argumentação).13 No caso, a cláusula de inalidade expressa a primeira premissa e descreve a execução do objetivo da participante Maria: denunciar Laís. Os excertos analisados possibilitaram tratar o uso de cláusulas de inalidade e sua relação com a complexidade da argumentação. Vimos como essas construções atuam nas sustentações das posições dos participantes. O instrumental da teoria funcionalista sobre investigação de cláusulas, em conjugação com a teoria da argumentação de base interacional, mostrou-se extremamente produtivo, pois pudemos relacionar melhor o uso de cláusulas de inalidade ao contexto de sua ocorrência. Por outro lado, por se tratar de um estudo de caso, nossos resultados são válidos tão e somente para esse contexto situacional, necessitando de conirmação que os validem em outros encontros do gênero. Referências ARISTÓTELES. Tópicos. São Paulo: Abril, 1978. (Os pensadores) AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press,1962. BYBEE, J.; PERKINS, R.; PAGLIUCA, W. The evolution of grammar: tense, aspect and modality in the languages of the world. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1994. COX, J. R.; WILLARD, C. A. Introduction: the ield of argumentation. In: ______. (Ed.). Advances in argumentation theory and research. Carbondale; Edwarssvile: Southern Illinois University Press, 1982. Doi: https://doi.org/10.1007/978-1-4471-3307-0_1 De acordo com a terminologia utilizada por Toulmin (1958), nesse modelo, raciocinamos com base em dados (datum) ‘D’ e deles chegamos a conclusões ou proposições (claims) ‘C’. 13 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 879-904, 2018 901 DENZIN, N.; LINCOLN, Y. The discipline and practice of qualitative research. In: ______. The handbook of qualitative research. Thousand Oaks, CA, USA: Sage Publications, 2000. p. 1-27. DREW, P.; HERITAGE, J. Analysing talk at work: an introduction. In: ______. (Org.), Talk at work: interaction in institutional settings. Cambrigde: Cambridge University Press, 1992. p. 470-520. DIAS, N. B. As cláusulas de finalidade. 2001. Tese (Doutorado Linguística) – Departamento de Letras, Unicamp, Campinas, 2011. DIAS, N. B. As funções discursivas das cláusulas de inalidade. Veredas, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, p. 137-148, 2002. DIAS, N. B. As cláusulas de inalidade no português do Brasil: uma proposta. 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(0.5) pausa em décimos de segundo. (.) micropausa de menos de dois décimos de segundo = contiguidade entre a fala de um mesmo falante ou de dois falantes distintos. . descida de entonação. ? subida de entonação. , entonação contínua. : alongamento de som. - autointerrupcão. sublinhado acento ou ênfase de volume. MAIUSCULA ênfase acentuada. ºpalavrasº trecho falado mais baixo. subida acentuada na entonação. ¯ descida acentuada na entonação. >palavras< fala comprimida ou acelerada. <palavras> desaceleração da fala. (( comentários do analista. )) (palavras) transcrição duvidosa. ( ) transcrição impossível. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 O Zhuāngzǐ e as palavras-cálice: uma visão de linguagem pragmática radical na China do século IV aC Zhuāngzǐ and goblet words: a radical pragmatic view in China’s 4th century BC Cristiano Mahaut de Barros Barreto Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil cristianombb@gmail.com Resumo: No presente artigo, analiso a visão de linguagem do clássico chinês taoísta Zhuāngzǐ 莊子 (c. século V–III a.C.), com foco no capítulo 27, onde seu autor sugere, por meio da tríade metalinguística das palavras convidadas, palavras repetidas e palavras-cálice, uma visão marcadamente singular na tradição chinesa, ainda pouco explorada pela sinologia e na história das ideias linguísticas (HIL). Em tradução comentada inédita para o português do início do capítulo 27 do Zhuāngzǐ, proponho que a leitura de suas linhas revele uma linguagem poderosa e libertária e, ao mesmo tempo, eivada pela sua própria propensão à imposição de categorias e ontologias. O Zhuāngzǐ sugere uma abordagem profundamente inovadora, com a qual traço aqui paralelos elucidativos e também inéditos, até onde tenho conhecimento, com a abordagem pragmática do conceito de linguagem como forma de vida de Wittgenstein. Apoiando-me na visão teórica historicista moderada de Auroux e no perspectivismo metalinguístico associado a Harris e Taylor, identiico ainidades que transcendem tempo e espaço e, ao mesmo tempo, recusamse a ceder ao reducionismo ou a hierarquias paralisantes. Ao longo do eixo de uma ilosoia comparativa Leste/Oeste, sugiro que o termo inal da tríade zhuangziana, palavras-cálice, represente o poder renovador e libertador da linguagem cujos traços entrevemos na linguagem ordinária eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.905-943 906 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 de Wittgenstein. Finalmente, concluo com um convite para que se restaure a posição merecida do Zhuāngzǐ na HIL chinesa, ressaltando o papel fundamental do seu capítulo 27 nessa história. Palavras-chave: Zhuāngzǐ; Wittgenstein; metalinguagem; palavrascálice. Abstract: In this article, I analyze the language view of the Chinese Taoist classic Zhuāngzǐ 莊子 (c. 5th-3rd century BC), focusing on Chapter 27, in which the author suggests, through the metalinguistic triad of invited words, repeated words and goblet words, a remarkably unique view within the Chinese tradition, still largely unexplored by sinologists and authors working on the History of Language Ideas (HLI). In a previously unpublished translation to the Portuguese of the beginning of Chapter 27 from the Zhuāngzǐ, I propose that the text supports a powerful and libertarian language that at the same time is plagued by its own propensity to impose categories and ontologies. The Zhuāngzǐ suggests a profoundly innovative approach, with which I draw illuminating and not yet published – as far as I am aware – parallels with the pragmatic approach of Wittgenstein’s language as a form of life. Relying on Auroux’s theoretical moderate historicist vision and the metalinguistic perspectivism associated with Harris and Taylor, I identify afinities that transcend time and space and at the same time refuse to yield to reductionism or to paralyzing hierarchies. Along the axis of an East/West comparative philosophy, I suggest that the inal term of the Zhuangzian triad, goblet words, represents the renovating and liberating power of a language in which we see signs of Wittgenstein’s ordinary language. Finally, I conclude with an invitation to restore the welldeserved prominence of the Zhuāngzǐ in the Chinese HLI, with particular attention to the key role of its Chapter 27. Keywords: Zhuāngzǐ; Wittgenstein; metalanguage; goblet words. Recebido em 30 de outubro de 2017. Aceito em 19 de dezembro de 2017. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 907 1 Introdução 忘年忘義,振於無竟,故寓諸無竟! wàng nián wàng yì, zhèn yú wú jìng, gù yù zhū wú jìng! Esqueça anos, esqueça distinções. Jogue-se no sem-im, e assim sinta-se em casa ali! (Zhuāngzǐ, cap. 2) Beim Philosophieren muß man ins alte Chaos hinabsteigen und sich dort wohlfühlen. Na ilosoia é preciso descer até o caos primordial e lá se sentir à vontade. (Wittgenstein, MS 136 51a: 3.1.1948)1 Subscrevendo o estudo da História das Ideias Linguísticas (HIL),2 compreendemos a história das línguas como continuamente marcada pelas pressões socioculturais dos povos da Terra e intimamente ligada às noções de cultura e identidade nacionais. Da mesma forma, também os pensares sobre a linguagem estão necessariamente situados histórica e culturalmente, em complexa inter-relação, o que torna a linguagem não um mero objeto passivo e isolado de estudo, mas, sim, o resultado de um multifacetado jogo de representações inseridas em seus contextos de produção. Essa abordagem é ainda mais relevante para a história dos pensares sobre a linguagem na China clássica, onde as políticas linguísticas – em particular após a efêmera uniicação do espaço cultural chinês sob a dinastia Qín 秦 (221-206 a.C.) – exerceram um profundo efeito sobre o uso linguístico no nascente império, sob a égide de uma meritocracia centralizadora e controladora. A despeito da brevidade dos Qín no trono imperial, foi profundo e durador o impacto de suas políticas linguísticas sobre os chineses, em particular por meio do início de um processo de completa reformulação e padronização da escrita chinesa.3 1 Todas as traduções de citações no presente artigo são de minha responsabilidade. Associado a Auroux (1995, 1992 e 2000) 3 Para uma abordagem geral sobre a escrita chinesa, inclusive sua história, ver Barros Barreto (2011) ou Alleton (2008). 2 908 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 Em linhas gerais, na história do pensamento chinês tradicional, podemos airmar que as relexões linguísticas chinesas têm suas origens na efervescência cultural ocorrida na dinastia Zhōu oriental (dōngzhōu 東周, 1030-221 a.C.), o longo, fértil e conturbado período histórico chinês que precedeu os Qín. Os textos escritos à época constituíram a base do cânone tradicional chinês e nortearam os pensares chineses em sua multimilenária história. Ainda que a ilologia (xiǎoxué 小學) e os estudos literários não tivessem ainda tomado um papel protagonista nesse período, já encontramos passagens que demonstram uma atenção especial sobre a linguagem, marcadamente sobre a relação entre os nomes e a realidade. No desenvolvimento subsequente das relexões chinesas sobre a sua língua e, em particular, sobre sua escrita, seu curso tomou caminhos muito particulares, centrados na lexicologia/exegese de textos (xùngŭ 訓詁), na dialetologia (fāngyánxué 方言學) e no estudo dos caracteres chineses (zìshū 字書), relegando a um papel secundário interesses como a gramática e a sintaxe.4 Vemos em autores seminais como Mòzǐ 墨子 (c. 468-391 a.C.) e Xúnzǐ 荀子 (c. 312-230 a.C.) uma acentuada preocupação com a chamada questão da “retificação dos nomes” (zhèngmíng 正名), a análise e eventual ajuste na relação apropriada entre os caracteres chineses (os “nomes”, míng 名) e seus denotata (as “coisas”,5 shí 實), necessária à compreensão “correta” entre as pessoas. As correntes antagonistas que depois foram convencionalmente chamadas de Moísta (mòjiā 墨家, escola [dos seguidores] de Mòzǐ) e Confucionista (rújiā 儒家,escola dos acadêmicos) formularam justiicativas para os inúmeros pares nomes /coisas em consonância com seus próprios preceitos ilosóicos sobre o que entendiam ser comportamentos corretos. É no contexto desse debate que localizamos a importância da contribuição de um dos textos canônicos da tradição Taoísta e 4 Para discussões mais detalhadas sobre a história do surgimento e desenvolvimento das relexões chinesas na época clássica, veja-se Elman (1982), Lepschy (1994, cap. 1), Auroux (1995, cap. VI), Wang (2005, cap. 1), Bottéro (2008, 2011), Wang; Sun (2015, parte 1) e O’Neill (2016, cap. 10-15). 5 shí 實, que é muitas vezes traduzido como “coisas” ou “realidade”, é um termo fortemente polissêmico cuja interpretação é alvo de extremadas discussões, particularmente quando traduzido por termos relacionados à metafísica ocidental. Owen (1992), em uma leitura particularmente feliz, entende-o como sólido, atual (as vezes em oposição à xū 虛, vazio), referindo-se à ixidez de uma forma deinida, em sua realização concreta. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 909 chinesa, imensamente inluente na história da China e na constituição de sua identidade cultural, o Zhuāngzǐ 莊子. O presente artigo se atém especificamente à contribuição do Zhuāngzǐ para a HIL na China tradicional durante o período formativo na era Zhōu oriental, focandose detalhadamente na leitura atenta do início do capítulo 27 do livro, ineditamente tratada na academia brasileira.6 A situação do Zhuāngzǐ na época nascente da relexão linguística chinesa e na criação de todo um novo vocabulário chinês para lidar com as práticas linguísticas dá indícios da adequação de uma exploração mais minuciosa das práticas metalinguísticas chinesas, que se coalesceram a partir de usos inaugurais e seminais ao longo da história chinesa. Termos que usualmente traduzimos do chinês como escrita, dialeto, etimologia, palavra, tradução e mesmo linguagem tomaram usos muito diversos daqueles para os quais nos sugerem os discursos linguísticos ocidentais ou mesmo o que entendemos como o “senso comum” dessas palavras. São. portanto, instâncias propícias para o desenvolvimento de um trabalho comparativo na HIL, que objetiva dar uma contribuição na mesma linha que o ambicioso projeto de Sylvain Auroux (1995, 1992, 2000, 2004, 2009). Ao pensamento inspirador e inluente de Auroux, adiciono interlocuções com autores como Taylor (1997, 2000, 2003) e Harris (1981, 1988, 2001), que, em suas abordagens radicalmente antidogmáticas e historicistas, criticaram o que Harris batizou de “Mito da Linguagem”, ou seja, que a linguagem seria um sistema ixo de códigos e mero instrumento passivo de representação. Para Taylor, os usos leigos da linguagem nos levam à constituição de um senso comum quando frequentemente a reiicamos. Esse senso comum inluencia diretamente os discursos acadêmicos, a despeito de suas pretensões cientiicistas e neutralistas. Finalmente, beneicio-me particularmente do diálogo profícuo com a ideia de Linguagem como Forma de Vida, de Wittgenstein (1998, 2009) Há hoje muito poucas alternativas de leitura do Zhuāngzǐ em português. Os livros disponíveis (nas referências) são traduções indiretas via língua inglesa, limitados aos “capítulos internos” (os sete primeiros capítulos do livro) ou a uma seleção de passagens/ anedotas do livro. Para o presente trabalho de análise e tradução, apoiei-me no texto original e nas traduções em inglês e em chinês (nas referências). Para bem trabalhadas introduções em português ao Zhuāngzǐ e ao pensamento ilosóico chinês clássico, veja-se Lai (2009, p. 169-200) e Souza (2016). 6 910 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 – que lemos nos textos de sua fase mais madura, em especial seu seminal Investigações Filosóicas, e também nas leituras de Cavell (1979) e Glock (1996) – em que a linguagem não pode ser reduzida a qualquer teoria universalizante ou tomada como um objeto hermeticamente isolado de estudo. Em particular, ressalto a importância da ideia da linguagem ordinária, a linguagem comum que Wittgenstein frequentemente lauda em seus textos (WITTGENSTEIN, 2009, §98, 105, 116, 243; CAVELL, 1979, p. 180) em oposição àquela do discurso técnico, calculado e com pretensões de certeza e de não ambiguidade.7 O pensamento desses autores articula-se com uma abordagem que toma os textos chineses como discursos, carregados de uma ideologia, não somente retratos de um contexto sócio-histórico de produção, mas também agentes ativos na construção de um pensamento sobre a linguagem e sobre o mundo. Considero o Zhuāngzǐ um trabalho fundamental para a HIL na China clássica. Trata-se de um texto particularmente rico em metalinguagem e em expressões inaugurais da língua chinesa, fonte de usos inovadores de caracteres chineses que progressivamente seriam incorporados de diversas maneiras ao vocabulário corrente de sua língua. Um termo particularmente caro à sua visão de linguagem que podemos entrever no texto é zhīyán 卮言, introduzido no capítulo 27. Seu uso no âmbito da tríade yùyán 寓言, chóngyán 重言 e zhīyán 卮言 é o objeto central da análise deste artigo e se mostrará fundamental, como argumentarei adiante, às representações de linguagem de todo o Zhuāngzǐ. Mostrarei que, no capítulo 27, encontramos explicitada uma visão de linguagem radicalmente inovadora, poucas vezes abordada no contexto do Zhuāngzǐ e ainda, até onde tenho conhecimento, não examinada à contraluz das ideias teóricas apoiadas nos textos de Auroux, Taylor, Harris e Wittgenstein. Assim, ao longo do presente artigo, espero poder transmitir ao leitor uma ainidade que extrapola os séculos e a distância geográica entre o discurso profundamente antidogmático sobre a linguagem lida 7 A caracterização do discurso wittgensteiniano como aquele que emprega uma linguagem “comum” é controversa, uma vez que seus textos são povoados por um vocabulário que pode ser facilmente considerado extremamente técnico. O uso de um discurso técnico para louvar a linguagem ordinária pode entretanto ser reconhecido como típico das contradições inerentes da linguagem e do texto do ilósofo. Para uma discussão sobre essa questão, ver, por exemplo, Barros Barreto (2015, p. 24-53). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 911 no Zhuāngzǐ e naqueles textos de Wittgenstein e Harris. Seus paralelos, em vez de indicar uma vocação universalista que reunisse esses autores sob a égide de conceitos e doutrinas postulados além de suas diferenças culturais e históricas, muito ao contrário, dá-nos mostras de pensadores que, mesmo fundados sobre tradições radicalmente diversas, ainda assim nos propõem o olhar vigorosamente libertador de uma linguagem soberana e poderosa.8 2 O Zhuāngzǐ Pouco se sabe sobre o personagem histórico homônimo e autor do Zhuāngzǐ, um dos mais importantes e conhecidos pensadores da época de ouro da ilosoia chinesa. O que conhecemos, lê-se do capítulo 63 do Shǐjì 史記 (o “Livro da História”), em que seu nome pessoal aparece como Zhuāng Zhōu 莊周, nativo de Sòng 宋 no sul da China, onde teria sido um pequeno oicial.9 Zhuāngzǐ tornou-se conhecido por sua loquacidade e habilidade como um gentleman, a ponto do rei Wèi 魏de Chǔ 楚 (r. 339-329) tentar cooptá-lo oferecendo-lhe o posto de primeiro ministro. Ele foi provavelmente contemporâneo dos ilósofos Mencius (Mèngzǐ 孟子, c. 372/85-303/289 a.C.) e Huì Shī 惠施 (380-305 a.C.) e do poeta Qū Yuán 屈原 (c. 340-278 a.C.) no século IV a.C. Vendo a anexação progressiva de Sòng pelos estados vizinhos Qí齊, Wèi 衛 e Chǔ 楚, Zhuāngzǐ foi naturalmente marcado por uma visão bastante pessimista sobre o resultado de articulações de cunho político. Kohn (2014, p. 1) descreve-o como uma pessoa com fortaleza de caráter, ardoroso, com uma audácia intelectual, cativante e extravagante, nunca tendencioso, jamais se exaltando. Pobre e simples em vestimentas e gostos, era alguém que não coniava em regras oiciais, em categorias padronizadas ou opostos estabelecidos. 8 Devido ao escopo do presente artigo e suas limitações de espaço, não será dado aqui o tratamento mínimo adequado a autores do porte de Auroux, Harris ou Wittgenstein. Como referência, além dos textos dos próprios autores, indico também meu trabalho (BARROS BARRETO, 2015) em que este arcabouço teórico é desenvolvido em contraste com o pensamento linguístico do Lǎozǐ 老子, outro texto fundador da tradição taoísta. 9 Referências sobre a vida de Zhuāngzǐ, veja-se Graham (1989, p. 3-4), Mair (1994, p. xxxi-xxxv), Ziporyn (2009, p. vii-viii), Watson (2013, p. 7-8), Wang (2014, introdução), Kohn (2014, p. 1-4) e Souza (2016, p. 14-16). 912 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 Sua biograia no Shǐjì menciona que seus textos perfaziam cerca de cem mil caracteres. Como outros pensadores de seu tempo, não foi sua prioridade organizar suas ideias sob a forma de textos, tendo talvez escrito versos, estórias e alguns aforismos. Nada que se assemelhasse à estrutura de um livro parece ter aparecido antes dos sécs. III-II a.C. A primeira versão que conhecemos do Zhuāngzǐ foi um texto de cinquenta e dois rolos (piān 篇) editado por Liú Xiàng 劉向 (79-8 a.C.).10 Outras versões (mais curtas) circulariam nos próximos séculos até a padronização inal do texto, que consiste em trinta e três capítulos. Essa versão canônica foi editada por Guō Xiàng 郭象 († 312 d.C.)11 e considerada pelos estudiosos hoje como a “mais importante e o texto base para os pensadores chineses posteriores” (KOHN, 2014, p. 93). O texto, conforme estabelecido por Guō Xiàng, consiste de três seções: nèi piān 內篇 (capítulos internos), capítulos 1 a 7; wái piān 外篇 (capítulos externos), capítulos 8 a 22; e zá piān 雜篇 (capítulos diversos), capítulos 23 a 33. Até a dinastia Sòng 宋 (960-1279), os estudiosos chineses consideravam que todo o texto do Zhuāngzǐ, homônimo de seu autor putativo – o que era comum na tradição chinesa –, teria sido escrito por uma única pessoa, o que hoje se sabe não poder ter acontecido (KOHN, 2014, p. 6).12 Por outro lado, é em geral consenso entre a maioria dos estudiosos que os capítulos internos formam um texto mais coeso e estilisticamente mais rico e original a ponto de serem aqueles mais proximamente associados ao autor que deu nome ao livro (WATSON, 2013, p. 13).13 Alguns autores, como Mair (1994 p. xxxvii) airmam que o Zhuāngzǐ foi compilado um pouco antes, por Liú Ān 劉安 († 122 aC), o príncipe de Huáinán 淮南, na dinastia Hàn 漢. 11 Para maiores detalhes sobre a história textual do Zhuāngzǐ, veja-se Knechtes; Chang (2014, p. 2314-2323), Kohn (2014, cap. 1 e cap. 9) e Liu (2015, cap. 6). 12 Há diversos anacronismos ao longo do livro, além de mudanças drásticas no estilo do texto que apoiam a tese de que ele teria sido escrito por diversos autores. Até mesmo a autoria única dos capítulos internos é disputada. Veja-se, por exemplo, discussão em Mair (1994, p. xxxviii) ou em Cook (2003, p. 11). 13 A despeito da importância dos “capítulos internos”, não há evidências claras de que eles foram escritos antes do restante do texto. Para Kohn (2014, p. 7), os “capítulos internos” foram obra de múltiplos autores como um extrato posterior do texto, representando uma coleção de materiais que circulavam à época Hàn sob o nome de Zhuāngzǐ. Autores como Graham (1981) associam os capítulos internos ao nome do autor histórico Zhuāngzǐ. Allinson (1989, p. 6-7) e Wang (2014, p. 161) veem os capítulos internos como aqueles mais “genuínos” na representação do pensamento de Zhuāngzǐ. 10 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 913 O texto é considerado por muitos um dos mais belos e literariamente soisticados da China antiga (MAIR, 1994, p. xlv; YU et al., 2000, p. 71). Ele é repleto de anedotas, em que uma multiplicidade de personagens mundanos aparece junto à copiosa seleção de deuses, heróis míticos, árvores falantes, pássaros, insetos etc. (WATSON, 2013, p. xxviii). Junto com o Lǎozǐ 老子 e o Lièzǐ 列子, o Zhuāngzǐ compôs a tríade dos textos fundadores do Taoísmo ilosóico. Produzido e editado antes do desenvolvimento da corrente institucional do Taoísmo,14 o texto serviu ao longo do tempo aos mais diversos propósitos. Constituiu um manual para a longevidade e um catálogo de práticas esotéricas, foi também empregado como base de um sistema ilosóico associado ao cerne do taoísmo nascente à época dos Estados Guerreiros (zhàngguó shídài 战国时代, 481-221 a.C., no período Zhōu) e até mesmo como apoio a outros sistemas ilosóicos, como o Budista e o Neo-Confucionista (ZIPORYN, 2009, p. xi). Não devemos esquecer, sobretudo, que se trata de um texto proeminentemente literário, que emprega com maestria as palavras de uma maneira engajante e, muitas vezes, desconcertante. De uma forma geral, podemos entender os livros dos sábios chineses como manuais de conduta, de um agir em conformidade com algum dào 道, o “caminho” particular que orienta e leva às práticas corretas receitadas segundo os ensinamentos de cada uma das diferentes escolas do pensamento chinês. O Taoísmo, dàojiā 道家, é uma linha de pensamento cujo nome chinês signiica exatamente “escola do dào,” o que ressalta o papel fundamental desse conceito em sua doutrina. É possível argumentar, todavia, que o Taoísmo, de modo geral, e o Zhuāngzǐ, em particular, não propõe apenas mais uma linha de comportamento (“mais um” dào), mas nos oferece argumentos de ordem superior sobre o que poderíamos entender como “dào” – o texto é, portanto, um “dào sobre dào” (HANSEN, 1992, p. 202-209; ZIPORYN, 2009b) – e nos orientaria a seguir esse “meta-dào” que justamente se recusa a orientar ou a prescrever (ZIPORYN, 2009, p. xiii-xiv)! Como veremos a seguir, o princípio de 14 Muitos pensadores consideram que oTaoísmo pode, heuristicamente, ser dividido em uma tradição ilosóica (dàojiā 道家) e outra religiosa (dàojiào 道教). Suas versões institucionalizadas surgiram posteriormente e essa fronteira é questionada por alguns autores. Para outras referências, ver Kohn; Roth (2002), Kohn (2014, cap. 11) e Liu (2015, parte III e IV, e cap. 20). 914 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 um dào não coercitivo torna-se natural e inevitável a partir do momento em que aceitamos a premissa taoísta da liberdade total em um mundo em inesgotável e ininterrupto processo de mudanças. Seu aspecto meta-argumentativo e não autoritário (portanto, antidogmático) é um fator que torna o Zhuāngzǐ particularmente complexo (e por vezes, um tanto convoluto e de difícil compreensão), que parece querer impor-se a uma leitura em seus próprios termos, em vez de ceder a uma decodiicação. Isso, entretanto, torna o uso da linguagem no texto especialmente relevante e, por meio dela, oferece-nos o vislumbre sobre uma ilosoia de linguagem absolutamente original e revolucionária. 3 A ilosoia do Zhuāngzǐ e a linguagem Chuang Tzu não se preocupa com palavras, nem com fórmulas sobre a realidade, mas com a aquisição existencial direta da realidade como tal. Esta aquisição é necessariamente obscura e não se presta a uma análise abstrata. (MERTON, 2003, p. 16) A questão da linguagem no Zhuāngzǐ surge frequentemente ao longo de seu texto, de uma maneira sutil e indireta, e acaba passando despercebida por autores para os quais essa não é uma preocupação central. A citação em epígrafe é o paroxismo do ponto de vista desses autores. Na seleção de passagens do texto traduzidas por Merton – um monge católico que viu no Zhuāngzǐ uma rica fonte de espiritualidade – não há qualquer trecho retirado dos capítulos 1 ou 2, ou seja, aqueles que introduzem seu sistema ilosóico. Claramente, a questão da linguagem e a ilosoia do Zhuāngzǐ não izeram parte do foco da atenção de Merton, que assim os descartou como estranhos – ou “obscuros” – ao texto. Entretanto, hoje a maior parte dos estudiosos que se dedicam ao estudo do Zhuāngzǐ veem nele uma ilosoia indissociável de uma visão marcadamente original sobre a linguagem dentro da tradição chinesa. Alguns exemplos são ilustrativos. Segundo Billeter (1990, p. 162), a perícia no manejo da palavra no Zhuāngzǐ não apenas ilustra seus pontos de vista, mas seria prova conclusiva da justiça de sua posição ilosóica, em que a linguagem chama para si um papel absolutamente protagonista. Para Stephen West (YU et al., 2000, p. 72) o Zhuāngzǐ é o texto que, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 915 melhor do que qualquer outro no cânone chinês, mostra como a linguagem da classiicação pode ser desestabilizada por aquela da experiência. O autor argumenta que a “performance virtuosa” do texto do Zhuāngzǐ nos dá testemunho de um controle e precisão no uso de seus termos e assim nos guia no aparentemente confuso labirinto da realidade. Outros autores, como Willard Peterson (YU et al., 2000, p. 104), veem a capacidade do texto de subverter-se e arremeter-se em seguidas contradições como ao mesmo tempo uma fonte de frustrações e um claro sinal de que o Zhuāngzǐ não busca oferecer signiicados ou respostas, mas, sim, provocar uma leitura engajada e coparticipativa. Já Kjellberg; Ivanhoe (1996) editaram um livro inteiramente dedicado às estratégias linguísticas no Zhuāngzǐ, atendo-se a questões a respeito de seu relativismo e ceticismo – embora tenham praticamente ignorado o capítulo 27, dedicando-se aos capítulos internos. A linguagem, portanto, deve justiicadamente ser reconhecida como um dos pontos de partida para entendermos a ilosoia do Zhuāngzǐ e sua crítica às diferentes escolas do pensamento chinês da época Zhōu. Ambos os pensamentos afeitos às escolas ditas Confucionista e Moísta na China clássica fundaram-se sobre a escolha de uma premissa básica particular para sustentar a harmonia entre o Ser Humano (rén 人) e a Natureza (zìrán 自然, ou o “Reino Celestial”, tiān 天): seja o comportamento ritual/virtuoso (rényì 仁義) e o inatismo de Mencius (um dos mais próximos seguidores de Confúcio), seja o amor universal (jiān’ài 兼愛) e o utilitarismo (lì利) de Mòzǐ.15 A linguagem, segundo esses pensadores, deveria ser empregada de forma a se sujeitar a essas premissas e, se necessário, deveria ser forçosamente regulada para tal (representada pelo termo chinês, zhèngmíng 正名a chamada “doutrina da retiicação dos nomes”16). Na visão inclusiva e pluralista de Zhuāngzǐ, o próprio ajuste ou tentativas de uma sistematização da linguagem constituiriam agentes provocadores de distúrbios nessa harmonia, uma vez que eles representariam ações humanas em choque contra o luir da “natureza” (o “ser assim”, zíràn 自然, tradução um pouco mais literal do termo chinês associado à natureza). Para saber mais sobre a ilosoia Confucionista, de Mencius e de Mòzǐ,ver Fung (1934, cap. 4 e 5), Chan (1963, cap. 2-6 e 9), Cua (2003, verbetes), Lin (2006, cap. 2-5), Lai (2009, cap. 2, 3 e 4) e Souza (2016, cap. 1.5). 16 Sobre zhèngmíng, expressão fundamental no pensamento linguístico chinês, ver Hansen (1982, p. 319-333), Bao (1990, p. 196-200, p. 205-207), Cua (2003, p. 870-871), Wang (2005, cap. 1) e O’Neill (2016, cap. 10). 15 916 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 Em linhas muito gerais, já no primeiro capítulo (xiāoyáoyóu 逍遙遊, Vagar descontraído e desimpedido) o Zhuāngzǐ inicia a exposição de um de seus objetivos mais fundamentais: a liberdade totalmente livre de amarras (WATSON, 2013, p. ix). É a premissa central taoísta17 da mudança e da completa inconstância do mundo (zàohuà 造化, fazer mudança ou, como um substantivo mais afeito ao pensamento ocidental, Princípio da Mudança) que nos possibilita a liberdade absoluta desde que aceita em sua forma mais radical, ou seja, naquela em que as ações não atuem como constrangimento ou obstrução ao luxo natural de transformação. É por esse ângulo que sugiro pensarmos o notório conceito taoísta de “agir sem ação” (wúwéizhīwéi 無為之為), não como uma mera não ação ou uma atitude completamente passiva, mas, sim, o direcionamento da ação da forma mais não intrusiva possível, sem esforços, atritos ou resistências. Uma fundamental consequência direta da total imanência (no sentido de não permanência) e mudança é o desmantelamento de hierarquias ixas e artiiciais e a aceitação da igualdade entre todas as coisas, como uma propensão natural que tudo afeta e por tudo é afetada. É importante, todavia, não confundir o espírito igualitário do texto com um ímpeto uniformizador, movimento que artiicialmente impõe preconceitos e procura obliterar diferenças, portanto em direção oposta ao que nos sugere o Zhuāngzǐ. A proposta de liberdade radical introduzida no primeiro capítulo dá seguimento à discussão no capítulo seguinte em sua ordenação canônica (qíwùlùn 齊物論, Discursando sobre a igualdade das coisas) sobre a maneira como se insere a linguagem nesse contexto de mudança. Esse capítulo é o que apresenta o maior número de referências explícitas a problemática da linguagem e se tornou um dos mais estudados e analisados do Zhuāngzǐ.18 Em consonância com seu ímpeto iconoclasta, o texto prega a não aceitação de novos dogmas, advertindo-nos, ao 17 Esta premissa é profundamente afeita ao pensamento Budista, que penetrou na China vindo da Índia após o séc. I d.C. e que assim deu início a um processo de sincretismo absolutamente notável com o Taoísmo. 18 Para o um estudo em português sobre o segundo capítulo do Zhuāngzǐ e uma nova tradução, veja-se Souza (2016). Ver também Graham (1969) para um estudo clássico sobre o capítulo. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 917 contrário, do perigo do efeito dogmatizante da linguagem.19 É diante desse cenário que estudiosos se debruçam sobre a questão do ceticismo e sobre o relativismo no texto do Zhuāngzǐ, em particular no capítulo 2.20 Uma das respostas oferecidas por alguns acadêmicos para a falta de constância da linguagem se apoia na proposta de alguma realidade extralinguística como alternativa ao quietismo frequentemente associado ao Taoísmo (particularmente ao Lǎozǐ 21). Essa leitura vemos reletida na citação a seguir: A realidade em última instância vai além da linguagem; a linguagem em última instância não tem palavras e é silenciosa – uma característica expressada na reivindicação taoísta de ser o “ensinamento com nenhuma palavra e o cultivo do ‘jejum linguístico’”. (KOHN, 2006, p. 169) Proponho, todavia, que a luência do Zhuāngzǐ e sua insistente discussão sobre a linguagem afaste a opção quietista e privilegie uma linguagem que seja mais poderosa e abrangente. No capítulo 2 do Zhuāngzǐ, encontramos a famosa passagem que nos diz que a linguagem não é “apenas vento,” que ela tem “algo para nos dizer” e, dessa forma, aceitar uma linguagem “sem palavras” parece não indicar necessariamente que devemos nos calar (ALLINSON, 1989, cap. 1). Adicionalmente, o discurso de Zhuāngzǐ é, como podemos depreender de diversas passagens,22 aquele que oferece sugestões para uma conduta moral ao mesmo tempo que critica o discurso vazio de Confucionistas e Moístas (CUA, 2003, p. 916), o que não seria possível caso fosse estritamente cético ou relativista. Ao partir da liberdade sem amarras como o modelo de vida mais condizente com sua premissa inicial de transformação 19 Advertência semelhante encontramos em Taylor sobre a normatividade do uso linguístico (TAYLOR, 1997, p. 11 e cap. 8) ou em Wittgenstein sobre palavras descontextualizadas (WITTGENSTEIN, 2009, §38, §116). 20 Para discussões sobre o relativismo e o ceticismo, ver, por exemplo, Allinson (1989, cap. 8), Kjellberg; Ivanhoe (1996) e Cook (2003, cap. 5 e p. 165-172). 21 Sobre a visão de linguagem associada ao Lǎozǐ, ver Barros Barreto (2015). 22 Ver, por exemplo, o capítulo 7, “Próprio para Imperadores e Reis” (yīng dì wáng 應帝王) e o capítulo 19, “Dominando a Vida” (dá shēng 達生). 918 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 incessante, a ilosoia do Zhuāngzǐ seria visivelmente autocontraditória se postulasse alguma “realidade” ixa e eterna, “além da linguagem.”23 Essa interpretação parece claramente justiicada pelo debate continuado ao longo do livro entre Zhuāngzǐ, o autor, e seu velho amigo e rival, Huì Shī, sem dúvida uma de suas maiores inluências (ZIPORYN, 2009, p. xv-xvi; WANG, 2014, p. 7-9). Huì Shī foi o pensador mais representativo da chamada Escola dos Nomes (míngjiā 名家), a única “escola” chinesa de pensamento – embora os autores a ela identiicados nunca tenham formado qualquer grupo ou formulado uma doutrina coesa – explicitamente centrada sobre as questões linguísticas.24 Resumidamente, seus autores sugeriram uma série de paradoxos com o intuito de evidenciar as inconsistências da linguagem na relação com as instâncias (ou realizações) de mundo (shí 實), adotando foco e método que nos remete aos soistas da Grécia antiga. Partindo da tese da inconstância dos nomes e da impossibilidade de uma relação biunívoca e estável entre nomes e coisas, lemos nos trechos identiicados a esses autores uma hábil técnica argumentativa (biàn 辯) que forçosamente dirige o leitor a conclusões que se chocam com a realidade observável. A crítica a seus pensadores justamente se apoia na constatação de que o relativismo extremo da Escola dos Nomes é estéril e gera somente falácias Pressupor que Zhuāngzǐ faça referência a essa realidade última seria assumir uma epistemologia mística e esotérica em aparente discordância com o texto, já que em nenhum momento o autor parece airmar deter um conhecimento exclusivo e interdito aos outros. Todavia a questão do misticismo no Zhuāngzǐ permanece sem um consenso e matéria de debate entre os estudiosos (para uma abordagem, veja-se, por exemplo, Cook, 2003, cap. 1). Em minha leitura – em concordância com o pensamento de Taylor (1997) e Wittgenstein (2009) – boa parte dessa discussão emerge da aplicação de um termo ocidental, “misticismo”, com todas as suas implicações e bagagem histórica e cultural, na caracterização de um livro produzido em um contexto histórico e sociocultural muito diverso. 24 Para Chan (1963, p. 232) quase todas as escolas do pensamento chinês tiveram interesse na relação entre nome e atualidade (míng 名 e shí 實), seja por sua relevância moral/ social (Confúcio), impacto “metafísico” (Taoísmo) ou controle político (Legalismo). Todavia, nenhuma estava especialmente voltada para sua coerência interna ou para o debate sobre a natureza dos nomes, como foi o caso da Escola dos Nomes. Para mais detalhes sobre a Escola dos Nomes, ver Chan (1963, cap. 10), Hansen (1992, cap. 7), Cua (2003, p. 491-8) e Lai (2009, p. 135-168). Especiicamente sobre a relação entre Huì Shī e Zhuāngzǐ, ver Ames; Nakajima (2015, p. 7-10). 23 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 919 negativas, uma inevitável conclusão decorrente da arbitrariedade total de todos os nomes (GRAHAM, 1969, p. 141). Chad Hansen (CUA, 2003, p. 912) defende a hipótese de que Zhuāngzǐ compreendia essa posição e a recusava veementemente, o que se deixa transparecer nas acaloradas discussões entre si e seu amigo e rival, Huì Shī.25 Nesse embate, identiicamos as fontes da complexidade da visão de Zhuāngzǐ sobre a linguagem, sustentada em equilíbrio precário, embora necessário: se por um lado ele vê-se obrigado a aceitar a liberdade e a convencionalidade da linguagem, por outro, reconhece os perigos de uma linguagem obstinada em se ixar de forma arbitrária às coisas nomeadas, assim obscurecendo o processo de inindável mudança preconizada pelo Taoísmo. Partindo dessa questão central, embora os textos do Zhuāngzǐ sejam frequentemente reconhecidos como testemunho da reação à disputa entre Confucionistas e Moístas, cabe considerá-los também como um libelo contra o “ceticismo vazio” e o relativismo extremo do biàn da Escola dos Nomes, apesar de terem com estes sutis ainidades. O Zhuāngzǐ, ao mesmo tempo que critica abertamente a argumentação infértil de Huì Shī, emprega a mesma maestria linguística na defesa de suas posições e na denúncia da inocuidade e da posição indefensável de Confucionistas e Moístas. Como nos explica Cua (2003, p. 913), o Zhuāngzǐ, quando nos mostra que os argumentos pragmáticos sempre são relativos a algum tipo de valor implícito, não nos obriga a abandonar o pragmatismo, mas apenas a atentar para o valor e o limite de suas conclusões. Devemos ainda considerar que o Zhuāngzǐ está consciente de que seu conselho (moral) advém de uma perspectiva própria, normalmente identificada com o termo míng 明, traduzido como iluminação, discriminação ou perspectiva das perspectivas (CUA, 2003, p. 916). Entretanto, pelo que até aqui discutimos, é patente que qualquer “conclusão” a que cheguemos precisa ser necessariamente atenuada e nuançada. Kjellberg (1996, p. 127, cap. 6) discute essa diiculdade em conciliar o ceticismo do texto com a reivindicação do conhecimento privilegiado do Zhuāngzǐ sobre a Natureza em suas várias demonstrações de perfeição humana (como no já citado capítulo 19, Dominando a Huì Shī aparece no Zhuāngzǐ nos capítulos 1, 2, 3, 5, 17, 18, 24, 25, 26, 27 e 33, sendo este último a principal fonte de informações nos textos clássicos chineses sobre o pensador. 25 920 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 Vida). Esse autor propõe, então, dois tipos de conhecimento no texto: um conhecimento prático, voltado à destreza e à perícia, e um conhecimento teórico, ou dos fatos; o primeiro é dinâmico e improvisante, oferece saídas e dá acesso ao mundo natural; já o segundo é rígido, sem saída, e limitado em suas próprias regras arbitrárias. Nessa leitura, o ceticismo do Zhuāngzǐ seria, portanto, um ceticismo sobre o conhecimento “teórico.”26 O conhecimento teórico, aquele que produz teses e airmações dogmáticas, estaria assim fadado ao problema do engessamento da linguagem, distorcendo-a para satisfazer os propósitos daquele que argumenta, dividindo arbitrariamente o mundo entre “isso’s” (shì 是) e “aquilo’s” (bǐ 彼) diferentes (produtos de pontos de vista diferentes). Ao aventar a possibilidade de uma via alternativa, aquela do conhecimento prático, o Zhuāngzǐ recusa o relativismo inócuo resultante da simples negação de qualquer forma de conhecimento. A prática sugerida pelo texto é aquela que não parte de alternativas preconcebidas, ou mesmo distingue alternativas diferentes, mas vê cada opção como uma que, a cada momento, se oferece de maneira mais “maleável” e, dessa forma, não escolhe conscientemente, mas “deixa-se levar” (GRAHAM, 1969, p. 144). Diante dos perigos de uma linguagem que impõe classiicações e dá ilusões de aparente estabilidade, o Zhuāngzǐ nos propõe uma linguagem alternativa, ela mesma uma contradição de termos – não há “linguagem alternativa” que não seja linguagem, e, portanto, em última instância, não há alternativa à linguagem – mas cujos vislumbres antevemos em sua perícia estilística: Zhuangzi procura desenvolver um novo estilo de linguagem ilosóica que lhe permita discursar sobre todos os enunciados como iguais [...] Ele conirma a expressão verbal como a arte do possível (YU et al., 2000, p. 97) 26 Fica difícil, na perspectiva de Taylor, Auroux e outros já citados aqui, a aplicação do termo “ceticismo”, com toda sua carga de usos e contextos ocidentais, a um texto inserido na tradição antiga chinesa sem que se caia em uma mera discussão de nomenclatura (“seria o Zhuāngzǐ é ceticista no sentido da sképsis grega?”). O propósito do uso do termo “ceticismo” aqui é fornecer um guia que ajude o leitor a criar aproximações entre estratégias e formas de pensamento tão diferenciadas como as do Zhuāngzǐ e a tradição ocidental de origem grega. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 921 Ao procurar abordar uma linguagem que seguidamente se desvencilha de descrições e mostra-se avessa a categorizações, chegamos ao capítulo 27 – foco do presente artigo – como aquele de particular importância para compreendermos a visão de linguagem do Zhuāngzǐ. Sua escolha deve-se a duas razões principais. Em primeiro lugar, uma vez que o capítulo 27 não faz parte dos “capítulos interiores”, muitos daqueles que analisam o texto não dão a devida atenção ou não o consideram como representante do pensamento “legítimo” de Zhuāngzǐ. Todavia, o texto sempre foi considerado como um todo pela tradição exegética chinesa e, assim, independentemente de questões autorais, não devemos menosprezar sua inluência sobre a tradição chinesa e sua articulação com o restante do livro. Em segundo lugar, seu contraste com os outros capítulos do livro, no que concerne à linguagem, torna-o ainda mais relevante, a ponto de Wang (2014, p. 21) chamá-lo de “principal capítulo que descreve a linguagem do Zhuāngzǐ”. A liberdade suprema de uma linguagem viva e em eterna mutação, não só explicitamente defendida no longo do capítulo 2, mas também presente em todo a pujante matéria linguística do Zhuāngzǐ, parece ser contradita em um impulso classiicatório no capítulo 27, como veremos a seguir. Sugiro, entretanto, que, muito ao contrário de desmentir o restante do livro, o capítulo 27 termine por reforçar e explicitar suas premissas, ressaltando as características da linguagem focada através das lentes do Zhuāngzǐ, em suas capacidades e limites, o que a faz tão poderosa e ao mesmo tempo, tão perigosa. 4 O capítulo 27 e as palavras-cálice Como já observado anteriormente, o capítulo 27 do Zhuāngzǐ, embora não pertença ao conjunto dos sete capítulos internos, é fundamental para a compreensão da visão de linguagem subjacente ao livro. Embora autores como Watson (2013, p. xix) argumentem que os capítulos miscelâneos (vinte e três ao trinta e três) poderiam ter sido escritos até seis ou sete séculos após a vida de Zhuāngzǐ e teriam pouco impacto sobre o cerne de sua ilosoia, essa não é uma posição consensual na discussão acadêmica sobre o texto (COOK, 2003, p. 11). Kohn (2006, p. 8), por exemplo, escreve que, na discussão sobre a cronologia das partes do texto, é perfeitamente razoável que o capítulo 27 pudesse ter sido um prefácio de sua edição mais antiga (com o último capítulo, o 33, servindo de posfácio). Como já foi comentado, independentemente dessas 922 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 questões autorais e textuais, é inegável haver uma relação íntima entre o capítulo 27 e os capítulos internos, em especial entre ele e o capítulo 2, em seu tratamento sobre a linguagem. O título do capítulo 27 é yùyán 寓言, que repete os dois primeiros caracteres do início do texto e já é, por si só, um dos três termos metalinguísticos em destaque. O termo yùyán é hoje dicionarizado como fábula, alegoria, parábola (fable, allegory, parable) (QIU, 2005, p. 221) e já era utilizado em chinês clássico para se referir a um estilo literário marcado por anedotas e parábolas (pequenas histórias), com um intuito muitas vezes satírico e com a presença comum de animais antropomorizados, uso de analogias e referências metafóricas, frequentemente discorrendo sobre situações cotidianas com o objetivo de levar o leitor a algum tipo de relexão ou moral. A diversidade de traduções escolhidas para o título do capítulo dá sinais da complexidade na adaptação da expressão yùyán em línguas ocidentais: “On Metaphors” (Sobre Metáforas) (BALFOUR, 1881) “Language” (Linguagem) (GILES, 1889), “Metaphorical Words” (Palavras metafóricas) (LEGGE, 1891; MAIR, 1994), “Verbes et Mots” (Verbos e Palavras) (WIEGER, 1913), “Words lodged elsewhere” (Palavras acomodadas em outro lugar) (ZIPORYN, 2009) e “Imputed Words” (Palavras imputadas) (WATSON, 2013).27 As traduções clássicas de Giles e Wieger explicitam o objeto principal do capítulo, nomeadamente, a linguagem. As outras estão relacionadas às diferentes interpretações dos tradutores sobre a expressão yùyán, cuja discussão veremos a seguir. 27 A tradução de Balfour, “The Divine Classic of Nanhua, Being the Works of Chuang Tsze, Taoist Philosopher” (1881), é a mais antiga extante do Zhuāngzǐ (COOK, 2003, p. 263), e os livros de Giles, “Chuang Tzu: Mystic, Moralist, and Social Reformer” (1889) e de Legge, “The Writings of Kwang-Tze” (1891), izeram parte do extenso trabalho de tradução dos dois autores do cânone chinês (KNECHTES; CHANG, 2014, v. III, p. 2314-2323). Segundo Cook (2003, p. 286), até aquela data, além das traduções de Balfour, Giles e Legge no séc. XIX, as únicas outras traduções completas para o inglês seriam as de Watson (2013, originalmente escrita em 1968), Mair (1994) e Palmer (1996). A tradução para o francês de Wieger, “Nan-hoa-tchenn-king: l’oeuvre de Tschoang-tzeu” é uma das mais antigas naquele idioma e, apesar de suas limitações, ainda hoje é muito utilizada na França (BILLETER, 1990, p. 170). Para uma discussão crítica das traduções do Zhuāngzǐ, embora já desatualizada, veja-se também Mair (1983, p. 158-161). Para uma seleção mais recente de referências sobre o Zhuāngzǐ, veja-se Cook (2003, p. 291-295). Para uma breve discussão dos principais comentários chineses, veja-se Ziporyn (2009, p. 221-227). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 923 Embora se trate de um capítulo relativamente curto do livro, por uma questão de espaço e escopo, restrinjo-me, no presente artigo, a apresentar somente uma sugestão de tradução comentada de seu início, ou seja, das passagens em que o texto descreve explicitamente o que propõe ser a “divisão” da linguagem em três “tipos” de palavras. Esta tríade aparece já na primeira linha do capítulo 27:28 寓言十九,重言十七,卮言日出,和以天倪。 yùyán shí jiǔ, zhòngyán shí qī, zhīyán rì chū, hé yǐ tiānní. [Na linguagem] as palavras convidadas (yùyán 寓言) [compõem] nove décimos [dela]; as palavras repetidas (chóngyán 重言) [compõem] sete décimos [dela]; as palavras-cálice (zhīyán 卮言) surgem dia [após dia], [tudo] harmonizando na Sutileza Celestial (tiānní 天倪). Na análise da visão de linguagem inferida desse capítulo do Zhuāngzǐ, interessa-nos, em particular, o contraste entre esses três termos metalinguísticos, nomeadamente, yùyán 寓言, chóngyán 重言 e zhīyán 卮言. Considera-se que os termos yù 寓, chóng 重 e zhī 卮 modiicam yán 言, que, por sua vez, é traduzido como língua, linguagem, palavra, dizer, falar, declaração, etc. Assim, trata-se de três “tipos” ou “qualidades” de linguagem (ou de palavras). A utilização obscura na passagem acima de “nove décimos” e “sete décimos” respectivamente para yùyán e chóngyán levou os intérpretes do texto a considerar que eles se referem a percentuais do número de palavras na língua (yùyán comporia 9/10 – shí jiǔ 十九, “dez nove” – do total; chóngyán comporia 7/10 – shí qī 十七, “dez sete” – de 1/10 (o resto) ou poderia haver uma intercessão, 28 Os trechos do capítulo são apresentados em caracteres chineses, seguidos da transcrição em pīnyīn (o padrão atual em uso na China continental) e de minha tradução para o português. Todos os caracteres chineses seguem o uso pré-reforma ortográica na China continental de 1956/1964. A pontuação no texto chinês não existia no texto original e foi colocada posteriormente, seguindo a interpretação mostrada na tradução, com o objetivo de melhorar sua legibilidade. Na tradução para o português, inseri palavras não presentes no chinês entre colchetes e destaquei palavras-chave repetindo-as em pīnyīn e em caracteres chineses. Dessa forma, acredito estar ajudando o leitor não conhecedor do chinês clássico a seguir mais facilmente minhas opções tradutórias. A transcrição em pīnyīn relete a leitura atual dos caracteres e não aquela da época do Zhuāngzǐ. 924 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 com palavras classiicadas tanto como yùyán quanto chóngyán, como propõe Chen (2015, p. 837). Há outras interpretações e autores, como Wu (1988, p. 5), por exemplo, que consideram que os três termos serviriam à totalidade das palavras da língua, indicando suas características comuns e gerais. Independentemente da interpretação escolhida, é inegável que os três termos contribuam conjuntamente para a visão sobre as palavras e as representações da linguagem no Zhuāngzǐ. Entre as três classes de palavras, entretanto, somente as zhīyán se harmonizam na “sutileza celestial” (tiānní 天倪).29 O texto prossegue então com uma exempliicação e explicação sobre o uso do primeiro termo, yùyán: 寓言十九,藉外論之。親父不為其子媒。親父譽之, 不若非其父者也;非吾罪也,人之罪也。與己同則應, 不與己同則反,同於己為是之,異於己為非之。 yùyán shí jiǔ, jiè wài lùn zhī. qīnfù bù wéi qí zǐ méi. qīnfù yù zhī, bù ruò fēi qí fù zhě yě; fēi wú zuì yě, rén zhī zuì yě. yǔ jǐ tóng zé yīng, bù yǔ jǐ tóng zé fǎn, tóng yú jǐ wéi shì zhī, yì yú jǐ wéi fēi zhī. As palavras convidadas (yùyán 寓言) [que compõem] nove décimos [são como] emprestadas de fora [para ins de] exposição (lùn 論). Um pai não age como casamenteiro para seu próprio ilho. [Isso porque] os louvores do pai [para seu ilho] não seriam [tão eicazes quanto] os de um outro; [mais ainda, a reação às palavras usadas] seria por falta (zuì 罪) de outros, e não do pai. [Mesmo assim] com aquilo com o que concordam, [os homens] acatam, e com o que não concordam [eles] rejeitam, dizendo Esse é um termo de difícil tradução. Mair (1994) usa: framework of nature (estrutura da natureza), Ziporyn (2009) traduz como Heavenly Transitions (transição celestial), Watson (2013) emprega Heavenly Equality (igualdade celestial), Wang (2004) a explica como a operação ou o balanceamento celeste. Enquanto tiān天 refere-se claramente ao “Céu” chinês, a abóbada celestial personiicada pela igura do huángtiān 皇天, “imperador celestial”, ní 倪 é um termo mais obscuro, em geral dicionarizado como diminuto, limite, fronteira, início. O comentarista Guō Xiàng escreveu: 天倪者,自然 之分也 tiānní zhě, zìrán zhī fēn yě, “tiānní: a divisão/partição da natureza,” parecendo referir-se às diminutas e fronteiriças divisões que ocorrem no mundo natural quando do surgimento do homem e da linguagem, rachaduras que pouco a pouco individualizam as coisas do mundo, separando-as umas das outras. Esse é o efeito produzido pela linguagem já referido também no capítulo 2. 29 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 925 “isso” (shì 是) para o que for igual (tóng 同) [ao que concordam] e “aquilo” (fēi 非) para o que for diferente (yì 異). No exemplo do texto, yùyán – que traduzi como “palavra convidada” – foi aquela palavra usada pelo casamenteiro para elogiar o candidato a noivo no lugar do pai, que, por ser pai, muito provavelmente teria sua opinião considerada como enviesada quando apresentasse seu próprio ilho. Mais ainda, ao “emprestar” suas palavras ao casamenteiro, o pai transferiria a ele também a responsabilidade (“culpa”, zuì 罪) por elas. Os tradutores e estudiosos do texto empregam uma grande diversidade de termos para traduzir yùyán, como vemos a seguir: Balfour (1881) e Mair (1994): metaphors (metáforas); Watson (2013): imputed words (palavras imputadas); Palmer (1996): supposed words (palavras supostas) e Billeter (1990): fable (fábula). Wang (2004) e Wu (1988) usam dwelling words (palavras que habitam), e Wu (1988, p. 5) escreve que “essas palavras ‘habitam’ na situação, de modo a nos guiar.” Qiu (2005, p. 221) apresenta a lista “fable, allegory, parable” (fábula, alegoria, parábola), explicando que yùyán, no Zhuāngzǐ, referese às palavras “faladas através da boca de personagens históricos ou iccionais, de forma a torná-las mais convincentes.” Kohn (2014), Wang (2014, p. 21) e Li (YU et al., 2000, p. 96) propõem os termos oportunos guest words (palavras convidadas) (Kohn) e lodged words (palavras hospedadas) (Wang e Li) que, em minha leitura, reletem explicitamente a grafo-etimologia do termo yù 寓30 em seu deslocamento e uso em um diferente contexto, como comenta Kohn: “colocando a própria palavra na boca de outras pessoas.” Na prática, esse efeito se dá em geral por meio O caractere yù 寓 (que modiica yán 言) pode ser traduzido como residir, conter, ter residência, coniar ao cuidado de alguém, achar sustento em. Em sua deinição no dicionário Shuōwén (séc. II d.C., a mais citada das referências lexicográicas do chinês antigo), o termo é glosado como 30 寓。寄也。从宀禺聲 yù. jì yě. cóng mián yú shēng. yù; como jì (pedir, coniar, depender, residir na casa de alguém), indicação semântica de mián (teto, casa), indicação fonética de yú. Há, portanto, a alusão de um espaço que não é aquele original, mas onde se habita, provisoriamente, porque o inquilino inspira coniança. 926 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 de iguras de linguagem, como expressões ixas, parábolas, descrições igurativas, conversas imaginárias ou diálogos fantasiosos. Como vimos, no chinês clássico, certamente sob inluência do próprio Zhuāngzǐ, yùyán foi usado para se referir a um estilo literário, normalmente de estórias curtas com uma moral (como aquelas que encontramos ao longo do próprio Zhuāngzǐ). Há assim a alusão a um termo que se refere ao uso “emprestado”, às palavras que são retiradas de um contexto para ser usadas em outro (daí a tradução possível como metáfora). O fato de, no exemplo apresentado, a responsabilidade do pai ceder espaço àquela do casamenteiro (que “usou” as palavra do pai para elogiar o ilho à procura de uma candidata ideal como noiva), nos mostra que as palavras emprestadas angariariam força (pragmática) dessa nova situação de uso. Ainda assim, essa estratégia parece não surtir efeitos relevantes, porque, como continua o texto, ao inal, os interlocutores continuam a dizer “sim” somente para aquilo com que concordam e “não” para aquilo de que discordam. O texto continua então com a explicação do segundo termo da tríade, zhòngyán ou chóngyán 重言: 重言十七,所以已言也,是為耆艾。年先矣, 而無經緯本末以期年耆者,非先也。人而無以先人, 無人道也;人而無人道,是之謂陳人。 zhòng/chóngyán shí qī, suǒ yǐ yǐ yán yě, shì wéi qí’ài. nián xiān yǐ, ér wú jīng wěi běn mò yǐ qī nián qí zhě, shì fēi xiān yě. rén ér wú yǐ xiān rén, wú rén dào yě; rén ér wú rén dào, shì zhī wèi chénrén. As palavras repetidas (chóngyán 重言) [que compõem] sete décimos destinam-se a parar a conversa (yán 言). Isso porque agem como [palavras dos] anciãos. [Se, no entanto, alguém está] à frente dos outros em idade, porém não compreende a complexidade da urdidura e do tecido, da raiz à copa, [tal como seria compatível] com seus anos, [então] não pode ser o primeiro [entre os homens]. Aquele que não é o primeiro [entre os homens] não [segue] o dào (道) do homem, e se não [segue] o dào do homem, é chamado de um “homem obsoleto” (chénrén 陳人). O dígrafo 重言, transliterado em pīnyīn por chóngyán, é dicionarizado hoje como reduplicação. Já o caractere 重 isoladamente tem duas pronúncias-padrão no mandarim moderno: chóng ou zhòng. Como chóng, o caractere é traduzido presentemente como: repetir, Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 927 repetitivo, novamente, implicar, camada, ao passo que na pronúncia zhòng traduz-se por: pesado, tornar-se pesado, sério, grosso, grave, solene, difícil, considerar importante (também para se referir a sensações: color profunda, som grave, etc.). No Zhuāngzǐ, o dígrafo 重言 é lido como chóngyán pela maior parte dos tradutores. Mair (1994), Palmer (1996) e Ziporyn (2009) o traduzem como quotation ou citation (citação); Billeter (1990, p. 162) considera que se trata da “citação de uma autoridade;” Wang (2004, p. 196) o traduz por double-layered words (palavras com duas camadas); Li (YU et al., 2000, p. 96) por repeated words (palavras repetidas); Wu (1988) emprega o poético opalescent words (palavras opalescentes), termo que remete ao jogo de brilhos de um raio que transpassa uma opala: as palavras são “‘duplamente rajadas’, ou seja, dizem algo a im de obedecer a autoridade do que não dizem, sendo ‘opalescentes’ à luz da realidade” (WU, 1988, p. 5). Segundo Kohn (2014), chóngyán são as palavras duplas com múltiplas camadas, com realidades ambíguas, igurativas e imaginativas, correspondendo aproximadamente a uma “linguagem metafórica.” Para Kohn, seu peso (lendo 重 como zhòng) “provavelmente transmite a autoridade advinda da experiência do orador” (KOHN, 2014, p. 171), e, dessa forma, também inclui aforismos e provérbios poéticos. De uma forma similar, Watson (2013), também aceita as duas leituras, chóng e zhòng, respectivamente como repeated words (palavras repetidas) e weighty words (palavras de peso). Finalmente Qiu (2005, p. 222) e Wang (2014, p. 22) são exceções ao priorizar a leitura de 重言 como zhòngyán, respectivamente traduzido como weighty words (palavras de peso) e grave words (palavras graves). Todavia esses autores também aludem à alternativa da leitura como chóngyán, “palavras dos sábios que são repetidamente citadas.” Vemos, portanto, que, com as notáveis exceções de Qiu e Wang, a maioria dos tradutores do Zhuāngzǐ opta por ler 重言 primariamente como chóngyán, enfatizando seu aspecto duplo. De fato, zhòngyán e chóngyán são geralmente tratados pelos sinólogos como um caso de duas palavras isoladas, com diferentes etimologias, cuja homonímia estaria restrita à sua forma gráica. Entendo que, em concordância com Kohn, Watson, Qiu e Wang, as duas alusões acabam sendo relevantes 928 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 para os efeitos desejados no texto e, na verdade, são complementares, coalescendo no dígrafo comum, 重言.31 O texto outorga às chóngyán o poder de “parar a conversa”, ou seja, levar ao im de uma discussão, o que claramente ressalta a autoridade dessas palavras, frequentemente empregadas como citações retiradas de texto canônicos antigos. Todavia, o Zhuāngzǐ nos adverte: o mero critério de antiguidade no uso das palavras dos antigos clássicos é inútil (e mesmo falacioso), caso essas palavras não estejam investidas de uma sabedoria e da compreensão do dào 道. Há, portanto, a crítica implícita contra o abuso de citações e a coniança cega em frases retiradas de textos antigos sem o acompanhamento de alguma leitura crítica ou a garantia de que elas teriam sido produto de um movimento em consonância com o dào 道. Essa posição está em perfeita harmonia com o cerne da crítica do Zhuāngzǐ contra os argumentos de Confucionistas e Moístas, correntes dominantes da tradição chinesa à época. O último termo da tríade, aquele em geral considerado como o mais importante, zhīyán 卮言,32 e também uma expressão que foi pela primeira vez cunhada no Zhuāngzǐ, tem uma breve explicação na continuação do texto: 卮言日出,和以天倪,因以曼衍,所以窮年。 不言則齊,齊與言不齊,言與齊不齊也,故曰無言! 言無言,終身言,未嘗言;終身不言,未嘗不言。 zhīyán rì chū, hé yǐ tiānní, yīn yǐ màn yǎn, suǒ yǐ qióng nián. bù yán zé qí, qí yǔ yán bù qí, yán yǔ qí bù qí yě, gù yuē wú yán! yán wú yán, zhōng shēn yán, wèi cháng yán; zhōng shēn bù yán, wèi cháng bù yán. Com essas palavras-cálice (zhīyán 卮言) que surgem dia [após dia],33 tudo se harmoniza na Sutileza Celestial (tiānní 天倪), então 31 A guisa de simplicidade, a despeito dessa leitura explicitamente ambígua, doravante, ao me referir ao termo 重言, irei usar a transliteração preferida pela maioria dos sinólogos, chóngyán. 32 A prioridade de zhīyán na tríade metalinguística do capítulo 27 – ver, por exemplo, Kohn (2015, p. 66) – não angaria, todavia, a unanimidade dos estudiosos do texto. Para uma visão alternativa, veja-se Cook (2003, p. 73). 33 Ziporyn (2009, p. 114) faz uma interpretação completamente diferente desse início: “Estas palavras-cálice-transbordantes constantemente produzem [signiicados] […].” Ao evitar o uso da palavra signiicado, minha tradução também segue as de Mair (1994), Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 929 verte suas elaborações (màn 曼)34 e, assim, passam-se os anos. [Enquanto] nada for dito, permanece a uniformidade (qí 齊),35 mas a uniformidade e o que se diz (yán 言) [sobre ela], já não mais perfazem a uniformidade; o que eu digo e a uniformidade já não mais perfazem a uniforme; por isso, digo: não-palavras (wú yán 無言)! Com palavras não-palavras (yán wú yán 言無言), falarás até o im da vida, e nunca terás dito [nada]. [Ou] até o im da vida não falarás, e nunca terá deixado de dizer [algo]. Zhīyán 卮言, “inventado” por Zhuāngzǐ, não é encontrado em mais nenhum outro texto pré-Qín que não comente o próprio Zhuāngzǐ (CHINESE TEXT PROJECT). O caractere que modiica “palavra” (yán 言), zhī 卮, é em geral hoje traduzido por cálice (goblet), frequentemente no dissílabo zhījiŭ 卮酒. A força da materialidade e concretude da referência leva a maior parte dos autores a usar essa tradução para o termo zhī, na forma composta palavra-cálice. A exceção é dada por Mair (1994), que o traduz como impromptu words (palavras improvisadas), palavras usadas sem preparação prévia, repentinas e de improviso. Essas características destacadas por Mair, entretanto, também são aceitas, entretanto, por todos os comentaristas. Por exemplo, Wang (2014) escreve que as palavras-cálice são aquelas do “não-coração-mente,36 [são] não- Palmer (1996), Watson (2013) e Chen (2015) e toda uma linha de pensamento que evita associar um termo metalinguístico tão central da tradição ocidental aos textos chineses (veja-se, por exemplo, essa discussão em Hansen (1985, 1992) ou Ames; Hall (1998). 34 Wang (2004, p. 197) traduz esse trecho como “elas se acomodam às mudanças sem im.” 35 qí 齊, um dos termos centrais no Zhuāngzǐ, é hoje dicionarizado como regular, balanceado, em ordem, organizado, arrumado, concordar, igual, igualdade, comparável, similar(idade), com limite ixo. Ao traduzi-lo por uniformidade, procuro ressaltar seu contraste (aqui) com igualdade. Como vimos, o Zhuāngzǐ promove a defesa da igualdade, mesmo quando a uniformidade é quebrada (trocada pelo pluralismo) com a instituição da linguagem. Veja-se uma discussão sobre qí em Wang (2014, p. 190-191). 36 O termo chinês xīn心 é aqui traduzido como “coração-mente,” em uma interpretação quase que trivial: pictograicamente o caractere representa o coração e, como na tradição chinesa o coração é o centro dos sentimentos e pensamentos, aproximamos funcionalmente o termo para o conceito ocidental de “mente.” É importante, todavia, destacar que a dicotomia ocidental emoção/razão acaba se dissolvendo e conluindo neste “único” órgão humano, xīn 心. 930 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 palavras, então, como a linguagem de crianças mais jovens, que não devem ser julgadas ou avaliadas” (WANG, 2014, p. 24). A quase totalidade dos intérpretes do texto apoia-se na leitura que se consagrou na tradição exegética chinesa e que exempliico nas palavras de Watson (2013, p. 234): “palavras cálice”, [são] palavras que são como uma taça que se inclina quando cheia e endireita-se naturalmente quando vazia, isto é, que se adapta e segue junto com a natureza lutuante do mundo e, assim, alcança um estado de harmonia.37 Trata-se, portanto, de um cálice bojudo (como uma taça para conhaque) sem pé, cujo formato em “U” o mantém em permanente estado de precário equilíbrio. Quando preenchido com algum líquido, esse equilíbrio é afetado e provoca um aumento da instabilidade, até o ponto em que o cálice inalmente tomba para o lado, deixando escorrer seu conteúdo e posteriormente voltando à sua posição inicial, novamente vazio. O caráter luido de zhīyán levou Palmer (1996) a usar a tradução de lowing words (palavras luidas) que remete à sua falta de estabilidade e à fácil perda de equilíbrio do cálice.38 37 Para algumas referências aos comentaristas chineses no original em chinês, veja-se Chen (2015, p. 837). 38 Ao escorrer, seu “conteúdo” é descartado, ação que se relete a uma importante passagem do capítulo 26 do Zhuāngzǐ: 荃者所以在魚,得魚而忘荃;蹄者所以在兔,得兔而忘蹄; 言者所以在意,得意而忘言。吾安得忘言之人而與之言哉? quán zhě suǒ yǐ zài yú, dé yú ér wàng quán; tí zhě suǒ yǐ zài tù, dé tù ér wàng tí; yán zhě suǒ yǐ zài yì, dé yì ér wàng yán. wú ān dé wàng yán zhī rén ér yǔ zhī yán zāi? Armadilhas para peixes [são] usadas para peixes; [uma vez] obtido um peixe, esquecem-se as armadilhas. Laços para coelhos [são] usados para coelhos; [uma vez] obtido o coelho, esquecem-se os laços. Palavras [são] usadas para yì 意; uma vez obtido yì 意, esquecem-se as palavras. Eu onde [poderia] obter um homem que esqueceu (wàng 忘) as palavras, e [com ele] trocar palavras? Nessa passagem, podemos fazer um paralelo com as palavras-cálice do capítulo 27, substituindo-se o “líquido” do cálice-sem-pé por yì 意. Uma vez que o líquido escorreu do cálice, esquecemos a forma como havíamos usado aquela instância de zhīyán, escapa-nos aquele momento de naturalidade e improviso. Nessa passagem do Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 931 Assim que introduzimos a linguagem – e aqui zhīyán é metonímia para o uso mais irrestrito e geral para linguagem, tal como apreendida pelo Zhuāngzǐ – a uniformidade primordial (o “caos”, o “todo difuso”, hùndùn 混沌) começa a mostrar suas distinções e separações: uma vez que há linguagem, não é possível que haja agora somente unidade. Esse resultado é ao mesmo tempo desejado – ainal, é consequência natural do surgimento do ser humano – e temido, por ser o momento quando surgem as distinções, as hierarquias, as doutrinas e o “conhecimento teórico” (advindo do discurso, lùn 論); em outras palavras, o risco de que a falta de uniformidade seja confundida com a desigualdade. Por isso o partidarismo do Zhuāngzǐ pelas “palavras não-palavras”, aquelas que quebram a uniformidade sem que sejam impostas categorias e hierarquias. As “palavras não-palavras” seriam idealmente representadas por zhīyán. Qiu (2005, p. 222) escreve que zhīyán são aquelas palavras que “se adaptam à natureza mutante do mundo e, dessa forma, estão em harmonia com o Dao.” Elas seriam, nessa leitura, a ponte que uniria os capítulos 1 e 2 do Zhuāngzǐ, o relexo da natureza (zìrán 自然) na linguagem – aqui compreendida como toda e qualquer atividade humana, como cultura capítulo 26, as palavras servem para capturar ou obter (dé 得) yì e, uma vez obtido este yì, descartamos seu receptáculo. Propositalmente optei por manter o termo original yì na tradução acima, uma vez que ele é usualmente traduzido como signiicado ou intenção, dois termos que carregam uma complexa gama de alusões e referências na tradição ocidental, que poderiam ser questionados no âmbito de um texto da época dos Zhōu orientais (ver notas 24 e 27). A passagem do capítulo 26 torna ainda mais complexa a questão ao terminar com uma situação paradoxal e claramente irônica: onde encontraríamos alguém que se esqueceu das palavras para que pudéssemos trocar algumas palavras com ele/a? Essa frase tem duas interpretações cabíveis no âmbito do Zhuāngzǐ. A primeira parece mais óbvia: ao contrário de armadilhas para peixes e coelhos, as palavras não são descartáveis, elas permanecem relevantes, mesmo após serem “entendidas.” Essa interpretação é compatível com a importância das palavras-cálice no capítulo 27, pois, caso fossem meramente descartadas, não tomariam um papel central na manutenção da harmonia na “Sutileza Celestial.” A segunda interpretação é mais sutil: o Zhuāngzǐ prega que o conhecimento último (a “iluminação”, míng 明) só seria atingido por meio do esquecimento (wàng 忘) das palavras, ou seja, do não apego a seus usos anteriores. São esses usos (os “yì 意” anteriores) que devem ser descartados e esquecidos. Dessa forma, ao procurarmos os sábios (“homens verdadeiros”, zhēnrén 真人) para aprendermos sobre dào 道 com eles, estamos procurando aqueles que conseguiram “esquecer as palavras.” (Sobre 忘 wàng, esquecer, veja-se Cheng (2005, p. 161-168)). 932 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 no sentido mais amplo. Zhīyán ofereceria assim a possibilidade do agir sem ação, de seguir dào 道 em consonância com a harmonia natural e os ritmos da inconstância da natureza. A importância de zhīyán em contraste com yùyán e chóngyán está clara na leitura de Wang (2004) que vê nestas duas últimas os aspectos concretos da linguagem e na primeira “a postura geral do Zhuāngzǐ em relação ao seu uso da linguagem” e “o aspecto mais ilosóico da teoria do linguagem e da autoexpressão [no Zhuāngzǐ]” (WANG, 2004, p. 196). No último trecho que comentaremos no presente artigo, o texto prossegue oferecendo uma explicação adicional sobre zhīyán e assim ressalta sua importância: 有自也而可,有自也而不可;有自也而然,有自也而 不然。惡乎然?然於然。惡乎不然?不然於不然。 惡乎可?可於可。惡乎不可?不可於不可。 物固有所然,物固有所可,無物不然,無物不可。 非卮言日出,和以天倪,孰得其久!萬物皆種也, 以不同形相禪,始卒若環,莫得其倫,是謂天均。 天均者,天倪也。 yǒu zì yě ér kě, yǒu zì yě ér bù kě; yǒu zì yě ér rán, yǒu zì yě ér bù rán. è hū rán? rán yú rán. è hū bù rán? bù rán yú bù rán. è hū kě? kě yú kě. è hū bù kě? bù kě yú bù kě. wù gù yǒu suǒ rán, wù gù yǒu suǒ kě, wú wù bù rán, wú wù bù kě. fēi zhīyán rì chū, hé yǐ tiān ní, shú dé qí jiǔ! wànwù jiē zhǒng yě, yǐ bù tóng xíng xiāng chán, shǐ zú ruò huán, mò dé qí lún, shì wèi tiānjūn. tiānjūn zhě, tiānní yě. Há isso [que torna as coisas] aceitáveis (kě 可); há isso [que torna as coisas] não aceitáveis (bù kě 不可); há isso [que faz as coisas] assim (rán 然); há isso [que faz as coisas] não assim (bù rán 不然). O que as faz assim? [Considerá-las] assim as torna assim. O que as faz não assim? [Considerá-las] não assim as torna não assim. O que as torna aceitáveis? [Considerá-las] aceitáveis as torna aceitáveis. O que as torna não aceitáveis? [Considerá-las] não aceitáveis as torna não aceitáveis. As coisas (wù 物) certamente têm o que é assim; as coisas certamente têm o que é aceitável. Não há o que não seja assim; o que não seja aceitável. Sem as palavrascálice (zhīyán 卮言), surgindo dia [após dia] para tudo harmonizar na Sutileza Celestial (tiānní 天倪), quem [sobreviveria] por longo tempo! As dez mil coisas (wànwù 萬物) provêm de sementes, e suas diferentes formas dão lugar uma a outra. Começar e terminar Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 933 são como um anel, e não se pode obter o arranjo correto [das coisas] (lún 倫). Isso se chama de Igualdade Celestial (tiānjūn 天均). 39 Igualdade Celestial, a Sutileza Celestial. Esse trecho reforça o aspecto iconoclasta e transgressor do Zhuāngzǐ, de rompimento das barreiras e das discriminações. Com sua tradução é inevitável percebermos o viés fortemente relativista de suas palavras (“as coisas são como as chamamos”, “não há o que não seja aceitável”). Interessa-nos aqui a posição central das palavras-cálice: não somente como fonte das diferenças (portanto, do “relativismo”), mas também como elemento responsável por seu equilíbrio e harmonia, na medida em que impede que essas diferenças coalesçam como hierarquias e desigualdades. A passagem termina com um trecho que, a despeito de seu pendor nitidamente místico, pode também ser lida de uma maneira mais direta: em um mundo em eterna mutação, em que as palavras estão constantemente se renovando, é impossível reconhecer início e im, e seria utópico uma compreensão completa de todas as relações. Reconhecer essas limitações é um dos objetivos do Zhuāngzǐ, a aceitação do princípio de igualdade na ausência de uniformidade ou constância. Para Hoffman o modo de falar do Zhuāngzǐ, que é tão elusivo e difícil – particularmente quando o texto discorre sobre a própria linguagem – é como querer falar e ao mesmo tempo querer esquecer as palavras [...] uma maneira de falar que não é mais útil e já não mais pode ser usada como um argumento em debates, como um instrumento de discernimento [... mas] que, ao mesmo tempo insiste na importância e na eicácia de suas ideias. Esse modo de falar é falar em ‘palavras cálice’ [...] saídas do céu, saídas da água. (AMES; NAKAJIMA, 2015, p. 43) 39 A “Igualdade Celestial” é traduzida por muitos autores como “Roda Celestial do Oleiro.” Ziporyn (2009, p. 14) explica como a imagem da roda do oleiro é uma metáfora comum na tradição chinesa para uma abóboda celestial em rotação, equalizando as coisas à medida que, devido à sua rotação, o barro se distribui homogeneamente sobre sua superfície. Ao mesmo tempo, o Zhuāngzǐ também emprega a ideia da roda em movimento, chamando a atenção para a mutação constante das perspectivas (veja-se Zhuāngzǐ, cap. 2). 934 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 Na tríade metalinguística que nos sugere o capítulo 27, os trechos do Zhuāngzǐ aqui traduzidos resumem de maneira brilhante as características da linguagem zhuangziana: a liberdade e precariedade como as palavras são convidadas a ser utilizadas em diversos contextos (palavras convidadas, yùyán 寓言); o peso da sua autoridade quando, inúmeras vezes citadas e repetidas, sua liberdade é ameaçada quando se veem engessadas nos textos dos antigos sábios (palavras repetidas, chóngyán 重言); e, inalmente, a superação dessa dicotomia liberdade/ prisão no reconhecimento de sua renovação suprema como geradoras incansáveis de atos linguísticos perfeitamente inefáveis, improvisados e fugazes (palavras-cálice, zhīyán 卮言). 5 Conclusões Embora supericialmente não aparente ser um texto que trate diretamente da linguagem, o Zhuāngzǐ é uma peça literária que emprega magistralmente a própria linguagem na exploração de seus limites e potenciais, sendo considerado por muitos um dos textos mais ricos linguisticamente no cânone clássico chinês. Kohn (2014, p. 170) escreve que as palavras do Zhuāngzǐ são extravagantes, cheias de expressões irregulares e paradoxais, irresponsáveis e ininteligíveis. Alguns termos exóticos (concentrados nos capítulos 2 e 33) ilustram sua metalinguagem extremamente imaginativa: diàoguǐ 弔詭, [palavras que levam à] enganação suprema (cap. 2); wàngyán 妄言, palavras amalucadas (cap. 2); mènglàng 孟浪, [palavras] impetuosas e impulsivas (cap. 2); kuángyán 狂言, palavras selvagens (cap. 22); miùyōuzhīshuō 謬悠之說, termos estranhos e extravagantes (cap. 33); huāngtángzhīyán 荒唐之言, palavras impetuosas e bombásticas (cap. 33); e wúduānyázhīcí 無端崖之辭, frases sem restrições ou fronteiras (cap. 33). Os termos empregados nos levam a pensar em um uso linguístico improvisado, sem conhecimento de causa, imediato, inconsequente, perigoso (KOHN, 2014, p. 171); são as “loucas palavras” (crazy words) do Zhuāngzǐ e sua “forma de usar a linguagem ao mesmo tempo que demonstra sua compulsão em demoli-la” (WANG, 2014, p. 25). Impossível não nos impressionarmos diante da ainidade com as palavras de Wittgenstein: “É preciso não esquecer que o jogo da linguagem é dizer o imprevisível – isto é: não se baseia em fundamentos, não é razoável (ou irrazoável), está aí com a nossa vida” (WITTGENSTEIN, 1998, Da Certeza, §559). Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 935 Nessa defesa de uma linguagem pragmática não fundada sobre uma base racional, mas voltada para a primazia do uso linguístico, proponho aqui restituir ao capítulo 27 do Zhuāngzǐ a ocupação de um lugar de maior proeminência na HIL chinesa do que lhe é comumente outorgado. O que no capítulo 2 surge como a exaltação da força de uma linguagem livre e criativa está explorado de uma forma mais sistemática – um termo que certamente o(s) autor(es) do Zhuāngzǐ repudiaria(m)! – e explícita no início do capítulo 27. É quase inevitável reconhecer que, na tríade metalinguística desse capítulo, zhīyán assuma um papel de destaque. É o único termo que foi cunhado pelo Zhuāngzǐ e aquele cujo uso posterior tornou-se sempre intimamente ligado a esse momento inaugural. Alguns autores como Li (YU et al., 2000) chegam mesmo a considerar que os outros dois termos seriam apenas subcategorias de zhīyán, meras ênfases em seu leque de referências. Entretanto, como já vimos neste artigo, defendo que os três termos tenham contribuições complementares e fundamentais à linguagem zhuangziana. Sugiro aqui que o início do capítulo 27, traduzido e comentado para este artigo, indique uma hierarquização precária, um movimento que espelhe o debate na ilosoia chinesa de sua época: a quase totalidade (9/10) da linguagem que usamos é formada por palavras que lemos ou ouvimos, retiramos de algum contexto para utilizar em outro, são as yùyán 寓言. Nessa etapa, adverte-nos o Zhuāngzǐ, há um esforço retórico e uma tentativa de se estabilizar a relação palavra/coisa que, entretanto, está fadado ao fracasso: aqueles que, desde antes, aceitam e concordam com o que dizemos, respondem positivamente (shì 是), já os que nunca aceitaram continuam em sua recusa (fēi 非). Diante do fracasso das yùyán, autores, como Confúcio, Mòzǐ e outros, apelaram à autoridade dos clássicos canônicos, às palavras do reis-sábios, às citações das palavras de peso, chóngyán 重言, estas, sim, capazes de levar uma discussão a seu cabo. Entretanto, avalia o Zhuāngzǐ, essa autoridade por si só não é garantia de palavras em conformidade com dào 道, e ,frequentemente, citações são feitas sem rigor ou critério, convertendo-se em meras repetições que preenchem o discurso, mas não dizem nada. Correm o risco de tornar-se – referindo-se ao capítulo 2 – apenas o “sopro do vento” (chuī 吹). Porém – como lemos neste trecho do próprio capítulo 2: 夫言非吹 也 fū yán fēi chuī yě, “palavras não são o sopro do vento” – o Zhuāngzǐ recusa uma visão tão negativa sobre a linguagem. O que se defende aqui 936 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 é que a diferença entre a linguagem e o sopro do vento encontra-se na capacidade perene da linguagem de mudar e de se renovar, esvaziar-se, sem que se torne vácua ou estéril. E essa é a capacidade representada por zhīyán 卮言, locus da contradição da pseudo-vacuidade que é a linguagem humana. Neste momento, reforço o que foi proposto no início deste artigo, chamando novamente a atenção para o notável paralelo do Zhuāngzǐ com o pensamento de Wittgenstein, Harris e Taylor: o elogio ao poder da linguagem, em sua propensão a usos inesperados, não calculados, porém sempre exigindo vigilância contra o espectro da armadilha da reiicação. Argumento que zhīyán represente uma espécie de contraparte zhuangziana à linguagem ordinária e comum de Wittgenstein, aquela que se renova a cada uso, que recusa o cálculo, que se sustenta sobre as bases frágeis e incertas do momento. Acredito que não só esse paralelo deva ser mais bem explorado na sinologia e na HIL, como também deva ser restituída a posição fundamental do Zhuāngzǐ não somente como um autor/livro iconoclasta e arguto crítico das linhas ortodoxas de pensamento na China Zhōu, mas também como fonte de uma singular interpretação sobre a linguagem. Ainda segundo o Zhuāngzǐ, a linguagem e o humano impõe à Natureza o inevitável esfacelar da unidade primordial. Ao romper com a unidade, também se rompe a uniformidade, porém, na pluralidade perspectivista do Zhuāngz ǐ (ZIPORYN, 2009b), o perigo está representado pelo risco da criação de categorias estanques, divisões engessadas, hierarquias congeladas. Trazendo novamente o auxílio das palavras de Wittgenstein, podemos conceber que seja um risco similar àquele representado pelo uso das palavras “de férias”, ou seja, fora de seus contextos de uso (WITTGENSTEIN, 2009, §38). A diiculdade de lidar com uma linguagem que incite a pluralidade e ao mesmo tempo tenda à classiicação e à quebra da igualdade é o que levaria o próprio Zhuāngzǐ a se refugiar em suas “palavras sem palavras” (言無言 yán wú yán). Todavia, a solução proposta no texto, como sugiro aqui, encontra-se no bojo da própria linguagem, representada pelas zhīyán 卮言, que afastam o quietismo e promovem a criatividade máxima do ato linguístico. Seria um equívoco, portanto, interpretar a hierarquização tripartite do capítulo 27 como proposta de uma sistematização estanque e ontologizante da linguagem. Ao outorgar às zhīyán a posição mais alta nessa hierarquia, o texto joga por terra qualquer tentativa de manter a Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 937 própria hierarquia: o cálice, cheio, inclina-se e deixa, assim, escapar o que havia dentro dele... No último capítulo do Zhuāngzǐ (capítulo 33, tiān xià 天下, Sob o Céu), a tríade metalinguística introduzida no capítulo 27 é novamente retomada. Segundo o texto, em certa ocasião, Zhuāng Zhōu ouve falar de um dào 道 que promove uma igualdade que é vazia, ininita, nunca constante, e assim se maravilha com ele.40 O texto descreve então a reação de Zhuāng Zhōu: 莊周聞其風而悅之。以謬悠之 , 荒 唐 之 言 , 無端崖之辭,時恣縱而不儻,不以觭見之也。 以天下為沈濁,不可與莊語;以卮言為曼衍, 以重言為真,以寓言為廣。 Zhuāngzhōu wén qí fēng ér yuè zhī. yǐ miù yōu zhī shuō, huāng táng zhī yán, wú duān yá zhī cí, shí zī zòng ér bù tǎng, bù yǐ yuàn jiàn zhī yě. yǐ tiānxià wéi shěn zhuó, bù kě yǔ zhuāng yǔ; yǐ zhīyán wéi màn yǎn, yǐ chóngyán wéi zhēn, yǐ yùyán wéi guǎng. Zhuāng Zhōu ouviu [as] palavras ao vento (fēng 風) e encantouse. [Ele as] expôs em termos estranhos e extravagantes (miù yōu zhī shuō 謬悠之 ), em linguagem impetuosa e bombástica (huāng táng 荒唐), em frases sem restrições e sem fronteiras, abandonando-se aos tempos despreocupados, e não usando um olhar excludente. [Considerou] o sob-o-céu (tiānxià 天下) afogado em turvação (shěn zhuó 沈濁), impossível [de abordar] com uma linguagem sóbria (zhuāng yǔ 莊語). [Então ele] usou palavras-cálice (zhīyán 卮言) para verter suas elaborações (mànyǎn 衍曼), palavras repetidas (chóngyán 重言) para dar autenticidade (zhēn 真)41 e palavras convidadas (yùyán 寓言) para conferir grande amplitude (guǎng 廣). 40 Podemos especular que este trecho oferece uma representação mítica do momento em que próprio Zhuāngzǐ lê o Lǎozǐ. 41 Diversos autores traduzem zhēn真 como verdade. Há uma feroz disputa indeinida sobre a validade de um conceito de verdade no pensamento chinês clássico e seus detalhes ultrapassam em muito o âmbito e o tema do presente artigo. Kohn (2014, p. 170) escreveu: “Não há um conceito ixo – ou mesmo uma única palavra – para a ‘verdade’ palpável e permanente no sentido ocidental, apenas vários termos e perspectivas em constante mudança.” Para a posição de que “não há conceito de verdade na ilosoia chinesa”, veja-se Hansen (1985, 1992) ou Owen (1992); para uma crítica, veja-se Lenk (1993, cap. 4). 938 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 905-943, 2018 É notável que, ao se referir ao tipo de linguagem que falhe na vã tentativa de descrever o mundo em toda a sua mudança e complexidade – a chamada “linguagem sóbria” – o texto use o termo zhuāng 莊, o mesmo que dá nome ao seu autor, Zhuāngzǐ 莊子, “mestre Zhuāng”! Há uma ironia marcante que, mais uma vez, põe em evidência a contradição inerente da linguagem zhuangziana, por um lado iluminada em consonância com dào 道, e, por outro, resistente às amarras, sem se deixar domesticar. Como vimos nas passagens aqui analisadas, e, em particular, no capítulo 27, a linguagem carrega seu poder imenso lado a lado com um terrível perigo. Porém, em vez de procurar colocá-la em uma camisa de força, o Zhuāngzǐ, sem recuar para o conforto da linguagem sóbria, zhuāng yǔ, propõe abraçar sua completa liberdade, jorrando as mais amplas e autênticas elaborações por meio de suas zhīyán. Agradecimentos O presente trabalho é fruto de pesquisa de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense – UFF, realizada com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (152017/2016-0). Agradeço a inestimável ajuda da minha supervisora na UFF, Profa. Dra. Vanise Gomes de Medeiros. Referências ALLETON, Viviane. 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Argumenta-se que o que aparentemente se conigura numa construção com Wh in situ é na verdade uma construção com movimento curto do Wh para o Spec-FocP na projeção focal interna da sentença matriz (assumindo a ideia de BELLETTI, 2004), e que, em português, o traço-Wh de sintagmas-Wh é valorado sincreticamente com o traço de foco em projeções focais, como propõe Kato (2004). Essa proposta ainda prevê que sentenças ininitivas são defectivas também quanto à projeção de uma periferia interna, fato que explica certa assimetria veriicada nos dados. Palavras-chave: sujeitos-Wh; ininitivas; traços de foco. Abstract: This paper concerns the derivation of non-inite sentences that complement verbs of the type of ‘see’ and ‘hear’ and contain a Whsubject. Analyzed data evidence that sentences that carry a Wh-phrase with a stressed Wh-subject are convergent, contrary to sentences that do not. We argue that the apparent Wh in situ construction is in fact a sentence where some instance of Wh-movement takes place. The idea is eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.945-979 946 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 that the Wh-phrase is moved to the Spec-FocP in the low IP area (in the terms of BELLETTI, 2004) and that in Portuguese the Wh feature of Whphrases is checked with a Focus feature in focus projections, according to Kato (2004). This proposal still states that sentences of an ininitival nature are defective also in terms of projecting an internal periphery, what seems to explain certain asymmetry facts observed in data. Keywords: Wh-subjects; non-inite clauses; focus features. Recebido em 19 de outubro de 2017 Aceito em 16 de fevereiro de 2018 1 Introdução A discussão sobre a natureza das operações que envolvem a derivação de sentenças com sujeitos-Wh é vasta. A noção geral é que, em contraste com as interrogativas com Wh objeto, interrogativas de sujeito são claramente ambíguas quanto ao movimento do constituinteWh em sintaxe aberta. A ordem linear de dados como (1) pode facilmente viabilizar a análise de uma derivação com ou sem movimento de Spec-T para Spec-C. (1) Quem espirrou? → [CP Quem [TP quem espirrou]] / [CP [TP Quem espirrou]] A possibilidade de interpretação da derivação sem movimento nesses casos icou conhecida como a Hipótese do Movimento Vácuo (cf. GEORGE, 1980; CHOMSKY, 1986), segundo a qual um sujeito-Wh não se move localmente para Spec-CP. A análise proposta para o inglês baseia-se em evidências empíricas como as seguintes: 1) O movimento de Whs-complemento é claramente percebido na sentença; 2) Construções com interrogativas de wh-não-sujeito apresentam inversão do auxiliar, fato que não é observado em interrogativas com Wh-sujeito. É isso que se pode ver nos dados em (2) e (3) a seguir: Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 947 (2) [CP Whok havei [TP they ti seen tk]]? (3) [CP [TP Who painted the room]]? Se a discussão gira em torno de interrogativa raiz ou mesmo de interrogativas encaixadas de natureza inita, não é impossível assumir para o português uma hipótese como a do movimento vácuo de George, aplicável aos dados em (4): (4) a. [CP [TP Quem chorou]]? b. O João quer saber [CP [TP quem chorou]]. Talvez, se pudesse argumentar, de início, seguindo Chomsky (1995), que – em essencial – traços são movidos em uma operação de checagem. O pied-piping de toda uma categoria só ocorre nos casos em que o movimento é essencial para convergência; caso contrário, questões de economia o bloqueiam. Entretanto, se postos em discussão, os dados em (5) e (6) com Wh-sujeito em sentenças ininitivas que complementam verbos como ver e ouvir parecem trazer alguma diiculdade a um tratamento do fenômeno em termos de movimento de traços. Sejam os dados: (5) a. *O João viu quem espirrar. b. O João viu QUEM↑↓ espirrar?1 c. Quemi o João viu ti espirrar? (6) a. *A Maria ouviu quem chorar. b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar? c. Quemi a Maria ouviu ti chorar? Os símbolos ↑↓ indicam a entonação das sentenças: ascendente no caso de uma pergunta eco; descendente, no caso de uma interrogativa comum. Assim, está-se assumindo aqui a dupla possibilidade de interpretação de sentenças como 5 e 6b, a saber, a possibilidade de interpretá-las como pergunta eco ou como uma requisição original por informação (pergunta comum). 1 948 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Sentenças como as que aparecem em (c) mostram claramente o deslocamento do elemento-Wh da posição de sujeito2 da subordinada para a sentença matriz. Além disso, com o Wh in situ, só as sentenças em que esse elemento recebe uma entonação focal (ascendente ou descendente) são aceitáveis.3,4 O que os dados parecem mostrar é uma interação entre as questões de valoração do traço-Wh e das propriedades dos complementos do tipo de verbo da matriz; é preciso, portanto, que se avaliem questões relacionadas a um e outro fenômeno, se há a intenção de explicar o paradigma em (5) e (6). Um dos pontos básicos na análise de dados com verbos de percepção tem sido o de determinar a estrutura de construções ininitivas que eventualmente os complementam, constituindo o que se convencionou chamar “complementos de percepção direta”, como as sentenças em (5) e (6) b (cf. FELSER, 1999; RODRIGUES, 2006). 2 Quanto ao que se entende aqui por posição de sujeito, entenda-se inicialmente posição temática. O decorrer da argumentação procurará evidenciar que nesses casos o Wh sofre movimento cíclico da posição temática para a posição de Spec-T e em seguida para a posição mais alta na estrutura. 3 Obviamente, a discussão sobre o movimento de Whs sujeito se dá em termos de movimento local para Spec-CP. Em todo caso, em dados como (5) e (6) c observa-se claramente a aplicação de movimento sobre o Wh, considerando o fato de que esse elemento precisa nascer na subordinada, mas encontra-se deslocado, em sua posição inal, na periferia da matriz. A pergunta é: nos dados em (5) e (6) b ocorre movimento? A isso procuramos responder no desenrolar da discussão. 4 Construções com o verbo lexionado na encaixada apresentam um paradigma distinto. Observe-se que em (i) não é necessária qualquer entonação focal sobre o sintagma-Wh para salvar a gramaticalidade das sentenças. Segue-se disso que sentenças como as que aparecem em (ii) têm sua agramaticalidade explicada por uma ausência do traço-Wh no C da matriz (considere-se a força – interrogativa da sentença), não podendo haver qualquer operação de valoração de traços entre o C mais alto e a categoria-Wh. Além disso, entende-se que nesses casos esse traço seja valorado já na posição encaixada. (i) a. O João perguntou quem chorou. b. A Maria quer saber quem gritou. (ii) a. *Quem o João perguntou t chorou. b. *Quem a Maria quer saber t gritou. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 949 Trabalhos como os de Rouveret e Vergnaud (1980), Koster e May (1982)5 e Kayne (1984) optam por uma análise em termos de uma estrutura contendo um CP, enquanto Emonds (1976), Borer (1986) e Radford (1997) entendem que as orações ininitivas em questão se constituem em TPs. Felser (1999) argumenta que a agramaticalidade de sentenças como (7) inviabiliza uma análise em termos do CP e que instâncias de comportamento sintático distinto entre complementos ininitivos de verbos de percepção e as ininitivas em geral também desautorizam uma análise em termos do TP para essas construções. (7) a. *Mary couldn’t see [CP what [C´ John drawing]]. b. *Mary couldn’t hear [CP which song [C´ John sang]]. (FELSER, 1999, p. 91) Trata-se, portanto, de uma discussão nada consensual. Movimento de um sujeito-Wh e a constituição estrutural dos complementos ininitivos de verbos de percepção são, nesse panorama, questões cruciais a serem debatidas. Assim, com base na observação dos dados em (5) e (6), chega-se a algumas questões que precisam ser postas em discussão. A primeira e principal delas é a avaliação das condições de derivação das referidas construções e, consequentemente, a necessidade de explicar o que viabiliza as sentenças em (5) e (6)b e bloqueia as sentenças em (5) e (6) a. Essa questão passa necessariamente pela discussão do tipo de estrutura que apresentam os complementos ininitivos dos verbos ver e ouvir nas referidas construções. Procuro mostrar aqui que não há como sustentar, em face dos dados, uma análise com movimento vácuo de sujeito para os dados do português do Brasil.6 A ideia básica que procurarei constituir aqui é a de que sujeitos-Wh nesse tipo de sentenças precisam mover-se em sintaxe aberta de Spec-v para Spec-T (na sentença encaixada) e novamente, em sintaxe aberta, para o domínio do v na matriz, por questões de Caso, 5 Hipótese do Paralelismo Estrutural: a estrutura é uniforme entres tipos de sentenças; assim complementos ininitivos de verbos de percepção são estruturalmente análogos a sentenças completas. 6 Ponho de lado aqui a questão do movimento local e passo a discutir movimento de sujeitos-Wh de forma generalizada. 950 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 e para checar um traço-Wh, conjuntamente com um traço de Foco.7 É sobre essas questões que o presente trabalho se debruça. Para a análise do fenômeno, vou adotar aqui, a versão de Fase do Programa Minimalista da teoria de Princípios e Parâmetros (cf. CHOMSKY, 2000, 2001, 2005). O artigo se estrutura da maneira como segue: na seção 2, ocupome da avaliação das propostas de análise para a estrutura de ininitivas que complementam verbos de percepção, na intenção de determinar qual proposta se adéqua melhor aos dados do português. A seção 3 traz uma discussão sobre movimento-Wh e o problema dos traços, na qual se avaliam questões como para onde e por que Whs se movem em perguntas. Na seção 4, avalio a questão do movimento para posições focais, assumindo a hipótese de Karimi (2003), segundo a qual movimento para Foco é ativado por checagem de um traço [-interpretável]. Ainda nessa seção, discuto o problema da atribuição de Caso aos Whs sujeitos de ininitivas e delineio a proposta inal deste trabalho. A seção 5 traz as considerações inais e as questões em aberto para futuras investigações. 2 Complementos de verbos de percepção direta: avaliando as hipóteses de análise da sentença ininitiva A questão elementar que se põe quanto aos dados em (5) e (6) é a seguinte: o que faz com que as sentenças em (a) sejam agramaticais em oposição às que se encontram em (b) e (c)? O problema pode estar relacionado à veriicação do traço-Wh em sentenças desse tipo, questão que pode ter ligação direta com o tipo de estrutura que se supõe apresentar a sentença ininitiva iniciada pelo sintagma-Wh. É importante, portanto, que se avaliem as propostas estruturais apresentadas na introdução, para que se possa procurar determinar o tipo de estrutura que essas sentenças ininitivas apresentam e avaliar a maneira como são derivadas. 2.1 A hipótese do CP Estruturas como as que se põem em análise já foram avaliadas como constituintes sentenciais de categoria CP (cf. ROUVERET; VERGNAUD, 1980; REULAND, 1981; KAYNE, 1984), conforme mencionado na introdução. Isso se emparelha com a Hipótese do 7 Agradeço a Mary Kato (comunicação pessoal) por me sugerir essa ideia. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 951 Paralelismo Estrutural de Koster e May (1982), que propõe uma isonomia estrutural para as sentenças, mesmo de tipos diferentes. Essa questão é, no entanto, problemática. Como observa Felser (1999), a ausência obrigatória de complementizadores realizados e marcadores de finitude nessas construções traz alguma complicação para a análise do CP. A argumentação é que as propostas para esse tipo de análise têm de assumir ou que C e I/T estejam presentes estruturalmente, mas sem conteúdo, ou que essas projeções contêm núcleos fonologicamente nulos, que estão associados a um conjunto de traços formais ou semânticos. (FELSER, 1999, p. 91). O problema com a primeira hipótese é que o princípio de Interpretação Plena (FI, cf. CHOMSKY, 1995) inviabiliza tal abordagem: uma projeção sintática sem conteúdo semântico não pode ser interpretada na interface semântica. Assim sendo, sobra a segunda hipótese: a da existência de núcleos C e I fonologicamente nulos. Um problema para a segunda análise, apontado em Felser (1999), é o fato de que, como esses núcleos nunca apresentam nenhum tipo de material lexical, ica difícil determinar qual o tipo de traço que carregam. Além disso, supõe-se que C indique o tipo oracional (cf. CHENG, 1991) e seja o lugar onde se codiica o modo e a força ilocucionária da sentença (CHOMKY, 1995); um C nulo numa sentença plena representaria problemas para a codiicação de sua força. Uma questão relevante aventada em Felser (1999) – que parece contrariar a hipótese do CP– assume particular interesse para nossa argumentação aqui. Ela diz respeito ao fato de não se observar qualquer instanciação de movimento-Wh curto em ininitivas, o que se dá a ver em (9), contrariamente ao que acontece em sentenças initas como (8): (8) O João viu [CP quem [TP a Maria beijou ti]] (9) *O João viu [CP quem [TP a Maria beijar ti]]?8 Uma questão interessante nesse ponto é o fato de que, em sentenças initas que complementem um verbo do tipo de ver (como em (8)), o Wh precisa necessariamente aparecer na posição intermediária. Uma construção com esse elemento in situ não é aceitável, como se vê em (i), assim como seu posicionamento na periferia da matriz, tal como em (2): (i) *O João viu a Maria beijou quem/QUEM? (ii) *Quem o João viu a Maria beijou? 8 952 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Considerando o fato de que o movimento curto do sintagma-Wh pode ocorrer livremente com complementos initos como em (8), que se assume apresentar a projeção da camada CP, mas é bloqueado em ininitivas como (9), pode-se concluir que as sentenças postas em análise aqui não devem de fato projetar o sistema C. Outro argumento desfavorável à hipótese do CP baseia-se no fato de que em interrogativas observa-se um fenômeno que icou conhecido em fases anteriores do programa como o duplo preenchimento do Comp, com a realização do núcleo C e a presença de um sintagma-Wh em SpecCP,9 como se pode ver em (10) e (11) a seguir: (10) a. [CP Quemi [C que [TP ti viu o João]]]? b. Quero saber [CP quandoi [C que [TP ele chegou ti]]]. (11) a. [CP Quemi [C que [TP o João viu ti chegar]]]? Quando a Numeração de uma interrogativa (seja ela raiz ou encaixada) contém um item que, que realiza fonologicamente o C, o pied-piping de todos os traços do constituinte-Wh passa a ser obrigatório. A permanência do Wh in situ resulta na agramaticalidade da sentença.10 É o que se pode observar em (12d) e (13d), logo abaixo: O problema em (ii) é facilmente explicado pelo fato de o CP da matriz não conter um traço [+Wh], considerando que se trata de uma declarativa comum. (i) é ruim com ou sem a entonação focal no Wh. Isso pode estar relacionado com a natureza da percepção num e noutro: em (8), a percepção é de uma entidade: o que João viu foi a pessoa que Maria beijou; contrariamente, em (9), a percepção é a de um evento: o que João viu foi o evento, o acontecimento de Maria beijar alguém. No primeiro caso (8), o operador tem uma natureza deinida, há aí um traço de deinitude (pode-se o substituir pela perífrase aquele/aqueles que). No caso de (9), a natureza do operador é totalmente indeinida: é a identidade do beijado que se interroga. 9 Fato já descrito em trabalhos como Lobato (1986), Mioto (1994) e Medeiros Junior (2005). 10 Pode-se sugerir que o item lexical que em C seja a realização morfológica do traço [+Wh]. A realização morfo-fonológica desse traço evidenciaria uma visão forte do Critério-Wh de Rizzi (1991). Uma alternativa pode ser entender essa questão nos termos do que propõe Watanabe (2006), que se trata de um traço pied-piper, que exige a presença de material fonológico em Spec-CP. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 953 (12) a. O João viu quem? b. Quem o João viu? c. Quem que o João viu? d. *que o João viu quem? (13) a. Quem o João viu espirrar? b. O João viu QUEM espirrar? c. Quem que o João viu espirrar? d. *que o João viu QUEM espirrar? Observe-se que em sentenças como (13b), não é possível inserir o item que. Esse procedimento torna a sentença agramatical: (14) *O João viu QUEM que chegar? Essa pode ser considerada mais uma evidência de que não há de fato uma camada CP na constituição estrutural desse tipo de ininitiva, o que conduz à avaliação de outras propostas estruturas para tais construções.11 Nas subseções a seguir, avalio outras propostas de análise estrutural dadas a esse tipo de sentença. 2.2 Uma análise em termos do VP Felser (1999) sugere inicialmente que complementos ininitivos de percepção direta poderiam ser analisados como VPs nus. A derivação de uma estrutura como a que aparece em (15) se daria da forma como se vê em (16): 11 Um problema potencial para a análise que faço aqui da agramaticalidade de (15) pode ser delineado como segue. No caso de se querer sustentar uma análise do CP, pode-se tentar explicar a agramaticalidade de sentenças como (15) com base em uma incompatibilidade entre as propriedades selecionais de verbos de percepção direta como ver e o C que ele toma como complemento. Verbos desse tipo selecionam um C[-inito]; a presença do complementador caracteriza o C como [+inito] automaticamente: essa seria a explicação para a má formação da sentença. Ou, poder-se-ia avaliar essa questão como uma incompatibilidade entre os traços de C e T. Um complementador exige um T inito e temos aqui uma sentença ininitiva. 954 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 (15) We saw John draw a circle. (16) We saw [vP Johni [v´… tsee … [vP ti [v´ draw [vP tdraw [VP tdraw [DP a circle]]]]]]]. A autora, entretanto, argumenta – com base na apreciação de construções com there – que uma análise em termos de um VP nu também enfrenta alguns problemas. Seja a sentença em (17): (17) We wouldn’t like to see [there arrive any problems from this] (FELSER, 1999, p. 101) A ideia é que posições argumentais dentro do sintagma verbal devem ser ocupadas por expressões θ-marcadas; a geração de there (um expletivo puro) no especiicador de VP ou mesmo vP não seria uma possibilidade viável. Nessas circunstâncias, caso se assuma a hipótese de que inacusativos não apresentam a projeção vP, é preciso considerar que o expletivo em (18) deve estar ocupando o especiicador de outro núcleo funcional acima de VP: (18) ... see [γP there [VP [V´ arise [DP any problems]]]] Com base nessa argumentação, Felser propõe uma análise das ininitivas em questão como sendo Sintagmas Aspectuais. Para ela, a única coniguração adequadamente capaz de descrever o que acontece em complementos ininitivos de verbos de percepção é a que se mostra em (19) a seguir, em que o vP ininitivo é selecionado por um núcleo Asp: (19) [CP [vP [VP [AspP [vP [VP]]]]]]. A ideia original de Felser é que os verbos se movam para Asp e a posição de Spec-AspP sirva de local de pouso intermediário para o sujeito da ininitiva, em seu caminho até o Spec do vP na matriz onde valora o traço de Caso.12 Nessa posição, segundo essa proposta, seriam gerados os expletivos puros em sentenças como (18). 12 Embora desde Pollock (1989) assuma-se que o alcance do verbo em inglês é mais baixo do que em francês, na análise de Felser, ele sai do domínio lexical e é alçado ao domínio de Asp para que, (como já dito anteriormente) ativando a projeção aspectual, o Spec da projeção sirva de local de pouso para o sujeito em seu caminho para uma Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 955 A hipótese de AspP pode ser útil para avaliar questões referentes a partículas verbais como (-ing) do inglês [como em I saw John draw(ing) a circle] ou (-ndo) do português, na constituição de gerundivas [Eu vi o João anda(ndo) na rua]. Trata-se, portanto, de uma alternativa viável de análise, considerando a argumentação da seção anterior de que a hipótese do CP deve ser descartada. Essa análise, entretanto, não se mostra tão adequada para a análise dos dados do português, considerando a existência nessa língua de lexão do ininitivo. A seguir, avalio a questão do TP e proponho ser esta a opção mais viável de análise, considerando o fato de ininitivos do português apresentarem a possibilidade de aparecerem lexionados. 2.3 A hipótese do TP Trabalhos como o de Emonds (1976) propunham que orações ininitivas complementos de verbos de percepção seriam derivadas de ininitivas plenas com o apagamento obrigatório da partícula to; essas construções deveriam, portanto, ser interpretadas como elementos sintáticos de natureza I (TPs em termos minimalistas). Trabalhos como os de Borer (1986) propõem alternativamente que esse tipo de sentença seja encabeçado por um Inl de natureza degenerada, o que justiicaria o contraste entre o tipo de comportamento de sentenças plenas (com a partícula to) ou defeituosas (sem o to). Felser (1999) mostra-se contrária a esse tipo de análise. Para ela, não há evidências suicientes para airmar que complementos de verbos de percepção direta derivem de ininitivas comuns com o apagamento de to ou mesmo que contenham um núcleo temporal não inito foneticamente não realizado. Um dos argumentos que a autora utiliza para defender sua hipótese é o de que há claras distinções semânticas entre as ininitivas encabeçadas por to e as ininitivas complementos de verbos de percepção direta. Recentemente Hornstein, Martins e Nunes (2008) argumentam que complementos ininitivos de verbos de percepção apresentam duas possibilidades de estrutura: podem ser CPs ou TPs, fato que é deinido posição de caso. O que Felser propõe (1999, p. 123) é que considerando que ocorra o alçamento do DP objeto para uma posição mais alta um segundo Spec em vP) e do DP sujeito para o domínio do v na matriz, supõe-se que o verbo tem necessariamente de ter se deslocado para a projeção aspectual. Mesmo assim, há uma diferença (entre inglês e francês) no alcance do verbo; em inglês ele permanece mais baixo que em francês. 956 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 pelo tipo de predicado que os integra (CP no caso de conterem um predicado proposicional/epistêmico e TP, no caso de apresentarem um predicado eventivo). As sentenças em (20) e (21) a seguir exempliicam cada um dos casos discutidos pelos autores: (20) John saw them hit Fred (21) John was seen to know French (HORNSTEIN; MARTINS; NUNES, 2008, p. 198-200) Segundo esses autores, a atribuição de Caso ao nominal sujeito do ininitivo em casos como (21) acontece com base em duas operações distintas,13 devidas ao fato de que tanto o ininitivo, quanto o nominal sujeito, encontram-se equidistantes do núcleo do verbo leve da matriz, o qual atribui Caso excepcional ao NP:14 1. Ocorre uma primeira operação de checagem com o ininitivo (que se comporta como um nominal); e 2. Ocorre uma segunda operação de checagem com o DP sujeito. Os dados que por ora analisamos apresentam sentenças ininitivas do tipo de (21), constituídas por predicados eventivos; encaixam-se, portanto, na análise de tais estruturas como TPs. Uma análise em termos do TP para o português parece mesmo mais adequada, apesar da consistente argumentação de Felser em favor do VP, (delineada em 2.1), por se considerar a possibilidade da ocorrência de lexão (de pessoa e número) em ininitivos do português,15 contrariamente 13 O panorama dessa abordagem é o da checagem de traços. A argumentação inal é que Inglês e Português Europeu comportam-se da mesma maneira quanto ao fenômeno, apesar da evidente diferença entre as línguas, considerando o caso de a segunda apresentar ininitivos lexionados. 15 Conforme apontado a mim por Juanito Avelar (c.p.), uma alternativa seria assumir que o núcleo ASP portasse os traços-φ necessários para uma operação Agree com ininitivos lexionados. Uma projeção ASP, entretanto, não resolve os problemas que os dados do presente trabalho levantam quanto à necessidade de se focalizar o Wh in situ para que a sentença seja aceitável. Necessita-se, portanto de uma projeção focal para que se valore o traço de foco. A esse respeito, cf. seções 3.1 e 4.2. 14 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 957 ao que acontece na língua inglesa.16 No presente trabalho, não precisarei lançar mão dos detalhes menores da proposta de Hornstein, Martins e Nunes (2008), mas passo a assumir que ela seja a mais adequada para o tratamento dos dados da língua, ao se levar em consideração a lexão do ininitivo.17 A seguir, encaminho-me à segunda parte da argumentação, a saber, a análise das construções com Wh focalizado (apresentadas na introdução), com o intuito de explicar por que (5a) e (6a) são agramaticais em contraste com (5b) e (6b) e como as sentenças em b se relacionam com as que aparecem em c. 3 Movimento-wh e a questão dos traços Tendo avaliado a estrutura de complementos sentenciais em construções de percepção direta como TPs, passo agora à análise dos dados postos em (5) e (6), tentando explicar a assimetria apresentada entre as sentenças em (a) e (b). 3.1 Por que Whs se movem? Em Cheng (1991), toda instância de movimento-Wh é interpretada como um procedimento que resulta na tipiicação sentencial. O deslocamento de um sintagma-Wh para a periferia da sentença serve para tipiicá-la como interrogativa. Segundo Cheng (1991), línguas que não dispõem de movimento sintático de sintagmas-Wh apresentam outra estratégia para tipiicar 16 Observe-se que Horntein, Martins e Nunes (2008) estendem essa proposta para o inglês (mesmo apesar das diferenças evidentes entre as duas línguas quanto à lexão do sujeito), por entenderem que se trata de um comportamento uniforme dos ininitivos nesse contexto sintático. 17 Não há, na argumentação de Hornstein, Martins e Nunes (2008), a proposição de qualquer distinção estrutural de sua proposta em relação a hipóteses do VP como a defendida por Felser (1999) (conforme apontado por um dos revisores deste paper); toda a argumentação desses autores centra-se nas propriedades do português (por apresentar lexão no ininitivo) e na necessidade de se obter uma explicação que dê conta das peculiaridades desse tipo de dado. Como mencionado acima, assumo a hipótese em questão em razão das mesmas questões, mesmo entendendo que uma derivação com a projeção de Asp poderia resolver algumas das questões. A discussão da nota 15 acima, de certo modo, pontua essas questões. 958 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 uma sentença como interrogativa; por exemplo, o uso de partículas interrogativas. De acordo com essa visão, as línguas se distinguiriam parametricamente quanto a apresentar movimento-Wh ou partículas interrogativas. Desde Chomsky (1995), propõe-se que aplicações de movimento são sempre condições de último recurso, que decorrem da presença de traços não-interpretáveis. Em termos gerais, traços formais que não sejam interpretáveis em LF precisam ser veriicados e eliminados no decurso da derivação a im de que se garantam condições de interpretabilidade na interface. Supõe-se que uma relação de checagem (nessa fase do programa a visão é a de checagem) ocorra entre um núcleo funcional que carrega determinado traço (em geral [–interpretável]) e um item lexical compatível em termos de traços; supõe-se que o mesmo traço no item lexical seja +interpretável, à exceção do traço de Caso. Numa relação de checagem, uma operação denominada Attract atrai para o domínio de checagem de um núcleo X0 apenas os traços necessários para a checagem; se o mínimo que Attract conseguir carregar for toda a categoria, temos a aplicação de movimento em sintaxe aberta. Isso deve, no entanto, por razões de economia, ser evitado ao máximo: sempre que possível, apenas os traços devem ser movidos. Considerando que o mínimo necessário para convergência em PF seja o deslocamento de toda uma categoria, o movimento deve ser permitido. Uma vez no domínio de checagem de X, α veriica o traço [–interpretável] do núcleo e o elimina, embora o mesmo traço em α, sendo [+interpretável], ainda permaneça visível para a aplicação de outras instâncias de checagem de mesma natureza. Segundo Chomsky, uma categoria α pode ser concatenada ou alçada ao domínio de checagem de um determinado núcleo; no caso da elevação, a categoria pode ser movida à posição de Spec do núcleo ou pode sofrer adjunção. (CHOMSKY, 1995, p. 395)18 Chomsky considera que o traço-Wh seja [+interpretável] 18 Em Chomsky (2000) e trabalhos subsequentes, a arquitetura das operações formais implicadas na constituição da linguagem sofre uma reformulação substancial. Nesse trabalho inicial lança-se o programa de Fases, cujas bases vêm sendo exploradas em muitas investigações até hoje. Na seção 3.3, apresenta-se uma discussão que avalia essa nova “fase” do programa e que é a perspectiva adotada nesse trabalho. A visão de fases anteriores do programa pode ser interessante para avaliar pontos especíicos em momentos especíicos. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 959 em sintagmas-Wh e [–interpretável] nos núcleos C de interrogativas. Parametricamente, as línguas se distinguem por terem esse traço forte ou não (o que determina sua veriicação antes ou depois do ponto conhecido como Spell-Out, em que todos os traços fonológicos são retirados e mandados para a fonologia). Línguas como o inglês exempliicam o primeiro caso; elas têm o traço-Wh forte e apresentam inevitavelmente movimento visível do sintagma-Wh. Línguas do tipo do chinês ilustram o segundo caso, o das que possuem um traço-Wh fraco e nunca apresentam movimento aparente de palavras-Wh. 3.2 Para onde Whs se movem? Convencionalmente se supõe que Whs em sentenças interrogativas comuns encontrem-se em Spec-CP, de onde operam sobre toda a sentença, caracterizando-a como interrogativa típica (cf. CHENG, 1991). É nessa posição que se encontram em coniguração propícia à checagem com um núcleo C0 que contém um traço [-Wh], já que o c-comanda (cf. CHOMSKY, 1995). Desde Rizzi (1997), tem-se interpretado o CP como um sistema complexo cuja funcionalidade se presta à resolução de questões a priori discursivas. Para Rizzi (1997), o CP se constitui de uma série de posições funcionais para as quais sintagmas podem ser movidos, principalmente devido a questões de fundo discursivo. O CP cindido de Rizzi (1997) tem a seguinte coniguração: (22) ForceP [Force0 [TopP [Top0 [FocP [Foc0 [TopP [Top0 [FinP [Fin0 [IP]]]]]]]]]]19 19 Obviamente, para além das questões de ordem discursiva, há questões de ordem sintática e até mesmo morfológica para a proposição da cisão do sistema CP. Parte da argumentação de Rizzi, por exemplo (1997, p. 283), tem a ver com as questões relativas à complementação (que tocam a parte mais alta da sentença) e às questões voltadas à initude (que tocam a interface de C com T), razões sintáticas no que tange à existência de tópicos e à distribuição de sujeitos pós-verbais, bem como a interação dessas estruturas com a ocorrência de expressões focalizadas (RIZZI, 1997, p. 287). Mais debates sobre essa questão podem ser vistos em Guesser e Quarezemin (2013) e Quarezemin (2009). 960 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Segundo Rizzi (1997), na língua inglesa, o Spec-FocP hospeda sintagmas-Wh em interrogativas matrizes, após a incorporação de I em Foc. Nas perguntas encaixadas, entretanto, o pronome interrogativo não pode seguir o constituinte marcado com Foco; nesses casos o traço [+Wh] é selecionado diretamente pelo predicador da matriz e precisa estar adjacente a ele: (23) *I wonder Tom, why anyone would want to meet. Assim, entende o autor que em interrogativas encaixadas do inglês o sintagma-Wh não pode estar focalizado. Postos em avaliação, os dados do português parecem demonstrar um comportamento um tanto diferente. Observe-se que uma interrogativa encaixada comum como (24) pode ser parafraseada da maneira como se vê em (25): (24) A Maria quer saber [quem pegou o dinheiro do cofre]. (25) A Maria quer saber [quem foi que pegou o dinheiro do cofre]. Como se pode observar, é possível clivar o constituinte-Wh em interrogativas indiretas do português, exatamente como o que ocorre em interrogativas matrizes nessa língua: (26) a. Quem você viu no parque? b. Quem foi que você viu no parque? Assim, é apropriado entender que, tal como ocorre em italiano (cf. RIZZI, 1997; BIANCHI, 1999), em interrogativas indiretas do português, o traço [+Wh] é realizado em I0, que se move para Foc, exatamente como nas matrizes, e o sintagma-Wh pode ter seu traço checado em Spec-FocP. Retomemos aqui o paradigma posto em (5) e (6), reproduzido a seguir como A e B: (A) a. *O João viu quem espirrar. b. O João viu QUEM↑↓ espirrar? c. Quemi o João viu ti espirrar? Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 961 (B) a. *A Maria ouviu quem chorar. b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar? c. Quemi a Maria ouviu ti chorar? Observando com cuidado os dados em (A) e (B), percebe-se, em ambos os casos, que o sintagma-Wh porta um traço de Foco. Em b, a entonação focal salva a sentença da agramaticalidade (vista em a); em c, entende-se, com Rizzi, que o sintagma-Wh esteja em Spec-FocP e, passo a propor daqui em diante (seguindo KATO, 2004)20,21 que o traço-Wh seja checado sincreticamente nessa posição. Se o que se propõe acima estiver correto, começamos a delinear aqui uma provável explicação para o paradigma que se encontra nos dados em (5) e (6), em que só se obtém sentenças bem-formadas quando o sintagma-Wh que as integra apresenta uma entonação focal. Antes, todavia, precisa-se discutir a aplicação de movimento para projeções focais. A pergunta é: há alguma evidência de que o movimento para posições focais seja ativado por checagem? 20 Para mais debates sobre a questão, ver Kato (2004). Além da discussão para o português encontrada em Kato (2004), Rizzi (1997, p. 298) já propunha que o local de pouso de sintagmas-wh interrogativos movidos seja o Spec da projeção focal, considerando a impossibilidade de adjacência entre expressões não-wh focalizadas e sintagmas wh interrogativos. Nas palavras do autor, “(...) the possibility that immediately comes to mind is that the question operator sits in the Spec of Foc in main questions, hence focalized constituents and question operators compete for the same position and cannot co-ocur.” Como se pode ver, a previsão de que sintagmas-wh interrogativos se movem para Foc já estava feita desde a organização Rizzi (1997), o que leva à noção de que o traço wh de palavras-wh é veriicado conjuntamente a um traço de foco em Spec, FocP. Em Rizzi e Bocci (2017), encontramos a proposição de uma projeção IntP acima da projeção focal, que hospedaria palavras interrogativas, alternativamente à proposta de focalização apresentada em Rizzi (1997); isso se propõe em consonância com a proposta cartográica, a qual prevê que cada traço precisa ser veriicado por um núcleo distinto. Para nossa análise, entretanto, supor que o sintagmawh nas construções em análise se desloca para IntP após veriicar seu traço de foco não responde ao fato de termos o stress focal ainda posto sobre o termo, a não ser que se postule que o wh, mesmo tendo seu traço de foco veriicado, ainda conserva propriedades fonológicas focais ao se mover para IntP. Deixamos por hora esta questão em aberto e assumimos aqui Rizzi (1997), entendendo que em Spec, FocP o tgraço-wh seja valorado. 21 962 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Além disso, há ainda outro problema: se assumimos como em 2.3 que esse tipo de sentença ininitiva não projeta um sistema CP, para onde estariam se movendo (se é que eles se movem) os sintagmas-Wh de (5)b e (6)b, para que tenham seu traço-Wh checado, considerando que as referidas sentenças são claramente bem-formadas? 3.3 Operações formais no programa de fases Chomsky (2000) inicia uma revisão da derivação de construções sintáticas numa perspectiva de Fases. A ideia geral é que a complexidade operacional do sistema é drasticamente reduzida se uma derivação ocorrer em pequenos estágios, com conteúdo proposicional, derivados a partir de subnumerações, que se constituem com base no primeiro arranjo de itens extraídos do Léxico. Entende-se que cada subnumeração contenha o suiciente para se constituir um objeto o mais próximo possível de uma proposição. Nessa perspectiva, consideram-se Fases fortes o v*P e o CP,22 por conterem as condições necessárias para que sejam considerados como tal, a saber, o fato de conterem conteúdo proposicional. Todo o complexo de operações formais aplicáveis no decurso da derivação de uma expressão é tido como se aplicando por fases, sendo limitada a atuação do sistema sobre elementos que estejam no interior de uma fase, quando ela se completa. Em Chomsky (2001), operações formais de valoração de traços se dão por meio de um sistema sonda-alvo (probe-goal). Uma operação AGREE é disparada quando um objeto sintático é formado e porta traços não-interpretáveis [u]. Esse objeto se constitui numa Sonda que busca um Alvo compatível com ele em termos dos traços formais relevantes. É necessário que Sonda e Alvo estejam ativos para “disparar” Agree. Sonda e Alvo combinam quando os traços são valorados para o Alvo e não valorados para a Sonda. Uma operação de valoração de traços formais pode, assim, acontecer à distância, com a permanência do alvo em sua posição de Base. Caso a Sonda contenha um conjunto de traços EPP, esses traços especiais ativam 22 Sintagmas verbais com estrutura argumental completa v*Ps e CPs com indicadores de força são Fases fortes, mas não TPs ou conigurações verbais “fracas” que não contêm argumento externo (como o que ocorre em construções passivas ou inacusativas). Assim, v*P e CP são Fases fortes, e a subnumeração que constitui cada Fase contém exatamente um v* ou um C. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 963 o deslocamento do Alvo para uma coniguração estrutural especíica em relação a essa Sonda (posição de especiicador). A existência de traços EPP associados a uma Sonda, segundo essa visão, está diretamente condicionada ao fato de tal Sonda possuir um conjunto completo de traços-φ.23 Também nos trabalhos referidos acima (i.e. CHOMSKY, 2000, 2001) já se instaura uma discussão acerca da natureza da relação entre C e T, categorias funcionais correspondentes ao tipo oracional e ao tempo respectivamente. A ideia é que a existência de um T ϕ-completo está diretamente relacionada ao fato de ser esse elemento diretamente selecionado por C. Isto é, um T selecionado por um C possui um conjunto completo de traços-φ; um T que não seja selecionado por C será sempre defectivo. A abordagem da relação C-T é, digamos, “energizada” em Chomsky (2005). Aí, corrobora-se a hipótese de que um T φ-completo é somente aquele que é selecionado por um C e chega-se além. Supõe-se que C seja a categoria a que se associem traços-φ e que T apenas os herde de C, quando de sua seleção por aquela categoria funcional. Se entre o complexo C-T e um DP ocorre Agree, este último pode permanecer in situ (com Agree à distância) tendo todos os seus traços formais valorados, ou pode ser deslocado para a posição de Spec-T, onde ica inativo, com todos os seus traços valorados e não pode mais ser alçado à posição de Spec-C (CHOMSKY, 2005, p. 9). Essa discussão é de importância seminal para as discussões que por ora se instauram. A relação C-T vai se mostrar determinante para o desenrolar da proposta deste trabalho.24 A seguir, 23 Na argumentação chomskiana, estas são as condições necessárias para “disparar” agree: que a sonda contenha um conjunto completo de traços phi. Por razões lógicas, estende-se o mesmo padrão de análise para uma operação de valoração de traços-wh ou traços focais, com uma sonda compatível em termos desses traços (nomeadamente, um núcleo C, ou, como se verá mais adiante, o próprio item lexical wh, entendido como o operador focal). 24 É importante observar aqui que a relação C-T tal como proposta em Chomsky e adotada neste trabalho não contém qualquer expressão de look ahead ou a postulação de uma derivação do tipo top-down. Entende-se que a derivação ocorra de baixo para cima (bottom-up), mas que a numeração, selecionada do léxico, contenha C e T respectivamente, sendo que C é o núcleo com os traços phi e irá, digamos, descarregar esses traços em T, no momento em que for concatenado no decurso da derivação. Além disso, uma proposta como essa não invalida a proposta cartográica de Rizzi, uma vez que o próprio Rizzi em seu texto, (RIZZI, 1997, p. 28) discute a relação estreita entre o conteúdo proposicional de C e os traços de initude em T (portanto a relação C-T), ao propor a projeção Fin como parte do sistema CP. 964 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 passo a discutir a questão do deslocamento para posições focais. Como se pretenderá mostrar, posições focais encontram-se em domínios com uma Sonda que apresenta um traço de Foco, que precisa ser compartilhado por alguma categoria substantiva presente na derivação. 3.4 O que de fato está relacionado ao movimento para posições focais? Karimi (2003), em análise de dados do persa, airma haver evidência suiciente para se considerar que movimento para posições focais seja ativado numa operação de valoração de um traço especíico. Segundo a autora, essa língua exibe dois tipos de foco: um que aparece dentro do VP e que denota informação nova e outro que requer uma entonação (stress) bem acentuada e que expressa interpretação contrastiva. Em persa, Whs que expressam contrastividade e que recebem uma acentuação mais proeminente movem-se opcionalmente; além disso, nessa língua, dois sintagmas-Wh podem sofrer movimento para uma posição de foco (contrastivo ou identiicacional) na mesma sentença. Esse tipo de fenômeno, entretanto, sofre uma série de restrições que apontam para o movimento como resultado de checagem de um traço [-interpretável] de foco. Sejam os seguintes dados levantados pela autora: (27) a. KIi bâ KIj pro fekr-mi-kon-I who with who thought-PROG-do-2SG [CP ti tj be-raghs-e] subj-dance 3SG ‘It is WHO with WHO you think you will dance?’ É quem com quem você pensa que (você) irá dançar? b. ??KIi emruz bâ KIj pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e] today (KARIMI, 2003, p. 298) Uma das restrições, segundo a autora, é que em caso de movimento de múltiplos Whs focalizados, tem de haver entre eles adjacência (como em a); a presença de qualquer elemento entre eles (nesse caso o advérbio emruz ‘hoje’) resulta na má-formação da sentença (como se vê em b). O caráter ruim de (27)b sugere que ambos os Whs deslocados devem estar ocupando dois especiicadores do mesmo núcleo. A estrutura, portanto, seria algo como o que se vê em (28): (28) [FocP XPi [XPk [Foc′ Foc [yp ... ti ... tk ... ]]]] O segundo argumento é constituído com base nos dados a seguir: 965 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 (29) a. [faghat be Kimea]i man ti se ta KETAB dad-am [ only to Kimea I three-part book gave-1sg “It was only to Kimea that I gave three BOOKs.” (I gave other people other things.) Foi apenas a Kimea que eu dei três LIVROS b. *se ta KETAB man faghat be KIMEA ti dad-am. Signiicado pretendido: “It was three BOOKS that I gave only to KIMEA” (KARIMI, 2003, p. 299) O contraste veriicado em (29) a e b evidencia que a Condição do Elo Mínimo (MLC) deve ser obedecida quando dois elementos contendo o mesmo tipo de traço entram em competição por uma mesma posição.25 Observe-se que em (29)a temos o sintagma [faghat be Kimea] e o objeto direto acentuado KETAB ambos requerendo foco identiicacional. Como se pode ver, o sintagma [faghat be Kimea] se moveu e o objeto permaneceu in situ. Quando, porém, em (29)b o objeto se move passando por sobre [faghat be Kimea], a sentença é ruim. Isso indica que movimento para posições focais está sujeito à MLC. O mesmo tipo de efeito é verificado em construções com duplo-Wh; para que a sentença seja aceitável, um dos sintagmas deve permanecer in situ. É o que se vê nos dados em (30): (30) a. KIi pro fekr mi-kon-i WHO _ thought prog-do-2SG [CP ti bâ KI be-raghs-e] with WHO subj-dance-3SG ‘WHO is it you think will dance with who?’ Quem é que você pensa (que) vai dançar com você? b. *bâ KIj pro fekr mi-kon-i [CP KIi tj be-raghs-e] (KARIMI, 2003, p. 299) 25 Ou pode-se avaliar essa questão em termos minimalidade relativizada (RIZZI, 1990), a partir da ideia de que um núcleo relevante para uma operação de veriicação não pode ser digamos “ignorado” em detrimento de outro depois dele com as mesmas propriedades. Em outras palavras, um B relevante em termos de traços que intervém entre A e C impede a relação entre A e C, ou, precisa ele ser o “preferido” na operação, não podendo ser “ignorado”. 966 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Segundo Karimi, a sentença em (b) só é bem-formada se o Wh in situ não receber um acento focal, sendo nesses casos interpretado como um DP indeinido sem força quantiicacional. Além disso, ainda segundo a autora, a ordem inal de dois Whs deslocados também sofre um tipo de restrição, segundo a qual, elementos que podem ser movidos devem se mover para a posição de especiicador mais próxima dentro de uma projeção com múltiplos especiicadores (cf. RICHARDS 2002).26 Assim, em dados como os que se encontram a seguir, se o Wh mais baixo não for concatenado na posição de especiicador mais baixa da projeção com múltiplos especiicadores, a sentença é ruim, (31b). Se, entretanto, o fronteamento múltiplo de Whs obedece a essa restrição (como em (31a)), a sentença é bem-formada: (31) a. KIi bâ KIj pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e] WHO with WHO thought-prog-do-2SG subj-dance-3SG b. *bâ KIj KIi pro fekr-mi-kon-i [CP ti tj be-raghs-e] (KARIMI, 2003, p. 299) A conclusão é que, se o movimento para posições focais está sujeito a restrições que regem a aplicação de MOVE, então, esse tipo de movimento deve estar sendo ativado por checagem de traços não interpretáveis. Seria possível pensar que de alguma forma os dados do português se comportassem de maneira semelhante, no que concerne a elementos Wh com um traço de foco? Argumento – em seção posterior – que em português Whs se movem abertamente para Foc após uma operação de valoração de um traço de foco. 26 Pode parecer que uma proposta como a de Karimi (2003) mostre algum tipo de incompatibilidade com a proposta cartográica quando a autora, citando Emonds (1976), menciona a existência de múltiplos especiicadores. De fato, na teoria cartográica de Rizzi (1997) e Beletti (2004) não se postula tal questão dadas as suas especiicidades. Talvez esse seja um ponto fraco na argumentação, mas observe-se que é possível avaliar o que Karimi (2003) aponta como uma projeção com mais de um especiicador de uma projeção focal como possibilidade de se estarem ativando, em vez disso, as duas projeções focais disponíveis no sistema CP para tratar dos efeitos de interveniência. Essa questão não é, entretanto, debatida pela autora, e ica aqui em aberto para análises futuras. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 967 4 Iniciando a análise A boa-formação das sentenças (5b) e (6b) indica que todas as operações formais relevantes ocorreram ou essas derivações não seriam convergentes. Dessa avaliação, pode-se chegar a um dos dois vieses explicativos a seguir: 1) Em sentenças desse tipo o Wh encontra-se in situ e os traços relevantes são valorados por Agree à distância (cf. CHOMSKY, 2001); ou 2) O sintagma-Wh nesses casos não se encontra in situ, tendo sido afetado por algum tipo de movimento curto, que o deslocou para outra posição no interior da sentença. A argumentação que se segue evidenciará que sintagmas-Wh nessas sentenças não podem estar em sua posição de base e que, portanto, apenas a segunda possibilidade é de fato viável. 4.1 Movimento e atribuição de caso: o problema do sujeito de ininitivas Conforme argumentado em 3.3, em Chomsky (2005) intensiicase uma discussão sobre a relação entre C e T. A ideia geral é que os traçosφ de T parecem ser herdados de C. T não possui esses traços no léxico e passa a apresentá-los se e somente se for selecionado por C. Uma das evidências que se apresentam em favor dessa hipótese é o fato de não se poder mover o TP ou a impossibilidade dessa projeção aparecer isolada de C (CHOMSKY, 2005, p. 10). Assim, deduz-se, logicamente, que ao TP de uma sentença não-inita não se possam associar traços-φ e que essas projeções não sejam, portanto, apropriadas para uma aplicação de Agree. Tem-se que Sintagmas Nominais (NPs/DPs) precisam receber Caso no decurso da derivação. Considerando que nem na projeção temática (domínio do verbo leve) nem no domínio de T encontram-se os traços compatíveis para a atribuição de Nominativo, as sentenças em (32) e (33) são agramaticais. (32) *A Maria chegar. (33) *O João quer a Maria chegar. 968 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Em ambos os casos, a má-formação da sentença é explicada pelo fato de o DP “A Maria” não receber Caso Nominativo. Observe-se, entretanto, que o dado em (34) contém uma construção bem-formada, em contraste com o que se vê em (33): (34) O João viu a Maria chegar. A questão é simples: na sentença em (34), está tudo certo com o DP “a Maria”. Conforme mencionado em 2.1, assume-se tradicionalmente que sujeitos de sentenças ininitivas nessas circunstâncias encontram-se numa situação de atribuição excepcional de Caso (ECM), em que o DP recebe Caso do predicador da matriz.27 Se esse é o caso com as sentenças em questão, (a saber, (5a e b)), podemos assumir, de início, que o DP quem receba Caso nas mesmas condições. Observe-se, entretanto, que – sem uma entonação focal especíica para o sintagma-Wh – a sentença não é convergente: 35) a. *O João viu quem espirrar b. *A Maria ouviu quem chorar. Se, entretanto, o sintagma-Wh atinge o sistema CP da matriz, a sentença converge. O problema de (35) é prontamente resolvido se a derivação atinge o ponto de (5) e (6)c repetidos aqui como (36) a e b: (36) a. Quemi o João viu ti espirrar? b. Quemi a Maria ouviu ti chorar? O fato é que os dados em (38) revelam algo interessante: se é possível um tipo de derivação em que o Wh atinge o CP da matriz, é preciso supor que de algum modo o Wh se desloca abertamente (de início) internamente à sentença em que é gerado, caso adotemos uma perspectiva de derivação por fases (como em/à la CHOMSKY, 2000, 2001, 2005). Observe-se que, caso permaneça interno ao TP encaixado em sintaxe aberta, o sintagma-Wh jamais poderá ser alçado até o CP da 27 Por enquanto ponho de lado uma análise mais arrojada como a de Hornstein, Martins e Nunes (2008), em função de uma simplicidade explicativa. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 969 matriz, considerando que, ao se completar a projeção máxima do verbo leve da oração principal, o domínio da fase (ou seja, o VP da matriz e tudo o que ele contém) é enviado para Spell-Out e a computação não tem mais acesso a nada nesse domínio. Pode-se optar por uma alternativa de análise segundo a qual todo o procedimento de atribuição de Caso se dê excepcionalmente e que o traço de Foco funcione como um traço de borda, posicionando o Wh na periferia da primeira fase forte v*P, de maneira a livrá-lo do efeito de congelamento (PIC – condição de impenetrabilidade da fase) e de tal modo que ele possa ser acessado daí por elementos na próxima fase. A derivação, nesses termos, se daria da maneira que segue: 1) O DP quem recebe Caso excepcional; 2) Um traço de borda (nesse caso o traço de foco) eleva o sintagmaWh para a periferia da Fase forte v*P; Quando C é concatenado, ocorre toda a relação do sistema C-T e um traço Wh em C, conjuntamente com um traço de borda (cf. CHOMSKY, 2005, p. 15), atrai o sintagma-Wh para a posição mais alta, resultando no que se vê em (36). Apesar de se poder com essa análise dar conta de alguns fatos concernentes à derivação desse tipo de estrutura, ainda falta explicar dados como (37) e a agramaticalidade de dados como (38). Está claro que, com uma entonação focal (seja ela ascendente ou descendente) sobre o sintagma-Wh, as sentenças são perfeitamente viáveis, como o que se vê em (5) e (6) b, repetidos a seguir como (37) a e b; sem essa entonação, as sentenças não convergem (38) a e b. (37) a. O João viu QUEM↑↓ espirrar? b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar? (38) a. *O João viu quem espirrar. b. *A Maria ouviu quem chorar. A questão que se põe aqui é: como a derivação de (37) ocorre? Avaliemos essa questão. 970 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 4.2 Aparente Wh in-Situ e a periferia interna da sentença Já sabemos que, em sentenças ininitivas encaixadas como as que se avaliam aqui, Whs têm de estar se movendo abertamente, ou não seria possível a derivação de (36). Também já icou claro que se pode falar em um traço [–interpretável] de foco, que interage para a existência de movimento para posições focais. Agora, restam duas questões basilares: 1) Em (37), como se dá a valoração de um traço de foco (e sincreticamente de um traço [+wh]) com o sintagma-Wh nessa posição (aparentemente in situ), se já se sabe que não há um CP dominando a construção?; 2) Se ocorre de fato movimento aberto do Wh para um posição focal em (37), que posição focal seria essa? Belletti (2004) argumenta que há razões empíricas para considerar a existência de uma periferia interna ao IP com características semelhantes à que se propõe para o CP. Em particular, o fato de que há uma posição focal interna, que intercala posições de tópico. Para ela, entonações distintas, bem como interpretações diferentes são associadas a essas posições, em oposição às posições paralelas na periferia da sentença (p. 17). Essas diferenças entoacionais e interpretativas seriam devidas a propriedades da coniguração em si. A área interna ao IP teria a seguinte coniguração: IP (39) I TopP Top FocP Foc TopP Top vP v VP A hipótese básica de Belletti (2004) é que a posição focal na periferia esquerda da sentença está relacionada à interpretação de foco contrastivo, enquanto a posição interna ao IP detém a interpretação informacional. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 971 Considerando que a hipótese da existência de uma periferia do IP esteja correta, passo a argumentar, seguindo Kato (2004), que Whs aparentemente in situ em português do Brasil são na verdade casos de deslocamento curto para a posição de foco interna ao IP.28 Essa hipótese consegue prover uma explicação adequada para o paradigma em (5) e (6). Conforme observado anteriormente, a derivação de (5) e (6)c só é possível, se admitirmos movimento aberto do sintagma-Wh para o especiicador do verbo leve na oração mais alta (em virtude de um traço de borda). Movendo-se em sintaxe aberta para o Spec-vP, o Wh se encontra na periferia da fase e pode ser acessado de lá pela sonda da matriz (o núcleo C) e satisfazer as propriedades desse núcleo funcional.29 Pensemos na estrutura das sentenças ininitivas em discussão aqui (dados como o de (37)). Admitiu-se em 2.3 que o que de fato encontramos em sentenças como (5) e (6) b são TPs encaixados. Assim, supõe-se que o sintagma-Wh mova-se abertamente para Spec-vP, como argumentado anteriormente, e esteja então visível para a sonda Foc0 na periferia do verbo leve da oração matriz. Nesse ponto, ocorre o procedimento de Agree, que valora o traço Wh e a atração do Wh para a posição do especiicador de FocP, ativado pelo traço de foco, que, segundo já se assumiu, funciona como um traço de borda. A derivação se daria da maneira como se vê a seguir: (40) [CP [TP O Joãok [T viuj [FocP QUEMi [Foc0 [TopP [vP QUEMi [vP tk [VP tj [TP QUEMi [VP espirrar]]]]]]]]]]]? Uma pergunta natural a se fazer nesse ponto seria: por que não dizer que a posição focal contra a qual o Wh veriica seu traço de foco encontra-se na periferia projetada no TP encaixado? 28 Para uma visão diferente sobre Whs aparentemente in situ, movimento e WhAgreement, cf. Reintges, LeSourd e Chung (2006). 29 Entende-se que esse movimento seja motivado pela existência de um traço de foco que acaba sendo responsável pelo posicionamento do sintagma-Wh na periferia da fase, o que se constituiria numa espécie de traço de borda (cf. CHOMSKY, 2005; BǑSKOVIČ, 2008b). A periferia da Fase, nesse caso, constitui coincidentemente o ponto em que se dá a checagem do traço de Caso. Também se pode admitir, adotando argumentação mais recente da teoria que o traço de Caso seja atribuído por Agree à distância e que o traço de Foco, aqui entendido como um traço de borda, desloca o sintagma para a periferia da Fase vP. 972 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 A resposta é simples: TPs ininitivos não parecem dispor de uma periferia interna projetada, a julgar pelo que se vê nos dados em (41) a seguir: (41) a. *O JOÃO chegar é importante. b. *A MARIA comprar um carro surpreendeu a todos. c. *QUEM chegar incomodou a todos. Se considerássemos a existência da projeção de uma periferia interna ao TP nesses casos, o sujeito em questão poderia ser focalizado nessa posição específica e as sentenças seriam convergentes, contrariamente aos fatos. Nos contextos em que a ininitiva não é selecionada, o foco tem de recair sobre todo o TP: (42) a. O JOÃO CHEGAR é importante. b. A MARIA COMPRAR UM CARRO surpreendeu a todos. Apenas (42)a é a resposta apropriada para a pergunta: o que é importante?, não (41)a; assim como somente (42)b responde adequadamente à pergunta: o que surpreendeu a todos? E não (41)b. Seja (37) repetido a seguir como (43): (43) a. O João viu QUEM↑↓ espirrar? b. A Maria ouviu QUEM↑↓ chorar? Em (43), o sujeito-Wh pode ser focalizado, ao passo que em (42) – sentenças ininitivas não encaixadas – só é possível focalizar todo o TP. Conclui-se que, em casos como (43 a e b), o sujeito-Wh precisa estar sendo focalizado no TP matriz e não no encaixado, já que se supõe não haver uma posição focal no TP ininitivo. Conforme se argumentou anteriormente, muitas das propriedades de T são derivadas da relação dessa categoria com C, como a presença de traços-φ ou de traços EPP. É provável que a capacidade do vP de projetar uma periferia esteja também diretamente condicionada ao fato de ser encabeçado por um T que seja necessariamente selecionado por C. TPs ininitivos (não selecionados por C, portanto) não conteriam um vP capaz de projetar uma periferia. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 973 Resta avaliar, então, o que causa a agramaticalidade em sentenças como (44) a e b. (44) a. *O João viu quem chegar b. *A Maria ouviu quem chorar Considere-se que, se o Wh (quem) em questão não atingir abertamente o especiicador do verbo leve da matriz, o domínio dessa fase sofrerá Spell-Out, assim que ela se completar, e nada mais poderá ser acessado em seu interior para quaisquer operações posteriores do sistema; isso constitui o que se chama PIC (Condição de Impenetrabilidade da Fase). Suponhamos, assumindo Boškovič (2008b),30 que a PIC seja algo de natureza estritamente fonológica31 e que certo elemento (dotado de uma espécie de traço de borda – uK) precisa ser movido para a periferia de uma dada fase, para atender a exigências da fonologia. Nessa posição, esse elemento acha-se disponível para ser acessado pela derivação em fases posteriores, podendo ser pronunciado em outra posição na sentença. Imaginemos, como já se argumentou, que seja exatamente o traço de Foco o responsável pelo movimento aberto do sintagma-Wh para o domínio do verbo leve da matriz. Um sintagma-Wh nesse tipo de construção que não adentre a Numeração portando um traço de Foco não é movido e, nesse caso, preso dentro da fase mais baixa, contém um traço-Wh não valorado, o que explica a má-formação das sentenças. Se a ausência do traço de Foco resulta no não-alçamento do sintagma-Wh em sintaxe aberta para o domínio do verbo leve da matriz, então, esse elemento não acessa a projeção Focal no domínio do TP mais alto, nem tampouco conseguirá atingir o CP da matriz, e permanecerá Ponho aqui de lado especiicidades da proposta de Boškovič (2008b), que representa, na verdade uma revisão do sistema Agree de Chomsky. Segundo essa nova ideia, o item lexical dotado de um traço K (uK) é movido para a periferia da fase e, na posição de especiicador de uma projeção funcional, torna-se a sonda, busca o alvo e dispara Agree. Trata-se, portanto, de uma inversão de EPP. É provável que uma análise nesses termos seja bastante interessante. Todavia, como disse, ponho de lado essas questões especíicas e assumo a ideia de que a PIC tenha mesmo natureza absolutamente fonológica. 31 Segundo essa visão, por razões interpretativas, sucessivas fases podem ser violadas pelo sistema computacional, mas em termos fonológicos, nada pode ser retirado do interior de uma fase quando ela se completa e seu domínio é enviado para Spell-Out. 30 974 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 com um traço Wh não valorado;32,33 dessa forma, a sentença não converge em LF. Assim, a conclusão a que se chega é que o que se tem em sentenças como (37) é um caso de Wh aparentemente in situ. Sintagmas-Wh nessas sentenças encontram-se de fato fora da sua posição de base, movidos por um traço de borda (nesses casos um traço de Foco) (o que tem a ver com as propriedades do sujeito de uma ininitiva que complementa um verbo de percepção) e pela necessidade de valorar um traço de Wh, numa projeção focal no domínio do TP mais alto. Se a hipótese de que a focalização de sujeitos de ininitivas que complementam verbos como ver e ouvir é um recurso para explicar sentenças com wh estiver correta, ela faz uma previsão de que seja possível focalizar outros DPs nas mesmas condições, a saber, sujeitos 32 Considero aqui que o CP da matriz contenha um traço-Wh forte a julgar pela existência de sentenças como (i) a e b, em que o Wh se encontra na periferia da matriz: (i) a. Quemi o João viu ti chorar? b. Quemi a Maria viu ti espirrar? Se assumirmos a visão de que o traço formal é algo que se encontra no item lexical e não no núcleo funcional (cf. SIMPSON, 2000; BOŠKOVIČ, 2008a, 2008b) talvez possamos dar a esse tipo de sentença um tratamento interessante. Um traço de borda (uK) no sintagma-Wh seria responsável por posicioná-lo no especiicador de um núcleo na borda de uma fase, para que ele, como sonda, busque um núcleo compatível em termos de traços, libere Agree e resolva seus requerimentos formais. Entretanto, se assumimos essa visão e admitimos que em (i) a e b há projeções focais antes do CP da matriz nas quais o traço de foco do sintagma-Wh poderia ter sido veriicado, encontramos um problema para essa análise. Se assumirmos com Chomsky (1995) o sistema Agree tradicional em que o núcleo funcional é o portador do traçoWh que deve ser eliminado e que um mesmo sintagma-Wh pode participar de várias operações de checagem numa mesma derivação, resolvemos esse dilema. Como se trata de uma questão controversa, deixo-a aqui em aberto para investigações futuras. 33 Outra questão relevante é a seguinte: se não consideramos que esses dados tenham natureza interrogativa, temos de levar em conta o fato de que o C0 da matriz não contém um traço-Wh forte; sua força é declarativa. Mesmo que todo o procedimento descrito para os dados com foco no Wh se processe, o sintagma-Wh termina a derivação portando um traço não veriicado. O fato é que dados desse tipo podem representar uma evidência em favor de hipóteses como as de Boškovič (2008b) e Simpson (2000), segundo as quais é o item lexical em si (o sintagma-Wh), em vez do núcleo C0, quem contém um traço que precisa ser veriicado. Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 975 de sentenças ininitivas complementos de verbos de percepção, já que as operações previstas num e noutro caso são basicamente similares.34 Observe-se que isso é de fato possível, em contextos discursivos especíicos, em que as condições de focalização se aplicam: (45) Cada um dos rapazes viu uma menina chorar; o João viu QUEM chorar, a Maria ou a Ana? (46) O João viu a MARIA chorar. Um problema para esta análise vem com dados como o que se apresenta em (47) a seguir. (47) O João viu a Maria beijar QUEM? Se a hipótese de que a sentença ininitiva não projeta uma periferia estiver de fato correta, não deveria ser possível derivar Wh focalizado nas condições em que está, conforme o que propõe Kato (2004). Essa questão, dada a assimetria que se veriica entre posições se sujeito e complemento para a aplicação de operações sintáticas, ica em aberto para investigações posteriores. 5 Considerações inais Procurei mostrar neste trabalho que sentenças com Wh aparentemente in situ em perguntas encaixadas ininitivas do português representam na verdade casos de Whs movidos para uma posição focal interna ao TP. Tentei mostrar que o movimento para foco deve ser entendido – num viés Minimalista – como um procedimento de checagem de traços e que só uma opção de movimento aberto para Foco em português pode explicar os fatos posto pelos dados em (5) e (6)c. Busquei evidenciar que uma interação entre as propriedades de ininitivas que complementam verbos de percepção e a questão do deslocamento-Wh e de procedimentos de focalização são a chave para tentar explicar o paradigma posto em (5) e (6). 34 Ressalte-se aqui que isso pode ser suposto desde que o DP, qualquer que seja ele, adentre a derivação portando um traço de foco, assim como se supõe que ocorra com o sintagma-wh. 976 Revista de Estudos da Linguagem, v. 26, n. 2, p. 945-979, 2018 Em minha argumentação, também busquei mostrar que, em português, o traço-Wh de um sintagma dessa natureza é checado sincreticamente junto com um traço de Foco numa projeção focal, considerando o fato de que as sentenças postas em questão aqui só convergem se o Wh recebe um Stress focal proeminente. Uma análise foi proposta para interrogativas infinitivas encaixadas com base em uma tipologia verbal. Argumentou-se que em sentenças ininitivas encaixadas que contêm um verbo inacusativo o traço de Foco do sintagma-Wh é checado contra a projeção focal que domina o verbo leve da matriz e que, em casos de verbos inergativos ou transitivos comuns, o traço de Foco (e conjuntamente o traço-Wh) é checado contra o núcleo Foc0 projetado no domínio do TP encaixado. Agradecimentos Agradeço a Esmeralda Negrão pela discussão desse trabalho no XXXI Encontro Nacional da ANPOLL, ocorrido em Campinas em 2016. Suas ideias foram incrivelmente valiosas. Eu assumo, é claro, toda a responsabilidade pelo que está dito aqui. Referências BELLETTI, A. Aspects of the low IP area. In: RIZZI, L. (Ed.). The structure of CP and IP: the cartography of syntactic structures. New York: Oxford University Press, 2004. BIANCHI, V. Consequences of antisymmetry: Headed Relative Clauses. Berlin: Mouton de Gruyter, 1999. Doi: https://doi. org/10.1515/9783110803372 BORER, H. I-subjects. 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