ISSN
Impresso: 0104-0588
On-line: 2237-2083
V.27 - Nº 1
Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 27 n. 1
p. 1-453
jan./mar. 2019
REvista dE Estudos da liNguagEm
universidade Federal de minas gerais
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REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG,
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1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp.
1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun)
Nova Numeração:
1997 v.6, n.2 (jul/dez)
1998 v.7, n.1 (jan/jun)
1998 v.7, n.2 (jul/dez)
1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed.
CDD: 401.05
ISSN:
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Sumário / Contents
Adjetivos graduais e a interpretação de maximizadores
e minimizadores
Gradable Adjectives and the Interpretation of Maximizers
and Minimizers
Luisandro Mendes de Souza .............................................................
13
La variación en la representación del complemento verbal y la
enseñanza de PB a hispanohablantes: un análisis de materiales
didácticos de PLE
The Variation in the Representation of the Verbal Complement
and the Teaching of BP to Spanish Speakers: an Analysis of
Didactic Materials of PFL
Thaís Leal Rodrigues ........................................................................
49
Pesquisa longitudinal: a evolução do uso lexical de uma criança
dos 5 aos 22 meses de vida em um diário parental
Longitudinal Research: lexical use evolution of a child from
5 to 22 months of age as documented in a parental diary
Pedro Perini-Santos
Lídia Ferreira Santos
Adriana Nascimento Bodolay
Jéssica Leal .......................................................................................
73
A reinvenção da gramática em sala de aula
The Reinvention of Grammar in the Classroom
Gustavo Augusto Fonseca Silva ........................................................
105
O gênero da expressão convencional ‘cabra’: um modelo categorial
com extensões metafóricas e suas implicações de natureza cultural
The Gender of the Conventional Expression ‘Cabra’: A Categorical
Model with Metaphorical Extensions and Its Cultural Implications
Fernanda Cavalcanti
Luciane Ferreira ................................................................................
137
Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção e
percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros
Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and Perception
of Lexical Stress in English by Brazilian Portuguese Speakers
Filipe Modesto
Plinio Almeida Barbosa ....................................................................
165
Corpus CEFALA-1: Base de dados audiovisual de locutores para
estudos de biometria, fonética e fonologia
Corpus CEFALA-1: Audiovisual Database of Speakers for Biometric,
Phonetic and Phonology Studies
Arlindo Follador Neto
Adelino Pinheiro Silva
Hani Camille Yehia ...........................................................................
191
Efeito de treinamento de memória de trabalho em crianças
sem diagnósticos de comprometimento cognitivo, estudantes
das séries iniciais do Ensino Fundamental
Working Memory Training Effect in Elementary School Children
Without Diagnosis of Cognitive Impairment
Lidiomar José Mascarello .................................................................
213
Halliday’s Mood System: A Scorecard of Literacy in the English
Grammar in an L2 Situation
O sistema de modo de Halliday: um quadro de resultados sobre
o conhecimento da gramática da língua inglesa como L2
Taofeek Olaiwola Dalamu ................................................................
241
O enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”, do Jornal Extra:
o signo ideológico “Guerra” em estudo
The Verbivocobisual Utterance “Guerra do Rio”, of the Jornal
Extra: the Ideological sign “War” in Study
Grenissa Bonvino Stafuzza
Giovanna Diniz dos Santos ...............................................................
275
Jurisprudência sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha
a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar:
análise pragmático-cognitiva
Jurisprudence About the Extension of the Scope of Maria da Penha
Law to Heterosexual Men as Victims of Domestic and Family
Violence: Cognitive-Pragmatic Analysis
Fábio José Rauen
Bárbara Mendes Rauen ......................................................................
299
Sistemas de discurso e eficácia na comunicação em contextos
de promoção da saúde: contribuições da técnica do detalhamento
acadêmico
Discourse Systems and Efficiency in Communication in Health
Promoting Contexts: The Academic Detailing Technique’s
Contributions
Dóris Cristina Gedrat
Gehysa Guimarães Alves .................................................................
333
Da Carta de Princípios (1979) à Carta ao povo brasileiro (2002):
variações ethicas do Partido dos Trabalhadores
From the Charter of Principles (1979) to the Letter Adressed to
Brazilian People (2002): Ethical Variations of the Worker’s Party
Melliandro Mendes Galinari
Luciana de Souza Pereira ..................................................................
359
Análise do Discurso no blog RadFem: ser mulher para além do corpo
RadFem Blog’ Discourse Analysis: Being a Woman Beyond the Body
Rafael De Tilio
Paola Marques Del Nero ...................................................................
401
Mulher, verão e cerveja: a produção de sentidos na peça publicitária
da cerveja Itaipava, no Brasil
Women, Summer and Beer: The Production of Meanings in the
Itaipava Adds, in Brazil
Tatiana Barbosa de Sousa
Guilherme Beraldo de Andrade ........................................................
423
Cronotopia: um fenômeno de largo espectro
Chronotopy: a broad-spectrum phenomenon
Maria Marta Furlanetto .....................................................................
453
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
Adjetivos graduais e a interpretação de maximizadores
e minimizadores
Gradable Adjectives and the Interpretation
of Maximizers and Minimizers
Luisandro Mendes de Souza
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil
luisandro.mendes@ufrgs.br
Resumo: O objetivo principal do artigo é mostrar que a distinção entre adjetivos graduais
relativos e absolutos é relevante gramaticalmente em português, e o objetivo secundário
é discutir a interpretação dos maximizadores como completamente e dos minimizadores
como ligeiramente. Aplicamos os testes propostos por Kennedy (2007) e verificamos
que os modificadores completamente e ligeiramente são sensíveis à estrutura da escala,
como previsto. Contudo, diferentemente do inglês, os adjetivos relativos em português
aceitam a modificação pelo minimizador ligeiramente na leitura gradual. Mostramos
que isso é um efeito da sua semântica, que é sensível a padrões mínimos (sejam eles
contextuais ou lexicais). Identificamos também que a classe dos adjetivos que geram
escalas fechadas possui duas subclasses: pares como cheio/vazio possuem uma escala
com lacuna extensional; enquanto um par como aberto/fechado possui transição natural
entre os polos. Sobre a semântica dos modificadores, vemos que completamente possui
duas leituras, uma mereológica e uma gradual, enquanto ligeiramente, além da leitura
gradual, produz uma leitura pragmática de atenuação.
Palavras-chave: semântica; adjetivos graduais; atenuadores; maximizadores.
Abstract: The first aim of the paper is to show that the distinction between relative
gradable adjectives and absolute gradable adjectives has grammatical import in
Portuguese and the second aim is to discuss the interpretation of maximizers like
completamente ‘completely’ and minimizers like ligeiramente ‘slightly’. We applied
the tests suggested in Kennedy (2007) and we verified that the modifiers completamente
and ligeiramente are sensitive to the adjectival scale structure, as predicted. However,
unlike English, relative adjectives in Portuguese accept the modification by ligeiramente
in the degree reading. We show that this is yield by its semantics, which is sensitive
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.13-48
14
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
to minimum standards (being them contextual or lexical). We identified that the class
of adjectives which have closed scales has two subclasses: pairs like cheio/vazio ‘full/
empty’ have an extension gap; while pairs like aberto/fechado ‘open/closed’ have a
natural transition between the sides of the scale. On the modifiers semantics, we saw
that completely has two readings, one mereological and another gradable, whereas
ligeiramente, besides the degree reading, yields a pragmatic attenuation reading.
Keywords: semantics; gradable adjectives; attenuators; maximizers.
Recebido em 23 de novembro de 2017
Aceito em 20 de março de 2018
Introdução
A literatura sobre a semântica dos adjetivos, a partir de uma
abordagem referencial do estudo do significado, divide o conjunto dos
adjetivos graduais em dois subconjuntos: os relativos (1a) e os absolutos
(2) (cf. KENNEDY, 2007; KENNEDY; McNALLY, 2005; DEMONTE,
2011; van HOOIJ, 2011; BURNETT, 2014). A diferença básica entre
os dois é que os primeiros dependem de dois aspectos contextuais para
determinarmos o valor de verdade de uma sentença como (1a), em que
o adjetivo é o predicativo: qual é o padrão para os indivíduos serem
considerados altos no contexto em que a sentença é proferida e qual é a
classe de comparação, i.e., qual é o conjunto de indivíduos que o falante
tem em mente quando afirma que x é A. Em essência, para saber o padrão,
temos que saber a que classe de indivíduos João pertence na situação,
pois o padrão para ser considerado (positivamente) alto pode mudar se
João for um menino de dez anos ou um adulto do sexo masculino, por
exemplo. Por outro lado, note que, para decidirmos se (2a) é verdadeira,
basta que verifiquemos o estado da toalha. Estritamente falando, uma
toalha seca é uma toalha sem umidade alguma. Já (2b) será verdadeira se
a toalha apresentar qualquer grau de umidade. Isso mostra que adjetivos
como os em (2) não dependem de fatores contextuais. Se há algum, ele
parece residir na transição entre os polos da escala, como veremos.1
Note que no exemplo (1) usamos ser e nos exemplos em (2), estar. Ser ficaria estranho
com as sentenças em (2). Não vamos discutir essa diferença no artigo, cf. Toledo
e Sassoon (2011), mas veja que alto é um predicado que denota uma propriedade
1
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
(1)
João é alto.
(2)
a. A toalha está seca.
b. A toalha está molhada.
15
Em resumo, enquanto para se decidir o valor de verdade de
(1) dependemos do que se considera como alto (isto é, independe das
propriedades físicas do sujeito da oração), para (2) basta que se avalie o
estado da toalha (modulo, imprecisão, como veremos).
Além dessa diferença entre as duas classes, muitos autores
perceberam diferenças entre elas que parecem estar relacionadas com as
escalas que os pares de adjetivos polares codificam. Foi essa a motivação
de estudos como os de Rotstein e Winter (2004) ou de Kennedy e McNally
(2005). Se esse for o caso, então podemos mostrar que essas duas classes
de adjetivos envolvem escalas diferentes através de algum modificador
que seja sensível à estrutura dessa escala.
Os testes usados para identificar essas estruturas escalares baseiamse na diferença de interpretação e compatibilidade semântica que os
adjetivos apresentam na combinação com modificadores sensíveis ao padrão
natural dos adjetivos absolutos ou à ausência dele, no caso dos relativos.
Em tese, em português, completamente e totalmente seriam exemplos
típicos de modificadores de grau máximo, como seco, enquanto levemente
e ligeiramente seriam sensíveis a adjetivos que requerem apenas um grau
mínimo da propriedade, como molhado. Já os relativos, que não possuem
padrões naturais/lexicais, devem ser anômalos com esses modificadores,
segundo preveem Kennedy e McNally (2005) e Kennedy (2007). Mas será
que o português brasileiro se comporta como a literatura prevê?
Mostraremos neste artigo que a resposta é afirmativa para os
testes propostos por Kennedy e McNally (2005), embora com algumas
diferenças sutis. Nesse sentido, veremos que as expressões modificadoras
também possuem funções pragmáticas, que precisam ser controladas
para que o teste tenha o efeito esperado. Algo previsto, mas discutido
rapidamente por Kennedy e McNally (2005). É a essa tarefa que o artigo
se dedica na sua maior parte (seção 2). Embora assuma a distinção entre
permanente (individual-level), enquanto seco/molhado são propriedades transitórias
(stage-level). Toledo e Sassoon (2011) não exploram a fundo essa correlação, mas
mostram que relativos tendem a ser predicados individual-level, enquanto absolutos
tendem a ser predicados stage-level.
16
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
adjetivos graduais relativos e adjetivos graduais absolutos, os estudos
de Quadros Gomes (2009, 2011, 2012, entre outros) não apresentam
claramente os testes e as classes, nem discutem a interpretação dos
modificadores maximizadores e minimizadores em seus aspectos
semânticos e pragmáticos. Quadros Gomes (2009, 2011, 2012, e outros
estudos) discute a interpretação de modificadores como todo, muito e
bem e uma das suas conclusões é que os modificadores graduais em
português parecem ser insensíveis à distinção entre adjetivos graduais
relativos e absolutos, sem fazer uma discussão aprofundada das classes
e dos testes para a sua identificação. Preencher esta lacuna é também um
dos propósitos do presente artigo.
Na primeira seção (1.1), fazemos uma rápida apresentação de
alguns fundamentos da semântica dos adjetivos graduais, a partir de um
modelo semântico que assume que temos na ontologia indivíduos como
graus, de tipo <d>, que formam escalas, entendidas como conjuntos
de graus ordenados ao longo de uma dimensão. Nessa perspectiva, a
diferença entre alto e baixo se resume a uma diferença de perspectiva
(ou ordenamento) ao longo da escala de altura (KENNEDY, 1997, 2007).
Autores como van Rooij (2011) e Burnett (2014) buscam dar conta do
comportamento dessa classe de adjetivos a partir de um modelo semântico
que não assume entidades de tipo <d> ou escalas como entidades
linguísticas. Sem aprofundar a discussão entre os dois modelos, o que
demandaria um artigo inteiramente dedicado ao tema, na abordagem
gradual adjetivos graduais são vistos como relações entre indivíduos e
graus, predicados de tipo <d,et> (von STECHOW, 1984) – uma função
de um grau a um indivíduo a um valor de verdade – ou tipo <ed>, na
abordagem de Kennedy (1997, 2007) – uma função de um indivíduo a
um grau. Numa abordagem sem graus, todos os adjetivos são de tipo
<et> – funções de indivíduos a valores de verdade –, e a diferença entre
os não-graduais e os graduais é que estes geram lacunas extensionais,
isto é, o modelo precisa que algumas funções desse tipo sejam parciais
(em algumas situações ela não leva nem ao verdadeiro nem ao falso)
para explicar as diferenças entre as duas classes de adjetivos.
Por fim, a seção (3) discute alguns aspectos da semântica
do modificador de grau máximo completamente e do minimizador
ligeiramente, visando explicar as leituras atestadas na aplicação dos
testes na seção (2.1) e a relação com a semântica dos adjetivos graduais
que modificam.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
17
1 Noções básicas da semântica da gradação
1.1 O que são adjetivos graduais
Os adjetivos graduais são adjetivos que denotam propriedades
que podem ser graduadas. Essa definição, tomada de Kennedy (1997),
soa redundante porque o teste principal para identificar um adjetivo
gradual é a possibilidade de ele ser modificado por graduadores lexicais
(intensificadores como muito ou atenuadores como pouco) ou construções
graduais (orações comparativas canônicas com mais/menos...que, tão...
quanto; a oração consecutiva com tão... que), pelo menos no caso do
português brasileiro e de línguas que exibem expressões graduadoras.
O contraste entre (3) e (4) é bem claro.
(3)
a. O João é muito alto.
b. O João é mais alto que todos os seus irmãos.
c. O João é tão alto que precisa de calças sob medida.
(4)
a. #A mesa é muito retangular.
b. #A mesa é mais retangular que a porta.
c. #A mesa é tão retangular que poderá ser usada para a reunião.
As sentenças em (4) são anômalas semanticamente. Não quer
dizer que sejam não-interpretáveis ou agramaticais.2 Se interpretáveis,
adjetivos não-graduais modificados por graduadores possuem uma
leitura diferente da que atribuímos para os casos em (3). Por exemplo,
(3a) expressa que “em relação ao conjunto de indivíduos que são
positivamente altos no contexto, João se destaca entre eles”, ou “a
altura de João excede significativamente o padrão contextual para os
indivíduos que são positivamente altos no contexto”. Esta última é a
paráfrase usualmente assumida para o papel semântico de expressões
como very (cf. von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005;
DOETJES, 2008); e a primeira seria a paráfrase numa abordagem sem
2
Sobre a diferença, ver Heim e Kratzer (1998). Em tese, o sistema gramatical deveria
gerar apenas sentenças bem formadas sintaticamente e estas seriam o input para a
interpretação semântica. Contudo, podemos ter sentenças bem formadas sintaticamente
que podem gerar problemas de interpretação. É nesse sentido que vamos nos referir a
‘anomalias semânticas’.
18
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
graus (KLEIN, 1980). Não me parece haver motivos para acreditar
que essa caracterização não se aplique ao português, pelo menos no
caso da modificação adjetival.3 Agora, intuitivamente não faz sentido
dizer que (4a) expressa que a mesa possui um alto grau da propriedade
‘retangularidade’ e que estou comparando esse grau com as outras mesas
no contexto, ou que a mesa é a mais retangular entre as retangulares.
(4a), se interpretável, expressa que o sujeito da predicação exibe um
grande número de propriedades que é preciso que um objeto tenha para
ser considerado um membro da classe dos objetos retangulares. Ou, de
outro modo, que a mesa está muito próxima de um protótipo de um objeto
retangular, cf. leitura de Demonte (2011).
Na abordagem proposta por Kennedy (1997, 2007, inter alia),
a diferença entre os adjetivos graduais e não-graduais é capturada
assumindo que os não-graduais são funções de indivíduos a valores de
verdade, tipo <e,t>, enquanto adjetivos graduais são funções de medida,
funções (provavelmente parciais) de indivíduos a graus em uma escala,
tipo <e,d>. Exemplificando, o adjetivo retangular tem a entrada lexical
em (5a), que apresenta sua versão na representação usando lambdas, que
explicita seu papel composicional, ou na representação usando a notação
da teoria de conjuntos.4
(5)
a. [[retangular]] = λxe. RETANGULAR = {x: x é retangular}
b. [[alto]] = λdd. λxe. ALTURAalto(x) ≥ d =
{d ∈ DALTURA & x ∈ XINDIVÍDUOS: x possui pelo menos o grau d
na escala de altura}
Nesse modelo semântico, o papel de transformar funções de
medida em predicados adjetivais é da morfossintaxe gradual. Note
que em (5b) não temos o significado esperado para um predicado de
indivíduos, pois o primeiro argumento que a função alto requer é um
3
Ver também Quadros Gomes (2009, 2012) para alguns argumentos de que o resultado
da modificação de adjetivos em português brasileiro e inglês por modificadores como
very e muito possui resultados semânticos diferentes.
4
Isso quer dizer que, para se tornar uma expressão completa, o predicado precisa ter
seu argumento semântico, representado pela variável x, preenchido por alguma entidade
do domínio discursivo, e que essa entidade precisa ser de tipo semântico <e>, i.e., que
esteja dentro do conjunto dos indivíduos no universo do discurso.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
19
grau, não um indivíduo. Tornar a entrada lexical do adjetivo em (5b)
uma função de indivíduos a valores de verdade é tarefa de um operador
não pronunciado, pos (abreviação de ‘positivo’), cuja entrada lexical é
dada em (6), adaptada de Kennedy (2007).
(6) [[ pos ]] = λGed. λxe. ∃d[G(x) & d ≥ d’standard]
O operador captura dois fatos cruciais: adjetivos graduais tendem
a ser vagos (no sentido que pode haver situações em que é difícil decidir se
x é A é verdadeira ou falsa), e o valor da variável d, o grau que o indivíduo
exibe da propriedade, é relacionado com um valor contextual, um padrão
– o grau d’ na fórmula em (6). O grau dado linguisticamente é chamado
de ‘grau referencial’. Assim, pos, em essência, é a relação “maior ou
igual” entre um grau referencial e um grau padrão. Esquematicamente
temos o seguinte: pos(grau referencial, grau padrão). A relação entre os
dois graus é expressa pelo símbolo ‘≥’ na entrada lexical.
pos requer uma sintaxe como a que vemos em (7). Na Forma
Lógica (FL), a relação entre o SN sujeito e o SA predicado é mediada
por esse operador, um argumento sintático do adjetivo.
(7)
a. FL: [SF [SN x] [SV é [SA pos [A Adjetivo]]]
c. [[ pos A ]] = λxe. ∃d[ESCALAADJETIVO(x,d) & d ≥ d’standard]
Essa caracterização de pos é problemática formalmente, pois
para alguns autores ele é uma estipulação abstrata (KLEIN, 1980). De
qualquer forma, o operador é uma relação entre um grau de referencial e
um grau padrão. No caso dos graduais relativos (que são vagos), esse grau
provém do contexto (parece ser uma variável livre, como um pronome
não ligado, por isso a variável d’ na fórmula (6) não está presa por um
quantificador), mas no caso dos absolutos, o grau padrão é ‘natural’, num
sentido que será explicado na próxima seção.
Vejamos, então, algumas diferenças entre os adjetivos graduais
relativos e os graduais absolutos.
1.2 Os absolutos e os relativos
Na literatura sobre os adjetivos graduais, vários autores
perceberam algumas diferenças entre pares de adjetivos dentro do
conjunto. Contudo, a síntese dessa diferença só começou a ficar mais
20
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
clara a partir dos trabalhos de Rotstein e Winter (2004) e Kennedy e
McNally (2005).
Cruse (1980 apud ROTSTEIN; WINTER, 2004) percebeu
que, no conjunto de adjetivos graduais, há alguns que possuem um
comportamento diferenciado em relação à negação. Compare (8) e
(9). Em (8a) temos a negação do elemento positivo do par, alto, e em
(8b) a do negativo, baixo. Supondo que alto/baixo sejam perspectivas
diferentes da escala de altura, a negação nos mostra que não há uma
transição natural entre esses dois polos. Afinal, se eu nego que o sujeito
é alto, como em (8a), não podemos inferir que o sujeito esteja no lado
oposto da escala, pois ele pode estar num ponto intermediário (“-/->”
simboliza a impossibilidade de se fazer essa inferência). O mesmo
ocorre com a negação de baixo, que vemos em (8b). Na verdade, essa
é uma característica fundamental da vagueza desse tipo de adjetivo: a
lacuna extensional. Adjetivos dessa classe são vagos não porque o que
conta como alto/baixo muda de um contexto para outro, mas porque há
situações em que é difícil decidir se o indivíduo está num lado ou outro
do espectro (pense em indivíduos que estão na média, comparando-se
com outros da mesma classe) (van ROOIJ, 2011).
(8)
a. A Ana não é alta. -/-> A Ana é baixa.
b. A Ana não é baixa. -/-> A Ana é alta.
Vejamos o que ocorre agora quando negamos os pares de
adjetivos absolutos limpo/sujo, que, em tese, como o par acima, também
são perspectivas na mesma escala. O que vemos em (9) é que a negação
de um acarreta o outro. Adicionalmente, note que no caso (9a) a negação
possui um efeito de atenuação, que precisa ser deixada de lado, nesse
caso. Por exemplo, ao invés de fazer a afirmação mais forte A toalha está
suja, o falante escolhe a forma marcada A toalha não está limpa. Esse
efeito pode ser explicado como uma implicatura. Se o falante está sendo
cooperativo, e escolhe usar uma forma mais custosa, com mais material
linguístico (violando, portanto, a Máxima do Modo), ele está querendo
dizer mais do que disse. Comparando com (9b), vemos que esse efeito
não surge, talvez porque suja é o elemento negativo (logo, o elemento
marcado) do par. Ou seja, embora sejam sinônimas de conteúdo, as
sentenças em (9) possuem efeitos pragmáticos diferentes.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
(9)
21
a. A toalha não está limpa. → A toalha está suja.
b. A tolha não está suja. → A toalha está limpa.
Há alguns falantes que também consideram que podemos admitir
como verdadeiro um proferimento como A toalha está limpa, mesmo que
ela já tenha sido usada uma ou duas vezes (suponha que estamos falando
de uma toalha de banho). Esse é o fenômeno que Kennedy (2007) vai
chamar de ‘imprecisão’.5 Grosseiramente, a imprecisão se distingue da
vagueza porque a transição entre os polos de pares que a geram é ‘natural’
(não temos lacunas extensionais). Tomado literalmente, qualquer grau
de sujeira já é suficiente para decidirmos se x está sujo é verdadeiro ou
não. Rotstein e Winter (2004), por outro lado, assumem que esse caso
mostraria que mesmo pares absolutos como seco/molhado ou limpo/sujo
estão sujeitos à influência contextual.
É preciso considerar que em certas situações admitimos como
limpos objetos que em outras situações poderiam ser considerados sujos.
Note que, fundamentalmente, o que estamos mudando é o lugar em que a
transição ocorre, em que momento algo passa a ser considerado sujo. Mas
isso requer, como estamos vendo, alguma informação contextual: o que
conta como limpo/sujo; e se há acordo (ou desacordo) entre os falantes em
relação a essa transição.6 Isso quer dizer que o caso default é o que vemos
em (9), não essa possível manipulação da transição entre limpo/sujo, que
um amante de vagueza poderia usar para argumentar que esse par não é
muito diferente de alto/baixo. Por fim, (10) mostra que, por ocorrerem
naturalmente em orações comparativas, esses adjetivos são graduais.
(10) A tolha azul está mais limpa/suja que a toalha branca.
Um par curioso de adjetivos absolutos é cheio/vazio. Para
decidir se uma sentença como O copo está cheio/vazio é verdadeira, não
precisamos olhar para o contexto, apenas para quanto líquido o copo
5
Uma noção que Kennedy atribui a Pinkal (1995). Esse fenômeno também pode
ser enquadrado naquilo que Lasersohn (1999) vai chamar de ‘auréola pragmática’:
admitimos como verdadeiras sentenças que, tomadas em sentido estrito, seriam falsas.
6
Isso poderá levar o leitor a se perguntar: mas isso não tornaria esses adjetivos também
vagos, já que temos dependência contextual? Em certo sentido sim. A imprecisão seria
um tipo de vagueza, em sentido mais amplo. De qualquer forma, tentarei mostrar que
há uma diferença básica que separa as duas classes e isso se reflete na combinação com
os modificadores. Mais sobre essa diferença ver Kennedy (2007).
22
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contém. Isso quer dizer que esse par não apresenta vagueza, portanto, é
um par de adjetivos absolutos por esse critério. Contudo, como vemos
em (11) a negação de um elemento do par não acarreta o outro. (11a)
mostra que negar que o copo não está cheio, não acarreta que ele esteja
vazio. Note que não temos efeito de atenuação nesse caso, justamente
pela existência dessa lacuna entre o limite do que conta como cheio e o
limite do que conta como vazio. Para exemplificar, suponha que você
tenha pedido um copo de suco em um restaurante, e o garçom lhe traga
um copo com três quartos da capacidade do copo preenchido com o suco.
Você achará a situação inusitada, pois, culturalmente, temos a expectativa
de que o copo venha cheio, embora não absolutamente cheio, ou ‘até a
boca’. Assim, admitimos que um copo de suco esteja cheio mesmo que
ainda reste, digamos, uns 5ml de espaço no copo.
(11) a. O copo não está cheio. -/-> O copo está vazio.
b. O copo não está vazio. -/-> O copo está cheio.
Esses fatos ainda são um pouco confusos e não separam
claramente as classes: temos relativos sem transição natural, alto/baixo;
absolutos com transição natural, limpo/sujo, seco/molhado; e absolutos
com lacuna, portanto, sem transição natural, caso de cheio/vazio. Cruse
(1980) divide esses adjetivos em dois conjuntos: os complementares,
como limpo/sujo, e os não-complementares, como o longo/curto.
Mas note que a única evidência até agora para a divisão da classe é o
comportamento sob negação.
Cruse (1980) também mostrou que há diferenças na compatibilidade
com almost ‘quase’, um fato que Rotstein e Winter (2004) exploram com
mais cuidado. Esse modificador pode aparecer com diferentes categorias.
Por exemplo, em português ele também modifica verbos.7 No domínio
adjetival, quase é anômalo com adjetivos graduais relativos, como longo/
curto, que não possuem um limite natural, nem mínimo, nem máximo,
nem uma transição natural entre os polos, cf. (12a). Claro, podemos,
7
Ver Cançado e Amaral (2016) para uma discussão sobre o papel de quase na semântica
verbal. Esse modificador é sensível à estrutura interna dos eventos, por isso as autoras
o usam como teste mais seguro na identificação de accomplishments. (i) possui duas
leituras: o menino quase iniciou o processo de construir o castelo; ou o menino quase
concluiu a construção do castelo de areia.
(i) O menino quase construiu um castelo de areia.
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23
linguisticamente, criar um limite, como em (12b), em que o suficiente
para participar do concurso estabelece um grau máximo (suponha que
70 páginas seja o limite mínimo para participar de um concurso literário).
(12b) será verdadeira se o livro tiver umas 60, ou entorno disso.
(12) a. #Esse livro é quase longo/curto.
b. Esse livro é quase longo o suficiente para participar do
concurso.
Comparemos agora com os adjetivos absolutos. Como limpo é
o final da escala (ausência total de sujeira), um copo quase limpo é um
copo que está próximo do grau máximo da escala, mas ainda não está
lá. Em contraste, se sujo significa “qualquer grau mínimo na escala de
sujeira”, ele não impõe um limite máximo natural do que conta como
sujo, por isso a anomalia. O leitor poderia considerar que (13b) pudesse
descrever um copo que ainda não estivesse sujo o suficiente. Mas veja
que neste caso, provavelmente, a interpretação envolve algum limite
posto na situação, algo como esse copo está quase sujo para ser trocado
por outro limpo ou esse copo está quase sujo o suficiente. Veja que o
par seco/molhado se comporta da mesma forma – supondo que seco é
“ausência de umidade” (isto é, o grau 0 na escala de umidade) e molhado
“qualquer grau mínimo de umidade”.
(13) a. Esse copo está quase limpo.
b. #Esse copo está quase sujo.
(14) a. A toalha de banho está quase seca.
b. #A toalha de banho está quase molhada.
Claro. Há uma diferença importante aqui. Mesmo que possamos
criar um contexto em que quase longo/curto seja aceitável, ou com quase
sujo, não precisamos disso para quase limpo.
Rotstein e Winter (2004) nomearam os adjetivos como limpo
‘totais’ (= nenhum grau de sujeira) e os como sujo ‘parciais’ (=algum
grau de sujeira). E discutiram como a semântica de almost ‘quase’ se
articula com a estrutura das escalas desses dois tipos de adjetivos. Para
eles, almost é bom com totais e ruim com parciais porque requer um
predicado que denote uma estrutura escalar com limite máximo. Na
proposta deles, almost A denota um intervalo curto na escala associada a
24
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A, que é disjunto à denotação de A, mas adjacente a ele. Uma toalha quase
seca está muito próxima do grau máximo de seca, mas ainda não está lá.
Uma tolha quase molhada é inaceitável porque qualquer grau mínimo de
umidade já torna a toalha molhada. Assim, a escala de molhado supõe
apenas um mínimo, mas não um valor máximo, deixando a modificação
por almost indefinida, por isso a anomalia em exemplos como (15b) e
(16b) – exemplos dos autores.
(15) a. The towel is almost dry.
b. #The towel is almost wet.
(16) a. The towel is wet but it is almost dry.
b. #The towel is dry but it is almost wet.
Em essência, para os autores os adjetivos graduais estariam
associados a três tipos de escalas: i) adjetivos relativos: escala aberta,
com padrão mínimo contextual; ii) adjetivos totais: escala com padrão
máximo lexical; ii) adjetivos parciais: escala com padrão mínimo lexical.
Na proposta deles, a escala é particular a cada adjetivo, não ao par de
adjetivos polares, como veremos em seguida.
Por sua vez, Kennedy e McNally (2005) e Kennedy (2007)
propõem que temos quatro tipos de escalas e que a estrutura da escala
é única para cada par. Para eles, a diferença básica entre as duas classes
pode ser resumida na forma como esses adjetivos requerem um padrão.
Enquanto os relativos possuem um padrão que varia contextualmente
e são vagos, os absolutos possuem um padrão natural/lexical e são
imprecisos.8 A estrutura das escalas é representada da seguinte forma:
a) totalmente aberta
b) fechada no grau mínimo
c) fechada no grau máximo
d) totalmente fechada
(-----)
[-----)
(-----]
[-----]
Isso gera um problema para a semântica de pos tal como definida na primeira seção.
De alguma forma, pos é capaz de saber quando o padrão precisa ser buscado no contexto
e quando ele é dado lexicalmente. A segunda parte do artigo de Kennedy (2007) é uma
discussão profunda que tenta justamente lidar com esse aparente paradoxo no seu
modelo: se absolutos não dependem de contexto, pos seria apenas uma função para
transformá-los de funções de medida em predicados de indivíduos?
8
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25
Se essas diferenças são relevantes linguisticamente, poderemos,
então, mostrar que são detectáveis. Assim, teremos estruturas em que
a codificação de uma escala ou outra se reflete na interpretação que o
adjetivo possui quando modificado por algum graduador. Ou, ainda, que
teríamos modificadores, como quase, que selecionam certos tipos de
escalas e rejeitam outras,9 produzindo alguma anomalia.
Passemos, então, aos testes.
2 Diferentes escalas adjetivais
2.1 Os testes
Na seção anterior discutimos a motivação para separar o
conjunto dos adjetivos graduais em duas classes a partir da descoberta
de comportamentos diferenciados dos adjetivos graduais em relação
a algumas expressões. Cruse (1980) mostrou que sob negação as
inferências são diferentes e que almost ‘quase’ não é compatível com
todos os adjetivos graduais por ser sensível a limites. Rotstein e Winter
(2004) exploram esses testes e incluem ainda a compatibilidade com
modificadores como completely e slightly. Vamos, nesta seção, partir
da síntese dos testes feita por Kennedy e McNally (2005), que usam os
modificadores maximizadores e minimizadores como diagnóstico para
identificar padrões naturais. Iremos explorar esses testes e a interpretação
dessa classe de modificadores em português brasileiro. Como dissemos
na introdução, estudos como os de Quadros Gomes (2009, 2011, 2012)
assumem a distinção entre adjetivos graduais relativos e absolutos para
discutir a semântica de modificadores graduais como todo, muito e
bem, mas sem discutir a semântica e a pragmática dos maximizadores e
minimizadores, tarefa desta e da próxima seção.
Kennedy e McNally (2005) propuseram testes para verificar se a
escala possui um padrão mínimo ou máximo natural ou não. Se a escala
9
Essa é uma hipótese discutida em Doetjes (2008), para explicar por que as línguas
exibem modificadores que parecem transitar entre categorias próximas, caso de very
e a lot ‘muito’, entre outros modificadores no inglês; enquanto outras línguas exibem
modificadores que aparentam não fazer qualquer tipo de restrição de categoria, caso
do nosso muito, que, apesar disso, faz seleção semântica. Isso explicaria porque very
produz anomalias com alguns adjetivos não-graduais e adjetivos absolutos de grau
máximo, como defendem Kennedy e McNally (2005).
26
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possui como padrão um limite máximo, modificadores como completely
‘completamente’, 100% e fully ‘totalmente’, seriam sensíveis a esse
máximo, seja ele presente no elemento positivo ou negativo do par. No
uso em que essas expressões identificam o grau máximo, o acarretamento
é que o máximo da escala foi atingido,10 por isso a anomalia em (17a).
Note que em (17b) temos uma passiva adjetival que pode ser modificada
por completamente. Esse também parece ser um uso gradual, embora não
identifique um grau máximo (intuitivamente não há um grau máximo em
que alguém possa estar encantado por outra pessoa), por isso a sentença
(17b) não é anômala.11
(17) a. #A linha está completamente reta, mas dá para deixá-la ainda
mais reta.
b. Estou completamente encantado pela Maria, e aposto que se
conhecê-la melhor ficarei mais encantado ainda.
Por ora esse é o fato que nos interessa: completamente identifica
o grau máximo na escala do adjetivo, mas apenas se ele estiver lá, na
semântica do predicado. Veremos também ao longo desta seção que ele
também possui uma leitura mereológica. Nessa leitura, todas as partes de
x possuem a propriedade. Assim, uma linha descrita como completamente
reta seria uma linha com todas as suas partes retas. Na terceira parte
deste artigo, veremos mais detalhes sobre a semântica desse modificador.
Kennedy (2007) propõe um teste adicional para identificar
padrões mínimos com os modificadores slightly ‘ligeiramente’ e partially
‘parcialmente’. Assim, para que (18a) seja verdadeira, basta que a corda
apresente um pequeno grau de curvatura. É esta a leitura que se espera
que esse tipo de modificador capture. Mas logo veremos que parece haver
outra, pelo menos em português.
(18) a. The rope is slightly bent.
b. The floor is slightly dirty.
10
Na nossa visão, não estamos diante de um acarretamento, mas de uma pressuposição,
como veremos na seção 3.
11
Para Kennedy e McNally (2005), a leitura gradual de (17b) é uma implicatura, já que
literalmente a frase expressa que todas as minhas partes estão encantadas pela Maria.
Se não for assim, esse uso é problemático para a semântica dessa expressão tal qual
proposta aqui na seção 3.
27
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A tabela 1 resume a previsão da compatibilidade. MIN/MAX são
os tipos de modificadores, e Apos e Aneg correspondem ao adjetivo positivo
e ao negativo num par de antônimos graduais.
TABELA 1 – Compatibilidade entre modificadores e adjetivos graduais
Aberta
Fechada embaixo Fechada em cima
Fechada
Mod
MIN
MAX
MIN
MAX
MIN
MAX
MIN
MAX
Apos
#
#
OK
#
#
Ok
Ok
Ok
Aneg
#
#
#
Ok
Ok
#
Ok
Ok
Fonte: baseada em Kennedy e McNally (2005).
Vejamos se os equivalentes em português se comportam como
previsto. Os testes foram aplicados aos adjetivos usados por Kennedy
(2007) na sua tradução para o português e por simplicidade usei somente
completamente como identificador de grau máximo e ligeiramente como
identificador de grau mínimo.
Escala totalmente aberta: como nesses adjetivos tanto o
elemento negativo, quanto o positivo do par não possuem um grau
máximo ou mínimo natural, a previsão é que sejam incompatíveis com
modificadores que identifiquem esses graus. Contudo, não é isso que
vemos abaixo, para os pares de adjetivos graduais alto/baixo e profundo/
raso.12 Compare com os exemplos do inglês em (21).
12
Vou usar a convenção de apresentar sempre o elemento positivo à esquerda da barra,
seguido pelo elemento negativo. Como sabemos quem é o positivo e o negativo num
par de antônimos graduais requereria outro artigo. Como ilustração, cf. Leher (1985)
para uma apresentação dos testes para se identificar quem é quem num par de adjetivos
graduais, os “verdadeiros antônimos” para Cruse (1986) e Lyons (1977). Como exemplo,
note que tendemos a formar perguntas usando o elemento positivo do par:
(i) a. O quão profundo é o lago?/Qual a profundidade do lago?
b. O quão raso é o lago?/#Qual a rasidade do lago?
Note também que enquanto (ia) não pressupõe que o lago seja raso ou profundo, (ib)
carrega a pressuposição de que o lago é raso. A noção de marcação também poderia ser
relevante para distinguir os pares, sendo a forma positiva a não-marcada, enquanto a
negativa seria a marcada. Note que a forma positiva possui usos mais amplos, inclusive
neutralizados, como o uso nas questões em (ia).
28
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(19) a. Aquele homem é #completamente/ligeiramente alto.
b. Aquele homem é #completamente/ligeiramente baixo.
(20) a. Aquele lago é #completamente/ligeiramente profundo.
b. Aquele lago é #completamente/ligeiramente raso.
(21) a. #perfectly/#slightly {tall, deep}
b. #perfectly/#slightly {short, shallow}
Como não há um grau máximo de altura que algum indivíduo
possa exibir a modificação por completamente é indefinida. Precisamos
ter cuidado com esse caso porque o modificador é ambíguo entre uma
leitura mereológica e uma gradual. A intepretação que nos interessa é
aquela em que completamente identifica o grau máximo da propriedade.
Um lago completamente profundo é um lago que em toda a sua
extensão pode ser considerado profundo, não um lago que tem o grau
máximo de profundidade. Assim (20a) é interpretável apenas na leitura
mereológica, não na gradual. O que o ‘#’ representa em (19-20), e nos
casos subsequentes, é que a sentença não possui a interpretação gradual
desejada. Note que essa leitura não fica tão clara para o sujeito de alto/
baixo em (19), que é anômala nas duas leituras.13
As sentenças com ligeiramente não apresentam anomalia, em
contraste com os exemplos do inglês. Por que essa diferença? Claro,
temos que nos perguntar qual seria a interpretação intuitiva dessas
sentenças. Note que exemplos “reais”, como (22), não nos ajudam,
embora, nos dois casos, o garoto e o colesterol são altos e não há nenhum
padrão funcional no contexto, como Solt (2011) sugere ser necessário para
que minimizadores sejam aceitáveis com adjetivos relativos em inglês.
Se fosse esse o caso, ligeiramente alto poderia descrever um indivíduo
sem que ele seja positivamente alto, isto é, alto para um garoto.
13
Um dos pareceristas questiona se seria possível prever que adjetivos gerariam a leitura
mereológica. Não é fácil responder essa dúvida. Note que no caso dos pares de adjetivos
relativos em (19-20), alto/baixo não geram leitura mereológica com completamente,
enquanto raso/profundo sim. Veremos que com os adjetivos graduais absolutos sempre
parece ser possível uma leitura mereológica com esse modificador, embora ela soe
bem mais estranha do que com relativos como alto/baixo. No momento não tenho uma
reflexão mais sistemática para explicar essa diferença e também desconheço quem
tenha discutido o problema.
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29
(22) a. [...] até que um garoto ligeiramente alto, de cabelos e olhos
castanhos surgiu nervoso dentro do espelho. (A. Fantin, Kal
Foster e o mestre das sombras, 2013)
b. O colesterol está ligeiramente alto, ou seja, longe de ser motivo
de preocupação. (http://bit.ly/2zqH08x)
Ligeiramente baixo é um predicado que descreveria um indivíduo
que apresenta um grau que é apenas um pouco maior do que o grau padrão
de baixo. Comparemos (19a) e (19b) com (23a) e (23b), respectivamente.
(23) a. Aquele homem é alto.
b. Aquele homem é baixo.
A questão é: estamos diante de uma leitura de atenuação ou
uma leitura gradual? Se a leitura é de atenuação, não é essa leitura
que queremos (afinal, ela é um efeito pragmático, portanto, pósproposicional), pois esperamos que esses modificadores identifiquem
o grau mínimo da propriedade. Veja que (20a) poderia ter essa leitura.
Ligeiramente profundo poderia servir para descrever um lago que é
profundo, mas que por algum motivo (atenuação de uma proposição
alternativa mais forte: “o lago é profundo”) o falante quer expressar que
o grau de profundidade que o lago em discussão apresenta é apenas um
pouco superior ao padrão de profundo.
Também podemos pensar que as sentenças com ligeiramente são
interpretáveis porque, para se estar na extensão positiva de um adjetivo
relativo qualquer, é preciso estar pelo menos dentro do trecho da escala
que envolve os indivíduos que possuem um grau mínimo qualquer para
estar nesse conjunto, como vimos na seção 1.1. Assim, se o indivíduo
é alto, ele possui um grau de altura que é maior ou igual ao padrão
contextual, ou seja, ele possui um grau mínimo dentro do intervalo
positivo na escala de altura. A leitura provável, então, é de atenuação, pois
a leitura gradual soa redundante: se o indivíduo se qualifica como alto/
baixo na situação, se segue da semântica desses predicados que ele possui
um grau mínimo na escala. Mas se quisermos insistir na leitura gradual,
poderíamos considerar que a relação expressa por pos, “pelo menos”,
deixe vaga a relação entre o grau que o indivíduo exibe e o grau padrão,
e que ligeiramente opere nesse trecho da escala, deixando a declaração
mais precisa. Dessa forma, a proposição expressa por (19a) deverá ser
30
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algo como: “o grau que aquele homem exibe na escala de altura excede
ligeiramente o grau padrão dado contextualmente para ser alto”. Ou seja,
o minimizador poderia ter uma leitura gradual proposicional, e a leitura de
atenuação surgiria como um efeito pragmático, se o contexto demandar,
afinal, um lago ligeiramente profundo continua sendo um lago profundo.
Solt (2011) nota que slightly (e outros modificadores de grau
mínimo, como a bit ‘um pouco’) são interpretáveis, via coerção, com
adjetivos dessa classe com uma leitura de excesso. Para a autora,
intuitivamente, slightly tall é um predicado verdadeiro de um indivíduo
se sua altura excede por um pequeno grau a altura máxima compatível
com os propósitos da situação.14 Se é esse o caso, deveríamos esperar
que sentenças como (24) não fossem contraditórias. Além disso, slightly
tall não acarreta que o sujeito é alto. Parece-me que esse é o caso. Se em
português for assim também, como vemos em (24b), isso quer dizer que
não estaríamos diante de uma leitura gradual em (19a)?
(24) a. John is slightly tall for 12 year old kid, but he is still a short guy.
b. O João é ligeiramente alto para um garoto de 12 anos, mas ele
ainda é um menino baixo.
Acreditamos que não. Para um garoto de 12 anos é um sintagma
que insere um padrão funcional na sentença. Assim, o que ligeiramente
modifica não é alto, mas alto para um garoto de 12 anos, por isso (24b)
não é uma contradição. Comparando com (19-20), ligeiramente, nos
parece, possui uma leitura gradual mesmo na ausência de um padrão
funcional implícito.
Logo, vemos que alguns modificadores são, de fato, compatíveis
com adjetivos de escalas abertas, mas as leituras que surgem são variadas.
Ligeiramente pode ter uma leitura de atenuação ou uma leitura de “x
apresenta um grau um pouco maior do que o padrão”. Além disso, há a
influência de padrões funcionais. A influência desses padrões é geral em
português, e parece ter efeito de tornar o adjetivo uma função de medida
que mapeia o sujeito em um espectro na escala, sem se comprometer com
14
Para dar conta dessa semântica, Solt (2011) assume também que temos outro tipo de
padrão, um padrão funcional, ao lado do padrão contextual dos relativos e do padrão
lexical (máximo ou mínimo) para os absolutos.
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31
sua posição acima do padrão contextual. Comparemos (25a) e (25b), para
ilustrar a diferença entre o padrão relativo e o funcional.
(25) a. O João é muito alto para ser jóquei.
b. O João é muito alto.
Note que em (25a) o sujeito pode ser baixo que mesmo assim a
sentença é verdadeira. Já em (25b) não. Vários autores (KLEIN, 1980;
von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005) notam que desta
sentença podemos inferir que o João é alto. Assim, a diferença entre o
uso dos adjetivos em (a) e (b) acima é que o padrão de alto no primeiro
caso é dado pela construção de finalidade, e nesse sentido é um padrão
funcional, enquanto o padrão no segundo caso é dado situacionalmente,
isto é, o que no contexto conta como “muito alto”, e nesse caso estamos
diante de um padrão dito relativo. Na seção 3 voltaremos a discutir mais
alguns aspectos da semântica de ligeiramente.
Por sua vez, completamente também apresenta leituras em que
a combinação com adjetivos relativos é interpretável e gramatical,
mas apenas na leitura mereológica. Assim, um lago descrito como
completamente profundo é um lago cujas todas as suas partes podem ser
descritas como positivamente profundas.
Abaixo, em (26) vemos a estrutura da escala com mais detalhes.
A escala de altura também pode ter um parâmetro independente para os
indivíduos que são considerados altos, um para os que são considerados
baixos, e uma lacuna, onde estariam aqueles indivíduos que geram
incerteza: não sabemos dizer se eles possuem ou não a propriedade de
ser alto ou baixo no grau positivo. Como já vimos, alto e baixo podem
ter parâmetros independentes.
pb pa
(26) Estrutura da escala: (-------------|----|------------------)
altura:
baixo
alto
onde: pb = padrão de baixo; e pa = padrão de alto
Escala fechada embaixo: nesse caso, o polo positivo precisa
apresentar apenas um grau mínimo da propriedade (Apos ≥ min), enquanto
o negativo precisa estar no final da escala (ou muito próximo disso) (Aneg
= max). Por exemplo, um arame curvo precisa apresentar um grau mínimo
32
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
de curvatura, enquanto um arame reto precisa apresentar o grau máximo
da propriedade (ou o grau 0 na escala de curvatura). Em (27) temos o
teste aplicado ao par curvo/reto e em (28) ao par ondulado/plano.15
(27) a. O arame está #completamente/ligeiramente curvo.
b. O arame está completamente/#ligeiramente reto.
(28) a. A estrada está #completamente/ligeiramente ondulada.
b. A estrada está completamente/#ligeiramente plana.
No caso de curvo/reto, contextualmente, podemos criar situações
‘imprecisas’, situações em que um arame com uma leve curvatura ainda
possa ser considerado como reto. Podemos assumir, nesse caso, a proposta
da ‘auréola pragmática’ de Lasersohn (1999). A auréola pragmática de
um predicado engloba situações em que mesmo que a sentença seja falsa,
estritamente falando, admitimos que ela seja verdadeira. Por exemplo, um
arame com apenas uma leve curvatura ainda assim pode ser considerado
como um arame reto, dependendo dos propósitos na situação, ou da
tolerância dos falantes em admitir que ele está reto, mesmo que não
completamente reto.
Completamente curvo pode ser interpretado, mas não na leitura
desejada. Um arame completamente curvo seria um arame com uma
curvatura ideal, com a forma de uma parábola, digamos. Veja que é o
mesmo que temos com (28a). Uma estrada completamente ondulada é
uma estrada com ondulações em toda a sua extensão, não com o grau
máximo de ondulação (que não é possível de se obter). Como a escala não
possui um grau máximo, apenas um mínimo, os adjetivos positivos nesses
dois pares são incompatíveis com completamente na leitura gradual.
Note que ligeiramente é perfeito com os elementos positivos do
par, como previsto na tabela 1 (Apos ≥ min). Esperamos que esse tipo
de modificador identifique o grau mínimo, e é isso o que eles fazem
nesses casos. Um arame ligeiramente curvo é um arame que apresenta
um pequeno grau de curvatura; enquanto uma estrada ligeiramente
15
Essa caracterização é contraintuitiva. Se curvo é o positivo e reto o negativo, a escala
deveria ser fechada em cima: (-----]. Mas note que na representação das escalas o
negativo aparece à esquerda e o positivo à direita. Vamos seguir com essa representação,
pois é a costumeira na literatura.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
33
ondulada apresenta um pequeno grau de ondulação em algum ponto da
sua extensão.
É possível também termos uma leitura de atenuação com
ligeiramente curvo/ondulado. Suponha que o interlocutor estivesse
esperando o oposto, digamos, um arame completamente reto, e alguém
lhe traz um arame com uma leve curvatura. Um arame ligeiramente
curvo, isto é, com um grau pequeno acima do grau mínimo na escala de
curvatura, já não é mais reto.
Em (29) temos a estrutura da escala, em que a barra representa
a transição natural. A imprecisão reside justamente nessa passagem, que
aparentemente pode ser regulada, permitindo que objetos levemente
curvados possam contar como retos em alguns casos. Alternativamente,
como Rotstein e Winter (2004), podemos assumir que o lado positivo,
a escala de reto, seja um intervalo que não envolva um único ponto (ou
intervalo), deixando espaço para a imprecisão. A primeira opção me soa
semanticamente mais econômica.
(29) Estrutura da escala: curvatura [---|-------------------)
Reto
curvo
Escala fechada em cima: nessa escala, o adjetivo positivo do
par requer um grau máximo como padrão (Apos = max), enquanto o polo
negativo requer um grau mínimo (Aneg = min). Exemplificando, no par
seguro/perigoso16 para que um objeto seja seguro ele não deve apresentar
nenhum grau de falta segurança, enquanto para que seja considerado
perigoso ele precisa apresentar qualquer grau de falta de segurança. O
mesmo vale para o par puro/impuro.
16
O leitor poderá se perguntar por que nesse caso a oposição é entre seguro/perigoso
e não entre seguro/inseguro. Note que inseguro parece ser um adjetivo que qualifica
melhor seres animados, enquanto é esquisito com não-animados.
(i) a. O carro é perigoso/#inseguro.
(ii) b. O aluno é #perigoso/inseguro.
Um ser humano chamado de inseguro é alguém que não tem segurança em si (ou nos
outros), e alguém dito perigoso é alguém que pode causar perigoso para si e para outros.
Essa é uma caracterização grosseira, obviamente.
34
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
(30) a. O brinquedo novo do parque é completamente/#ligeiramente
seguro.
b. O brinquedo novo do parque é #completamente/ligeiramente
perigoso.
(31) a. A prata nesse anel é completamente/#ligeiramente pura.
b. A prata nesse anel é #completamente/ligeiramente impura.
Em (30a), a combinação com completamente seguro é ambígua.
Temos a leitura mereológica, “todas as partes do brinquedo possuem o
grau máximo na escala de segurança”, e a leitura gradual, “o brinquedo
possui o grau máximo na escala de segurança”. Já ligeiramente seguro
é estranha na leitura gradual. A sentença é perfeita se atribuirmos a ela
uma leitura de atenuação: o brinquedo é perigoso (logo, não é seguro),
mas como o falante não quer se comprometer com essa afirmação, usa a
forma ligeiramente seguro. Talvez essa seja uma estratégia de controlar
essa leitura “real”, digamos assim, da atenuação: ao invés de afirmar
o oposto na escala, que seria a afirmação mais forte discursivamente,
afirmo o outro lado da escala usando um atenuador.
Comparando (32a) e (32b), poderíamos afirmar que elas são
cognitivamente sinônimas (CRUSE, 1986), no sentido em que expressam
a mesma proposição. Isso faz sentido se assumirmos como Rotstein e
Winter (2004) que o padrão mínimo do adjetivo total (se isso for possível)
é igual ao padrão mínimo do adjetivo parcial em um par – explicando
a complementaridade atestada por Cruse (1980). Note que, se seguro é
um adjetivo de grau máximo, não tem como ligeiramente identificar um
grau acima do padrão. Daí a inferência que o ouvinte pode fazer de que
o falante está se referindo ao outro espectro da escala. Alternativamente,
se, como dissemos acima, o adjetivo total do par envolver um espectro
na escala que envolve não apenas um grau máximo (um ponto), mas um
intervalo, usos como (32a) poderiam ser considerados como modificação
gradual regular – anulando a hipótese de sinonímia de conteúdo em (32).
Note que podemos ter uma interpretação de atenuação, pois se o sujeito
possui um grau de segurança, a expectativa é de que seja o grau máximo
(ausência de periculosidade). Se a segurança que o objeto exibe é um
pequeno grau, isso leva o ouvinte a inferir que ele possui também algum
grau de insegurança. Afinal, se o falante tivesse evidências de que o
brinquedo é completamente seguro ele teria usado a forma não marcada.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
35
(32) a. O brinquedo novo do parque é ligeiramente seguro.
b. O brinquedo novo do parque é perigoso.
Veja que com completamente perigoso temos uma leitura de
ênfase, pois, em tese, não deveria ser possível um grau máximo de
perigo, assim, se (30b) é interpretável, a leitura que temos não deve
ser a de que o brinquedo apresenta o grau máximo na escala de perigo.
Em (30b) ligeiramente perigoso gera ambiguidade. Temos a leitura de
atenuação (afinal, o brinquedo é perigoso) e a literal, que identifica um
grau mínimo: “o brinquedo apresenta um grau que excede ligeiramente
o grau mínimo na escala de periculosidade”.
Com o par puro/impuro os julgamentos já não me parecem
tão simples. É provável que esses adjetivos tenham um uso relativo
também.17 Na química, por exemplo, pode-se falar dos graus de pureza
de uma solução. No caso que temos em (31), a declaração em (31a) é
verdadeira se a prata não apresentar nenhum grau de impureza, se ela
for 100% pura. No outro caso, talvez quimicamente uma solução possa
ser ligeiramente pura, isto é, apresentar um grau mínimo de pureza,
mas creio que estaríamos fazendo uma atenuação, ao invés de fazermos
a afirmação mais forte e adequada descritivamente: a solução é impura.
Por sua vez, em (31b) completamente impura gera anomalia porque se
o metal no anel apresentar um grau máximo de impureza ele já não é
mais prata e será outra coisa. Contrastivamente, ligeiramente impura é
boa porque qualquer grau mínimo de impureza já conta como impuro.
Por fim, é provável que a imprecisão com esses pares seja mais
relaxada. Isso quer dizer que em algumas situações admitimos que x é
puro mesmo que x apresente um grau considerável de impureza.
(33) Estrutura da escala: (-----------------------|---]
pureza:
impuro
puro
17
Mesmo assim, admitir que no uso simples tenhamos um adjetivo absoluto e no uso
modificado tenhamos um uso relativo, não me parece uma solução econômica do ponto
de vista do léxico. Afinal, precisaríamos de algum tipo de operação que possibilitasse
ao falante transitar entre esses diferentes ‘sentidos’ (supondo que o fenômeno seja um
tipo de polissemia) do adjetivo, algo como uma operação de mudança de tipo.
36
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
Escala totalmente fechada: tanto a versão positiva quanto a
negativa da escala possuem um limite máximo (Apos = max e Aneg = max).
No exemplo abaixo, para que uma sala esteja cheia, ela deve estar com
a sua capacidade completa, e para estar vazia, ela deve estar desocupada
(modulo imprecisão).
Há uma diferença importante entre os pares cheio/vazio e aberto/
fechado. Eles possuem comportamento diferenciado em relação à
negação, como vimos em (11): negar que a sala esteja cheia não acarreta
que a sala esteja vazia. Ou seja, isso nos mostra que a escala de cheio/
vazio não possui uma transição natural entre um polo e outro, e que ela
envolve uma lacuna extensional. Já no outro caso, o par aberto/fechado
apresenta uma transição natural, como os outros absolutos que vimos
acima: se a porta não está aberta, então está fechada (e vice-versa).
Essas diferenças são visíveis na interpretação com os modificadores
em (34).
(34) a. A sala está completamente/#ligeiramente cheia.
b. A sala está completamente/#ligeiramente vazia.
(34a-b) devem ser ambíguas com completamente (leitura
mereológica e gradual), como os outros adjetivos absolutos que requerem
um padrão máximo. Ligeiramente cheia/vazia só é interpretável na leitura
de atenuação.
A previsão de Kennedy (2007) era que os modificadores de
grau máximo e mínimo fossem compatíveis com os dois polos e isso
não se confirma. Ligeiramente não é totalmente aceitável com os dois
elementos. Isso faz sentido, se pensarmos que não há um grau mínimo
que conte como cheio ou vazio. Para um copo estar cheio, ele precisa
estar na sua capacidade máxima (ou próximo disso), e para estar vazio
precisa não conter nenhum conteúdo, ou uma quantidade ínfima. Assim,
ser incompatível com modificadores que identificam graus mínimos é
fruto da semântica dos adjetivos, explicando a anomalia.
Agora, vejamos o que acontece com o par aberto/fechado, que
como vimos envolve uma transição natural.
(35) a. A janela está completamente/ligeiramente aberta.
b. A janela está completamente/ligeiramente fechada.
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37
Aberto/fechado é compatível com os dois conjuntos de
modificadores, mas completamente gera apenas a leitura gradual,
enquanto ligeiramente talvez possa ter leitura de atenuação também.
Isso é natural se pensarmos no tipo de situação que aberto/fechado
descrevem. Uma janela completamente aberta é uma janela com o grau
máximo de abertura. A leitura mereológica é estranha, pois uma janela
completamente aberta parece pressupor que todas as partes que compõem
a janela estejam abertas. Uma janela também pode estar minimamente
aberta, por isso a combinação com ligeiramente é possível. Fechado
não me parece exatamente a mesma coisa. Uma janela completamente
fechada é uma janela sem nenhum grau de abertura. Mas o que seria
uma janela ligeiramente fechada? Logicamente, deveria ser uma janela
com apenas um grau mínimo de ‘fechadura’, isso quer dizer, então, que
a situação descrita por (35b) também poderia ser descrita por (35a):
ligeiramente aberta = ligeiramente fechada. Assim, essas duas sentenças
são sinônimas, o que me soa razoável intuitivamente, assumindo a
proposta de Rotstein e Winter (2004) que vimos acima: o padrão do polo
que requer um grau máximo é igual ao padrão do outro lado do polo.
Assim, minimamente aberto é igual a minimamente fechado.
(36) a. Estrutura da escala:
[----------|----------]
abertura: fechado aberto
b. Estrutura da escala: [-|-----------------|--]
preenchimento: vazio
cheio
2.2 Comentários sobre os testes
Em relação aos testes de Kennedy (2007), esperamos ter mostrado
que a distinção entre relativos e absolutos é gramaticalmente relevante em
português. Até aí nenhuma novidade. Contudo, vimos duas diferenças:
(i) os adjetivos relativos são compatíveis com minimizadores na leitura
gradual; e (ii) parece-nos que dentro dos adjetivos de escala fechada
temos um subgrupo que envolve adjetivos que possuem tanto um padrão
mínimo quanto um padrão máximo, caso de fechado/aberto, que contrasta
com vazio/cheio, cujo padrão é só o grau máximo na escala.
Desta forma, a tabela 1, com os casos discutidos, fica revista
como abaixo.
38
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
TABELA 2 - Combinação dos modificadores com escalas fechadas em PB
Fechada
embaixo
Aberta
Fechada em
cima
Fechada I
(cheio/vazio)
Fechada II
(aberto/
fechado)
Mod
MIN
MAX
MIN
MAX
MIN
MAX
MIN
MAX
MIN
MAX
Apos
Ok
#
OK
#
#
Ok
#
Ok
Ok
Ok
Aneg
Ok
#
#
Ok
Ok
#
#
Ok
Ok
Ok
Fonte: o autor.
O problema teórico consiste em capturar essas diferenças
formalmente. Vimos que o padrão dos relativos é dado contextualmente,
via pos. Assim, a semântica dos adjetivos graduais relativos é uma
simples função de medida, que mapeia um indivíduo no grau que ele
exibe na escala dada pelo predicado (no intervalo positivo ou negativo,
dependendo do adjetivo).
Um adjetivo absoluto, nesse modelo semântico, deveria ser
uma função de medida, cujo grau de comparação é dado lexicalmente.
Como vimos, para julgar se uma sentença como O arame está torto é
verdadeira, não precisamos olhar para o contexto, precisamos olhar
apenas para o grau que o sujeito exibe na escala de curvatura e se esse
grau corresponde ao grau mínimo na escala. Já, para decidir se uma
sentença como O arame está reto é verdadeira, também olhamos para o
grau que o arame exibe na escala de curvatura, e vemos se esse grau é o
máximo (no caso, 0 grau de curvatura). Portanto, o grau que pos requer
para relacionar já é dado lexicalmente, como vemos nas entradas lexicais
em (37) (cf. KENNEDY, 2007).
(37) a. [[ Amin ]] = λdd. λxe. [ESCALAAdjetivo(x) = d & d ≥ min(EA)]
b. [[ Amax ]] = λdd. λxe. [ESCALAAdjetivo(x) = d & d = max(EA)]
Onde: EA = Escala do Adjetivo
Queremos que a denotação do SA seja como vemos abaixo (cf.
KENNEDY; McNALLY, 2005, p. 358). Embora ligeiramente diferentes,
as denotações propostas para os adjetivos totais e parciais de Rotstein
e Winter (2004) são similares a estas, com a única diferença que o grau
padrão dos adjetivos totais é definido também pela relação parcial ≥:
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39
(38) a. [[ pos Arelativo ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d ≥ d’padrão]
b. [[ pos AAbsmax ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d =
max(EA)]
c. [[ pos AAbsmin ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d ≥ min(EA)]
Para que (37) vire (38), isto é, que funções de tipo <ed> virem
funções de tipo <et>, basta que pos funcione como uma função de
identidade na composição com os absolutos e que ligue existencialmente
o grau referencial (cf. 37).
(39) [[ pos AAbs]] = λGed. λxe. ∃d[P(x)(d)]
O núcleo funcional de pos permanece: é uma função de predicados
de grau a predicados de indivíduos, contudo, apenas na modificação de
adjetivos relativos ele precisa introduzir o grau de comparação a partir
do contexto, enquanto na composição com adjetivos absolutos ele só
precisa garantir que o grau que irá saturar o grau pedido pelo predicado
gradual denotado pelo adjetivo absoluto seja o próprio grau dado pela
entrada lexical.
O leitor poderá ficar cético em relação a todas essas operações
necessárias para derivar a composição de sentenças cuja superfície parece
tão simples. Como afirma Kennedy (2007): “[…] é um tanto paradoxal
que a forma morfossintaticamente mais simples de um predicado gradual
seja a mais difícil de se caracterizar adequadamente nos termos de uma
análise semântica composicional”18 (tradução minha). E isso só nos
mostra o quão interessante é o tema.
Se a semântica desses adjetivos é essa (i.e., o padrão dos adjetivos
relativos é contextual, enquanto o dos absolutos é lexical), qual é a
contribuição de modificadores como completamente e ligeiramente?
Se o grau que completamente pega é o grau máximo na escala, qual a
diferença semântica entre (40a) e (40b)? Afinal, de acordo com a entrada
lexical em (38b), um adjetivo absoluto de grau máximo é uma função
que mapeia o seu argumento no grau máximo da escala do adjetivo.
No original “[…] it is a bit paradoxical that the most morphosyntactically simple
form of a gradable predicate turns out to be the hardest to adequately characterize in
terms of a compositional semantic analysis”. [sem paginação no original]
18
40
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
(40) a. O arame está reto.
b. O arame está completamente reto.
Passemos às respostas.
3 A semântica dos modificadores
O desafio que está posto é entender por que modificadores como
completamente são sensíveis a limites máximos, enquanto aqueles como
ligeiramente são a padrões mínimos. Isso quer dizer que eles detectam o
padrão dos adjetivos, ou seja, esses modificadores são capazes de “ver”
como a escala se estrutura.
Olhando com mais cuidado os modificadores, Rotstein e Winter
(2004) percebem que slightly prefere adjetivos com padrão mínimo (41),
embora se combine também com alguns de padrão máximo, caso de
open/closed em (42a) e dry em (42b). Pelas glosas vemos que o mesmo
ocorre em português.
(41) a. The work is slightly incomplete/*complete.
O trabalho está ligeiramente incompleto/*completo.
b. The argument is slightly imperfect/*perfect.
O argumento está ligeiramente imperfeito/*perfeito.
(42) a. The door is slightly open/closed.
A porta está ligeiramente aberta/fechada.
b. The towel is slightly wet/dry.
A toalha está ligeiramente seca/molhada.
O que acontece em (42a) já vimos anteriormente. O caso
complicado é (42b). A menos que seco/molhado seja um par em
que seco tenha também um padrão mínimo ao lado de um máximo,
precisaríamos explicar porque ligeiramente está modificando esse
adjetivo sem anomalia. A minha intuição é que uma toalha ligeiramente
seca não está seca. Assim, é como o caso que vimos anteriormente com
seguro/inseguro em (30). Uma alternativa seria imaginar que a leitura
de atenuação viria por violação da Máxima da Qualidade. O predicado
ligeiramente seco aplicado à toalha na situação levaria ao falso, pois não
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
41
há um grau mínimo na escala de seco, apenas um máximo, o que leva o
ouvinte a inferir que o falante está fazendo uma atenuação, ao invés de
usar a forma mais forte: a toalha está molhada. Ou ainda, como vimos
acima, o falante poderia estar pressupondo um padrão funcional (SOLT,
2011) – que não vemos expresso linguisticamente, mas que poderia ser
inferido do contexto.
Veja que os dados abaixo parecem confirmar a análise de
atenuação. Se ligeiramente é uma atenuação, slighty dry deveria gerar
alguma anomalia ao ser seguida por completely dry. As sentenças em
(43) soam contraditórias. Isso quer dizer que ligeiramente A acarreta
não completamente A.
(43) a. #The door is slightly closed, and it is completely closed.
#A porta está ligeiramente aberta, e está completamente fechada.
b. #The towel is slightly dry, and it is completely dry.
#A toalha está ligeiramente seca, e ela está completamente seca.
Por sua vez, completamente A parece significar (ou implicar)
“nenhum grau do oposto da escala”. Para os autores, isso se reflete no
contraste em (44). Mas note que (44b), na verdade, é boa na leitura
mereológica, e na leitura gradual ela deveria ser anômala, pois não há
um grau máximo de umidade que uma toalha pode exibir.
(44) a. #As duas toalhas estão completamente secas, mas a azul está
mais seca que a vermelha.
b. As duas toalhas estão completamente molhadas, mas a azul
está mais molhada que a vermelha.
Assim, vemos que os modificadores possuem cada um duas
leituras. Completamente possui uma leitura gradual e uma mereológica;
ligeiramente possui uma leitura gradual e uma leitura de atenuação.
Aparentemente, esta última não prevista para sua contraparte em inglês,
slightly. Se possui, Rotstein e Winter (2004) não atentaram para ela,
tampouco Kennedy (2007) ou Solt (2011).
Partindo agora para uma discussão mais formal, na proposta de
Kennedy (1997) os modificadores graduais são relacionais. Vimos que
pos, em essência, é uma relação, “maior ou igual”, entre dois graus, o
42
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
grau de referência e o grau padrão. Assim, podemos nos perguntar que
tipo de relação os maximizadores e os minimizadores expressam.
Na proposta de Rotstein e Winter (2004), a denotação de
completamente é como vemos em (45a) – na minha leitura, pois a notação
deles é diferente. Como comparação, a entrada lexical em (45b) é a
oferecida por Kennedy e McNally (2005), que tem a mesma intuição,
mas esse grau ao final da escala é o grau máximo. Afinal, como vimos,
esse modificador seleciona semanticamente os absolutos de grau máximo.
(45) a. [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = d no final da
escala de A]
b. [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = max na escala
de A]
Pelo formalismo em (45a), a função do modificador é expressar
a relação de igualdade entre o grau que o indivíduo possui, o grau
referencial, e um grau d, que é o grau ao final da escala. Os autores não
se comprometem com a existência de graus máximos na definição do
modificador.
Note que essas denotações são problemáticas: se para a semântica
dos absolutos de grau máximo precisamos que eles tenham o grau máximo
para derivar as condições de verdade no uso simples, como explicar que
a modificação por completamente não soe redundante? Nossa impressão
é que essa questão fica negligenciada nesses dois estudos.
Isso nos dá duas opções: há algo errado com a denotação
dos adjetivos graduais absolutos de padrão máximo ou a semântica
de completamente não pode ser nenhuma das opções em (45). Uma
alternativa é assumir que a leitura de que um indivíduo possui o grau
máximo na escala do adjetivo é uma inferência pragmática.
Uma evidência nesse sentido é que essa inferência, aparentemente,
pode ser cancelada, por isso sentenças como (46) não são anômalas nem
redundantes.
(46) a. O arame está reto, e na verdade está completamente reto.
b. A toalha está seca, e na verdade está completamente seca.
Casos como (47), que para Rotstein e Winter (2004) são levemente
marginais (a contraparte em inglês, claro), são outra evidência disso.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
43
(47) O arame está reto, mas não completamente reto.
A possível marginalidade pode ser atribuída à reinterpretação da
sentença: temos que cancelar a inferência de que o arame está no grau
máximo na escala de reto. Para os autores, o problema da leve estranheza
da sentença é que o padrão máximo desses adjetivos é igual ao padrão
mínimo no outro polo da escala. Se a transição é natural, esse tipo de
sensação deveria ser comum, explicando os casos de imprecisão também.
Afinal, se o grau que o indivíduo exibe está localizado exatamente na
transição, os julgamentos deveriam ser confusos.
Podemos assumir, então, que a denotação de um adjetivo dessa
classe tenha como padrão um grau máximo, claro, mas que a relação entre
o grau que o indivíduo exibe e o padrão não é uma função total, mas uma
função parcial também, como é o caso dos adjetivos de padrão mínimo.19
(48) [[ pos AAbsmax ]] = λxe: ∃d[d ≥ max(EA)]. ESCALAAdjetivo(x,d)
Note que isso não apaga a diferença entre os dois tipos de adjetivos
absolutos, pois o padrão continua sendo um grau mínimo ou um grau
máximo. A diferença fica por conta da inferência que os absolutos disparam
no uso sem modificação: o grau que o indivíduo exibe é o máximo da escala
e que na entrada lexical em (48) está como um pressuposto.
Vejamos agora a semântica do atenuador. A entrada lexical, na
minha leitura, oferecida por Rotstein e Winter (2004), é dada em (49a).
Segundo os autores, slightly identifica um intervalo aberto no início da
escala do adjetivo. Kennedy e McNally (2005) não dão a entrada lexical
do atenuador, mas sugerem que ele identifique um grau mínimo na escala
do adjetivo. Assim, suponhamos que seja como (49b).
(49) a. [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = um intervalo no
início da escala de A]
b. [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = min na escala de A]
O contraste relevante a ser capturado aqui é entre (50a) e (50b).
Como temos um adjetivo de grau mínimo, qualquer grau de impureza
já torna (50a) verdadeira. De acordo com (49b), seria de se esperar que
ligeiramente A fosse redundante, o que vimos não acontecer.
19
Na fórmula, max(EA) deve ser entendido como uma função que leva a um intervalo
positivo na escala do adjetivo, não a um grau (ou um ponto) na escala.
44
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
(50) a. A solução está impura.
b. A solução está ligeiramente impura.
Para esse caso, a proposta de Rotstein e Winter (2004) me parece
ser a que está na direção correta. Contudo, podemos colocar uma restrição
adicional, a de que esse intervalo precisa ser curto, não apenas qualquer
intervalo no início da escala do adjetivo de grau mínimo. De outra forma,
a contribuição proposicional de ligeiramente, de acordo com (49a), seria
praticamente nula. Assim, a denotação reformulada ficaria como vemos
em (51).
(51)
[[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = um intervalo curto
no início da escala de A]
“Um intervalo curto” não resolve muito a semântica do atenuador.
Sendo mais preciso, podemos supor que aqui entraria a contribuição
do adjetivo base do advérbio. Ligeiramente poderia ser interpretado
como um predicado de intervalos, com a significação concreta do
adjetivo ligeiro enfraquecida para que possa exercer essa função mais
gramatical. Ele seria, então, um predicado de graus/intervalos, como
vemos formalmente em (52):
(52)
[[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = min(EA) &
CURTO(d)]
Como vimos, ligeiramente também possui a característica
de poder se combinar com adjetivos relativos. Isso mostra que esse
modificador pressupõe que a escala tenha um limite mínimo, mesmo
que dado contextualmente e não que o padrão do adjetivo seja um grau
mínimo. Isso explicaria porque a combinação com adjetivos de grau
máximo gera anomalia, disparando uma implicatura de atenuação. Em
ligeiramente seguro teríamos um conflito com a pressuposição do adjetivo
de grau máximo: o indivíduo exibe o grau máximo da propriedade na
escala do adjetivo. Para salvar a estrutura o falante olharia para o outro
lado do polo, o início da escala em que inseguro começaria.
Note que poderíamos estender essa análise também para o
significado de completamente, supondo, como Kennedy e McNally
(2005) sugerem em nota, que o significado de “grau máximo na escala
de A” tenha surgido como uma implicatura a partir do significado literal
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
45
“todas as partes de x são A”, isto é, estamos diante de uma ambiguidade
lexical.
(53) [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & COMPLETAMENTE(d)]
Fica em aberto a questão do componente que estamos chamando
de pressuposicional em (48): por que ele não se projetaria na estrutura em
(53)? Vamos assumir que pos e completamente ocupem a mesma posição
sintática, são argumentos do adjetivo, e que a pressuposição só surgiria
como uma inferência convencional no uso não modificado de adjetivos
graduais absolutos de grau máximo. Note que se ela for um componente
da semântica desse tipo de adjetivo, por que não vemos redundância
em expressões como completamente reto? Por ora, é a explicação que
gostaríamos de oferecer.
Considerações finais
Utilizando uma abordagem para o tratamento da gradação e da
modificação gradual que assume a existência de graus na ontologia,
acreditamos ter mostrado que a distinção entre adjetivos graduais
relativos e graduais absolutos é também gramaticalmente relevante em
português brasileiro. Contudo, mostramos que há algumas diferenças em
relação ao previsto pela literatura. A primeira é que adjetivos graduais
relativos permitem modificação por minimizadores na leitura gradual; a
segunda é que os pares de adjetivos que geram escalas fechadas podem ser
divididos em dois conjuntos: os que possuem transição natural (aberto/
fechado) e os que possuem lacuna extensional (cheio/vazio).
Na análise das diferentes classes vimos que os modificadores que
identificam os subtipos são sensíveis ao padrão requerido (se máximo
ou mínimo), evidenciando que eles são capazes de “ver” como a escala
do adjetivo se estrutura. Isso implica que a seleção semântica que
esses modificadores fazem é mais fina do que simplesmente selecionar
adjetivos graduais e não-graduais (adjetivos que resistem a qualquer tipo
de modificação gradual, como vimos na seção 1.1) e que eles parecem
ser argumentos do adjetivo. Assim, os adjetivos é que fariam seleção dos
modificadores e não o oposto. Note que a visão tradicional, pelo menos
sintaticamente, é entender esses modificadores como adjuntos do SA (e
adjunto não é uma categoria que costuma fazer seleção semântica) e não
como argumentos do adjetivo.
46
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019
Também mostramos que o maximizador completamente possui
duas leituras, uma mereológica e outra gradual. Kennedy e McNally
(2005) sugerem que a leitura gradual pode ter surgido como uma
implicatura da leitura mereológica (mais concreta, em certo sentido).
Por sua vez, o minimizador ligeiramente produz também dois tipos de
leituras: uma de grau mínimo e uma de atenuação (via implicatura).
Na última seção discutimos a semântica dos modificadores,
objetivando explicar as interpretações resultantes dos testes. Vimos
que a semântica normalmente atribuída para os adjetivos (em sentenças
simples) entra em conflito com a semântica necessária para derivar as
condições de verdade das sentenças com os modificadores. Sugeri que
no caso dos adjetivos absolutos com padrão máximo esse grau é um
pressuposto, não parte da entrada lexical, como proposto por Kennedy
e McNally (2005) e Kennedy (2007).
No caso de ligeiramente, que se combina com adjetivos absolutos
de padrão mínimo, vimos que o grau que esse modificador requer,
na verdade, é um intervalo curto no início da escala, não qualquer
intervalo no início da escala do adjetivo. E, por fim, vimos que o caso de
ligeiramente é mais geral, pois ele também é capaz de modificar adjetivos
relativos. Embora esse grau provenha quase sempre do contexto, ele é
regular, sempre está lá. O que é contextual é o lugar da escala em que
ele se situa.
Agradecimentos
O autor gostaria de agradecer ao Gabriel de Ávila Othero por ter lido
e comentado uma primeira versão deste artigo; aos participantes do
Seminário de Teoria e Análise Linguística da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, cujos comentários e dúvidas na apresentação de outro
trabalho motivaram uma boa parte deste estudo; e aos dois pareceristas
anônimos que leram atentamente o artigo e fizeram comentários que me
fizeram esclarecer pontos cuja redação estava obscura e a redimir alguns
problemas nas fórmulas e no texto.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
La variación en la representación del complemento verbal
y la enseñanza de PB a hispanohablantes: un análisis de
materiales didácticos de PLE
The Variation in the Representation of the Verbal Complement
and the Teaching of BP to Spanish Speakers: An Analysis
of Didactic Materials of PFL
Thaís Leal Rodrigues
Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil
leal.thais@hotmail.com
Resumen: Este artículo tiene como tema la enseñanza de la representación del
complemento verbal – objeto directo e indirecto – a hablantes de español. Se trata de
hecho lingüístico variable en la lengua portuguesa de Brasil (PB), pues la enunciación
del complemento verbal dentro de un texto o diálogo, en lengua portuguesa de Brasil,
presenta varias posibilidades para su representación además del uso de los clíticos,
prescripto por la gramática normativa. Se constituye, por lo tanto, un fenómeno en
variación. Se pretende, en esta investigación, describir esa variable y evaluar sus
implicaciones en el proceso de enseñanza y aprendizaje de PLE, así como examinar
como este aspecto del PB ha sido tratado en los materiales didácticos dirigidos a la
enseñanza de PLE. En otras palabras, se tiene el intuito de verificar como son presentados
y enseñados los complementos verbales, en esos materiales, y averiguar si la variación
lingüística está contemplada en el tratamiento de este tema. Se trata de una investigación
que se basa en la teoría sociolingüística para analizar materiales didácticos, pues creemos
que se debe presentar la lengua extranjera al alumno, de tal manera que se dé cuenta
de toda su riqueza y variación, a fin de hacerlo capaz de interactuar en las diversas
situaciones lingüísticas de habla y escritura.
Palabras clave: Sociolingüística; enseñanza de portugués como lengua extranjera;
hispanohablantes.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.49-72
50
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
Abstract: The key theme of this article is the teaching of the representation of the
verbal complement, both direct and indirect objects. That is a linguistic variable fact
in Brazilian Portuguese (BP). The enunciation of the verbal complement in a text or
dialogue in Brazilian Portuguese presents several possibilities for its representation
besides the use of clitics prescribed by the normative grammar. Therefore, it constitutes
a phenomenon in variation. This research aims to describe this variable and assess
its implications for the Portuguese as Foreign Language (PFL) teaching and learning
process, as well as examine how this aspect of BP has been treated in the educational
materials aimed at teaching PFL. In other words, the intent of this investigation is
to verify how verbal complements are presented and taught in these materials and
determine if linguistic variation is considered in the treatment of this subject. This
research is anchored on sociolinguistic theory in order to analyse teaching materials
because it is my view that a foreign language should be presented to students in such a
way that they can see all its richness and variation and, therefore, help them to be able
to interact in different linguistic situations through speech and writing.
Keywords: sociolinguistics; teaching Portuguese as a foreign language; Spanishspeaking.
Recebido em 13 de novembro de 2017
Aceito em 20 de março de 2018
1 Introducción
El portugués y el español tienen el mismo origen latino, así
que son lenguas muy próximas. Por eso es evidente que al aprender la
lengua española un lusohablante presentará interferencias de su lengua
materna en la fase inicial del aprendizaje y, de la misma manera, un
hispanohablante será muy influenciado por el español, cuando aprenda
el portugués, como afirma Santos:
Se por um lado essa semelhança facilita o entendimento do
português logo aos primeiros contatos, por outro impede, na
maioria das vezes, que o falante de espanhol se comunique na
língua alvo, o português, sem as constantes interferências da sua
língua nativa. (SANTOS, 1999, p. 49)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
51
Para Maia González (2008), la proximidad entre las dos lenguas
no es tan grande como se imagina, especialmente cuando se trata de la
variedad brasileña del portugués:
Se ha estudiado centenares de veces sobre la proximidad entre
las lenguas española y portuguesa, pero esa cercanía parece ser,
al menos en algunos aspectos, por lo menos moderada, sobre todo
cuando se compara la variedad más estándar del español con el
portugués de Brasil, incluso en el nivel de las variedades más
informales de ambas lenguas. (MAIA GONZÁLEZ, 2008, p.1)
Este artículo presenta los resultados de la investigación realizada
sobre la enseñanza de la representación del complemento verbal a
hablantes de español, ya sea el objeto directo, o el objeto indirecto,
hecho lingüístico variable en la lengua portuguesa de Brasil (PB). El
trabajo consiste en un análisis de materiales didácticos de enseñanza
de portugués a extranjeros (PLE), con el fin de verificar como son
presentados y enseñados los complementos verbales, en los referidos
materiales, y averiguar si la variación lingüística está contemplada en
el tratamiento de este tema.
Varias investigaciones constataron que a partir del siglo XIX el
PB empezó a presentar la pérdida del clítico acusativo de tercera persona
del discurso. Paralelamente, los pronombres átonos comenzaron a ser
reemplazados por los pronombres tónicos. Además, varios estudios
(DUARTE, 2000; BERLINK, 1997; CYRINO,1997; TARALLO, 1983)
demuestran el alto porcentaje de omisión de los objetos anafóricos. Tal
hecho no ocurre en la lengua española, que, incluso en su expresión oral,
presenta todos los objetos complementados por los pronombres átonos
(MAIA GONZÁLEZ, 1999), lo que hace bastante limitada la posibilidad
de ocurrir un OD anafórico sin representación por el pronombre.
Según Maia González (2008, p. 1, 1999, p. 166), portugués y
español presentan diferencias en el ámbito de la realización de los sujetos
y de los objetos pronominales, constituyendo lo que se denomina “inversa
asimetría”, esto es, una oposición que atañe a la presencia o ausencia
de los pronombres personales sujeto y complemento en ambas lenguas.
El ejemplo 1 (a, b) contiene la misma frase redactada en portugués y en
español, para facilitar la comprensión de las diferencias comentadas.
52
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
1(a) Eu comprei um presente para você. Vou te/lhe entregar ø no dia
do seu aniversário.
1(b) ø Te compré un regalo. Te lo voy a entregar el día de tu
cumpleaños.
El ejemplo indica que mientras el PB manifiesta una tendencia a la
realización del sujeto por medio del pronombre, el español, al contrario,
presenta una necesidad de enfatizar el objeto, retomándolo por medio de
clíticos y, muchas veces, duplicándolo. Por otro lado, el PB se caracteriza
por una tendencia a la omisión del OD, al paso que, en español, es
común omitir el sujeto (sujeto nulo). Para Maia González (2008, p. 2),
dicho fenómeno constituye “uno de los aspectos más problemáticos en
el proceso de aprendizaje de cada una de ellas por parte de los hablantes
de la otra.”
Nos parece, entonces, importante investigar la realización de los
objetos – directo e indirecto – hecho lingüístico que puede hacer confuso
el aprendizaje del portugués por parte de hispanohablantes, si no es
enseñado del modo adecuado. Concordamos con Santos (1999, p. 53)
cuando afirma que: “o ensino de português para falantes de espanhol deve
ser diferente daquele voltado para falantes de outros idiomas”. Eso se
debe al hecho de que la enseñanza de portugués a hispanohablantes posee
algunas especificidades, como la gran facilidad en la comprensión de la
lengua extranjera, desde las primeras clases, y el proceso de aprendizaje
más rápido, lo que puede causar una fosilización precoz de la interlengua.
Por ello, hay una necesidad de desarrollar en los alumnos una consciencia
metalingüística acerca las diferencias existentes entre las dos lenguas.
2 La muestra analizada
Se analizaron diez libros de enseñanza de PLE. Para la selección
de los materiales, buscamos elegir libros de tipos variados, con público
meta diversificado, a fin de investigar posibles diferencias entre ellos,
en lo que concierne al tratamiento lingüístico-gramatical. Optamos por
libros actuales (publicados o con edición desde los 2000), para verificar
si hubo alguna evolución en la producción de esos materiales, por
influencia de los recientes estudios de la Lingüística en el área específica
de PLE, en comparación con investigación anterior (RODRIGUES,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
53
2012). Los materiales elegidos están relacionados a continuación, en
orden alfabético.
1)
Aprendendo Português do Brasil: um curso para estrangeiros.
4. ed. / Maria Nazaré de Carvalho Laroca; Nadime Bara; Sonia
Maria da Cunha Pereira. Campinas: Pontes, 2003. (APB)
2)
Bem-vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação.
8. ed. / Susanna Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R.
B. Andrade Burim. São Paulo: Special Book Services Livraria,
2014. (BV)
3)
Estação Brasil: português para estrangeiros. / Ana Cecília Bizon;
Elizabeth Fontão. Campinas: Átomo, 2005. (EB)
4)
Muito prazer: fale o português do Brasil. v. 2 intermediário. /
Gláucia Roberta Rocha Fernandes; Telma de Lurdes Ferreira;
Vera Lúcia Ramos. São Paulo: Disal, 2014. (MB)
5)
Novo Avenida Brasil: curso básico de Português para estrangeiros
1. / Emma Eberlein O. F. Lima et al. São Paulo: Editora
Pedagógica e Universitária, 2009. (NAB)
6)
Panorama Brasil: ensino de português no mundo dos negócios.
/ Susanna Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R. B.
Andrade Burim. São Paulo: Galpão, 2006. (PB)
7)
Passagens: Português do Brasil para estrangeiros. / Rosine Celli.
Campinas: Pontes, 2002. (PAS)
8)
Português Via Brasil: um curso avançado para estrangeiros. /
Emma Eberlein O. F. Lima; Samira A. Iunes. São Paulo: Editora
Pedagógica e Universitária, 2005. (PVB)
9)
Sempre amigos: fala Brasil para jovens. / Elizabeth Fontão; Pierre
Coudry. Campinas: Pontes, 2000. (SA)
10) Tudo bem? Português para a nova geração. v. 1. 5. ed. / Susanna
Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R. B. Andrade
Burim. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2012. (TB)
54
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
3 Fundamentación Teórica
Esta investigación se fundamenta en los presupuestos de la
Sociolingüística, corriente lingüística que se inició en los Estados Unidos,
en la década de 1960, como reacción al generativismo chomskyano y
al estructuralismo saussureano. Esa teoría concibe la lengua como un
hecho social y está relacionada a otros campos del conocimiento, como
la antropología, la sociología y la geografía lingüística.
Es en el libro Modelos sociolingüísticos que Labov (1983)
presenta los principales conceptos de la nueva escuela, así como la
metodología de su propuesta. Según la teoría laboviana, el componente
social es fundamental en el análisis lingüístico, pues, como ya dijimos,
en la Sociolingüística, la lengua está vista como fenómeno social. Otro
aspecto importante de ese abordaje es que, para Labov, la lengua es un
sistema heterogéneo. La heterogeneidad lingüística, pero no implica de
ninguna manera un caos lingüístico, puesto que hay normas subyacentes a
toda variación, así que puede ser sistematizada. La variación es inherente
a las lenguas, sin embargo no compromete el buen funcionamiento del
sistema lingüístico ni la comunicación entre sus hablantes
En fin, para la Sociolingüística, jamás se puede considerar como
irrelevante un fenómeno en variación. Además, un sociolingüista no
puede tener una posición prejuiciosa respecto a alguna variedad. Lo que
muchos consideran un “error”, para el sociolingüista es una variante, esto
es, una posibilidad en la lengua. Por lo tanto, queda claro la importancia
de la Sociolingüística en la formación docente.
En Brasil, la vasta producción sociolingüística ha aportado
importantes parámetros pedagógicos para la enseñanza de portugués como
lengua materna, teniendo en cuenta el abismo existente entre el portugués
estándar y el portugués hablado por los estudiantes, mayormente los
de escuelas públicas. La contribución de los estudios sociolingüísticos
para la educación brasileña se debe, sobre todo, a la investigación
sociolingüista de Bortoni-Ricardo (1984 y 1993), que señaló la necesidad
de que la escuela promueva la enseñanza bidialectal que busque facilitar
el aprendizaje de los alumnos hablantes de dialectos no estándar.
En la perspectiva de la Sociolingüística Educacional, el educador
no puede tener una postura de falta de respeto en relación a los saberes
del alumno y su manera de hablar. Ya no se puede pensar que es deber
del profesor cohibir los usos de la lengua que se desvíen de la norma
estándar, humillando a los alumnos. Como afirma Bortoni-Ricardo (2004,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
55
p. 38): “uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos
educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles representam
e a da escola, e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de
conscientizar os educandos sobre essas diferenças”.
Uno de los presupuestos de la Sociolingüística Educacional es
el reconocimiento de que la competencia lingüística de los individuos
demanda que ellos dominen los diferentes modos de expresarse en su
propia lengua. Es obvio que el aporte de los resultados de la investigación
sociolingüística variacionista para el área de enseñanza y aprendizaje no
se limita a la lengua materna. También podemos identificar su frontera con
la adquisición de lengua extranjera y, específicamente, de PB, teniendo en
cuenta que los análisis de las variedades de las diferentes comunidades
de habla proporcionan una descripción mucho más realista acerca del
funcionamiento de las lenguas, sus gramáticas tradicionales y también
de la importancia de los aspectos sociales y culturales en el aprendizaje
de una lengua extranjera.
Una enseñanza de portugués de Brasil para extranjeros (PBE)
que se base en la teoría variacionista posibilitará que los aprendices
interpreten el significado de los usos variables de las formas lingüísticas
identificadas en contextos marcados por la diversidad cultural. Esa clase
de orientación pedagógica también hace que el alumno perciba la forma
por la cual los hablantes nativos utilizan la variación para expresar sus
identidades, especialmente cuando el aprendizaje se da en el contexto
del país de la lengua aprendida.
Sabemos que los Parámetros Curriculares Nacionales – PCN
recomiendan que las clases de lengua extranjera les proporcionen a
los alumnos: la competencia de “saber distinguir entre as variantes
linguísticas” (BRASIL, 2000, p. 28) y un nivel de competencia lingüística
que les propicie el acceso a informaciones de varios tipos, contribuyendo,
así, para su formación como ciudadano. Destacamos, además, que uno
de los criterios de adopción de libros didácticos de lengua extranjera
exigido por el Programa Nacional del Libro Didáctico (PNLD) es que
los mismos tengan “textos representativos das comunidades falantes da
língua estrangeira”. Notamos que las orientaciones de esos documentos
oficiales que reglamentan la enseñanza en Brasil ratifican la importancia
de una conexión entre la Sociolingüística y enseñanza de lenguas. De este
modo, no hay motivo para que materiales didácticos (MD) de enseñanza
de PBE sigan basándose en descripciones nada realistas del portugués.
56
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
Los preceptos adoptados para la producción de MD de PBE deben ser
los mismos recomendados para los libros didácticos de lengua materna
y de lengua extranjera recomendados por el PNLD, ya que todavía no
tenemos una medida específica para la enseñanza de PBE. Además, es
importante tomar como referencial los exámenes CELPE-BRAS en la
elaboración de materiales didácticos de PBE, a fin de mejor capacitar a
los alumnos para la realización de esa evaluación
Según Fragozo (2011, p. 156) “uma das contribuições da
Sociolinguística para a Aquisição de LE está relacionada ao que se
entende por língua-alvo, muitas vezes confundida com a língua padrão”.
Para la autora, lengua estándar consiste en la variante de mayor prestigio
en la sociedad y lengua objetivo, por otro lado, puede ser cualquier
variedad de la lengua aprendida a la que el aprendiz está expuesto y
que, por consiguiente, toma como modelo. Es cierto que no siempre el
estudiante de lengua extranjera está expuesto a la lengua estándar, sino a
otras variantes que influencian directamente su producción de la lengua.
Por eso, Fragozo (2011) critica la exagerada valoración de la lengua
estándar, en los materiales didácticos de enseñanza de lengua extranjera.
Así, es importante que el profesor de PBE muestre al aluno los
diferentes registros de la lengua portuguesa, para que este sea capaz de
elegirlos conforme a la situación de comunicación. Gomes de Matos
(2007) recomienda que se enseñen a los alumnos los usos formal e
informal de la lengua objetivo.
Es evidente que el conocimiento sociolingüístico es importante
para la práctica pedagógica, ya que:
Através deste conhecimento, o professor torna-se capaz de
considerar as diferenças linguísticas e culturais entre os membros
de uma comunidade, assim como seus valores sociais, de modo
a desenvolver o currículo e o método mais adequados para
determinados contextos de ensino. (FRAGOZO, 2011, p.166)
Retomando al tema de nuestra investigación, en lo que concierne
a la enunciación del objeto dentro de un texto o diálogo, en lengua
portuguesa de Brasil, hay varias posibilidades para su representación
aparte del uso de los clíticos. Por lo tanto, se constituye un fenómeno en
variación. Pretendemos, en este artículo, presentar nuestra investigación,
en la que examinamos como este aspecto del PB viene siendo tratado en
los materiales didácticos dirigidos a la enseñanza de PBE.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
57
4 La realización del complemento verbal en PB
Todas las lenguas habladas presentan variaciones. Así que eso
ocurre tanto en portugués como en español. Sin embargo, en el caso del
portugués de Brasil parece que hay una mayor distancia entre la lengua
escrita y lengua hablada, variedad(es) estándar y variedad(es) no estándar
(DUARTE, 2000). Tal abismo se debe a la manera como se estableció
la norma culta en Brasil, en base a un modelo que no era el utilizado
acá. Pero lo que nos interesa comentar es como esa diferencia puede
interferir en el proceso de enseñanza/aprendizaje de portugués como
lengua extranjera. Duarte (2000, p. 1) resalta:
Isso fica patente, por exemplo, quando se vai ensinar português
para estrangeiros. Já na primeira lição, o professor encontra
problemas com as estruturas com o verbo ‘haver’, por exemplo.
Ele ensina que o que a gramática diz é que “o certo” é: ‘há muita
gente no jardim’, mas diz ao aluno que ele vai ouvir e falar ‘tem
muita gente no jardim’. Ensina que “o certo” é ‘você foi ao
cinema?’, mas que ele vai ouvir ‘você foi no cinema?’. Ensina
que escrevemos/deveríamos escrever ‘nós não a vimos ontem’,
mas falamos/ouvimos ‘a gente não viu ela ontem’. Ensina que a
gramática prescreve ‘Contaram-me uma história’, mas ele vai
ouvir ‘Me contaram uma história’.
Vamos a limitarnos al penúltimo ejemplo, pues se refiere a nuestro
tema. Según afirman muchos estudiosos (TARALLO, 1990; DUARTE,
2000), el cuadro de clíticos del PB viene sufriendo un proceso de cambio.
Muchos están desapareciendo de la lengua oral, como es el caso del
pronombre acusativo de 3ª persona “a”, utilizado en el ejemplo anterior,
de tal modo que su uso queda restricto a situaciones más formales tanto
en la modalidad oral como en la escrita. Como mostró Duarte (2000)
con este ejemplo, en Brasil, es recurrente el reemplazo del clítico
acusativo por un pronombre tónico. Otras estrategias de retomada del
objeto directo también son frecuentes, como la repetición del sintagma
nominal o la omisión del complemento (objeto nulo). Así, hay otras
posibles realizaciones para la variable representación del objeto directo
anafórico, además de “não vimos ela” son: “não vimos (a) Maria/a
menina” o “não ø vimos”.
En otro estudio, Duarte (1989) describe, en base a metodología
cuantitativa, cuatro procesos de recuperación del OD. El pronombre
58
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
átono aparece como el menos usado para retomar el objeto directo, con
un 4,9% de las ocurrencias; luego, el pronombre ele, con un 15,4% de las
ocurrencias; después, el sintagma nominal anafórico, o sea, la repetición
del objeto directo, con un 17,1% de las ocurrencias; y el proceso más
usado, con un 62,6% de las ocurrencias es la categoría vacía.
Tarallo justifica la preferencia por la omisión del objeto directo:
Uma vez que os pronomes-objeto se encontram em fase de
extinção no português falado do Brasil, a luta acaba sendo travada
entre as duas formas não-padrão. Das duas a anáfora zero carrega
estigma sociolinguístico menos acentuado. (TARALLO, 1990,
p. 43)
Por lo tanto, la incidencia mayor del objeto nulo se atribuye
al hecho de la sustitución del clítico por un pronombre tónico ser
estigmatizada socialmente. Tarallo (1990, p. 43) defiende que la
preferencia es aún mayor cuando se trata de un objeto inanimado:
Na substituição de pronomes clíticos, a língua falada favorece
a anáfora zero, acelerando ainda mais o processo de sua
implementação no sistema quando o SN pronominalizável (isto
é, aquele já usado anteriormente e que deveria retornar como
pronome) for inanimado.
En lo que atañe a los pronombres anafóricos de objeto indirecto,
también es posible afirmar que los clíticos están desapareciendo de
la gramática del portugués brasileño, siendo también omitidos en la
modalidad oral del portugués. (TARALLO, 1990, p. 43).
Berlinck (1997) hizo una importante investigación sobre la
realización del OI, con corpus de lengua hablada y énfasis en las
ocurrencias en que el OI posee valor anafórico.1 La autora constató que,
en este caso, la categoría vacía es más frecuente (57%), seguida del
pronombre clítico (26%) y del sintagma preposicionado con pronombre
tónico (17%). Berlinck (1997) buscó identificar los contextos que
favorecen el uso de determinada forma en la posición de objeto indirecto,
tales como: la persona gramatical a que se refiere el complemento, el
tiempo verbal, distancia entre el complemento anafórico y su referente.
1
El valor anafórico del OI es entendido por Berlinck (1997, p. 1, traducción nuestra)
como la “relación de correferencia con un elemento mencionado anteriormente”.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
59
En cuanto a la persona a que se refiere el complemento, revela
que hay una predominancia de la categoría vacía solo cuando el referente
es de 1ª o 3ª personas gramaticales; el pronombre tónico aparece
preferentemente con la 3ª persona del discurso; y el pronombre átono
predomina con referente de 2ª persona.
Al considerar el tiempo del verbo de que el objeto indirecto es
complemento, la investigación de Berlink (1997) demostró un equilibrio
entre la categoría vacía y el pronombre átono, con verbos en el presente
de indicativo. Con verbos en los pretéritos perfecto e imperfecto de
indicativo, hubo una mayor ocurrencia de la categoría vacía. El uso de
los clíticos predominó con verbos en el futuro del presente de indicativo.
La mencionada investigación también tuvo en cuenta la distancia
entre el objeto indirecto anafórico y su referente. En oraciones con
referente en la oración inmediatamente anterior, hay una preferencia
por el objeto nulo, pero con referentes más distantes ocurre con más
frecuencia el objeto lexicalizado.
No podemos dejar de enfatizar el surgimiento de nuevas formas
pronominales en el portugués brasileño, utilizadas tanto en la referencia
del sujeto, como de los complementos verbales, a saber, você y a gente,
en sustitución a tu y nós, respectivamente. Dicho evento promovió
la posibilidad de varias combinaciones pronominales, algunas de uso
estándar y otras de uso no estándar de la lengua portuguesa brasileña.
Lopes (2007, p. 115) atribuye el cambio en el paradigma pronominal a
la inserción de las formas innovadoras en el cuadro de pronombres: “É
fato que a implementação de você e a gente no sistema de pronomes
pessoais gerou uma série de reorganizações gramaticais, tanto no
subsistema de possessivos, quanto no de pronomes que exercem função
de complementos diretos ou indiretos”. Para la autora, el pronombre
a gente es más usado que nós, tanto en la función de sujeto como en
la de complemento. Además, afirma que tal forma es frecuentemente
combinada con el pronombre oblicuo átono de primera persona del plural
nos, incluso por hablantes cultos de la lengua. Igualmente, es común la
correlación de você con el pronombre átono de segunda persona te, a
pesar de que el uso estándar sea con el pronombre de tercera persona.
No hay motivo para dejar de comentar tales hechos con los
aprendices hispánicos, incluso porque la lengua española también pasa
por fenómenos semejantes, como también observó Lopes (2007, p. 115):
“A constituição do paradigma supletivo é resultado de um processo de
60
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mudança similar ao que ocorreu em outras línguas românicas, como é o
caso, por exemplo, do voseo hispano-americano”.
Almeida (2011), en un artículo sobre el pronombre lhe, afirma que
este pronombre no está en desuso, como lo que ocurre con o(s), a(s), según
afirman algunos estudiosos. En verdad, viene siendo menos utilizado en
su función prototípica. Ocurre que el uso de esa forma alterna entre la
segunda y la tercera persona y entre el dativo y el acusativo. Al empleo del
pronombre lhe en función de objeto directo se da el nombre de lheísmo.
Este fenómeno se puede justificar como una analogía al funcionamiento
de las formas pronominales que no son de tercera persona.
Al citar la investigación de Ramos (1999), Almeida (2011) comenta
los tres comportamientos en el uso del pronombre lhe descriptos por
aquella:
1)
Rio-São Paulo: lhe usado para expresión del dativo de segunda
persona del discurso, relación de respeto/cortesía y te para la
relación familiar, aunque você sea usado tanto en las relaciones
de respeto, como de familiaridad.
2)
Maceió, Recife, Salvador y João Pessoa: lhe reemplaza te como
dativo y como acusativo, su uso no está limitado a situaciones
formales.
3)
Región Norte y Maranhão: Você/lhe son usados en el tratamiento
de cortesía y tu/te, en el tratamiento familiar. Los clíticos lhe y te
son usados tanto para el dativo como para el acusativo.
En la Gramática Brasileña para hablantes de español, Carvalho
y Bagno (2015) presentan un cuadro muy completo de los pronombres
personales de la lengua portuguesa hablada en Brasil, incluyendo você
y a gente, así como la forma o senhor para el tratamiento formal. Los
autores también comentan las correlaciones pronominales posibles, en
la variedad brasileña del portugués.
En lo que concierne a la representación del complemento verbal,
que es el eje de este trabajo, Carvalho y Bagno (2015, p. 46) afirman
que los pronombres de objeto directo, de tercera persona o(s), a(s) “ya
no pertenecen a la lengua espontánea brasileña y los usan únicamente
las personas con acceso a la educación formal. Su empleo se restringe a
los textos escritos formales”.
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61
Carvalho y Bagno (2015, p. 46) registraron que, para reemplazar
el objeto directo de tercera persona, los brasileños prefieren usar los
pronombres tónicos ele(s) y ela(s) o no utilizar ningún pronombre. Es
importante mencionar que los autores constataron que el primer caso es
bastante frecuente con verbos en imperativo. Algunos de los ejemplos
dados son los siguientes:
(a) Eu comprei um terreno aqui no interior por três mil, mas já vendi
ele para um parente.
(b) Eu comprei um terreno aqui no interior por três mil, mas já vendi
ø para um parente.
(c) Para de incomodar a Aninha. Deixa ela em paz! (imperativo)
En relación a la segunda persona singular, Carvalho y Bagno
(2015, p. 47) señalan las diversas posibilidades de formas oblicuas
utilizadas en la correlación con você:
CUADRO 1 – Formas oblicuas utilizadas en la correlación con você2
Objeto directo
Se você quiser ir comigo, eu te levo.
Objeto indirecto
Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã
vou te devolver.
Se você quiser ir comigo, eu lhe levo.2 Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã
vou lhe devolver.
Se você quiser ir comigo, eu levo
você.
Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã
vou devolver pra você.
Fuente: Carvalho y Bagno (2015)
Otra observación importante es la que se refiere al empleo de
o(s), a(s) en sustitución a você. Carvalho y Bagno (2015, p. 48) dicen que
ese uso es bastante formal y ocurre solamente con verbos en infinitivo.
En cuanto al objeto indirecto de tercera persona, según Carvalho
y Bagno (2015, p. 48), el pronombre átono lhe solo es utilizado en
textos escritos formales. En su lugar, lo que se suele utilizar es también
2
Los autores hacen el siguiente comentario acerca de ese ejemplo: “El empleo de lhe
como objeto directo se restringe al habla informal de algunas variedades regionales”
(CARVALHO; BAGNO, 2015, p. 47)
62
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el pronombre tónico ele/ela, juntamente con una preposición para o a
(para ele/a, ele).
En verdad, sabemos que no se trata solo de una cuestión de
situación formal/ informal o de modalidad escrita/oral. Las fronteras que
delimitan las variedades son más tenues y se entrecruzan. Por ello, algunos
autores (BORTONI-RICARDO, 2004; NEVES, 2003) prefieren hablar
de continuos. Son los papeles sociales3 que desempeñamos que van a
dictar la variante que utilizaremos. Por lo tanto, un mismo hablante puede
usar el pronombre ele en función de objeto directo o indirecto y, en otra
situación, dirigiéndose a otro interlocutor, utilizar la variante prescrita por
la norma culta, o sea, los pronombres oblicuos o/a o lhe. Es evidente que
este tipo de elección solo la puede hacer un hablante culto, que tuvo acceso
a educación y tiene conciencia de la necesidad de variar su discurso, a fin
de hacerse comprender
5 Análisis del Corpus
Analizamos cualitativamente el contenido de los materiales
didácticos antes mencionados, a fin de averiguar si se consideraron los
presupuestos de la sociolingüística en su producción. Podemos describir
los procedimientos adoptados de la siguiente manera:
Descripción del tratamiento dado a la cuestión de la representación
del complemento verbal (CV), en cada material, con el fin de
averiguar si la variación lingüística está contemplada en alguna de
sus partes, ya sea en los ejercicios propuestos, en los textos, en los
enunciados, o en la parte teórica.
Examen de la estrategia presentada para representación del CV a
fin de verificar si corresponde solo al paradigma tradicional o toma
en cuenta las otras variedades.
En el caso de que el material didáctico contemple la variación
lingüística, verificar si ese abordaje ocurre de manera superficial,
como una especie de comentario sobre una curiosidad de la lengua
o como hecho lingüístico.
Discusión del paradigma pronominal presentado en los libros
didácticos.
3
Sobre papeles sociales ver Bortoni-Ricardo (2004, p. 23) y Preti (2004, p. 14).
63
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El análisis de libros didácticos que realizamos evidenció la
pobreza de esos materiales en lo que conciene al tratamiento de la variación
lingüística. Ya es posible notar algún cambio en la producción de esos
materiales en comparación a ediciones anteriores a las seleccionadas para
esta investigación, en el sentido de introducir palabras y construcciones
que antes eran totalmente despreciadas, por ser desprestigiadas. Se nota
actualmente una preocupación en enseñar la lengua hablada, pues de los
libros analizados la mayoría posee una declaración sobre eso. Buscamos
esa información en la contraportada, en la Presentación o en la solapa
de cada material analizado. Solo en dos libros no hemos encontrado la
afirmación de que el método se propone a enseñar la lengua hablada:
Panorama Brasil y Siempre Amigos. El primero se propone a enseñar
el portugués del mundo de los negocios y, por ello, tiene enfoque en la
enseñanza de la variedad culta del PB. El segundo libro no posee ninguna
afirmación de que se propone a enseñar el portugués hablado, aunque su
público objetivo sea adolescente y posea un lenguaje bastante informal.
La tabla a continuación demuestra la contribución de los estudios
lingüísticos en la producción de materiales didácticos de enseñanza de
PBE. En muchos libros hay registros de variantes no estándar, no solo en
lo que toca a la variable representación del CV en PB, sino especialmente
en lo concerniente al léxico. Contradictoriamente, pocos presentan
propuestas de ejercicios para la práctica de variantes no estándar.
TABLA 1 – Contribuciones de los estudios lingüísticos en la producción
de MD de PBE
Libro
Propone enseñar la
lengua hablada
Registro de variantes
no estándar
APB
x
x
BV
x
EB
x
MP
x
NAB
X
Ejercicios para la
práctica del uso de
variantes no estándar
x
x
x
x
PB
PAS
x
PVB
x
SA
TB
x
x
x
x
64
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MP presenta actividades que contemplan variantes no estándar
solamente sobre OI. Los ejercicios de OD son normativos. Las actividades
propuestas en PAS son para la práctica de reemplazo de lhe por te, en la
correlación con você y de la colocación pronominal no estándar.
Otro punto en que podemos notar la contribución de los estudios
lingüísticos en la producción de LD de PBE es la enseñanza de los usos
de los pronombres personales. Se nota, por ejemplo, la introducción
de la forma você al cuadro pronominal y, en algunos casos, también
de la forma a gente. En lo concerniente al primer pronombre incluso
notamos una preferencia por la enseñanza de esa forma y el desprecio del
pronombre tu, lo que también consideramos una equivocación, ya que
ambos los pronombres se utilizan todavía en PB. Sobre la enseñanza de
los pronombres personales sujeto presentamos la siguiente tabla:
TABLA 2 – Cuadro pronominal presentado – Pronombre sujeto
Libro
Incluye el
pronombre
você
Incluye el
pronombre
tu
APB
x
x
BV
x
x
MP
x
NAB
x
x
PB
x
x
PAS
x
SA
x
x
TB
x
x
Incluye la
forma a
gente
Incluye o
senhor, a
senhora
Incluye el
pronombre
vós
x
x
x
x
x
x
x
x
x
No se menciona EB en la tabla anterior, pues no presenta ningún
tipo de contenido gramatical, incluyendo los pronombres. En PVB, que
tampoco consta de la tabla, no hay sistematización de los pronombres
personales nominativos. Con relación a la enseñanza de los pronombres
de segunda persona singular, en el libro NAB, el pronombre tu aparece en
un comentario que dice que “é usado em Portugal e em algumas regiões
do Brasil”. Por otro lado, en TB, se comenta solo que el pronombre tu
65
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
es bastante usado en el sur de Brasil. En lo que atañe a la inclusión de la
forma innovadora a gente, los libros PAS y SA poseen una advertencia
sobre el hecho de tratarse de una expresión equivalente a nós. Sobre la
enseñanza del tratamiento formal de segunda persona del discurso, en
NAB y SA, o senhor/a senhora aparecen en un comentario y, en el libro
PAS, esos pronombres están incluidos en el cuadro de pronombres de
tratamiento y no en el de pronombres personales. Finalmente, en lo que
concierne a la enseñanza del pronombre de segunda persona plural vós,
solo en TB se aclara que este pronombre es encontrado en textos antiguos.
Queda evidente que todavía falta darle al uso de los pronombres
personales en PB la importancia que se le debe. No basta aparecer solo
como comentarios y observaciones, como si fueran solo una curiosidad
de la lengua. Es fundamental, por ejemplo, explicar las posibilidades
combinatorias de los pronombres complemento con la forma você, como
se demuestra en la siguiente tabla:
TABLA 3 – Cuadro pronominal presentado – Pronombre complemento
Libro
Incluye el
pronombre você
Incluye la
forma a gente
APB
Incluye o
senhor, a
senhora
Correlación te
+ você = lengua
hablada
x
x
BV
EB
MP
x
x
x
NAB
PB
PAS
x
PVB
SA
TB
x
Vemos entonces que solo tres libros enseñan la posibilidad
combinatoria de te y você, en el portugués hablado. En el libro PAS,
esa información aparece en un cuadro donde se lee: “lhe = para você,
66
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
informal = te”. También llama la atención el hecho de que, aunque la
mayoría de los libros analizados incluya el pronombre você en la lista de
pronombres personales sujeto, solamente dos lo incluyen en el cuadro de
pronombres complemento. Siendo que MP lo integra solamente como
OI y, en TB, el pronombre no aparece en el cuadro pronominal, sino
como un ejemplo en una advertencia: “convidar vocês ou convidá-los”.
Por último, con relación al tratamiento dado a la cuestión de
la representación del objeto, proponemos la tabla a continuación para
ilustrar nuestro análisis.
TABLA 4 – Tratamiento dado a la cuestión de la representación del objeto
Libro
Solo representación
por los clíticos
APB
x
BV
x
Representación por
pronombre tónico
Alusión a la
categoría vacía
x
EB
MP
x
NAB
x
PB
x
PAS
x
PVB
x
SA
x
TB
x
Como se ve, la mayoría de los materiales analizados todavía posee
un tratamiento normativo de la representación del complemento verbal,
puesto que hay un predominio de la enseñanza de la representación por
el clítico, que es la prescripción de la tradición gramatical. Sin embargo,
se notan algunos comentarios importantes, como en BV, en que hay una
observación sobre algunas frases que contienen clíticos: “Observe que o
uso desses pronomes deixa o diálogo com um tom bastante formal” y, en
el libro MP, en el que se exponen ejemplos y a continuación aparece la
siguiente observación: “Não é usado na linguagem oral”. Por otro lado,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
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solamente un libro menciona la posibilidad de objeto nulo, que es el modo
más frecuente de representación del complemento verbal, en PB. En tal
libro se alude a la categoría vacía por medio del siguiente comentario:
“O pronome oblíquo4 é facultativo”. Ya en cuanto a la representación del
OD por pronombre tónico, dos materiales registran esa variante, SA y
TB. En esos libros, hay diálogos en que aparece el pronombre ele en la
función de OD, seguidos de una advertencia sobre tratarse de lenguaje
coloquial. En el libro TB, sin embargo, encontramos la frase “No use”
antes de los ejemplos, sin especificar los contextos en que el uso no es
apropiado.
Queda evidente, entonces, que lo que predomina todavía es una
visión normativa y no sociolingüística de la lengua, con enfoque en lo
que es “equivocado”, no considerando factores pragmáticos como la
adecuación del enunciado a la situación comunicativa. En otras palabras,
en la mayoría de los manuales analizados, cuando alguna variedad no
estándar aparece, es con la intención de señalar lo que no se debe decir
o escribir (estamos refiriéndonos al tema de este estudio).
Como vimos, el tema de los pronombres átonos y demás
estrategias de representación del complemento verbal todavía no es
contemplado en toda su complejidad, en los materiales didácticos de
portugués para extranjeros. Aún es necesario detallar mejor las diferencias
del continuo “habla y escritura”, que existen en el portugués brasileño.
Asimismo enfatizamos la necesidad de la elaboración de un material
didáctico específico para hispanohablantes, que parta del análisis
contrastivo entre las dos lenguas.
Sin embargo, debemos aclarar que no pretendemos desvalorar
el conocimiento de la norma culta, en el proceso de aprendizaje de una
lengua. Creemos sí en la enseñanza de la gramática, pero de forma
contextualizada, pues es necesario considerar que nuestro discurso debe
adecuarse al contexto de producción textual. Ello implica una práctica
docente que se base en los diversos géneros textuales. Por lo tanto,
el resultado que se espera es que el alumno que aprende una lengua
extranjera sepa comunicarse adecuadamente, en las diversas situaciones
comunicativas.
4
“Pronome oblíquo” es la denominación en portugués para el pronombre complemento.
68
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019
6 Consideraciones finales
Retomamos nuestra afirmación inicial de que, debido a la
semejanza entre portugués y español, el alumno que aprende una de las
dos lenguas como lengua extranjera (LE), presenta muchas dificultades
para salir de la fase de interlengua, conocida popularmente como
“portuñol”. De este modo, queremos proponer una enseñanza que tome
como punto de partida el análisis contrastivo para la identificación de
los elementos que pueden causar problemas en el desempeño lingüístico
del hispanohablante aprendiz de portugués.
Uno de esos elementos es la diferencia que existe entre el PB y el
español en la representación del complemento verbal. Lo demostramos
con la síntesis que hicimos, con base a gramáticas de ambas las lenguas.
El resumen de algunos estudios sociolingüísticos sobre la representación
del CV también evidenció dicha diferencia. Con todo, los materiales
didácticos analizados en esta investigación no examinan ese punto de la
gramática portuguesa, o sea, no describen toda la riqueza de las estrategias
de retomada del CV posibles en PB. Algunos materiales solo mencionan el
hecho de ser común el uso del pronombre tónico en la representación del
objeto y también la omisión del CV, pero sin la necesaria profundización,
solo como una observación. Eso es inadmisible si consideramos que el
objeto nulo es la estrategia más utilizada para representar el CV. Por lo
tanto, la variación en ese hecho lingüístico, indubitablemente, merece
una explicación más detallada y contextualizada.
La mayoría de los libros objeto de esta investigación posee un
carácter meramente normativo, de enseñanza tradicional, con énfasis en
factores estructurales, lo que contraría muchas veces las declaraciones
encontradas en la parte introductoria o en la contraportada de los
mismos materiales, que los describen como modernos y de metodología
comunicativa. Muchas contraportadas exhiben la información de que el
material preparará al alumno para comunicarse en diversas situaciones
comunicativas, pero su contenido no describe todas las variedades.
Al partir de la idea de que enseñar una lengua extranjera significa
ampliar los horizontes del alumno, podemos afirmar que enseñarle solo
la variedad estándar del idioma es hacer exactamente lo contrario, es
limitarlo. Es necesario presentarle al discente el abanico de posibilidades
y orientarlo a adecuarlas a las diversas situaciones de comunicación.
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69
Aún considerando la enseñanza de PBE en la perspectiva
comunicativa de desarrollo de habilidades, se espera, delante de la escasez
de materiales didácticos específicos para hablantes de español publicados
en Brasil, que este estudio pueda colaborar para la planificación de
estrategias de enseñanza, sirviendo como material de apoyo a profesores,
o como base para la elaboración de materiales didácticos en general.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
Pesquisa longitudinal: a evolução do uso lexical de uma criança
dos 5 aos 22 meses de vida em um diário parental
Longitudinal Research: Lexical Use Evolution of a Child
From 5 to 22 Months of Age as Documented in a Parental Diary
Pedro Perini-Santos
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina,
Minas Gerais / Brasil
pedro.perini.santos@gmail.com
Lídia Ferreira Santos
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina,
Minas Gerais / Brasil
lidiaferreirasantos@outlook.com
Adriana Nascimento Bodolay
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina,
Minas Gerais / Brasil
adriananbodolay@gmail.com
Jéssica Leal
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina,
Minas Gerais / Brasil
jessicarolineleal@gmail.com
Resumo: Este trabalho apresenta as primeiras indicações empíricas de pesquisa feita
com corpus infantil longitudinal realizado com um informante brasileiro (G.), que mora
em Couto de Magalhães, uma pequena cidade do Vale do Jequitinhonha, em Minas
Gerais. Os registros em áudio começaram a ser feitos no 5o mês de vida do informante e
estenderam-se por 18 meses em sessões mensais regulares de 30 minutos cada. Trata-se
de uma forma de diário parental que, através da metodologia de corpus com contagem
de itens feita através de software, buscou obter dados referentes à sua evolução do uso
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.73-104
74
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
lexical e observar como se deram as variações no número de ocorrências das formas
pré-lexicais, a saber: os balbucios, as pré-palavras e as proto-palavras, e no número
de ocorrências das primeiras pré-palavras, proto-palavras, palavras e expressões
holofrásicas. O material oral coletado foi transcrito de acordo com o padrão internacional
CHAT. Durante o período estudado, foram consideradas 833 ocorrências produzidas
pelo informante. Observou-se que houve queda proporcional do valor do número
de pré-palavras e de proto-palavras, e aumento do valor proporcional do número de
palavras e expressões holofrásicas. Os dados obtidos foram organizados, tabelados e
comparados de acordo com o percentual de suas ocorrências. A eles, foi proposta uma
interpretação interacionista dialógica.
Palavras-chave: aquisição da língua materna; diário parental; registro oral; categorias
lexicais e pré-lexicais.
Abstract: This paper presents the first empirical results of a longitudinal corpus survey
conducted with a child informant (G.) who lives in Couto Magalhães, a small city in
the state of Minas Gerais, Brazil. The audio recordings started in the 5th month of the
informant’s life and continued for 18 months in regular monthly sessions of 30 minutes
each. Using corpus methodology, we sought to obtain data regarding the child’s variation
in the number of occurrences of pre-lexical forms – babbling, pre-words and protowords – as well as his lexical evolution through the observation of pre-words, protowords and holophrastic expressions. The collected corpus was transcribed according
to the CHAT international standard. Considering the 833 occurrences collected in our
research, we observed that, during the investigated period, the proportional values of
occurrence of pre-words and proto-words decreased, whereas the number of words
increased. A dialogical interactionist interpretation was proposed to account for the
data variation found.
Keywords: mother tongue acquisition; oral registration; lexical and pre-lexical
categories.
Recebido em 15 de novembro de 2017
Aceito em 20 de março de 2018
1 Apresentação
Este trabalho apresenta os primeiros resultados empíricos de
uma pesquisa longitudinal desenvolvido pelo grupo CIL (Corpus Infantil
Longitudinal) sobre a evolução do uso linguístico feita com uma criança.
Durante 18 meses, desde o seu quinto mês de vida, o informante G. teve
sua produção linguística espontânea gravada em áudio durante sessões
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
75
mensais regulares. Os registros aconteceram em sua casa com a presença
da mãe, que fez as gravações em áudio e as anotações referentes aos
contextos em que ocorreram as interações comunicativas.1 Trata-se,
assim, de um diário parental organizado com o intuito de acompanhar
a evolução do uso linguístico do filho e informante. Esta pesquisa usa
a metodologia de corpus e organiza os dados a partir da seleção de
ocorrências feitas através do software de reconhecimento e contagem
de palavras gratuito AntConc. (O programa está disponível no endereça
http://www.laurenceanthony.net/software/antconc/)
Este artigo será organizado da seguinte forma: inicialmente,
apresentaremos as referências que norteiam a pesquisa. Serão algumas
notas sobre a prática de diários parentais que relatam aquisição da língua
materna desde o século XVI. Também nessa seção, explicitamos a
razão da escolha do interacionismo dialógico como quadro teórico para
o desenvolvimento de nossa pesquisa que segue em curso.2 Na seção
seguinte, a metodologia adotada para a coleta dos dados será enfocada,
assim como o perfil do informante, as escolhas feitas para a transcrição, o
software de contagem utilizado e as categorias descritivas utilizadas para
o reconhecimento das ocorrências que foram manualmente etiquetadas.
Na apresentação empírica do artigo, serão expostos os dados até aqui
obtidos e locados nas categorias lexicais eleitas como pertinentes pela
equipe para a organização e a interpretação da evolução do uso lexical
do informante. As ocorrências lexicais coletadas foram organizadas em
quatro categorias: (i) balbucios, (ii) proto e pré-palavras, (iii) holofrases
e (iv) palavras.
1
Para a realização da pesquisa, o grupo de pesquisa CIL (Corpus Infantil Longitudinal)
obteve a autorização do Comitê de Ética [CAAE 57714216.5.0000.5108] e o
consentimento da responsável legal pela criança, que assinou o devido TCLE.
2
Há uma importante discussão sobre a pluralidade do conceito de interacionismo.
Um elemento que permite melhor identificação da proposta teórica à qual se filia é a
distinção entre sociointeracionismo e interacionismo. Nos dois casos, considerar-se o
outro participante da interação: o outro-social ou o outro-falante. Adjetivamos a nossa
opção teórica como interacionismo dialógico com o intuito de explicitar que o foco de
desta pesquisa não é social; o que estudamos é a fala da criança e sua relação com a fala
de sua mãe e demais interlocutores. Endossamos assim a postura teórico-metodológica
apresentada por Cláudia Lemos ao longo de sua obra, que discute a distinção acima
relatada. (Sobre o tema, ver LEMOS, C. 1999; LEMOS, T., 2002; LIER-DEVITTO;
CARVALHO, 2008; LEE et al., 2009).
76
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
2 Notas históricas sobre os diários parentais e a aquisição de língua
materna
2.1 Sobre Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la jeunesse de Louis
XIII
Registra-se como um texto precursor dos diários parentais que
relatam a aprendizagem da língua materna o diário escrito por Jean
Héroard (1551-1628) sobre o cotidiano do futuro rei da França desde seu
nascimento, em 1601, até 1628, ano em que morre o preceptor Héroard.
Entre as narrativas e os comentários feitos a respeito do cotidiano do
infante, constam em Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la
jeunesse de Louis XIII (Diário de Jean Héroard sobre a infância e a
juventude de Luís XIII) uma enorme quantidade de ocorrências lexicais
e sentenciais produzidas pelo infante. Mesmo que haja ensaios de
registros da fala na forma infantil – como “equivéz” (<“écrivez”), “vola”
(<“voilà”); “Dondon”, ao dirigir-se à ama-de-leite, e “Mamanga”, nome
dado à governanta “que ele gaguejou desde bem pequeno” (HEROARD,
1868, p. xi) –, ao material linguístico anotado não se atribui valor registro
espontâneo, porque as anotações feitas por Héroard usam a língua padrão
da época. Apesar disso, Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la
jeunesse de Louis XIII, publicado apenas em 1868 é reconhecido como
um marco histórico valioso para o feitio dos diários parentais.
2.2 Diários parentais: uma explosão de anotações familiares
Após a publicação de Emílio, ou a educação (ROUSSEAU,
[1762] 1995), ocorre uma “explosão de diários sobre a aquisição
de linguagem” (LEVELT, 2013, p. 120). Justifica-se a alusão feita
pelo psicolinguista, porque em Emílio, ou a educação, expressa-se a
importância dos estudos sobre a infância e suas consequências na lida
com os alunos. Desde então, são publicados vários trabalhos feitos a
partir da coleta de dados, ou impressões, em diários parentais.
As obras L’Enfant dans la langue (MORGENSTERN, 2009) e A
History of psycolinguistics (LEVELT, 2013) apresentam vários diários
parentais dedicados à evolução do uso linguístico infantil. Dentre eles,
os autores fazem referência a Moritz von Winterfield (1744-1819), cujo
texto descreve a evolução da fala de seus dois filhos e “a formação gradual
da linguagem da simples gramática da criança” (von WINTERFIELD,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
77
1788, p. 405 apud LEVELT, 2013, p. 95); a Hippolyte Taine (1828-1893),
que enfatiza e à ação criativa das crianças no uso linguístico; a Charles
Darwin (1809-1882), que publica “Biographical Sketch” na revista
Mind, em 1877, a partir de notas feitas sobre os anos iniciais de vida de
seu primogênito William; e a Jean Piaget (1896-1980), cuja obra propõe
etapas usadas para a descrição da aprendizagem infantil.3
Não são poucos os diários produzidos sobre o desenvolvimento
da fala dos filhos.4 Se, por um lado, podem ser contestados em função
do inerente envolvimento afetivo na escuta e na seleção das ocorrências
anotadas, os diários, por outro lado, são produzidos em ambientes em que a
interação comunicativa entre os filhos informantes e os pais pesquisadores
ocorre da forma mais espontânea possível. A presença de pesquisadores
externos à família nuclear resulta em alguma alteração do cenário natural
de interação entre pais e filhos, como relatam Hart e Risley: “quando as
observações se iniciam, as famílias e os observadores podem se sentir
igualmente desconfortáveis” (HART; RISLEY, 1995, p. 33).
2.3 Dos diários parentais às pesquisas feitas com corpora
Opondo-se à prática dos diários, rotulados como aleatórios e pouco
científicos – por não controlar o tempo, o horário, o local das observações,
o perfil dos infantes e a representação das amostragens – são desenvolvidas,
entre os anos 1920 e 1960, pesquisas que monitoram esses elementos e
O diário parental de Darwin não traz conteúdo lexical ou sentencial específico que
mereça destaque, mas alude ao uso da prosódia como recurso anterior à produção
linguística em si: “antes do ser humano usar linguagem articulada, ele produz notas
em uma verdadeira escala musical” (DARWIN, 1877, p. 293). A importância de seu
relato deve-se à introdução do tema aquisição de linguagem como ramo de pesquisa
para a biologia humana: “Após a publicação deste artigo, praticamente todos os autores
que falam sobre a aquisição da linguagem fazem alusão à teoria da evolução em geral
e à lei da filogenia (que sustenta ser a ontogênese uma recapitulação da filogênese)”.
(LEVELT, 2013, p. 99).
4
Em Levelt (2013) e em Morgenstern (2009), são feitas referências aos diários parentais
propostos pelos seguintes pesquisadores: Dietrich Tiedmann, Berthold Sigismund,
Bernard Perez, James Sully, Jan Baudouin de Couternay, Antoine Grégoire, Oscar
Bloch, Clara Stern, William Stern, Karl Bühler, Marcel Cohen, Ludwig Stümpell,
George Romanes, Gabriel Compayré, Fritz Schultze, Gabriel Deville, Frederick Tracy,
Kathleen Moore, Émile Egger, Wilhem Preyer, Wihelm Ament, Gustav Deville, Milivoïe
Pavlovitch, Ovide Decroly, Paul Guillaume e Read Brain.
3
78
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
descrevem aspectos linguísticos mais específicos. Morgenstern (2009)
elenca uma série de pesquisas empíricas que foram assim propostas: Smith
(1926) estudou o tamanho dos enunciados produzidos por 124 crianças
com idades entre 2 e 5 anos, com o mesmo objetivo, MacCarthy (1930)
anotou a fala de 140 crianças entre 1 e 4 anos de idade; por sua vez, Day
(1932) e Davis (1937) estudaram, respectivamente, 160 e 166 gêmeos
em aquisição da língua materna; Young (1941) associou a classe social e
o uso linguístico de 74 informantes infantis e Templim (1957) levou em
consideração amostras da fala de 430 crianças entre 3 e 8 anos de idade
e também se dedicou à análise da extensão e a evolução dos enunciados
por elas produzidos. Pode-se inferir que tais pesquisas compõem uma
etapa mediadora entre a confecção de diários parentais e a adoção da
metodologia de corpus de fato.
A partir de 1960, passa-se a registrar o áudio da fala infantil com
o uso do gravador. O emprego dessa tecnologia permitiu a composição
de corpora com valor documental. Surgiram projetos mais abrangentes
e mais precisos nas escolhas temáticas. O uso das gravações em áudio
gera mudanças importantes nos estudos sobre a fala infantil. Surge a
necessidade de se convencionar padrões para as transcrições que torna
possível o estudo quantitativo dos dados com a aplicação de softwares
de reconhecimento e contagem das ocorrências infantis transcritas e
etiquetadas de forma compatível com a linguagem do computador.
Sobretudo, passam a fazer parte da agenda teórica e empírica da linguística
perguntas sobre a natureza da fala infantil, sobre sua organização sintática
e lexical, e sobre o reconhecimento das primeiras palavras infantis: quais
devem ser consideradas e quais devem ser descartadas. Scollon (1976)
ressalta que “a decisão sobre o que deve ser observado, e considerado,
e o que deve ser descartado usualmente assume como base conceitos
anteriores (“priori grounds”), de modo a se adequar à tradição vigente”
(SCOLLON, 1976, p. 25). É nesse novo cenário que, em 1980, tem
início o projeto CHILDES – The Child Language Data Exchange System
(MACWHINNEY, 2000). O CHILDES usa o padrão de transcrição CHAT
– Codes for the Human Analysis of Transcripts. O uso desse padrão
permite que se convencionem etiquetas paras as notações, o que permite
a comparação de dados de fala espontânea infantil em diferentes línguas.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
79
3 Sobre as teorias de aquisição da língua materna: do inatismo ao
interacionismo
O inatismo propõe que o ser humano nasce provido de uma
aptidão neurobiológica para a linguagem pronta para ser ativada. Assume
que o uso linguístico que circunda o aprendiz oferece-lhe uma quantidade
de input restrita, porém suficiente, para acionar os mecanismos da
Gramática Universal (GU) que lhes são inatos. Essa capacidade biológica
permite às crianças a geração de sentenças até então inéditas. A GU
traduz-se em categorias sintáticas abstratas – como sujeito, verbo e
complemento – a serem preenchidas e organizadas de acordo com os
itens lexicais coletados durante a dita pequena experiência linguística
que teve a criança. As asserções inatistas sobrepuseram-se às tradições
epistêmicas anteriores que encontravam no uso linguístico infantil
campos conceitual e empírico distintos do uso adulto (cf. JESPERSEN,
1922; BERKO, 1958; BRUNER, 1975, 1983; SNOW, 2014).
A crítica interacionista enxerga na proposta inatista uma
sobreposição conceitual. Assim, são aplicadas “categorias e regras
gramaticais adultas (“adult-like”) na descrição da linguagem das crianças”
(TOMASELLO, 2000, p. 1). O interacionismo não considera o uso
linguístico infantil como um objeto homogêneo tal como é feito pelo
inatismo. Em sua evolução, há etapas distintas, há processos complexos
e há sobretudo uma quantidade muito significativa de experiências
comunicativas que envolvem as crianças e amadurecem suas habilidades
linguísticas e cognitivas. Se aceitarmos que a linguagem infantil tem
etapas e que essas ocorrem dentro de um contexto comunicativo, histórico
e cultural, onde ocorrem interações simbólicas e linguísticas, o estudo
sobre a aquisição da língua materna deve levar em conta sua evolução
comunicativa, histórica e cultural. O conceito do falante infantil ideal tornase, assim, figura hipotética estranha à pesquisa empírica sobre a aquisição
da língua materna. Além disso, e tal aspecto concerne diretamente a esta
pesquisa, o inatismo não elenca o léxico como traço relevante para a
descrição da aquisição das línguas maternas (cf. VALLAURI, 2008; para
argumento contrário, ver CAVALCANTE, 2017).
Em função disso, os interacionistas optam por uma percepção
estocástica que reconhece “os sistemas do universo”, como a linguagem,
“abertos, dinâmicos, e, assim, inexoravelmente sujeitos à influência dos
inputs externos” (LEE et al., 2009, p. 17). As regras gramaticais não são
mais vistas como dispositivos mentais pré-existentes a serem preenchidos
80
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com itens lexicais. As expressões linguísticas são formas partilhadas
pelos falantes, inclusos os falantes mirins, no decorrer de sua evolução
linguística na comunidade da qual participam.
O uso de formas pré e proto-lexicais, de formas lexicais e
de sentenças evolui com o passar do tempo e com as experiências
comunicativas que envolvem as crianças e os adultos. Para Bruner (1975),
o que ocorre é “uma construção progressiva” das práticas gramaticais
engendradas por motivação comunicativa. As crianças constroem as
proto-regras e as regras para as línguas que usam a partir da produção
analógica e replicatória daquilo que escutam e compreendem ao seu
modo e idade.
Esta pesquisa esposa a proposta interacionista dialógica como
referência para a análise realizada, bem como para a nomenclatura
utilizada, uma vez que desenvolve um estudo longitudinal e empírico.
Para tanto, consideram-se o tempo e os dados ilustrativos como ponto de
partida para as análises e ilações possíveis. Conforme já relatado, G. tem
sua produção linguística oral gravada, transcrita, etiquetada e anotada, de
acordo com o padrão internacional CHAT, desde o seu 5o mês de vida.
4. Metodologia para a coleta dos dados
4.1 Sobre a obtenção dos dados em áudio
Os dados considerados para este artigo foram coletados entre
15/05/2015 e 15/10/2016. G. é um garoto ativo, comunicativo, amável
e interativo. Mora com a mãe e com a avó em uma cidade do interior do
Estado de Minas Gerais. Os registros em áudio foram acompanhados
pela mãe. As sessões de gravação tiveram duração média de 30 minutos
e ocorreram no início das terceiras semanas dos meses. O equipamento
usado para o registro foi um gravador de voz digital portátil modelo
Sony ICD-PX333. Não houve estímulo experimental, mudança de
ambiente, de práticas cotidianas ou uso de artefatos que modificariam a
conduta comunicativa de G. As falas da criança e dos adultos presentes
no momento dos registros em áudio são espontâneas.
4.2 Sobre a transcrição das falas
Seguindo o protocolo da metodologia de corpus, as gravações
foram transcritas por duas das componentes da equipe. Por razão óbvia,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
81
dedicou-se maior detalhamento situacional na transcrição da fala de G.
do que na fala dos demais envolvidos nas interações comunicativas. Os
documentos foram identificados como G.01, G.02 etc. e salvos em .txt,
formato comportado pelo software escolhido. A transcrição dos dados
seguiu o padrão CHAT, usado pelo Projeto CHILDES. Anotam-se as
ocorrências linguísticas usando o alfabeto latino. Não é uma transcrição
fonética, mas mantém-se, na medida do possível, as formas sonoras
usadas pelo informante. As falas dos participantes aparecem identificadas
com MOT (para a mãe), CHI (para a criança), e GRA (para a avó do
informante, que esteve presente em várias tomadas). Precede a transcrição
o protocolo de registro da identificação do momento de interação entre
os participantes: acrônimos em três letras, idade, gênero, local, língua,
data, tempo de gravação e situação de ocorrência. Anotam-se essas
informações, fazendo uso de acrônimos introduzidos pela marca @:
FIGURA 1 – Cabeçalho da transcrição G.01.txt
@Begin
@Languages: por
@Participants: CHI G. Child, MOT L., GRA M. Grandmother, INV L.
Investigator
@ID: Por | Diamantina | CHI | 0;5.01| Male | Target_Child |||
@ID: Por | Diamantina | MOT | 27;10 | Female | Mother |||
@ID: Por | Pedra Azul | GRA | 69;00 | Grandmother |||
@ID: Por | Diamantina | INV | 27;10 | Investigator |||
@Date: 15-08-2015
@Location: Couto de Magalhães, MG, Brasil
@Time Duration: 12:14 – 12:35
@Situation: MOT dá banho em CHI
Associada às ocorrências transcritas, há toda uma série de
comentários que descrevem a situação na qual ocorreram as manifestações
orais e gestuais. Antes dos comentários descritivos, aparece o símbolo
%. Por exemplo, na primeira linha da Fig. 2, %exp introduz a ação
desempenhada no ato da fala: a criança, CHI faz o movimento para
morder a roupa da mãe. Em seguida, a mãe, MOT, fala “o desenho...”. O
sinal (.) indica que houve pausa entre a primeira e a segunda fala da mãe;
(..) uma pausa mais longa etc. Nas linhas iniciadas por *CHI, indica-se
entre colchetes o momento inicial em que ocorreram as falas:
82
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
FIGURA 2 – Excerto da transcrição G.09.txt
%exp: CHI abaixa para morder um desenho no short de MOT
*MOT: o desenho não solta filho (.) cuidado senão você cai
*CHI: da didi [01’22”]
*MOT: não desliga o computador não por favor (..) você não
consegue
ligar de novo
*CHI: dia dia [01’36”]
*MOT: não consegue, tá desligado
*CHI: di [01’45”]
*MOT: para moço
*CHI: di [01’47”]
%exp: CHI apertando o botão de energia do notebook
*MOT: não é pra desligar não
A notação CHAT elenca uma ampla lista com marcas para a
identificação de elementos contextuais que ocorrem durante a gravação.
A marca %act indica as ações; %gpx indica gestos (handshapes); %sit
indica situações, %bck indica a presença de objetos usados pelos falantes,
%pho indica a transcrição fonológica, %par indica a ocorrência de
manifestações paralinguísticas, como tosse e choro, e os movimentos
faciais (gestos realizados pela cabeça; direcionamentos de olhar) são
identificados por %fac.
5 Pesquisa empírica: pergunta central
O objetivo deste estudo é acompanhar como se deu a evolução
dos usos de (i) balbucios, (ii) pré e proto-palavras, (iii) holofrases e
(iv) palavras do informante durante os 18 meses de gravação até agora
realizados. Com esse intuito, a equipe considerou todos os enunciados
produzidos por G. Ao todo, foram gravados 1.731 turnos de fala do
informante infantil. Dessas ocorrências, 833 foram locadas nas categorias
anteriormente apresentadas. Os demais 898 casos foram considerados
como (v) vocalizações, que têm consistência fonética, mas necessitam
de algum aporte visual para serem interpretados em exercício de função
expressiva, comunicativa ou acional. Como se notará na exposição
dos dados, ocorrem movimentos progressivos de substituição entre
as frequências das categorias menos precisas, a saber, (i) balbucios e
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83
vocalizações, pelas categorias semanticamente mais fortes, (ii) pré e
proto-palavras, (iii) holofrases e (iv) palavras.
5.1 Sobre as categorias
Optou-se por agrupar as ocorrências coletadas para a marcação
deste corpus infantil nas seguintes categorias: (i) balbucios, (ii) pré e
proto-palavras, (iii) holofrases, (iv) palavras e (v) vocalizações. A seguir,
apresentamos definições e exemplos de cada uma delas. Categorizamos
nossos dados de forma semelhante ao que propõe Bharadwaj et al.
(2015), que descreve a evolução da produção linguística espontânea de
24 crianças hindus falantes de canarês durante doze meses a partir de
seu primeiro ano de vida.
(i) Balbucios
No trecho a seguir (cf. Fig. 3), reconhecemos exemplos de
balbucio nas linhas 1 e 6 da transcrição. Quando ocorre o balbucio,
o informante reproduz o mesmo som repetidas vezes. No Glossário
Temático proposto por Brooks e Kempe, “balbucios (canônicos) são
vocalizações pré-verbais formadas pela repetição de sílabas como dadada
ou bababa” (BROOKS; KEMPE, 2012, p. 288). Assim, os balbucios não
têm uma referência no mundo, são formados geralmente por CV-CV, não
apresentam tonicidade e não constituem díades, uma vez que não ecoam
o uso adulto imediatamente anterior.
FIGURA 3 – Excerto da transcrição G.06
*CHI: te tetetetetetetetetete [00‘01“]
%par: risos
*MOT: derrubou o copinho lá ó
*GRA: safado sem vergonha
%exp: GRA coloca uma garrafinha no chão para CHI desistir do gravador
*CHI: de dedededede [00’27”]
*MOT: larga a garrafinha da vovó e pega seu copinho
84
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(ii) Proto e pré-palavras
As proto-palavras são referencialmente estáveis e diferem do
balbucio pela sua extensão – têm geralmente duas sílabas no formato
CVCV – e pelas diferenças possíveis na intensidade e na duração das
sílabas. Elas ocorrem após o uso adulto e representam o que a criança
é capaz de produzir nesse momento de imaturidade no controle do
mecanismo fonatório. Na Fig. 4, a forma papa é um exemplo de protopalavra.
FIGURA 4 – Excerto da transcrição G.09
*MOT:
*CHI:
*MOT:
*CHI:
*MOT:
*CHI:
escreve aí: papel
papa [22’52”]
papel escreve
papapa [22’57”]
escreve papel
papapapapapapapa [23’03”]
As pré-palavras são foneticamente consistentes, apresentam
variações acentuais e exercem função comunicativa. Geralmente ocorrem
como resposta a uma fala adulta e do ponto de vista articulatório guardam
semelhança com as palavras produzidas pelos adultos. No exemplo
a seguir (Fig. 5), temos duas ocorrências de pré-palavra em situação
dialógica:
FIGURA 5 – Excerto da transcrição G.12
*MOT:
*CHI:
*MOT:
*CHI:
*MOT:
*CHI:
pega o pano pra limpa aqui
pan[10’26”]
é, o pano, pega o pano pra limpa, mamãe derramou água
aga [10’33”]
é água
ma [10’36”]
Na segunda linha, o informante tenta pronunciar a palavra pano; o
faz de forma adaptada à imaturidade no controle do mecanismo fonatório
e produz pan. Em seguida, nota-se a forma lexical aga, que é a forma
produzida por G. para referir-se a água. Ambas pré-palavras acontecem
em resposta à fala da mãe que usa os termos antes de G. Constituem
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
85
díades materializadas através do uso de itens pré-lexicais entre mãe e
filho que podem ser interpretadas como indicações da interatividade
comunicativa entre o adulto e o infante.
(iii) Holofrases
Holofrases acontecem quando uma ou duas palavras exercem a
função de uma sentença completa, aqui compreendida como exercício
de ato enunciativo. Como aparece na figura 6, o informante usa a palavra
mais para dizer à avó que quer mais café. Como G. ainda não consegue
proferir toda a sentença, faz o pedido usando apenas a forma “lexificada”
que exerce a função holofrásica de solicitação.5 Interessante observar que
G. usa a forma mais logo após a fala de sua mãe. Essa mesma fala é em
seguida usada pela GRA, indicando, nos termos de Clark e Chouinard
(2000), algo como uma “autorização” para a fala infantil. Esse fato é
exemplo do caráter dialógico do uso linguístico infantil.6
FIGURA 6 – Excerto da transcrição G.14
%act: a avó oferece café a G.
*MOT: fala assim: mais vovó
*CHI: mais [05’00”]
*GRA: mais o que?
%par: risos
*MOT: ô filho, Gabriel, Gabriel olha aqui pra mamãe, psiu,
fala assim com a vovó: café
Compreende-se a expressão “lexificação” de acordo com a proposta de Talmy (2001)
que a define como a categorização e a expressão linguística de eventos, referências etc.
Por esse motivo, a lexificiação e consequente uso de (novos) itens lexicais não podem
ser vistos como algo inato, mas como processos diáticos, sociais e cognitivos (Sobre
o tema ver TALMY, 2001; PERINI-SANTOS, 2007).
6
A holofrase no uso infantil não é um recurso linguístico de fácil definição. Considerando
que a opção pela constituição de uma sentença canônica ou pelo uso de itens lexicais
solos em função sentencial inexiste até que o infante desenvolva a habilidade de fazer
tais composições. (Sobre o tema, ver DORE, 1975; SCARPA, 2009; MORGENSTERN,
2009).
5
86
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Na figura 7, CHI usa a forma chai muito próxima foneticamente
da forma sai para dizer para uma formiga sair de perto dele. Essa holofrase
acontece dentro de um contexto dialógico.
FIGURA 7 – Excerto da transcrição G.17
*CHI:
*MOT:
*CHI:
*MOT:
guinha chai chai [01’44”]
não, sai não filho
chai [01’47”]
ela tá no lugar dela, você que tá errado
Novamente, a fala de G. é retomada pela mãe com a forma
fonética corrigida, sai, oferecendo assim ao infante a forma convencional
para o verbo por ele ensaiado.
(iv) Palavras
Define-se palavra como uma sequência sonora socialmente
partilhada à qual se atribui significados convencionais. Na figura 8, a
forma mamãe é a primeira palavra proferida por G., com 10 meses e um
dia de idade, que aparece em nossos registros.
FIGURA 8 – Excerto da transcrição G.06
*MOT:
*GRA:
*CHI:
*MOT:
*GRA:
cê tá ouvindo a vovó reclamar né
uu
mamãe [11’12”]
oi amor
que mamãe
Na figura 9, G. utiliza duas formas de negação não e pode não.
E, na figura 10, G. produz a forma verbal coloca. São exemplos de uso
de palavras isoladas ou já em situação de combinação sintática inicial.7
7
Também sobre a nomenclatura referente às primeiras composições sentenciais
infantis, Brooks e Kempe (2012) diferenciam “word combinations” e “word-specific
formulae”. A primeira nomeação alude à ocorrência de verbos e preposições em
expressões idiomáticas como given up; a segunda, “the schemas used to produce word
combinations; these consist of a relational term and a slot (e.g. alll gone__ used to
produce utterances such as all gone milk or all gone cookies.” (BROOKS; KEMPE,
2012, p. 302). Sobre o tema, ver Sobrinho da Silva (2011).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
87
FIGURA 9 – Excerto da transcrição G.16
*CHI: não [!] um não [07’28”]
*MOT: é, não pode mexe não (.) no telefone da mamãe, mamãe
já falou também que não pode
*CHI: pode não [07’36”]
*MOT: é, não pode (.) moço cê só que mexe em coisa que não
pode, computador também não pode, filho tira o dedinho daí,
não pode, cê tá ouvindo a mamãe fala que não pode? Vai mexê
com seus brinquedinhos.
FIGURA 10 – Excerto da transcrição G.18
%par:
*CHI:
*MOT:
*GRA:
risos
coloca [07’01”]
coloca filho, de novo?
aí*MOT: vai fica tirando e colocando?
(v) Vocalizações
As vocalizações são produções sem obstrução no nível do trato
vocal que precisam de algum aporte visual para serem interpretadas
no exercício de alguma função comunicativa. Nos trechos a seguir, as
falas de CHI são exemplos de vocalizações. Especificamente para esses
exemplos, as transcrições da fala do informante foram feitas de forma
fonética, o que aparece indicado na Fig. 11 pela sigla do CHAT %pho.8
Parte significativa das vocalizações e das demais ocorrências produzidas pelo
informante já foram transcritas fonologicamente para trabalho sobre a variação
prosódica (cf. BODOLAY, A. et al., 2017). Pretende-se que todas as ocorrências do
corpus produzidas pelo falante G. sejam assim transcritas. Para maiores discussões
sobre o conceito de vocalização e suas interpretações, ver Bodolay et al. (2017).
8
88
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FIGURA 11 – Excerto da transcrição G.01
*MOT:
calma
%exp:
*MOT:
%exp:
*CHI:
%pho:
%exp:
*MOT:
*CHI:
%pho:
%par:
*CHI:
%pho:
%exp:
*MOT:
*CHI:
%pho:
vamo tomar banho, pretinho (.) vamo? (..) pronto (...)
CHI no trocador
vamo tomar banho preto. (...) que foi?
preparando CHI para o banho
an [00’43’’]
[] [00’43’’]
GRA bate no copo e produz um som vocálico
vovó fazendo graça filho (...) viu?
eh [1’08”] (.) eh eh [1’12”]
[] [1’08”] (.) [] [] [1’12”]
barulho de beijo
eh [1’15”]
[] [1’15”]
MOT arrumando as coisas do banho
tira a mão da boca
na [1’29”]
[] [1’29”]
5.2 Os dados quantitativos tabelados
Nosso estudo objetivou acompanhar a evolução do uso dos
itens lexicais organizados em categorias lexicais infantis no decorrer
dos 18 meses de gravações. Reconhecemos 1.735 turnos de fala de G.
A contagem das ocorrências junto às transcrições foi feita com o auxílio
do software AntConc.
Nas gravações G.01, G.02 e G.03 – o que corresponde ao período
entre o 5o e o 7o mês de vida – G. produz apenas vocalizações. Das
categorias escolhidas para análise da evolução linguística do infante,
os balbucios tiveram início no 8° mês de vida, que corresponde à
transcrição G.04, e mantiveram-se presentes até a transcrição G.15. As
pré e as proto-palavras apareceram em G.06, com uma única ocorrência
e mantiveram-se presentes até o registro G.18, com 51 ocorrências.
Essas formas diminuem à medida que o número de palavras aumenta
(optamos por colocar as pré e proto-palavras na mesma categoria, pois não
encontramos até agora diferenças claras o suficiente para justificar análise
independente). As holofrases aparecem em G.13, com 4 ocorrências, e
permanecem presentes até G.18, com 49 ocorrências. O vocativo mamãe
89
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é a primeira palavra do informante G. que aparece em nossos registros.
Aparece em seu 10° mês de vida e está transcrita em G.06. Essa forma
de ocorrência aumenta marcadamente nos meses seguintes, como mostra
a Tabela 1:
TABELA 1 – Ocorrências por categorias
Identificação
dos registros
Vocalizações
G.01
45
0
0
0
0
45
G.02
57
0
0
0
0
57
G.03
25
0
0
0
0
25
G.04
44
7
0
0
0
51
G.05
18
6
0
0
0
24
G.06
56
15
1
1
0
73
G.07
8
26
2
0
0
36
G.08
6
23
0
1
0
30
G.09
40
30
3
0
0
73
G.10
73
15
9
2
0
99
G.11
67
5
5
2
0
79
G.12
82
27
37
23
0
169
G.13
64
16
5
2
4
91
G.14
154
6
19
12
11
202
G.15
67
1
22
6
3
99
G.16
40
0
56
48
2
146
G.17
40
0
137
66
18
261
G.18
12
0
51
59
49
171
Total
898
177
347
222
87
1731
Balbucios Pré e proto- Palavras Holofrases
-palavras
Total
90
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5.3 Análise dos gráficos comparativos
Como a pesquisa seguiu durante 18 meses, foi possível observar
a evolução de algumas categorias lexicais observadas na fala de G.,
além de possibilitar a realização de alguns cruzamentos de dados com o
intuito de acompanhar de forma longitudinal como ocorrem as relações
de substituição ou concomitância entre os recursos comunicativos usados
pelo informante. Serão apresentados três gráficos com as seguintes
associações categoriais: 5.3.1 balbucios, pré e proto-palavras e palavras;
5.3.2 vocalizações e balbucios e 5.3.3 holofrases e palavras.9
5.3.1 Balbucios, pré/proto-palavras e palavras
Observe o gráfico 1 abaixo:
GRÁFICO 1 – Balbucios, pré/proto-palavras e palavras
O gráfico 1 mostra como estão distribuídas ao longo do tempo
da pesquisa as ocorrências de balbucios, pré e proto-palavras e palavras.
Considerando as três categorias, nota-se que os balbucios ocorrem entre
G.03 e G.15 e são superados em número pelas outras categorias a partir
do registro G.13. As pré e proto-palavras têm sua maior ocorrência em
G.15 e G.16, e diminuem à medida que o número de palavras aumenta.
Observa-se, assim, a substituição das duas primeiras categorias pela
ocorrência de palavras: as categorias menos densas – os balbucios e as
9
Não se intenta propor interpretação generalizante para o uso linguístico infantil aqui
relatado. Nosso estudo tem cunho descritivo. Análises quantitativas mais robustas serão
feitas no decorrer do projeto de pesquisa em curso.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
91
pré e proto-palavras – são progressivamente substituídas pelas palavras,
que são semanticamente mais fortes e morficamente mais estáveis.
Especificamente sobre a relação entre as pré e proto-palavras e
as palavras, observa-se a mesma substituição. Mesmo que haja redução
do número total de ocorrências locadas nas duas categorias entre G.17 e
G.18 – as pré e proto-palavras têm queda de 62% e as palavras decrescem
em 11% – mantém-se a tendência supracitada. A redução do valor total
nas duas categorias não afeta a interpretação relativa ao processo de
substituição das formas menos densas pelas formas lexicais mais densas.
5.3.2 Vocalizações e balbucios
Apresenta-se, abaixo, o gráfico 2 que mostra a evolução nos usos
de balbucios e de vocalizações de G.:
GRÁFICO 2 – vocalizações e balbucios
Os balbucios são frequentes entre G.06 e G.12 e param de ocorrer
a partir de G.15, quando o informante G. atinge a idade [01;07.01]. O
mesmo movimento de decréscimo acontece com as vocalizações. Essas
aparecem em todos os documentos de transcrições, mas diminuem a partir
de G.15. Assim como já indica o gráfico 1, a expressividade linguística
do informante torna-se mais lexical. As duas formas de expressão sonora
não-lexical, balbucios e vocalizações, minguam e são substituídas pelas
formas pré-lexicais e lexicais.
5.3.3 Palavras e holofrases
A seguir, tem-se o gráfico 3 que apresenta a evolução no uso de
palavras e holofrases na fala de G.:
92
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
GRÁFICO 3 – palavras e holofrases
A primeira palavra reconhecida pela equipe aparece em G.06
[0;10.01] (cf. Fig. 8). O número de ocorrências de palavras tem um aumento
considerável nos meses seguintes à sua inauguração lexical. No registro
G.11 [01;03.01], foram encontradas 2 ocorrências; em G.14 [01.06;01],
aparecem 12 palavras; em G.16 [01;08.01], aparecem 48 palavras; em
G.17 [01;09.01], 66, e em G.18 [01;10.01] são reconhecidas 59 palavras.
Essa rápida progressão no uso de itens lexicais é comumente nomeada
pela literatura como “momento de explosão lexical”. Dale e Fenson (1996)
apontam que esse momento tende a ocorrer entre o 11o e o 15o mês de
vida. A “explosão lexical” de G. ocorre entre o 15o, registro G.11, e o 21o
mês de vida, registro G.16; o que corrobora o comentário dos autores.
As primeiras ocorrências holofrásicas foram registradas a partir
da gravação G.13 [01;05.01]. Ocorre uma pequena curva de variação nos
meses seguintes com os seguintes valores: 4 ocorrências, em G.13; 11 em
G.14 e, em G.15, são observadas 3 ocorrências holofrásicas. Há um abrupto
crescimento entre G.16 e G.17. Passa-se de 3 para 18 o número de holofrases
registradas. Entre G.17 e G.18, passa-se de 18 para 45 ocorrências.
É interessante observar a seguinte correlação: o aumento no uso de
holofrases ecoa o aumento no uso de palavras ocorrido no mês imediatamente
anterior. Ou seja, a ocorrência de 48 palavras em G.16 permitiu a produção
de 18 holofrases em G.17. Por sua vez, as 66 palavras ocorridas em G.17
habilitaram o informante a produzir 45 holofrases no mês seguinte. Essa
correlação – 48 palavras > 18 holofrases; 66 palavras > 45 holofrases – não
nos parece acidental. O fato de ser munida de mais itens lexicais, de mais
repertório cognitivo e expressivo, permite à criança reconhecer e designar
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
93
objetos, pessoas e eventos na realização de seus primeiros Atos de Fala
fazendo uso de itens lexicais (cf. AUSTIN, 1962; para apropriação
corpus-driven, ver RASO; MELLO, 2014; BOSSAGLIA, 2015).
6 Comentários finais
6.1 Sobre a “comparação” de dados
Conforme mencionado anteriormente, optou-se pelas categorias
propostas em trabalho longitudinal semelhante (BHARADWAJ et al.,
2015). O autor acompanha a evolução da fala de 24 informantes durante
12 meses a partir do primeiro ano de vida. Considerando os 12 meses
registrados o informante G. a partir de seus 11 meses de vida, ou seja,
entre os registros G7. e G.18, observou-se, porém, que a evolução dos
dados obtidos nas duas pesquisas divergem em alguns pontos.
Em nossa pesquisa, o número de ocorrências de pré e protopalavras decresce de 76,5% para 32,1%; em Bharadwaj et al. (2015),
passa-se de 14,5% para 2,7%. Sobre o número de palavras identificadas,
em nossa pesquisa há um aumento de 0% para 32,1%; em Bharadwaj
et al. (2015), ocorre um aumento de 8,3% para 35,4%. Sobre o uso de
holofrases, em nosso estudo, passa-se de 0% para 30,8%; em Bharadwaj et
al. (2015), há uma forte queda, passa-se de 9,3% para 1,04%. Três aspectos
podem explicar as divergências. Primeiro: o estudo indiano registrou a
fala de um número muito superior de informantes: foram 24 crianças
falantes do canarês e nossa pesquisa acompanhou um único informante.
Segundo: nossos dados são nominais; os dados da pesquisa correlata são
apresentados em seus valores médios. Finalmente, os períodos etários das
coletas de dados considerados para essa “comparação” são diferentes.
O estudo brasileiro registra a fala do informante entre 5 e 22 meses de
vida; o estudo indiano, entre os 12 e os 24 primeiros meses de vida dos
informantes. Nesse sentido, não há de fato uma comparação, mas o
aproveitamento de categorias analíticas pertinentes.
Especificamente sobre a categoria holofrases, em que houve maior
divergência na evolução dos dados das duas pesquisas, a interpretação
das funções holofrásicas depende de elementos contextuais como as
indicações dêiticas, a presença de objetos, as expressões faciais e gestuais
dos falantes e, sobretudo, a presença e a atitude entre os interlocutores.
Nas duas pesquisas, a indicação e a relação desses elementos com as
94
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
produções linguísticas são escassas. Isso é uma limitação metodológica à
qual o nosso grupo de pesquisa está atento. Além disso, Luo et al. (2012),
em pesquisa sobre as diferenças dialógicas entre mães americanas,
tailandesas, chinesas e peruanas, e seus respectivos filhos, afirmam que
não há homogeneidade nas díades produzidas entre esses interlocutores e
consequentes interpretações. No uso de cada “manhês” específico, pode
variar os números de verbos, de itens nominais, de frases curtas, de frases
longas, de “tag questions”, de perguntas abertas, de ordens, de pedidos,
de explicações, de esclarecimentos etc. Assim, a ocorrência dos Atos de
Fala ditos holofrásicos e seu reconhecimento pelos pesquisadores estão
sujeitos a interpretações socioculturais.10
6.2 Sobre o amadurecimento do corpus
A cada releitura das transcrições, a cada nova interpretação
dos dados já transcritos ou em transcrição, encontramos passagens
que demandam reajustes e maior detalhamento. Esse movimento de
amadurecimento é inerente à pesquisa de corpus. Os trabalhos de coleta,
transcrição e marcação de corpora infantis realizados pelo grupo CIL têm,
neste artigo, a sua primeira publicação que partilha sua pesquisa empírica
em desenvolvimento. Progressivamente, temos incorporado aos corpora
que efetivamos mais detalhes referentes aos contextos das ocorrências,
à prosódia e às realizações fonética e gestual dos infantes investigados.
Estamos cientes da complexidade multifacetada que envolve a análise dos
dados referentes à fala infantil e os elementos que compõem a sua expressão.
Agradecimentos
Agradecemos a nossos informantes, à mãe, à avó e ao próprio G., que
generosamente permitiram o registro de seu cotidiano. Agradecemos ao
colega Patrik Vezali, pela atenta revisão feita no texto final. Agradecemos
aos pareceristas desta revista pelos comentários críticos. Suas sugestões
foram incorporadas à redação final deste artigo, o que permitiu o
amadurecimento do texto e das reflexões aqui apresentadas. Agradecemos
à FAPEMIG, que apoia esta pesquisa (processo 02621-16).
Ainda sobre o tema das díades entre pais e filhos. Das poucas referências feitas sobre
“a fala do pai”, vale registrar o que diz Rondal: “Les pères passent seulement quelques
secondes ou quelques minutes par jour à parler à leurs enfants pendand les premiers
mois d’existence” (RONDAL, 1978, p. 63).
10
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
95
Contribuição dos Autores
Pedro Perini-Santos e Lídia Ferreira-Santos propuseram a presente
pesquisa. P. Perini-Santos e L. Ferreira-Santos organizaram e monitoraram
a coleta de dados, analisaram os dados, redigiram e escreveram o texto
final do artigo. Jéssica Leal e L. Ferreira-Santos coletaram, transcreveram
e revisaram a transcrição dos dados. Adriana Nascimento Bodolay
transcreveu e analisou os aspectos fonéticos. P. Perini-Santos é o
coordenador da pesquisa do grupo CIL (Corpus Infantil Longitudinal).
Todos os colaboradores são membros do CIL e trabalham em um projeto
de pesquisa mais amplo dedicado à construção e à análise de corpora
infantis longitudinais.
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Press, 1962.
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99
ANEXO: trechos citados transcritos
Seguem os excertos de exemplos transcritos e citados no decorrer do
artigo. Neste Anexo, são ofertados períodos mais extensos em que
ocorrem os exemplos analisados. As transcrições estão organizadas em
acordo com a numeração da Figura.
FIGURA 2 – Excerto da transcrição G.09.txt
*MOT: que foi
%par: choro de CHI
*MOT: pega o carrinho (.) vai pega o carrinho lá aqui ó (..)
vai comer o Poh vai comer o Poh delícia mamãe não quer não
%exp: CHI tira o bonequinho da boca e coloca na boca de MOT
%par: risos
*MOT: que foi (.) que foi (..) não acredito que você vai
comer o short da mamãe
%exp: CHI abaixa para morder um desenho no short de MOT
*MOT: o desenho não solta filho (.) cuidado senão você cai
*CHI: da didi [01’22”]
*MOT: não desliga o computador não por favor (..) você não
consegue ligar de novo
*CHI: dia dia [01’36”]
*MOT: não consegue tá desligado
*CHI: di [01’45”]
*MOT: para moço
*CHI: di [01’47”]
%exp: CHI apertando o botão de energia do notebook
*MOT: não é pra desligar não
*CHI: di [01’50”]
*MOT: não
*CHI: dia[01’52”]
*MOT: olha aqui não pode
*CHI: di é di [01’55”]
*MOT: para
100
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FIGURA 3 – Excerto da transcrição G.06
%exp: CHI está sentado no chão brincando com um copinho
quando vê MOT colocar o gravador no sofá e levanta para
tentar pegar
*CHI: te te te te te te te te te te te [00’01”]
%par: risos
*MOT: derrubou o copinho lá ó
*GRA: safado sem vergonha
%exp: GRA coloca uma garrafinha no chão para CHI desistir do
gravador
*CHI: de de de de de de [00’27”]
*MOT: larga a garrafinha da vovó e pega seu copinho
*GRA: deixa ele brincar
%exp: CHI batendo a garrafinha no chão sons de televisão ao
fundo
*GRA: nossa quarenta e nove imóveis destruído (...) deve ser
porque é gás encanado né
*MOT: não sei não
*GRA: por que diz que o povo desligou o gás
*CHI: ma ma ma ah[!] be be be be bru bru de de de [!]
[01’03”]
FIGURA 4 – Excerto da transcrição G.09
%par: risos
*MOT: o que Escreve pra mamãe toma a canetinha aqui escreve
aí pra mamãe (.) escreve aí isso (.) do outro lado deixa a
mamãe abrir pra você pronto
%exp: CHI batendo a caneta na folha
*MOT: vai rasgar não rasga não
*CHI: bu bu bu ba bu [22’40”]
*MOT: escreve aí papel
*CHI: papa [22’52”]
*MOT: papel escreve
*CHI: pa pa pa [22’57”]
*MOT: escreve papel
*CHI: pa pa pa pa pa pa pa pa [23’03”]
*MOT: deixa a mamãe escrever pra você
*CHI: paa [23’11”]
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101
FIGURA 5 – Excerto da transcrição G.12
*MOT: não pode
*CHI: nannan [10’01”]
*MOT: não ah derramou água pega o pano pra mamãe pega o pano
pra mamãe limpa aqui vai
*GRA: olá ó (..) oli ó (..) o pano
*MOT: pega o pano pra limpa aqui
*CHI: pan [10’26”]
*MOT: é,o pano pega o pano pra limpa mamãe derramou água
*CHI: aga [10’33”]
*MOT: é água
*CHI: ma [10’36”]
*MOT: é pega o pano lá
*CHI: pê [10’39”]
*MOT: pano
*CHI: pê [10’42”]
*MOT: é
FIGURA 6 – Excerto da transcrição G.14
*GRA: mais o que
*MOT: pede a vovó mais pede
*GRA: o que cê que fi
*CHI: ma [04’56”]
*GRA: ham
*CHI: ma [04’58”]
*MOT: fala assim mais vovó
*CHI: mais [05’00”]
*GRA: mais o que
%par: risos
*MOT: ô filho Gabriel Gabriel olha aqui pra mamãe psiu fala
assim com a vovó café
*CHI: bó [05’14”]
*GRA: sua mãe disse que não gosta que dá ocê café porque que
ela tá mandando eu dá (..) hein
*MOT: dá a garrafinha de suco pra ele não não dá café ele não
*GRA: não eu vou tomá uá
*MOT: uá se cê for toma cê tem que dá ele então né fi olá a
vovó vai dá filho olá
*CHI: fé [05’30”]
*MOT: é café (..) não não mexe aí não vovó dá lá olá
102
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FIGURA 7 – Excerto da transcrição G.17
*MOT: é tudo da vovó não mexe mamãe já falou que isso aí não
pode pegá filho não pode
*CHI: abutatuadu a tuta [01’37”]
*MOT: ó
*CHI: a [01’42”]
*MOT: olha a formiguinha
*CHI: guinha chai chai [01’44”]
*MOT: não sai não filho
*CHI: chai [01’47”]
*MOT: ela tá no lugar dela você que tá errado
*CHI: ado [01’50”]
*MOT: é
*CHI: tudo ajundo qui casa [01’53”]
*MOT: cuidado aí
*CHI: cu chainha [02’03”]
*MOT: é na folhinha
FIGURA 8 – Excerto da transcrição G.06
*GRA: acho ruim por que é uma coisa que quebra
*MOT: não não vai quebrar não pode ficar tranquila
*CHI: um um um [10’53”]
*MOT: o máximo que vai acontecer é ele bater na própria mão
(..) ou para com isso [!]
%exp: CHI batendo o vidro no chão
*MOT: cê tá ouvindo a vovó reclamar né
*GRA: uu
*CHI: mamãe [11’12”]
*MOT: oi amor
*GRA: que mamãe oriege
*CHI: um um rum rum [11’17”]
*GRA: me dá aqui ó (..) Gabriel [!]
*CHI: an um [11’26”]
*MOT: fala assim não dou é meu a mamãe me deu
*GRA: ô Biel (..) ô Biel
%par: resmungando
103
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FIGURA 9 – Excerto da transcrição G.16
*MOT: filho que cê tá fazendo (..) pode mexe nas coisas da
vovó não (..) pode não fecha a gaveta da vovó fecha (..)
fecha filho (..) não fecha cuidado com a mãozinha fecha
*CHI: zinha [07’16”]
*MOT: é mãozinha, tem que tomar cuidado senão cê machuca
*CHI: amo [07’20”]
*MOT: não não pode mexe nas coisas da vovó vovó vai briga
vou lá conta pra ela que cê tá mexendo nas coisas dela
*CHI: não [!] um não [07’28”]
*MOT: é não pode mexe não (.) no telefone da mamãe mamãe já
falou também que não pode
*CHI: pode não [07’36”]
*MOT: é não pode (.) moço cê só que mexe em coisa que não
pode computador também não pode filho tira o dedinho daí não
pode cê tá ouvindo a mamãe fala que não pode vai mexe com
seus brinquedinhos
*CHI: quedinho ma dim [07’52”]
*MOT: é
*CHI: madinho madinha madim [07’53”]
*MOT: seu livrinho cadê
*CHI: xinho [07’58”]
FIGURA 10 – Excerto da transcrição G.18
*CHI:
*MOT:
%tim:
*CHI:
*MOT:
%par:
%tim:
*CHI:
*MOT:
*GRA:
*MOT:
*GRA:
%par:
%tim:
*CHI:
a bobinha
fala assim: carregador
[06’57”]
gadador
do celular
risos de MOT
[07’01”]
coloca
colocá filho de novo
aí
vai fica tirando e colocando
só pra vê a luzinha
risos de MOT e GRA
[07’11”]
im dá
104
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019
FIGURA 11 – Excerto da transcrição G.01
@Situation: MOT indo dar banho em CHI
%sit: CHI está deitado na cama enquanto MOT prepara seu
banho
*MOT: vamo tomar banho pretinho (.) vamo (..) pronto (...)
calma
%exp: CHI no trocador
*MOT: vamo tomar banho preto (...) que foi
%exp: preparando CHI para o banho
%tim: [00’43”]
*CHI: an
%pho: []
%exp: GRA bate no copo e produz um som vocálico
*MOT: vovó fazendo graça filho (...) viu
%tim: [01’08”]
*CHI: eh
%pho:[]
%tim: [01’12”]
*CHI: eh eh
%pho: [] []
%par: beijo
%tim: [01’15”]
*CHI: eh
%pho: []
%exp: MOT arrumando as coisas do banho
*MOT: tira a mão da boca
%tim:[01’29”]
*CHI: na
%pho: []
*MOT: que foi peraí filho
%tim: [01’41”]
*CHI: eh
%pho: [e]
%sit: GRA atendendo o telefone
*GRA: alô (..) uá mas antes tava funcionando Lidinha (...)
aí meu xxx
%par: beijo
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019
A reinvenção da gramática em sala de aula
The Reinvention of Grammar in the Classroom
Gustavo Augusto Fonseca Silva
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
fonsecaugusto@hotmail.com
“Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever –
tarefa de sujeito e não de objeto”
FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. (1977).
Resumo: As discussões sobre as falhas e inconsistências teóricas das gramáticas
tradicionais ganharam impulso no Brasil nos anos 1980. Apesar disso, velhos problemas
como definições incoerentes dos conceitos gramaticais ainda são encontrados em
gramáticas recém-publicadas no país por autores como Amini Hauy, Mário Perini e
Lorenzo Vitral. Em vista dessa situação, neste artigo explicita-se, com base nos textos do
filósofo Ludwig Wittgenstein sobre “semelhanças de família” e nos trabalhos clássicos
da psicóloga Eleanor Rosch sobre categorização, por que os conceitos gramaticais, de
modo geral, não têm limites fixos nem podem ser coerentemente definidos. Além disso,
considerando-se esse fato, e seguindo os princípios da pedagogia libertadora de Paulo
Freire, argumenta-se que o professor de língua portuguesa nos níveis fundamental e
médio deve estimular os alunos a elaborar suas próprias classificações e definições
gramaticais, em diálogo com o trabalho de nossos gramáticos e linguistas.
Palavras-chave: ensino de gramática; conceitos gramaticais; categorização; pedagogia
libertadora; Paulo Freire.
Abstract: Discussions on flaws and inconsistencies in traditional grammar theories
grew in Brazil in the 1980s. Notwithstanding, old issues such as incoherent definitions
of grammar concepts can still be found in grammar books recently published by
Brazilian authors such as Amini Hauy, Mário Perini, and Lorenzo Vitral. In light of that
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.105-136
106
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019
matter, based on the work by philosopher Ludwig Wittgenstein on family resemblance
and on classical works by psychologist Eleanor Rosch on categorization, this article
explains why grammar concepts, generally speaking, do not have fixed limits nor can
be coherently defined. Moreover, by also considering Pedagogy of Freedom by Paulo
Freire, this paper argues that elementary, middle, and high school Portuguese teachers
must encourage students to create grammar definitions and classes while conversing
with works by Brazilian grammarians and linguists.
Keywords: grammar teaching; grammar concepts; categorization; pedagogy of freedom;
Paulo Freire.
Submetido em 8 de março de 2018
Aceito em 4 de junho de 2018
1 Introdução
Em sintonia com o trabalho de outros linguistas como Eglê Pontes
Franchi (1996), Jânia Martins Ramos (1997) e Luiz Carlos Travaglia
(2000, 2003), o professor Ataliba Teixeira de Castilho apresenta no livro
A língua falada no ensino de português várias propostas para a integração
da oralidade no estudo gramatical em nossas escolas de nível fundamental
e médio. Seu objetivo central ao fazê-lo, assim como o de seus colegas
pesquisadores, é dar respostas a alguns dos principais desafios que
vêm sendo enfrentados desde os anos 1980 pelos nossos professores
de português como consequência direta da inclusão educacional de
crianças oriundas de grupos sociais historicamente marginalizados e
discriminados. Entre esses problemas, a questão de como conciliar a
valorização das variantes linguísticas desses alunos com o ensino da
norma culta da língua, indispensável para o acesso ao ensino superior e
a melhores oportunidades de trabalho. Com o intuito de promover essa
conciliação, fazendo da aula um momento para a reflexão sobre a própria
língua em vez de um claustro dedicado à memorização de classificações
sintáticas e morfológicas, Castilho (p. 22) sugere que em primeiro lugar
sejam observados e ordenados em regras descritivas os fatos linguísticos,
colhidos de gravações de conversas, e apenas posteriormente se passe
à discussão de regras prescritivas, correspondentes ao padrão culto da
língua. Com esse cuidado de priorizar a descrição sobre a prescrição,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019
107
conclui Castilho (2006, p. 23), “a gramática deixará de ser vista pelos
alunos como a disciplina do certo e do errado, reassumindo sua verdadeira
dimensão, que é a de esquadrinhar através dos materiais linguísticos o
funcionamento da mente humana”. O professor, por sua vez, observa
Castilho logo em seguida, não deveria filiar-se a um único quadro teórico
em sua prática pedagógica, sendo-lhe mais saudável o ecletismo. Não
obstante essa posição, Castilho (2006, p. 23) pondera que “é evidente que
se requer previamente a habilidade de identificar as classes gramaticais
por seus atributos morfossintáticos e semânticos, focalizados nos
trabalhos de Perini (1985, 1989, 1995)”, e que, “num segundo momento,
pode-se desenvolver uma argumentação formalmente orientada, em que
as postulações pré-teóricas cedem espaço a um raciocínio guiado por
condições estabelecidas de antemão” (2006, p. 23).
Tendo em vista essas afirmações de Castilho, neste artigo
primeiramente discutiremos tal “habilidade de identificar as classes
gramaticais por seus atributos morfossintáticos e semânticos”, mostrando
que essa identificação nunca pode ser feita de forma indubitável, já que
as classes gramaticais são por princípio indefiníveis. Para tanto, serão
analisados alguns aspectos do trabalho de Mário Alberto Perini a que
se refere o professor Castilho, bem como aspectos de outros trabalhos
mais recentes do próprio Perini e de outros autores. Em seguida, com
base na constatação de que “as condições estabelecidas de antemão” de
que fala Castilho são sempre controversas, proporemos que o professor
de língua portuguesa leve os alunos a perceber que toda classificação
gramatical é um constructo teórico e que, exatamente por isso, pode e
deve ser questionada. Mais que isso: seguindo os princípios da pedagogia
humanizante, libertadora e problematizadora de Paulo Freire (1977a,
1977b, 1979, 1980), e indo ao encontro de novas propostas metodológicas
de ensino gramatical, como a de Oliveira e Quarezemin (2016), que
enfatizam a importância de os alunos elaborarem junto com o professor
gramáticas sobre fragmentos de línguas, defenderemos a ideia de que
cabe ao professor de português encorajar e ajudar os alunos a construir
suas próprias análises e classificações gramaticais, em diálogo tanto com
as gramáticas tradicionais quanto com as gramáticas publicadas mais
recentemente no Brasil (e.g. BAGNO, 2011; CASTILHO, 2010; HAUY,
2015; PERINI, 1995, 2010, 2016; VITRAL, 2017). Com essa proposta,
complementar à de outros pesquisadores que têm se dedicado à reflexão
sobre o ensino de língua materna e de gramática (e.g. BUNZEN et al., 2009;
108
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019
DIONÍSIO; BEZERRA, 2005; UCHÔA, 2007; VIEIRA; BRANDÃO,
2016), esperamos ajudar os docentes de língua portuguesa a dar um passo
adiante rumo à exortação do professor Castilho de que “a aula de gramática
deve implicar numa atuação participante de professor e aluno, movidos
pelo desejo da descoberta científica” (CASTILHO, 2006, p. 22).
2 Falta de coerência teórica
Nos anos 1980, vários linguistas brasileiros publicaram trabalhos
em que são apontadas as falhas e incoerências teóricas das gramáticas
tradicionais (GTs) (e.g. HAUY, 1986; ILARI, 1986; PERINI, 1984, 1985).
Entre esses autores, Perini destaca-se não somente por ter detalhado
muitas das fragilidades teóricas das GTs, mas principalmente por ter
construído novas teorias da língua portuguesa, tendo por objetivo superar
as velhas lições expostas nos compêndios gramaticais. Sua Gramática
descritiva do português, de 1995; sua Gramática do português brasileiro,
de 2010; e sua Gramática descritiva do português brasileiro, de 2016,
são marcos de seu grande projeto de construir uma gramática da língua
portuguesa mais sólida do que as GTs. Para isso, Perini vem dedicandose há décadas com particular afinco para superar o que denominou de
“falta de coerência teórica” das GTs:
A falta de coerência teórica se manifesta, por exemplo, nas muitas
definições que não podem ser seguidas se se deseja identificar as
entidades que elas pretendem definir. Um dos exemplos dados
no livro mencionado [Para uma nova gramática do português]
é a definição de sujeito como “o termo do qual se afirma alguma
coisa”; é bem fácil verificar que os termos usualmente analisados
como sujeito frequentemente não exprimem o ser do qual se afirma
alguma coisa. No entanto, continua mantendo-se tanto a definição
quanto a análise, muito embora as duas estejam em contradição
(PERINI, 1995, p. 21-22.
A falta de coerência teórica, na verdade, é reconhecida até mesmo
por alguns gramáticos tradicionais, como Celso Cunha e Lindley Cintra,
que afirmam no sétimo capítulo (“Frase, oração, período”) de sua Nova
gramática do português contemporâneo:
O estudo da frase e o da organização dos elementos que a
constituem pressupõem o conhecimento de alguns conceitos nem
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019
109
sempre fáceis de definir. Essa dificuldade resulta não só da própria
natureza do assunto, mas também das diferenças dos métodos
e técnicas de análise adotados pela linguística clássica e pelas
principais correntes da linguística contemporânea (CUNHA;
CINTRA, 2001, p. 120).
Cientes da dificuldade de definir alguns dos conceitos pressupostos
no estudo gramatical, mas sem a pretensão de discuti-la a fundo, muito
menos de tentar resolvê-la, Cunha e Cintra prontamente advertem que
seriam evitadas discussões teóricas que não trouxessem esclarecimentos
ao estudo descritivo-normativo da sintaxe portuguesa (CUNHA;
CINTRA, 2001), que era o principal objetivo deles naquele capítulo.
Perini, por sua vez, diferentemente de Cunha e Cintra, tem justamente
como uma de suas principais metas apresentar definições coerentes
desses “conceitos nem sempre fáceis de definir”, o que representaria em
sua opinião um importante avanço teórico em relação ao que é exposto
nas GTs. Com esse objetivo em mente, já em 1985, no livro Para uma
nova gramática do português, Perini apresenta o problema da falta de
coerência teórica e uma definição provisória do conceito de sujeito:
No momento, não disponho de uma definição realmente completa
e adequada a todos os casos; mas acho que a seguinte é uma
aproximação:
Sujeito é o termo com o qual o verbo concorda1 (PERINI, 1985,
p. 17).
No entanto, como o próprio Perini reconhece, a definição acima
não é adequada a todos os casos e por isso não resolve o problema da
falta de coerência teórica do conceito de sujeito. Atento a isso, dez anos
mais tarde, em sua Gramática descritiva do português, Perini apresenta
outra definição de sujeito, levemente modificada: “Sujeito é o termo da
1
A caracterização do sujeito como o termo que concorda com o verbo é apresentada
por Perini anos antes da publicação de Para uma nova gramática do português em
sua tese, intitulada Gramática do infinitivo português, defendida em 1974. Nessa obra,
Perini analisa a sentença “Houve dinossauros antigamente” e afirma: “Podemos ver
que o SN dinossauros não é o sujeito superficial porque o verbo não concorda com ele,
ficando na 3a pessoa do singular” (PERINI, 1977, p. 120).
110
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oração que está em relação de concordância com o NdP”2 (PERINI, 1995,
p. 77). O sujeito, esclarece Perini, harmoniza-se com o NdP em número e
pessoa, sendo justamente essa harmonia a relação de concordância entre
os dois constituintes. Assim, em “Meus sobrinhos comeram a melancia”
o sujeito (meus sobrinhos) concorda (harmoniza-se em número e pessoa)
com o NdP (comeram). O mesmo acontece com o sujeito “meu sobrinho”
em relação ao NdP “comeu” em “Meu sobrinho comeu a melancia”.
Entretanto, como mais uma vez reconhece o próprio Perini, ainda há
problemas com essa nova definição de sujeito:
A aplicação da definição de sujeito, a bem dizer, deixa certos
casos duvidosos. Talvez o mais sério seja o do gerúndio, que
não comporta desinências de pessoa-número, mas ainda assim
é usualmente analisado como sendo o sujeito em frases como
“Marivânia chegando, a farra vai começar” (PERINI, 1995, p. 78).
Longe de ser um caso isolado, ou o mais sério, há vários outros
em que a definição de Perini traz problemas. Em “A maioria das meninas
foram ao parque”, por exemplo, se seguirmos a definição de sujeito da
Gramática descritiva do português, deveremos classificar “as meninas”
como o sujeito, já que esse é “o termo da oração que está em relação
de concordância com o NdP”, e não “a maioria das meninas”. E em
“A maioria das meninas foi ao parque”, o sujeito seria “a maioria”,
não “a maioria das meninas”. Além disso, existem sentenças em que
mais de um elemento concorda com o verbo, o que nos impossibilita
identificar o sujeito pela definição de Perini. Dessa forma, em sentenças
como “Os brasileiros são eles” e “A maçã podre é aquela”, temos dois
“candidatos a sujeito” (“os brasileiros” e “eles” e “a maçã podre” e
“aquela”, respectivamente), sendo a definição de Perini incapaz de
apontar claramente qual o sujeito das sentenças dadas.
Além de deixar “certos casos duvidosos”, a definição de sujeito
proposta por Perini peca por não ser original, como ele mesmo admitiu
ainda nos anos 1980: “Definir o sujeito em termos de concordância verbal
2
NdP (núcleo do predicado) é, grosso modo, o verbo da oração. Assim, os NdPs das
sentenças “Pedro desenhou um girassol” e “Ricardo teceu importantes críticas ao
relatório” seriam os verbos “desenhou” e “teceu”, respectivamente. Em sentenças como
“Sarita está dormindo”, em que há uma locução verbal, Perini (1995) afirma que o NdP
é “dormindo”, e “está” é um auxiliar.
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111
não é, claro, nenhuma novidade; a definição se encontra, implícita ou
explicitamente, em muitos trabalhos” (PERINI, 1989, p. 74). Também se
encontram em muitos trabalhos, ao menos desde os anos 1980, críticas a
tal definição. Maria Teonilda F. A. Pinto, por exemplo, em sua dissertação
de mestrado,3 defendida em 1981, critica a definição de sujeito proposta
por Mattoso Câmara Júnior,4 baseada na concordância verbal. Conforme
Pinto, em algumas sentenças a concordância verbal não é o suficiente
para a identificação do sujeito, como em “A testemunha sou eu”, “Minha
testemunha era uma amiga” e “Luísa disse que parte dos problemas foram
resolvidos”. Pinto também ressalta a “hipercorreção” em sentenças como
“Faziam três anos que eu não o via” e “Haviam muitos fregueses no
bar”, além de mostrar a ambiguidade com que as GTs tratam sentenças
como “São seis horas”. Em vista desses problemas, Pinto afirma que a
concordância verbal não é controlada apenas pelo sujeito e, portanto, não é
uma propriedade exclusiva para a sua identificação. Além do mais, como já
explicitado, sujeitos de orações no gerúndio não concordam com o verbo,
fato que obrigou Perini a justificar sua posição: “A rigor, seria necessário
negar que haja sujeito em ‘Marivânia...’, já que aí o verbo não concorda
com nenhum dos termos. No entanto, sob vários outros pontos de vista,
Marivânia funciona como se fosse um sujeito, o que cria um problema
quanto a sua análise” (PERINI, 1995, p. 78). Mais à frente, Perini continua:
Acontece que o sujeito, definido por sua relação de concordância
com o verbo, apresenta também alguns traços que, se não estão
presentes em todos os casos, estão presentes na maioria deles; por
conseguinte, esses traços contribuem para delinear o protótipo da
função que chamamos sujeito (PERINI, 1995, p. 79).
Em seguida, a fim de corroborar sua justificativa, Perini apresenta
traços dos casos de sujeito que seguem sua definição: a posição logo
antes do NdP e a possibilidade de o sujeito ser retomado por pronome
reto. Mais: reiterando o primeiro traço, Perini aponta o fato de que “as
Deve-se observar que a dissertação de Maria Teonilda Pinto, intitulada Critérios
psicologicamente identificadores de SNs sujeitos em português, consta na bibliografia
de Perini (1989).
4
“Em Português, é a concordância com o verbo em número e pessoa gramatical que
essencialmente assinala o sujeito” (CÂMARA JÚNIOR, 1964, p. 176). “A concordância
verbal é assim, em português, o mecanismo sintático fundamental para a indicação de
um substantivo sujeito” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 250).
3
112
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condições que governam a possibilidade de ocorrência do sujeito antes
ou depois do NdP se aplicam igualmente aos casos evidentes de sujeito
e a casos como o de Marivânia” (PERINI, 1995, p. 78) e exemplifica:
Podemos dizer “Chegou um amigo meu de Cuiabá”, mas não “*
Está desenhando um sobrinho seu na biblioteca”. O que acontece
igualmente com as sentenças no gerúndio: “Chegando um amigo
meu, por favor receba-o bem”, mas não “* Desenhando um
sobrinho meu na biblioteca, tive que ficar no quarto” (PERINI,
1995, p. 78).
Esses traços evidenciariam, segundo Perini, que sua análise de
que há um sujeito em orações no gerúndio está de fato correta, apesar
de sua definição desse conceito não abranger esses casos. Um tanto
contraditoriamente, porém, Perini classifica como sem sujeito a oração
“Vendi meu jegue”, “já que não existe aí nenhum termo explícito que
esteja em relação de concordância com o verbo”5 (PERINI, 1995, p.
78). Entretanto, é possível afirmar que Perini poderia argumentar que
“sob vários outros pontos de vista” há um sujeito naquela oração, já que
existem traços presentes nela que justificariam tal análise. Perini poderia,
por exemplo, dizer que naquela oração existe um termo implícito que está
em relação de concordância com o verbo, e que é possível identificá-lo
pela desinência verbal, que é a mesma de “Eu vendi meu jegue”, sentença
em que o sujeito segue a definição proposta. Ele poderia ainda afirmar
que as sentenças “Vendi meu jegue” e “Eu vendi meu jegue” possuem
o mesmo agente – o que ele, a propósito, realmente faz, ponderando:
“O sufixo de pessoa-número vale, para efeito da aplicação de regras
semânticas, como um sujeito pronominal, marcado com os traços de
pessoa e número do sufixo. (Nesses casos, por comodidade, falarei de
sujeito vazio.) (PERINI, 1995, p. 287). De acordo com Perini, isso só se
dá no plano semântico, não no sintático. Logo, sentenças como “Vendi
meu jegue” e “Eu vendi meu jegue”, conforme Perini, podem ter o mesmo
agente, mas não o mesmo sujeito. Ora, por que dessa restrição? A resposta
5
Na verdade, as sentenças com sujeito oculto (na terminologia das GTs) demandaram
de Perini uma árdua investigação, como a apresentada em sua Sintaxe portuguesa (p.
75-92), na qual ele pondera os prós e os contras de identificar um sujeito em sentenças
do tipo “Vendi meu jegue”, o que contrariaria sua definição desse conceito. Mas, como
exposto acima, Perini (1995) optou por negar a existência de um sujeito em “Vendi
meu jegue”, seguindo à risca, neste caso, sua definição de sujeito.
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113
parece ser que, se Perini assumisse que há um sujeito em “Vendi meu
jegue”, assumiria mais uma vez que sua definição de sujeito é incoerente.
Não por acaso, ele chega a afirmar:
Se (a) [“Cheguei ontem de Goiânia”] tem sujeito, será preciso
trocar a definição de sujeito como termo que está em relação de
concordância com o verbo. Essa definição se refere a um termo
explícito, e é claro que não há nenhum elemento explícito em (a)
que esteja em relação de concordância com o verbo. Como não é
essa minha opção, deixarei a quem pretenda defender a existência
de sujeito em (a) o trabalho de formular uma nova definição
(PERINI, 1995, p. 366).
A pergunta óbvia a se fazer aqui é: mas então por que Perini não
formulou uma nova definição de sujeito ao se deparar com sentenças
como “Marivânia chegando...”, que não seguem sua definição desse
conceito? E ainda: por que Perini não formulou uma nova definição de
sujeito ao se deparar com a sentença “O urso que me mordeu era branco”,
sobre a qual ele afirma que “há razões para se analisar que como o sujeito
de mordeu” (PERINI, 1995, p. 152)?
A razão principal para se analisar que como sujeito de [“O urso que
me mordeu era branco”] – seguindo, aliás, a análise tradicional –
é a seguinte: embora me mordeu seja aparentemente uma oração
sem sujeito, não se pode acrescentar um sujeito a ela:
* O urso que ele me mordeu era branco (PERINI, 1995, p. 152).
No entanto, é evidente que o pronome relativo “que” não é “o
termo da oração que está em relação de concordância com o NdP”.
Aliás, “o urso”, seguindo a definição de Perini, deveria ser classificado
como sujeito da oração (“O urso que me mordeu...”; “Os ursos que me
morderam...”). Assim, por que Perini tampouco formulou uma nova
definição de sujeito ao se deparar com sentenças cujos sujeitos não seguem
sua definição desse conceito? Nenhuma resposta coerente a essa pergunta
pode ser dada com base no que é apresentado na Gramática descritiva
do português. Nem com base no que é apresentado na Gramática do
português brasileiro ou na Gramática descritiva do português brasileiro,
nas quais Perini mantém em linhas gerais sua análise do conceito de
sujeito (cf. PERINI, 2010, p. 66ss; PERINI, 2016, p. 93ss). Dessa
maneira, o conceito de sujeito sofre nas três gramáticas de Perini do velho
114
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problema da falta de coerência teórica, assim como os demais conceitos
gramaticais.6 Mais importante, porém, do que listar exaustivamente os
casos de falta de coerência teórica encontrados nas gramáticas de Perini,
nas gramáticas de outros linguistas e nas gramáticas tradicionais – o que o
leitor pode fazer por si só com facilidade – é entender por que a existência
de definições incoerentes dos conceitos gramaticais é um problema sem
solução (logo, não é realmente um problema).
3 Das “semelhanças de família” wittgensteinianas à teoria dos
protótipos de Rosch
Dando continuidade às pesquisas de autores como M. A. K.
Halliday (1961) e David Crystal (1967), multiplicaram-se nos anos
1970 os trabalhos de linguistas a respeito do fato de que os conceitos
gramaticais não têm uma essência definidora, e sim características que
estão presentes de maneiras variadas em seus exemplos (e.g. KEENAN,
1976; LAKOFF, 1973; ROSS, 1972, 2004 [1973]). Influenciaram-nos
nesse debate tanto os artigos clássicos sobre categorização da psicóloga
Eleanor Rosch (e.g. 1973, 1975a, 1975b, 1978) quanto os textos do
filósofo Ludwig Wittgenstein sobre “semelhanças de família”,7 ideia
apresentada por ele nos anos 1930 em seu Livro azul:
6
Para uma discussão detalhada sobre a falta de coerência teórica nas GTs, na Gramática
descritiva do português e no trabalho de outros teóricos da linguagem, ver Silva (2006).
7
Apesar de ser amplamente atribuída a Wittgenstein a autoria da ideia das “semelhanças
de família” (e.g. ROSCH; MERVIS, 1975, p. 574-575), na realidade ele teria adquirido
essa noção de Oswald Spengler, conforme Brian McGuinness (2012, p. 9, n. 16, e p.
301) e Ilse Somavilla (2010, p. 175). Hans-Johann Glock (1998, p. 324), por sua vez,
cogita ainda outras duas fontes a que Wittgenstein pode ter recorrido para obter esse
conceito: o livro Além do bem e do mal, de Friedrich Nietzsche, e o livro Geometry
in the sensible world, de Jean Nicod. Independentemente de qual tenha sido o autor
de quem Wittgenstein realmente adquiriu o conceito de “semelhanças de família”, o
fato é que ele nunca lhe deu o devido crédito. A propósito, Wittgenstein muitas vezes
apresentou como ideias próprias ideias de outras pessoas. No livro Wittgenstein in
Cambridge (2012, p. 229), por exemplo, McGuinness explicita algumas observações
feitas por Piero Sraffa a Wittgenstein que foram reproduzidas no Livro castanho sem
que lhe fosse dado crédito algum. Já no Dicionário Wittgenstein (1998, p. 229), Glock
informa que a comparação entre a linguagem e uma “velha cidade”, apresentada no
§ 18 das Investigações filosóficas, consta nos textos de dois autores que Wittgenstein
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Sentimo-nos por exemplo inclinados a pensar que deve existir
algo em comum a todos os jogos, e que esta propriedade comum
é a justificação para a aplicação do termo geral ‘jogo’ aos diversos
jogos; ao passo que os jogos formam uma família cujos membros
têm parecenças. Alguns têm o mesmo nariz, outros as mesmas
sobrancelhas e outros ainda a mesma maneira de andar; e estas
parecenças sobrepõem-se (WITTGENSTEIN, 1992, p. 47-48).
Nas Investigações filosóficas, livro publicado postumamente em 1953,
Wittgenstein reapresenta as semelhanças de família de forma mais detalhada:
Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”.
Refiro-me a jogos de tabuleiros, de cartas, de bola, torneios
esportivos etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve
ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”, – mas veja se
algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá
na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças,
parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense,
mas veja! – Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com
seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de carta:
aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da
primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros
surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum
se conserva, mas muitas se perdem. – São todos “recreativos”?
Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou há em todos
um ganhar e um perder, ou uma concorrência entre os jogadores?
Pense nas paciências. Nos jogos de bola há um ganhar e um perder;
mas se uma criança atira a bola na parede e a apanha outra vez,
este traço desapareceu. Veja que papéis desempenham a habilidade
e a sorte. E como é diferente a habilidade no xadrez e no tênis.
Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento de divertimento
está presente, mas quantos dos outros traços característicos
havia lido: Ludwig Boltzmann e Fritz Mauthner. Nenhum crédito, porém, foi dado a
eles por Wittgenstein. No próprio Dicionário Wittgenstein (p. 290), Glock também
especula que a concepção defendida por Wittgenstein de que uma sentença é uma
unidade mínima para a realização de um lance em um jogo de linguagem tenha sido
inspirada em parte em Karl Bühler, apesar de ressaltar que a ideia se origina de uma
visão anterior, partilhada por Platão, Aristóteles, Bentham e Frege: a de que somente
as proposições, e não as palavras individuais, dizem ou comunicam algo. Novamente,
porém, nenhum crédito foi dado a autor algum por Wittgenstein.
116
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desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros
grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem
(WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 66).
Com as semelhanças de família, Wittgenstein rompe com o modelo
clássico de categorização, associado principalmente a Aristóteles (e.g.
LAKOFF, 1987; ROSCH, 1975b; TAYLOR, 2003). Segundo esse modelo,
as categorias são entidades claramente delimitadas e caracterizadas por
uma essência definidora ou por um conjunto de traços definidores, sendo
todos os membros da categoria igualmente representativos dela. Para
Wittgenstein, como ilustrado com as semelhanças de família dos jogos,
os exemplos de um conceito têm características variadas e sobrepostas,
não havendo portanto algo em comum a todos eles que nos permitiria
defini-lo ou delimitá-lo. Como consequência direta do fato de os conceitos
não terem uma essência definidora, Wittgenstein sugere que todo conceito
deve ser ensinado por meio de exemplos:
Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Creio que lhe
descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: ‘isto
e outras coisas semelhantes chamamos de jogos’. E nós próprios
sabemos mais? Será que apenas a outrem não podemos dizer
exatamente o que é um jogo? – Mas isto não é ignorância. Não
conhecemos os limites, porque nenhum está traçado. Como disse,
podemos – para uma finalidade particular – traçar um limite. É
somente a partir daí que tornamos o conceito útil? De forma alguma!
A não ser para esta finalidade particular. Tampouco tornaria útil a
medida de comprimento ‘um passo’ aquele que desse a definição:
um passo = 75 cm. E se você me disser: ‘Mas antes não havia
nenhuma medida de comprimento exata’, retrucarei: ‘Muito bem,
então era uma medida inexata’. – Se bem que você ainda me deva
a definição de exatidão (WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 69).
E ainda:
E exatamente assim explica-se o que é um jogo. Dão-se exemplos
e quer-se que eles sejam compreendidos num certo sentido. – Mas
com essa expressão não quero dizer que essa pessoa deva ver agora
nesses exemplos o algo em comum que eu – por alguma razão –
não posso exprimir. Mas sim que tal pessoa deva agora empregar
esses exemplos de um determinado modo. A exemplificação não
é aqui um meio indireto de elucidação, – na falta de outro melhor.
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Pois toda elucidação geral pode também ser mal compreendida.
Eis como jogamos o jogo. (Refiro-me ao jogo de linguagem com
a palavra ‘jogo’.) (WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 71)
Convencidos pela argumentação de Wittgenstein, filósofos,
antropólogos, linguistas e psicólogos levariam adiante toda essa discussão
sobre semelhanças de família nos anos seguintes à publicação das
Investigações filosóficas. Entre esses pesquisadores, Rosch sobressaiu
não apenas pela consistência e amplitude de seus experimentos sobre
categorização, mas também pelos desdobramentos dos resultados a que
chegou, com destaque para a sua teoria dos protótipos.
Conforme Rosch, uma categoria é “um número de objetos que
são considerados equivalentes”8 (ROSCH et al., 1976, p. 383), sendo
as categorias “designadas de modo geral por nomes, e.g., cachorro,
animal”9 (ROSCH et al., 1976, p. 383). Dessa maneira, para Rosch, “uma
categoria existe sempre que dois ou mais objetos ou eventos distinguíveis
são tratados equivalentemente”10 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 89),
recebendo o mesmo nome, por exemplo. De forma mais específica,
Rosch (1978) afirma que o processo de categorização se dá em duas
dimensões: uma vertical e uma horizontal. Para esclarecer seu ponto de
vista, Rosch chama a atenção do leitor para objetos simples do cotidiano
como uma cadeira. Segundo Rosch, a categoria cadeira está abaixo da
categoria móveis e acima de categorias como cadeira de balanço. Em
outros termos, a categoria cadeira é menos inclusiva do que a categoria
móveis (que abrange cadeiras, mesas, camas, etc.) e mais inclusiva do
que a categoria cadeira de balanço. Essas três categorias, no modelo
teórico de Rosch, relacionam-se na dimensão vertical. Ainda de acordo
com Rosch, a categoria cadeira também está no mesmo nível de outras
categorias – isto é, na dimensão horizontal. Um exemplo seria a categoria
de carro, que igualmente está abaixo da categoria mais inclusiva veículo
(que abrange carros, motos, ônibus, etc.) e acima de categorias menos
inclusivas como jipe.
Um sério problema a essa teoria, porém, advém do fato de
que “sujeitos individuais concordam que alguns exemplares de uma
“a number of objects which are considered equivalent”.
“are generally designated by names, e.g. dog, animal”.
10
“A category exists whenever two or more distinguishable objects or events are treated
equivalently”.
8
9
118
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categoria são mais representativos do que outros, e sujeitos diferentes
consistentemente escolhem os mesmos exemplos como os mais
representativos de uma categoria”11 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 96).
Assim, “é aceitável dizer ‘Um papagaio é uma ave de verdade’, mas não
‘Um pinguim é uma ave de verdade’”,12 afirmam Mervis e Rosch (1981,
p. 97) seguindo George Lakoff (1973). Para explicar esses fenômenos,
Rosch desenvolveu sua teoria dos protótipos, definidos como “os casos
mais claros, os melhores exemplos”13 (ROSCH, 1975a, p. 544). Segundo
Rosch, a diferença de avaliação que as pessoas fazem sobre a categorização
de um papagaio e de um pinguim como aves se dá porque o primeiro é
um representante prototípico da categoria, mas o segundo não. Conforme
Rosch, um representante prototípico é aquele que tem um grande número
de características comuns à maioria dos membros da categoria. Por sua
vez, “membros mais pobres das categorias costumam ter atributos de
conjuntos de atributos correlacionados a outras categorias”14 (MERVIS;
ROSCH, 1981, p. 101). O pinguim, por exemplo, apesar de pôr ovos e
ter asas, não sabe voar, diferentemente de uma ave prototípica como o
papagaio. Além disso, o pinguim apresenta características próprias a outras
categorias, estando por exemplo apto a nadar e adaptado a viver sob baixas
temperaturas, como os mamíferos foca e leão-marinho.
4 Semelhanças de família gramaticais
Com base na filosofia de Wittgenstein e nas pesquisas de Rosch
sobre categorização, podemos afirmar, como o fizeram alguns linguistas
nos anos 1970, que os conceitos gramaticais, assim como os conceitos
de jogos, de móveis, de aves, etc., têm vários traços que formam uma
família, no sentido wittgensteiniano. Tome-se como exemplo mais uma
vez o conceito de sujeito. O traço “ser sobre o qual se faz uma declaração”
está presente em uma sentença afirmativa como “Maria está doente”, mas
desaparece na interrogativa “Maria está doente?”. Há também os traços
11
“Individual subjects agree that some exemplars of a category are more representative
than others, and different subjects consistently choose the same examples as most
representative of the category”.
12
“it is acceptable to say ‘A sparrow is a true bird’, but not ‘A penguin is a true bird’”.
13
“clearest cases, best examples”.
14
“Poorer members of categories are likely to contain attributes from the correlated
attribute clusters of other categories”.
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119
referentes às classes de palavras que podem ocupar a posição de sujeito:
um substantivo (“Elisa quebrou a perna”); um pronome interrogativo
(“Quem quebrou a perna?”); um pronome demonstrativo (“Isto é um
problema”); um pronome indefinido (“Ninguém sabia o que fazer”); um
pronome relativo (“Os brasileiros, que adoram futebol, comemoram mais
uma conquista”); um verbo (“Ler é indispensável”); um numeral (“Ambos
foram detidos”). Orações também podem ocupar a posição de sujeito (“É
preciso que você saia”). E mesmo um termo elíptico (não materializado)
pode ocupar a posição de sujeito (“Fomos acampar na praia”). Há ainda
modos diferentes de esses “tipos” diferentes de sujeito se relacionarem
com seus respectivos verbos: nuns casos há concordância (como em
“Maria está doente”); noutros não há concordância (como em “Marivânia
chegando, a farra vai começar”); em outros ainda apenas “parte” do
sujeito concorda com o verbo (“A maioria das meninas quer/querem
sorvete”). Semanticamente, o sujeito pode ser agente (“Ludmilla jogou
a bola”), paciente (“A bola foi jogada por Ludmilla”), instrumento (“A
chave abriu a porta”) e assim por diante. Além disso, o sujeito pode ser
anteposto ao verbo (como em “Ninguém sabia o que fazer”) ou posposto
(“Chegaram os meninos”). Dessa maneira, tal qual o conceito de jogos,
não se pode definir o conceito de sujeito porque não há algo intrínseco
a ele, uma essência definidora, e sim várias características (traços) dos
mais diversos exemplos de sujeitos, as quais se sobrepõem.
A fim de reforçar nossa argumentação, vejamos outros quatro
conceitos gramaticais e seus traços sobrepostos, começando pelo conceito
de numeral. Cunha e Cintra (2001, p. 369) apresentam a seguinte
definição desse conceito: “Para indicarmos uma quantidade exata de
pessoas ou coisas, ou para assinalarmos o lugar que elas ocupam numa
série, empregamos uma classe especial de palavras – os numerais”. Ora,
se os numerais são palavras que indicam quantidades exatas de pessoas
e de coisas, frações e dízimas periódicas (3,222...) não poderiam ser
classificadas como numerais. Além disso, se os numerais “assinalam o
lugar que as pessoas ou coisas ocupam numa série”, o adjetivo “último”
deveria ser classificado como numeral em “Paulo chegou em último
lugar”, tal qual “sétimo” recebe essa classificação em “Paulo chegou
em sétimo lugar”. Mais: se utilizássemos o traço “a classe das palavras
que determinam quantidades” como o característico desse conceito,
deveríamos incluir entre os numerais o substantivo “infinito”. Diante
dessas características sobrepostas, fica nítida a impossibilidade de atribuir
120
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um traço característico ao conceito de numeral ou de delimitá-lo com
precisão, o que inviabiliza defini-lo coerentemente.
Já os adjetivos geralmente são identificados pelo traço “palavras
que atribuem qualidades aos substantivos”. Entretanto, nem tudo que
atribui qualidade aos substantivos é um adjetivo, nem tampouco os
adjetivos atribuem qualidades apenas a substantivos. Há verbos, em formas
nominais, que podem atribuir qualidades a substantivos, especificando
suas características, como em “dinheiro perdido” e “água borbulhando”.
Além do mais, substantivos também podem modificar substantivos,
especificando suas características, como em “cidade fantasma” e
“menina mulher”. Orações subordinadas adjetivas restritivas igualmente
modificam substantivos: “Aquele é o rapaz que perdeu a aposta”. E
existem também locuções que modificam substantivos, como a locução “de
ferro” (preposição + substantivo) em “panela de ferro”. Para complicar a
situação, os adjetivos também podem modificar verbos (atribuir qualidades
a eles), como ressalta Celso Pedro Luft (1985, p. 19). Outro traço dos
adjetivos é sua “possibilidade de exercer as funções de predicativo e de
adjunto adnominal” (CEGALLA, 1998, p. 154). Mas verbos, em formas
nominais, também podem ser predicativos (“A água está borbulhando”;
“O dinheiro está perdido”) e adjuntos adnominais (“O dinheiro perdido foi
recuperado”; “A água borbulhando cozinhou as batatas”). Em vista dessas
semelhanças de família, também fica clara a impossibilidade de atribuir
um traço característico ao conceito de adjetivo.
Os substantivos, por sua vez, frequentemente recebem uma
definição próxima a “palavra com que designamos ou nomeamos os seres
em geral” (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 177). Esse traço está presente em
“flor”, “menino” e “anjo”, mas não em “música”, “dor” e “ciência”. O
traço “palavra que serve de núcleo do sujeito, do objeto direto, do objeto
indireto e do agente da passiva” (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 177) não
nos possibilita definir esse conceito porque nem tudo que pode ser sujeito,
objeto direto e indireto e agente da passiva é um substantivo (pronomes
pessoais e interrogativos, por exemplo, podem assumir essas quatro
funções sintáticas). Além disso, o traço presente nos substantivos de
poder ser precedido por um determinante (artigo, pronome demonstrativo,
etc.) também está presente nos pronomes relativos (o qual, os quais, o
que, etc.), por exemplo. Dessa forma, mais uma vez as semelhanças de
família nos impedem de definir coerentemente o conceito de substantivo.
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121
Por fim, passemos aos advérbios, que Perini (1995, p. 342)
considera a classe de palavras mais complexa e multifacetada de todas as
estabelecidas nas GTs. Tradicionalmente, os advérbios são definidos como
“palavras que modificam um verbo, adjetivo ou outro advérbio”. Mas
novamente nem tudo que modifica um verbo, adjetivo ou outro advérbio
é um advérbio, nem tampouco todo advérbio modifica um verbo, adjetivo
ou outro advérbio. Nas sentenças “O problema, lamentavelmente, vem de
muitos anos” e “Eu, francamente, não achava lá muita graça nas piadas
de tio Angelim”, há advérbios que não modificam um verbo, adjetivo
ou outro advérbio, ou seja, não possuem o traço utilizado para definir
esse conceito (NEVES, 2003, p. 82). Além disso, como bem observa
Perini (1995, p. 338-342), afirmar que um advérbio pode modificar outro
advérbio traz à definição dessa classe um elemento de circularidade, o
que a inviabiliza. Pior, completa Perini (1995, p. 342): como o conceito
de modificação é vago, a definição de advérbio que o utiliza é também
vaga. Sintaticamente, prossegue Perini, as palavras tradicionalmente
classificadas como advérbios exercem funções bem diferentes: (a)
negação verbal (“Seu tio não apareceu na estação”); (b) intensificador
(“Almeida é muito magro”, “Almeida estava completamente bêbado” e
“Essa proposta é francamente ilegal”); (c) adjunto circunstancial (“Ela
ri muito”); (d) atributo (“Terminamos a pintura rapidamente”, “Ela
me revelou tudo francamente”); (e) adjunto adverbial (“Ela decorou o
apartamento completamente”) e (f) adjunto oracional (“Francamente,
acho que ele nos enganou”). Perini chama ainda a atenção do leitor para
o fato de que os advérbios de modo (“rapidamente”, “completamente”
e “francamente”) são sintaticamente bem diferentes entre si. Diante
de um quadro tão amplo de funções, Perini conclui ser possível haver
não uma, mas várias classes de palavras sob o rótulo de advérbio.
Essa possibilidade, claro, é uma consequência direta do fato de que os
conceitos gramaticais têm vários traços que se sobrepõem.
Outra consequência direta desse fato é a falta de limites rígidos
entre os conceitos gramaticais, o que possibilita formar um sem-número de
categorias gramaticais distintas das encontradas nas GTs. Mattoso Câmara
Júnior, por exemplo, em sua Estrutura da língua portuguesa (1976), utiliza
critérios morfossemânticos e funcionais (ou seja, de acordo com a função
que o vocábulo desempenha na sentença) para estabelecer suas classes
de palavras: nome (adjetivo e substantivo), verbo, advérbio, conectivo
(coordenadores e subordinadores (preposição e conjunção)) e pronome.
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Cristina Schneider, por sua vez, no artigo “Tentativa de classificação dos
vocábulos segundo um critério morfológico”, vale-se do uso ou não de
sufixos flexionais ou derivacionais15 para propor cinco classes de palavras:
nomes (agrupando as tradicionais classes de substantivo, adjetivo e
numeral, porque estas admitem flexão em gênero e número), pronomes,
verbos, advérbios e conectivos (agrupando novamente, tal qual na proposta
de Mattoso Câmara, as tradicionais classes de preposição e conjunção,
porque estas não admitem derivação nem flexão). As tradicionais classes
de artigo e de interjeição não são tidas como classes de palavras por
Schneider porque, segundo ela, os artigos seriam apenas morfemas
marcadores de gênero nos nomes (o artista, a artista, a criança, o livro) e
as interjeições seriam simplesmente um elemento da linguagem emotiva
e não da linguagem intelectiva. Já Miriam Lemle propõe 10 classes de
palavras no livro Análise sintática: nomes, adjetivos, verbos, determinantes,
quantificadores, preposições, advérbios, complementizadores, conjunções
e antequessor (que abarca os pronomes relativos e as wh-words (when,
who, what, etc.), isto é, palavras como “que”, “quem”, “qual”, “quando”,
“quanto”, “como”, “cujo” e “onde”.
Mais recentemente, em sua Gramática do português brasileiro
(2010), Perini apresenta as classes dos nominais – que se subdividem
em nomes (substantivos e adjetivos), pronomes, artigos, predeterminante
(“todos”) e quantificadores (“cada”, “poucos”, “muitos”, etc.) –,
verbos, adverbiais e conectivos – que se subdividem em preposições,
conjunções e coordenadores (tradicionalmente chamados de “conjunções
coordenativas”). No entanto, ressalva Perini, “trata-se mais de um
programa de pesquisa do que de uma exposição de resultados – no atual
momento, é o que se pode oferecer” (2010, p. 294). Na verdade, dadas
as semelhanças de família gramaticais, não se poderá nunca oferecer
uma lista definitiva das classes de palavras, bem como das demais
categorias gramaticais. Nem se poderá defini-las coerentemente – com
uma ou outra exceção, como a classe dos verbos, com os seus “sufixos
característicos (andamos, andam, andava, andasse)” (PERINI, 2010, p.
307). Assim, é pura e simplesmente impossível elaborar uma gramática
que seja “objetiva, coerente e uniforme”, como almejava Amini Hauy
(1986, p. 4). Prova disso é que sua Gramática da língua portuguesa
Para uma discussão sobre as dificuldades que o grau representa em português para
a separação entre flexão e derivação, ver Gonçalves (2016).
15
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123
padrão, publicada em 2015, não é objetiva, nem coerente, muito menos
uniformiza as categorias gramaticais, como se atesta ao compará-la com
as gramáticas de Bagno, Castilho, Perini, Vitral...
5 Um estímulo à investigação e ao ensino
Conforme Hauy (1986, p. 4), a língua portuguesa deveria “ser
objeto de um trabalho persistente de sistematização objetiva, coerente
e uniforme, alicerçado numa atitude científica de análise dos fatos
gramaticais”, a fim de que o ensino gramatical deixasse de ser “deficiente
e improdutivo”. Considerando-se, porém, que não se pode estabelecer
cabalmente quais são as categorias gramaticais, nem se pode defini-las
coerentemente, a questão que imediatamente se coloca diz respeito a
como então ensinar gramática de forma eficiente e produtiva em escolas
de nível fundamental e médio. Afinal, como bem ponderou Perini ainda
nos anos 1970,
é fato que a estrutura da língua portuguesa não é cabalmente
conhecida, mas isso não deve ser empecilho a que nos dediquemos
ao seu estudo – longe disso, deve ser antes um estímulo à
investigação. Mas, evidentemente, é preciso mudar nossa atitude
diante da matéria: já não se trata de um corpo de conhecimentos
preexistentes a ser assimilado de maneira passiva, mas uma
teoria incompleta e insuficiente em muitos pontos (embora não
desinteressante), que deverá ser criticada e desenvolvida, com
base nos fatos da língua. Só essa mudança de atitude já será
bastante para dar novo atrativo à disciplina; isso porque, apesar
do que se diz, tanto o professor quanto o aluno têm, em geral,
uma grande curiosidade e um desejo genuíno de aprender. Por
outro lado, ao contribuir para o desenvolvimento do raciocínio
independente e do espírito crítico, o estudo ativo da gramática
terá utilidade precisamente em um ponto em que o nosso sistema
educacional é lamentavelmente falho (PERINI, 1978, p. 4).
Em face do desafio de apresentar métodos mais eficazes de ensinar
gramática e ajudar a tornar a disciplina mais atrativa apesar de suas
incoerências teóricas, pesquisadoras como Eunice Pontes (1986) e Maria
Elizabeth Saraiva (1999) propuseram, com base na teoria dos protótipos de
Rosch, a ideia de ensinar aos alunos em primeiro lugar os casos prototípicos
dos conceitos gramaticais e só depois passar aos casos controvertidos, os
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quais “mesmo linguistas têm dificuldades em decidir” (PONTES, 1986, p.
279). Como esclarece Saraiva em diálogo com Rosch, os casos prototípicos
são aqueles em que os traços característicos de determinado conceito
gramatical estão presentes. O conceito de sujeito, por exemplo, segundo
Saraiva, além de ser semanticamente um agente e discursivamente um
tópico, tem os seguintes traços sintáticos característicos:
1. a relação de concordância entre o sujeito e o verbo [+CV]
2. a posição típica pré-verbal [+ANT]
3. o caso nominativo que o sujeito recebe, o que pode ser
expresso como a possibilidade do sujeito ser retomado
(substituído) por pronome pessoal do caso reto [+Pr reto]
(SARAIVA, 1999, p. 108).
Esses traços prototípicos de sujeito, na verdade, já haviam sido
apontados por outros autores, como Perini (1989, p. 93-94) e Francisco
Saviolli (1985, p. 7). Além do mais, nem Perini, nem Saviolli, nem
Saraiva conseguiram explicar convincentemente os critérios de que se
valeram para propor esses traços. Sem fugir ao problema, Perini (1989)
admite que ainda faltava uma definição rigorosa do que seja um protótipo,
mas sugere alguns critérios para se apontar um traço gramatical como
prototípico. Segundo Perini (1989, p. 60-61), podemos afirmar que
determinado traço gramatical é prototípico quando ele é:
a) especialmente frequente no discurso; ou
b) especialmente frequente na descrição, ou seja, crucial para
a formulação de grande número de regras, princípios e itens
léxicos; ou
c) crucial na formulação das regras “mais importantes” da
gramática (o que coloca, evidentemente, a questão adicional de
um critério de “importância” de regras).
d) Especialmente frequente nas línguas do mundo, ou seja,
presente em muitas gramáticas; ou
e) Especialmente frequente e/ou importante em uma língua
particular (o que faria com que determinadas entidades fossem
prototípicas em uma língua, mas não em outra).
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Contudo, de acordo com o próprio Perini, (a), (b) e (c) enfrentam
a dificuldade de esclarecer o que se entende por “frequência” ou
“preponderância”. Já (d) e (e) “delineiam o campo de validade da noção,
ou seja, o universo das línguas humanas ou cada língua em particular”
(PERINI, 1989, p. 61). Dessa forma, temos em (e) uma caracterização de
protótipo no âmbito de uma língua particular, e em (d) uma caracterização
que leva em conta o estudo comparativo de línguas diversas. Diante
desses obstáculos, Perini inicialmente tende a adotar (c) como a melhor
conceituação de protótipo. Porém, tendo em vista a difícil distinção entre
regras e princípios importantes e regras e princípios não importantes, ele
passa a adotar (b) como uma caracterização mais satisfatória de protótipo.
Apesar disso, Perini ressalta por fim que a caracterização do que seja um
protótipo é um problema longe de uma solução definitiva. Haja vista as
semelhanças de família, pode-se afirmar com segurança que se trata de
um problema sem solução. Assim, não espanta que outros autores tenham
proposto traços prototípicos de sujeito diferentes daqueles propostos
por Saviolli, Perini e Saraiva. Maria Teonilda Pinto (1981, p. 108), por
exemplo, baseando-se em pesquisas feitas entre alunos, chega à conclusão
de que os sujeitos com as propriedades + agente, + tópico, + animado, +
empatia “são mais altamente identificadores de um SN sujeito”. Eunice
Pontes (1986, p. 170), por sua vez, afirma: “O sujeito mais típico em
português me parece aquele que é agente na oração ativa”.
Dado que não há critérios objetivos para decidir quais são
os traços do sujeito prototípico, assim como dos demais conceitos
gramaticais, a proposta de Pontes e de Saraiva de começar pelos casos
prototípicos e só depois passar aos casos controvertidos não resolveria
de vez o problema relativo a como ensinar gramática de forma eficiente
e produtiva em nossas escolas de nível fundamental e médio. Isso não
significa, porém, que a sugestão dessas autoras deva ser simplesmente
descartada. Afinal, como bem observou o professor Castilho, o ecletismo
é a opção mais saudável para os docentes de língua portuguesa. Mas
mais importante: há muitos anos já se sabe com base em experimentos
empíricos (e.g. HEIDER,16 1971, 1972; ROSCH, 1973) que “categorias
são aprendidas mais facilmente e mais precisamente se a exposição inicial
16
Trata-se da mesma Eleanor Rosch, que assinou Heider em seus trabalhos até 1972.
126
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à categoria se dá apenas por exemplos representativos”17 (MERVIS;
ROSCH, 1981, p. 98-99). Assim, apesar de ser impossível estabelecer
um limite claro de casos prototípicos dos conceitos gramaticais, é
inegável que existem casos mais simples de analisar do que outros e
que esses casos facilitam o aprendizado desses conceitos. Por isso, ao
trabalhar com o conceito de sujeito, por exemplo, o professor poderia
partir de casos indubitavelmente simples, como “João quer sorvete” e
“Pedro chutou a gaiola”, e só depois passar para casos mais complexos,
como “Quem quer sorvete?” e “Onde estão os meninos?”, até finalmente
chegar aos casos duvidosos, como “A rainha sou eu”, em que 67% dos
entrevistados por Maria Teonilda Pinto (1981) disseram que o sujeito
é “a rainha” e 30%, “eu”. E, ao apresentar casos duvidosos, caberia ao
professor explicar à turma como as semelhanças de família e a falta de
limites rígidos dos conceitos gramaticais inviabilizam encerrar de vez a
discussão sobre eles. Para demonstrar esse fato, sem nunca perder de vista
que o estudo gramatical é uma “excelente oportunidade para o professor
verificar com os seus alunos a validade ou não de certos conceitos de
dada teoria” (UCHÔA, 2007, p. 74), o professor poderia inicialmente
levar os alunos a “comparar gramáticas, item por item, verificando as
incoerências, falhas e erros” (LUFT, 1985, p. 99). Depois disso, os alunos
poderiam ser estimulados a elencar definições incoerentes encontradas
tanto em gramáticas (tradicionais e não tradicionais) quanto em livros
didáticos, confrontar algumas propostas de delimitar casos prototípicos,
listar exemplos discrepantes dados por gramáticos e linguistas em suas
análises... Sendo um pouco mais ousado, o professor, sobretudo no ensino
médio, poderia provocar os alunos a se posicionar em relação a debates
específicos que existem entre os pesquisadores da língua portuguesa.
Schneider (1974) e Cunha e Cintra (2001), por exemplo, contrariando
o que se estabeleceu na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB)
de 1959, não consideram as interjeições uma classe de palavras. Mas
os argumentos apresentados por esses autores para fundamentar esse
parecer são satisfatórios? Perini, por sua vez, no ensaio “O adjetivo e o
ornitorrinco”, afirma não acreditar ser possível distinguir as tradicionais
classes de adjetivos e substantivos, havendo neste caso para ele “ou um
grande número de classes ou, mais provavelmente, uma grande classe
17
“(...) categories are learned more easily and more accurately if initial exposure to the
category is through only representative exemplars”.
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composta de membros cujas propriedades são muito variadas” (PERINI,
2001, p. 42). Essa polêmica declaração, porém, é respaldada por dados
sólidos no próprio ensaio, bem como nas gramáticas do autor? E é
convincente a afirmação do mesmo Perini (1995, 2010, 2016), contrária
tanto às gramáticas tradicionais quanto por exemplo a Castilho (2010, p.
289), de que as frases “Vendi meu jegue” e “Rasguei o cheque” não
tem sujeito, mas apenas agente, indicado pelo sufixo de pessoa-número
(-ei)? E quais os prós e os contras da análise de Perini, da análise das
gramáticas tradicionais e da análise de Castilho?
Todas essas poucas propostas didáticas, que evidentemente
podem ser multiplicadas sem dificuldades, são próprias ao “estudo ativo
da gramática” de que fala Perini e atendem à necessidade de “procurar
atividades que envolvam a observação e eventual manipulação de fatos da
língua, com o objetivo de construir hipóteses a respeito deles” (PERINI,
2016, p. 57). No entanto, é necessário destacar que tais propostas didáticas,
em conformidade com o ponto de vista pedagógico “não ortodoxo” e
“dissidente” de Oliveira e Quarezemin (2016, p. 37), demandam “um
professor criativo” (p. 26), que “leva o aluno a raciocinar, a construir
suas hipóteses e testá-las, (...) que não apresenta as respostas e, acima de
tudo, que está preparado para avaliar respostas que não eram esperadas,
respostas originais dadas pelos alunos” (p. 26-27). Agindo assim, esse
professor certamente contribuiria para o “desenvolvimento do raciocínio
independente e do espírito crítico” de nossos alunos, cuja importância foi
enfatizada não somente por Perini, mas por outros pesquisadores, como
Sírio Possenti, que declarou:
As sugestões [para trabalhar a língua portuguesa em salas de aula]
se resumem a uma única grande ideia: fazer com que o ensino do
português deixe de ser visto como a transmissão de conteúdos
prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos
por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser
a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções
(POSSENTI, 1996, p. 95).
Em outras palavras, uma tarefa em que não há espaço para a
“educação bancária”, tão criticada por Paulo Freire, na qual o professor
ensina e os alunos são ensinados; o professor sabe tudo e os alunos não
sabem nada; o professor pensa para si e para os alunos; o professor fala e os
alunos escutam; o professor impõe sua opinião e os alunos submetem-se a
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ela; o professor é sujeito do processo de formação e os alunos são simples
objetos dele (FREIRE, 1979, p. 79). Em contraposição a esse modelo
pedagógico, Freire defende uma pedagogia humanizante, libertadora e
problematizadora, que “está fundamentada sobre a criatividade e estimula
uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo
assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando
se comprometem na procura e na transformação criadora” (FREIRE,
1979, p. 81). Em vista dessa resposta, Freire esclarece que os esforços
do educador humanista “devem corresponder com os dos alunos para
comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua
humanização” (p. 80). Ou seja, “seus esforços devem caminhar junto
com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador” e
“para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas
relações com eles” (FREIRE, 1979, p. 80).
Infelizmente, porém, o modelo pedagógico que ainda predomina
em nossas escolas é o da educação bancária, mantendo atual o alerta
de Freire de que “nada ou quase nada existe em nossa educação, que
desenvolva no nosso estudante o gosto da pesquisa, da constatação,
da revisão dos ‘achados’ – o que implicaria no desenvolvimento da
consciência transitivo-crítica” (FREIRE, 1980, p. 94). Assim, prossegue
Freire mais adiante, não há em nossa educação “quase nada que nos
leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras.
Tudo ou quase tudo nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à
passividade, ao ‘conhecimento’ memorizado apenas, que, não exigindo
de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica
sabedoria” (p. 96). Em suma:
Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não
debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando.
Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele
não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o
pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos,
simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação
é o resultado de busca de algo que exige, de quem tenta, esforço de
recriação e de procura. Exige reinvenção (FREIRE, 1980, p. 96-97).
Não por coincidência em acordo com Freire, Oliveira e
Quarezemin apontam para a importância desse esforço de recriação,
de procura e de reinvenção com sua proposta de que “o aluno seja o
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129
gramático, que ele construa gramáticas” (p. 18). Ao assumirem, porém,
o arcabouço gerativista como fundamento de sua metodologia, Oliveira
e Quarezemin acabaram por deixar em segundo plano o debate sobre os
conceitos gramaticais básicos, já que “tem havido relativamente pouca
discussão nos círculos gerativistas de uma questão que costumava ser
considerada fundamental, qual seja, como definir unidades básicas como
‘palavra’, ‘substantivo’, ‘verbo’, etc.”18 (TAYLOR, 2003, p. 202).19 Com
isso, assim como os gerativistas de modo geral, Oliveira e Quarezemin
minimizaram o fato de que “a descrição da estrutura de uma língua
depende crucialmente de classificações: classes de palavras, classes de
sintagmas, classes de morfemas” (PERINI, 2016, p. 399). Jogar luz sobre
essa dependência, geralmente desconsiderada pelos que refletem sobre
o ensino de língua materna e de gramática, foi uma das motivações que
nos levaram a propor que o professor ajude os alunos a perceber que toda
classificação gramatical é um constructo teórico e, portanto, pode e deve
ser questionada, recriada e reinventada. Uma percepção que, infelizmente,
escapa à maioria dos próprios professores de língua portuguesa.
6 Considerações finais
Na introdução deste artigo afirmamos que, com nossa proposta
de que os professores de português estimulem os alunos a elaborar suas
próprias análises e classificações gramaticais, no espírito da pedagogia
libertadora de Paulo Freire e em concordância com novas metodologias de
ensino gramatical, como a de Oliveira e Quarezemin (2016), esperamos
ajudar esses docentes a fazer da aula de gramática um momento de
construção do saber. Ao fim desta reflexão, é importante sublinhar o
fato de que tanto Ataliba de Castilho quanto Oliveira e Quarezemin
condicionam essa construção ao “desejo da descoberta científica” não
“(...) there has been relatively little discussion in generative circles of an issue which
used to be thought fundamental, namely, how to define such basic units as ‘word’,
‘noun’, ‘verb’, etc.”.
19
Para uma breve discussão de abordagens gerativistas das funções gramaticais de
sujeito, objeto direto e indireto e de tópico alternativas às de Chomsky (1975 [1965],
1994 [1986], 1999 [1995]), ver Jackendoff (2003, seção 5.10). Para uma reanálise de
viés chomskiano das classes de verbos, adjetivos e substantivos, ver Baker (2003).
Para um resumo das reflexões sobre categorias gramaticais no âmbito gerativista, ver
Travis (2005).
18
130
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apenas por parte dos alunos, mas também por parte do professor. Sem esse
desejo, o professor limitará suas aulas à exposição requentada de ideias
e doutrinas de terceiros e impedirá que os alunos se tornem indivíduos
críticos e intelectualmente independentes. Assim, a menos que o próprio
professor seja também um pesquisador, no sentido pleno do termo, da
língua materna em particular e da linguagem humana de modo geral,
estará fadado ao modelo bancário de educação, no qual não há espaço
para a reinvenção, a recriação, a reescrita da gramática em sala de aula.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
O gênero da expressão convencional ‘cabra’:
um modelo categorial com extensões metafóricas
e suas implicações de natureza cultural
The Gender of the Conventional Expression ‘Cabra’:
A Categorical Model with Metaphorical Extensions
and its Cultural Implications
Fernanda Cavalcanti
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro /Brasil
cavalcanti7fernanda@gmail.com
Luciane Ferreira
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
lucianeufmg@gmail.com
Resumo: Este artigo apresenta discussão subsidiada por resultados obtidos com pesquisa
sobre a natureza do pareamento entre forma e significado da expressão convencional
‘cabra’, sobretudo, a sua variação de gênero. À luz dos postulados da Teoria da
Metáfora Conceptual, especialmente Goatly (2007), Kövecses (2010) e Lakoff (1987),
examinam-se os aspectos de natureza cognitiva, cultural e histórica atuantes no processo
de conceptualização de tal expressão, usada, sobretudo, no Nordeste do Brasil, para se
referir tanto a animal de gênero feminino como a homem. Dessa forma, analisam-se
definições dos primeiros dicionários gerais de língua portuguesa (BLUTEAU, 1712;
SILVA, 1823) e contemporâneos (HOUAISS, 2008; FERREIRA, 2010), além de
definições de dicionários etimológicos (MACHADO, 1952) e dados coletados a partir
de aplicação de três questionários junto a 93 sujeitos, no período de 2010 a 2013. Há
evidências de que a variação de gênero de tal expressão está relacionada ao situamento
sociocultural dos falantes residentes no Nordeste do Brasil.
Palavras-chave: pareamento forma e significado; variação de gênero; cabra; situamento
sociocultural.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.137-163
138
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Abstract: This article presents a discussion supported by the results obtained in a
research about the nature of the link between form and meaning of the conventional
expression ‘Cabra’, especially its gender variation. In light of the Conceptual Metaphor
Theory approach, in special Goatly (2007), Kövecses (2010), Lakoff (1987) the cultural,
historical and cognitive aspects involved in the conceptualization of such expression,
mostly used in the Northeast of Brazil, to refer to bothfemale gender of animal and men
were analysed. Therefore, definitions in the first general dictionaries of the Portuguese
language (BLUTEAU, 1712; SILVA, 1823) contemporary dictionaries (HOUAIS, 2008;
FERREIRA, 2010), etymological dictionaries (MACHADO, 1952) and also data collected
from the application of three questionnaires to 93 participants from 2010 to 2013 were
examined. The evidence found suggests that gender variation is related to the sociocultural
situatedness of the members of the community from the Northeast of Brazil
Keywords: form and meaning pairing; gender variation; cabra (goat); sociocultural
situatedness.
Recebido em 04 de abril de 2018
Aceito em 12 de junho de 2018
1 Introdução
Discute-se, neste artigo,1 a natureza do pareamento entre
forma e significado, especialmente a variação de gênero da expressão
convencional ‘cabra’, tendo em vista que ela é usada, sobretudo, no
Nordeste do Brasil, para se referir tanto a animal de gênero feminino como
a homem. Para tanto, aborda-se o caráter polissêmico de tal expressão
à luz da Teoria da Metáfora Conceptual. De acordo com essa teoria, a
polissemia é compreendida como uma estrutura de natureza semânticoconceptual, isto é, uma categoria, aberta e dinâmica resultante de nossa
cognição situada, ou ainda da interação entre a nossa configuração
corpórea e o mundo físico e sociocultural situado (LAKOFF, 1987).
Este artigo tem como base, pesquisa de pós-doutorado realizada no âmbito do programa de
pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo objeto foi a variação de gênero
da expressão polissêmica ‘cabra’. Ressalta-se que tal pesquisa se constitui em desdobramento
de pesquisa de doutoramento da primeira autora, cujo objeto foi a polissemia tout court
da expressão convencional ‘cabra’. A pesquisa nos dicionários gerais e etimológicos foi
realizada no acervo de obras gerais da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
1
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
139
Para autores como Klein e Murphy (2001), a polissemia incide sobre
a grande maioria das palavras, mesmo que em graus diferentes. Ou seja, a
despeito do que afirmam linguistas e psicolinguistas, como Ruhl (1989) e
Hino e Lupker (1996), que estudam o significado lexical, Klein e Murphy
(2001) declaram que poucas são as palavras homônimas. Ou ainda, poucas
são as palavras que apresentam significados individuais não relacionados, que
compartilham da mesma representação fonológica, tal qual o célebre exemplo
entre banco – ‘instituição financeira’ – e, banco – ‘objeto feito para sentar’.
Nessa perspectiva, ambos os autores ponderam que, se os contornos
de uma teoria voltada para a representação da homonímia são razoavelmente
claros, o mesmo não ocorre em relação a teorias que tratam da representação
da polissemia. Para os lexicólogos, por exemplo, há consenso em relação ao
estabelecimento de diferentes entradas para palavras (ou lexias) homônimas,
a despeito da maneira como o usuário percebe essa relação. No entanto,
constata-se que, dentre esses especialistas, não existe tal consenso em relação
a palavras (ou lexias) polissêmicas. Assim, no caso dos significados folha
branca feita a partir da madeira e desempenho associados ao mesmo lema
papel, não há consenso se tal caso se constitui em uma ou em duas entradas,
já que se pondera que, embora os significados possam estar ontologicamente
relacionados, referem-se a coisas distintas.
Para Lakoff e Johnson (1980), as visões acerca da homonímia
e da mononímia se constituem em estratégias utilizadas por linguistas
e lógicos no sentido de não reconhecerem o caráter metafórico de
conceitos mais abstratos. Ou seja, Lakoff e Johnson (1980) avaliam
que as teorias relativas à organização de nosso léxico mental em
temos de homonímia – uma forma para cada significado2 – ou
em termos de mononímia3 – um único significado literal e abstrato
para várias formas – seriam funcionalmente inadequadas por não
considerarem as características próprias ao sistema conceptual humano,
2
Adota-se, aqui, definição de homonímia de Klein e Murphy para os quais: the outline of
a theory of homonymic representation are fairly clear. The different meanings of bank or
calf are considered to be different words, so it is generally believed that they are represented
by different lemmas (lexical units – see LEVELT, 1989). In Lexecology, there also seems
to be a belief that homonyms are different words, as indicated by separete dictionary
entries (ZYGUSTA, 1971, p.74, also shown below). (KLEIN; MURPHY, 2001, p.260).
3
Adota-se, aqui, esse termo não convencionalizado em português do Brasil com base
no que Lakoff e Johnson (1980) chamam de ‘abstraction’ e Klein e Murphy (2001)
chamam de ‘core meaning view’ ou ‘monosemy’.
140
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
situado e metafórico. Com efeito, essas teorias negligenciariam
padrões apresentados pelo nosso léxico, oriundos, por exemplo, da
conceptualização de domínio mais abstrato, como ser humano, em termos
de domínio mais experiencial, como cabra’.
Em outras palavras, se, para os teóricos da Metáfora Conceptual,
recursos cognitivos metafóricos próprios do funcionamento de nosso
sistema conceptual se convencionalizam em função dos usos – a
exemplo das Metáforas Conceptuais SER HUMANO É ANIMAL e
COMPORTAMENTO HUMANO É ANIMAIL, que licenciam as metáforas
verbais, como “Lula é jararaca” e “aos berros e aos gritos, os manifestantes
entraram no plenário” – paraos teóricos da mononímia, não seria possível
reconhecer a evidência de tais recursos. Ou seja, para os teóricos da
mononímia, os significados de ser humano e cabra seriam estruturados, por
exemplo, a partir de algum conceito nuclear, abstrato e neutro. Os teóricos
da homonímia, por sua vez, não dariam conta de explicar a relação entre dois
conceitos e os tratariam de modo independente e não relacionado.
Além disso, não há nenhuma teoria da similaridade que possa
lidar com tal tipo de fenômeno polissêmico, isto é, que fundamente a
abordagem daqueles que defendem a existência de algum conceito comum
entre ‘ser humano’ e ‘cabra’, por exemplo, (LAKOFF; JOHNSON,
1980). Nesse sentido, tais autores, ao lançarem as bases do que viria a ser
chamada, posteriormente, de Teoria da Metáfora Conceptual, doravante
TMC, formularam princípios acerca da relação de não similaridade entre
os conceitos, ou ainda de similaridade experiencial. Segundo tal princípio,
mesmo compartilhando aspectos similares –devido à nossa interação de
caráter sensório-motor com o meio físico ser, de modo geral, comum –
as nossas experiências apresentam diferenças de cultura para cultura e
dependem, normalmente, de uma compreensão baseada no cruzamento
entre domínios conceptuais distintos. Ou seja, tais experiências
determinariam as propriedades e similaridades das categorias de nosso
sistema conceptual e, por consequência, o mapeamento metafórico de
domínios distintos como no caso de ser humano e animal.
Por outro lado, vale destacar que, de acordo com Gibbs (1994), a
ubiquidade da linguagem figurada, ou ainda de metáforas verbais, na língua
em uso, se constituiria em evidência de que esta seria primordialmente
moldada por linguagem desse tipo. Diante de tal evidência, para Gibbs
(1994) e demais teóricos da Metáfora Conceptual, a linguagem figurada
seria instanciações de recursos cognitivos basilares, ou ainda de Metáforas
Conceptuais, que desempenhariam, no âmbito de nosso sistema conceptual,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
141
o papel de formar conceitos, de motivar a mudança semântica e o significado
das expressões metafóricas ou não. Nesse sentido, considera-se a expressão
convencional ‘cabra’, uma metáfora verbal a exemplo da seguinte passagem
encontrada no romance Fogo Morto:“Vá dizer a este mata-cachorro que eu
agüento. Sou homem, cabra. Sou homem!” (RÊGO, 1982, p.72)
Tal metáfora verbal é aqui tratada na condição de expressão
convencional. A razão para tal decisão é porque se adota a definição de
convencionalidade preconizada por teóricos da TMC, qual seja: metáforas
conceptuais podem ser classificadas em termos de grau de estabilização
assim como as suas manifestações linguísticas correspondentes.
(KÖVECSES, 2010). Nesse sentido, evoca-se Freyre (2004), segundo o
qual a figura do cabra teria relação com o nascimento do que chama de
civilização da cana-de-açúcar, particularmente aquela que floresceu no
Nordeste do Brasil. Considera-se, assim, que a metáfora conceptual, a
exemplo de SER HUMANO É ANIMAL, que licencia a expressão cabra
vêm sendo utilizada em tempo suficiente para ter sido internalizada e,
consequentemente, já se encontraria devidamente estabilizada. Ou seja, é
possível inferir que os usuários circunscritos à região em questão utilizam
a expressão em foco de maneira automática e sem fazer esforço.
Nessa perspectiva, lança-se a seguinte pergunta: qual seria o conceito
nuclear abstrato e neutro que relacionaria os significados de animal e de
homem de modo a estruturar a polissemia da expressão convencional ‘cabra’
e a sua variação de gênero? Ou ainda, quais seriam as similaridades abstratas
compartilhadas entre os conceitos homem e cabra que estruturariam os
significados polissêmicos apresentados pela expressão convencional ‘cabra’?
A nosso ver, itens lexicais polissêmicos como a expressão convencional
‘cabra’ ilustram as várias relações do léxico com nosso aparato conceptual e
com o nosso sistema de valores e crenças. Tal posicionamento contraria a
ideia preconizada por gerativistas de que a descrição e a representação mental
dos usos de um item lexical se apoiam na escolha de regras de derivação –
linguísticas ou não – e/ou nas listas de (exceções) de entradas independentes
(homonímias), o que Langacker (1987) chama de Falácia da Regra/Lista.
Contraria, igualmente, o pendor formalista que, ao pleitear evidências de
suposta cientificidade e economia, tratam as significações como genéricas e
abstratas, o que Silva (2003) chama da Falácia da Generalidade.
Assim sendo, organiza-se este artigo em três seções, além desta
introdução, nas quais: apresentam-se os dados levantados para discussão
de nosso objeto; sugerem-se algumas análises e conclusão à luz dos
postulados da Teoria da Metáfora Conceptual, especialmente em Goatly
142
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(2007), Kövecses (2010), e Lakoff (1987); são feitas as considerações
finais, nas quais, com base nas evidências encontradas, apresenta-se a
proposta de um esboço de um modelo categorial para ‘cabra’.
2 Método e dados
Para discussão da natureza do pareamento entre a forma cabra e
seus significados em termos de homem, especialmente no que diz respeito
à mudança de gênero, foi feito levantamento de definições atribuídas a tal
expressão constantes: nos primeiros dicionários gerais da língua portuguesa,
a exemplo do Vocabulário portuguez e latino, de Rafael Bluteau (1712), do
Diccionario da língua portugueza, de Antônio Moraes Silva (1823), em que
ele revisa Bluteau (1712), e de suas edições mais recentes, Silva (1877; 1949);
e nos dicionários gerais mais contemporâneos, a exemplo de Antônio Houaiss
et al. (2008), e de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2009; 2010), além do
dicionário etimológico de José Pedro Machado (1952). Ademais, ao se adotar
perspectiva sincrônica, discutem-se as definições encontradas nos mencionados
dicionários à luz de dados coletados por meio da aplicação de três questionários
junto a 93 sujeitos, residentes em Fortaleza, entre o período de 2010 e 2013.
Assim sendo, selecionaram-se (vide os três quadros abaixo): duas
entradas relativas à expressão ‘cabra’ (1ª. e 7ª.) dentre as doze elencadas por
Bluteau (1712);duas acepções (1ª. e 3ª.) dentre as quatro elencadas por Silva
(1823) em sua entrada relativa à ‘cabra’; três (1ª. 2ª. e 5ª.) acepções dentre
as 10 elencadas por Silva (1877) em sua entrada relativa à ‘cabra’; quatro
acepções (1ª. 2ª. 3ª e 8ª) dentre as oito elencadas na primeira entrada relativa
à ‘cabra’ em Silva (1949); a única acepção elencada na segunda entrada de
‘cabra’ em Silva (1949); as quatro acepções elencadas na terceira entrada
relativa à ‘cabra’ em Silva (1949); duas acepções (1ª. e 3ª) dentre as 16
elencadas em Machado (1952) em sua entrada relativa à ‘cabra’; dez acepções
(1ª.2ª.3ª.4ª.5ª.12ª.13ª.14ª.15ª. e 16ª.) dentre as 16 elencadas por Houaiss et
al. (2008) em sua entrada relativa à ‘cabra’; e oito (1ª.3ª.4ª.6ª.7ª.8ª.9ª. e 10ª.)
dentre as 11 elencadas por Ferreira (2010) em sua entrada relativa à ‘cabra’.
Necessário destacar que apenas Houaiss et al. (2008) e Ferreira
(2010) enumeram as suas acepções. No entanto, a título metodológico,
isto é, em função de uma melhor manipulação dos dados, enumeraramse as acepções dos demais autores. Nesse sentido, vale destacar que o
que se chama, aqui, de segunda acepção, constante na entrada relativa à
‘cabra’ em Machado (1952), trata-se, na verdade, de uma nota de rodapé
na qual tal acepção é atribuída a Georg Friederich.
143
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 1 – Definição do animal
Bluteau
Silva (1823)
Silva (1877)
Silva (1949)
(1712)
Machado
Houaiss (2008)
Ferreira (2010)
(1952)
Cabra:
Cabra:
Cabra:
Cabra:
Cabra:
Cabra:
Cabra:
(1ª entrada)
1.f.f.Animal
1.s.f.
(1ª entrada)
1. s.
1.s.f.(1278cf.IVPM)
1. s.f. [do lat.
1.Animal
quadrúpede
(do lat.
s.f [do lat.
do lat.
desig.comum
capra]. sf.1.
doméstico
dos menores,
capra)
capra]
capra;
aos mamíferos
Mamífero
quadrúpede,
cornígero,
Animal
zool Gênero
cabra;
ruminantes do
ruminante,
cornígero,
fêmea do
quadrúpede
de
gen.
a fêmea do
fêmea do
bode
dos menores,
mamíferos
Capra, da fam. dos
bode;
cabrão,
ou cabrão
cornígero;
ruminantes,
bovídeos, com sete
de focinho
(...);
fêmea de
cornígeros e,
spp.
chato
bode ou
geralmente,
selvagens que
e rabo curto.
cabrão;
de
ocorrem em
pêlos
áreas montanhosas
compridos;
da Ásia,
África e Europa,
e uma sp.
domesticada
encontrada no mundo
inteiro (Capra
hircus);
2. A fêmea da sp
domesticada (Capra
hircus);
QUADRO 2 – Definição de cabra em termos de mulher
Silva (1877)
Silva (1949)
Houaiss (2008)
2. fig. Mulher
2.fig.Rapariga de
3. fig.pej. Mulher pouco recatada,
que berra
modos muito desenvoltos
lasciva,
muito;
rameira, prostituta;
devassa;
3. Mulher de mau porte,
4. p.ext. tab.Rameira, prostituta;
Ferreira (2010)
3. pop. Mulher devassa;
4. fig. Mulher de mau gênio,
irritadiça e escandalosa;
dissoluta ou muito
berradeira;
5. fig.pej.Mulher escandalosa,
temperamental, que se irrita
facilmente e grita muito;
144
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 3 – Definição de cabra em termos de mulher e homem
Bluteau
(1712)
Silva
(1823)
Silva
(1877)
Silva
(1949)
Machado
(1952)
Houaiss
(2008)
Ferreira
(2010)
(7ª. entrada)
3. Filho ou
5. O filho
8. Ser cabra,
3. Sobre o uso
12. Mestiço
6.bras.Mestiço
Darão os
filha de pai
ou
ser mau
de cabra como
indefinido, de
de mulato e
portugueses
mulato, e
filha de pai
companheiro;
dignidade de
negro, índio ou
negro;
esse nome a
mãe mãe
mulato e
índios
branco, de pele
alguns índios,
preta ou
mãe preta
brasileiros, de
morena clara
porque os
às avessas;
ou às
ascendência
avessas;
nobre e bravura
acharam
natural;
ruminando,
como cabra,
a erva Betel
que quase
sempre
trazem na
boca.
(2ª.entrada): adj.
13. Indivíduo
Ruim, esperto,
determinado;
Sabido;
sujeito,
7. v. Capanga;
cara
(3ª.entrada)
14. Indivíduo
8. v.
1.s.m.Bras.
forte
Cangaceiro
Mestiço, filho de
valente,
negro ou mulato
petulante;
ou vice-versa;
brigão.
14.1 (...)
capanga;
criminoso;
pistoleiro
2. por ext.
15. Trabalhador
9.Morador de
Indivíduo
braçal agrícola,
de propriedade
petulante,
rurícola.
rural
3. Denunciante,
16. P. Espião de
10. Indivíduo;
espião, testemunha
polícia;
sujeito
comprometedora;
alcaguete;
4. Cangaceiro
denunciante
valentão,
provocador;
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
145
De acordo com as acepções selecionadas, observa-se que, além
daquela relativa ao animal de gênero feminino, ‘cabra’ é definida: em
termos de homem por Bluteau (1712) e por Machado (1952); em termos
de homem e de mulher por Silva (1823; 1877; 1949), por Houaiss et al.
(2008), e por Ferreira (2010). Interessante atentar, nesse sentido, para
o fato de que, ao revisar Bluteau (1712), Silva (1823) não reproduz a
sua acepção de ‘cabra’ como índio, além de acrescentar a tal acepção,
o significado de cabra na condição de “filho ou de filha de pai mulato e
de mãe preta ou às avessas”. Parece ser esse, então, o primeiro registro
de ‘cabra’ definida como mulher e mestiço.
Tal acepção será reproduzida por todos os dicionários a ele
subsequentes aqui elencados. Encontram-se, contudo, algumas variações
nessa reprodução, a exemplo de Silva (1949). Para os seus lexicógrafos
Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, tal acepção
seria um brasileirismo e significaria apenas filho nascido de pai mulato
e mãe preta. Muito embora tenham retomado a acepção proposta por
Silva (1949), Houaiss et al. (2008) incluem aí, uma nova etnia, a branca.
Tal fato nos leva a inferir que o uso da expressão ‘cabra’ relativo a
índio encontra-se apenas no português europeu (PE); e que o uso como
mestiço ou mestiça encontra-se apenas no português do Brasil (PB),
como afirmado pelos lexicógrafos de Silva (1949).
Outro aspecto relevante é quanto ao registro das demais acepções
de ‘cabra’ como mulher aparecer apenas nas edições tardias de Silva
(1877; 1949). Observa-se, nesse sentido, que, ao que parece, tal expressão
é definida: inicialmente, como mulher escandalosa de acordo com Silva
(1877); e, em seguida, como mulher de baixa reputação, de acordo com
Silva (1949). Vale salientar ainda o registro feito por Silva (1949) de
acepções de cabra na condição de adjetivo e como homem violento e
bandido. Essas últimas acepções foram reproduzidas por Houaiss et
al. (2008) e por Ferreira (2010), além daquelas de cabra como mulher.
Considerando que esses autores não datam o aparecimento de tais usos,
é plausível supor que as primeiras acepções atribuídas a ‘cabra’ como
homem e como mulher ganharam mais extensões no período entre a
primeira e a edição mais recente de Silva (1823; 1949).
Além disso, com a exceção de Machado (1952) e das acepções
13 e 10 constantes em Houaiss et al. (2008) e em Ferreira (2010)
respectivamente, é preciso ressaltar que boa parte das acepções de
cabra na condição de homem e de mulher possui caráter depreciativo e
146
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
pejorativo. É sabido que a condição de mestiço sempre foi avaliada como
inferior pelos valores hegemônicos e eurocêntricos de nossa sociedade,
assim como a de trabalhador e a de morador da zona rural.
Nessa perspectiva, para autores como Cascudo (2009), por
exemplo, a expressão cabra como filho de mulato e negra não goza
de simpatia no folclore sertanejo. Por isso, “o tratamento de ‘cabra’
é insultuoso. Ninguém gosta de ouvir o nome. [...]. Todas as estórias
referentes aos ‘cabras’ são pejorativas e são eles entes malfazejos,
ingratos, traiçoeiros”. (CASCUDO, 2009, p. 60). Ainda a esse respeito,
parece não ser trivial que a primeira acepção de cabra em termos de ser
humano, à qual se teve acesso, se refira a índio. Vale destacar que tal
acepção teria sido criada, segundo Bluteau (1712), a partir da comparação
que os portugueses fizeram entre o hábito que determinado grupo de
índios tinha em mascar erva e o ruminar das cabras. Vale lembrar que,
por essas épocas, a Igreja Católica discutia se os índios teriam alma ou
se seriam animais, tal qual foi por ela consideradosos negros.
Outro aspecto que merece destaque é quanto ao fato de apenas
Machado (1952) não informar sobre o gênero da entrada cabra. Tal
informação se encontra indicada pelos demais autores, seja ela de
natureza gramatical, seja ela na condição de definição de cabra como a
fêmea do cabrão ou do bode. Salienta-seque as informações etimológicas
acerca da expressão convencional ‘cabra’, fornecidas por quase todos os
dicionários investigados – com a exceção de Bluteau (1712) e de Silva
(1823) – convergem no sentido de sua origem ser a forma latina capra.
Houaiss et al. (2008), por exemplo, indica que tal forma pode, igualmente,
se remeter ao gênero de espécies selvagens e domésticas, no caso de
Capra hircus. Os demais autores – Bluteau (1712), Machado (1952),
Silva (1949) e Ferreira (2009) – informam, no entanto, que a origem latina
das formas que nomearam o macho da cabra em português – ‘cabrão’ e
‘cabro’ –é outra diferentemente de capra (vide quadro abaixo). Bluteau
(1712), Silva (1823), Silva (1949), Machado (1952) e Ferreira (2009)
informam ainda que as formas ‘cabrão’ e ‘cabro’ teriam caído em desuso
por terem sido substituídas pela forma‘bode’.
147
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 4 – Origem e definição do macho da cabra
Bluteau
(1712)
Silva
(1823)
Silva
(1949)
Machado
(1952)
Ferreira
(2009)
Cabram,
Cabrão, s.m. bode,
Cabrão,s.m.(do lat.
Cabro, forma hoje
Cabro [do lat. capru].
cabrão. Vide
macho da espécie
caprone).zool.
desesusada por bode;
s.m. bode cabrum
bode
cabrum//
macho da cabra;
do lat. capru – bode;
[do lat.tar. caprunu]. adj.
t.v. O que consente que
bode// marido
odor forte das axilas
2. bras. v. corno (9)
sua mulher adultere
cornudo
Cabrão capado.
câper,pri.
Maje. Virg.
Cabrão
cornudo,
consentido. vul.
Cornudo
Bode – O
macho da
cabra.
Bode capado.
cãper, pri
Em suma, embora se observe que há divergência quanto à forma
original latina da qual teria derivado ‘cabrão’ e ‘cabro’, os dicionários
acima elencados atribuem, com exceção de Silva (1823), a essas formas
anacrônicas, origem latina diferente daquela da qual se derivou ‘cabra’.
Vale destacar que, assim como Bluteau (1712), Freund (1866), em seu
Gran Dicctionaire de La Langue Latine, define as formas ‘cãper, pri’
como aquelas que se referiam ao macho da cabra. Ainda, segundo esse
dicionário, diferentemente de Machado (1952), essas mesmas formas
teriam aparecido em textos de autores latinos, se referindo, igualmente,
ao forte cheiro exalado pelas axilas. Ao que parece, a forma latina relativa
ao macho da cabra, além de se distinguir daquela atribuída à cabra, entrou
na língua portuguesa se reportando tanto ao forte cheiro exalado das
axilas como a marido que consente ser traído, o vulgo ‘corno’. Supõese que a acepção de corno atribuída a ‘cabrão’ se deva ao fato de ele
ser capado, assim como afirmam Bluteau (1712), Silva (1823; 1949) e
Ferreira (2009).
148
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
Por outro lado, de acordo com os dados levantados (vide os três
quadros abaixo) por meio de três questionários aplicados juntos a 93
sujeitos residentes em Fortaleza, no período de 2010 a 2013, a expressão
convencional ‘cabra’ se refere, para além do animal de gênero feminino,
apenas a homem. Tais dados contrariam, assim, as acepções apresentadas
pelos dicionários investigados. Importante ressaltar que o perfil desses
sujeitos é majoritariamente de universitários, já que os questionários
foram aplicados junto aos estudantes dos cursos de Educação Física,
de Dança e de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), e
do curso de Comunicação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). A
escolha por tal perfil se deveu à razão de se pretender observar o uso
dessa expressão em público jovem, escolarizado e urbano, já que se
atribui que o uso de cabra na condição de homem estaria circunscrito a
um público de perfil rural e de baixa escolaridade.
Necessário ainda destacar que se encontram disponibilizadas,
nos quadros seis (6) e sete (7), as respostas de parte das perguntas
constantes nos segundo e terceiro questionários. Assim, embora o
segundo questionário possua, originalmente, 13 perguntas, constam,
no quadro abaixo (Quadro 6), seis perguntas acompanhadas de suas
respectivas respostas. Quanto ao terceiro questionário, embora possua,
originalmente, nove perguntas, constam, no quadro abaixo (Quadro 7),
duas perguntas acompanhadas de suas respectivas respostas. Por essa
razão, foi mantida a numeração de origem.
Considerando que esses questionários foram formulados,
inicialmente, para subsidiar questões de outra pesquisa por nós realizada,
a decisão em selecionar uma parte das perguntas e respostas constantes
nos segundo e terceiro questionários se deu em razão tantodo espaço aqui
disponibilizado como, sobretudo, do objetivo que se tem com este artigo.
Contudo, os questionários em sua íntegra se encontram disponibilizados
nos anexos.
149
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 5 – Primeiro questionário aplicado junto a participantes
residentes em Fortaleza4
Perguntas
Respostas
1. O que lhe vem à mente quando você ouve a palavra
45% dos 33 participantes responderam Animal;
CABRA?
15,2% dos 33 participantes responderam Homem;
Liste as palavras que lhe vem à cabeça?
9,1% dos 33 participantes responderam Cabra da Peste e
9,1% dos 33 participantes responderam Leite;
6,1% dos 33 participantes responderam Macho.
6,1% dos 33 participantes não responderam;
3,1% dos 33 participantes responderam Carneiro
3,1% dos 33 participantes responderam Ladrão
3,1% dos 33 participantes responderam Zona Rural.
2. Você acredita que o termo CABRA é usado para
6,1%
designar individuo do sexo masculino?
Sim
Não
93,9%
3. O que é para você verdadeiramente um cabra? Ordene
os termos abaixo em uma lista. (Cabra Macho, Cabra da
Peste, Cabra Bom, Homem, Cabra, Raparigueiro, Cabra
Véi, Um sujeito qualquer e Capanga)4
33,3%
35,0%
30,0%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
27,3%
30,0%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
15,2%
9,1%
9,1%
12,1%
9,1%
6,1%
12,1%
27,3%
15,2%
12,1%
9,1%
3,0%
Um
homem
Cabra da Um sujeito
peste
qualquer
Cabra
macho
Cabra bom AUSENTE
18,2%
20,0%
18,0%
16,0%
14,0%
12,0%
10,0%
8,0%
6,0%
4,0%
2,0%
0,0%
18,2%
18,2%
15,2%
15,2%
9,1%
3,0%
3,0%
36,4%
40,0%
33,3%
30,0%
18,2%
15,2%
20,0%
12,1%
12,1%
35,0%
30,0%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
6,1%
6,1%
9,1%
12,1%
3,0%
12,1%
15,2%
3,0%
6,1%
10,0%
0,0%
Um homem Cabra da
peste
Um sujeito
qualquer
Cabra
macho
24,2%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
3,0%
33,3%
35,0%
30,0%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
21,2%
12,1%
15,2%
3,0%
15,2%
15,2%
9,1%
Um homem Um sujeito
qualquer
12,1% 12,1% 12,1%
9,1%
3,0%
Cabra bom AUSENTE
Capanga
Cabra
raparigueiro
Cabra vei
AUSENTE
33,3%
35,0%
30,0%
25,0%
20,0%
15,0%
10,0%
5,0%
0,0%
24,2%
18,2%
15,2%
6,1%
Um sujeito
qualquer
Capanga
Cabra bom
3,0%
Cabra
Cabra vei
raparigueiro
AUSENTE
4
As repostas mostram da primeira à oitava classificação de acordo com as listas
produzidas pelos participantes. Os termos da lista não foram disponibilizados em ordem.
150
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 6 – Segundo questionário aplicado junto a participantes
residentes em Fortaleza
Perguntas
4.Você concorda com a definição segunda a
qual CABRA se refere a:
Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino;
Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino
brasileiro;
Apenas, algum tipo de indivíduo/sujeito de
sexo masculino brasileiro
Respostas
43,3%
50,0%
40,0%
30,0%
20,0%
10,0%
0,0%
10,0%
3,3% 10,0%
Qualquer indivíduo de
sexo feminino
Apenas alguns indivíduos
de sexo feminino brasileiro
86,7%
Só se refere a indivíduo do
sexo masculino
86,7%
90,0%
80,0%
70,0%
60,0%
50,0%
40,0%
30,0%
20,0%
10,0%
0,0%
6,7%
Não
9. Você concorda com a definição segundo a
qual CABRA é um jagunço?
3,3%
Qualquer
Qualquer
Apenas, algum Não entendeu
indivíduo/sujeito indivíduo/sujeito
tipo de
de sexo
de sexo
indivíduo/sujeito
masculino
masculino
de sexo
brasileiro
masculino
brasileiro
6. Você acha que CABRA é usado também
para se referir:
Qualquer indivíduo de sexo feminino;
Qualquer indivíduo de sexo feminino brasileiro
Apenas alguns indivíduos de sexo feminino
brasileiro
Só se refere a individuo do sexo masculino
8. Você concorda com a definição segundo a
qual CABRA é um representante da mistura
entre mulato e negro?
43,3%
Não conhece
3,3%
Parcialmente
3,3%
Sim
73,3%
80,0%
70,0%
60,0%
50,0%
40,0%
30,0%
20,0%
10,0%
0,0%
Parcialmente
10. Você concorda com a definição segundo a
qual CABRA é um habitante da zona rural?
13,3%
10,0%
3,3%
Não
Não conhece
Sim
10,0%
30,0%
Parcialmente
Não
60,0%
Sim
11. Você concorda com a definição segundo a
qual CABRA é um cangaceiro?
73,3%
80,0%
70,0%
60,0%
50,0%
40,0%
30,0%
20,0%
10,0%
0,0%
13,3%
6,7%
Parcialmente
6,7%
Não
Não conhece
Sim
151
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
QUADRO 7 – Terceiro questionário aplicado junto a participantes
residentes em Fortaleza
Perguntas
Respostas
7. Você acredita que seus pares (Avô, Pai,
Marido, Companheiro, Amigos íntimos e
em geral) possam ser chamados por você de
Cabra? Por quê?
6,7%
43,3%
Sim
Não
50,0%
Parcialmente
8. Você acredita que homens com os quais
você não tem intimidade (Chefe, colegas de
trabalho, anônimos na rua e no comércio e
prestadores de serviços e autoridades de um
modo geral) possam ser chamados por você
de Cabra? Por quê?
3,3%
6,7%
13,3%
Sim
Não
Depende
76,7%
Parcialmente
De acordo com os dados coletados a partir da aplicação desses três
questionários, verifica-se que, para a maioria dos sujeitos, há uma tensão
em relação ao significado prototípico da expressão em estudo. Pois, se
por um lado, o significado mais saliente, ao que parece, é ‘indivíduo’;
por outro lado, o seu uso é considerado por boa parte dos sujeitos como
inapropriado em situações formais ou em tratamento dispensado a pais
e a avós, devido ao fato de apresentar caráter regional.
Além disso, a maioria dos sujeitos não reconheceu os significados
‘mulher’, nem ‘mestiço de mulato e negro’, tampouco ‘cangaceiro’,
‘capanga’ ou ‘morador e trabalhador da zona rural’ atribuídos à expressão
‘cabra’ por boa parte dos dicionários investigados. Vale ressaltar que
o significado de tal expressão, em termos de indivíduo qualquer, é
encontrado apenas em dois dos sete dicionários pesquisados: o de
Houaiss et al. (2008) e o de Ferreira (2010), isto é, nos dicionários gerais
contemporâneos. Tal fato pode nos levar a inferir que esses significados
apresentariam caráter mais recente, assim como aquele relativo a
trabalhador e a morador da zona rural.
152
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
À guisa de conclusão desta seção, verifica-se que, para a maior
parte dos dicionários pesquisados, a origem latina relativa às formas
masculina e feminina do animal em questão não é a mesma, ainda que
os autores desses dicionários divirjam acerca de qual forma latina teria
derivado ‘cabrão’ e ‘cabro’. Além disso, a despeito da divergência quanto
ao significado prototípico de tal expressão, ela vem sendo usada, igual
e efetivamente, para se referir a ser humano, ao seu comportamento ou
à parte de seu corpo,
Em outras palavras, percebe-se, de acordo com os dados, que
embora os significados contemplados por tal expressão na condição
de ser humano mudem quantitativamente ao longo de sua história, eles
mantiveram e mantêm sempre a sua referência a ser humano. Critérios
etimológicos ou mesmo históricos não dão conta de explicar tal padrão.
Tampouco, teorias semânticas de caráter formalista e/ou estruturalista
dão conta de explicá-lo, tendo em vista que essas teorias se atêm,
normalmente, a critérios formais, independente das características
próprias ao funcionamento cognitivo humano. Nesse sentido, Lakoff
(1987) pondera que, ao negligenciarem as experiências resultantes entre
o aparato sensório-motor humano e o mundo físico e socioculturalmente
situado, as visões semânticas tradicionais supõem que o processo de
significação humana poderia ser produzido por qualquer outro dispositivo
animado ou inanimado, a exemplo de máquinas e robôs.
3 Algumas análises e resultados
Em consonância com os dados levantados, nossa análise parte,
de início, da hipótese de que a variação de gênero contemplada pela
expressão convencional ‘cabra’ na condição de homem não poderia
ter base etimológica. Ou seja, em conformidade com as informações
fornecidas pelos dicionários investigados, foram formas latinas distintas
que originaram as formas em português correspondentes à ‘cabra’,
a ‘cabrão’ e a ‘cabro’. Assim sendo, levanta-se a hipótese de que tal
variação se deu em função dos situamentos socioculturais dos falantes
residentes, sobretudo, no Nordeste do Brasil.
Nesse sentido e de acordo com todos os dicionários investigados,
inclusive o dicionário Gran Dictionnaire de La Langue Latine, e com
os sujeitos e usuários atuais da expressão convencional ‘cabra’, é
evidentemente sistemática a relação motivada por extensão metafórica
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
153
entre os conceitos do animal cabra (e/ou ‘cabrão’ ou ‘cabro’) e de ser
humano. Nessa perspectiva, postulamos, de acordo com a Teoria da
Metáfora Conceptual, que as relações contempladas pelo léxico não se
dão em termos de um significado linguístico único, literal e abstrato, até
porque seria bastante implausível justificar que um único significado
linguístico abstrato daria conta de estabelecer propriedades necessárias e
suficientes comuns ao conceito de ser humano e de animal. Ao contrário,
tais relações, apesar de contemplarem um significado convencionalizado
ou prototípico em função dos usos e propósitos, ou ainda dos efeitos
prototípicos (LAKOFF, 1987) das categorias homem e cabra, por
exemplo, contemplam, sobretudo, os aspectos relativos à forma como
nosso sistema conceptual é constituído e funciona.
Assim, para a Teoria da Metáfora Conceptual, itens lexicais
polissêmicos, como a expressão convencional ‘cabra’, seriam estruturados
segundo processos de categorização situados. Nessa perspectiva, a
categoria animal seria estruturada, primeiramente, com base no nível
básico de categorização (ROSCH et al., 1976). Ou seja, há evidências, de
acordo com vários estudos e experimentos (BERLIN; ROMNEY, 1964;
ROSCH et al.,1976), de que os seres humanos estruturam, inicialmente,
seu sistema conceptual a partir da interação com entidades com as
quais possam tocar, cheirar e perceber o funcionamento de suas formas
e partes em um mundo físico e/ou socioculturalmente situado. Assim,
para estruturação do conceito de cabra, por exemplo, teria que ter havido
interação motora humana com o animal cabra, em termos de tato e de
cheiro, por exemplo, além de interação perceptual, relativa à percepção
das formas desse animal em consonância com a funcionalidade de suas
partes, a exemplo do leite que produz, e de compreensão de seu papel
sociocultural na comunidade em que vive.
Em suma, para que se estruturem tanto o nível categorial mais
geral como mais específico do conceito cabra como, animal e cabra
montês, respectivamente, parte-se do nível categorial básico cabra.
Dito de outra forma, de acordo com a Teoria da Metáfora Conceptual,
seria, inicialmente, fundamental para estruturação do conceito cabra que
houvesse experiência não apenas sensório-motora com algo chamado
cabra – percepção de sua forma e o contato com seu corpo e cheiro –
como também compreensão do papel socioeconômico e cultural que tal
animal exerce na comunidade onde vive para, em seguida, categorizá-lo
como animal e/ou como uma determinada espécie desse tipo de animal.
154
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
Nessa perspectiva, e em conformidade com a ideia de que os
níveis categoriais de generalização e de especificação são executores da
imaginação (BROWN, 1965) a partir do nível básico, Lakoff (1987) postula
que o processo humano de categorização se utiliza de recursos cognitivos
metafóricos, a fim de dar significado às experiências com as quais seu
aparato sensório-motor não consegue efetivamente interagir. Dessa forma,
compreende-se que o léxico não poderia ser explicado na condição de lista
de traços, tal qual postula a tradição gerativa, tampouco de abstração de
significado único e literal, de natureza apenas linguística, tal qual postula
a maior parte das teorias semânticas de base estruturalista e formalista. Ao
contrário, ele seria motivado e projetado de acordo com as experiências
corpóreas situadas dos seres humanos ou ainda de sua mente corpórea.
No caso da expressão convencional ‘cabra’ usada para se referir
a ser humano, além de animal de gênero feminino, as experiências dos
falantes de português do Brasil – especialmente daqueles que vivem na
região Nordeste – com o animal em questão, motivariam e estruturariam
o seu caráter polissêmico, ou ainda os seus diversos significados relativos
a homem e à mulher. Ou seja, ao se compreender, tal qual postula a Teoria
da Metáfora Conceptual, os significados dos itens lexicais em termos de
conceitos organizados nos três níveis categoriais acima discutidos, se teria,
no caso da polissemia da expressão em estudo, um processo de extensão
do significado de animal em termos de homem e de mulher com base em
recursos metafóricos, especialmente com base em metáforas animais.
As metáforas animais, segundo Kövecses (2010), se constituem
em recursos conceptuais dos mais recorrentes. O autor acrescenta
ainda que não apenas se verificou, em várias tradições linguísticas,
que pessoas são conceptualizadas em termos de animais como
também que, o comportamento humano é conceptualizado em termos
de comportamento animal, além de partes do corpo humano serem,
igualmente, conceptualizadas em termos de partes do corpo dos animais.
Além disso, foram verificadas evidências de que as metáforas animais
geralmente mapeiam características negativas dos animais. Dito de outra
forma, as metáforas animais se constituiriam em recursos conceptuais
utilizados, sobretudo, para se produzir conceitos de caráter negativo ou
pejorativo acerca das pessoas, de seus comportamentos e de parte de
seus corpos, tal qual se verificou nas diversas acepções encontradas na
entrada relativa à cabra apresentadas pelos dicionários aqui investigados.
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Nessa perspectiva, vale ser feita a seguinte pergunta: Por que
o animal cabra está sendo mapeado em termos de homem e de mulher
pelos falantes de português do Brasil, especialmente por aqueles que
vivem no Nordeste?
De início, trata-se de um animal que teve e tem papel
socioeconômico fortíssimo nessa região, tal qual assinala Cascudo:
(...) o leite de vaca nunca foi popular no sertão. Ninguém o bebia.
O leite coalhado e o queijo, sim, eram decisivos. Nunca o leito
puro e sim acompanhado, como sopa, batatas, jerimum, farinha,
adoçado com rapadura. O leite de cabra tinha o primeiro lugar.
Era uma herança milenar, porque a cabra fora o animal leiteiro
por excelência, cantado em Hesíodo, Virgílio, Teócrito, e não as
vacas (CASCUDO, 2009, p.61).
Além disso, se, por um lado, esse animal, sobretudo o seu leite, é
compreendido como importante por alimentar uma parte considerável da
região nordestina, ele é, por outro lado, compreendido como amaldiçoado.
Novamente, de acordo com Cascudo (2009, p.61), “do convívio com tal
animal, teriam surgido histórias segundo as quais tanto o bode quanto a
cabra desapareciam por uma hora durante o dia para ir ter com ‘o coisa
ruim’”. O autor avalia ainda que:
Desta participação religiosa a cabra nunca se libertou. Não se
aproximou de santo algum e não há lenda ou história em que figure
como elemento favorável. Familiar, doméstica, da intimidade
sertaneja, não inspira confiança integral ao povo. Em lenda alguma
da literatura oral cristã comparece com a cabra num plano de boa
educação ou afeto. Na etiologia de sua voz, uma condenação
popular que tivemos de Portugal: ‘Cristo nasceu!’ – cantou o
galo. ‘Onde’ – muge o boi. ‘Em Belém!’, baliu a ovelha. ‘Mentes,
mentes’ – resmungou a cabra, guardando até hoje a negativa
gaguejada e pagã. (CASCUDO, 2009, p. 61).
Assim, é possível observar que as maldições não recaem apenas
sobre o animal, recaem, igualmente, sobre o seu leite. Segundo nos
informa mais uma vez Cascudo (2009), acreditava-se, sobretudo no
Sertão do Nordeste, que o leite da cabra poderia transmitir “o caráter
inquieto, buliçoso, arrebatado, da amamentadora. [Ou ainda de que] o
menino, demasiado vivo, arteiro, endiabrado, tem a justificativa no leite
da cabra”. (CASCUDO, 2009, p.62).
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Desse modo, é plausível afirmar que a metaforização do ser
humano em termos de cabra se dá para falantes dessa região do Brasil
devido aos seus situamentos corpóreos e socioculturais, isto é, devido aos
contatos físico-perceptuais com esse animal e a função socioeconômica
e cultural que ele exerce nessa região. Verifica-se, nessa perspectiva, que
são atribuídas características comportamentais pouco elogiosas à cabra,
tais como o de ser misteriosa, pouco cristã, nada confiável, com poderes
obscuros, inquieta, arrebatada, além de características físicas pouco
interessantes como, a de emitir sons nada harmoniosos e exalar cheiro
desagradável, muito embora se atribua a ela grande potencial sexual.
Percebe-se, dessa forma, que falantes, sobretudo, da região
do Nordeste do Brasil, estruturam o conceito cabra com extensões
metafóricas relativas a ser humano ao mapearem características atribuídas
ao animal em questão. Ou seja, cabra é ai, compreendida como mulher a
partir do mapeamento das características sensualidade e berro atribuídas
à cabra, de um lado, e das características lasciva, prostituta, escandalosa
e que grita muito atribuídas a mulher, de outro lado. Cabra é, igualmente,
aí compreendida como homem a partir do mapeamento das características
amaldiçoada, pouco confiável e arrebatada atribuídos ao animal, de um
lado e, das características mestiço, traiçoeiro, violento, valente, brigão
e petulante, atribuídas a homem, de outro lado.
Além disso, para Goatly (2007), as metáforas animais podem estar
igualmente motivadas por sistema de valores ideológicos referendados
por teorias de caráter evolucionista e eugenista segundo as quais o ser
humano seria um animal superior aos demais animais; e os seres humanos
caucasianos seriam, por sua vez, superiores aos demais seres humanos. Há
evidências, nesse sentido, de textos reunidos por pesquisadores da Teoria da
Metáfora Conceptual, disponibilizadas por Goatly (2007), que identificam
a conceptualização de grupos de seres humanos fora do padrão caucasiano
em termos de animais, como os imigrantes nos Estados Unidos.
No entanto, é interessante notar que os falantes residentes na
região do Nordeste do Brasil, ao considerarem a cabra como um animal
importante para sua economia, mapeiam, igualmente, características
positivas ao conceptualizarem cabra como homem. Ou seja, tal qual a
cabra é compreendida como resistente e de fácil adaptação, o cabra é
conceptualizado como determinado, corajoso e esperto. Nesse sentido,
Freyre, ao se basear na definição do folclorista Rodrigues de Carvalho,
afirma, que: [o cabra é] “o herói de um grande número de histórias de
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coragem e de aventuras de amor. É o ‘cabra danado’. O ‘cabra escovado’.
O cabra bom. O cabra de confiança”. (FREYRE, 2004, p.172).
Quanto à possibilidade do significado prototípico de tal expressão
se ter deslocado para algo mais neutro como indivíduo ou homem
qualquer, supõe-se que haja relação entre a intensificação do processo
de urbanização pelo qual passou o Nordeste nas últimas décadas
(MENEZES, 2010), e a variação no uso prototípico dessa expressão,
isto é, ‘de mestiço de negro com mulato ou índio’, ou ‘de morador da
zona rural’ para ‘indivíduo’
Nessa perspectiva, ao que parece, o uso de cabra como mulher
não se urbanizou, mantendo-se circunscrito à zona rural ou a falantes
nordestinos de muita idade. Isso ocorreu, a nosso ver, devido ao fato
desse regionalismo não apresentar a mesma força pragmática do que
aquele que se refere a homem. Nesse sentido, Freyre (2004) nos ensina
que o cabra desempenhou função sócio-histórica contundente tanto na
região do Nordeste do Brasil como no Brasil inteiro. Ou seja, se por um
lado, segundo Freyre:
A história social do Nordeste da Cana-de-Açúcar está ligada, como
talvez a de nenhuma outra região de Brasil, ao esforço do mestiço,
ou antes, do cabra. Um esforço que se tem exercido debaixo de
condições duramente desfavoráveis. Mas, mesmo assim, notável
pelo que tem construído e realizado. (FREYRE, 2004, p. 171).
Por outro lado, ainda para Freyre (2004, p.50), teria sido o cabra,
um dos primeiros representantes genuínos da civilização brasileira.
Ou seja, segundo Freyre: “primeiro se fixaram e tomaram fisionomia
brasileira os traços, os valores, as tradições portuguesas que, junto com
as africanas e as indígenas, constituiriam aquele Brasil profundo, que
hoje se sente ser os mais brasileiros”. (FREYRE, 2004, p.50)
Em suma, conclui-se que o pareamento entre cabra e seus diversos
significados em termos de homem se estrutura com base na maneira como
o sistema conceptual humano se organiza e funciona, isto é, com base
nas experiências corpóreas e socioculturalmente situadas dos falantes,
no caso dos falantes residentes da região do Nordeste do Brasil. Dito
de outra forma, os falantes residentes da região do Nordeste do Brasil
não compreendem ‘cabra’ apenas em termos de animal per se. Eles a
compreendem também em termos de sua função socioeconômica e de
seu papel simbólico ou cultural; e em termos de determinado tipo de
homem e mulher com base em processos metafóricos.
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Ademais, considerando que as metáforas animais produzem
conceitos, sobretudo negativo acerca das pessoas, percebe-se pendor
pejorativo e depreciativo na metáfora cabra na condição de homem.
Necessário salientar a esse respeito que, de acordo com as diversas
acepções apresentadas pelos dicionários investigados, as características
mais marcadas são as de o cabra ser mestiço ou oriundo de etnias
desprestigiadas. Como é sabido, pesam enormes preconceitos sobre
ambas as condições, de ser mestiço e de ser índio.
Diante de tais evidências, ratifica-se a hipótese de que a mudança
do gênero contemplada pela expressão convencional ‘cabra’, isto é, o fato
de homem não ser conceptualizado como bode e sim como ‘cabra’, estaria,
efetivamente, relacionada com as motivações oriundas dos situamentos
corpóreos e socioculturais dos falantes residentes na região do Nordeste
do Brasil. Estaria, especialmente, relacionada com fato de esse homem
ser filho de mulato e negra, isto é, um híbrido de etnias sobre as quais
pesam enormes preconceitos. Nesses termos, Goatly (2007) assinala
que homens que não apresentam padrão caucasiano são compreendidos
como animais. No caso da mudança de gênero contemplada pela
conceptualização de homem em termos de cabra, observa-se um aspecto
a mais: ele é compreendido como um tipo invertido, um animal híbrido
que não se coaduna com a visão clássica da divisão de gêneros.
4 Considerações finais
Em consonância com os resultados obtidos com esta pesquisa,
acredita-se que há evidências no sentido de que, para que se possa
compreender a natureza do pareamento cabra em termos de homem, e de
sua variação de gênero, é necessário que se examinem as correspondências
entre pensamento, linguagem e cultura. Ou seja, a nosso ver, são
consistentes os processos de natureza corpórea e socioculturalmente
situados que motivam a conceptualização de homem em termos da
expressão convencional ‘cabra’ bem como a sua variação de gênero. Por
tal razão, considera-se tal expressão como polissêmica aos moldes da
concepção de polissemia formulada por Lakoff (1987).
Dessa forma, se propõe (ver abaixo diagrama) que os significados
da expressão cabra’ se organizam a partir do agrupamento de duas
categorias, ou de dois modelos cognitivos –animal e homem. Em outras
palavras, propõe-se que os significados da expressão ‘cabra’ se encontram
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organizados segundo um modelo categorial radial, de natureza aberta e
dinâmica, de modo que: seu primeiro membro central é animal; e que,com
base na metáfora animal SER HUMANO ÉANIMAL, se estabelece seu
segundo membro central ‘ser humano’, cujo significado prototípico seria
‘indivíduo qualquer’ ou ‘homem’ e os significados periféricos seriam
‘cabra macho’, ‘cabra da peste’, ‘morador e trabalhador da zona rural’,
‘mestiço de mulato com negra’, capanga. O processo metafórico animal
em termos de mulher (constante no diagrama abaixo) não se apresentou
devidamente convencionalizado, segundo os sujeitos que responderam
aos três questionários aplicados.
Demais significados
Generalização
Domínio Animal
Cabra da Peste
2. Cabra macho
Metáfora Animal
1. Indivíduo;
Homem
(1):SER HUMANO É
Conceito de nível
básico: saliência
perceptual/
interação e nomes
curtos
Metáfora Animal (2):
SER HUMANO É
ANIMAL
1. Homem: 1. Indivíduo qualquer; Homem; 2. Cabra Macho; 3. Cabra da Peste;
4. Morador e trabalhador rural; 5. mestiço de mulato e negra; 6. Capanga 2. Mulher
À guisa de conclusão, os estudos voltados para itens polissêmicos, a
exemplo da expressão convencional ‘cabra’, à luz dos postulados da Teoria
da Metáfora Conceptual, mostram que o caráter arbitrário da relação entre
significado e forma se encontraria mais distante do léxico mental do que se
poderia imaginar. Nesses termos, o que poderia ser efetivamente arbitrário
seria a sequência fonológica de cabra, por exemplo, e não o fato de essa
sequência apontar para as relações conceptuais acima discutidas. Assim,
vislumbra-se que uma visada arbitrária sobre a natureza dessa relação pode
ser considerada bastante inconsistente.
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Por último, faz-se necessário salientar que, mesmo que se julgue
importante a investigação dos processos psicológicos envolvidos na
estruturação da relação dos significados polissêmicos em foco, estimase que, com este trabalho, contribui-se, ainda que modestamente, para a
discussão acerca da arbitrariedade entre significado e forma.
Declaração de autoria
Declaramos que o texto foi redigido integralmente pelos dois autores.
Fernanda Cavalcanti foi mais responsável pela ideia do tema, bem como
das leituras teóricas no âmbito da Teoria da Metáfora Conceitual e da
análise. Luciane Ferreira, por sua vez, foi responsável pela fundamentação
teórica subsidiada pelos Teóricos da Metáfora Conceitual.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019
ANEXOS
Questionário 2
Questionário 3
1. Você acredita que o homem e a mulher são animais?
1. Você acredita que o homem é um animal? Por quê?
2. Se você acredita que tanto o homem quanto a mulher são
animais, qual seria a diferença entre homem/mulher animal e os
demais animais?
2. Você acredita que o homem possa ser representado
por um animal? Qual seria e Por que razão?
3. Você acredita que haja diferenças entre o homem brasileiro nordestino
e o homem brasileiro no geral? Por quê?
3. Você concorda com que a imagem do homem
nordestino seja representada por Cabra?
4. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA se
refere a:
Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino.
Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro.
Apenas algum tipo de indivíduo/sujeito do sexo masculino brasileiro
4. Você vê alguma diferença quando um homem
(nordestino?) é chamado de Cabra ao invés de
somente “Homem”, “Cara”, “Rapaz”? Qual seria
essa diferença?
5. Você acha que a expressão CABRA DA PESTE e CABRA
MACHO se referem a:
Qualquer invíduo/sujeito do sexo masculino
Qualquer individuo/sujeito de sexo masculino brasileiro
Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro e nordestino
5. Em sua opinião, qual seria o aspecto físico relativo
a Cabra que você acredita que, em alguma medida,
se assemelharia a de um homem?
6. Você acha que CABRA é usado também para se referir:
Qualquer indivíduo de sexo feminino
Qualquer indivíduo de sexo feminino brasileiro
Apenas alguns indivíduos de sexo feminino brasileiro
Só se refere a individuo do sexo masculino
6. Em sua opinião, qual seria o aspecto moral
ou comportamental que, em alguma medida, se
assemelharia a de um homem?
7. Quando você ouve a expressão CABRA BOM, que tipo de
imagem lhe vem à cabeça?
7. Você acredita que seus pares (Avô, Pai, Marido,
Companheiro, Amigos íntimos e em geral) possam
ser chamados por você de Cabra? Por quê?
8. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um
representante da mistura entre mulato e negro?
8. Você acredita que homens com os quais você não tem
intimidade (Chefe, colegas de trabalho, anônimos na rua
e no comércio e prestadores de serviços e autoridades de
um modo geral) possam ser chamado por você de Cabra?
Por quê?
9. Você concorda com definição segundo a qual CABRA é um
jagunço?
9. Você acha que o Cabra tem nacionalidade ou
naturalidade específica?
10. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um
habitante da zona rural?
11. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um
cangaceiro?
12. Você concorda com a expressão que diz que “Não há doce ruim
e cabra bom?
13. “Não me mete medo! Vá dizer a este mata-cachorro que eu agüento.
Sou homem, cabra. Sou homem!”Ao ler essa passagem do romance
FOGO MORTO, de José Lins do Rego, você acha que essa idéia de
homem é adequada, é real?
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Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção
e percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros
Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and Perception
of Lexical Stress in English by Brazilian Portuguese Speakers
Filipe Modesto
Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP),
Campinas, São Paulo / Brasil
filipemodesto4@gmail.com
Plinio Almeida Barbosa
Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP),
Campinas, São Paulo / Brasil
pabarbosa.unicampbr@gmail.com
Resumo: muitos adultos aprendizes de uma L2 possuem algum grau de sotaque.
Contribui para esse sotaque a não adequada realização do acento tônico (AT), que tem
papel preponderante para a estruturação prosódica da fala. 24 falantes do português
brasileiro (PB) de quatro níveis autorreferidos de inglês americano (IA) participaram de
testes de produção e percepção de AT. Os dados acústicos de produção dos participantes,
assim como os escores na marcação da posição acentual foram coletados e comparados
com um sujeito nativo. Os parâmetros acústicos de maior relevância para a realização
do AT dos falantes do PB foram a duração, intensidade total e intensidade relativa das
sílabas acentuadas. Os escores de percepção foram maiores do que os de produção,
de modo geral. As palavras com acento inicial foram as que tiveram maior número de
acertos tanto na produção quanto na percepção. Os falantes nativos do PB de todos os
níveis empregam os mesmos parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA, sendo que
estes tendem a se aproximar dos do nativo à medida em que o nível de inglês aumenta.
O cognatismo não foi relevante para o uso dos parâmetros acústicos empregados na
marcação do acento, mas influenciou os escores da posição acentual.
Palavras-chave: sotaque estrangeiro; acento tônico; fonética acústica.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.165-189
166
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
Abstract: many adults who learn a second language have a foreign accent to some
extent. The misproduction of lexical stress (LS), which plays an important role in the
prosodic structure of speech, contributes to the perception of a heavier foreign accent.
Twenty-four Brazilian Portuguese (BP) speakers of English of four different selfreported levels underwent tests of production and perception of LS. This study aimed
to describe how production and perception of lexical stress happen to BP speakers of
four different self-reported levels. Acoustic data, as well as the percentage of scores in
stress placement, were collected and compared to the production of a native speaker
of American English (AmE). Syllable duration, total intensity, and relative intensity
were the most important parameters used by the BP speakers to stress syllables. Hits
in the perception task were greater than the production task, overall. Initially stressed
words had the greatest hits in both production and perception. Overall, the BP speakers
from this use, in AmE, the same acoustic parameters used in BP for signaling LS. The
production, in regards of acoustic parameters use, gets closer to the native when the
proficiency level increases. Cognate words were not relevant in the acoustic parameters
choice of the speakers, but they were relevant for the stress position hits.
Keywords: foreign accent; lexical stress; acoustic phonetics.
Recebido em 08 de março de 2018
Aceito em 11 de junho de 2018
1 Introdução
A maioria dos adultos que aprendem uma segunda língua (L2) a
falam com pelo menos algum grau de sotaque estrangeiro, especialmente
se a fonética e a fonologia de L2 diferir significativamente do padrão
de sua língua materna (L1) (FLEGE; HILLENBRAND, 1984). Um
sotaque estrangeiro é percebido quando ouvintes nativos detectam
divergências na produção fonética que ocorrem tanto no eixo segmental
quanto suprassegmental (FLEGE, 1995). Ao longo dos anos, muitos
fatores foram considerados como relevantes como relacionados ao
sotaque estrangeiro, dentre eles: idade de aprendizado da L2, tempo
de residência em país falante da L2, gênero, grau de instrução formal,
motivação, aptidão para aprendizado de línguas e quantidade de uso da
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
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L1. No entanto, dentre esses, apenas a idade de aprendizado da L2 e a
quantidade de uso da L1 em relação à L2 foram considerados preditores
significativos para o grau de sotaque (FLEGE, 1995; PISKE et al., 2001).
Embora haja bastante discussão sobre a existência de um único período
crítico para o aprendizado de uma L2 sem sotaque (LENNEBERG,
1967; SCOVEL, 1969, 1988; PATKOWSKI, 1980, 1990), outros estudos
apontam para diversos períodos críticos ou ainda períodos sensíveis ao
longo da vida que influenciam as habilidades linguísticas de cada sujeito.
(FATHMAN, 1975; SELIGER, 1978; WALSH; DILLER, 1981, LONG,
1990; HURFORD, 1991). Embora tais períodos sejam importantes a
serem considerados, a idade não se apresenta como fator limitante para
que um falante atinja um alto grau de proficiência numa L2. Experimentos
com falantes nativos de mandarim e espanhol recém chegados aos EUA
e que já moravam há uma década, mostraram que as produções dos
falantes experientes eram consideradas corretas por falantes nativos do
IA não muito mais frequentemente que as produções dos falantes recém
chegados (FLEGE; MUNRO; SKELTON, 1992). De qualquer forma,
o sotaque estrangeiro pode causar diversas situações desagradáveis ao
falante quando afeta a compreensão do conteúdo que se deseja comunicar.
Um mecanismo que pode estar por trás do sotaque é a influência que
as características fonéticas da L1 exercem sobre a L2 (FLEGE, 1995).
A proximidade entre sons das duas línguas faz com que os
participantes que aprendem a L2 em período pós-lingual estabeleçam
uma relação alofônica dos sons de sua língua materna com os novos sons
aprendidos, ao invés da criação de uma categoria fonológica distinta
(FLEGE, 1995). Isso provoca as distorções de produção de consoantes
e vogais e da prosódia da L2. Um exemplo disso ocorre quando da
pronúncia palatalizada do [t] do inglês antes da vogal [i] ou semivogal
[j] por parte de brasileiros (two/too/to [thu] sendo pronunciado [ʧu]). Tal
influência é percebida por falantes nativos do inglês. Da mesma forma, a
nível prosódico (suprassegmental), a palavra demonstrate é pronunciada
DEmonstrate. Se pronunciada demonsTRATE, seguindo o padrão oxítono
de acentuação dos verbos no infinitivo do PB, também será percebida
com sotaque pelo falante nativo do IA.
Além de alterações na produção de vogais e consoantes, uma
relação entre os padrões prosódicos de uma língua e outra também se
dá. Os parâmetros rítmicos, apesar de não serem facilmente percebidos
pelos falantes não nativos, têm importante papel na detecção do sotaque
168
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
estrangeiro em inglês, mais importante que desvios a nível segmental e
de estrutura silábica, nos termos de Anderson-Hsieh, Johnson e Koehler
(1992).
O acento lexical primário, que aqui chamaremos de acento
tônico (AT), é a marca lexical que se realiza na cadeia da fala como
marca de proeminência percebida de uma sílaba em relação a outra
numa palavra com mais de uma sílaba (ARCHIBALD, 1993; MAJOR,
2001). Esse acento é frequentemente realizado por um aumento na
frequência fundamental, duração e intensidade sonora da sílaba que o
carrega. Cada língua que tem AT pondera diferentemente o peso de cada
parâmetro acústico para marcar a proeminência desse acento. O papel
do AT é fundamental na segmentação do sinal contínuo de fala e para o
seu reconhecimento, se dando pela estruturação prosódica. A alternância
entre sílabas fortes e fracas na fala colabora na tarefa de determinar
constituintes no interior do enunciado (CUTLER, 1986, 1989; CUTLER;
NORRIS, 1989). O papel da acentuação é ainda considerado como
facilitador no acesso lexical (GROSJEAN; GEE, 1987). A acentuação
não padrão de palavras leva a problemas na decisão lexical, que
contribui para estabelecer a relação entre a imagem acústica da palavra
e a representação mental da mesma. É mais considerado o papel do AT
no reconhecimento de fala especialmente na ativação lexical inicial
dos possíveis candidatos e também na desambiguação dos candidatos
selecionados (COLOMBO, 1991). Para falarmos do AT em inglês por
falantes brasileiros, é preciso antes examinar como se dá a realização
acústica desse fenômeno prosódico em ambas as línguas.
AT no Inglês
O inglês é uma língua de acento com posição variável (HELAL,
2014; GIMSON, 1980; LADEFOGED, 1982) podendo recair sobre
qualquer posição silábica numa palavra, embora o padrão inicial de
acentuação (left-most) seja predominante no idioma (80% das palavras),
especialmente em palavras dissilábicas (CUTLER; CARTER, 1987). Nos
dissílabos do inglês, há uma relação morfológica derivacional frequente
em palavras de mesmos constituintes segmentais: o acento na primeira
sílaba se dá no substantivo (e.g., PROtest) e o acento na segunda sílaba
se dá no verbo (e.g., proTEST). O acento primário no inglês é realizado
por contraste de qualidade da vogal acentuada (plena vs. reduzida na
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
169
átona) bem como pelo frequente aumento da frequência fundamental,
intensidade sonora e duração silábica na tônica. Além das características
prosódicas, o AT no IA possui uma marca a nível segmental. As vogais
de sílabas acentuadas são sempre vogais plenas, enquanto as de sílabas
átonas são geralmente reduzidas e em sua maioria realizadas pelo schwa.
Plag, Kunter e Schramm (2011), que fazem uma análise do acento
primário e secundário no inglês tanto na situação da palavra com acento
de pitch quanto na palavra não acentuada, reafirma o papel da duração
na marcação do AT em IA. Apesar de o parâmetro ser importante para
diferenciar sílabas acentuadas de átonas, não se encontrou diferença
significativa do parâmetro capaz de distinguir os dois tipos de acento.
O trabalho de Sluijter e van Heusen (1996) utilizou pares
substantivo-verbo do IA que contrastam no acento em oito repetições
de seis falantes do IA. Os autores encontraram que sílabas acentuadas
eram geralmente mais longas que as sílabas átonas, sendo o parâmetro
duração considerado de efeito na marcação do AT. No que diz respeito
à intensidade total, as sílabas acentuadas eram mais intensas que as não
acentuadas, nas duas condições experimentais usadas: com a palavra em
foco e fora de foco linguístico. No entanto, quando o foco não estava na
palavra, o aumento do parâmetro não era significativo, corroborando o
argumento de que a intensidade está mais relacionada com acento de pitch
do que com AT propriamente. Há grande discussão sobre a relevância ou
não de F0 na marcação do AT em IA. Discute-se que o papel de F0 seria
relevante na marcação do acento apenas nas palavras que se encontram
em condição de foco. Apesar disso, não se nega a importância de F0 nessa
marcação prosódica da língua. No momento da proeminência, ocorre o
pico ou uma inflexão positiva da curva de F0 na sílaba acentuada.
AT no Português Brasileiro
No português brasileiro (PB), assim como no inglês, o acento
também é contrastivo (CONSONI et al., 2006), como nos exemplos:
SAbia, saBIa, sabiA. O PB tem três janelas possíveis de acentuação
primária (as três últimas sílabas de uma palavra), sendo que há maior
distribuição de palavras acentuadas na penúltima sílaba, constituindo
aproximadamente 63% (ARAÚJO et al., 2007) do padrão de acentuação
tônica da língua. A duração silábica é o parâmetro acústico mais
importante para a realização do AT no PB, seguido da frequência e, por
170
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
último, a intensidade, como mostrado por Fernandes (1976), que realizou
o estudo do AT em frases assertivas lidas, e outros autores (MASSINICAGLIARI, 1992; BARBOSA, 1996). Os correlatos acústicos variam
sobretudo em função da força prosódica de uma palavra na frase, muito
mais do que devido a um padrão pré-determinado de acentuação das
palavras. Quando uma palavra está num grupo prosódico fraco, o AT se dá
pela combinação de duração e intensidade. A intensidade, diferentemente
da duração, cai drasticamente nas sílabas pós-tônicas. Quando uma
oxítona se encontra em posição prosódica fraca dentro da frase, não há
um parâmetro acústico específico para a marcação do AT. A frequência
fundamental tem papel importante na marcação de proeminência, mas
a nível frasal apenas (MORAES, 1998).
É evidente que o inglês e o PB têm diversas diferenças de acento
tônico não somente no que diz respeito ao padrão de acentuação, mas
também na natureza acústica desse parâmetro prosódico. Portanto, esse
artigo se propõe a estudar como se dá a realização do AT em inglês por
falantes brasileiros que se julgam de diferentes níveis de proficiência,
assim como avaliar como esses mesmos participantes percebem o AT
do inglês quando falado por nativos, buscando estabelecer uma possível
correlação entre a produção e a percepção do AT.
2 Métodos
Participaram da pesquisa 24 participantes (15 mulheres e 9
homens), que se encaixaram no critério de inclusão: ser brasileiro,
falante nativo da variante paulista do PB e ter algum conhecimento de
inglês americano (IA). Após preencherem o termo de consentimento
livre e esclarecido, todos os participantes responderam a um breve
questionário com informações de onde haviam estudado o inglês, por
quanto tempo e se haviam morado em país falante da língua, para traçar
o perfil sociolinguístico do inglês da população estudada. Além disso,
os participantes tinham que se atribuir uma nota que considerassem que
melhor descrevesse o seu nível de inglês, numa escala crescente de 1 a
4. Feito isso, dava-se início às etapas de produção e percepção.
Os participantes se distribuíram em 7, 5, 7, 5 nos níveis de inglês
N1, N2, N3 e N4, respectivamente. Do total de participantes, 66,7%
(n=16) afirmou que seu conhecimento de inglês vinha de escolas de
idiomas e apenas um sujeito, de nível 3, declarou ter sido autodidata no
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171
estudo da língua. A grande maioria (88%) nunca havia morado em país
falante de língua inglesa.
Para fins de comparação com os parâmetros acústicos obtidos
dos falantes brasileiros, gravamos um falante americano com as palavras
utilizadas na etapa de percepção do estudo. O sujeito é natural de
Minneapolis-MN, Estados Unidos da América, com 22 anos na época da
gravação e morava no Brasil há aproximadamente 6 meses, já havendo
estudado português anteriormente. A análise confirma que o uso de
parâmetros acústicos do IA segue o da literatura, não tendo tido, pelo
menos até esse momento da gravação, influência do PB.
2.1 Etapa de Produção
Uma lista contendo 45 palavras trissílabas do IA (22 cognatas; 23
não cognatas- ANEXO I) foi apresentada a cada sujeito na forma de uma
apresentação de slides, em que cada slide continha uma palavra da lista na
frase-veículo Say___again. As palavras utilizadas não foram controladas
no que diz respeito aos afixos, mas buscaram seguir a proporção de
posição acentual do inglês, que contém a maioria das palavras com padrão
P3. Os slides eram aleatorizados pelo software e os participantes foram
instruídos a lerem uma frase por vez, em seu ritmo de fala natural. Toda
essa etapa foi gravada numa taxa de amostragem de 44,1 kHz, a 16 bits.
As gravações não foram interrompidas e os participantes podiam repetir
as frases quando ficavam disfluentes. As palavras foram então extraídas
das frases-veículo e as camadas de anotação de “palavra”, “sílaba” e
“tonicidade” foram criadas utilizando o software Praat (BOERSMA;
WEENINK, 2018). Os parâmetros acústicos: mediana de F0 (em Hertz),
duração (em ms), intensidade total e intensidade relativa (ambas em
dB) foram extraídos para as sílabas através do script desenvolvido por
Barbosa (2016) e a análise estatística feita através do programa R (R
Development Core Team, 2011). A intensidade relativa, correlata do
esforço vocal empregado na produção, foi obtida através diferença entre
a energia até a frequência máxima disponível e a energia até 400 Hz
(TRAUNMÜLLER; ERIKSSON, 2000). As medidas para cada sílaba
foram associadas aos fatores tonicidade da sílaba (átona ou tônica),
cognatismo da palavra (cognata ou não cognata) e o nível autorreferido
de proficiência (N1, N2, N3, N4).
172
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2.2 Etapa de Percepção
As palavras da etapa de produção pronunciadas pelo falante nativo
do IA foram usadas para montar um teste de percepção no computador
através de um script do programa Praat. Para tanto, os participantes
usaram fones de ouvido supra aurais para maior concentração. Na tela,
três opções apareciam para os participantes sob a forma de retângulos
contendo indicação da posição da sílaba tônica. Eles deviam clicar
no retângulo que para eles indicasse a sílaba mais forte: no início da
palavra (P3), no meio (P2) ou no fim (P1). Ao clicar numa posição, o
programa automaticamente tocava o próximo estímulo. Cada palavra
foi apresentada aleatoriamente três vezes com o objetivo de avaliar a
consistência das respostas de cada sujeito. As respostas foram extraídas
e computadas para cada sujeito, sendo uma resposta considerada válida
quando pelo menos 2 das três escolhas foi feita pela mesma posição.
Para a análise estatística dos dados da etapa de produção, por
os modelos não terem passado no teste de normalidade necessário para
atender às condições da análise de variância tradicional (2-way ANOVA),
utilizamos a análise de variância não paramétrica de dois fatores,
Scheirer-Ray-Hare (SHR), uma extensão do teste de Kruskal-Wallis,
adotando-se nível de significância de 0,05, que também foi o mesmo
usado nos testes post hoc de Wilcoxon com correção de Bonferroni, para
os modelos com fator significativo. O teste de correlação de Spearman
foi utilizado para comparar os escores da etapa de produção com os da
percepção. A diferença mínima significativa entre os diversos níveis de
inglês foi calculada para cada parâmetro com o teste de Duncan, afim de
verificar se as diferenças na produção eram suficientes para classificar
os participantes em grupos que se aproximam ou não do falante nativo.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, sob o número
CAAE: 58189216.4.0000.5404.
3 Resultados e discussão
Após a coleta de dados, apresentamos as informações acústicas
obtidas nas gravações dos falantes PB, do nativo do IA, além dos escores
obtidos nas tarefas de produção e percepção.
173
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3.1 Descrição dos dados de produção dos participantes e do falante
nativo
Os valores médios dos parâmetros acústicos na fala do sujeito
americano, expressos na Tabela 1, mostram que há um aumento nos
valores de frequência fundamental, intensidade total e especialmente de
duração na realização do acento tônico, enquanto a intensidade relativa
não se modificou com a tonicidade da sílaba.
TABELA 1 – Dados acústicos brutos do falante nativo do IA
(dif= diferença tônica - átona)
Parâmetro Acústico
Mediana de F0 (Hz)
Duração (ms)
átona tônica
Nativo
197
235
dif
38
átona tônica
90
97
dif
Intensidade total
Intensidade relativa
(dB)
(dB)
átona tônica
7
59
64
dif
5
átona tônica
2
dif
2
0
Foram elaborados quatro modelos de análise para o falante
nativo (duração, mediana de F0, intensidade total e intensidade relativa
normalizados) com o objetivo de investigar a relação entre os fatores
(cognatismo e tonicidade) e a produção do acento tônico. A análise
mostrou que os aumentos nos parâmetros acústicos da Tabela 1 foram
significativos apenas para a intensidade total das sílabas tônicas de
palavras cognatas do falante americano (Tabela 2). Assim, o fator
cognatismo foi relevante para diferenciar apenas a intensidade total das
palavras lidas, sendo que as palavras não cognatas tiveram intensidade
média de 62 dB, contra 59 dB das palavras cognatas (p-valor< 0,05).
TABELA 2 – Resultado da análise de variância não paramétrica de dois fatores
para os dados acústicos do falante americano
Nativo
Duração
Mediana
de F0
Int. Total
Int. Relativa
tônica
p= 0,005*
tônica
p= 0,00005*
tônica
p= 0,009*/
não-cognata
p= 0,00002*
-
174
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
Os parâmetros acústicos dos participantes dos quatro níveis
foram extraídos das sílabas segmentadas. Os dados da Tabela 3 mostram
que, de maneira geral, os falantes de todos os níveis aumentam duração,
intensidade total e a intensidade relativa na realização do acento em
inglês. Para os níveis 1, 2 e 4, a mediana de F0 foi significativamente mais
alta nas sílabas átonas. Ainda assim, observa-se que o comportamento
da frequência parece se aproximar daquele do falante nativo à medida
em que o nível aumenta se considerarmos dois grandes grupos: falantes
menos proficientes (N1 e N2) e falantes mais proficientes (N3 e N4),
uma vez que a designação por grupo não foi robusta, se baseou numa
autoavaliação.
Para a duração silábica, o parâmetro mais importante na marcação
da tônica em PB, embora todos os grupos tenham aumentado a duração
da vogal nas sílabas tônicas, esse aumento foi visivelmente maior para os
brasileiros de nível 1, e vai caindo com o aumento do nível. A diferença da
média das durações de sílabas átonas e tônicas é exatamente a mesma nos
falantes do nível 4 e no falante americano utilizado no estudo (dif= 38 ms).
TABELA 3 – Dados acústicos brutos dos falantes do PB, por nível de inglês
(dif= diferença tônica - átona)
Parâmetro Acústico
Nível
Duração (ms)
Mediana de F0 (Hz)
Intensidade total
(dB)
átona tônica
dif
Intensidade
relativa (dB)
átona
tônica
dif
átona
tônica
dif
átona tônica
dif
1
225
337
112
195
186
-9
68
69
1
8
10
2
2
217
309
92
202
192
-10
70
71
1
9
11
2
3
216
287
71
210
213
3
65
71
6
8
11
3
4
232
270
38
186
181
-5
71
73
2
8
11
3
geral
222
303
81
199
194
-5
69
71
2
8
11
3
Nativo
197
235
38
90
97
7
59
64
5
2
2
0
Os brasileiros aumentaram a intensidade total e relativa nas
sílabas tônicas em todos os casos, sendo o aumento maior nos falantes de
nível 3 (dif= 6 dB). O falante nativo estudado não utilizou a intensidade
175
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
relativa para diferenciar a tonicidade das silabas, mas a diferença de
intensidade total entre sílabas de diferentes tonicidades (dif= 5 dB) é
próxima da dos falantes de nível 3.
O resultado dos modelos SHR para os parâmetros, com todos os
participantes de cada nível incluídos se encontram na Tabela 4.
Nível
TABELA 4 – Resultado do teste SHR para os dados acústicos dos falantes brasileiros
Duração
Mediana
de F0
Int. Total
Int. Relativa
1
tônica
p<0,01
átona
p= 0,0008
tônica
p=0,009
cognata
p<0,01
tônica
p<0,01
2
tônica
p<0,01
átona
p=0,006
cognata
p=0,002
tônica
p<0,01
3
tônica
p<0,01
-
tônica
p<0,01
cognata
p<0,01
tônica
p<0,01
4
tônica
p<0,01
-
tônica
p<0,01
cognata
p<0,01
tônica
p<0,01
geral
tônica
átona
tônica/cognata
tônica
Nativo
tônica
p= 0,005*
tônica
p= 0,00005*
tônica
p= 0,009*/
não-cognata
p= 0,00002*
-
Os parâmetros acústicos apresentados na Tabela 3 são de fato
significativamente maiores nas sílabas tônicas dos falantes brasileiros,
com exceção do aumento da mediana de F0 que havia ocorrido para o
nível 3 e a leve diferença no parâmetro para o nível 4. Esse achado nos
revela que a realização do acento pelos falantes brasileiros com esse
parâmetro começa com uma diferença negativa significativa para falantes
de nível mais baixo, passando para uma não diferença do parâmetro nos
brasileiros de nível mais alto.
176
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
A diferença de intensidade relativa da Tabela 3 é significativa em
todos os níveis, colocando o esforço vocal como relevante na realização
do acento tônico em inglês na fala dos brasileiros.
A análise SHR mostrou ainda que, para todos os grupos, o fator
cognatismo foi significativo para a realização das tônicas, sendo que os
valores de intensidade são significativamente maiores para as tônicas
não cognatas.
Para investigar a parte de variância explicada por cada fator,
calculamos a extensão de efeito para cada um dos parâmetros e níveis
(Tabela 5) para avaliar qual fator (tonicidade, cognatismo) é mais
determinante para explicar os valores médios de cada parâmetro acústico.
TABELA 5 – Extensão de efeito dos parâmetros acústicos pelos fatores
Ton= tonicidade e Cog= cognatismo, em %. (DUR= duração, F0MED= mediana
de F0, TOTINT= intensidade total, RELINT= intensidade relativa)
DUR
F0MED
TOTINT
RELINT
Ton
Cog
Ton
Cog
Ton
Cog
Ton
Cog
N1
22,3
NA
1,3
NA
0,7
5,3
2,4
NA
N2
14,2
NA
1,2
NA
NA
1,4
3,6
NA
N3
11,6
NA
NA
NA
3,2
4,4
7,1
NA
N4
3,8
NA
NA
NA
4,3
4,2
2,7
NA
Nativo
5,6
NA
12
NA
13,6
5,1
NA
NA
NA= fator não significativo na análise SHR
Os dados da Tabela 5 mostram que a parte da variância explicada
pela tonicidade para participantes de nível 1 (N1) é definitivamente maior
para o parâmetro duração que para F0 e intensidades total e relativa.
Sendo assim, o parâmetro acústico mais importante para a marcação do
acento na L1 é empregado para a mesma função na L2. Essa parte da
variância vai diminuindo para esse parâmetro à medida em que o nível
de proficiência aumenta, chegando a 3,8% em N4, próximo à parte da
de variância da duração do falante nativo de acordo com a tonicidade
(5,6%). No entanto, nenhum dos grupos se aproxima do falante nativo
nos parâmetros acústicos que para ele tiveram maior variância explicada
(mediana de F0 e intensidade total). Faz-se necessário, na análise da
177
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
maior contribuição de F0 e da intensidade total no caso do falante nativo,
considerarmos dois pontos: o fato de termos nos baseado em dados de
um único falante da língua e que nas frases lidas, a palavra das quais
extraímos os parâmetros estava em condição de foco. Tal condição
pondera em maior grau o peso que F0 e intensidade total recebem nas
sílabas acentuadas no IA (SLUIJTER, 1996).
O teste de Duncan (Tabela 6) foi realizado a fim de analisar como
a distribuição dos parâmetros acústicos dos falantes do PB se aproximou
ou não dos mesmos dados do falante americano, agrupando as médias
de cada parâmetro de acordo com as diferenças mínimas significativas
entre cada grupo, representado por uma letra. Grupos de mesma letra não
diferem significativamente entre si. Para o parâmetro duração, os níveis
N1 e N3 se diferenciaram entre si, com os grupos N2 e N4 tendo médias
que se aproximam dos dois níveis iniciais e os falantes de N3 foram os
que mais se aproximaram da produção do nativo. Para a mediana de
F0, os grupos N2, N3 e N4 foram agrupados independentemente e N1
com valor de F0 próximo de N2 e N4. É preciso dizer no entanto, que o
falante nativo era do sexo masculino, que tem frequência fundamental
naturalmente mais baixa que a de mulheres (pelas particularidades
fisiológicas das pregas vocais de cada sexo) e isso certamente influenciou
o resultado da análise, tendo em vista que a maioria dos participantes
eram do sexo feminino. Para a intensidade total, os grupos N1, N2 e N4
foram independentes, com N3 com valores pertencentes tanto a N2 quanto
a N1. Este último foi quem mais se aproximou da produção do falante
nativo. Para a intensidade relativa, todos os níveis foram agrupados
juntos, sendo bastante diferentes do falante nativo (falantes do PB com
intensidade relativa média de 9 dB e falante nativo do IA 2 dB).
TABELA 6 – Agrupamentos dos dados acústicos dos níveis
DUR
F0MED
TOTINT
RELINT
N1
a
bc
c
a
N2
ab
b
b
a
N3
b
a
bc
a
N4
ab
c
a
a
Nativo
c
d
d
b
178
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
Utilizamos nesse trabalho os dados acústicos de um único
falante nativo do IA que se encontrava disponível no momento do
estudo. Apesar de seus dados corroborarem a literatura clássica do que
se espera para o acento no IA, temos de entender as limitações de fazer
análises e comparações de grandes grupos com um único sujeito (e
consequentemente um único sexo).
3.3 Escores da etapa de produção
A marcação de acentuação das palavras produzidas pelos
brasileiros foi comparada com o acento esperado da palavra em inglês
para calcular o escore de produção de cada nível. Nessa análise foram
consideradas além do nível autorreferido de inglês o cognatismo da
palavra e a posição do acento, buscando analisar se alguma posição
acentual era preferida pelos falantes.
O acerto geral da tarefa de produção de todos os níveis foi de
51% na marcação do acento pelas 3 posições acentuais, independente da
realização acústica de cada grupo, sendo que os participantes acertaram
44% do acento nas palavras que eram cognatas e 53% nas não cognatas.
O acerto de posição acentual foi proporcional ao nível de inglês,
com pequena queda de 2% do nível 3 para o nível 4 (nível 1: 39%; nível
2: 45%; nível 3: 62%; nível 4: 60%). É esperado tal aumento uma vez
que quanto maior o nível de conhecimento da língua, mais familiar com
a posição do acento tônico da língua estrangeira.
Comparando a porcentagem de acertos por cognatismo na etapa
de produção, vemos uma maior facilidade em acertar o acento nas
palavras não cognatas (53%) do que nas cognatas (44%) corroborando
a hipótese de que os participantes, ao lerem uma palavra cognata, seriam
influenciados pela palavra no PB e ignorariam o acento no inglês.
Refazendo a análise por nível (Gráfico 1), observamos novamente que a
diferença entre a percentagem de acertos entre cognatas e não cognatas
existe, mas que diminui conforme o nível de inglês aumenta. Isso fica
bastante evidente ao compararmos os extremos (N1 e N4), em que, no
primeiro nível, temos 28% de acertos das palavras cognatas e 50% das
palavras não cognatas, enquanto que para o quarto nível houve 59% de
acerto nos dois níveis de cognatismo.
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179
GRÁFICO 1 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível
(N1, N2, N3 e N4) e cognatismo (C= cognatas, NC= não cognatas)
As três possíveis posições de colocação do acento, tendo em
vista que todas as palavras eram trissílabas, eram P3 (posição inicial),
P2 (posição medial) e P1 (posição final). A análise por posição acentual
mostra que, de maneira geral, a posição de maior acerto por parte
dos participantes foi P3 (56%), seguida de P1 (50%) e P2 (32%).
Reorganizando os mesmos dados por nível (Gráfico 2), temos que para
os níveis mais altos, o maior número de acertos de produção ocorre na
posição inicial de palavras e vai caindo conforme a posição esperada do
acento tende ao fim da palavra, provavelmente por estigmatizar que a
maioria das palavras trissilábicas do inglês tem acentuação tônica em
posição inicial (CUTLER; CARTER, 1987; CUTLER, 2015), o que é
verdade e justifica o grande número de acertos em P3. No entanto, isso
faz com que quando o acento de fato recai sobre outras posições, os
brasileiros de nível mais alto ignorem a acentuação correta na produção.
180
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
GRÁFICO 2 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível
(N1, N2, N3 e N4) e posição acentual (P3= inicial, P2= medial, P1= final)
Já para os brasileiros de nível mais baixo, entendendo a grande
influência da L1 em sua produção, vemos um baixo índice de acertos
em P3 (34%), compreensível uma vez que esse padrão acentual é
bastante incomum no PB (MASSINI-CAGLIARI, 1992). Ao contrário
dos falantes de nível 4, então, a porcentagem de acertos em P1 é maior
para os níveis 1 e 2.
3.4 Escores da etapa de percepção
O teste de percepção foi subsequente à etapa de produção e
contou com as mesmas palavras da primeira etapa para manter o rigor
experimental. Nesse teste de escolha forçada, os participantes de todos os
níveis escolhiam qual a posição acentual que julgavam ser a mais forte. O
acerto geral dos 4 grupos foi de 68%, passando o acerto da amostra total
na etapa de produção (51%), sendo que do total de palavras houve um
acerto ligeiramente maior de cognatas (70%) que de não cognatas (67%).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
181
Os acertos no teste de percepção por nível foram nível 1: 64%,
nível 2: 58%, nível 3: 75% e nível 4: 75%. Assim como na etapa de
produção, o índice de acertos tende a subir com o nível de inglês, mas duas
observações ficam claras ao observar o Gráfico 3: na etapa de percepção
os índices são todos maiores que os de produção para todos os níveis
e tendem a se estabilizar com o aumento do nível. Em outras palavras,
embora perceber o acento tônico nas palavras seja aparentemente mais
fácil para os brasileiros do que acertá-lo em suas produções, a diferença
entre as duas (produção-percepção) vai diminuindo à medida em que
o nível de inglês cresce. Essa relação entre os achados de produção e
percepção também foi encontrada em estudos anteriores. BrawermanAlbini e Becker (2014) fizeram um estudo de produção e percepção
no que diz respeito à população, mas utilizando um padrão incomum
de acentuação (quarta e quinta sílabas, a contar do final), sendo todas
as palavras cognatas com o PB. A relação entre o índice de acertos na
produção e percepção (28% e 85%, respectivamente) foi paralela aos
nossos resultados para a categoria de palavras cognatas (47% e 70%
para produção e percepção, respectivamente). A população do estudo
das autoras não contava com falantes de nível avançado.
GRÁFICO 3 – Comparação do percentual de acertos nas etapas de percepção e
produção por nível (N1, N2, N3 e N4)
182
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
A análise dos acertos em função do cognatismo (Gráfico 4) mostra
que, apesar de ainda haver certa predominância no acerto de palavras
não cognatas nos níveis mais baixos, como havia na produção (diferença
C-NC em N1 na produção: 22%), ela diminui na percepção (diferença
C-NC em N1 na percepção: 4%).
GRÁFICO 4 – Percentual de acertos das palavras na etapa de percepção por nível
(N1, N2, N3 e N4) e cognatismo (C= cognatas, NC= não cognatas)
É interessante notar que os falantes de nível 4 também subiram
o índice de acertos na tarefa de percepção, mas que ainda assim, não
diferenciam pela via do cognatismo no processamento de acentuação no
inglês. A comparação entre os dois gráficos nos permite ainda notar uma
leve inversão da porcentagem de acertos de cognatas e não cognatas em
N1 e N3 entre as tarefas de produção e percepção: na etapa de produção,
as palavras não cognatas tiveram mais acertos que as cognatas sendo que
o contrário acontece na tarefa de percepção.
O Gráfico 5 traz a percentagem de acertos de percepção do
acento de acordo com o nível e posição acentual da palavra. Na tarefa
de percepção os acertos de P3 se concentram mais numa única região
de acerto, entre 66-80%, enquanto que a mesma posição na tarefa de
produção teve grande variação de acertos, 34-77%.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
183
GRÁFICO 5 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível (N1,
N2, N3 e N4) e posição acentual (P3= inicial, P2= medial, P1= final)
Os acertos nas outras posições acentuais foram decrescentes e
mais dispersos que em P3, sendo que os falantes de nível 4 acertaram
66% das palavras com acento final, enquanto os falantes de nível 1
acertaram apenas 29% das mesmas. É interessante ressaltar ainda que o
alto índice de acertos em P3 em relação a P1 pode se relacionar ao fato
de muitos brasileiros classificarem como tônico o acento secundário em
P3 de algumas palavras, como in na palavra interact, quando na verdade
a tônica se encontra em P1.
3.5 Produção x Percepção
Os índices de acerto na tarefa de percepção foram maiores para
todos os níveis de inglês que os índices da etapa de produção. Para
verificar se existe uma possível relação entre os dados de produção e
percepção ou se são independentes, foi realizado o teste de correlação
de Spearman entre os índices gerais de acerto nas duas etapas do estudo.
Embora a correlação seja positiva e de 0,87, esse valor não é significativo,
devido ao pouco número de dados, pois consideramos um valor por nível.
184
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
4 Conclusão
Os falantes nativos do PB de todos os níveis empregam os mesmos
parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA (duração e intensidade).
As diferenças acústicas realizadas na produção acentual tendem a se
aproximar das realizadas pelo falante nativo do IA aqui estudado nos
falantes de nível mais alto e o cognatismo da palavra afetou a realização
do acento apenas para a intensidade da sílaba tônica em todos os níveis.
A relação do nível de proficiência com o desempenho na produção
acústica ocorre de maneira paralela aos achados de estudos anteriores
que comparam a idade de aprendizado de falantes estrangeiros que foram
imersos em países falantes da L2 (FLEGE, MUNRO, SKELTON, 1992;
FLEGE, 1995), em que o falante mais proficiente se compara ao residente
de maior tempo no país falante de IA.
Os participantes do estudo mostraram maior facilidade em
perceber a posição correta do acento tônico em inglês do que colocar o
acento na sílaba certa, dado que os escores de acerto do acento foram
maiores na percepção do que na produção em todos os grupos, embora tal
diferença entre as duas tarefas diminua drasticamente para os falantes N2
em diante. Embora o cognatismo não tenha influenciado os parâmetros
acústicos utilizados na produção do AT pelos participantes (apenas na
intensidade), há diferenças no que diz respeito ao índice de acertos de
cada grupo baseado no cognatismo. Os brasileiros menos proficientes
acertaram metade das palavras não parecidas com o PB (50%), mas
apenas uma pequena das palavras parecidas (28%) no que se refere à
produção. Essa diferença não ocorreu nos participantes mais proficientes.
Esses achados corroboram a hipótese da influência que a L1 exerce
(FLEGE, 1995), especialmente nos falantes que se encontram num menor
nível da L2. Esses falantes ignoram posições acentuais que diferem das
posições de palavras cognatas da L1, fazendo com que errem o acento
no IA e, quando se trata de uma palavra não cognata, buscam realizar
o acento de maneira mais criteriosa. Palavras com acento em posição
inicial tiveram o maior número de acertos tanto na produção quanto na
percepção do AT.
Para fazer maiores inferências sobre a proximidade da produção
dos falantes de PB no IA é necessário controlar objetivamente o nível
de proficiência (e não se basear apenas na auto percepção), aumentar
o número de participantes nativos do IA (e variar o sexo) e controlar
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
185
os aspectos morfológicos das palavras utilizadas na interpretação dos
resultados encontrados. As palavras monomorfêmicas constituem cerca
de 7 % do corpus, sendo as demais bimorfêmicas. Embora esse fator
venha a ser controlado em estudo posterior, observamos a possibilidade
de atração de outra posição devido a acento secundário, como comentado
anteriormente.
Declaração de autoria
Contribuição dos Autores Filipe Modesto e Plínio Almeida Barbosa,
propuseram a presente pesquisa. F. Modesto organizou a metodologia
experimental e coleta de dados sob a supervisão de P. Almeida Barbosa,
coordenador do grupo de pesquisa, que também participou ativamente
na análise de dados, redação e escrita do texto final do artigo. A tradução
para o inglês foi realizada por F. Modesto. Ambos os autores são membros
do Grupo de Estudos em Prosódia da Fala do IEL/UNICAMP.
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ANEXO I – Lista de palavras alvo utilizada
Palavras-alvo
COGNATAS
NÃO COGNATAS
Photograph
Fiance
Basketball
Dangerous
Sympathy
Employee
Positive
Saturday
Portuguese
Betrayal
Musical
Demeanor
Amplitude
Appraisal
Metaphor
Spendable
Persistent
Meaningless
Protestant
Furthermore
Resume
Challenger
Abstinence
Mastery
Resistance
Seasonal
Interact
Allowance
Demonstrate
Edible
Memorize
Mispronounce
Summarize
Overact
Fantasize
Understand
Energize
Reachable
Authorize
Standardize
Specify
Underact
Dignify
Overprice
Outbalance
189
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Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and
Perception of Lexical Stress in English by Brazilian
Portuguese Speakers
Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção e
percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros
Filipe Modesto
Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP),
Campinas, São Paulo / Brasil
filipemodesto4@gmail.com
Plinio Almeida Barbosa
Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP),
Campinas, São Paulo / Brasil
pabarbosa.unicampbr@gmail.com
Abstract: many adults who learn a second language have a foreign accent to some
extent. The misproduction of lexical stress (LS), which plays an important role in the
prosodic structure of speech, contributes to the perception of a heavier foreign accent.
Twenty-four Brazilian Portuguese (BP) speakers of English of four different selfreported levels underwent tests of production and perception of LS. This study aimed
to describe how production and perception of lexical stress happen to BP speakers of
four different self-reported levels. Acoustic data, as well as the percentage of scores in
stress placement, were collected and compared to the production of a native speaker
of American English (AmE). Syllable duration, total intensity, and relative intensity
were the most important parameters used by the BP speakers to stress syllables. Hits
in the perception task were greater than the production task, overall. Initially stressed
words had the greatest hits in both production and perception. Overall, the BP speakers
from this use, in AmE, the same acoustic parameters used in BP for signaling LS. The
production, in regards of acoustic parameters use, gets closer to the native when the
proficiency level increases. Cognate words were not relevant in the acoustic parameters
choice of the speakers, but they were relevant for the stress position hits.
Keywords: foreign accent; lexical stress; acoustic phonetics.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.165-189
166
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
Resumo: muitos adultos aprendizes de uma L2 possuem algum grau de sotaque.
Contribui para esse sotaque a não adequada realização do acento tônico (AT), que tem
papel preponderante para a estruturação prosódica da fala. 24 falantes do português
brasileiro (PB) de quatro níveis autorreferidos de inglês americano (IA) participaram de
testes de produção e percepção de AT. Os dados acústicos de produção dos participantes,
assim como os escores na marcação da posição acentual foram coletados e comparados
com um sujeito nativo. Os parâmetros acústicos de maior relevância para a realização
do AT dos falantes do PB foram a duração, intensidade total e intensidade relativa das
sílabas acentuadas. Os escores de percepção foram maiores do que os de produção,
de modo geral. As palavras com acento inicial foram as que tiveram maior número de
acertos tanto na produção quanto na percepção. Os falantes nativos do PB de todos os
níveis empregam os mesmos parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA, sendo que
estes tendem a se aproximar dos do nativo à medida em que o nível de inglês aumenta.
O cognatismo não foi relevante para o uso dos parâmetros acústicos empregados na
marcação do acento, mas influenciou os escores da posição acentual.
Palavras-chave: sotaque estrangeiro; acento tônico; fonética acústica.
Submitted on March 8th,
Accepted on June 11th, 2018
1 Introduction
Most of the adults who learn a second language (L2) have
a foreign accent to at least some extent, especially if L2 phonetics/
phonology differ significantly from his first language (L1) (FLEGE;
HILLENBRAND, 1984). Foreign accents are perceived when native
speakers of a language detect divergences in the phonetic production
at both segmental and suprasegmental levels (FLEGE, 1995). Over the
years, many factors have been considered relevant related to foreign
accent: age of learning, time of residence in an L2 speaking country,
sex, formal instruction level, motivation, aptitude for language learning,
and the amount of L1 use. Nonetheless, the only predictive variables
authors seem to agree upon are age of learning and amount of L1 use.
Although it’s been vastly discussed the existence of a single critic period
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167
to learn an L2 unaccented (LENNEBERG, 1967; SCOVEL, 1969, 1988;
PATKOWSKI, 1980, 1990), other studies present the hypothesis of many
critic periods or yet sensitive periods throughout one’s life, effecting the
linguistic abilities of the subject (FATHMAN, 1975; SELIGER, 1978;
WALSH; DILLER, 1981, LONG, 1990; HURFORD, 1991). Although
these periods are important to be considered, age is not a limiting factor
for the speaker to reach an advanced level of proficiency in an L2.
Experiments involving native speakers of Mandarin and Spanish who
had arrived in the USA within a few weeks and over a decade have been
done. They showed that the production of the English nonnative speakers
who had been in the US for a longer time was, overall, as correct as the
production of the nonnative speakers who had recently arrived (FLEGE,
MUNRO, SKELTON, 1992). Foreign accents may cause uncomfortable
situations for the speakers, especially if it involves misunderstandings
and if speech intelligibility is affected. A possible mechanism for the
rational of foreign accents is the influence of phonetic features of the L1
over the L2 (FLEGE, 1998).
The proximity between two languages causes post-lingual L2
learners to establish an allophonic relationship between sounds that are in
fact different in both languages, instead of creating different phonological
categories for each language (FLEGE, 1995). That results in distortions
in the production of L2’s consonants, vowels, and prosody. An example
of that occurs when Brazilians palatalize the [t] in English before [i]/[j]
(two/too/to [thu] being pronounced as [ʧu]). Such distortions are noticed
by native speakers of English. At a prosodic level, (suprasegmental), the
word demonstrate should be pronounced DEmonstrate (in American
English). If pronounced demonsTRATE, following the ultimate syllable
stress pattern of verbs in the infinitive form in Brazilian Portuguese, an
accent will also be perceived.
The aforementioned interaction between phonological systems
also occur for suprasegmental features of languages. The rhythmic
parameters of speech, despite not easily noticed for nonnative speakers,
play an important role in the detection of a foreign accent, being
even more relevant than segmental distortions, and syllable structure
(ANDERSON-HSIEH, 1992).
Primary lexical stress, which we will simply call here Lexical
Stress (LS) is the lexical mark that is made in the speech chain in order
to realize prominence of a syllable in relation to another syllable within
168
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
a word (ARCHIBALD, 1993; MAJOR, 2001). This mark is usually
realized by changing parameters such as fundamental frequency, duration,
and sound intensity of a syllable. Every language with LS ponders
differently the weight each parameter has on the realization of stress.
LS is fundamental for the segmentation of continuous speech signal
and its recognition, given by the prosodic structure. The alternating
pattern of strong and weak syllables helps determining the constituents
within a phrase (CUTLER, 1986, 1989; CUTLER e NORRIS, 1989).
LS is also considered as a facilitator in the lexical access (GROSJEAN
& GEE, 1987). The misplacement of word stress leads to problems in
lexical decision, which contributes to establish a relationship between the
acoustic image of words and its mental representation. The LS is more
considered to speech recognition, especially concerning the initial lexical
activations of the possible candidates and in the disambiguation of the
selected candidates (COLOMBO, 1991). In order for us to discuss LS
by Brazilian speakers, it is needed to discuss the acoustic realization of
this prosodic phenomenon in both languages.
LS in English
English is a language with varied stress position (HELAL, 2014;
GIMSON, 1980; LADEFOGED, 1982), and stress can fall on any syllable
of a word. The initial stress pattern (left-most), however, is the most
predominant one (80% of the words), especially in disyllabic words
(CUTLER; CARTER, 1987). Besides, in English there is a frequent
relationship of stress with derivational morphology in disyllabic word
pairs that have the same segmental constituents, making different noun/
verb pairs: LS in the first syllable indicate nouns (e.g.: PROtest), and
LS in the last syllable indicate verbs (e.g.: proTEST). LS in English is
realized by contrasting vowel quality (full/reduced vowel), as well as
the frequent increase in F0, sound intensity, and duration. Other than the
prosodic features, LS can also be realized by changing parameters at the
segment level. The vowel within a stressed syllable is always full, whereas
surrounding unstressed vowels are frequently reduced as a schwa.
Plag (2011), compares primary and secondary stress in AE in
words both carrying and not carrying pitch accents, reaffirming the role
of duration to mark stress in AE. Although the parameter was relevant
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169
to mark stress, it was not significantly different between the two levels
of stress studied.
In 1996, Sluijter and van Heusen used the noun-verb pairs of
AE that contrast in stress in eight repetitions of the same stimuli by
native speakers of the language. The authors found that the stressed
syllables were much longer than unstressed ones, making duration the
most important factor to mark stress. Regarding total intensity, stressed
syllable were always louder in both conditions studied: in and out of
linguistic focus. Nonetheless, when focus was not on the word, the
intensity increase was not significant, corroborating the hypothesis the
intensity is more related to pitch accent than lexical stress per se. It is
widely discussed how important F0 is to mark LS in AE, if it is not more
related to pitch accent, just like total intensity. However, its importance
to mark LS is undeniable. When prominence happens, the peak of F0 or
a positive inflection of the F0 contour occurs.
LS in Brazilian Portuguese
In Brazilian Portuguese (BP), as well as in English, stress is
also contrastive (CONSONI, 2006), as can be clearly observed in the
examples SAbia (wise person, female), saBIa (past tense of “to know”,
third-person singular), and sabiA (thrush bird). There are three possible
primary stress positions in BP (the three last syllables of a word), and the
distribution of syllables stressed in the penultimate position comprises
approximately 63% of the stress pattern of the language (ARAÚJO et
al., 2007). Duration is the most important parameter to mark stress in
BP, followed by fundamental frequency and intensity as described by
Fernandes (1976), who studied the phenomenon in assertive sentences,
besides other authors (MASSINI-CAGLIARI, 1992; BARBOSA, 1996).
The acoustic correlates vary in function of the prosodic strength of a
word in a sentence, more than a pre-determined stress pattern, inherent
to a word. When a word is in a week prosodic group, LS happens by
an association between intensity and duration. When an oxytone is in a
weak prosodic position within a sentence, there is no specific parameter
to be used to mark LS. Fundamental frequency has its relevance for
marking prominence in BP, but much more related to the phrasal level
(MORAES, 1998).
170
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
It is evident that AE and BP differ greatly from one another
considering LS, not only on the stress pattern but also on the nature of
the acoustic realization of stress. Therefore, this article proposes to study
the realization of LS in AE by BP speakers that believe to be of different
levels of proficiency, as well as to analyze how these participants perceive
LS spoken by native speakers of English, trying to establish a possible
correlation between production and perception.
2 Methods
In this research, 24 participants (15 female, 9 male) met the
inclusion criteria: be Brazilian, native speaker of BP and have some
knowledge of AE. After fully reading and signing the consent terms, all
participants responded to a brief questionnaire with information regarding
their study of English, such as where they had studied, for how long,
and if they had ever lived in an English speaking country, so that we
could establish a sociolinguistic profile of the studied population. In the
end, the participants had to attribute a grade they believed to reflect their
proficiency level in English. This grade was an integer number from 1-4,
four being very fluent. After that, we ran the production and perception
experiments.
The participants were distributed in 7, 5, 7, 5 within the N1, N2,
N3, and N4 levels, respectively, which represent a progressive scale of
self-reported proficiency levels. Out of all of them, 66.7% (n=16) reported
to know English from private language schools, and only one subject
(N3) claimed to have self-taught the language. The great majority (88%)
never had lived in an English speaking country.
In order to compare the production data, a native speaker of
English was recorded for the experiment. The male speaker was natural
from Minneapolis-MN, USA, being 22 years old at the time of the study,
had been living in Brazil for about six months, and had studied BP prior
to his arrival in Brazil. Even though we only used one American subject,
our analyses (that will be shown in the Results section) confirm that he
behaves linguistically as a standard speaker of English, and his English
was not influenced by his BP knowledge.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
171
2.1 Production
A list with 45 three-syllable words of AE (22 cognates; 23
noncognates- APPENDIX I) was presented through a slide presentation to
each subject within the carrier-sentence say____again. We did not control
for the affixes of the words but we tried to keep the proportion of the stress
pattern distribution, thus the majority of words were initially stressed.
The slides were randomized by the computer and the sentences appeared
one at a time on the screen. The participants were required to read them
as natural as possible. This step was recorded at a sampling rate of 44.1
kHz, at 16 bits. The recordings were not interrupted and the speakers
could repeat a sentence when they were disfluent or hesitant in a sentence.
The target words were extracted from the sentence and the annotation
layers for the acoustic analyses on Praat (BOERSMA; WEENINK, 2018)
were “word”, “syllable”, and “tonicity”. The acoustic parameters: F0
median (in Hertz), duration (in ms), total and relative intensity (both in
dB) were extracted for each syllable using a script developed by Barbosa
(2016), and the statistical analyses were carried using the R software
(R Development Core Team, 2011). The mentioned relative intensity
is a correlate of the vocal effort in one’s production, obtained with the
difference between the energy to the maximum frequency used and
the energy until 400 Hz (TRAUNMÜLLER; ERIKSSON, 2000). The
measures for each syllable were associated with tonicity factor (levels:
stressed and unstressed), cognate relationship (levels: cognates and
noncognates), and self-reported proficiency level (N1-4).
2.2 Perception
The words used in the production task were pronounced by the
American speaker and recorded in order to create the perception task,
using another script in Praat. The Brazilian participants had to wear
supra-aural headphones to improve their focus. On the screen, three
options would show up to them, in the form of rectangles that indicated
the stressed syllable position. Their task was to click on the rectangle
that better represented their perception of the strongest syllable in the
word: in the beginning of the word (P3), in the middle (P2), or the last
part of the word (P1). When clicking on an option, the next stimulus
would automatically play. Each stimulus was presented three times (in
different moments) in order to analyze the consistency of their responses
172
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
for the same stimulus. The responses were extracted and computed for
each subject, and they were only considered valid if the same position
for a stimulus was chosen at least two out of the three presentations.
The production data underwent statistical analysis. Since the
data did not pass the conditional criteria for a regular 2-way Analysis
of Variance (2-way ANOVA), we used a non-parametric technique, the
Scheirer-Ray-Hare (SHR), an extension of the Kruskal-Wallis test, with
a significance level of 0.05. We also used this significance level in the
post-hoc tests of Wilcoxon with the Bonferroni correction, that is, for the
models with significant factors only. Spearman’s correlation test was used
to compare scores of the production and perception experiments. The
minimum significant difference between the different levels of English
for each parameter was calculated with the Duncan test, in order to verify
if the average values of each parameter was close enough to group the
levels (N1-4) in a category close to the native speaker.
This research was approved by the institutional review board
of the Faculty of Medical Sciences of the University of Campinas
(CEP- FCM/UNICAMP), under the registration number CAAE:
58189216.4.0000.5404.
3 Results and Discussion
After collecting all the data, we present in this section the acoustic
data from the Brazilians, the native AE speaker, and the scores obtained
in the production and perception tasks.
3.1 Description of the production data of the participants and the native
AE speaker
The mean values of the acoustic parameters of the native AE
speaker are shown in Table 1, showing an increase in fundamental
frequency, total intensity, and especially duration in the realization of
LS, while relative intensity did not change with tonicity.
173
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
TABLE 1 – Raw acoustic data of the native AE speaker (s0= unstressed;
s1= stressed; dif= difference stressed - unsetressed)
Acoustic Parameter
Duration (ms)
Native
F0 Median (Hz)
Total Intensity (dB)
Relative Intensity
(dB)
s0
s1
dif
s0
s1
dif
s0
s1
dif
s0
s1
dif
197
235
38
90
97
7
59
64
5
2
2
0
We elaborated four models, one for each parameter (normalized
data for duration, F0 median, Total Intensity, and Relative Intensity)
and the relationship between the two factors (tonicity and cognate
relationship) and the realization of LS. The analysis show that the
increased parameters in Table 1 were all significant to mark stress, and
the cognate relationship only affected total intensity of the native AE
speaker (Table 2), where the noncognates mean intensity was 62 dB
against 59 dB of the cognates (p-value<0.05).
TABLE 2 – Results for the non parametric analysis of variances of two factors
for the acoustic data of the native AE speaker
Duration
F0 Median
Total Intensity
stressed
stressed
p= 0,009*/
p= 0,005*
p= 0,00005*
noncognates
Relative Intensity
stressed
Native
-
p= 0,00002*
The acoustic parameter of the participants of all four levels were
extracred from the segmented syllables. Table 3 shows that, overall,
duration, total and relative intensity were increased to mark stress in
English. For levels 1, 2, and 4, F0 median was significantly higher in
the unstressed syllables. Yet, the parameter seems to get closer to the
American speaker if we consider only two major groups: least proficient
speakers (N1-2) and more proficient speakers (N3-4), considering that
the distribution within the proficiency levels was merely based on the
auto evaluation of their own level of English.
174
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
For the parameter syllable duration, the most important parameter
to realize LS in BP, all groups increased the parameter in the stressed
syllables, and it happened with more emphasis among N1 speakers,
with the increase diminishing over the proficiency level increase. The
difference between stressed and unstressed syllables is the exact same
for the N4 speakers and the native AE speaker (dif= 38 ms).
TABLE 3 – Raw acoustic data of the BP speakers per proficiency level
(s0= unstressed; s1= stressed; dif= difference stressed - unsetressed)
Acoustic Parameter
Level
Duration (ms)
F0 Median (Hz)
Total Intensity (dB)
Relative Intensity
(dB)
s0
s1
dif
s0
s1
dif
s0
s1
dif
s0
s1
dif
1
225
337
112
195
186
-9
68
69
1
8
10
2
2
217
309
92
202
192
-10
70
71
1
9
11
2
3
216
287
71
210
213
3
65
71
6
8
11
3
4
232
270
38
186
181
-5
71
73
2
8
11
3
mean
222
303
81
199
194
-5
69
71
2
8
11
3
Native
197
235
38
90
97
7
59
64
5
2
2
0
The Brazilian population increased total and relative intensity in
all levels, more evident in N3 (dif= 6 db). The native AE speaker did not
use relative intensity to differentiate the tonicity of the syllables, but the
difference between syllables of different tonicities (dif= 5 dB) is close
to the N3 speakers.
The results in the SHR models for all four parameters, of all four
levels of proficiency are shown in Table 4.
175
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
Level
TABLE 4 – Results for the SHR models for the acoustic data of the speakers
Duration
F0 Median
Total Intensity
Relative Intensity
1
stressed
p<0,01
unstressed
p= 0,0008
stressed
p=0,009
cognate
p<0,01
stressed
p<0,01
2
stressed
p<0,01
unstressed
p=0,006
cognate
p=0,002
stressed
p<0,01
3
stressed
p<0,01
-
stressed
p<0,01
cognate
p<0,01
stressed
p<0,01
4
stressed
p<0,01
-
stressed
p<0,01
cognate
p<0,01
stressed
p<0,01
mean
stressed
unstressed
stressed/cognate
stressed
Native
stressed
p= 0,005*
stressed
p= 0,00005*
stressed
p= 0,009*/
noncognate
p= 0,00002*
-
The acoustic parameters presented in Table 3 are in fact
significantly higher in the stressed syllables of the BP speakers, except
the increase in F0 median that had happened for N3 and the slight
difference for N4. This findings reveal that the realization of LS by
Brazilian speakers begin with a significant negative difference in F0 of
lower least proficient speakers, changing to no difference between them
in more proficient speakers.
The difference in relative intensity of Table 3 is significant for all
four levels, meaning that vocal effort is indeed relevant when marking
stress in English of BP speakers.
The SHR analysis show yet, that for all groups, the cognate
relationship was significant to the realization of stressed syllables, with
the stressed noncognates being louder.
To investigate the explained variation of each factor, we calculated
the effect size for each parameter per level (Table 5), in order to evaluate
176
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
how each factor (tonicity or cognate relationship) helps determine the
mean values of each acoustic parameter.
TABLE 5 – effect sizo of the acoustic parameters by the factors Ton= tonicity
and Cog= cognate relationship, in %. (DUR= duration, F0MED= F0 median,
TOTINT= total intensity, RELINT= relative intensity)
DUR
F0MED
TOTINT
RELINT
Ton
Cog
Ton
Cog
Ton
Cog
Ton
Cog
N1
22,3
NA
1,3
NA
0,7
5,3
2,4
NA
N2
14,2
NA
1,2
NA
NA
1,4
3,6
NA
N3
11,6
NA
NA
NA
3,2
4,4
7,1
NA
N4
3,8
NA
NA
NA
4,3
4,2
2,7
NA
Native
5,6
NA
12
NA
13,6
5,1
NA
NA
NA= factor was not significant in the SHR analysis.
The data in Table 5 show that part of the variation that can be
explained by tonicity in N1 is significantly higher for duration than F0
and total and relative intensity. Therefore, the most important parameter
used to mark stress in the L1 is also used for the same function in L2.
The explained variation for duration diminishes as proficiency level
increases, reaching only 3.8% for N4, very close to the native AE speaker
(5.6%). However, none of the BP groups has a close production to the
native AE speaker in the parameters with more explained variation for
him (F0 median and total intensity). For that account, two things should
be considered: our analysis are based in one speaker only, and that in
the read sentences was always in the condition of linguistic focus. This
condition ponders the weight of F0 and total intensity to a higher degree
in stressed syllables in AE (SLUIJTER, 1996).
The Duncan’s Multiple Range Test (Table 6) was done in order to
analyze how the distribution of the acoustic parameters of the BP speakers
related or not with the same parameters of the native AE speaker, grouping
the means of each parameter according to the minimum significant
difference between them, represented by a letter. Groups with the same
letter do not differ significantly from each other. For duration, N1 and N3
differed from each other, with N2 and N4 having means that are close to
177
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
the two levels, and N3 was the closest to N4. It is necessary to say that
the native AE speaker was a male, with fundamental frequency that is
naturally lower than women’s (because of anatomical particularities of
each sex), and that certainly had an influence in our results, given that
most of the BP speakers were female. For total intensity, N1, N2, and
N4 were independent groups, and N3 was grouped with N2 and N1.
The latter was the one that was the closest to the American speaker. For
relative intensity, all groups were put together, being very different from
the American speaker (BP mean relative intensity was 9 dB, and the AE
speaker’s was 2 dB).
TABLE 6 – resulted groups from the Duncan’s test per parameter
DUR
F0MED
TOTINT
RELINT
N1
a
bc
c
a
N2
ab
b
b
a
N3
b
a
bc
a
N4
ab
c
a
a
Native
c
d
d
b
We used for this research the data of only one native AE speaker
that was available at the time of the study. Even though he behaved as an
expected speaker of English described in the literature regarding LS, we
have to understand the limitations that are posed when we make analyses
and comparisons with much larger groups with only one subject (and
consequently only one sex).
3.3 Production task scores
The stress placement of the words produced by the Brazilians
was compared to the expected stress position of each word to calculate
the production score of each level. For this analysis we considered other
than the self-reported level of proficiency the cognate relationship of
each word and stress position, in order to understand if a particular stress
position was considered easier for the speakers.
The overall score (of the four levels combined) was 51%, and
the scores in this section disregard the acoustic parameters used to mark
178
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
stress. The participants placed stress correctly in 44% of the cognate
words and 53% of the noncognates.
The analyses per stress position increased proportionally to the
proficiency level, with a slight 2% fall from N3 to N4 (N1: 39%; N2:
45%; N3: 62%; N4: 60%). It is expected such increase considering that
the higher the proficiency level, the more familiar with the actual stress
position the subject is.
Comparing the scores of cognates in the production task, we can
see that it was easier to get the right stress position in the noncognates
(53%) than it was for the cognates (44%) corroborating our hypothesis
that the participants, when reading a cognate word, are influenced by the
word in BP, ignoring the stress position in AE. Separating this analysis
per level (Graph 1), we can observe that this difference persists, but it
reduces as the level of proficiency increases. That is evident if we compare
the extreme groups (N1 and N4), where we have 28% of the cognates
and 50% of the noncognates for N1 and 59% for both categories for N4.
GRAPH 1– Percentage scores of the word in the production task per level
(N1, N2, N3 e N4) and cognate relationship (C= cognates, NC= noncognates)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
179
The three possible stress positions were P3 (initial stress), P2
(medial position), and P1 (last syllable). The percentage analysis shows
that, in general, the easiest position to assign stress was P3 (56%),
followed by P1 (50%), and P2 (32%). Reorganizing the data per level
(Graph 2), we can see that for the more proficient speakers, the initial
position (P3) had the highest scores, and decreases as the expected stress
position moves towards the end of the word. That is probably associated
with the common stigma that most of the three syllable words in English
bear stress in the first syllable (CUTLER; CARTER, 1987; CUTLER,
2015), which is true and justifies the high score density in P3. However,
that assumption says that when stress is actually in a different syllable
than P3, even N4 speakers ignore the right stress placement.
GRAPH 2 – Percentage of scores in the production task per level
(N1, N2, N3 e N4) and stress position (P3= initial, P2= medial, P1= final)
180
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
As for the least proficient speakers, trying to assimilate the
influence of L1 in their production, we can see low scores for P3 (34%),
comprehensible once this stress pattern is unusual in BP (MASSINICAGLIARI, 1992). Unlike N4 speakers, the percentage of P1 scores
tend to be higher for the N1-2 groups.
3.4 Perception task scores
The perception tests were subsequent to the production
recordings, and the same words were used as the stimuli for it, to
maintain the experimental control. In this multiple forced choice test, the
participants of all levels had to choose the stress position they thought
to be the strongest. The general percentage of correct answers was 68%,
higher than the scores in the production test (51%), and the cognates
(70%) were slightly higher than noncognates (67%).
The scores in the perception test were N1: 64%; N2: 58%; N3:
75%, and N4: 75%. Just like in the production test, the scores tend
to increase along the proficiency level, but two things are clear when
observing Graph 3: scores of all levels are higher than the production
test’s for all levels, and they tend to stabilize with the level increase. In
other words, although perceiving LS is apparently easier than producing
it correctly, the difference between production-perception scores reduces
as proficiency levels increase. This relationship between productionperception was also found in previous studies. Brawerman-Albini and
Becker (2014) made a production and perception study in English with an
uncommon stress pattern in BP, stresses in the fourth and fifth syllables,
from the end. All words were cognates with Portuguese. The relationship
found between production and perception (28% and 85%, respectively)
was parallel to our results for the same category (cognates), being 47%
and 70% for production and perception, respectively. The population in
the mentioned study did not count with advanced level speakers.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
181
GRAPH 3: Comparison of the perentage scores in the prodution
and perception tests per level (N1, N2, N3 e N4)
Perception
Production
The analysis of the scores in function of the cognate relationship
shows that despite some predominance of the noncognate scores in the
least proficient speakers, like in the production test (difference C-NC
for N1 production= 22%), it decreases in the perception test (difference
C-NC for N1 perception= 4%).
GRAPH 4 – Percentage of scores in the perception test per level (N1, N2, N3 e N4)
e cognate relationship (C= cognates, NC= noncognates)
182
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
It is interesting to note that N4 speakers also increased their scores
in the perception task, but still LS in AE was not perceived differently
whether the words cognates or noncognates (difference C-NC= 0%). The
comparison between both graphs allows us to observe a slight inversion
in the scores of cognates and noncognates in N1 and N3 in the production
and perception tasks: in the production task, noncognates scores were
higher than cognates, and the contrary occurs in the perception task.
Graph 5 shows the percentage of LS perception scores according
to level and stress position. For perception, P3 scores are more
concentrated in the 66-80% area, whereas the same category was much
wider for production, 34-77%.
Graph 5: percentage of scores in production perlevel (N1, N2, N3 e N4)
and stress position (P3= initial, P2= medial, P1= final)
The scores in the other stress positions were lower and more
disperse than for P3, and N4 speakers scored 66% of words with final
stress, whereas N1 speakers did only 29%. We would like to emphasize
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
183
that one possible reason why many BP speakers classified some words as
P3 when they were in fact P1, is that many of these words had secondary
stress in P3, so that when the word was heard, they immediately clicked
on P3, when the primary stress was actually in P1.
3.5 Production x Perception
The scores in the perception test were higher for all levels of
proficiency when compared to the production test’s scores. In order to
verify a possible correlation between scores of both tasks or if they work
independently from one another, we performed Spearman’s correlation
test on the overall scores for each level in each test. Even though there
was a positive correlation of 0.87, the low sample size made the test non
significant (p-value> 0.05).
4 Conclusion
Native BP speakers of all levels employ the same acoustic
parameters of lexical stress of the L1 in AE (duration and intensity). The
acoustic differences made to stress syllables that happened in production
tend to get closer to the AE speaker here studied, when it comes to higher
proficient level speakers. The cognate relationship of words only affected
the total intensity of syllables when assigning stress. The relationship
between the level of proficiency and the performance on the production
task happens parallel to the findings of previous studies that compare the
age of learning of foreigner speakers immersed in L2 speaking countries
(FLEGE, MUNRO, SKELTON, 1992; FLEGE, 1995), in which the most
proficient speakers get closer to the production of a native speaker of the L2.
The participants of this study found it easier to perceive the
correct LS than assigning the correct stress in their production, given the
perception scores were higher in all groups (even though this productionperception difference reduces drastically from N2 on). Even though the
cognate relationship of words did not influence the acoustic parameters
used in the production of LS (except for the total intensity), there are
differences in the percentage of scores in production. Least proficient
BP speakers scored 50% of the words that did not have a reference in
Portuguese, but only 28% of the words that did. That did not happen to
higher level speakers. This corroborates the hypothesis of the influence
that L1 exerts (FLEGE, 1995), especially in speakers of lower levels in
184
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
the L2. These speakers ignore the possible stress positions when they are
not in the exact position as the reference word in their L1, causing them
to misplace stress. When it comes to a noncognate word, they tend to
do the task more criterious, increasing score rates. Our findings confirm
that: initially stressed words (less often in BP) had much higher scores
in both production and perception.
For us to make any further inferences about the production of
BP speakers in AE it is necessary to make some adjustments: objectively
control proficiency level (with screening tests, for example), increase the
number and sex of AE speakers controls, and the morphological aspects
of the words in the corpus. Monomorphemic words comprised about
7% of our corpus, while all the others were bimorphemic. Even though
this have been controlled in our current studies, we also bring attention
for the possibility of the secondary stress of words interfering with the
decisions made by the participants, as previously discussed.
Authorship declaration
This work counted with the contribution of authors Filipe Modesto and
Plinio Almeida Barbosa, proposing the study. F. Modesto organized the
experimental methodology and data collection under supervision of P.
Almeida Barbosa, chair of the research group, who participated actively
in the data analysis, text writing and proofreading of the final version.
English translation was carried by F. Modesto. Both authors are members
of the Study Group for Speech Prosody of IEL/UNICAMP.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019
APPENDIX I – List of target words
Target Words
COGNATES
NONCOGNATES
Photograph
Fiance
Basketball
Dangerous
Sympathy
Employee
Positive
Saturday
Portuguese
Betrayal
Musical
Demeanor
Amplitude
Appraisal
Metaphor
Spendable
Persistent
Meaningless
Protestant
Furthermore
Resume
Challenger
Abstinence
Mastery
Resistance
Seasonal
Interact
Allowance
Demonstrate
Edible
Memorize
Mispronounce
Summarize
Overact
Fantasize
Understand
Energize
Reachable
Authorize
Standardize
Specify
Underact
Dignify
Overprice
Outbalance
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
Corpus CEFALA-1: Base de dados audiovisual de locutores
para estudos de biometria, fonética e fonologia
Corpus CEFALA-1: Audiovisual Database of Speakers
for Biometric, Phonetic and Phonology Studies
Arlindo Follador Neto
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, Minas Gerais
/ Brasil
arlindo.neto@ict.ufvjm.edu.br
Adelino Pinheiro Silva
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
Instituto de Criminalística de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
adelinocpp@yahoo.com
Hani Camille Yehia
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
hani@cpdee.ufmg.br
Resumo: A fala humana tem sido estudada em diferentes áreas do conhecimento, as
quais incluem desde biometria até fonética e fonologia. Nas pesquisas realizadas em
tais áreas, amostras da fala são recursos necessários para a obtenção de resultados e
validação de hipóteses. Para isso, amostras de diferentes locutores e conteúdos são
armazenadas em arquivos de áudio e organizadas em bases de dados. Tais bases de dados
permitem a continuidade, praticidade e confiabilidade de pesquisas, eliminando a difícil
e demorada etapa de coleta de dados. Além disso, permitem comparações consistentes
entre estudos diferentes. Entretanto, bases de acesso livre na língua portuguesa ou
gravadas em ambiente controlado são raramente encontradas. Dessa forma, o objetivo
deste trabalho foi construir uma base de dados pública e gratuita do português brasileiro,
nomeada Corpus CEFALA-1. A base de dados reúne 104 locutores orientados por um
protocolo específico para coleta de amostras audiovisuais de fala gravadas em estúdio.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.191-212
192
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
Este trabalho apresenta as metodologias de processamento, segmentação e organização
às quais as amostras de fala foram submetidas, além de análises estatísticas, aplicação
à verificação biométrica e análises fonético-fonológicas preliminares do corpus.
Palavras-chave: corpus de locutores; biometria; fonética e fonologia; base de dados
audiovisual.
Abstract: Human speech has been studied in different areas of knowledge, which range
from biometry to phonetics and phonology. In research conducted in such areas, speech
samples are necessary resources for obtaining results and validating hypotheses. For this,
samples of different speakers and contents are stored in audio files and organized into
databases. Such databases allow the continuity, practicality and reliability of studies,
eliminating the difficult and time consuming step of data collection. Moreover, they
allow consistent comparisons between different studies. However, free access databases
in the Portuguese language or recorded in controlled environments are rarely found. The
objective of this paper is to construct a free and public database of Brazilian Portuguese,
named Corpus CEFALA-1. The database comprises 104 speakers guided by a specific
protocol for the collection of audiovisual speech samples recorded in a studio. The
paper presents the methodologies for processing, segmentation and organization of
speech samples, statistical analysis, application to biometric verification and preliminary
phonetic-phonological analyses.
Keywords: corpus of speakers; biometry; phonetics and phonology; audiovisual
database.
Recebido em 10 de abril de 2018
Aceito em 12 de setembro de 2018
1 Introdução
A utilização de informações biométricas de indivíduos é cada
vez mais comum em diversas áreas de estudo. Na área de segurança,
informações biométricas como impressão digital, íris, geometria da face e
voz são empregadas em sistemas que visam verificar a identidade de seus
usuários (e.g. bancos, dispositivos pessoais, acessos restritos, sejam eles
físicos ou lógicos, urnas eletrônicas, controle de fronteira, etc). A voz,
em especial, com sua grande entropia e baixo consumo de recursos para
obtenção e processamento, tem sido utilizada em trabalhos inovadores e
recentes como fonte de extração de parâmetros biométricos para sistemas
de segurança (TRESADERN et al., 2012; WU et al., 2015).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
193
Diferentemente de seu uso para identificação biométrica, outras
áreas do conhecimento, como a fonologia e a fonética, exploram a voz
há muito mais tempo para outros fins. Nessas áreas as amostras da
voz também são utilizadas para entender como os diferentes sons se
organizam dentro da fala (SILVA, 1999; SILVA, 2016).
Além da informação acústica, imagens do locutor durante a
fala são fontes de estudo de expressões faciais. Tais estudos permitem
compreender a dinâmica orofacial e consequentemente enriquecer a
animação de desenhos, conhecer distúrbios, detectar emoções, dentre
outras aplicações (HORNAK; ROLLS; WADE, 1996; ALEKSIC;
KATSAGGELOS, 2006).
As diferentes áreas de estudo que fazem uso de informações de
locutores têm em comum a necessidade de utilização de bases de dados.
Essas bases são recursos fundamentais para a aquisição de amostras,
extração de características e obtenção de resultados. O emprego de
tais bases de dados na pesquisa torna possível a validação dos métodos
propostos. Entretanto, o acesso atual às bases de dados existentes é restrito,
em sua grande maioria é pago e quase sempre em língua estrangeira.
Ainda que a língua não seja um fator crucial para algumas áreas
(e.g. verificação de identidade por biometria), a forma com que os dados
das bases existentes foram obtidos (e.g. interceptações de ligações
telefônicas, registros em ambientes ruidosos, etc) muitas vezes dificulta a
execução da pesquisa, que depende da obtenção de amostras biométricas
de indivíduos cooperativos em ambiente controlado.
Nesse sentido, tendo em vista a dificuldade de se encontrar uma
base de dados de locutores pública e gratuita na língua portuguesa e
gravada em um ambiente profissionalmente controlado, o objetivo deste
trabalho foi construir a base de dados nomeada Corpus CEFALA-1, por
se tratar do primeiro corpus1 divulgado pelo Centro de Estudos da Fala,
Acústica, Linguagem e músicA (CEFALA).
O Corpus CEFALA-1 contou com a participação de 104
indivíduos, dentre eles 49 do sexo feminino e 55 do sexo masculino.
Cada indivíduo seguiu um protocolo de gravação que se dividiu em três
diferentes etapas de locução: monólogo curto, leitura de parágrafo e leitura
1
Coleção de amostras de registros de fala, que ocorrem naturalmente ou avocadas,
organizadas sistematicamente para emular áreas de uso da língua (BIBER, 1999;
HARRINGTON, 2010).
194
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
de sentenças. Essas diferentes etapas foram gravadas simultaneamente
por cinco microfones, sendo eles um microfone de um smartphone, uma
câmera de vídeo, um microfone sem fio, um microfone de lapela e um
microfone condensador. A base de dados foi gravada em um estúdio
profissional de gravação, com o objetivo de reduzir ao máximo o ruído
e a reverberação ambientes durante todo o processo.
Os detalhes a respeito do desenvolvimento do Corpus CEFALA-1
são apresentados na Seção 2. Na Seção 3, são apresentados e discutidos
um conjunto de experimentos realizados a partir do corpus e na última
seção são apresentadas as conclusões deste trabalho.
2 Metodologia
O desenvolvimento da base de dados Corpus CEFALA-1 dividiuse basicamente em três etapas: i) preparação do estúdio utilizado para
aquisição; ii) desenvolvimento de um protocolo de coleta de dados; e
iii) processamento e organização dos dados coletados. As três fases do
desenvolvimento da base ocorreram durante o primeiro semestre de
2017, sendo que os locutores foram convidados a comparecer para as
gravações entre os meses de março e junho. Essas etapas do processo
de desenvolvimento serão detalhadas adiante.
2.1 Estúdio de aquisição
A utilização de um ambiente controlado para coleta de áudio
permite a construção de uma base de dados de alta qualidade, tornando
possível atender aos pré-requisitos do Corpus CEFALA-1, entre eles
gravações com menor nível de ruído e reverberação reduzida. Dessa
forma, os dados foram colhidos no estúdio do laboratório CEFALA
(Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e músicA), localizado
na Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Esse estúdio possui medidas físicas, em metros, de 2,8
(Largura), 2,9 (Comprimento) e 2,2 (Altura) e conta com revestimento
especial para isolamento acústico e redução de reverberação. Utilizando
um decibelímetro digital Polimed PM 1900, verificou-se que o ruído de
fundo no estúdio era de 34 dB SPL. A Figura 1 exibe o interior do estúdio
durante o processo de coleta da base de dados.
O processo de coleta de dados de voz e imagem realizado no
estúdio do CEFALA contou com a seguinte estrutura:
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•
•
•
•
195
Um decibelímetro digital Polimed PM 1900.
Uma TV LED Ultra HD 49” LG Modelo 49UB8550. A TV foi
utilizada tanto na orientação do locutor quanto no acompanhamento
do processo de coleta de dados.
Um computador Mac Mini, com sistema operacional Mac OS X
10.9.5, processador Intel Core i5 2.5 GHz, 16 GB de RAM e 500
GB de espaço em disco rígido. O computador foi utilizado para
processamento e armazenamento dos dados coletados. A opção por
esse modelo específico foi em virtude do menor nível de emissão
de ruídos, 12 dBA segundo especificação do fabricante.
Uma mesa de aquisição de áudio M-Audio FireWire 1814, utilizada
na digitalização simultânea dos microfones.
FIGURA 1 – Posicionamento dos equipamentos no interior do estúdio
de gravação do laboratório CEFALA
Fonte: elaborado pelos autores
A base de dados contou com a utilização de cinco microfones
disponíveis no CEFALA e estão nomeados e especificados abaixo para
utilização em todo trabalho:
M1 Microfone de lapela da marca DYLAN, modelo DL-09 foi
posicionado no peitoral do locutor a aproximadamente vinte
centímetros dos lábios.
M2 Microfone sem fio da marca STANER, modelo SW-481,
posicionado a aproximadamente dois metros do locutor para
coleta do áudio ambiente.
M3 Microfone condensador da marca Brüel & Kjær, modelo 1065,
posicionado à altura dos lábios a uma distância de 15 centímetros
com 45 graus à direita do plano sagital.
196
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M4 Smartphone Samsung Galaxy S2 Lite GT-i9070, utilizado na
captação do áudio ambiente, simulando uma aquisição a partir
de um dispositivo móvel que utiliza microfone com tecnologia
MEMS (Micro-ElectroMechanical Systems). O smartphone foi
posicionado à frente do locutor a uma distância de um metro e
elevado a setenta centímetros do piso.
M5 Câmera GoPro Hero 3+ Black Edition, utilizada para captura
de vídeo com o codec H264 no formato 1280x720 em 60 FPS
(Frames per Second) e áudio com codec AAC em 48 kHz com
32 bits/amostra. Essa câmera foi posicionada frontalmente ao
locutor a uma distância de um metro, um exemplo das imagens
obtidas por ela é apresentado na Figura 2.
Apesar da construção da base de dados ter utilizado uma câmera
de vídeo, descrita no microfone M5 da lista anterior, o material de vídeo
adquirido será de uso restrito do Centro de Estudos da Fala, Acústica,
Linguagem e músicA (CEFALA), conforme previamente esclarecido
para os voluntários através da autorização de coleta, a qual faz parte do
protocolo descrito na próxima seção.
Embora a especificação dos microfones não tenha abrangido
detalhadamente suas características técnicas, estas podem ser encontradas
nos respectivos manuais fornecidos pelos fabricantes. A influência da
utilização desses diferentes microfones não foi amplamente abordada
neste trabalho, e está reservado para trabalhos futuros, no entanto a Seção
3.1 apresentará um comparativo da resposta em frequência, em módulo,
dos microfones utilizados.
FIGURA 2 – Posicionamento dos locutores em frente à câmera
para aquisição do conteúdo audiovisual
Fonte: elaborado pelos autores
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197
2.2 Protocolo de coleta
A utilização de um protocolo de coleta visa orientar os voluntários
que tiveram sua fala registrada, tanto no sentido legal quanto no processo
de coleta da base de dados. Dessa forma, o protocolo aqui adotado
dividiu-se em quatro etapas fundamentais:
I. Autorização de coleta: antes de iniciar o estudo foi apresentada
aos participantes uma autorização de coleta de material sonoro
a qual esclarecia, dentre outros termos, a finalidade pública
dos dados de áudio da base. Tendo concordado com os termos
apresentados, o participante assinava a autorização e seguia para
o estúdio de coleta. O processo de coleta de dados consistiu em
aproximadamente 5 minutos de leitura de texto em voz alta e fala
espontânea, as quais são atividades corriqueiramente realizadas em
sala de aula. Aprovação por comitê de ética não foi necessária, pois
tais atividades não acarretam riscos maiores do que os existentes
na vida cotidiana e a identidade dos voluntários foi preservada.2
II. Fala espontânea: uma vez no estúdio de gravação, o locutor foi
orientado a discorrer a respeito de um assunto de seu interesse (e.g.
relato pessoal ou não pessoal, comentário sobre qualquer assunto,
descrição de alguma atividade rotineira) por aproximadamente
2 minutos. O intuito desta primeira etapa de gravação foi que o
voluntário atingisse o estado de fala espontânea.
III. Leitura de texto: nesta etapa todos os locutores foram orientados a
ler um mesmo trecho, com 153 palavras, do livro A vida de Galileu:
o contemplador de estrelas (HARSANYI, 1957). Esse texto foi
escolhido de forma a abranger um número maior de fonemas e
também por misturar elementos da fala formal e informal, contendo
palavras comuns do português brasileiro e também incluindo uma
frase em língua estrangeira (i.e. Italiano).
IV. Leitura de frases: nesta última etapa os locutores foram igualmente
submetidos à leitura de vinte frases. A lista de frases apresenta uma
média de sete palavras por frase, sendo 3 o mínimo e 19 o máximo
de palavras por frase. A seleção das frases levou em consideração
2
De acordo com o item 8.0.5 da American Psychological Association (2002) e do
Artigo 1º da Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde.
198
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diferentes tamanhos, frases afirmativas, interrogativas, expressões
populares e aliterações. A lista de frases pode ser obtida no
protocolo de coleta disponível em http://www.cefala.org.
O intuito das duas últimas etapas do protocolo de coleta foi a
obtenção de fala a partir de texto pré-fixado, sendo possível posteriormente
análises a respeito do comportamento do locutor durante cada elocução.
2.3 Organização da base de dados
Após a coleta do material audiovisual de todos os voluntários da
base, a tarefa subsequente foi o processamento e organização dos dados
obtidos. Dessa forma, o primeiro passo consistiu em extrair o conteúdo
de áudio dos arquivos em formato MP4, obtidos pela câmera (i.e. M5).
O conteúdo de vídeo foi armazenado em seu formato original, enquanto
o conteúdo de áudio, obtido no formato ACC, foi extraído e convertido
para o formato padrão da base de dados: formato WAV com taxa de
amostragem de 44,1 kHz e 16 bits por amostra.
Uma vez organizados os arquivos de áudio de todos os microfones
no mesmo formato, a tarefa seguinte foi alinhar os arquivos de todos os
locutores, ou seja, fazer com que o áudio de um microfone de um locutor
em um ponto específico fosse exatamente o mesmo para os demais
microfones. Dessa forma, ainda na etapa de aquisição, antes mesmo do
o locutor iniciar o protocolo de coleta, foi solicitado que este aguardasse
a execução de um pulso de sincronismo utilizado para marcar o início da
gravação em cada um dos microfones. Para o alinhamento foi utilizado
o toolbox VOICEBOX3 para MATLAB®.4 Um exemplo do resultado
final do processo é exibido na Figura 3.
3
VOICEBOX é uma toolbox para processamento de fala com rotinas desenvolvidas
para MATLAB®.
4
MATLAB® é um software interativo de alta performance aplicado ao cálculo
numérico.
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199
FIGURA 3 – Zoom em um trecho de áudio de 5,5 segundos para exemplificar o
resultado após procedimento de alinhamento dos microfones
Fonte: elaborado pelos autores
O alinhamento dos arquivos de áudio simplifica a etapa de
organização posterior, que é a de segmentação. Uma vez alinhados, a
segmentação que for realizada em um arquivo de áudio de um determinado
microfone servirá para os demais arquivos dos microfones usados
para gravar uma mesma elocução. Para a segmentação, o software de
processamento e análise de fala Praat5 foi utilizado na criação de labels
(rótulos) para cada segmento. Essa metodologia descarta a necessidade
de fragmentar a base em pequenos arquivos de áudio para cada segmento.
Dessa forma, os arquivos de áudio alinhados são preservados, e um novo
arquivo contendo os labels da segmentação é criado para cada locutor.
Essa metodologia permite que existam infinitas formas de segmentação
para a mesma base de dados sem alterar os arquivos de áudio alinhados. A
segmentação da base realizada neste trabalho foi nomeada SEG22, a qual
dividiu as amostras em 22 trechos baseados no protocolo de coleta, sendo
eles: o trecho de fala espontânea (i.e. label FALAESP); o trecho da leitura
de texto (i.e. label TEXTO); e a sequência de vinte frases (i.e. labels de
F01 a F20). A delimitação de cada trecho utiliza o formato TextGrid do
Praat e tem a precisão da ordem de picosegundos (i.e. 10-12 segundos).
Um exemplo de um arquivo de segmentação é apresentado na Figura 4.
O Praat é um software aplicado na análise e síntese da fala desenvolvido na
Universidade de Amsterdã.
5
200
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
A organização final dos arquivos da base de dados foi orientada por
uma estrutura de diretórios com nomenclatura padronizada. Os diretórios de
locutores são definidos por “Locutor_0XXX?”, onde “0XXX” é um número
de sequência e “?” identifica o sexo do locutor, sendo M para Masculino
e F para Feminino. Dentro de cada diretório de locutor estão presentes os
arquivos de áudio com a nomenclatura “Locutor_0XXX?_MY_S.wav”,
onde “MY” identifica o microfone, a letra “S” indica que o arquivo de
áudio foi submetido ao processo de alinhamento e “.wav” que o formato
do arquivo é WAV PCM (Pulse-Code Modulation). Finalmente, os arquivos
no formato TextGrid, que também estão contidos dentro de cada diretório
de locutor, seguem a nomenclatura Locutor_0XXX?_NOME.TextGrid,
onde as diferenças são a palavra-chave “NOME” que representará o título
da segmentação realizada e “.TextGrid” representa a extensão do arquivo,
indicando que é o formato reconhecido pela aplicação Praat.
Após a segmentação dos arquivos de áudio, foi estimada a
quantidade de material sonoro presente no corpus. A Figura 5 a seguir
apresenta o gráfico RDI (Raw-data Description and Inference) com a
duração em segundos dos segmentos de fala espontânea, leitura de texto e
leitura de frases. Nessa figura, os pontos representam a duração individual
de cada amostra, as curvas laterais são a distribuição de probabilidade
empírica, a linha preta horizontal a média e o retângulo escuro é o
intervalo de confiança da média para α = 0,05. A Tabela 1 complementa
as informações de duração dos segmentos de fala.
FIGURA 4 – Exemplo de utilização do software Praat durante o processo de
segmentação (i.e. SEG22) dos trechos de áudio da base de dados
Fonte: elaborado pelos autores
201
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
3 Análises preliminares do corpus e exemplo de aplicação
De posse da base de dados adquirida, processada, organizada e
segmentada, experimentos foram desenvolvidos no sentido de se obter
uma caracterização preliminar do seu conteúdo. Os resultados desses
experimentos servem não apenas para identificar melhor os componentes
da base de dados, mas também para exemplificar sua utilização em
pesquisas voltadas para as áreas de biometria, fonética e fonologia.
TABELA 1 – Duração em segundos com os valores mínimo, médio e máximo
dos segmentos (i.e. SEG22) para o tempo total de áudio e para o tempo de fala
(i.e. excluindo pausas)
mínimo
médio
máximo
Total
Fala
Total
Fala
Total
Fala
Áudio completo
202
112
273
171
412
251
Fala espontânea
55
31
116
78
208
144
Leitura de texto
51
36
66
46
132
70
Leitura de frases
42
33
56
43
99
56
Fonte: elaborado pelos autores
FIGURA 5 – Gráfico RDI com a duração (em segundos) das etapas
de cada amostra do Corpus CEFALA-1
Fonte: elaborado pelos autores
202
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
3.1 Resposta em frequência dos microfones no ambiente de gravação
O primeiro experimento tem como objetivo verificar a resposta
em frequência dos microfones usados na gravação. Para esse fim foi
usado um pulso de varredura do tipo TSP (Time-Stretched Pulse)
(SUZUKI et al; 1995). Para a reprodução do TSP foi utilizado um
alto-falante da marca JBL by HARMAN do modelo Micro Wireless,
que segundo dados do fabricante possui resposta em frequência de 150
Hz a 20 kHz com uma relação sinal ruído maior que 80 dB. A caixa de
som foi posicionada simulando o local onde estarão os locutores, seu
volume ajustado para reproduzir uma pressão sonora semelhante àquela
observada durante a fala e a reprodução do TSP foi repetida seis vezes
para uma maior aquisição de amostras para análise. Durante a reprodução
do TSP foi preservada a montagem do estúdio que inclui a posição dos
microfones conforme Figura 1. A análise da resposta em frequência de
cada microfone foi realizada utilizando o software MATLAB® para
aplicação do algoritmo FFT (Fast Fourier Transform). Este algoritmo
calcula a transformada de Fourier a qual converte os dados do domínio
do tempo para o domínio da frequência, tornando possível a análise de
resposta em frequência em todo o espectro adquirido.
Basicamente, dois fatores são responsáveis por influenciar a
resposta em frequência dos microfones. O primeiro está relacionado às
características construtivas do microfone, ou seja, sua faixa de passagem
intrínseca. O segundo é o posicionamento do microfone no ambiente,
uma vez que sons agudos são mais diretivos que os graves. A combinação
desses fatores com a resposta em frequência do alto-falante resulta nas
curvas apresentadas na Figura 6. Essa análise de resposta em frequência é
importante no planejamento de futuros experimentos que venham utilizar
amostras de microfones específicos deste corpus.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
FIGURA 6 – Resposta em frequência apresentada por cada microfone
na execução do TSP
Fonte: elaborado pelos autores
203
204
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
3.2 Desempenho de locutores em leitura de texto e frases
Os experimentos seguintes direcionaram o foco para análises
fonéticas e fonológicas. Inicialmente, buscou-se medir as taxas de
elocução e de articulação presentes no corpus (GONÇALVES; 2013).
O experimento teve como objetivo estimar duas medidas de execução:
i) média de geração de sílabas por segundo; ii) tempo médio de pausas
durante a fala. Estas estimativas foram obtidas a partir da contagem do
número de sílabas e pausas presentes nas etapas de leitura de texto e
frases. O processo de segmentação da base de dados e a técnica de VAD
(Voice Activity Detection) permitiram que esta contagem fosse realizada
com precisão, uma vez que sendo aplicado ele separará perfeitamente os
trechos contendo fala e pausas dos arquivos de áudio.
Em relação aos resultados, a taxa média de produção de sílabas
oscila em torno de 5 sílabas por segundo, enquanto as pausas (ou tempo
sem voz) têm duração média de pouco menos de 100 ms.
FIGURA 7 – Gráfico RDI apresentado a taxa de sílabas por segundo dos falantes
Fonte: elaborado pelos autores
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
205
FIGURA 8 – Gráfico RDI apresentado o tempo de pausa dos falantes
Fonte: elaborado pelos autores
3.3 Estatísticas de frequência fundamental e formantes
O Corpus CEFALA-1 também pode ser usado para analisar
a distribuição dos valores da frequência fundamental (i.e. F0) e dos
formantes (e.g. F1, F2, F3, ...) entre os locutores e entre elocuções.
Como exemplo, foram realizadas análises dos formantes separados por
sexo. Dessa forma, para os grupos masculino e feminino as análises
espectrográficas foram desenvolvidas utilizando o método LPC (Linear
Predictive Coding). O LPC é uma técnica de análise da fala que modela
o sinal como um processo autorregressivo cuja ordem é suficiente para
representar os pares de polos referentes aos formantes e inclinação
espectral. A partir do LPC é possível encontrar os formantes, frequências
em que o trato vocal ressoa em trechos de fala vozeados. Os formantes
indicam a frequência, amplitude e largura de banda dessa ressonância
do trato vocal. Levando em consideração o modelo do trato vocal como
um tubo ressonante (FLANAGAN, 2013), é possível estimar a presença
de um formante a cada 1 kHz de banda do sinal de voz. Assim, para
o sinal de fala que foi subamostrado a 8 kHz, resultando na banda de
4 kHz, é possível estimar quatro formantes, os quais são excitados pelos
harmônicos da frequência fundamental de vibração das pregas vocais.
Para cada locutor foi extraída a frequência fundamental (F0) por
quadro de 25 ms de voz. O algoritmo utilizado foi o Yet Another Algorithm
for Pitch Tracking que foi publicado nos trabalhos de Kasi e Zahorian
206
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
(2002) e Zahorian e Hu (2008). Esse algoritmo retorna os valores da F0
ao longo dos quadros identificados como vozeados.
Como o valor da F0 é variável ao longo da fala, cada locutor
foi representado pela sua média. A Figura 9 apresenta os valores
médios obtidos no gráfico RDI que separa a F0 entre os locutores
do sexo masculino e feminino. Os valores de F0 para mulheres são
aproximadamente o dobro dos observados para homens. Isso acontece
porque as cordas vocais femininas são mais curtas e mais leves que as
masculinas (TITZE, 1994).
FIGURA 9 – Dispersão da F0 dos falantes divididos por sexo
Fonte: elaborado pelos autores
Os formantes foram obtidos por meio de análise LPC com
refinamento dos polos, como descrito por Kim, Seo e Sung (2006).
A Figura 10 mostra o gráfico RDI do valor médio dos formantes F1 a
F4 de todas as amostras. O recorte entre locutores de diferentes sexos
mostra que os locutores do sexo feminino apresentaram valores médios
superiores aos locutores do sexo masculino para os primeiros formantes.
Tal diferença ocorre devido a diferença anatômica entre os tratos vocais
de homens, cujo trato vocal é mais longo, e de mulheres, cujo trato vocal
é mais curto.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
207
3.4 Taxas de identificação de locutores
O último experimento é focado na área de biometria e consiste
na avaliação de desempenho da comparação automática de locutores
utilizando a metodologia UBM-GMM (Universal Background Model
– Gaussian Mixture Model). A metodologia UBM-GMM foi proposta
por Reynolds et al. (2000) e baseia-se na separação de amostras de voz
em pequenos quadros. Para cada quadro são calculados os coeficientes
ceptrais na escala mel de frequências (MFCC – Mel Frequency Cepstral
Coefficients) e suas variações temporais de primeira e de segunda
ordens, denominadas Δ-cepstrum e ΔΔ-cepstrum. Inspirado na percepção
humana para frequências sonoras, o MFCC é uma técnica de extração
de parâmetros que utiliza a escala Mel para mapear o espectro da voz
e que busca reproduzir a resolução espectral da cóclea, tubo ósseo em
forma de caracol no qual regiões diferentes são sensíveis a frequências
diferentes (PICONE, 1993).
FIGURA 10 – Dispersão das frequências dos formantes dos falantes divididos por sexo
Fonte: elaborado pelos autores
208
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
A partir dos valores MFCC, representados por x = {x(1), x(2),
…, x(T)}, é possível construir uma função densidade de probabilidade
que é aproximada por uma soma ponderada de gaussianas. Dessa forma,
o modelo UBM consiste em uma mistura de gaussianas que se ajusta
à dispersão dos valores MFCC de todos os locutores da base de dados,
enquanto o modelo GMM é uma adaptação do modelo UBM para a
dispersão dos valores MFCC de um locutor específico.
Assim, a partir dos modelos UBM-GMM e de uma amostra de
áudio é possível verificar a qual locutor essa amostra pertence. Nesse
modelo a pontuação (score) é obtida em um processo que consiste na
comparação de uma amostra de teste com todos os modelos GMM. Caso
essa pontuação seja superior a um determinado limiar, a amostra é aceita
como sendo do respectivo locutor que originou o modelo GMM. Essa
pontuação é definida como o logaritmo da razão de verossimilhança
(LLR - Log-Likelihood Ratio) e pode ser calculada como
LLR(x) =
p(H0 | x, λGMM, λUBM ) 1
= ∑ T [log (p(x(t) | λGMM ) ) – log (p(x(t) | λUBM))],
p(H1 | x, λGMM, λUBM ) T t = 1
onde, p(x(t) | λGMM) e p(x(t) | λUBM) são as avaliações do t-ésimo MFCC
dos modelos GMM e UBM. As hipóteses H0 e H1 da comparação são
definidas como
H:
{ HH :: xx ee λλ
0
GMM
1
GMM
são provenientes do mesmo locutor para LLR(x) > η0
são provenientes de locutores diferentes para LLR(x) ≤ η0.
Neste experimento a base de dados foi separada em dois grupos,
sendo os dados divididos em conjuntos de treinamento e de teste. O
conjunto de treinamento é utilizado na parametrização dos modelos
UBM-GMM, enquanto o conjunto de teste é utilizado na obtenção
dos resultados de verificação. Dessa forma, o conjunto de treinamento
consistiu na concatenação dos dados da etapa completa de leitura de
texto com 66% da etapa de fala espontânea, enquanto o conjunto de teste
consistiu na concatenação dos 34% restantes da etapa de fala espontânea
com a etapa completa de leitura de frases. Todo o experimento foi repetido
para cada um dos cinco microfones, sendo que em todos os experimentos
as amostras foram subamostradas para 8 kHz e restritas a faixa entre 300
e 3500 Hz (i.e. condições de comunicação por telefone).
209
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
O procedimento de identificação de locutores mostrou-se sensível
ao microfone utilizado. A Figura 11 a seguir apresenta a curva DET
(Detection Error Tradeoff) para a identificação de locutores. Nesta
simulação, apenas os microfones M1 e M4 foram capazes de identificar
os locutores sem nenhum erro.
TABELA 2 – Limiares de LLR onde obtém-se a menor taxa de mesmo erro e CLLR
Limiar LLR
[nepers]
Taxa de
Mesmo Erro
[%]
Limiar LLR
[nepers]
Mínimo CLLR
[nepers]
Microfone M1
0,81
0
0,20
0,25
Microfone M2
1,68
1,92
1,43
0,31
Microfone M3
1,26
0,06
0,91
0,27
Microfone M4
0,65
0
0,14
0,31
Microfone M5
0,32
0,28
0,10
0,35
Fonte: elaborado pelos autores
FIGURA 11 – Curva DET para identificação de locutores com a variação
do limiar de decisão
Fonte: elaborado pelos autores
210
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
FIGURA 12 – Taxa de mesmo erro apresentada no experimento pela variação
do limiar de decisão (i.e. valor do logaritmo da razão de verossimilhança).
A linha pontilhada representa a taxa de falso negativo enquanto a linha
contínua a taxa de falso positivo
Fonte: elaborado pelos autores
As curvas das figuras 11 e 12 mostram o desempenho dos
diferentes microfones para a tarefa de verificação de locutor. Utilizando os
microfones M1 e M4, foi possível verificar os locutores com uma acurácia
de 100%, enquanto erros de verificação para os demais microfones foram
observados. A Figura 12 e a Tabela 2 mostram os limiares de separação
para cada um dos cinco microfones utilizados.
4 Conclusão
Este artigo apresentou o Corpus CEFALA-1 desenvolvido como
ferramenta de suporte para análise de locutores, seja em experimentos de
biometria ou em análise fonético-fonológicas. Neste momento o corpus
está sendo utilizado em duas teses de doutorado: a primeira na área de
autenticação de locutores e a segunda na comparação forense de locutores.
O processo de construção do corpus foi descrito tanto no que
se refere à montagem utilizada do estúdio de coleta de dados quanto ao
conteúdo e ao processamento das amostras coletadas.
A utilização do corpus foi demonstrada através do levantamento
das distribuições de valores da frequência fundamental, dos primeiros
formantes, taxas de sílabas, tempo de pausa e de testes de verificação de
locutor. Essas análises preliminares são úteis para apresentar o baseline
do Corpus CEFALA-1, que servirá de baliza para trabalhos futuros.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019
211
O objetivo principal deste artigo, entretanto, é difundir o Corpus
CEFALA-1, que será disponibilizado sob a licença Creative Common
BY-NC-ND mediante cadastro eletrônico em http://www.cefala.org.
Espera-se que o Corpus CEFALA-1 torne-se um recurso público e
gratuito que contribua tanto com o ensino e a pesquisa da fala em geral
quanto do português brasileiro em particular.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
Efeito de treinamento de memória de trabalho em crianças
sem diagnósticos de comprometimento cognitivo, estudantes
das séries iniciais do Ensino Fundamental
Working Memory Training Effect in Elementary School
Children Without Diagnosis of Cognitive Impairment
Lidiomar José Mascarello
Rede Municipal de Florianópolis, Florianópolis, Santa Catarina / Brasil
lidiomarjose@gmail.com
Resumo: O propósito principal deste artigo é apresentar resultados de pesquisas que
mostram a relevância de um treinamento da memória de trabalho em crianças sem
diagnóstico de déficit de atenção ou outras complicações cognitivas. São crianças
estudantes do segundo ano do Ensino Fundamental em processo inicial de aprendizagem
de leitura e escrita. Participaram do estudo 165 sujeitos. Todos os participantes
foram submetidos a pré e pós testes que avaliaram índices de memória de trabalho e
desempenho em leitura silenciosa de palavras e pseudopalavras. Além da apresentação
dos resultados objetivamos discutir questões referentes a estudos da memória de
trabalho (MT) e suas implicações nos processos de aprendizagem de leitura. Os
resultados das pesquisas indicam que crianças com maior capacidade de memória de
trabalho apresentam melhor desempenho em tarefas de leitura que crianças com menor
capacidade nessa memória, tais resultados são consonantes a outros estudos na área.
Palavras-chave: memória de trabalho; efeito de treinamento; leitura.
Abstract: This study aims to present research results that show the relevance of work
memory training in children without a diagnosis of attention deficit or other cognitive
complications. They are children of the second year of the Elementary School in the
initial process of learning to read and write. 165 subjects participated in the study. All
participants were submitted to pre and post tests that evaluated work memory indices
and performance in silent word and pseudoword reading. In addition to the presentation
of the results, we aimed to discuss issues related to working memory (TM) studies and
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.213-240
214
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
their implications for reading learning processes. The results of research indicate that
children with higher working memory capacity perform better on reading tasks than
children with lower memory capacity, such results are consonant with other studies
in the area.
Keywords: working memory; training effect; reading.
Recebido em 08 de maio de 2018
Aceito em 04 de setembro de 2018
1 Introdução
O estudo da memória humana é uma área de pesquisa que a
psicologia cognitiva investiga há muito tempo. Um dos estudos mais
antigos que se tem registro é o de Ebbinghaus em 1885 (apud BADDELEY
et al., 2011, p. 83). Entretanto até hoje não é um campo em que há consenso
sobre a conceituação e a definição do que é memória humana. Para
autores como, por exemplo, Kandel (2009), a memória é a capacidade de
reportar-se às lembranças e reminiscências registradas em nosso cérebro.
Em outras palavras, podemos dizer que a memória é a capacidade humana
de registrar, conservar e relembrar mentalmente experiências de vida,
conhecimentos, conceitos, sensações e pensamentos experimentados no
decorrer do percurso da vida. Contudo, defender tal ponto de vista implica
fazer escolhas teóricas priorizando uma em relação a outras.
Baddeley et al. (2011, p.14) defendem que a partir de novos
estudos da Neurobiologia e da Psicologia Cognitiva, é possível falar
de memórias e não apenas de memória como se fosse um sistema
simples e único. O mesmo autor argumenta que, de fato, existem várias
memórias, isto é, vários sistemas de memórias, pois há diversas fontes
de armazenamento de dados em nossa mente, não limitadas em uma
área determinada de nosso cérebro, mas inerentes a distintas atividades
mentais (BADDELEY, et al., 2011).
Assim como não há consenso na formulação de um conceito único
sobre memória humana também não é tarefa simples determinar quais são
os tipos de memória existentes e como devem ser identificados. Existem,
na literatura sobre o tema, várias formas e sistemas classificatórios, sendo
que alguns priorizam o sistema de funcionamento da memória, outros
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
215
a temporalidade, ou seja, o tempo de armazenamento da informação na
mente humana, dentre outras formas e critérios para classificá-la (PURVES
et al., 2004). Em comum, as diferentes linhas teóricas concordam que
a memória é o funcionamento articulado de vários sistemas cerebrais
responsáveis pelo registro e armazenamento de informações (por um
período de tempo) que podem ser recuperadas (KANDEL, 2009).
Para Baddeley et al. (2011), a memória humana está organizada
em memória sensorial, memória de curto prazo, memória de trabalho e
memória de longo prazo, definições nas quais me apoiei para a realização
do estudo.
A memória sensorial tem importância primordial que nos
possibilita reconhecer padrões em gral, também conhecido como
padrão sensorial. É um sistema de memória que através da percepção
da realidade, pelos órgãos do sentido, retém por alguns segundos a
imagem detalhada da informação sensorial recebida. Ela é responsável
pelo processamento inicial da informação sensorial e sua codificação
(BARKLEY, BENTON, 2011). A relação bem sucedida entre os órgãos
do sentido e o cérebro é de extrema importância para a memória, segundo
Barkley, Benton (2011) a memória não entra em ação só quando tentamos
recordar algo, mas ela é um processo em constante construção e o nosso
comportamento pode estimula-la ou não.
Em relação à memória de curto prazo nos referimos à retenção
temporária de pequenas quantidades de material por um breve período
de tempo. Segundo Baddeley (2011, et al., p.31), [...] “é um sistema
de memória responsável por receber as informações e retê-las por um
curto período de tempo”. As informações aí retidas são as provenientes
de qualquer órgão do sentido. A memória de curto prazo é responsável
pela triagem das informações recebidas para que estas sejam utilizadas,
descartadas ou mesmo organizadas para serem armazenadas.
A memória de longo prazo ou longa duração é o sistema de
memória que recebe as informações da memória de curta duração e as
armazena por longos períodos de tempo. Para Baddeley et al. (2011),
caso não haja danos cerebrais, o armazenamento pode ser por um prazo
indeterminado, pois é uma memória considerada de capacidade ilimitada
de armazenamento e, as informações ficam nela armazenadas por tempo
também ilimitado.
Em linhas gerais, a memória humana é constituída pela capacidade
dos seres humanos de adquirir, conservar e evocar informações através de
216
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
dispositivos neurobiológicos e da interação social (BADDELEY, 1992).
A memória é constituída de um conjunto de procedimentos que permite
manipular e compreender o mundo, levando em conta o contexto atual
e as experiências individuais, recriando esse mundo por meio de ações
pessoais/individuais (BADDELEY, 1992).
Em 1974, Baddeley e Hitch, ao estudarem os modelos de
memória apresentados até então, constatam e demonstram por meio de
novas pesquisas, que os modelos antecedentes, em especial o modelo
de Atkinson e Schiffrin (1968) não consegue explicar uma série de
fenômenos cognitivos e evidências neuropsicológicas. Com isso,
Baddeley e Hitch (1974) propõem um novo modelo, denominado Modelo
Multicomponencial. Baddeley e Hitch (1974) passam a defender a ideia
de que além da memória de curto e de longo prazo existe uma memória
capaz de manipular informações, isto é, uma memória de trabalho, um
sistema temporário (de curta duração) que é capaz de operar, processar
e manter informações na mente por um curto espaço de tempo. Esse
novo modelo é composto inicialmente por três partes ou componentes
de memória de trabalho: 1 – Circuito Fonológico; 2 – Bloco de Espaço
Visuoespacial; e 3 – Executivo central. De acordo com este novo
modelo, a Alça Fonológica é basicamente um componente de memória
verbal de curta duração responsável pelos aspectos linguísticos nos
processamentos cognitivos, aspectos relacionados desde a codificação
semântica, articulação das palavras, estruturação e até aprendizagem
de novas línguas. O Esboço Visuoespacial é o componente responsável
pela manutenção temporária de informações visuais e espaciais. O
componente Executivo Central é o gerenciador dos dois subsistemas
Alça Fonológica e Esboço Visuoespacial articulando também a memória
de longo prazo. Segundo Baddeley et al. (2011), o circuito fonológico
é uma parte específica da memória de trabalho e pode ser considerado
como um subsistema específico desta memória. O circuito fonológico
ou alça fonológica é a parte da memória de trabalho que lida com
informações provenientes de material escrito e falado. Ela pode ser usada
para lembrar um número de telefone, por exemplo, e está organizada em
duas partes principais. A primeira parte principal é o compartimento
fonológico (ouvido interna), que está vinculado à percepção de fala e
que, baseando-se no discurso, apresenta informações de forma (ou seja,
palavras faladas) por 1-2 segundos. A outra parte é o processo de controle
articulatório, (voz interior) e está ligada à produção da fala. O processo
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
217
de controle articulatório é utilizado para armazenar informações verbais
do compartimento fonológico.
O circuito ou alça visuoespacial lida com informação visual
e espacial. Informação visual se refere ao que as coisas se parecem
ou são no mundo real. É provável que esboço visuoespacial tem um
papel importante para nos ajudar a manter o controle de onde estamos
em relação a outros objetos, como nós nos movemos no meio em que
vivemos (BADDELEY, et al., 2011).
À medida que nos movimentamos, a nossa posição em relação
aos objetos se modifica e é importante que possamos manter essas
informações atualizadas: por exemplo, ter consciência de onde estamos
em relação às mesas e cadeiras em uma sala de aula permite que não
esbarremos nelas. Este circuito nos permite também resgatar informações
visuais e espaciais da memória de longo prazo.
O componente executivo central é o componente mais importante
do modelo, embora não se tenha conhecimento completo sobre seu
funcionamento e ainda estão sendo realizadas pesquisas para compreender
melhor as suas características funcionais. De acordo com Baddeley et
al. (2011), este componente é responsável pelo acompanhamento e
coordenação da operação dos sistemas visuoespacial e circuito fonológico
e os relaciona com a memória de longo prazo. O componente executivo
central decide quais informações são atendidas e quais partes da memória
de trabalho enviarão essa informação para ser executada.
O componente executivo central é responsável por controlar o foco
de atenção do indivíduo. O executivo central decide em que a pessoa, por
meio do componente cognitivo memória de trabalho, presta atenção. Por
exemplo, duas atividades às vezes entram em conflito, tais como dirigir
um carro e conversar. Ao invés de atropelar um ciclista que está andando
a sua frente, é preferível parar de falar e se concentrar na condução. O
componente executivo central dirige a atenção e dá prioridade a atividades
particulares. O componente executivo central é o componente mais versátil
e importante do sistema de memória de trabalho.
Baddeley et al. (2011) sugere que o componente executivo central
age mais como um sistema que controla os processos de atenção e não
como um armazenamento de memória. Isso é diferente da alça fonológica
e a alça visuoespacial, que são sistemas de processamento especializados.
O componente executivo central permite que o sistema de memória de
trabalho seja seletivo.
218
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
Baddeley et al. (2011) usa a metáfora de um chefe de empresa
para descrever o funcionamento do executivo central. O chefe da empresa
toma decisões sobre questões que merecem atenção e o que deve ser
ignorado. Ele também seleciona estratégias para lidar com problemas,
mas como qualquer pessoa na empresa, o patrão só pode fazer um número
limitado de coisas ao mesmo tempo.
Como podemos observar, nesse novo modelo, a memória de curta
duração deixa de ser um arquivo passivo, isto é, deixa de ser apenas um
receptor de informações, um lugar em que apenas se guarda algo, para
ser um local de trabalho em que a matéria/informação aí colocada está
constantemente sendo manipulada, (re)combinada e transformada. Além
disso, esse local de trabalho, esse espaço cerebral, contém tanto material
novo/informação nova que chega do ambiente quanto material antigo/
memórias já anteriormente guardadas extraído da memória de longo
prazo (BADDELEY, et al., 2011).
Por apresentar essas características, muitas são as pesquisas
que buscam identificar relações entre aspectos da linguagem
considerados essenciais para a aprendizagem de leitura e dos sub
processos necessários para a concretização do ato de ler e a memória
de trabalho. Os pesquisadores das áreas cognitivas (neurolinguística,
neuropsicologia, etc.) e psicolinguística concordam que a memória de
trabalho é indispensável para o sucesso e bom desempenho em tarefas
cognitivas. Embora haja essa concordância, não é consenso entre os
estudiosos que é possível melhorar os índices dessa memória. Para
alguns pesquisadores, a MT pode ser expandida, mas para outros não.
Outra divergência gerada a partir desse posicionamento é a possibilidade
de generalizar que, ao melhorar a MT, melhora-se consequentemente
o desempenho em tarefas cognitivas. Tal posicionamento se dá pelo
fato de os estudos serem julgados muito recentes e apresentarem dados
considerados inconsistentes para comprovar essas evidências (segundo
os pesquisadores que defendem que os índices da MT não podem ser
melhorados). Tal posicionamento é adotado, por exemplo, pelo grupo de
pesquisadores do Georgia Institute of Technology, sob a coordenação do
Dr. Randall Engle, estuda Attention and Working Memory.1 Em estudo
Outras informações sobre tal posicionamento podem ser encontradas no site <http://
englelab.gatech.edu/publications.html#2010-Present>. Nesse endereço são encontradas
as principais publicações desse grupo de pesquisa.
1
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
219
publicado em 2010, por exemplo, afirmam que não é possível ampliar
a MT por treinamento adaptado e pela execução de tarefas, mas que as
diferenças nos índices podem ocorrer a partir das diferenças individuais
entre os sujeitos ou por falta de controle adequado nas variáveis cognitivas
envolvidas no processo (SHIPSTEAD, 2010).
Em contrapartida, grupos como o da Universiy of York que
também estudam Working Memory and Attention, Language, and
Learning, coordenados pela Dra. Susan Gathercole, defendem que
programas de treinamento cognitivo podem ser aplicados como forma
de intervenção para minimizar problemas de atenção e melhorar a
MT (HOLMES; GATHERCOLE; DUNNING, 2009). E também do
Departamento de Neuropediatria do Karolinska Institute, coordenado
pelo Dr. Torkel Klingberg, ao estudarem crianças com dificuldades e
deficit de atenção e MT, defendem que é possível melhorar os índices
de MT. E o resultado da melhoria influencia também os resultados em
outras atividades cognitivas como, a diminuição do tempo na execução
de tarefas motoras em crianças com TDAH (KLINGBERG et al., 2002;
KLINGBERG et al., 2005; SWANSON; SACHSE-LEE, 2001).2
Mesmo diante de divergências, pensamos que a MT pode ser
melhorada. E por pensarmos dessa forma, filiamo-nos ao grupo que
defende que, a partir de treinamento específico, a memória de trabalho
pode ser expandida dentro de um limite e de um contexto. A MT, como
elemento essencial da nossa cognição, ganhou ampla aceitação como
principal indicador do desempenho acadêmico, profissional e pessoal,
(GATHERCOLE; PICKERING, 2000). E, depois de anos de estudos,
evidências dos resultados de pesquisas e sucesso clínico, efetuados
também pelos dois polos de estudos há pouco referenciados, acreditamos
que o treinamento para aumentar a capacidade de MT é considerado
como um avanço nas pesquisas.
Programas de treinamento cognitivo são aceitos como uma
forma de intervenção para minimizar problemas de atenção (HOLMES;
GATHERCOLE; DUNNING, 2009). Os programas são baseados em um
conceito chamado “formação da memória de trabalho”. Em relação ao
conceito de memória de trabalho adotamos o defendido como “o modelo
2
Outras informações sobre tal posicionamento podem ser encontradas nas publicações
no site: <https://pure.york.ac.uk/portal/en/researchers/susan-e-gathercole(21f554a609c5-4b57-a3a3-d1b870d90be1)/publications.html>.
220
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
multicomponencial” (BADDELEY, HITCH, 1974) e suas atualizações.
Os autores defendem que na verdade a memória de curto prazo constituise de uma parte compreendida como uma memória de trabalho, isto é, um
sistema temporário (também de curta duração) que é capaz de manipular,
processar e manter informações na mente por um curto espaço de tempo
(BADDELEY, 2003).
Em relação ao aspecto da leitura, ou ao ato de ler, pode ser
compreendido e estudado sob diferentes aspectos, pois, em algum modo, é
polimorfo, isto é, o ato de ler pode ser entendido e apresentado de diversas
formas e por diferentes perspectivas teóricas. Como já foi defendido em
Mascarello (2016, p 69) “o estudo aqui apresentado está vinculado e
relaciona-se com os diversos estudos que têm como fio condutor a visão
de leitura como um processo cognitivo complexo, não resumido a um
produto final a ser analisado”. Nesse sentido, parece-nos coerente que
são necessários ou fazem parte do processo das operações cognitivas
interligadas, os movimentos ascendentes e descendentes (que envolvem
aspectos informativos tanto do texto quanto da experiência do leitor)
situados no tempo e no espaço em constante interação. A leitura não é
o produto simples da soma das contribuições do leitor e do texto. Além
desses dois aspectos muito importantes, é preciso considerar também um
terceiro elemento: o resultado proporcionado pelo encontro do leitor com
o texto. Para compreender o ato da leitura, temos que considerar então
“(a) o papel do leitor, (b) o papel do texto e (c) o processo de interação
entre o leitor e o texto” (LEFFA, 1996, p. 17).
Diante dessa possibilidade, de extrair e atribuir significados de um
texto, surgem pelo menos duas ações ou dois modos de posicionamento
diante do ato de ler: um que prioriza os aspectos e processos cognitivos
e entende que a leitura é um processo cognitivo; e outro que prioriza os
aspectos e os efeitos sociais ou de socialização que a leitura possibilita,
entendendo que a leitura é uma prática social.
Na perspectiva das teorias que priorizam os aspectos cognitivos,
em diferentes áreas de estudos, entre elas a área da psicolinguística,
alguns autores que estudam aprendizagem de leitura, por exemplo,
Gough (1976), Souza (2004), Gathercole e Alloway (2006), Scliar-Cabral
e Souza (2011), Souza e Garcia (2012) enfatizam mais os aspectos
referentes ao processamento da informação que os benefícios sociais
da leitura.
Trabalhamos com três hipóteses:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
221
(1) Há relação entre a capacidade de memória de trabalho e o
desempenho em leitura de crianças com idade entre 07 e 09
anos em processo de alfabetização, sendo que, crianças com
maior capacidade de memória de trabalho apresentam melhor
desempenho em tarefas de leitura que crianças com menor
capacidade nessa memória;
(2) A capacidade da memória de trabalho de crianças com desempenho
baixo em leitura pode ser aumentada através de intervenção
específica;
(3) A expansão da capacidade de memória de trabalho de crianças
com baixo desempenho em leitura tem efeitos positivos sobre esse
desempenho acadêmico (MASCARELLO, 2016, p. 28,29).
Em nosso estudo buscamos respostas para as perguntas:
1) Existe relação entre memória de trabalho e os processos cognitivos
de decodificação e compreensão envolvidos na aprendizagem da
leitura por crianças em processo de alfabetização na faixa etária
de 07 a 09 anos de idade?
2) Se existe relação entre memória de trabalho e os processos
cognitivos de decodificação e compreensão envolvidos na
aprendizagem de leitura, crianças com baixo índice de memória
de trabalho apresentam menor rendimento e maior dificuldade no
processo de aprendizagem de leitura?
3) É possível melhorar, isto é, aumentar os índices de memória de
trabalho através de intervenção específica para além do aumento
considerado natural1 que ocorre nesta faixa etária?
4) Qual é o efeito de uma intervenção específica que objetiva melhorar
a capacidade da memória de trabalho em crianças da faixa etária
07 a 09 anos sobre o desempenho em leitura?
5) A expansão da memória de trabalho tem efeito positivo sobre o
desempenho em leitura? (MASCARELLO, 2016, p. 28).
Na sequência do texto apresentamos os aspectos metodológicos,
a análise dos dados e resultados obtidos no estudo.
222
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
2 Método
2.1 Participantes
Para realizar o estudo foram adotadas algumas estratégias
procedimentais, a saber: aplicação de um conjunto de testes com o intuito
de avaliar a memória de trabalho e também testes para verificar estratégias
e rotas de leitura. Foram executados pré e pós testes, intercalados por
um período de intercessão de 10 semanas com o grupo experimental.
Participaram da pesquisa 165 sujeitos, sendo n = 165. A média de idade
dos 165 participantes foi de 7,3 anos no pré-teste e 7,7 anos no pós-teste,
76 participantes são do sexo masculino e 89 são do sexo feminino. Todos
os participantes são estudantes do segundo ano do Ensino Fundamental.
O local da coleta de dados foi em uma escola da rede estadual de ensino,
localizada em Florianópolis, SC.
2.2 Instrumentos
Os sujeitos que participaram e colaboraram com o estudo foram
investigados e submetidos a tarefas que mediram seu desempenho e
capacidade de leitura a partir do Teste de Competência de Leitura de
Palavras e Pseudopalavras (TCLPP) (SEABRA; CAPOVILLA, 2010).3
Esse teste avalia a competência de leitura de itens escritos individuais e
analisa processos de leitura em suas três vertentes: os processos ideovisuais
logográficos, típicos do rudimentar estágio logográfico de leitura por
reconhecimento primário e desprovido de qualquer decodificação; os
processos perilexicais de decodificação grafêmica, típicos do estágio
de leitura alfabético, e os processos lexicais de reconhecimento visual
direto de formas ortográficas familiares, típicos do estágio ortográfico
e sempre acompanhados da capacidade de decodificação já instalada
(CAPOVILLA; CAPOVILLA; MACEDO, 2005; CAPOVILLA;
CAPOVILLA; MACEDO, 2006).
O TCLPP contém 70 itens, sendo dez itens para cada um dos sete
subtestes distribuídos em ordem aleatória, isto é, não são apresentadas
3
Estamos cientes de que tanto os testes de memória quanto os de leitura de palavras
utilizados são passíveis de observações e críticas e que leitura não se limita a reconhecer
e compreender palavras, mas os instrumentos foram julgados adequados considerando
a idade e a escolaridade dos sujeitos e os objetivos do estudo.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
223
na sequência as 10 palavras corretas regulares, as 10 palavras corretas
irregulares, etc. A pontuação máxima é de 70 pontos. Como há duas
respostas possíveis para cada item, a pontuação casual é de 35 pontos
brutos no total do teste e de 5 pontos brutos em cada subteste. Cada item é
composto de uma figura e um elemento escrito. O participante deverá, ao
realizar o teste, circular os itens corretos e cruzar com “X” os incorretos.
Há dois subtestes com itens corretos:
•
•
Palavras corretas regulares (CR) (ex. FADA sob a figura de uma
fada) e
Palavras corretas irregulares (CI) (ex. TÁXI sob a figura de um
táxi).
Há cinco subtestes compostos de itens incorretos:
1.
2.
3.
4.
5.
Palavras semanticamente incorretas, que diferem das figuras às
quais estão associadas, ou seja, vizinhas semânticas (VS) (ex.,
palavra GATO sob a figura de cão);
Pseudopalavras estranhas (PE) (ex., MELOCE sob figura de
palhaço);
Pseudopalavras homófonas (PH) (ex., JÊNIU sob a figura de
gênio);
Pseudopalavras pseudo-homófonas com trocas fonológicas, ou
seja, vizinhas fonológicas (VF) (ex., MÁCHICO sob a figura de
mágico) e
Pseudopalavras pseudo-homógrafas com trocas visuais, ou seja,
vizinhas visuais (VV) (ex. TEIEUISÃO sob a figura de televisão).
Para coletar os dados referentes à memória de trabalho utilizaramse os subtestes de memória da Escala Wechsler de Inteligência para
Crianças (WISC-IV, 2013). Essa escala é considerada um instrumento
clínico de aplicação individual, utilizado para avaliar a “capacidade
intelectual e o processo de resolução de problemas em crianças entre 6
anos e 0 mês a 16 anos e 11 meses” (WECHSLER, 2013, p. 1).
De acordo com o manual de instruções e o manual técnico,
essa escala de avaliação é composta por quatro grupos de atividades
chamados de índices. Cada índice avalia aspectos diferentes de elementos
constitutivos da cognição humana, a saber:
224
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
a)
b)
c)
d)
Índice de Compreensão Verbal (ICV);
Índice de Organização Perceptual (IOP);
Índice de Memória Operacional (IMO); e
Índice de Velocidade de Processamento (IVP).
O ICV é formado por subtestes que se “destinam à aferição
das habilidades verbais por meio do raciocínio, da compreensão e da
conceituação” (WECHSLER, 2013, p. 2). O IOP, índice de organização
perceptual, mede a capacidade que o sujeito tem de se organizar e
perceber seu contexto. O IMO, índice de memória operacional, avalia
capacidade de atenção e concentração e a memória de trabalho em
geral. O IVP, índice de velocidade de processamento, aponta índices de
agilidade mental e processamento grafomotor. A bateria de testes WISC
– IV é composta em sua totalidade por 15 subtestes, sendo 10 principais
e 5 suplementares. Para a aferição da memória de trabalho foi feito uso
dos testes Ordem Direta e Ordem inversa de números, Sequência de
Números e Letras e Aritmética da Escala Wechsler Intelligence Scale
for Children – WISC IV – para medir memória de trabalho. Os testes
avaliam aspectos da memória de trabalho auditiva e visual, discriminação
fonológica e a capacidade de manter e processar informações.
2.3 Procedimentos
Os sujeitos foram divididos em 5 sub grupos. A divisão ocorreu
a partir dos resultados dos dados dos pré-testes comparados aos valores
da padronização estabelecidos pelos mesmos, sendo:
1) Experimental (31 participantes, os que obtiveram baixos índices
nos testes de memória de trabalho e no teste de competência de
leitura de palavras e pseudopalavras);
2) Controle (28 participantes, os que obtiveram baixos índices nos
testes de memória de trabalho e no teste de competência de leitura
de palavras e pseudopalavras);
3) Regular (56 participantes, os que obtiveram índices considerados
dentro da normalidade padrão de acordo com idade e ano escolar
nos testes de memória de trabalho e no teste de competência de
leitura de palavras e pseudopalavras);
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
225
4) WmpobreLn4 (27 participantes, os que obtiveram baixos índices
nos testes de memória de trabalho e índices normais no teste de
competência de leitura de palavras e pseudopalavras);
5) LpobreWMn 5 (23 participantes, os que obtiveram baixos
índices no teste de competência de leitura de palavras e
pseudopalavras e índices normais nos testes de memória de
trabalho) (MASCARELLO, 2016, p.94).
A intervenção, para o grupo experimental, foi realizada a partir da
utilização de um protocolo de intervenção constituído por 17 jogos com
tarefas distintas. Os jogos foram aplicados alternadamente durante um
período de 10 semanas. A duração foi de 35 minutos diários, repetidos 5
vezes na semana. Aqui o leitor pode perguntar-se: por que 35 minutos? É
que em uma aula de 50 minutos só conseguíamos efetivamente trabalhar
com as atividades por cerca de 35 minutos, o tempo restante da hora aula
era ocupado com deslocamento dos estudantes e com a organização dos
grupos na sala de atividades. Os alunos do grupo experimental eram
deslocados de suas salas de aula para uma sala específica. A sala era
previamente organizada e preparada para a realização das atividades. Os
demais alunos, dos outros grupos, permaneciam em suas salas de aula
realizando atividades de rotina. As atividades do grupo experimental
sempre eram realizadas na primeira aula do período vespertino. Alguns
desses jogos foram adaptados a partir de jogos de memória disponíveis online e outros foram jogos criados anteriormente por outros pesquisadores,
ou ainda, jogos clássicos utilizados e adaptados para a aprendizagem
em sala de aula. Os jogos respeitam os aspectos visuoespaciais, verbais,
numérico-verbais e verbais e visuoespaciais ao mesmo tempo.
2.4 Protocolo de intervenção
Nas Tabelas abaixo visualizam-se atividades propostas no
protocolo de intervenção com características, domínios e com a ordem
de realização das atividades.
4
5
A abreviação WmpobreLn significa memória de trabalho pobre e leitura normal.
A abreviação LpobreWMn significa leitura pobre e memória de trabalho normal.
226
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
TABELA 01 – Tabela referente ao protocolo de intervenção
Atividade
Tarefa
Objetivo
Habilidade
requerida
Material
Domínio
Dominó
Aprender as
regras e jogar
dominó
Treinar habilidade
de atenção,
flexibilidade
cognitiva
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
percepção visual
Dominó
tradicional
colorido
Visuoespacial,
articulado pelo
executivo central
Dominó
Adição
Encontrar o
resultado da
soma indicada
Treinar habilidade
de atenção,
memória,
pensamento lógico
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho
Dominó feito
em papel cartão,
(adaptado para
idade e ano
escolar)
Memória
visuoespacial e
atenção; executivo
central
Dominó
Subtração
Encontrar
o resultado
da subtração
indicada
Treinar habilidade
de atenção,
memória,
pensamento lógico
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
raciocínio lógico
Dominó feito
em papel-cartão,
(adaptado para
idade e ano
escolar)
Memória
visuoespacial e
atenção; executivo
central
Dominó
Multiplicação
Encontrar o
resultado da
multiplicação
indicada
Treinar habilidade
de atenção,
memória,
pensamento lógico
Dominó feito
em papel-cartão,
(adaptado para
idade e ano
escolar)
Memória
visuoespacial e
atenção; executivo
central
Dominó
Divisão
Encontrar o
resultado da
divisão indicada
Treinar habilidade
de atenção,
memória,
pensamento lógico
Dominó feito
em papel-cartão,
(adaptado para
idade e ano
escolar)
Memória
visuoespacial e
atenção; executivo
central
Jogo de
memória
Combinar pares
com figuras
e palavras
substantivas
Treinar a
habilidade de
atenção, memória,
viso espacial,
flexibilidade
cognitiva
Figuras e seus
nomes em papelcartão para formar
pares
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Combinar figuras
aleatórias
Treinar a
habilidade de
atenção, memória,
visuoespacial,
flexibilidade
cognitiva
Pares de figuras
em papel cartão.
Memória
visuoespacial;
executivo central.
Combinar figuras
com masculino e
feminino
Treinar a
habilidade de
atenção, memória,
visuoespacial,
flexibilidade
cognitiva
Figuras de
animais indicando
o “gênero” macho
e fêmea; em papel
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Jogo de
memória
Jogo de
memória
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
raciocínio lógico
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
raciocínio lógico
Atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
visuoespacial,
flexibilidade
cognitiva
Atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
visuoespacial,
flexibilidade
cognitiva
Atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
visuoespacial,
flexibilidade
cognitiva
227
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
Quebra
Cabeça 01
Montar a figura
apresentada
através do
encaixe de partes
específicas
Treinar habilidade
de atenção,
memória,
visuoespacial
Quebra
Cabeça 02
Montar a figura
apresentada
através do
encaixe de partes
específicas
Treinar habilidade
de atenção
e memória
visuoespacial.
Jogo palavra
escondida
Montar uma
série de palavras
entre letras
distratoras
Treinar habilidade
de atenção e
memória
Jogo do mico
de sílabas
Desenvolver a
percepção da
sílaba como uma
Montar palavras
das unidades de
a partir da
formação das
organização de
palavras e melhorar
cartelas
a capacidade de
compor e segmentar
palavras
Jogo quebra
palavras
Jogo das
rimas
Jogo
alfabético
silábico
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória
de trabalho,
visuoespacial
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho e
visuoespacial.
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho
Quebra-cabeça
feito em papel
Memória
visuoespacial;
executivo central
Quebra-cabeça
feito em papel,
(diferente do
anterior)
Memória
visuoespacial;
executivo central
Letras e sílabas
impressas em
papel e recortadas
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho
Sílabas impressas
em cartelas que,
combinadas,
formam
substantivos com
a imagem do
referente também
impressa em papel
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Montar e
segmentar
palavras
O principal objetivo
é desenvolver
a consciência
fonológica, de
modo que o
participante seja
capaz de manipular
fonemas de forma
consciente, saiba
compor palavras
pelas pistas dadas
Memória
fonológica,
circuito
fonológico,
memória
visuoespacial e
atenção
Este jogo é
composto por
35 palavras
segmentadas em
letras que formam
140 tiras.
Combinadas,
formam, além
de palavras, uma
paisagem como
plano de fundo.
Em papel
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Combinar
palavras com
rimas
Reconhecer
palavras que
finalizam com
o mesmo som,
saber emparelhar
palavras que
finalizam com o
mesmo som
Memória
fonológica,
circuito
fonológico,
memória
visuoespacial e
atenção
O jogo é
composto por
45 peças que
formam, a cada 3
peças, um cenário.
Impressas em
papel
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico,
executivo central
Formar palavras
e frases
Formar palavras,
formar encontros
vocálicos, formar
pequenas frases
reconhecendo as
palavras
Memória
fonológica,
circuito
fonológico,
memória
visuoespacial e
atenção
Letras impressas
em papel e
recortadas
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
228
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
Jogo das
bandeiras
Jogo da lista
de supermercado
Combinar
bandeiras com
nome do estado
correspondente
Treinar habilidades
de atenção e
memória
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho
Bandeira dos
estados brasileiros
e o nome dos
estados impressos
em cartelas de
papel
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Ouvir palavras
Treinar habilidades
de atenção e
memória
Atenção
difusa, atenção
concentrada,
memória de
trabalho
Atividade oral,
não há material
específico
Memória
visuoespacial,
circuito
fonológico;
executivo central
Fonte: Mascarello (2016). Protocolo de intervenção com características e domínios
mencionados.
TABELA 02 – Realização do protocolo de intervenção
Atividade
1a sessão
2a sessão
3a sessão
4a sessão
5a sessão
1a semana
Dominó +
Dominó adição
Dominó +
Dominó adição
Dominó +
Dominó adição
Dominó +
Dominó adição
Dominó +
Dominó adição
2a semana
Figuras e palavras
(substantivos) +
Jogo dos pares 1
Figuras e palavras
(substantivos) +
Jogo dos pares 1
Figuras e palavras
(substantivos) +
Jogo dos pares 1
Figuras e palavras
(substantivos) +
Jogo dos pares 1
Figuras e palavras
(substantivos) +
Jogo dos pares 1
3a semana
Figuras e palavras
(masc/fem) +
Quebra-cabeça 2
Figuras e palavras
(masc/fem) +
Quebra-cabeça 2
Figuras e palavras
(masc/fem) +
Quebra-cabeça 2
Figuras e palavras
(masc/fem) +
Quebra-cabeça 2
Figuras e palavras
(masc/fem) +
Quebra-cabeça 2
4a semana
Quebra-cabeça 1
Jogo dos pares 2
Quebra-cabeça 1
Jogo dos pares 2
Quebra-cabeça 1
Jogo dos pares 2
Quebra-cabeça 1
Jogo dos pares 2
Quebra-cabeça 1
Jogo dos pares 2
5a semana
Jogo palavra
escondida +
Jogo do mico
Jogo palavra
escondida +
Jogo do mico
Jogo palavra
escondida +
Jogo do mico
Jogo palavra
escondida +
Jogo do mico
Jogo palavra
escondida +
Jogo do mico
6a semana
Jogo quebra
palavras +
Jogo das rimas
Jogo quebra
palavras +
Jogo das rimas
Jogo quebra
palavras +
Jogo das rimas
Jogo quebra
palavras +
Jogo das rimas
Jogo quebra
palavras +
Jogo das rimas
7a semana
Jogo alfabeto
silábico +
Dominó divisão
Jogo alfabeto
silábico+
Dominó divisão
Jogo alfabeto
silábico+
Dominó divisão
Jogo alfabeto
silábico +
Dominó divisão
Jogo alfabeto
silábico +
Dominó divisão
8a semana
9a semana
10a semana
Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras +
Pares 1
Pares 1
Pares 1
Pares 1
Pares 1
Dominó
multiplicação +
Pares 2
Dominó
multiplicação +
Pares 2
Dominó
multiplicação +
Pares 2
Dominó
multiplicação +
Pares 2
Dominó
multiplicação +
Pares 2
Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração +
Lista de
Lista de
Lista de
Lista de
Lista de
supermercado
supermercado
supermercado
supermercado
supermercado
Fonte: Mascarello (2016). Protocolo de Intervenção.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
229
2.5 Análise dos dados
Para a análise e o tratamento dos dados foram utilizados dois
programas de estatística, SPSS e STATISTICA. Do pacote estatístico
SPSS (Statistical Package for Social Sciences) foi usada sua versão de
número 20, e do STATISTICA foi usada sua versão 8.0.
Após a elaboração dos histogramas, foram utilizados os testes de
normalidade de Kolmogorov-Smirnov (K-S) e Shapiro-Wilk (S-W ou W).
Os testes fornecem o valor de prova (valor-p, p-value ou significância),
indicando a medida de grau de concordância entre os dados e a hipótese
nula Ho correspondente à distribuição normal. Quanto menor o valor-p,
menor a consistência entre os dados e a hipótese nula.
Foi também utilizado um teste paramétrico, t (T-tests) de
comparação múltipla para amostras de grupos emparelhados, além do
Newman-Keuls, teste para medidas repetidas. Utilizou-se também a
correção de Bonferroni (Fisher-Bonferroni) para diminuir a taxa de erro
do grupo dos testes aplicados a fim de verificar a significância estatística
das diferenças entre essas medidas dos grupos testados.
Os dados foram submetidos, ainda, a uma análise de variância
(ANOVA), Student-Newman-Keuls a,b para verificar se existe uma
diferença significativa entre as médias dos dados dos grupos experimental
e controle em cada teste, pré-testes e pós-testes. Foi também aplicado
o teste Repeated Measures Analysis of Variance with Effect Sizes and
Powers, Newman-Keuls test do GLM (modelo linear geral) para medidas
repetidas. O GLM segue os mesmos padrões de uma análise de variância.
O nível de significância, ou valor p, preestabelecido é de 5%, p = 0,05.
3 Resultados e discussão
Os quadros 01 e 02 exprimem os resultados gerais obtidos pelos
participantes da pesquisa sem discriminar os grupos a que pertencem. A
tabela 01, por sua vez, apresenta os resultados de desempenho de cada
subgrupo dos participantes em que MT indica a memória de trabalho
(três sub testes) e TCLPP indica os resultados dos testes de leitura (sete
sub testes).
230
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
QUADRO 01 – Resultados gerais obtidos da aplicação dos pré-testes6
Todos os grupos – Estatística descritiva pré-teste
Variável
No válido
Média
Mediana
Mínimo
Máximo
Desvio
padrão
Erro
padrão
WM DG1
165
8,32
9,00
1,00
18,00
2,70
0,21
WM SNL
165
8,79
9,00
1,00
17,00
2,89
0,23
WM AR
165
6,83
7,00
1,00
16,00
2,63
0,20
TCLPP total
165
88,06
84,69
37,61
122,03
16,61
1,29
Leitura CR
165
95,39
101,80
24,86
111,42
17,14
1,33
Leitura CI
165
95,23
94,53
0,00
117,09
17,29
1,35
Leitura VS
165
87,93
89,69
0,00
108,74
21,22
1,65
Leitura VV
165
91,02
92,52
0,00
113,12
19,13
1,49
Leitura VF
165
88,32
88,35
0,00
119,45
20,30
1,58
Leitura PH
165
80,77
85,12
0,00
123,35
29,01
2,26
Leitura PE
165
97,20
97,20
0,00
108,01
24,78
1,91
Fonte: Mascarello (2016, p.119).
6
WM = memória de trabalho; DG = Teste Dígitos (pontuação, mínima 0, máxima 32
pontos); SNL = teste sequência de números e letras (pontuação, mínima 0, máxima 30
pontos); AR = teste aritmética (pontuação, mínima 0, máxima 34 pontos); TCLPP =
teste de compreensão e leitura de palavras e pseudopalavras (pontuação obtida a partir
de 01 a 70 acertos); CR = teste de palavras corretas regulares (pontuação obtida a partir
de 01 a 10 acertos); CI - = teste de palavras corretas irregulares (pontuação obtida a
partir de 01 a 10 acertos); VS = teste de palavras vizinha semânticas (pontuação obtida
a partir de 01 a 10 acertos); VV = teste de palavras vizinhas visuais (pontuação obtida
a partir de 01 a 10 acertos); VF = teste de palavras vizinhas fonológicas (pontuação
obtida a partir de 01 a 10 acertos); PH = teste de pseudopalavras homófonas (pontuação
obtida a partir de 01 a 10 acertos); PE = teste de pseudopalavras estranhas (pontuação
obtida a partir de 01 a 10 acertos). A pontuação dos testes de leitura, seja o TCLPP
total sejam os subtestes, referem-se à pontuação padrão, que, para o segundo ano do
Ensino Fundamental e para a média de idade do grupo, poderiam variar entre 11,63 e
123,65 pontos (no caso de zero é porque não houve nenhum acerto).
231
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
QUADRO 02 – Resultados gerais obtidos na aplicação dos pós-testes
Todos os grupos – Estatística descritiva pós-teste
Variável
No válido
Média
Mediana
Mínimo
Máximo
Desvio
padrão
Erro
padrão
WM DG
165
9,20
9,00
1,00
19,00
2,85
0,22
WM SNL
165
10,05
10,00
4,00
18,00
2,43
0,19
WM AR
165
8,07
8,00
2,00
18,00
2,75
0,21
TCLPP total
165
98,81
100,92
34,36
123,65
15,26
1,19
Leitura CR
165
103,67
111,42
44,10
111,42
11,38
0,89
Leitura CI
165
103,24
109,57
56,94
117,09
12,97
1,01
Leitura VS
165
97,17
99,21
0,00
108,74
16,16
1,26
Leitura VV
165
98,62
106,25
0,00
113,12
16,03
1,25
Leitura VF
165
96,52
94,57
0,00
119,45
17,12
1,33
Leitura PH
165
92,85
90,87
0,00
123,35
19,99
1,56
Leitura PE
165
99,69
108,01
0,00
108,01
15,59
1,21
Fonte: Mascarello (2016, p. 120).
TABELA 03 – Resultados comparados, média de desempenho
Grupo
MT
(Pré-teste)
MT
(Pós-teste)
TCLPP
(Pré-teste)
TCLPP
(Pós-teste)
Experimental
5,83
8,44
70,03
96,23
Controle
5,43
6,21
67,25
76,11
Regular
10,36
10,88
101,79
107,61
WmpobreLn
7,33
8,94
98,45
100,8
LpobreWMn
8,72
9,11
79,6
98,9
Fonte: Mascarello (2016, p. 167).7
A padronização dos testes de memória de trabalho afirma
que valores mais próximos de 5 pontos indicam baixos índices dessa
7
O texto completo da tese com mais informações sobre os dados e com todos os
resultados pode ser encontrado no site: <https://repositorio.ufsc.br/handle/12345678
9/169205?show=full>
232
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
memória e próximos de 10 pontos indica normalidade de desempenho
nessa memória, quanto mais altos os índices mais próximos do conceito
de superdotação (indivíduos com alta capacidade) e quanto mais baixos
indicam incapacidade para preservação e operacionalização da informação.
Em relação a padronização dos testes de leitura, abaixo de 84
pontos indica baixa capacidade para leitura e reconhecimento de palavras
escritas (para o ano escolar e a idade dos sujeitos). Acima de 84 pontos
e quanto mais próximos de 123 pontos indica desenvolvimento normal
(aceito como adequado) para escolaridade e idade.
Podemos observar na tabela 01 que de um modo geral todos
os grupos apresentaram alguma alteração (para mais) nos valores dos
pós testes, entretanto, destacamos os resultados obtidos pelos grupos
Experimental e Controle. Esses grupos apresentaram um resultado baixo
nos testes de memória de trabalho nos pré-testes: o grupo Experimental
alcançou uma média de 5,83 e o grupo Controle 5,43 e, por consequência,
baixo desempenho nos testes de leitura de palavras, 70,03 e 67,25
respectivamente.
Ao observar os resultados, outra constatação é que os participantes
que obtiveram os melhores índices gerais nos testes que avaliaram a MT,
grupo Regular com 10,88 pontos também apresentaram os melhores
resultados nos testes que avaliaram o desempenho geral em leitura 101,79
pontos no TCLPP e em todos os subtestes de leitura.
Segundo Gathercole e Alloway (2008, p.15), “a memória de
trabalho atua como uma ponte temporária entre as ações externas e as
representações mentais geradas internamente nos indivíduos”.8
Considera-se que entre os elementos cognitivos, a memória de
trabalho pode servir como um indicador de desempenho, em especial do
desempenho escolar das crianças. Mascarello (2016, p. 52) relata que “tanto
os estudos de Baddeley (1996, 2000) Baddeley et al. (2011) quanto os de
Gathercole e Alloway (2008) e Dehn (2008) mostram que a aprendizagem
depende de uma boa memória de trabalho.” Outras pesquisas, tais como,
Alloway et al. (2006), Dollaghan et al. (1997) e Weismer et al. (2000),
entre outros, afirmam que a partir da avaliação da memória de trabalho é
possível identificar qual é o potencial ou a capacidade de aprendizagem
de uma criança.
Ao pesquisar crianças em idade escolar, aplicando testes em
três grupos, sendo um grupo com idade entre 6 e 7 anos, outro entre
Working memory [...]and that acts as a temporary bridge between externally and
internally generated mental representations. Tradução do autor.
8
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
233
10 e 11 anos e o terceiro, adolescentes entre 13 e 14 anos, Gathercole e
Alloway (2008), aplicando testes de memória de trabalho e avaliando o
desempenho escolar desses mesmos estudantes nas disciplinas de leitura,
matemática e ciências, as pesquisadoras perceberam que as crianças que
obtiveram baixos índices nos testes de memória de trabalho apresentavam
também baixos rendimentos na escola.
O maior desafio enfrentado em sala de aula pelos estudantes que
apresentam baixos índices na memória de trabalho, segundo Gathercole
e Alloway (2008), é manter ativas na mente as informações suficientes
que lhes permitam completar tarefas. Essa falta de manutenção ocasiona
perdas de informações cruciais e provoca esquecimento de vários
aspectos importantes, como as instruções que estão tentando seguir, os
detalhes do que eles estão fazendo, o passo a passo de uma tarefa difícil
de forma adequada e assim por diante. Quando ocorre uma interrupção
no processamento, o único caminho possível, segundo Gathercole e
Alloway (2006), é começar de novo o processo de entrada de informação
na memória de trabalho.
Para Just e Carpenter (1992), pesquisadores que iniciaram
os estudos sobre as diferenças individuais, defendem a tese de que a
compreensão da linguagem de uma pessoa depende de sua capacidade de
memória e da constituição da sua individualidade, os sujeitos não agem
da mesma forma diante de todos os fatos linguísticos. Para Gathercole e
Alloway (2006), além das reações e das diferenças individuais, defendem
também que a memória de trabalho não é igual em todas as pessoas, e que
o limite dos índices da memória de trabalho não é idêntico em indivíduos
da mesma idade, as experiências pessoais e as características individuais
podem interferir na memória de trabalho, sendo que cada indivíduo tem
uma capacidade relativamente fixa, que pode ser maior ou menor do que
a dos outros. Assim, uma determinada atividade pode ser bem executada
por um indivíduo, isto é, está de acordo com a capacidade de uma
pessoa, mas superior à do outro. Segundo Daneman e Carpenter (1980)
e, posteriormente, Gathercole, Lamont e Alloway (2006), os processos
de memória de trabalho revelam diferenças individuais na capacidade de
aprendizagem. A memória de trabalho será sempre ativada e necessária
quando se deve aprender qualquer informação nova, pois aprendizagem
requer manipulação de informação e armazenamento simultâneo dessas
novas informações processadas.
Os resultados dos dados da pesquisa são condizentes e corroboram
com a literatura e pesquisas anteriores em que crianças que apresentaram
234
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
menor índice na memória de trabalho também apresentaram menor
desempenho em leitura e reconhecimento de palavras. A partir dos
resultados encontrados, parece evidente que quanto mais baixos os índices
de memória de trabalho, maior é a dificuldade de aprendizagem dos
processos de leitura. Com os índices pobres em memória de trabalho, o
desempenho em leitura é afetado de tal modo que interfere nos processos
mais básicos, como a decodificação e a diferenciação dos traços das letras.
Outro aspecto constatado é que a partir da intervenção realizada
com o grupo experimental os resultados dos índices melhoraram
consideravelmente aproximando-se do grupo Regular, passando de 5,83
pontos para 8,44. À medida que o grupo Experimental melhorou os
índices de MT, melhorou também os índices do TCLPP passando de 70,03
para 96,23, o que indica que passaram de baixa capacidade de leitura
de palavras para capacidade normal, isto é, adequada para ano escolar e
idade (diferença estatisticamente significativa). Uma pequena melhora
também foi observada nos outros grupos. A diferença da melhora dos
outros grupos é considerada uma melhora natural do desenvolvimento
infantil (GATHERCOLE et al., 2008), entretanto, tal alteração não foi
identificada como estatisticamente significativa. O grupo Controle, que
não foi submetido ao experimento interventivo continuou apresentando
muitas dificuldades. Os índices de MT continuaram baixos (de 5,43 para
6,21) e as dificuldades em leitura persistiram passando de 67,25 para
76,11, ainda abaixo do mínimo de 84 pontos, ou seja, não alcançaram os
índices satisfatórios e necessários para o ano escolar e a idade.
Ao analisar os dados observa-se a confirmação de que a MT tem
papel crucial e relevante para a aprendizagem de leitura. Os resultados
dos dados obtidos nessa pesquisa são consonantes com os resultados das
pesquisas de Daneman e Merikle (1996). Ao tratar de MT e habilidade de
compreensão da linguagem os pesquisadores verificaram que crianças com
menores índices na MT apresentavam mais dificuldades de compreensão.
Um dos primeiros e principais estudos da área de avaliação de
MT e leitura de Daneman e Carpenter (1980) mostrou que a MT, além
de ser de alta importância para a aprendizagem e compreensão de leitura,
apresenta variação entre os indivíduos. Esse fato tem sido demonstrado
por uma série de estudos subsequentes (ENGLE, KANE, TUHOLSKI,
1999; JUST, CARPENTER, 1980, 1992). Mais de uma década depois
Gathercole e Alloway (2006) defendem e sustentam mesmo ponto de
vista. Ademais, as autoras defendem também que a capacidade de MT
pode aumentar naturalmente com o avanço da idade durante a infância
até o final da adolescência.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
235
Em Mascarello (2016, p. 168), lemos:
Estudos que avaliam habilidades cognitivas, como as baterias
de testes cognitivos, como WISC-IV (2013), também
apontam relação entre memória de trabalho e decodificação de
leitura, compreensão de leitura, compreensão da linguagem,
desenvolvimento vocabular, expressão escrita. Além do WISC-IV,
pode-se observar em testes de Engle (1996); Engle, Kane, Tholski
(1999); Gathercole, Alloway (2008), que defendem o mesmo
ponto de vista sobre o tema referido. Como colocado, segundo
esse enfoque, indivíduos com maior capacidade de memória de
trabalho seriam mais aptos a desenvolver determinadas atividades
propostas no cotidiano escolar ou fora da escola.
Acreditamos que ao aperfeiçoar a MT, aperfeiçoa-se a capacidade
de gerir a realidade, permitindo que se preste mais atenção ao ambiente
em nosso entorno, à ocorrência dos fatos e ao tipo de informação que
circula no tempo e no espaço em que nos encontramos. Todavia, como
não é atribuição da MT gerar inventários para serem guardados, mas sim
conservar de maneira consciente informações necessárias para que ocorra o
entendimento da continuidade do texto (oral ou escrito). E, principalmente,
porque tanto a medida quanto a intervenção para melhorar a MT são
promovidas por ações indiretas, já que, segundo Izquierdo (2011, p. 26)
“[...] a MT não é acompanhada por alterações bioquímicas [...] seu breve
processamento parece depender da atividade elétrica dos neurônios do
córtex pré-frontal”. Por essa razão, não queremos generalizar e categorizar
que a melhoria de todos os índices dos resultados do grupo Experimental
ocorreu exclusivamente pelo protocolo de intervenção executado, ainda que
os resultados estatísticos mostrem uma estreita relação entre tais eventos.
4 Considerações finais
O propósito central pretendido com este estudo, é contribuir com
o debate que vem sendo travado em território nacional sobre os diferentes
aspectos possíveis de serem analisados no ato de ler. Pretendemos também
com esta pesquisa fornecer dados e ampliar a argumentação referente
aos diferentes posicionamentos teóricos demandados e suscitados em
decorrência dos diversos entendimentos do que é leitura e o papel da MT
no desenvolvimento da habilidade de ler. Estamos cientes de que a leitura
236
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
“é objeto de conhecimento e também fonte, isto é, instrumento
necessário para ampliar o conhecimento e meio de aprendizagem.
O processo de aprendizagem de leitura é um processo interativo
(leitor x texto), mas não um processo simples, pois para qualquer
ato de leitura é necessário pelo menos um objetivo, uma meta que
coloque o leitor em movimento, em outras palavras, toda leitura
tem uma finalidade” (MASCARELLO, 2016, p. 182).
Tal movimento demanda, entre outras coisas, uma capacidade
de controle e autocontrole para que ao ler algo se tenha êxito (que o
objetivo proposto seja alcançado sendo ele qual for). O controle e o
autocontrole advêm e relacionam-se à aprendizagem de regras básicas da
escrita e de domínio dos aspectos grafemo-fonológicos, além de outros
conhecimentos necessários que garantam o êxito da realização do ato de
ler, evitando, assim, o desespero advindo do não conhecimento mínimo
que garanta a inserção no universo das letras.
A partir dos métodos adotados e dos testes estatísticos aplicados
para a análise dos resultados dos testes de MT e de leitura silenciosa
de palavras e pseudopalavras dos sujeitos indivíduos colaboradores da
pesquisa, ficou evidente que há uma estreita relação entre a capacidade de
MT e o desempenho em leitura de palavras e pseudopalavras. De acordo
com o argumentado e apresentado nos resultados e na análise de dados,
percebe-se que os sujeitos que obtiveram resultados considerados normais
nos testes de MT obtiveram também os melhores índices nos resultados
dos testes de leitura de palavras e pseudopalavras, e, por sua vez, os
sujeitos com índices mais baixos nos testes de MT apresentaram um pior
resultado nos testes de leitura de palavras e pseudopalavras. Aferiu-se
também que quanto mais baixos os índices de desempenho em MT, mais
altas as dificuldades e menores os índices nos testes de leitura de palavra
e pseudopalavras. Em virtude dessas indicações, entendemos que, para
esse grupo pesquisado, e com as metodologias adotadas para a realização
do estudo, a MT é um elemento ou componente cognitivo indispensável
para o sucesso na aprendizagem de leitura. Os resultados obtidos nesta
pesquisa não parecem resultados isolados, mas, ao contrário, corroboram
os resultados de outras pesquisas (apresentados na revisão de literatura e
na discussão dos resultados).
Diante disso, defendemos que existe relação entre MT e
aprendizagem de leitura e as hipóteses apresentadas no início do estudo
foram confirmadas pelos dados, bem como as respostas obtidas pela
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019
237
análise dos dados às perguntas postas foram satisfatórias. Sem embargo,
o espaço delegado e delimitado para estudos cognitivos, neurocognitivos
e neurocientíficos na maioria das escolas brasileiras ainda é escasso, é
necessário ainda percorrer um longo caminho para que se amplie e se
aprofunde a discussão sobre todos os aspectos dessa relação.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
Halliday’s Mood System: A Scorecard of Literacy
in the English Grammar in an L2 Situation
O sistema de modo de Halliday: um quadro de resultados sobre
o conhecimento da gramática da língua inglesa como L2
Taofeek Olaiwola Dalamu
University of Lagos / Nigeria
lifegaters@yahoo.com
Abstract: It is no gainsaying that English is not only renowned in world affairs; its
hegemony over other languages seems incontestable, and perhaps, unchecked. The
domineering behavior has persuaded an L2 speaker to seek the knowledge of the
language at all costs. It is fascinating to propose that the Halliday’s mood system
could play a vibrant role in the understanding of the structures of English. This basis
inspired the study to elucidate the arms of the mood system as consisting of grammatical
structures of declarative, imperative, and interrogative; semiotic domains of Mood and
Residue; and interpersonal grammatical transposition of MOOD. For a practical purpose,
the study examined ten texts of advertisements processed through the mood system. The
analysis revealed the verbal group as containing the finite and the predicator. Moreover,
in a situation of fusion, both Finite and Predicator shared the verbal functional entity in
terms of tense and natural ‘process’ statuses. Furthermore, Subject, Finite, Predicator,
Complement, and Adjunct (SFPCA) are the components of the declarative, Predicator,
Complement, and Adjunct (PCA) represent the jussive imperative; and SPCAs are
units of the suggestive imperative. The study suggested that the appreciation of mood
systemic sequences could quicken an L2 speaker to a better-cum-fuller understanding
of English grammatical system.
Keywords: English grammar; language acquisition; language learning; literacy; mood
system.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.241-274
242
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
Resumo: Não é novidade que o inglês é reconhecido mundialmente; sua hegemonia
parece incontestável e talvez, sem julgamento. A dominância dessa língua persuade
seus falantes como L2 a buscarem conhecimento sobre ela de todas as formas. É
fascinante propor que o sistema de modo de Halliday poderia ter um papel importante
na compreensão das estruturas do inglês. Essa ideia inspirou esse estudo a elucidar
o papel do sistema de modo, o qual consiste de estruturas gramaticais declarativas,
imperativas e interrogativas; que pertencem ao domínio semiótico de Modo e Resíduo e à
transposição gramatical interpessoal de MODO. Para o estudo dez testos de propagandas
foram processados através do sistema de modo. A análise revelou que o grupo verbal
contém formas Finitas e Predicadores. Ademais, numa situação de fusão, ambos o
sistema Finito e Predicador dividiam a função verbal de entidade funcional em termos
de tempo e processos naturais. Além disso, Sujeito, Finito, Predicador, Complemento
e Adjunto (SFPCA) são componentes de declarativas; Predicador, Complemento e
Adjunto (PCA) representam o imperativo jussivo; e SPCAs são unidades do imperativo
sugestivo. O estudo sugere que a observação de sequências sistêmicas de modo poderiam
agilizar o conhecimento de um aprendiz de inglês L2 do sistema gramatical da língua.
Palavras-chave: gramática do inglês; aquisição de língua; aprendizagem de língua;
letramento; sistema de modo
Submitted on February 10th, 2018
Accepted on June 26th, 2018
1 Introduction
Globalization has made English phenomenal in all facets of
human endeavor. English, as a language, has assumed that status because
of the functions that the world has assigned to it (GRADDOL, 1997).
Functions such as expressive, signaling, argumentative, and descriptive
elevate English in social domains of international law, mass media,
aviation, academic affairs, internet, transfer of technology, etc. On
top of all these, most academic research publications to develop the
environment utilize English very virile, as a channel to propagate new
thoughts and discoveries (SWALES, 1990). Given these responsibilities,
literacy in English seems to have become irresistible to most people most
especially in higher institutions of learning. That means people want to
be knowledgeable in a language that has dominated the world affairs
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243
beyond the rudimental level of alphabetical arrangements to form words
(CRYSTAL, 1997). It interests the people to have the knowledge of how
words are organized in English to produce good sentences that generate
appropriate meanings and functions in global domains (GRADDOL,
1997).
That quest propels people, especially in a second language
(henceforth: L2) situation, to value literacy in English. The L2
environment understands the need to have strong communicative skills
in spoken as well as written English in order to function well in global
affairs as earlier mentioned. It is in that regard that Akere (1998) describes
literacy as entailing;
The acquisition of adequate knowledge of the formal grammatical
features and their functions in the language, and ability to deploy
this knowledge for use in reading and writing activities across
a variety of educational, professional, and social contexts in a
multilingual/multiethnic society in which English is used, as a
second language (p. 16).
The understanding of English at the literate level, according
to Akere, is to possess sufficient abilities of utilizing the grammatical
features of English. The literate level does not only accommodate
acceptable standard in society; it rather communicates appropriately to
the audience of different fields. Besides, the literacy in English bridges
a social gap that multilingual and ethnic issues have probably created.
So, English sometimes can serve as a peacemaker among the people of
diverse social groups, beliefs, and norms, bearing in mind that language
is socio-culturally inclined. Then, to have adequate knowledge of the
grammatical features of English does not only remove the bars of chaos
in clausal nexuses; it is as well as building relationships among the users
of the language.
Perhaps, in every L2 situation, acquiring/learning adequate
knowledge of English poses a problem to those involved in its utilization
due to grammatical rules. Language acquisition cannot be attained
without adherence to its grammatical guidelines (AICKIN, 1693). That
supposed challenge inspires the investigation to consider the Hallidayan
mood system as a contributor to understand the nitty-gritty of the English
language. Nonetheless, there are many studies on subject-specific literacy
in various genres of mathematics, history, geography, media, visual arts
244
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
and sciences (GEROT; VAN LUEWEEN, 1986; LEMKE, 1990; GEE,
1990; MACKEN-HORARIK; ROTHERY, 1991; ROTHERY, 1993;
MARTIN, 1993a, 1993c; UNSWORTH, 1997; CHRISTIE, 1999).
Useful details are in Unsworth (2000, p. 246-259), and Bloor and
Bloor (2004, p. 221-226). Going back to the basis, the mood system
(as further expatiated later) describes the linguistic features of a clause
in appropriate locations and forms. The system classifies the Subject
and Finite as elements of Mood; whereas Predicator, Complement and
Adjunct are devices of Residue. The characterization could influence the
knowledge of the language leading to the user’s proficiency in lexemic
grammatical classes of contents and functions. Akere (1998) explains
that the former belongs to the open system and the later associates with
the closed set of English. The semiotic slots that Halliday assigns to the
different grammatical categories assist teachers, learners, and users of
English to understand the positioning of the facilities in the clause and
the functions that those components perform therein. In respect of that,
the principles of Halliday’s mood system have stimulated the author to
propose that adequate knowledge of the mood system terminologies has
the capacity to influence the L2 to properly understand English. In the
purview of the study, the L2 will be able to avoid haphazard organization
of word classes, which could jeopardize adequate meaning potential
in relation to certain cohesive connections. To achieve this, the writer
exposes readers to the theoretical configuration of the mood system from
purely Halliday’s perspectives. Thereafter, that application predicates
on ten advertisements in order to display the applications of the mood
system on texts. The choice of advertisements rests on, perhaps, the style
of the advertising industry regarding textual constructs.
1.1 Language acquisition and learning
The terminologies of acquisition and learning are two beds of a
fellow. The two concepts are sometimes used interchangeably without
given consideration to certain differences. Notwithstanding, the basis of
such experience relies on the fact that both terms are ways of obtaining
the modus operandi of the grammar of a language. On the one hand,
acquisition refers to a process of gaining the knowledge of a language in a
natural way. Such behavior is in infants, which is a gradual developmental
process from being babbling to speaking the language. The speaking
attitude is innate, on the ground, that it begins with a child from the sound
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245
production known as cooing to holophrastic and to two-word stage, which
observations report to begin from six months to barely two years of age.
At that stage of two to three years, McLaughlin (1978), and Gabig (2013)
argue that a baby begins to produce the telegraphic speech, perhaps,
with the assistance of caretaker speech (ANDREWS, 1991; GRÜTER,
2014). After that stage the procedures of language acquisition become
that of a child. At that point in time, Yule (1996) emphasizes, a child
is at liberty to acquire the language on his/her own freewheel. This is
accompanied with personal abilities to deploy both morphological and
syntactic variables with necessary semantic implications.
On the other hand, learning a language seems not to occur at
infancy unlike acquisition. So, the course of accumulating language as
mathematics, physics, etc. in school is accountable as learning. Learning
is deliberate and not innate; as it might be artificial, so, learning requires
the assistance of a tutor. These factors might pose some constraints
to learners of different age grades. The operation occurs through
tutorials most times and not through maternal or paternal practices. The
adaptation of adult tongue to the pronunciation of certain sounds of
the new language, as Widdowson (1978, 1983) remarks, is somewhat
provocative. The age barrier, for instance, above the age of puberty, is a
constraint to the language learning process because of what Brown and
Yule (1983), and Rogers (2017) call brain lateralization. The lateralization
enhances loss of flexibility to learn the qualities of the novel language
(MÅRTENSSON, 2007). Apart from slow learning, which Brown (1973),
Krashen and Terrell (1983) claim that takes place at the optimum stage
of eleven, twelve to sixteen, the embarrassment of peers through selfconsciousness serves as a huddle to learning a language (also in ASHER;
GARCÍA,1969; COLLIER, 2006). It is the explications, mentioned
above, that one might say differentiate the acquisition of a language
from its learning counterpart. The former indicates the first language
acquisition of the mother tongue (henceforth: L1). The later demonstrates
the learning of a language by the L2.
In all these, the study has created a harmony by freely utilizing
the terms without any constraints on the basis that acquisition and
learning seem not to have a strong semantic border of elongated social
parameters. In language use, to acquire and to learn are synonymous.
However, in learning the English grammar, acquisition apparatuses
such as grammar-translation procedure, direct methodology, and audio-
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lingual methodology have been employed. The use of dictionaries and
communicative approaches, as teaching aids, support the learning of a
language. As Yule (1996) suggests, common errors of the L2 in using
English ought to be tolerated because of the interference of the mother
tongue; the development of interlanguage could be counted as a necessity
for the development of a probable new language emergence (also in
RICHARDS, 1974; CHAMBERS, 1995; TARONE, 2001). Then, one
could reiterate that the appropriate knowledge of the mood system of
English if well taught and understood in classrooms (HOWATT, 1984)
has the strength to right some wrongs in the syntactic organizations and
semantic abstractions of the clause.
1.2 Sensitivity of SFL to language acquisition/learning
Choice is phenomenal in Systemic Functional Linguistics (SFL)
because of a very strong relationship that the theory has with meaning
potential derivatives. By choice, the study refers to the selection of
certain lexicons in a particular socio-cultural context to communicate
messages to recipients (DALAMU, 2017b). That is made possible
owing to the remark of Bloor and Bloor (2004) that language consists
of a set of systems, which offer a person an unlimited choice of ways of
creating meaning. Meaning, based on that description, is central to any
choice that a language user makes at any point in time (THOMPSON,
2014). No human being is born with language that is why a new born
babe is incapable of speaking a language at the very point of birth. The
language that human beings speak is first acquired after some years of
birth (PAINTER, 1984). The learning of another language, perhaps,
begins from adulthood. The stages of acquisition and learning might have
persuaded Perret (2000) to attest that the study plans of a child language
as accommodating certainty and that of adult as encircled with elements
of uncertainty due to the learner’s abandonment, fossility, time taking, etc.
A child makes choices in language acquisition at different
levels of his/her age, as earlier stated. The choices, one could assert, are
‘grammatical.’ It is suggestible, then, that the choices of a child language
can be drawn into systemic networks as that of the adult language,
illustrated in Figure 1 below. On that ground, the protolanguage or
telegraphic language has forms, organizations and semantic implications,
as Halliday (2003a; 2003b) explains that acquisition is common to all
children in exception of socially impaired ones. Thus, a child language,
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247
in the standpoints of Painter (2000) and Christie (2002), is coherent in
all social contexts. As a child produces coherent texts so does an adult in
language production, which is more coherent. The language has cohesive
ties most especially in the L1 situation. However, the connections in the
L2 atmosphere cannot also be compromised for reasons of maturity,
analysis as well as appropriate meaning derivatives.
In that regard, SFL constructs choice in the language of adults
not only from a social perspective but also from the selection of
linguistic facilities that build a structure of meanings. The relevance of
SFL, concerning the concept of choice, is unwavering. Eggins (2004)
submits that ‘formal grammatical approaches tended to prioritize the
description of syntagmatic relations while functional grammatical
approaches tend to prioritize the description of paradigmatic relations’
(p. 193). In consonance with Eggin’s comparative argument, SFL
provides explanations for the vertical axis of texts; yet, it does not neglect
the chain linearity that produces meaning. The axis of choice produces
the axis of chain as interpreted in this study (KRESS, 1981, p. 4), as
shown in Figure 1 below.
FIGURE 1 – System and structure of adult language (DALAMU, 2018a)
From Figure 1 above, the language dimension could be viewed
from two perspectives as Kress argues that ‘The system network is the
248
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
grammar’ (KRESS, 1981, p. 3). The system operates in the Paradigmatic
Order that produces the sequential linearity of the Syntagmatic Order.
The Syntagmatic Order is of the horizontal axis, which refers to ‘what
goes together with what’ (BARTHES, 1967, p. 58-59; HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004, p. 22). In contrast, the Paradigmatic Order is
of the vertical axis and refers to ‘what goes instead of what’ (p. 23). To
associate with the claim of Halliday and Matthiessen that ‘the grammar
of a language is represented in the form of system network’ (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004, p. 22; also in MATTHIESSEN, 1993, p. 230),
the nexuses (morpheme, word, group, and clause) are connected to the
Syntagmatic Order in a linear sequence. The Paradigmatic Order is shown
through the linguistic elements of markedness, tense, polarity, etc. in a
vertical order. That means, the nature of choice in language offers infinite
applications as human beings communicate daily for different purposes
(GREGORY; CARROLL, 1978, p. 76). Out of these options, the study
has considered the mood system from Halliday’s (1995) insights to
propagate literacy in English to an L2.
1.3 Halliday’s mood system
Language, in the perspective of this study, is a means of
communication between, at least two people. It is in that regard that one
could consider that the main purpose of communication is to interact in
order to enact meaning. Probably that view has influenced Kress and
van Leeuwen (2003, p. 5) to argue that language cannot be viewed as
a one-way system if a comprehensive analysis is going to be attained.
Language seems to operate mutually between a speaker and the audience
or a writer and the audience to exchange meaning. Ravelli (2000, p. 44)
reports that ‘Every act of communication is always an interaction.’ The
interaction at any point in time seems to have contents. The content may
be for the purpose of influencing the character of a particular personality.
It may be to provide information for somebody. The content of language
choice may also be for the purpose of explaining things to somebody, etc.
As mentioned earlier, the Interpersonal Metafunction provides insights
into how to analyze and realize meaning from the exchange produced
by the interactants. The concept, Interpersonal Metafunction, has been
seen as a tool for explaining this aspect of ‘lexicogrammatical’ system
in a textual interaction. In relation to interpersonal social interaction,
Ravelli (2000) observes that:
249
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
Language… constructs and conveys some kind of interpersonal
relationship… the relevant contextual variable here is Tenor – the
role relationships relevant to the situation of the content. The Tenor
of the situation reflected in and constructed of the interpersonal
meaning of the text: what kind of personal relationship is
constructed between the interactants in the situation, the attitudes
and opinions expressed, the degree of formality or familiarity and
so on (p. 44).
The Interpersonal Metafunction, in consonance with Ravelli’s
(2000) claim, is concerned with the interaction between the speaker and
listener(s). It is a grammatical resource for enacting social roles in general,
and speech roles in particular, in dialogic interaction for establishing,
changing and maintaining interpersonal relations. Halliday and Matthiessen
(2014) explain that the speech functions of the Interpersonal Metafunction
are meaningfully interconnected, as shown in the map below.
FIGURE 2 – Mood semantic resources (THOMPSON, 2004;
HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014)
Speech Functions
Give
α1
θ1
[M]
Statement
constitutive
(Proposition)
Initiating
Role
β1
θ2
Question
Demand [N]
α2
δ1
Offer
Information [Y]
ancillary
(proposal)
Commodity
Goods-&services
[X]
β2
δ2
Command
From the diagram in Figure 2.2 above, there is an indication of
overlapping functions within the concepts. The ancillary portion covers
the modulated interrogative and the imperative. The constitutive occupies
a space for the declarative and interrogative clauses. The interrelationships
come up where the modulated interrogative and declarative, as objects
of offer and statement are employed by a speaker to give invitation to
the audience to receive something (DALAMU, 2018b). The writer also
250
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
observes that the speaker deploys the imperative and interrogative to
demand goods and services and information from the audience.
From the foregoing, one could infer that there are distinctive
factors, as Eggins (2004) argues, which explain interpersonal
communication. These are known as fundamental speech roles that lie
behind communicative interactions. Halliday (1994) recognizes speech
roles, as ‘giving’ and ‘demanding’ (good & services or information) as
demonstrated in Table 1 below for further explications.
TABLE 1 – Basic speech roles (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014)
Role in exchange
Giving
Demanding
Commodity exchange
(a)
Goods-and- services
(b)
Information
Offer
I'll help you out.
Command
Listen to him.
Statement
We are nearly there.
Question
Are you considerate?
The clauses in Table 1 above indicate that ‘Listen to me’ in
associated with the ‘imperative clause’ demanding goods and services
from the decoder. The remaining three ‘We are nearly there. Are you
considerate? I’ll help you.’ are reflections of ‘indicative clauses’ giving
information, and goods and services to the listener.
In Halliday’s (1994) sense, the speaker is either giving a piece
of information to a listener or the person is demanding something from
an individual. Halliday (1994, p. 68) refers to ‘giving’ as ‘inviting to
receive’, and ‘demanding’ as ‘inviting to give’. It seems that the speaker
is not only doing something but also requiring something of the listener.
Halliday further argues that, “…typically, there is an ‘act’ of speaking...
something called ‘interact’: it is an exchange, in which giving implies
receiving and demanding implies giving in response” (HALLIDAY, 1994,
p. 68). Halliday and Matthiessen (2014) label the four speech functions
as; offer, command, statement, and question. They further submit that in
Interpersonal Metafunction, the principal grammatical system is that of
Mood. The Mood is a technical term and does not have any relationship
with everyday use of ‘mood’ i.e. a human feeling at a point in time
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 106-108).
In respect of that, it necessitates that one deduces the important
things from the mood system relevant to literacy in the L2 setting. First, the
251
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grammatical Moods are matched with the speech functions of declarative,
imperative, interrogative and modulated interrogative (EGGINS, 2004, p.
153). The speech functions demonstrate the participants’ contributions in
the role relationship goings-on. Second, the grammatical Mood identifies
the relevant structure in the system. Thompson (2014) argues that the
Mood system could be complex and some part intrinsic. However, the
Subject is a nominal group and the finite is part of a verbal group of the
clause. The finite is the operator in the clause (THOMPSON, 2004, p.
49). In Thompson’s submission, the third aspect is the variants of mood in
Systemic Functional Theory. Mood, with its ‘M’ is realized in the analysis
of an independent clause as Subject + Finite. So, the functional logicality
of mood in the Interpersonal Metafunction could be expatiated thus:
MOOD = grammatical transpose; Mood = Subject + Finite; and mood =
grammatical structures – declarative, interrogative, and imperative. Figure
3, below, expounds information of mood system in a graphical network.
FIGURE 3 – Halliday’s Mood system network of English
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004)
Nominal Group
Subject
Clause
Mood
Tense
Do
Be
Have
Modality
Modalization
Modulation
Finite
Interpersonal
Metafunction
[MOOD]
Fused
Elements
Residue
Predicator
Complement
Adjunct
Polarity
[Negative]
Indicative
Declarative
[Subj ^ Fin]
Interrogative
Imperative
Imperative
Jussive
Suggestive
[Let's]
Positive
Negative
Yes/No
[Fin ^ Subj]
Wh[Wh; Wh ^ Fin]
mood
Unmarked
[x ^ Predicator - intrinsic ]
Marked
[Subj ^ Predicator]
[Adjunct ^ Predicator]
252
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
The system network above indicates two types of mood. The
first mood exemplifies the core ideas of the constituent of a clause that
contains the Subject, Finite, Modality, Fused Element and Residue. The
second mood illuminates the type of clauses as illustrated below. It is
argued that:
It is usually relatively easy to identify the Subject, and only a little
less difficult to identify the Finite, but in cases of doubt (at least in
declarative clauses) we can establish exactly what the Subject and
Finite of any clause are by adding a tag question (THOMPSON,
2004, p. 50).
From Thompson’s view, it is clear that some analysts may
encounter some challenges in the area of its Finite’s identification. It is
shown that the Finite is the first functional element among the verbal
group. It is most easily recognized in yes/no questions, since it is the
auxiliary, which comes in front of the Subject. In few occasions, as earlier
emphasized, the Finite is ‘fused’ with the lexical verb (THOMPSON,
2004, p. 49).
Fourth, the Residue relates to recipients other functional elements
of the interpersonal metafunction. These are: Predicator, Complement
and Adjunct. The illustration in Figure 4 appreciates the resources of
Residue in the clause.
FIGURE 4 – Systemic resources of Residue (BLOOR; BLOOR, 2004)
Predicator
Residue
Complement
Adjunct
-ing
-de2; -en
-en; -ing
have + en +ing
have + en + ing + en
direct object
intensive
indirect object
NG
circunstantial
Prep G
conjunctive
modal
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
253
Although there is a separation of the Finite and Predicator, as
illustrated in Figure 3 and Figure 4, the two elements are resources of
verbal group (VG). Except in a circumstance where operational fusion
of verbs represents the present and past tenses, the first element of VG
realizes the finite operator, while the remaining component functions
as the lexical stem (THOMPSON, 2014). The Finite demonstrates the
agreement of person and number as well as negative polarity. Predicator
realizes the lexical verb. That has made Predicator significance in
all major clauses. Complement is realized by a nominal group (NG),
occurring in the forms of direct object, intensive, and indirect object.
It is on that basis that Berry (1975) argues that Complement answers
the question, who, whom or what? Bloor and Bloor (2013) elucidate
Adjunct from an etymological point of view that it is something joined
to another thing. As optional clause resources, there are circumstantial,
conjunctive, and modal adjuncts realized by adverbial or propositional
phrases. Nevertheless, in a case where an adverb or a preposition serves
as the marker, the NG is most times functional to support the Adjunct
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014).
A linguistic theory is about application. That means the
significance of a theory rests on its diverse applications to solve some
problems of human beings. Halliday (1994) attests to that by articulating
a theory as leaning toward the applied rather than the pure, functional
rather than the formal. It is the same orientation that Halliday (1985, p.
7) adds that ‘The value of a theory lies in the use that can be made of it,
and I have considered a theory of language to be essentially consumeroriented’ (also in BLOOR; BLOOR, 2004, p. 231). Halliday’s claims
persuade the author to consider the application of the mood system to
advertising texts. The choice of advertising text, as mentioned earlier, is
based on the deliberate choices that publicity experts deploy to sensitize
consumers in order to patronize commodities. The intention underlying
the construct of such texts can position the functional elements as useful
resources in learning the structures of English.
254
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
2 Methodology
2.1 Participants
Two people – Bonke and the researcher-author – participated in
this study. The involvement of the second individual became a necessity
in order to smoothen the advertisements’ collection process. Bonke, a
35 year old lady, assisted in driving the author round some streets in the
Lagos metropolis. The engagement of the lady anchored on her dexterity
in mastering the streets of Lagos as most billboards are placed in critical
areas of the city. Her familiarization with the researcher and consistent
cooperation stimulated the choice of the individual to partake in the data
collection procedures. The choice of collecting some advertisements in
Lagos was based on the fact that Lagos is Nigeria’s commercial nerve
center that attracts communications of institutions.
2.2 Instruments and design
Three separate electronic devices functioned in the collection
procedures of the advertisements. These are: a Samsung® WB50F
camera, an Etisalat® Internet modem and an hp® laptop. The researcher
utilized WB50F camera to capture advertisements in billboards and the
Punch newspaper while both the modem and the laptop assisted the
data collector to download advertisements from the Internet. The idea
of collecting the data from three domains was to ensure the gathering of
a quantum of advertising resources very relevant to the study. In all, 30
advertisements were collected as the population. Through a sampling
method, the advertisements were stratified into 10 parts in order to make
appropriate choices from the advertising communications.
2.3 Procedures
The researcher, as exemplified above, divided the population
of 30 advertisements into 10 sub-groups, where one advertisement was
selected from each stratum. Thus, 10 advertisements operate in the
study, as the subjects of analysis. The motivation for the choice of the
subjects rested on the organization of the grammatical components of the
advertisements, the kind of clauses that the communications produced,
and the semantic implication of the textual constructs. In addition, the
choice of the texts is with the assumption that advertising employs texts
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
255
with freedom in relation to the poetic license of the industry. That, the
author believes could provide readers variegated nature of texts’ utilization
in the advertising workshop without probable checks. One could also
reiterate that Bonke’s acquaintance with the author, mutual solidity, and
common-ground firmness made the advertisements’ collection a fun of
sort. A token of ₦10, 000. 00 (Nigerian currency) was paid to the second
participant anytime we went out for data collection activities. Although
the compensation was not the actual charges; the payment was meant for
fueling the vehicle and personal maintenance for a moment.
As presented below, as well as illustrated in Figure 5, the texts
from 10 different advertisements were considered with the application
of the Halliday’s mood system. The author appreciates the mood system
as topical and conceptual so that an example of its application could be
generated, as a choice that enhances learning possibilities of English. To
expound the plausibility of the theoretical scope, as an entity that helps
to report the frequency of each linguistic element in the semiotic slot
(LEECH; SHORT, 1981), the investigation has employed tables and bar
chart to account for the values of the analyzed sub-units. It is based on this
report that the discussion becomes effective by giving consideration to the
nature of the clause as well as the intertwining grammatical sequences.
Of importance are the symbol ‘®’ and the notion ‘TEXT.’ The former
annotates a registered company/product; while the latter denotes textual
strings in the advertising plates.
2.4 Data presentation
This study displays the textual structures of the 10 advertisements
thus:
TEXT 1: //Enjoy 205% #RealBonus on your recharges to call all
networks.//
TEXT 2: //Seize the Holiday.// Here’s a lineup of interesting stories
from our 635 blog for your reading pleasure.//
TEXT 3: //Just grow.// Something you don’t have to walk before you
fly.// Zero COT account.//
TEXT 4: //Nothing prospers without work.// May your work always
bring you prosperity.// Happy Workers’ Day from all of us.//
TEXT 5: //Art is not just what you see //but what you feel.//
256
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TEXT 6: //Let’s celebrate our winning spirit.//
TEXT 7: //Unity Bank celebrate Nigeria at 55.//
TEXT 8: //Spread the love this season.// Send MTN data gift to friends
and family.//
TEXT 9: //The opportunity to create a better tomorrow starts with
them.// Happy Children’s Day.//
TEXT 10: //The future is bright.// Reach for Peak.//
2.5 Data analysis
The figure below indicates the applications of the mood system
to the structures of English.
FIGURE 5 – Analysis of the organs of the mood system
TEXT 1 Enjoy
Predicator
Residue
25%#RealBonus
Complement
TEXT 2 Seize
Predicator
Residue
the Holiday
Complement
on your recharges
Adjunct
Here
Subject
Mood
TEXT 3 Just
grow
Adjunct Predicator
Residue
always bring
Adjunct Predicator
Residue
what you see
for your
reading pleasure
Adjunct
don't have to walk before you fly
Finite Predicator
Adjunct
without work
prosper: Predicator Adjunct
Residue
Happy Workers' Day from all of us
Adjunct
Minor Clause
Residue
ood
a lineup stories from our
635
Finite Complement
Adjunct
Residue
Residue
TEXT 4 Nothing prospers
Subject present: Finite
Mood
May your work
Finite Subject
Mood
's
Something you
Complement Subject
Mood
Zero COT Account
Complement
Residue
to call all networks
Adjunct
you prosperity
Complement
257
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TEXT 5 Art
Subject
Mood
is not just
what you see
Finite Adjunct Complement
Residue
but what
you
Conj Adjunct Subject
Residue Mood
TEXT 6 Let's
Subject
Mood
celebrate
Predicator
Residue
feel: Predicator
Residue
our winning spririt
Complement
TEXT 7 Unity Bank celebrates
Subject
present: Finite
Mood
TEXT 8 Spread
Predicator
Residue
feel
present: Finite
celebrate: Predicator
Residue
the love
this season
Complement Adjunct
Nigeria
at 55
Complement Adjunct
Send
Predicator
Residue
MTN data gift to friends & family
Complement Adjunct
TEXT 9 The opportunity to create a better tomorrow starts
Subject
present: Finite
Mood
start: Predicator
Residue
with them
Adjunct
Happy Children's Day
Minor Clause
TEXT 10 The future
Subject
Mood
is
bright
Finite Complement
Residue
Reach
Predicator
Residue
for Peak
Adjunct
The multifaceted applications of SFL (CHRISTIE; UNSWORTH,
2000; BLOOR; BLOOR, 2004) have made it possible for the theory
to be a resourceful device in interdisciplinary domains. As such, SFL
accommodates resources of other disciplines to thrive along with them.
Therefore, the study could illustrate the claim by allowing technological
tools of the table and graph, following Dalamu (2017c), to assist in
reporting the frequency (TYLER, 1994) of the mood systemic elements
shown in Figure 5 above. In that regard, as an L2 recipient is learning
the organs of English clauses exemplified through the mood system the
individual is also understanding SFL as an ‘axe’ that breaks in pieces
linguistic elements into exponential values as shown in the results below.
258
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
3 Results
Table 2 and Figure 6, below, compute the recurrent grammatical
components of the texts of the 10 advertisements analyzed in Figure 5
above.
TABLE 2 – Calibration of the mood system devices
Mood System Text 1 Text 2 Text 3 Text 4 Text 5 Text 6 Text 7 Text 8 Text 9 Text 10 Total
Subject
0
1
1
2
2
1
1
0
1
1
10
Finite
0
1
1
2
2
0
1
0
1
1
9
Predicator
1
1
2
2
1
1
1
2
1
1
13
Complement
1
2
2
1
1
1
1
2
0
1
12
Adjunct
2
2
2
3
1
0
1
2
1
1
15
Minor Clause
0
0
0
1
0
0
0
0
1
0
2
Figure 6 translates the calibration in Table 2 to a table and bar
chart to illustrate the recurring capacity of the mood system facilities.
FIGURE 6 – Recurrence of Mood system devices
There are three clear segments in Figure 6. That is, Mood, Residue
and Minor Clause. Actually, Minor Clause is not part of the mood system;
it is ‘sets’ in English. The inclusion of the Minor Clause only assists in
accounting for the element, as being functional in the communication
structures. The frequency of Mood is 19. Subject accounts for 10; while
Finite records only 9. The second part is the Residue with a frequency
of 40 times. In the structural domain, the contribution of Predicator
is 13, Complement is 12, and Adjunct is 15 on the graph. On the one
hand, Subject records the higher value in the Mood. On the other hand,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
259
Adjunct provides the highest value in the sphere of Residue. However,
the operational values of Adjunct and Predicator are the highest in all
the mood systemic devices. It refers that Adjunct and Predicator are
the commonly deployed facilities in the advertising texts considered as
samples. For an L2, one could quickly remark that Predicator appears
as a norm in most communicative constructs in exception of punctuated
components; its identification could augment a smooth learning
procedure.
4 Discussions
As the study focuses on an L2 situation, it becomes imperative
to state that the discussion offers explanations to the analysis from three
distinct perspectives. Having stated earlier in the theoretical review that
the mood system nuances comprise the Mood (as Subject + Finite),
MOOD (as the grammatical transpose of Interpersonal Metafunction),
and mood (as the grammatical structures of the clause), in that light, the
analyst provides explanations to the nature of the clause in the texts.
In addition, the offering of the discussion examines the mood system,
represented as MS, in the texts in relation to the residual devices, and how
the structural organization could assist a learner of English in securing the
knowledge of the second language especially in higher institutions. This
has also been made possible by occasional referential interconnectedness,
for instance, of TEXT 6 and TEXT 7.
TEXT 1
260
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
The grammatical structure of TEXT 1 is imperative, functioning
as command. It has enjoy as Predicator accompanied with Complement,
25%#RealBonus and two Adjuncts. The Adjuncts – on your recharges and
to call all networks – are circumstantial communicative devices. All these
elements flourish in the realm of Residue. Predicator, enjoy, is the central
functional facility of the clause because the constituent points recipients
to a particular event. That is, 25%#RealBonus, which is nominal group
(NG) in the domain of Complement. The two circumstantial Adjuncts
have on and to respectively as markers, qualifying the segments as
prepositional phrases. Apart from the Complement, the significance of
the NG is also obvious here. The NGs concretize the Adjuncts, as being
prepositional phrase. The imperative clause of TEXT 1 directs recipients
of the message to get engaged in the RealBonus for their satisfaction at an
enhanced place and degree. MS = Predicator + Complement + Adjunct
+ Adjunct (PCAA).
TEXT 2
Seize the Holliday in TEXT 2 is imperative that accommodates
Seize, Predicator and the Holliday, Complement. The verb, Seize,
functions as Predicator that enjoins readers to take advantage of an
opportunity that the day provides for individuals. The seizure is on the
Holliday as an intensifier. To this end, Holliday operates as an intensive
Complement. The second clause, Here’s a lineup stories from our 635
for your reading pleasure, is a declarative. The structure offers a general
statement on how readers will spend the Holliday with a lineup of stories,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
261
which is Complement. Here as ‘dummy’ Subject serves as a pointer
referring the public to the plan of GTB® for the Holliday. The component
further creates a locative setting. ‘S is the Finite of the clause with two
Adjuncts from our 635 and for your reading pleasure. Both Adjuncts are
circumstantial devices of purpose placed in the fields of prepositional
phrase. MS + Predicator + Complement (PC); MS + Subject + Finite +
Complement + Adjunct + Adjunct (SFPAA).
TEXT 3
There are imperative and declarative clauses in TEXT 3. The
imperative Just grow is a combination of Adjunct, Just and Predicator,
grow. The semantic implication is a reference made to a crawling child
in the advertisement’s frame to ensure that the individual develops in a
simple way. It is a sort of encouragement, where clause two, Something
you don’t have to walk before you fly, expatiates the Subject, you, as a
pointer to the child. In that same Mood section, don’t operates as Finite.
Don’t is a primary modal verb in negative polarity, as an indicator of
objection to the Predicator, have to walk. Have is another modal verb,
accompanied with a lexical verb in its ‘to infinitive’ form. The information
of the declarative is joined with Adjunct. That is, before you fly, which
represents a prepositional phrase. Before you is a circumstantial device
of time, answering a question ‘when?’ Before is a prepositional marker
of the Adjunct. The third component is an elliptical construct of NG. The
262
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
study places the component as Complement because of the information
that Zero COT Account provides in the plate. MS = Adjunct + Predicate
(AP); MS = Complement + Subject + Finite + Predicator + Adjunct
(CSFPA); MS = Complement (C).
TEXT 4
The three clauses in TEXT 4 consist of two declaratives and a
minor clause. First, Nothing prospers without work is an embodiment of
Subject, Finite, Predicator, and Adjunct. Nothing, as Subject, pinpoints
inconsequential entity. The structural constituent demonstrates emptiness.
The ‘process’, prospers, is fascinating because it is a fused element of
two pieces of information – of Finite in the present form and Predicator in
the zero verbal lexical level. The dual operations of the verb in its natural
level seem to exhibit a distinction of SFL. The division of prospers into
Finite and Predicator promotes the beauty of SFL ‘dicotomizing’ the
verbal group into several variants, most especially, of the past and the
present. The circumstantial Adjunct of without work is a prepositional
phrase, indicating accompaniment in a negative way. Without work, as
used in the clause, extends the message of the Mood.
Second, May your work always bring you prosperity sounds
prayer-like, else, one could have tagged the linguistic structure as an
interrogative clause on the ground that it begins with the Finite, May,
followed by the Subject, your work. The reversal is quite unlikely in
declarative clauses. Nonetheless, in the corridor of spirituality, it is a
declarative statement of exhortation. Always is a modal Adjunct for it
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
263
functions in the domain of the clause Mood. You prosperity is what the
author could label as a compound Complement. This is on the basis that
it is a combination of direct object, you, and indirect object, prosperity.
The message sensitizes readers to hard work, as the authentic means
of getting rich in life. Third, Happy Workers’ Day is a minor clause
seconded with a prepositional phrase. Although, minor clause is not
analyzable, the analysis separates the Adjunct out of it to show the
source of the information. From all of us is a locative tool of a place.
The structure assists recipients to pinpoint where the message comes
from. The analysis of the circumstantial Adjunct supports a claim that
if a minor clause cannot be investigated, any residual element around
its configuration can be (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). MS =
Subject + Finite + Predicator + Adjunct (SFPA); MS = Finite + Subject
+ Adjunct + Predicator + Complement (FSAPC); MS = Minor Clause
+ Adjunct (Minor A).
TEXT 5
TEXT 5 contains a complex clause. In SFL courtesy demands that
clauses must be considered in their simple forms. Thus, the analyst has
segmented the complex units into simple clauses of Art is not what you
see; but what you feel. Art and is not are Subject and Finite respectively
in the present formation. Just is a modal Adjunct for the part occurs in the
Mood domain. What you see could have been a separate clause unit; yet,
264
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
as it functions, the arrangement is Complement in the adverbial group.
What is the marker-cum-adverbial that introduces the Complement.
The second, but what you feel, is a bit similar to the first.
Nonetheless, the introduction of Conjunction, but, in its paratactic stand
demarcates the function of what in the first clause from the second one.
The linker, but, introduces the second clause to negate the activity of the
Complement in the first clause. As a result, what, as an adverbial, operates
as Adjunct to the Mood, expressed as Subject, you and Finite, feel. The
position of feel in TEXT 5 equates that of TEXT 4. Feel indicates the
‘presentness’ of Finite as well as the neutrality of the lexical verb, feel,
serving as Predicator. Therefore, the message demonstrates not just a
degree of perception, but also a great sensibility, appealing to readers’
emotional statuses. MS = Subject + Finite + Adjunct (SFA); MS = Adjunct
+ Subject + Finite + Predicator (ASFP).
TEXT 6
Despite that the clause in TEXT 6 has a Subject, its grammatical
condition remains as imperative. Once in a while, an imperative clause
can have Subject. In that case, a commanding grammatical structure with
Subject is known as ‘suggestive’, while the ordinary imperative is called
‘jussive’ (THOMPSON, 2014). Given that, Let’s, in TEXT 6, functions
as a suggestive component. The structure is not only suggestive; it is
as well as exhibiting subtleness of gentility of the narrator. The invitee
which is Conoil®, perhaps, decides to avoid a commanding tone at this
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
265
point in time of festivity. It then becomes necessitated to shun the usual
advertising language in order to adopt a communication of tenderness
and amiability. Celebrate is Predicator, supported with our winning spirit,
Complement. As such, the associative feelings of the advertiser might
have influenced the mildness of the message. MS = Subject + Predicator
+ Complement (SPC).
TEXT 7
The clause of items in TEXT 7 employs celebrates in a function
different from the experience in TEXT 6. This is notable because
the former is enclosed in the declarative clause; while the latter is
accommodated in the imperative clause. Celebrates in the declarative
in TEXT 7 has its distribution into Finite in the present form, and
Predicator as an appreciation of the verb, celebrate, in its natural
lexical atmosphere. The Subject is Unity Bank® with Nigeria as the
Complement. As earlier mentioned, both Subject and Complement
are NGs, participating in a similar event of a solemnized honor. The
circumstantial Adjunct reveals the engagement of the entities in the joyful
ceremony, factorized in relation to time. That is, at 55. The stipulated
time enhances the information, deployed to recipients, as a creator of
the needed understanding of a particular period of time. MS = Subject
+ Finite + Predicator + Complement + Adjunct (SFPCA).
266
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
TEXT 8
There are two imperative clauses in TEXT 8 appealing to readers
to take an action in a certain direction. These are: Spread the love this
season and Send MTN data gift to friends & family. The two imperatives
utilize similar constructive grammatical sequences as Predicators –
Spread, Send; Complements – the love; MTN data gift; and Adjuncts
– this season, to friend & family. As these linguistic facilities operate in
the spheres of Residue, it is striking that this season in the first clause
functions as Adjunct. The basis is that this season indicates time. It is
possible to place this season in parallel with Now, as a circumstantial
Adjunct. It is in that respect that the study has considered this season,
as a circumstantial Adjunct, pointing readers to the present happening
of the environment. To friends & family in the second clause is also
a circumstantial Adjunct, deploying to as the prepositional marker,
referencing a location with complex NG. The semantic implication
of the texts is that readers should disseminate affectionate message to
various relatives using MTN communication tools. MS = Predicator
+ Complement + Adjunct (PCA); MS = Predicator + Complement +
Adjunct (PCA).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
267
TEXT 9
The verbal fusion behavior is also available in TEXT 9. To
recapitulate, the synthesis is a situation where the verb, starts, is shared
to function as Finite in the present tense and Predicator, accepting
the ‘process’ in its natural start status. The beauty of starts is that the
lexeme operates in the domains of Mood and Residue at a go in order
to accomplish dual purposes. The Subject, The opportunity to create a
better tomorrow, is NG. The experience of its longevity rests on postmodification device of to create a better tomorrow that provides more
information about the nominal components. That is, The opportunity,
which functions as Head. At the end of the clause is a circumstantial with
them. This circumstantial Adjunct assists in offering further information
to Participants and Process of the clause. The second linguistic unit is
Minor Clause, Happy Children’s Day, as a means of felicitating and
commemorating with children. The text declares that children of today
are the future leaders. That remark might influence the analysts to argue
that profitable advancement in society relies on children (DALAMU,
2017a). MS = Subject + Finite + Predicator + Adjunct (SFPA); MS =
Minor Clause (Minor).
268
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TEXT 10
There are one declarative, The future is bright and one imperative,
Reach for Peak®, in TEXT 10. The declarative makes a statement relevant
to the future; while the imperative connects recipients to consumption of
Peak milk. The future and is serve as Subject and Finite, as accommodated
in the Mood section. Bright is Complement, as an illustration of how
tomorrow will be illuminated. In that respect, The future, from the point
of view of the stylist, holds goodies for readers provided consumption
patronage of Peak is certain. That is the motive for sensitizing the public
to Reach for Peak. The command appeals to recipients to buy Peak so that
individuals can shine in all their future endeavors. Reach is Predicator
and for Peak is a circumstantial Adjunct in the makeup of prepositional
phrase. The Adjunct functions as an accompaniment to Reach. The
declarative has Mood and Residue while the imperative has Residue
only. The communication connects the patronage of Peak to the future
in order to fascinate the audience. MS = Subject + Finite + Complement
(SFC); MS = Predicator + Adjunct (PA).
5 Conclusion
The Halliday’s mood system elucidates the components of the
English grammar in clear terms that make the learning of English easy
for an L2. Observations from the analyzed texts show that adequate
knowledge of the language enhances its deployment in organizational
structures that users desire. On the one hand, the study demonstrates that
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019
269
SFL appreciates finite elements as either been past or present. The creation
of semiotic slots for clausal organs is a ‘good as gold’ strategic pattern
to understand the nitty-gritty of the segments of English, exhibiting
grammatical structures of the imperative, declarative, and interrogative
facilities. On the other hand, besides the Adjunct that intrudes into the
Mood arena, Subject and Finite mostly operate in the Mood; whereas the
domain of the Residue consists of Predicator, Complement, and Adjunct
only irrespective of the manner that users organize the grammatical
structures. In addition to that, a normal structure of the declarative is
SFPCA; while the jussive imperative is PCA. Therefore in some respect,
the appropriate studying on the English structures through the linguistic
instruments that the mood system offers could assist an L2 not only to
understand the language but also to employ its structures in personal
thematized ways. This conceptual insight could also reduce the challenge
of an L2, organizing and communicating the English structural sequences
in haphazard manners in social practices.
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O enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”,
do Jornal Extra: o signo ideológico “Guerra” em estudo
The Verbivocobisual Utterance “Guerra do Rio”,
of the Jornal Extra: the Ideological sign “War” in Study
Grenissa Bonvino Stafuzza
Universidade Federal de Goiás, Catalão, Goiás / Brasil
grenissa@gmail.com
Giovanna Diniz dos Santos
Universidade Federal de Goiás, Catalão, Goiás / Brasil
dsgiovanna@gmail.com
Resumo: Aborda-se no presente estudo algumas contribuições teóricas do Círculo
de Bakhtin para a análise de enunciados verbovocovisuais, uma vez que o discurso
tomado como objeto de análise se constitui e se realiza por elementos verbais, vocais
e visuais em um todo arquitetônico que significa. Sob essa perspectiva, analisa-se o
enunciado “Guerra do Rio” que constitui a editoria do Jornal Extra lançada em 2017,
composto por três materialidades – i) o vídeo intitulado “Isso não é normal”, publicado
no site do Jornal Extra; ii) o editorial e; iii) a capa do Jornal Extra –, considerando os
sentidos que emanam do signo ideológico guerra na construção do discurso jornalístico
sensacionalista do jornal em questão.
Palavras-chave: Círculo de Bakhtin; enunciado verbovocovisual; discurso jornalístico
sensacionalista; Jornal Extra.
Abstract: This study addresses some theoretical contributions of the Bakhtin Circle for
the analysis of verbivocovisual utterances, since the discourse taken as object of analysis
is constituted and put into practice by verbal, vocal and visual elements in an architectonic
whole which means. From this perspective, we analyzed the utterance “Guerra do Rio”,
which constitutes the editorial of the newspaper Extra launched in 2017, composed of
three materialities – i) the video entitled “Isso não é normal”, published in the website
of the Extra; ii) the editorial e; iii) the cover of Jornal Extra –, considering the senses
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.275-298
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that emanate from the ideological sign war in sensationalist journalistic discourse of
the newspaper in question.
Keywords: Bakhtin Circle; verbivocovisual utterance; sensationalist journalistic
discourse; Jornal Extra.
Recebido em 15 de fevereiro de 2018
Aceito em 18 de abril de 2018
1 Introdução
A cidade do Rio de Janeiro é presença constante em noticiários.
Configurada em um mosaico de imagens que evocam o carnaval, as
praias e o samba, a cidade também é imersa por discursos contraditórios
que tentam caracterizá-la como um espaço repleto de tensões, o que faz
com que a cidade seja compreendida no imaginário popular como um
lugar violento,1 dominado pelo crime e pelas favelas2 ou comunidades.3
1
Sobre isso, ver a matéria do Jornal GGN. Disponível em:<https://jornalggn.com.br/
noticia/o-preconceito-contra-a-favela>. Acesso em: 18 fev. 2018.
2
O discurso do senso comum fundamentado na visão hegemônica sócio-econômicocultural pensa a favela como um espaço violento, de extrema pobreza, marginalizado e
desprovido de infraestrutura, um lugar em que se opera o tráfico no Brasil, sendo, portanto,
berço de criminosos. De acordo com o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (criado
em 2001 por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares, sendo composto
atualmente por trabalhadores de diferentes espaços da cidade, o Observatório é desde 2003
uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Com sede na Maré, no
Rio de Janeiro, sua atuação é nacional): “(...) as favelas constituem moradas singulares no
conjunto da cidade, compondo o tecido urbano, estando, portanto, integrado a este, sendo,
todavia, tipos de ocupação que não seguem aqueles padrões hegemônicos que o Estado e
o mercado definem como sendo o modelo de ocupação e uso do solo nas cidades. Estes
modelos, em geral, são referenciados em teorias urbanísticas e pressupostos culturais
vinculados a determinadas classes e grupos sociais hegemônicos que consagram o que
é um ambiente saudável, agradável e adequado às funções que uma cidade deve exercer
no âmbito do modelo civilizatório em curso”. (Disponível em: <http://oqueefavelaafinal.
blogspot.com.br/2009/08/o-que-e-favela-afinal.html>. Acesso em: 18 fev. de 2018). Link
para acesso ao site do Observatório: http://observatoriodefavelas.org.br/
3
Birman (2008, p. 106), em seu texto “Favela é comunidade?”, trabalha como a concepção
de comunidade é usada por determinados grupos e se relaciona com a identidade dos
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Dentro dessa dinâmica, o discurso jornalístico trabalha constantemente
na cobertura e na divulgação da violência, geralmente dedicando um
espaço exclusivo às notícias que se relacionam com a temática, como é
o caso do Jornal Extra, com a sua editoria “Casos de Polícia”.
Em 16 de agosto de 2017, o Jornal Extra publicou um editorial e
uma reportagem de capa para divulgar a escolha em relação a uma nova
nomenclatura para essa mesma editoria. A partir daquela data, as notícias
de violência seriam alocadas na editoria “Guerra do Rio”. Essa escolha foi
justificada no texto do editorial e em um vídeo publicado no site do Jornal
Extra intitulado “Isso não é normal”, contendo depoimentos do diretor de
redação, Octavio Guedes, e do repórter Rafael Soares, responsável pela
reportagem de capa.4 Além disso, a divulgação de um “dossiê secreto do
estado” revelando o domínio de 843 territórios pelo crime organizado
apareceria com destaque na capa do jornal impresso, mostrando um
discurso institucional revelado como “furo”, como novidade.
O presente estudo fundamenta-se na perspectiva dialógica da
linguagem sob o viés das reflexões teóricas do Círculo de Bakhtin,
considerando a construção do enunciado verbovocovisual a partir do
diálogo entre as três materialidades discursivas – o editorial “Guerra
no Rio”, sua capa e o vídeo divulgado no site do Jornal Extra. Sob
essa perspectiva, o enunciado reflete as condições específicas e as
finalidades de uma determinada esfera da atividade humana de utilização
da língua: não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal,
ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua como os recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais, mas também, por sua construção
composicional.
Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados
no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da comunicação.
(BAKHTIN, [1979] 2011, p. 261-262)
moradores: “Empregado pela mídia, pelo governo, pelas associações locais, pelas ONGs,
o termo comunidade muitas vezes explicita a dificuldade dessa operação de levar em
conta o que pensam os que se veem nomeados de uma forma negativa”.
4
Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/isso-naonormal-21711104.html>. Acesso em: 18 fev. 2018.
278
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O enunciado “Guerra do Rio” reflete e refrata discursos socialmente
inscritos como o jornalístico, o midiático, o sensacionalista, uma vez que seu
conteúdo temático (o recorte que se opera em relação ao gênero), seu estilo
(midiático, próprio da autoria do Jornal Extra) e construção composicional
(vídeo, editoria, capa; relato jornalístico com tom de denúncia e de “furo
de reportagem”; presença do verbal, do vocal e do visual) fundamentam os
sentidos que emanam do enunciado “Guerra do Rio”, ao enunciar sobre uma
guerra em curso no Rio de Janeiro, não reconhecida pelo governo. Logo,
tanto em sua editoria, quanto na capa de “Guerra do Rio”, o Jornal Extra
estabelece o que seriam crimes “que ocorrem em qualquer metrópole do
mundo: homicídios, latrocínios, crimes sexuais...” e o que seriam crimes
“que só vemos no Rio” e “que foge ao padrão da normalidade civilizatória”.
Ao sugerir que crimes como homicídios, latrocínios e crimes sexuais são
crimes recorrentes e, portanto, que obedecem a uma normalidade civil, o
jornal cria uma expectativa de espetacularização dos crimes que pretende
relatar em sua editoria “de guerra”.
O objeto de estudo da nossa pesquisa, o Jornal Extra, é um
veículo popular, que atende o estado do Rio de Janeiro e é considerado um
dos jornais populares mais lidos do país.5 Para entender o funcionamento
desse tipo de jornalismo e suas características, destaca-se Prevedello
(2008) quando define os novos jornais surgidos no Brasil nos anos 90
de acordo com seu público e estilo de linguagem e diagramação da
seguinte maneira:
Destinados prioritariamente aos públicos das classes B, C e
D, [...] os novos jornais apresentam maior voltagem de cor na
diagramação, textos sintéticos, várias seções de prestação de
serviços e uma mescla entre temáticas de entretenimento, casos
policiais e a redução, quando não exclusão, das tradicionais
editorias de Política e Economia.
Recursos clássicos do sensacionalismo, como a prevalência
de fotos aos textos, de letras em fonte maior e de diagramação
carregada em cor e com elementos para facilitar a leitura,
permanecem válidos no novo jornalismo popular (PREVEDELLO,
2008, p. 27-28).
5
Esses dados foram retirados do site da Infoglobo, grupo a que pertence, entre outros
veículos, o Jornal O Globo, o Jornal Extra. Disponível em: <https://www.infoglobo.
com.br/Anuncie/ProdutosDetalhe.aspx?IdProduto=92>. Acesso em: 18 fev. 2018.
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Dessa forma, analisa-se o Jornal Extra dentro dessa categoria de
jornalismo sensacionalista e sua relação com os sentidos evocados no
tratamento dado às notícias. O editorial divulgado no site do jornal, por
exemplo, dá maior destaque ao vídeo do que ao texto; a capa do jornal
que divulga a escolha do nome da editoria usa como ilustração da capa
“É guerra” escrito em letras garrafais, no meio do título “Dossiê secreto
do estado revela” e “Rio já perdeu 843 áreas para o crime”. Mais adiante,
analisa-se também a relação entre essas escolhas e os enunciados que,
entre si, revelam sentidos e provocam o leitor em relação ao tema tratado.
2 O signo ideológico “guerra” no enunciado verbovocovisual
“Guerra do Rio”
O termo “verbovocovisual” tem sua origem na literatura de James
Joyce, em Finnegans Wake (“verbivocovisual”6), tendo sido apropriado
pela poesia concreta nos anos 50 do século XX por Décio Pignatari e os
irmãos Campos. Conforme o próprio Augusto de Campos:
Junto com a música popular brasileira, ouvimos, no início dos
anos 1950, Webern, Schönberg, Berg, Cage e Varèse. Billie
Holiday, Dizzy Gillespie e Miles Davis. Quando João Gilberto
chegou, em 1959, foi logo entendido. Era o Webern cool da
canção brasileira. Essa informação musical foi fundamental para
uma poesia que se pretendeu, desde o início, “verbivocovisual”,
expressão que extraímos do Finnegans Wake, de Joyce. Embora
a sua face mais chamativa fosse a visual, a verdade é que a poesia
concreta brasileira formou-se sob a influência da música, e foi
“cantofalada”, antes de ser exposta, entrequadros, na exposição
do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1956.7
6
No original: “Up to this curkscraw bind an admirable verbivocovisual presentment
of the worldrenownced Caerholme Event has been being given by The Irish Race and
World”. (JOYCE, 1975, p. 458).
7
Esse excerto é parte do texto que marca a divulgação do evento “Poemúsica”,
idealizado pelo poeta brasileiro Eucanaã Ferraz e realizado pelo Instituto Moreira
Salles, Rio de Janeiro, em 30 de março de 2010, contendo textos do poeta Augusto de
Campos, do músico Cid Campos e também uma entrevista com a compositora e cantora
Adriana Calcanhoto. Disponível em: <http://www.adrianacalcanhotto.com/poemusica/
index.html>. Acesso em: 18 fev. 2018.
280
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Ao extrair o “verbivocovisual” da literatura joyciana, a poesia
concreta ganha consciência do movimento de linguagem que se
desenvolve nas esferas verbal, vocal e visual tanto na literatura, na
recepção crítica e teórica, como nas performances dos poetas, músicos
e artistas que dela participavam. Pignatari (2005, p. 21), ao explicar
a noção de ritmo, entende que “é um ícone que resulta da divisão e
distribuição no tempo e no espaço – ou no tempo-espaço – de elementos
ou eventos verbovocovisuais (= verbais, vocais, visuais)”. Nesse caso,
pode-se pensar a verbovocovisualidade como abordagem de análise da
poesia que surge a partir de um profícuo debate teórico e experimental
entre poetas, músicos, artistas e estudiosos dos campos da música e da
literatura. Nos estudos de análise de discursos de corrente bakhtiniana,
que nos interessa aqui, apesar de Bakhtin e seu círculo não tratarem
de “verbovocovisualidade”, nem de “discursos verbovocovisuais” em
termos, seus escritos trazem importantes contribuições para se entender
o “verbovocovisual” como um procedimento de análise discursiva,
uma vez que o discurso tomado como objeto de análise se constitui e se
realiza por elementos verbais, vocais e visuais, sendo a obra do Círculo
suporte para análises.
Ao pensar a verbovocovisualidade como um procedimento
de análise discursiva, considera-se de antemão que a expressão
verbovocovisual denomina o todo arquitetônico do discurso midiático
“Guerra do Rio”, editoria do Jornal Extra, que se constitui e se realiza
por elementos verbais, vocais e visuais em dialogicidade. Torna-se lícito
esclarecer que Bakhtin pensou a arquitetônica a partir do estudo da obra
literária. O todo arquitetônico diz respeito à construção de uma obra
entendida como interação entre material, forma e conteúdo. O “todo”
relaciona-se com o acabamento que se opera a partir do excedente de
visão como elemento constitutivo fundamental dessa interação, bem
como da atividade autoral. De acordo com Bakhtin ([1979]2011), a
arquitetônica da visão artística é a responsável pela organização do
espaço-tempo-sentido, bem como a concepção da obra como objeto
estético. Aqui, ao estudar o discurso jornalístico sensacionalista do
Jornal Extra, apropria-se da noção de arquitetônica pensada por Bakhtin
para os estudos literários por se compreender sua potencialidade teórica
também para o estudo de outros discursos como o jornalístico-midiático,
representado pelo Jornal Extra, a partir de sua arquitetônica, ou seja, da
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281
criação do todo integrado – editorial, vídeo e capa da editoria “Guerra
do Rio”8 – que significa.
Volochínov (2013), ao descrever como a palavra possui, em seu
uso, memória histórica da posição de classe dos falantes e de determinada
visão de classe, afirma que:
[...] todo discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, à sua
compreensão e à sua efetiva resposta potencial. Essa orientação
a um outro, a um ouvinte, pressupõe inevitavelmente que se
tenha em conta a correlação sócio-hierárquica entre ambos os
interlocutores [grifos do autor]. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 168.)
Ao tomar a linguagem como uma atividade humana multifacetada
e mediadora da relação do sujeito com a sociedade e a história, que tem
com os signos uma relação de devir, compreende-se que a natureza
dialógica da linguagem configura os próprios sentidos sígnicos, uma
vez que o sujeito fala sob determinados signos, calcados no princípio
de que os sentidos na linguagem são moventes, apesar de sua relativa
estabilidade. A palavra organiza os sentidos no discurso como, por
exemplo, a esfera jornalística que se apresenta sob a forma de instituições
distintas e especializadas como, por exemplo, a imprensa, que determina
conhecimentos e práticas, assim como os posicionamentos que o sujeito
jornalista deve tomar para falar a partir desse lugar.
Observa-se, sobretudo, que a concepção dialógica da linguagem,
concepção nodal de Bakhtin e do Círculo, confere à expressão enunciativa
um caráter social e ideológico que, determinada pelo meio externo,
estrutura e orienta a atividade mental do sujeito. Isso significa dizer que
o entendimento dos signos presentes no mundo se instaura a partir de
uma situação social imediata, bem como o meio social mais amplo no
processo de materialização e realização da linguagem, no processo de
interação discursiva que é, sobretudo, um processo social.
De acordo com Volóchinov (2017, p. 95, grifo do autor),
8
O texto do editorial que se encontra publicado no site logo abaixo da publicação do
vídeo e o texto da capa são o mesmo texto. No entanto, investiga-se também a capa
para pensar os destaques dados pelo Jornal Extra para a editoria “Guerra do Rio”.
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(…) a compreensão de um signo ocorre na relação deste com
outros signos já conhecidos; em outras palavras, a compreensão
responde ao signo e o faz também com signos. (...)
Essa cadeia ideológica se estende entre as consciências individuais,
unindo-as, pois o signo surge apenas no processo de interação
entre consciências individuais. E a própria consciência individual
está repleta de signos. Uma consciência só passa a existir como
tal na medida em que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto
é, pelos signos, portanto apenas no processo de interação social.
A palavra – em sua função interlocutiva – dirige-se a um
interlocutor e varia dependendo do grupo social a que se destina (se for
inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por
laços sociais mais ou menos estreitos etc.). Nesse sentido, o entendimento
dos signos, que perpassam e constituem a palavra no ato de interlocução,
depende também da sociabilização desses signos. Compreende-se que o
centro organizador e formador da compreensão dos signos não se situa na
consciência individual, mas no exterior, sendo, portanto, de caráter social:
não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é
a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina
sua orientação, que elabora o pensamento.
Ao teorizar sobre a interação discursiva, uma vez que consciência
individual e meio social revelam processos interdependentes de significar
o mundo, de dar sentido à vida, de acionar sentidos para a ação dos signos
no mundo, Volóchinov (2017) aponta que não existe atividade mental
sem o condicionante social; eis que o grau de consciência, de clareza,
de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional
ao seu grau de orientação social. Se a situação social mais imediata e
o meio social mais amplo determinam completamente a estrutura da
enunciação, aborda-se aqui a relação “interior” (consciência individual)
e “exterior” (meio social) de maneira dialogada, e não da primazia de
um sobre o outro. Além disso, a perspectiva bakhtiniana observa a
importância de olhar para um sistema de signos com os olhos de outro
sistema de signos, a exemplo do estudo sobre as origens da estética de
Rabelais (Ver BAKHTIN, 2010) que ilustra a relação de transposição
entre os signos não-verbais do carnaval para os signos verbais da
literatura carnavalizada.
Se os signos nascem no território interindividual, ou seja, na
interação entre consciências individuais, constituem um fenômeno,
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sobretudo, do mundo exterior. Cada campo do conhecimento –
científico, artístico, político, religioso, jornalístico etc. – possui uma
função específica dentro da unidade da vida social, no entanto, é o
caráter semiótico, a forma como significam na vida social, que torna os
signos ideológicos transitáveis e mutáveis entre as esferas (BAKHTIN/
VOLOSHINOV, 1976, p. 20). O signo “guerra” ao mesmo tempo em que
participa da esfera política, por exemplo, não se restringe à ela, podendo
ser acionado em outras esferas, como a médica, a econômica, a midiática,
a jornalística, a jurídica,9 etc., configurando a sua função ideológica de
significar socialmente.
De acordo com Sobral e Giacomelli (2017, p. 230),
Na formulação bakhtiniana, o produto ideológico é a um só tempo
parte de uma realidade, natural ou social, e reflexo e refração de
outra realidade que lhe é exterior. (...) A ideologia não está na
consciência, porque, como a compreensão só ocorre tendo por
objeto um material semiótico e como a direção do signo sempre o
faz remeter a outro signo, a própria consciência só surge e constitui
um fato possível na concretude material dos signos (...).
Entende-se por esse viés que os signos fazem sentido a depender
dos próprios sentidos que foram construídos sócio-culturalmente sobre
esses signos. Ainda, pensa-se em quais conjunturas sociais acontecem
determinadas interferências que fazem com que os sentidos cristalizados
de determinados signos se transformem (ou se desestabilizem). O
interlocutor, real e determinado socialmente, por sua vez, encontra-se
como sujeito desse processo interativo denominado interação discursiva:
o sujeito engloba em sua atividade mental não apenas a consciência
interior por meio da expressão enunciativa de signos, mas ratifica a
inter-relação entre a evolução social e a linguística, tendo em vista que
uma outra forma de relação social requer uma outra forma de interação
discursiva, o que repercute mudanças na língua. Assim, pode-se verificar,
no horizonte social dialógico, a base da atividade mental do interlocutor:
9
Dentro dessas esferas, há diversos sentidos que emanam do signo guerra, dependendo da
sua função ideológica. Na esfera jurídica, por exemplo, distante dos processos e julgamentos
de crimes de guerra arrolados pelo corpo jurídico, o signo guerra pode significar, por
exemplo, disputas conjugais em separações litigiosas (“Ex-cônjuges estão em guerra no
tribunal”) por partilhas de bens, entre outros, caracterizando a função semiótica do signo
na linguagem, que é intrinsecamente vinculada ao social, portanto, ideológica.
284
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a consciência individual é construída coletivamente, pois se estrutura
na e pela interação entre sujeitos, em um determinado meio social e
ideológico.
Medviédev (2012, p. 56), ao abordar uma série de problemas
fundamentais da ciência marxista das ideologias, afirma que
O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de
‘objetos-signo’ dos mais diversos tipos e categorias: de palavras
realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e
outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas;
de obras de arte, e assim por diante.
O pensador denomina de meio ideológico tudo isso que constitui
a realidade material e imaterial que envolve a vivência e a experiência
humana no mundo social. De modo mais assertivo, “o meio ideológico
é a consciência social de uma dada coletividade, realizada, materializada
e exteriormente expressa” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56). Sob essa
perspectiva, compreende-se que uma consciência individual se torna
consciência social quando colocada em interação com o meio ideológico
que reflete e refrata as condições de existência socioeconômica e natural
dos sujeitos.
Sendo a palavra o signo ideológico par excellence, aborda-se,
no presente estudo, a palavra guerra, deslocada da esfera política ou de
conflito, dentro da esfera jornalística, midiática, de caráter sensacionalista.
O signo ideológico guerra reflete e refrata outros sentidos quando
se analisa o enunciado verbovocovisual em destaque composto pelo
editorial “Guerra do Rio”, o vídeo de divulgação da editoria intitulado
no site de “Isso não é normal” e a capa do Jornal Extra. Entende-se que
os sentidos evocados pela palavra guerra extrapolam uma normalidade
colocada como convencional para a sociedade; portanto, guerra
aparece sumariamente vinculada a crimes surpreendentes, chocantes,
aterrorizantes que se distanciam de “crimes comuns, normais”, como
aqueles citados pelo jornal (“homicídios, latrocínios, crimes sexuais”).
Esses sentidos possíveis para guerra podem ser compreendidos através
dos diálogos que o jornal estabelece entre as três materialidades que
compõem o enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”.
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3 Mídia em tempos de “guerra”
A mídia trabalha com a opinião pública de modo a defender seus
interesses comerciais e/ou políticos, que estejam alinhados ao editorial
do veículo. Dessa forma, a mediação da realidade pela notícia obedece
a estruturas fixas de agendamento e escolha das pautas abordadas. A
mass media (termo utilizado para definir os veículos de comunicação
que atingem um grande público) utiliza da linguagem jornalística para
alcançar esse público e despertar nele condutas em relação à realidade
que ele está inserido.
Durante o período que sucedeu o ataque às torres gêmeas em
Nova Iorque, a mídia teve participação efetiva no debate sobre terrorismo
e a “guerra ao terror” empreendida pelo ex-presidente americano George
Bush. Os efeitos da veiculação massiva de imagens do atentado, das
torres, dos feridos e mortos causou efeito devastador na opinião pública,
o que levou os americanos a apoiarem as medidas tomadas pelo expresidente em relação à busca por Osama Bin Laden e invasão do Iraque
(REZENDE, 2013).
A mídia desempenha um papel importante na divulgação dos fatos
de guerra. Essa função está diretamente ligada aos interesses do Estado
em manter o consenso da população civil para garantir o apoio e causar
comoção pública (ALDÉ, 2003). Durante a segunda guerra mundial,
os meios de comunicação de massa – rádio e jornal impresso, naquela
época – foram responsáveis pela constante divulgação dos esforços
de guerra, perdas, baixas e de propaganda dos interesses de cada país
envolvido no conflito.
Hoje, com o desenvolvimento das mídias televisiva e digital, as
informações circulam em ritmo ainda mais acelerado, mas o crescimento
desses suportes também trouxe pluralidade de discursos e veículos de
linhas editoriais divergentes. Durante a Guerra ao Iraque, apesar dos
efeitos causados na opinião pública, que tornaram possível a realização da
Guerra, a existência de diversas opiniões foi mobilizada, de acordo com
Aldé (2003, p. 2) por “uma imprensa polarizada e atenta, pressionada por
novos emissores, como as redes árabes de televisão, e pela comunicação
dinâmica e descentralizada da Internet.”
Durante um conflito, seja ele internacional entre dois países,
ou nacional numa guerra civil, por exemplo, os enquadramentos feitos
pela mídia irão obedecer às versões oficiais do fato, divulgadas por
286
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agências estatais de notícias ou por fontes ligadas ao Estado. Esses
enquadramentos, segundo Aldé (2003) podem ser de diversas ordens,
em especial, destaca-se os enquadramentos militar e humanista, que
abordam as estratégicas de guerra e seus efeitos sobre as populações
envolvidas nos conflitos, respectivamente. Os dois tipos trabalham com
a carga dramática e a comoção do público frente à guerra, surtindo efeito
no posicionamento da opinião pública em relação às ações do governo.
No vídeo de divulgação da editoria “Guerra do Rio”, Octavio
Guedes, diretor de redação, inicia o vídeo lendo em sua tela de computador
os significados que aparecem no dicionário10 para a palavra “guerra” ao
mesmo tempo em que tece comentários sobre esses significados em
relação ao interesse da editoria ao adotá-la como título da editoria e sua
temática:
Olha, a definição clássica de guerra aqui no dicionário: “luta
armada entre nações”, não é o caso. “Ou entre partidos de uma
mesma nacionalidade ou de etnias diferentes, com o fim de impor
supremacia ou salvaguardar interesses materiais ou ideológicos”.
Criar uma editoria de guerra depois de 30 anos convivendo com
jornais do Rio de Janeiro e dar enfoque à polícia é uma sensação
de derrota. Então, você chegar nesse estágio e dizer assim “olha,
eu tenho uma editoria de guerra”, não é orgulho nenhum, é um
fracasso. Aliás, o Extra deve ser o único jornal do planeta que
tem uma editoria de guerra, num país que não reconhece a guerra.
(00min00s-00min55s)
Ao pensar sobre o signo ideológico no funcionamento do discurso
jornalístico sensacionalista do Jornal Extra em estudo, observa-se como
em momentos de conflitos sociais, a definição de guerra pode funcionar na
voz da mídia. Ao trazer os significados do dicionário de guerra, o diretor
de redação tece um comentário que desaprova o primeiro significado de
“luta armada entre nações” como significado de representação da editoria
“Guerra do Rio” do Jornal Extra. “Não é o caso” (00min05s), afirma
Octavio Guedes de modo a situar os possíveis significados de “guerra”
que poderiam configurar no editorial em divulgação. Há, sobretudo,
Os significados de guerra advindos da leitura em tela de computador, realizada
pelo diretor de redação, encontram-se facilmente por meio de uma rápida pesquisa no
Google, ao digitar na busca “o que é guerra”. Trata-se do dicionário do Google, uma
ferramenta informal que a plataforma disponibiliza para os usuários.
10
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uma preocupação em responder ao enunciado sobre a possibilidade de
significados que o dicionário permite aos usuários da língua em relação
à palavra guerra, de modo a enunciar qual seria o significado mais
adequado ou expressivo para a configuração da editoria colocada em
divulgação.
No entanto, na continuidade da leitura digital dos significados,
o diretor de redação não se posiciona verbalmente quando conclui a
leitura dos próximos significados: “Ou entre partidos de uma mesma
nacionalidade ou de etnias diferentes, com o fim de impor supremacia ou
salvaguardar interesses materiais ou ideológicos” (00min07s-00min17s).
De modo que esse silêncio acompanhado de um rememorar histórico
da sua profissão de jornalista no Rio de Janeiro há 30 anos faz emergir
sentidos que sugerem uma situação dramática vivenciada pelo sujeito:
a criação de um editorial de guerra que dá “enfoque à polícia”, para o
jornalista, significa “derrota”, “fracasso”, não sendo “orgulho nenhum”.
Nesse sentido, esse segundo significado lido pelo jornalista pode
configurar uma possibilidade de significar a editoria “Guerra do Rio”
em divulgação no enunciado: trata-se de uma guerra em que a polícia é
protagonista.
A situação dramática amplia-se e efetiva-se com outros elementos
que constituem o todo arquitetônico enunciativo do projeto de dizer do
Jornal Extra como, por exemplo, a música clássica de fundo do vídeo.
Trata-se da peça “Sarabande” que compõe a suíte para violoncelo N°2
em ré menor de Bach:11 quando o compositor quer dar um caráter mais
triste ou melancólico a uma música, recorre às tonalidades menores.
Logo, encontra-se em diálogo a sonoridade musical de uma suíte clássica
de Bach ao significado que o Jornal Extra constrói sobre guerra: o
signo ideológico guerra ao mesmo tempo em que reflete a tristeza da
suíte clássica em ré menor conjuntamente à entonação angustiante de
denúncia do jornalista, refrata essa mesma tristeza ao autoproclamar um
ineditismo jornalístico que coloca o Jornal Extra em uma posição de
vanguarda editorial ao dar enfoque à guerra, pois “(...) o Extra deve ser
o único jornal do planeta que tem uma editoria de guerra, num país que
não reconhece a guerra”. (grifos nossos).
11
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ycF8OtRjYlE>. Acesso em:
18 fev. 2018.
288
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Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a tristeza se apresenta
marcada pela música clássica, pela entonação angustiante de depoimento
de quem sente a “derrota”, o “fracasso” e não tem “orgulho nenhum”
na profissão de jornalista que assina uma editoria de guerra, emerge a
contradição, pois, ao se dar voz a uma editoria de guerra, o Jornal Extra
afirma-se no campo jornalístico e midiático como um jornal original
que se coloca como pioneiro na elaboração de um editorial de guerra no
Brasil, quando nem o próprio país “reconhece a guerra”. Assim, o Jornal
Extra se coloca como um jornal que utiliza de seu espaço editorial para
denunciar a omissão do Estado em não admitir uma guerra vigente no
país, de modo a se colocar como porta-voz institucional dessa guerra
que tem a polícia como foco no Rio de Janeiro.
Ao concluir a leitura dos significados de guerra no computador
e estabelecer esse diálogo entre os significados possíveis de representar
a editoria do Jornal Extra e – ao som sorumbático da suíte em ré menor
de Bach – sua experiência profissional, a cena em questão conclui-se com
elementos sonoros e imagéticos que também fazem coro com a tonalidade
dramática da editoria e constituem o enunciado verbovocovisual: ouvese tiros de metralhadora, bombas, a voz de uma jornalista noticiando a
violência sobreposta a voz de um jornalista noticiando crimes praticados
por traficantes, sirenes de carros de polícia, tiros de revólver e helicóptero
em sobrevoo ao mesmo tempo em que imagens de várias edições do
Jornal Extra aparecem retroprojetadas em flashes e o enunciado “É
GUERRA” na cor branca com o fundo escuro, riscado na parte inferior,
fixa-se no centro do vídeo.
Entendendo a linguagem como fenômeno sócio histórico, que
se modifica no movimento das trocas entre os falantes de determinada
língua, na interação discursiva, ao mesmo tempo em que acompanha
as mudanças da vida social, pode-se abranger os variados sentidos que
o signo ideológico pode remeter em determinado contexto, como é o
caso do signo “guerra” utilizado pelo Jornal Extra: não se trata de uma
guerra institucionalizada pelo estado, mas sim de uma posição editorial
de apontar que o que acontece no Rio de Janeiro é guerra. Dessa forma,
entende-se que é preciso estudar como a palavra foge a uma concepção
monológica do mundo, sendo ela plurivalente e polissêmica.
Essa relação entre a mídia e o Estado é responsável pelo sentimento
de patriotismo durante esses conflitos e também pela manutenção da
imagem do governo e de suas ações que justificam uma guerra. Práticas
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de agendamento da opinião pública, ou o agenda-setting12 também são
comuns não só em momentos de guerra, mas toda vez que determinado
assunto está – ou por interesse de determinado veículo jornalístico ou
do Estado pretende estar – em pauta.
O editorial de um jornal – seja ele impresso, digital ou televisivo –
é responsável por traduzir a opinião desse veículo também em momentos
de conflito. Para Marques de Melo (2003), o editorial não pretende
apenas mobilizar a opinião pública, mas também defender os interesses
corporativos e financeiros do veículo jornalístico e dialogar com o Estado
para dizer “como gostariam de orientar os assuntos públicos”, alinhados
a esses interesses. No caso do editorial divulgado pelo Jornal Extra, o
interesse é se posicionar em relação ao “dossiê secreto do Estado” e à
ação da polícia nas comunidades.
4 “Guerra do Rio”: É GUERRA
O Jornal Extra, conforme retratado, trabalha em seu editorial
o conceito de “guerra” de modo a fazer repercutir que a guerra do
Rio de Janeiro encontra-se em um outro patamar de guerra. O diálogo
realizado entre a capa do jornal impresso e a publicação do site do jornal,
que contém o mesmo texto e um vídeo, tratados aqui como enunciado
verbovocovisual, produz sentidos, ainda, quando o Jornal Extra enuncia
com destaque “dossiê secreto do Estado revela Rio já perdeu 843 áreas
para o crime” – “Isso não é normal”, entremeado pela ilustração escrita
“é guerra” em letras garrafais, com a tipografia riscada, igual ao designer
gráfico do enunciado “É GUERRA” que aparece no vídeo, já mencionado
anteriormente:
Essa é uma hipótese formulada por McCombs e Shaw (2000), que afirmam que a mídia
pauta o que é dito pela opinião pública seguindo práticas específicas para selecionar
os temas que serão discutidos pela sociedade em determinado momento, através da
escolha e enquadramento de notícias sistematicamente divulgadas.
12
290
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FIGURA 1 – Imagem da capa do Jornal Extra disponível no Acervo Extra13
A escolha da diagramação da capa cria ambiguidade, pois podese entender que o dossiê secreto é responsável pela revelação, por parte
do Estado, de uma guerra não institucionalizada. O Extra, ao escolher
o nome da editoria como “Guerra do Rio”, também trabalha com essa
mesma pluralidade de sentidos. O uso da preposição “do”, por exemplo,
pode indicar origem ou lugar (guerra localizada no Rio de Janeiro);
ou pode ser usada para qualificar o substantivo “guerra”, indicando
um tipo de “guerra” que é característico do Rio de Janeiro. Os dois
13
Disponíavel em: <http://acervo.extra.globo.com/resultados/?a=Dossi%C3%AA+
secreto&pg=4&o=relevance>. Acesso em: 18 fev. 2018.
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sentidos são possíveis ao verificar a voz autoral presente no enunciado
verbovocovisual que constrói o todo arquitetônico “Guerra do Rio”,
situando culturalmente, socialmente e historicamente, o projeto de dizer
jornalístico, midiático e sensacionalista do Jornal Extra na construção
de uma editoria “de guerra”.
O título “Isso não é normal”, por exemplo, que aparece também
nas três materialidades que formam o enunciado “Guerra do Rio”, resume
as ideias que o Jornal Extra coloca no texto em relação à violência. Ele
traça um paralelo entre o que seria a violência fora do comum e outra,
dentro do padrão de normalidade. Esse padrão seria definido, segundo
o Extra, pela “normalidade civilizatória” e seria visto apenas na cidade
do Rio de Janeiro: guerra seria exclusividade do Rio. Outros crimes,
noticiados pelo jornal, como “homicídios, latrocínios, crimes sexuais”
acontecem “em qualquer metrópole do mundo”. Outra oposição aparece
também quando é mencionada uma “barbárie”. Por essa razão, o jornal
define porque essa “guerra” ou “barbárie” merece destaque de crimes
considerados “normais”:
Um feto baleado na barriga da mãe não é só um caso de polícia. É
sintoma de que algo muito grave ocorre na sociedade. A utilização
de fuzis num assalto a uma farmácia não pode ser registrada como
uma ocorrência banal. A morte de uma criança dentro da escola
ou a execução de um policial são notícias que não cabem mais nas
páginas que tratam de crimes do dia a dia.
Essa mudança comentada pelo jornal é caracterizada como uma
tomada de posição do veículo e também direcionada pelos jornalistas
envolvidos com o tema. No começo, “nossos jornalistas evitavam:
guerra do Rio”, o que, com a mudança, passa a ser encarado de outra
forma: “Não se trata de uma simples mudança na forma de escrever,
mas, principalmente, no jeito de olhar, interpretar e contar o que está
acontecendo ao nosso redor”. O jornalista, segundo essa concepção,
é responsável pelo olhar e interpretação da realidade representada no
jornal. Mais adiante, no terceiro parágrafo do texto, esse posicionamento
é coletivizado pelo uso do pronome na primeira pessoa do plural “nosso
olhar jornalístico”. Mais uma vez, observa-se o apelo à ética jornalística
definida pela voz autoral do editorial do Jornal Extra.
O jornal também faz uso de algumas palavras que dão o tom
alarmante à notícia de uma editoria de guerra que apelam às emoções
do leitor: “berrar”, “esperança”, “paciência”. O uso dessas palavras e de
292
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pronomes na primeira pessoa do plural cria uma aproximação do editorial
“Guerra do Rio” ao leitor do Extra. Ao se posicionar como um veículo que
defende “a guerra baseada na inteligência no combate à corrupção policial,
e que tenha como alvo não a população civil, mas o poder econômico
das máfias e de todas as suas articulações”, o Jornal Extra posiciona-se
favorável a uma guerra com estratégias que protejam a população civil,
no entanto, sabe-se que em eventos de guerra a população civil não é
poupada. Definir a violência da guerra focada no inimigo e a população
civil protegida de balas perdidas, de bombas, do acesso ao consumo de
drogas etc., soa a princípio como ingenuidade do editorial que não é
aleatória, pois há, sobretudo, um diálogo instaurado com o leitor quando
o jornal apresenta o editorial “Guerra do Rio” de posicionar-se a favor da
vida da população, da vida do seu leitor consumidor. A partir do momento
em que há um editorial próprio para os crimes “de guerra” assim definidos
pelo Jornal Extra e destacados do editorial “Casos de Polícia”, o jornal
lucra com a guerra que noticia, bem como com a sua espetacularização.
Outros sentidos para guerra apresentam-se no enunciado
verbovocovisual de “Guerra do Rio” quando o editorial afirma que “guerra
pressupõe vitórias, derrotas, avanços, recuos, acertos e erros”, adotando
uma posição conformista com os eventos que envolvem essa “guerra”, em
especial: “sabemos que não há solução fácil nem mágica para o problema”.
Os esforços do jornal em noticiar a violência e nomeá-la para definir o que
seria um padrão de normalidade se encerram no editorial com um certo
grau de distanciamento da sua responsabilidade de: i) enunciar sobre uma
guerra em curso; ii) destacar um “dossiê secreto do estado” quando afirma
que o próprio estado não “reconhece a guerra” (elemento de contradição,
mas também de crítica ao Estado); ii) afirmar ter “esperança” de perder “o
título de ser o único diário do planeta a ter uma editoria de guerra” (soa
como autopromoção às avessas: ao mesmo tempo em que o jornal afirma
ser o único diário do planeta a ter uma editoria de guerra, vê a existência
dessa editoria – que ele mesmo criou – com tristeza).
Ao afirmar que “o Estado não tem controle do território”, o
enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio” fundamenta-se em um
documento institucional, do Instituto de Segurança Pública do Rio de
Janeiro intitulado “Letalidade violenta e controle ilegal do território
no Rio de Janeiro” (GONÇALVES, 2017), que traz os dados relatados
por Rafael Soares no vídeo. O repórter demonstra surpresa ao tomar
conhecimento dos dados apontados no documento, sendo, sobretudo
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esse documento o objeto que se configura o “dossiê secreto do estado”
mencionado. Outra contradição se instaura entre um estudo do Instituto
de Segurança Pública do Rio de Janeiro encontrar-se publicado nos
Cadernos de Segurança Pública desde julho de 2017, com acesso público
pela internet, e a denominação de “dossiê secreto do estado” em agosto
de 2017 com a chamada para a reportagem “documento que está sob
sigilo até 2021” pelo Jornal Extra. Cria-se, sobretudo, uma atmosfera
de intrigas envolvendo o governo e a sociedade envoltas em mistério
em uma tentativa de ser inaugural ao falar sobre um “dossiê secreto do
estado”, onde o estado “revela é guerra” na capa do Jornal Extra. Assim,
mais uma contradição pode ser apontada: o estado revela que é guerra
nesse “dossiê secreto” ao mesmo tempo em que não reconhece a guerra
na voz do Jornal Extra.
De acordo com Rafael Soares, o repórter do Jornal Extra
responsável por trazer aos leitores do jornal os dados do artigo “Letalidade
violenta e controle ilegal do território no Rio de Janeiro”, de autoria do
geógrafo e pesquisador do Instituto de Segurança Pública, Luciano de
Lima Gonçalves, o controle pelo crime nos territórios dominado pelo
tráfico, concomitantemente com a presença das Unidades de Polícia
Pacificadora, é “assustador”, uma vez que demonstra a perda do controle
pelo Estado. O enunciado “Guerra do Rio” constitui-se de linguagem
sensacionalista e de recursos sonoros e visuais – imagem computadorizada
dos mapas das comunidades que aparecem juntamente com a voz do
repórter citando os nomes das comunidades, que também aparecem
grafadas na tela com o som de tiro e de helicóptero em sobrevoo, além
da suíte para violoncelo N°2 em ré menor de Bach – para aumentar a
carga dramática e apelo emocional ao público, que se comove com o
enquadramento humanista utilizado.
O Jornal Extra, portanto, utiliza vários recursos (verbais, visuais,
sonoros) para estabelecer o conceito de “guerra” que encontra espaço de
existência enquanto evento situado socialmente na e pela voz do Jornal
Extra em suas notícias a partir do momento em que enuncia do lugar de
denunciante de uma guerra em curso. Ao contrapor que “uma coisa é
polícia, outra coisa é guerra”, o diretor de redação do jornal separa casos
policiais “de rotina” dos casos de guerra definidos pelo texto do editorial
como “fora da normalidade”. No entanto, mesmo assim, na estrutura
do site do Jornal Extra verifica-se que a editoria “Guerra do Rio” se
encontra dentro da editoria “Casos Policiais” trazendo à tona mais uma
294
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contradição, dentre as diversas aqui citadas, revelada pelo posicionamento
do jornal antes e depois do editorial divulgado.
O Jornal Extra, como explica no texto do editorial, já possuía
o costume de noticiar crimes diversos, através da sua editoria “Casos
Policiais”. Apesar disso, o enquadramento dado a essas notícias era de
“normalidade civilizatória”, considerando a divulgação dessas notícias
como algo comum da rotina jornalística e também da rotina da cidade
do Rio de Janeiro. Com a divulgação do editorial e a escolha do uso
da palavra “guerra” pelo jornal, os crimes que eram divulgados são
banalizados em nome de uma essência sensacionalista e de furos de
reportagem que fazem parte do conteúdo temático do jornal. Assim,
observa-se através do diálogo entre os enunciados verbovocovisuais
analisados que o signo ideológico “guerra” explicita as contradições do
posicionamento do jornal em relação à realidade que ele divulga.
5 Considerações finais
Peter Pál Pelbart, em seu texto Estamos em Guerra, discute
os sentidos de uma guerra política, que é “total, embora camuflada”
(PELBART, 2017, p.4), uma guerra que atinge diversos grupos sociais,
mas que é invisível aos olhos da mídia, que trata essa realidade como se
fosse “a mais estrita e pacífica normalidade institucional, social, jurídica,
econômica.” (PELBART, 2017, p. 5). A estratégia desse silêncio e
normalização observados pelo autor também torna possível a inversão de
sentidos e “uma corrosão da linguagem” (PELBART, 2017, p. 5), “em que
guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade,
golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil” (PELBART,
2017, p. 5). Nessa mesma guerra a que se refere Pelbart, a mídia e, no
caso desse artigo, o Jornal Extra, são responsáveis por fazerem uso da
linguagem de modo a mobilizar a opinião pública a respeito da violência
e ocupação de territórios pelo crime. Ao mesmo tempo, também define
o que deve ou não ser divulgado, o que é “guerra”, que são “casos de
polícia”, como são nomeadas as editorias do jornal.
A palavra, ou o signo ideológico, funciona nessa dinâmica em que
a linguagem é usada ora para anunciar guerras, ora para definir padrões de
normalidade e violência. Assim, entende-se pela análise que os sentidos
de “guerra” evocados pelo Jornal Extra têm como função orientar a
opinião pública a respeito da violência e criminalidade no Rio de Janeiro.
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Ao divulgar o nome da editoria de “Guerra do Rio” e relacionar com
os territórios ocupados pelo crime, o jornal define essa mesma “guerra”
com diferentes estratégias: o territorialismo, a truculência policial, a
ação das máfias. Essas contradições põem em cheque o posicionamento
do jornal, ora ligado ao Estado e sua presença nas comunidades através
das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), ora fazendo críticas à ação
“corrupta” e “truculenta” da polícia. A palavra “guerra” surge nesse
contexto, portanto, como demonstrativo do posicionamento do jornal
frente à realidade posta: para o jornal, essa mesma realidade se transforma
em mercadorias à venda em forma de notícias de guerra.
O Jornal Extra, ao definir o que seria “guerra” e violência “fora
da normalidade civilizatória”, não só se posiciona a respeito de um tipo
determinado de crime, mas também banaliza os crimes que eram tratados
até o momento pelo jornal em sua editoria “Casos de Polícia”. A editoria
“Guerra no Rio”, por sua vez, é constituída por crimes noticiados que
fazem parte de um agendamento feito pelo jornal, ou seja, pertencem a
um padrão espetaculoso que caracteriza o Extra como jornal popular.
A violência, os casos policiais, os crimes advindos ou não do tráfico de
drogas, são parte de uma realidade social que dá sentido à existência de
editorias afins no jornalismo sensacionalista.
Dessa maneira, no enunciado verbovocovisual estudado, os
sentidos da palavra “guerra” mostram o posicionamento ideológico do
Jornal Extra e sua relação com a população civil, assim como aponta o
projeto de dizer do jornal. O discurso apresentado pelo jornal anuncia
a guerra atrelada a políticas de combate ao silêncio do estado e à ação
da polícia, ao mesmo tempo observa-se que os sentidos construídos
através do todo arquitetônico do enunciado exaltam a voz do jornal e
do jornalismo em relação a uma tomada de posição sobre a realidade,
caracterizada, sobretudo, pelo tom de denúncia. Nesse sentido, o jornal
apresenta uma estratégia para promover sua própria visão do que é
cotidiano em uma cidade como o Rio de Janeiro.
Ressalta-se que através do enunciado verbovocovisual “Guerra
no Rio” a construção dos sentidos de guerra emerge da negação de
outros significados da palavra e através da afirmação do seu novo uso
como nome da editoria, para tipificar os casos de violência que o veículo
irá noticiar a partir daquele momento como “crimes de guerra”. Para
Volóchinov (2017, p. 224), “a língua é um processo ininterrupto de
formação por meio da interação sociodiscursiva dos falantes”, assim, é
296
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o uso da palavra em determinado contexto social que irá determinar seu
sentido. No caso da palavra guerra, por exemplo, o jornal tenta construir
novos sentidos apoiando-se em diversos elementos constituintes do
enunciado verbovocovisual como: a entonação de voz dos jornalistas de
tristeza e de denúncia; o uso da peça “Sarabande” da suíte para violoncelo
N°2 em ré menor de Bach; a imagem das comunidades focadas no
estudo realizado pela secretaria de segurança do Rio de Janeiro como
espaços exclusivos de violência e de guerra dominadas pelo tráfico e
ignoradas pelo estado; a voz do jornal centrada como voz da verdade
sobre a realidade social, acima do estado por denunciar a omissão dos
governantes; a forma de grafar É GUERRA na capa e na contradição
entre denunciar um dossiê secreto do estado que encontra-se publicado
em domínio público na internet; entre outros elementos, caracterizam
todos a voz sensacionalista do Jornal Extra.
A significação, portanto, se encontra no movimento feito pelo
uso cultural da palavra guerra e do direcionamento sensacionalista dado
pelo jornal ao usá-la. Dessa forma, a palavra não é parte de um sistema de
sentidos cristalizados, mas do uso social e histórico que é feito dela. É por
essa razão que a palavra guerra apresenta-se como signo ideológico, pois “[o
signo ideológico] não é somente uma parte da realidade, mas também reflete
e refrata uma outra realidade sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la,
ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). Logo, por meio da análise do enunciado
verbovocovisual “Guerra no Rio”, pode-se compreender que os sentidos
evocados com o uso da palavra guerra pelo jornal revelam, em uma macro
instância, que crimes vendem jornais e crimes de guerra podem vender mais
jornais. Esse trabalho busca evidenciar, então, como a guerra enunciada pelo
jornal é também uma tomada de posição com diversos sentidos, dentre os
quais se encontra a guerra enquanto produto a ser comercializado.
Agradecimentos
A primeira autora agradece ao professor Ms. Thiago de Souza Ferreira,
professor de instrumento (bateria e percussão) no Conservatório Estadual
de Música Cora Pavan Capparelli (Uberlândia-MG) pelo imprescindível
diálogo sobre Johann Sebastian Bach e sua suíte. A segunda autora
agradece à CAPES pela concessão de bolsa de estudos para cursar o
Mestrado em Estudos da Linguagem na Universidade Federal de Goiás,
Regional Catalão (Processo 1710949).
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Contribuição dos Autores
Giovanna dos Santos Diniz foi responsável pela ideia do tema e do
corpus de análise, bem como das leituras teóricas do jornalismo e da
comunicação e parte da análise. Grenissa Bonvino Stafuzza, por sua
vez, foi responsável pela fundamentação teórica advinda do Círculo de
Bakhtin, descrição e análise do corpus com vistas ao estudo do enunciado
verbovocovisual “Guerra do Rio”.
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Jurisprudência sobre a extensão do escopo da
Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas
de violência doméstica e familiar: análise pragmático-cognitiva
Jurisprudence About the Extension of the Scope of Maria da
Penha Law to Heterosexual men as Victims of Domestic
and Family Violence: Cognitive-Pragmatic Analysis
Fábio José Rauen
Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil
fabio.rauen@unisul.br
Bárbara Mendes Rauen
Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil
barbararauen@gmail.com
Resumo: Analisamos neste artigo jurisprudências sobre a extensão do escopo da Lei
Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar.
Para dar conta desse objetivo, aplicamos o aparato descritivo e explanatório da teoria
de conciliação de metas e da teoria da relevância em cinco acórdãos sobre conflitos
de competência selecionados dos tribunais de justiça da região sul do Brasil a partir
de 2010. Os resultados sugerem haver uma interpretação categórica segundo a qual
a Lei Maria da Penha deve ser aplicada somente em casos onde o sujeito passivo de
violência doméstica e familiar é mulher (sexo), de modo que os respectivos processos
não devem ser julgados por tribunais especiais.
Palavras-chave: pragmática cognitiva; teoria de conciliação de metas; teoria da
relevância; Lei Maria da Penha; jurisprudência.
Abstract: We analyze in this article the jurisprudence about the extension of the scope of
the Law 11.340/06—Maria da Penha Law—to encompass heterosexual men as victims
of domestic and family violence. We apply the goal-conciliation and relevance-theoretic
descriptive and explanatory apparatus on five selected cases of jurisdiction conflicts from
the courts of justice of the southern region of Brazil since 2010. The results suggest a
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.299-332
300
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categorical interpretation according to which the Law should be applied only in cases
where the passive subject of domestic and family violence is female (sex), in such a
way the cases should not be judged in special courts.
Keywords: cognitive pragmatics; goal-conciliation theory; relevance theory; Maria
da Penha law; jurisprudence.
Recebido em 07 de março de 2018
Aceito em 1o de maio de 2018
1 Introdução1
A Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006
– traduz-se em avanço significativo ao proteger mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar em geral promovida por companheiros
e familiares masculinos. Apesar desse mérito inequívoco, persistem
aspectos teóricos relevantes sobre sua aplicação, entre os quais o
argumento de que fere o princípio da igualdade, uma das cláusulas
pétreas da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao proteger somente
vítimas femininas. Mesmo que o dispositivo legal possa ser aplicado
com certa latitude a transexuais femininas, travestis, drag queens e
transformistas (RAUEN, B., 2017), ainda assim pode deixar em desabrigo
vítimas heteroafetivas masculinas. Pelicani (2007) segue justamente esse
argumento no artigo A Lei Maria da Penha e o princípio da igualdade:
interpretação conforme a Constituição, ao propor harmonizar a Lei
Maria da Penha com a Constituição, evitando discutir sua possível
inconstitucionalidade e, assim, estender sua aplicação a homens vítimas
de violência doméstica e familiar.
A extensão do escopo do abrigo da Lei Maria da Penha a vítimas
travestis, transexuais e transgêneros do sexo feminino vem sendo acolhida
1
Este artigo foi elaborado como requisito parcial para a conclusão de pesquisa de
iniciação científica do Programa Unisul de Iniciação Científica (PUIC). O estudo decorre
de pesquisa intitulada Extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens vítimas de
violência doméstica e familiar em Pelicani (2007): análise de viés pragmático cognitivo
(RAUEN, B., 2015) e está abrigado no Projeto Processos interacionais e conciliação
de metas, do Grupo de Pesquisa em Pragmática Cognitiva GPPC (Unisul, IFC, IFSC,
Unibave) do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul.
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301
pela jurisprudência e encontra fundamento no caput do artigo 5º da
própria Lei em comento, segundo o qual, “para os efeitos desta Lei,
configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: [...]” (grifos
nossos). Para Rauen e Rauen (2016), a escolha dos itens lexicais ‘mulher’
e ‘gênero’ produz efeitos de sentido. Ao estudarem a interpretação de Dias
e Reinheimer (2011) sobre o tema, os autores argumentam que somente
“mediante uma interpretação ad hoc do item lexical ‘mulher’ como
gênero, o escopo da Lei” pode ser estendido “a travestis, transexuais e
transgêneros do sexo feminino”.
A extensão proposta por Pelicani (2007) é ainda mais controversa,
pois elege como escopo central da Lei Maria da Penha a violência
doméstica e familiar em si mesma e deixa em segundo plano o sexo
ou o gênero da vítima. No artigo Extensão do escopo da Lei Maria da
Penha a homens vítimas de violência doméstica e familiar em Pelicani
(2007): análise pragmático-cognitiva (RAUEN; RAUEN, 2018, inédito),
estudamos como o argumento da autora é lógica e epistemologicamente
elaborado, ficando por verificar qual é a posição que os colegiados de
instâncias superiores assumem em lides nas quais se reivindicam o abrigo
da Lei a homens heteroafetivos.
Posto isso, analisamos neste artigo jurisprudências sobre a
extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos
vítimas de violência doméstica e familiar com base no aparato descritivo
e explanatório da teoria de conciliação de metas de Rauen (2013, 2014)
e, de modo subjacente, da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1995
[1986]). Em outras palavras, pretendemos investigar como os tribunais
acolhem esta hipótese de extensão, observando o contínuo argumentativo
que procede da instauração do processo até a publicação do acórdão.
Assumindo a teoria de conciliação de metas de Rauen (2013, 2014),
este estudo se inscreve em proposição recente no domínio da pragmática
cognitiva, no qual processos inferenciais abdutivos guiados por metas
presumidas sustentam processos interpretativos dedutivos guiados pelas
noções cognitiva e comunicativa de relevância. Posto isso, nossa hipótese é
a de que a jurisprudência é guiada por uma meta presumida que não somente
visa a pacificar o dissenso sobre determinado tema, mas impõe determinada
interpretação da Lei sobre outras, a serem silenciadas e interditadas –
exercendo, simultaneamente, vigilância epistêmica e deôntica (SPERBER
302
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
et al., 2010). Por hipótese, essas condições contextuais devem impor
constrições sobre as premissas relevantes mobilizadas abdutivamente na
argumentação. Assim sendo, este trabalho testa a pertinência das teorias de
conciliação de metas e de relevância conjugadas para descrever e explicar
a passagem do texto da Lei para o texto da jurisprudência.
Para dar conta de todas essas demandas, este texto foi organizado
em mais quatro seções, dedicadas a observações sobre o escopo da Lei
Maria da Penha, à arquitetura descritivo-explanatória, à análise de cinco
jurisprudências selecionadas e às considerações finais.
2 O escopo da Lei Maria da Penha
O preâmbulo da Lei Maria da Penha a seguir estampa como
objetivo do dispositivo legal a criação de mecanismos para coibição da
violência doméstica e familiar contra a mulher. Com a Lei, pretende-se
amparar vítimas femininas de violência doméstica, familiar e das relações
íntimas de afeto e, assim, diminuir a incidência desse tipo de coação.
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
(BRASIL, 2006, grifos nossos).
A promulgação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) reverbera
inúmeras iniciativas em direção à diminuição da violência doméstica e
familiar, incluindo tratados e convenções assinadas pelo país no sentido
de amparar os direitos das mulheres. Esse é o caso, por exemplo, da
I Conferência Mundial sobre a Mulher (1975), que culmina com a
Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres ou Convenção da Mulher (1984), dispondo sobre os
direitos humanos das mulheres, buscando igualdade de gênero e evitando
discriminações (PIMENTEL, 1979, p. 2).
Mais recentemente, destaca-se a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica ou Convenção
de Belém do Pará (1994) que, reconhecendo como fundamentos os
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303
direitos humanos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), assume que qualquer violação desses direitos restringe
as liberdades fundamentais, desrespeita a Declaração e ofende o princípio
da dignidade da pessoa humana (OEA, 1994).
Mesmo diante de todo esse esforço, é apenas em 7 de agosto 2006
que se promulga no Brasil uma Lei específica para combater a violência
doméstica e familiar contra mulheres: a Lei 11.340, mais conhecida como
Lei Maria da Penha.
Maria da Penha Maia Fernandes sofria agressões de seu excompanheiro. Entre 1997 e 1998, apoiada pelo Centro pela Justiça e
Direito Internacional e pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos
Direitos da Mulher, formalizou denúncia contra o Brasil na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos – OEA (SOUZA, 2009, p. 25), gerando o Relatório 54/01.
Diante da inadimplência e por quedar-se inerte perante a acusação, “o
Estado brasileiro se viu obrigado a criar uma Lei que desse amparo às
mulheres no âmbito da violência intrafamiliar” (RAUEN, B., 2017, p. 24).
Que o escopo da Lei Maria da Penha é o de coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher é explícito. Entretanto, a escolha dos
itens lexicais ‘mulher’ e ‘gênero’ no art. 5º sugere estender o amparo da
Lei a vítimas do gênero feminino como transexuais femininas, travestis,
drag queens e transformistas.
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial: [...]. (BRASIL, 2006,
grifos nossos).
Rauen, B. (2017) sugere que essa extensão é acolhida nos
tribunais. Estudando dois casos de jurisprudência sobre o tema em
Tribunais de Justiça Estaduais e quatro decisões em primeira instância,
concluiu que os tribunais admitem a aplicação da Lei nesses casos,
fazendo prevalecer a noção de gênero sobre a noção de sexo e amparando
esse entendimento nos princípios da igualdade e da defesa da dignidade
da pessoa humana.
A extensão de escopo para vítimas masculinas, entretanto, encontra
resistência mais severa. Para Bianchini (2014, p. 64), a aplicação da Lei
304
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a homens enquanto sujeitos passivos2 é indevida, uma vez que “são as
especificidades da violência de gênero (não vislumbradas quando o homem
é vítima) que devem servir de fundamento para a incidência da Lei”.3
Segundo Larrauri (1994 apud BIANCHINI, 2014, p. 64),
a violência praticada por mulheres a seus companheiros no âmbito
doméstico e familiar possui quatro características em geral: menor
intensidade de danos, finalidade de defesa de sua integridade ou da
integridade de seus filhos, motivação pontual sem pretensão de castigo
ou intimidação do agredido e ausência de produção de temor perdurável.
Pelicani (2007), por sua vez, defende uma extensão radical de
escopo, independente de vulnerabilidade, e fundamenta sua argumentação
no princípio formal de igualdade estampado no art. 5º da Constituição
Federal, onde se lê que todos devem ser iguais perante a Lei, e reforçado
no inciso I, onde se lê que homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, [...]:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição;
[...]. (BRASIL, 1988, grifos nossos).
Conforme a autora, uma vez que a Lei Maria da Penha elege
um gênero como objeto de abrigo legal, ela poderia ser objeto de ação
de inconstitucionalidade. Para superar esse impasse, Pelicani (2007)
propõe harmonizar a Lei à Constituição pelo princípio da igualdade
e, desse modo, estender seu escopo de proteção a vítimas de violência
doméstica e familiar, independente de sexo ou gênero do sujeito passivo
(cf. RAUEN; RAUEN, 2018. Inédito).
Mesmo o apelo ao princípio da igualdade pode ser rebatido, uma
vez que pode ser tratado como mera isonomia formal. Conforme Caixeta
(2011, p. 20), uma “[...] igualdade dita formal tem caráter absoluto,
podendo gerar inúmeras injustiças, pois esquece que os destinatários
da norma têm suas peculiaridades e diferenças”. A consideração de
peculiaridades e diferenças encontra respaldo na definição aristotélica de
2
Conforme Nucci (2013, p. 187), os titulares protegidos pelo tipo penal incriminador
violado.
3
Se isso pode estar correto para homens heteroafetivos adultos saudáveis, ainda assim
valeria questionar a extensão de escopo em casos de vulnerabilidade, quando a vítima
masculina é incapaz, menor ou idosa.
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305
igualdade, segundo a qual devemos dar um tratamento igual para os iguais
e desigual para os desiguais na medida de suas desigualdades, embora
Tavares (2009, p. 570) ressalve que essa definição é antes hipotética, visto
que não informa de que maneira ocorre a distinção entre desiguais e iguais.
Segundo Araujo e Nunes Júnior (2003, p. 96):
A locução, conquanto correta, parece não concretizar a explicação
adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da isonomia,
porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em
cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e
qual a medida dessa desigualdade.
Os autores (2003, p. 97) afirmam que é preciso harmonizar três
elementos para aplicar corretamente o princípio da igualdade: o critério
discriminador, a correlação lógica entre fator discriminador e tratamento
jurídico e a afinidade dessa correlação com valores albergados pela
Constituição.
Maia e Bezerra (2017, p. 1703), por sua vez, posicionam-se da
seguinte forma quanto à efetividade do princípio da igualdade:
A igualdade efetiva representa a articulação entre a igualdade
perante a lei, a redistribuição e o reconhecimento. Nessa
perspectiva, revela que a igualdade almejada pela norma não se
restringe a um tratamento uniforme a todos, sendo necessário
observar as particularidades de cada pessoa individualmente
diante das desigualdades do caso concreto, dando passagem
às diferenças entre os indivíduos, ou seja, pressupõe tratar
diferentemente os desiguais, mas uma diferença que não instigue
desigualdades, ao contrário, sob a perspectiva do direito ao
reconhecimento. (grifos nossos).
Fundamentadas no princípio da igualdade, Maia e Bezerra (2017,
p. 1704) argumentam em favor da extensão de escopo da Lei Maria da
Penha às transexuais femininas:
A igualdade como reconhecimento da pessoa transexual significa o
respeito a sua identidade e as suas diferenças, de modo a rechaçar
as injustiças sociais que lhes atingem, que as fazem detentoras de
menor respeito e prestígio social, em virtude de padrões culturais
arraigados que as inferiorizam, que as excluem e as rejeitam,
perpetuando a dominação cultural, o não reconhecimento ou
mesmo o desprezo da pessoa humana transexual.
306
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
Para Bianchini (2014, p. 129), o artigo 5º caput da Constituição
Federal, ao dispor que todos são iguais perante a Lei “sem distinção de
qualquer natureza”, viabiliza uma interpretação da Lei Maria da Penha
fundamentada na noção de gênero. Textualmente:
Os direitos das mulheres são indissociáveis dos direitos humanos:
não há que se falar em garantia universal de direitos sem que as
mulheres, enquanto humanas e cidadãs, tenham seus direitos
específicos respeitados. Tal afirmação é corolário do princípio da
igualdade, que determina não poder a Lei fazer qualquer distinção
entre indivíduos, o que inclui a distinção entre os sexos ou entre
os gêneros.
Essa extensão, todavia, não colide com a distinção essencial
proposta pela Lei, uma vez que merecem amparo de igual modo mulheres
definidas de maneira biológica e social.
Postas essas questões, apresentamos na seção seguinte as
ferramentas descritivo-explanatórias de que nos utilizaremos na análise
das jurisprudências.
3 A arquitetura descritivo-explanatória
Assumimos neste estudo que a elaboração de uma decisão de
segunda instância pode ser modelada ex-post-fato como produto de
um plano de ação intencional em direção à consecução ótima de uma
meta. Conforme Rauen (2014), um plano de ação intencional pode ser
descrito e explicado em quatro estágios: o primeiro estágio consiste em
projetar uma meta e é assumido como axiomático; os demais três estágios
consistem em formular, executar e checar pelo menos uma hipótese
abdutiva antefactual.
Os três primeiros estágios são abdutivos. O estágio [1] equivale
a uma descrição do tipo x é Q na qual certo estado x no futuro satisfará
uma expectativa de se alcançar certo estado de meta Q. O estágio [2]
consiste na abdução de pelo menos uma hipótese do tipo P é Q, contendo
uma ação antecedente P provavelmente suficiente para atingir esse estado
de meta Q. Segue disso que x é P, estágio [3], e o indivíduo i se sente
autorizado a executar a ação P na expectativa de atingir Q.4
4
Conforme Rauen (2018, p. 17), essa noção de abdução a priori ou antefactual é
resultado de uma analogia com abduções explicativas produzidas a posteriori ou pós-
307
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
Os três últimos estágios, por sua vez, são dedutivos, na medida
em que a hipótese abdutiva antefactual (P é Q) passa a ser tratada pelo
indivíduo i como uma premissa maior no estágio [2], a ação antecedente
x é P passa a ser tratada como premissa menor no estágio [3], deduzindose daí a conclusão x é Q no estágio [4].
Essa arquitetura pode ser vista na figura a seguir.
FIGURA 1 – Arquitetura abdutivo-dedutiva da teoria de conciliação de metas
Abdução
[1]
Dedução
Q
[2]
P
[3]
P
[4]
Q
Q’
Nota: Q’ representa a consecução da meta Q.
Fonte: Elaboração dos autores.
Para ilustrar como isso ocorre, vamos analisar a concessão de
liminar em agravo de instrumento do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do
Sul, de 16 de setembro de 2011, citada por Bianchini (2014, p. 65).5 Nesta
liminar, o Des. Dorival Renato Pavan aplica as disposições da Lei Maria
da Penha por analogia, deferindo solicitação de proibição de aproximação
de esposa agressora, de quem o marido está em processo de separação.
A primeira etapa da análise consiste em arbitrar a meta em
questão. Dado que o Des. Dorival Renato Pavan provê agravo de
instrumento, assumiremos que sua meta Q é a de julgar procedente
agravo de instrumento impetrado por vítima homem de agressora mulher
nos termos da Lei Maria da Penha.6 Para atingir essa meta Q, ele abduz
que a decisão deve aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa P.
factuais: “Em abduções explicativas, os indivíduos i observam um evento Q e, ex-postfacto, estabelecem uma hipótese de conexão nomológica entre certa causa antecedente
P e esse evento, que é tomado como um estado consequente Q decorrente dessa causa
antecedente P.” Decorre disso que a causa P é a melhor explicação (ou, pelo menos,
uma explicação ótima ) para a emergência desse evento consequente Q (PSILLOS, 2002;
HARMAN, 1965).
5
Essa liminar não compõe o corpus de jurisprudências selecionadas neste estudo.
6
Cabe aqui explicar que a definição de metas e submetas de um plano de ação intencional
tem de ser arbitrada conforme o nível de acuidade exigido pela descrição. Sempre é
308
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
Segue disso que ele executa essa ação P em direção ao provimento do
agravo de instrumento Q’.
[1]
Q – Julgar procedente agravo de instrumento
impetrado por vítima homem de agressora mulher nos
termos da Lei Maria da Penha, Desembargador.
[2]
P – Aplicar a Lei Maria da
Penha por analogia inversa,
Desembargador.
[3]
P – O Desembargador aplica
a Lei Maria da Penha por
analogia inversa.
[4]
Q – Julgar procedente agravo de instrumento
impetrado por vítima homem de agressora mulher nos
termos da Lei Maria da Penha, Desembargador.
Q’ – O Desembargador julga procedente agravo
de instrumento impetrado por vítima homem de
agressora mulher nos termos da Lei Maria da Penha.
Conforme Rauen (2014), dois conceitos emergem no quarto
estágio do modelo: o conceito de conciliação de metas e o conceito de
confirmação de hipóteses.
Há conciliação de metas7 sempre que o estado Q’ do ambiente
satisfaz, coincide com ou corresponde com a meta Q e inconciliação
de metas nos casos onde isso não ocorre. Visto que a ação antecedente
pode ou não ser executada, há (in)conciliações ativas em casos de ação
e (in)conciliações passivas em casos de inação. No caso em pauta, dado
que a decisão acolhe o agravo de instrumento aplicando a Lei Maria da
Penha por analogia inversa, podemos dizer que, do ponto de vista do
Desembargador, houve uma conciliação ativa.
Há confirmação de uma hipótese abdutiva antefactual sempre
que o estado da realidade Q’ satisfaz, coincide com ou corresponde com
a hipótese abdutiva antefactual Ha, de forma que o resultado da ação P
a reforça.8 No caso em pauta, houve confirmação de hipótese, pois, do
possível, reconhecemos, não somente considerar submetas cada vez mais detalhadas
como também metas de nível mais alto.
7
O termo metas está sendo usado em sentido próximo do utilizado em Ciências
Contábeis em termos como conciliação bancária ou de balanço.
8
Conforme o autor, quando a ação P é suficiente, necessária e certa para a consecução
Q, as hipóteses são categóricas P⇔Q; quando a ação P é suficiente, necessária, mas
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
309
ponto de vista do Desembargador, a elaboração do provimento reforça a
hipótese que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada por analogia inversa
a casos de vítimas homens de agressoras mulheres.
O exemplo, até aqui, revisa o que Rauen (2014) chama de
autoconciliação, uma vez que o Desembargador, ele mesmo, elabora a
hipótese abdutiva antefactual de aplicação da Lei Maria da Penha por
analogia inversa e verifica a pertinência dessa hipótese para a conciliação
de sua meta. Aspecto diverso é a interpretação dessas consecuções
por outras pessoas, que é abrigada pelo conceito de heteroconciliação,
especialmente porque a interpretação da Lei Maria da Penha por analogia
inversa habilita em caráter liminar a utilização dos dispositivos da Lei
Maria da Penha para proteger o marido vítima de agressão, mas não
garante seu acolhimento.
Conforme Rauen (2014), toda heteroconciliação de metas
demanda por processos comunicacionais sem os quais é impossível
às outras pessoas avaliarem a consecução de metas e a confirmação
de hipóteses abdutivas antefactuais. Para descrever e explicar esses
processos em teoria de conciliação de metas, consideram-se três camadas
de intenções, de tal forma que todo estímulo comunicativo corresponde a
uma intenção comunicativa superordenada por uma intenção informativa
superordenada por pelo menos uma intenção prática.
No caso em pauta, a intenção prática P de aplicar a Lei Maria da
Penha por analogia inversa – como subetapa da meta de nível mais alto Q
de julgar procedente agravo de instrumento – superordena uma intenção
informativa de tornar manifesta ou mais manifesta essa proposição
à audiência; e esta intenção informativa superordena a intenção
comunicativa de, mediante a formulação do voto, tornar mutuamente
manifesto para ambos, desembargador e audiência, que o desembargador
comunica essa proposição.9
Para a audiência avaliar a proposição do desembargador, é preciso
recuperar essas camadas de intenções. Para esse propósito, a teoria de
não é certa para a consecução Q, as hipóteses são bicondicionais P↔Q; quando a ação
P é suficiente, mas não é necessária para a consecução Q, as hipóteses são condicionais
P→Q; quando a ação P é necessária, mas não é suficiente para a consecução Q, as
hipóteses são habilitadoras P←Q; e, por fim, quando a ação P não é nem suficiente
nem necessária para a consecução Q, as hipóteses são tautológicas P-Q.
9
Sobre as noções de manifestabilidade e manifestabilidade mútua, ler Sperber e Wilson
(1995, p. 38-46).
310
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
conciliação de metas apropria-se do mecanismo de compreensão guiado
pela noção teórica de relevância. Em teoria da relevância, define-se por
relevância uma função entre efeitos cognitivos positivos maximizados e
esforços de processamento minimizados. Os efeitos cognitivos positivos,
ou seja, efeitos que contribuem positivamente para o preenchimento de
funções ou objetivos cognitivos, são gerados quando processamos um
estímulo num contexto de suposições cognitivas prévias. Um estímulo
pode fortalecer essas suposições, contradizer e eliminá-las ou ainda gerar
implicações – conclusões inferenciais que decorrem da combinação
desses estímulos com o contexto cognitivo. Admite-se que, em idênticas
as condições, a relevância é maior quando os efeitos cognitivos positivos
são maiores e os esforços de processamento necessários para gerar esses
efeitos são menores.10
A teoria da relevância organiza-se em dois princípios: o princípio
cognitivo de que a mente humana maximiza os efeitos cognitivos e o
princípio comunicativo de que enunciados, enquanto estímulos ostensivos
abertos, são presumidos como otimamente relevantes. Um enunciado é
otimamente relevante quando é pelo menos suficientemente relevante
para merecer processamento e quando é o estímulo mais relevante que o
falante se dispôs a ou foi capaz de produzir. Admitindo-se essa presunção,
o intérprete segue uma rota de esforço mínimo com base na decodificação
linguística, enriquece o estímulo para obter um significado explícito,
sempre que necessário, e completa esse significado em nível implícito,
sempre que pertinente.
Procedimento de compreensão guiada pela noção teórica de
relevância
Siga um caminho de menor esforço na computação de efeitos
cognitivos:
2a. Considere interpretações em ordem de acessibilidade;
2b. Pare quando sua expectativa de relevância é satisfeita.
(WILSON, 2004, lição 5, p. 1).
10
Sobre as noções de efeitos cognitivos positivos e esforço de processamento, ler
especialmente o posfácio da 2ª edição de Relevance: communication and cognition
(SPERBER, WILSON, 1995). Há uma tradução brasileira deste texto em Sperber e
Wilson (2005).
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311
Como relata Bianchini (2014, p. 65),11 tendo verificado haver
provas suficientes das agressões físicas e psicológicas, o desembargador
usou cinco premissas para o acolhimento do agravo de instrumento,
dentre as quais destacamos um excerto da primeira premissa. Para dar
conta de como se dá a interpretação do excerto conforme o procedimento
de compreensão guiado pela relevância, ele foi descrito em quatro versões
progressivamente mais complexas. Na versão (1a), representamos a
forma linguística do enunciado; na versão (1b), encaixamos a estrutura
linguística do enunciado em uma forma lógica; na versão (1c),
desenvolvemos a forma lógica a fim de obter sua explicatura; e, na versão
(1d), encaixamos a explicatura numa descrição de nível mais alto, que
leva em conta a atitude proposicional do falante:12
(1a) Forma Linguística: A inexistência de regra específica que
preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao
resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) não é
justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, [...].
(1b) Forma Lógica: (ser x (prever x, z), y).
(1c) Explicatura:13 A inexistência de regra específicax que [ReGRA
eSpeCíFICA ] x preveja medida protetiva de não aproximação
11
Não obtivemos acesso ao acórdão ou às informações posteriores sobre o processo.
Em nota de rodapé, a autora cita o endereço <http://www.tjms.jus.br/notícias/materia.
php?cod=20132> e a data de acesso 2 ago. 2012.
12
A descrição em quatro etapas sucessivas não deve levar a inferir que a audiência
segue essa ordem na interpretação de enunciados, ou seja, primeiro processando a forma
linguística para então processar a forma lógica, a explicatura e a atitude proposicional.
Assumindo a hipótese de que um conceito cognitivo pode ser acessado por entradas
linguísticas, lógicas e lexicais pelo menos, o processamento de um enunciado consiste,
em essência, no emparelhamento de entradas linguísticas fornecidas pelo estímulo
ostensivo com entradas enciclopédicas da memória, no contexto de uma estrutura
ou forma lógica constituída de entradas lógicas. Conforme prevê o procedimento de
compreensão guiado pela relevância, esse processo ocorre em ordem de acessibilidade
de modo que os estímulos ostensivos linguísticos, na medida em que são processados,
fornecem pistas para a atribuição de entradas lógicas, e a formulação lógica fornece
hipóteses sobre o emparelhamento de entradas enciclopédicas adequadas e hipóteses
antecipatórias sobre a estrutura sintática subsequente e, desse modo, hipóteses
antecipatórias sobre entradas linguísticas e enciclopédicas subsequentes.
13
Conforme Silveira e Feltes (2002, p. 18), apresentamos entre aspas simples as expressões
linguísticas quando referenciadas (‘Maria’), em versalete minúsculo as entradas
enciclopédicas (mARIA) e sem qualquer indicativo as referências no mundo (Maria).
312
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino)
[vítImAS de AGReSSãO NO âmbItO dOméStICO e FAmILIAR]z não é
justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito [de CONCeSSãO
de medIdA pROtetIvA de NãO ApROxImAçãO deStINAdA AO ReSGUARdO
dOS dIReItOS dOS HOmeNS (GêNeRO mASCULINO) vítImAS de AGReSSãO
NO âmbItO dOméStICO e FAmILIAR]y.
(1d) Explicatura expandida: o desembargador dorival renato
pavan afirma que A INexIStêNCIA de ReGRA eSpeCíFICA qUe [ReGRA
eSpeCíFICA ] pReveJA medIdA pROtetIvA de NãO ApROxImAçãO
deStINAdA AO ReSGUARdO dOS dIReItOS dOS HOmeNS
( GêNeRO
mASCULINO) vítImAS de AGReSSãO NO âmbItO dOméStICO e FAmILIAR
NãO é JUStIFICAtIvA pLAUSíveL AO INdeFeRImeNtO de tAL pLeItO de
CONCeSSãO de medIdA pROtetIvA de NãO ApROxImAçãO deStINAdA AO
ReSGUARdO dOS dIReItOS dOS HOmeNS (GêNeRO mASCULINO) vítImAS
de AGReSSãO NO âmbItO dOméStICO e FAmILIAR.
Para interpretar a premissa em pauta, assumimos que o intérprete
encaixa o enunciado linguístico (1a) numa forma lógica (1b) segundo
a qual algo x é algo y, tal que esse algo x prevê algo z. Na versão (1c),
por sua vez, vemos como essa forma lógica vai sendo sucessivamente
enriquecida para tornar-se plenamente proposicional e, assim, constituir-se
como explicatura do enunciado do juiz.14 Para isso, é necessário atribuir o
referente ReGRA eSpeCíFICA ao pronome relativo ‘que’ da sentença encaixada;
atribuir o referente vítImAS de AGReSSãO NO âmbItO dOméStICO e FAmILIAR
aos itens lexicais ‘homens’ e ‘gênero masculino’, uma vez que a eles se
refere a suposta previsão da lei; e atribuir referente CONCeSSãO de medIdA
pROtetIvA... ao item lexical ‘pleito’. Além disso, o intérprete encaixa essa
explicatura numa descrição de nível mais alto (1d) que inclui o ato de fala,
algo como o desembargador afirma que p, tal que P equivale à respectiva
explicatura.
Admitindo-se a correção da descrição em (1d), perceberemos
que sua enunciação só faz sentido se a audiência for capaz de encaixá-la
14
Conforme a teoria da relevância, em geral, os enunciados linguísticos são menos
que plenamente proposicionais. Em função disso, eles necessitam ser on-line e
pragmaticamente interpretados para constituírem uma proposição completa para a qual
é possível atribuir um valor de verdade. Por explicatura de um enunciado, define-se
essa proposição completa passível de ser verdadeira ou falsa.
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313
numa cadeia inferencial contendo premissas e conclusões implicadas15
cujo resultado é o acolhimento do agravo de instrumento. Algo como:
S116 – O Desembargador Dorival Renato Pavan afirma que a
inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de
não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens
(gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e
familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito
de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada
ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas
de agressão no âmbito doméstico e familiar (premissa implicada
derivada da explicatura do enunciado do desembargador).
S 2 – A Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas de não
aproximação destinadas ao resguardo dos direitos das mulheres
(gênero feminino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e
familiar (premissa implicada da memória enciclopédica).
S3 – As medidas protetivas de não aproximação destinadas ao
resguardo dos direitos das mulheres (gênero feminino) vítimas de
agressão no âmbito doméstico e familiar Lei Maria da Penha pode
ser aplicada por analogia a homens (gênero masculino) vítimas
de agressão no âmbito doméstico e familiar (conclusão implicada
por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3).17
S4 – As medidas protetivas de não aproximação destinadas ao
resguardo dos direitos das mulheres (gênero feminino) vítimas
de agressão no âmbito doméstico e familiar Lei Maria da Penha
15
Sperber e Wilson (1995 [1986]) assumem que os cálculos inferenciais são formados
por suposições S1-Sn concebidas, conforme o caso, como premissas ou conclusões
implicadas.
16
Por razões de caráter estético, as suposições, embora compostas exclusivamente por
entradas enciclopédicas, não estão escritas em versalete ou caixa alta.
17
Em teoria da relevância, admite-se que há um módulo interpretativo de caráter dedutivo
com livre acesso a suposições da memória ou do ambiente. Este módulo opera, entre
outras, por regras como as de eliminação-e e modus ponens. Numa regra de eliminação-e,
se consideramos verdadeiras duas suposições P e Q em conjunto, cada uma delas é
verdadeira em separado. Em termos próprios da lógica proposicional: “P∧Q, P” ou “P∧Q,
Q” (tal que ∧ representa a operação lógica de adição). Numa regra de modus ponens,
onde há uma relação de implicação entre duas suposições P e Q, se a primeira suposição
é afirmada P, segue-se necessariamente a afirmação da segunda suposição Q. Em termos
próprios da lógica proposicional: “P→Q, P, Q” (tal que → representa a operação lógica
de implicação). Por vezes, é possível combinar as duas regras como é o caso do modus
ponens conjuntivo: “(P∧Q) →R, P→R, R” ou então “(P∧Q) →R, Q→R, R”.
314
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
podem ser aplicadas por analogia à lide (conclusão implicada por
modus ponens: S3→S4).
Assumindo que a suposição S1 representa a intenção comunicativa
e que S4 representa a intenção prática em questão, essa cadeia de
inferências pode ser descrita em termos de um plano de ação intencional
da seguinte forma.
Intenção Comunicativa
Intenção Informativa
[1]
Intenção Prática
P – Aplicar a Lei
Maria da Penha por
analogia inversa,
Desembargador.
[2]
O – Informar que a inexistência de regra
específica que preveja medida protetiva de
não aproximação destinada ao resguardo
dos direitos dos homens (gênero masculino)
vítimas de agressão no âmbito doméstico
e familiar não é justificativa plausível ao
indeferimento do pleito de concessão de
medida protetiva de não aproximação
destinada ao resguardo dos direitos dos
homens (gênero masculino) vítimas de
agressão no âmbito doméstico e familiar,
desembargador.
[3] N – Afirmar que a inexistência
de regra específica que
preveja medida protetiva de
não aproximação destinada
ao resguardo dos direitos dos
homens (gênero masculino)
vítimas de agressão no âmbito
doméstico e familiar não
é justificativa plausível ao
indeferimento do pleito de
concessão de medida protetiva
de não aproximação destinada
ao resguardo dos direitos dos
homens (gênero masculino)
vítimas de agressão no
âmbito doméstico e familiar,
desembargador.
O – Informar que a inexistência de regra
específica que preveja medida protetiva
de não aproximação destinada ao
resguardo dos direitos dos homens (gênero
masculino) vítimas de agressão no âmbito
doméstico e familiar não é justificativa
plausível ao indeferimento do pleito de
concessão de medida protetiva de não
aproximação destinada ao resguardo dos
direitos dos homens (gênero masculino)
vítimas de agressão no âmbito doméstico e
familiar, desembargador.
P – Aplicar a Lei
Maria da Penha por
analogia inversa,
desembargador.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
315
[4] N – O desembargador afirma:
“A inexistência de regra
específica que preveja medida
protetiva de não aproximação
destinada ao resguardo dos
direitos dos homens (gênero
masculino) não é justificativa
plausível ao indeferimento de
tal pleito”.
[5]
[6]
O’ – O desembargador informa que a
inexistência de regra específica que preveja
medida protetiva de não aproximação
destinada ao resguardo dos direitos dos
homens (gênero masculino) vítimas
de agressão no âmbito doméstico e
familiar não é justificativa plausível ao
indeferimento do pleito de concessão de
medida protetiva de não aproximação
destinada ao resguardo dos direitos dos
homens (gênero masculino) vítimas de
agressão no âmbito doméstico e familiar.
P’ – O
desembargador
aplica a Lei Maria
da Penha por
analogia inversa.
Em síntese, o plano de ação intencional do desembargador
consiste de acolher o agravo de instrumento aplicando a Lei Maria da
Penha por analogia inversa. Para sustentar essa decisão, ele assume como
premissa a inexistência de regra protetiva para o resguardo de vítimas
masculinas. Havendo dispositivos na Lei Maria da Penha aplicáveis em
circunstâncias similares a mulheres vítimas de agressão doméstica e
familiar, em tese, eles podem ser aplicados a homens por analogia. Se
isso é verdadeiro em abstrato, é verdadeiro para a lide em questão, razão
pela qual resta justificado o pleito.
316
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
4 Análise das jurisprudências
Conhecidas, ainda que em linhas gerais, as arquiteturas descritivoexplanatória da teoria de conciliação de metas e da teoria da relevância,
estamos em condições de analisar os casos de jurisprudência sobre o
tema. Como vimos, o caso destacado por Bianchinni (2014) defere por
analogia a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da
Penha à vítima masculina de violência doméstica e familiar. Todavia,
consulta no acervo de jurisprudências dos Tribunais de Justiça do Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná sugere entendimento inverso.
Diante da quantidade de acórdãos que caminhavam no mesmo sentido,
optamos por selecionar cinco jurisprudências contendo conflitos de
competência entre varas especiais que tratam de casos da Lei Maria da
Penha e varas que abrangem demais situações do Direito Penal.
Assumindo que as cinco decisões de segunda instância podem
ser modeladas pela arquitetura abdutivo-dedutiva de Rauen (2014),
todas elas visam a julgar procedente o conflito de competência – a meta
prática Q de nível mais alto em questão. O voto dos relatores sugere
uma argumentação em dois níveis. Para julgar procedente o conflito,
eles argumentam pela inaplicabilidade da Lei Maria da Penha aos casos
(submeta P) e, para concluir que a Lei é inaplicável aos casos, eles
destacam que os sujeitos passivos são homens (submeta O).
[1]
Q – Julgar procedente
conflito de competência,
desembargador.
[2]
[3]
P – Argumentar que a
Lei Maria da Penha é
inaplicável aos casos,
desembargador.
O – Destacar o fato de que
o sujeito passivo nos casos
é homem, desembargador
P – Argumentar que a
Lei Maria da Penha é
inaplicável aos casos,
desembargador.
Q – Julgar procedente
conflito de competência,
desembargador.
317
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
[4]
O – O desembargador
destaca o fato de que o
sujeito passivo nos casos é
homem.
[5]
P’ – O desembargador
argumenta que a Lei Maria
da Penha é inaplicável aos
casos.
[6]
Q’ – O desembargador
julga procedente conflito
de competência.
Apresentado em linhas gerais como se organiza o plano de ação
intencional nessas decisões, vale identificar como ocorre a argumentação.
A rigor, e supostamente porque se trata de uma lide entre heteroafetivos,
o que se percebe é um recuo a uma interpretação default ou mais “literal”
do item lexical ‘mulher’ no texto do art. 5º da Lei, enquanto SeR HUmANO
dO SexO FemININO. Dado que a vítima de agressão não é mulher, resta
concluir por negação do consequente ou modus tollendo tollens18 que a
Lei é inaplicável às lides em questão.
Esse primeiro raciocínio pode ser modelado pelo seguinte
argumento condicional:
P→Q
Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então a vítima deve ser mulher.
¬Q
A vítima não é mulher (neste caso).
¬P
A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada (neste caso).
Uma vez que a Lei Maria não deve ser aplicada a vítimas
masculinas, conclui-se que o conflito de competência é procedente. Esse
18
Conforme Rauen (2015, p. 91), “por negação do consequente ou modus tollendo
tollens (significando ‘modo de negar o negado’) define-se um argumento condicional
válido que consiste em negar o conteúdo da proposição consequente na segunda
premissa. A ideia é que, ao destruir a proposição condicionada ou consequente, destróise a condição antecedente” (itálicos no original).
318
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
segundo raciocínio pode ser modelado por afirmação do antecedente ou
modus ponendo ponens.19
¬P→Q
Se a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada,
então o conflito de competência é procedente.
¬P
A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada (neste caso).
Q
O conflito de competência é procedente (neste caso).
Apresentada a linha de argumentação, estamos agora em
condições de verificar como esses planos convertem-se em intenções
informativas e comunicacionais nos cinco acórdãos selecionados. Nesse
propósito, para efeitos de simplificação da exposição, julgamos que o
leitor é capaz de inferir que estamos assumindo dois pressupostos em
cada uma das análises.
O primeiro deles é o de que, do ponto de vista da teoria de
conciliação de metas, os textos dos relatórios consistem em estímulos
ostensivos comunicacionais (a intenção comunicativa propriamente
dita) com os quais os desembargadores tornam mutuamente manifesto
para eles próprios e para a audiência (notadamente, os demais juízes
e as partes litigantes) que eles tornaram manifesto certo conjunto de
informações {I} (a intenção informativa) que, por sua vez, está a serviço
de intenções práticas.
O segundo deles é o de que, do ponto de vista da teoria da
relevância, a interpretação dos estímulos comunicacionais pode ser
descrita e explicada pelo procedimento de compreensão guiado pela
relevância, de tal modo que esses enunciados podem ser encaixados em
formas lógicas, a partir dessas formas lógicas podem ser depreendidas as
respectivas explicaturas e, a partir dessas explicaturas assumidas como
premissas implicadas, podem ser derivadas cadeias de implicaturas.
A primeira jurisprudência20 refere-se a inquérito policial sobre
suposta ameaça praticada por A. A. G. e V. L. G. contra M. R. V.21 Os
Confira-se a nota 16.
PARANÁ. Tribunal de Justiça. Conflito de competência crime nº 647.834-8. Relator:
Des. Luiz Osório Moraes Panza, 25 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www.
tjpr.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017.
21
Embora públicos, optamos por abreviar os nomes dos litigantes.
19
20
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
319
autos foram remetidos ao 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central
da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, e o Juízo determinou
a remessa do feito ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra
a Mulher. O conflito de competência, que obtém parecer favorável da
Procuradoria Geral de Justiça, decorre do fato de a vítima ser do sexo
masculino.
O Des. Luiz Osório Moraes Panza inicia seu relatório retomando
a ementa da Lei Maria da Penha. Em seguida, destaca os sujeitos ativos
e passivos a que a Lei se refere.
Esta lei aplica-se sempre quando se tratar de violência
cometida no âmbito das relações domésticas e familiares, [...],
independentemente do gênero do sujeito ativo.
Contudo, no que tange ao sujeito passivo, a questão é resolvida
de forma bastante simples ao verificarmos que a Lei Maria da
Penha, em toda a sua redação, refere-se apenas à mulher como
vítima. (grifos nossos).
Como se pode observar, ao definir “de forma bastante simples”
que o sujeito passivo tem de ser mulher, o desembargador conclui que
a lei é inaplicável ao caso.
S1 – A Lei Maria da Penha refere-se [Lei Maria da Penha] apenas
à mulher como vítima de violência cometida no âmbito das
relações domésticas e familiares em toda a sua [da Lei Maria da
Penha] redação (premissa implicada derivada da explicatura do
enunciado do desembargador).
S2 – A vítima M. R. V. é homem no conflito de competência22
(premissa implicada proveniente da memória enciclopédica ou
dos estímulos ostensivos dos autos).
S3 – As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha
não devem ser aplicadas no conflito de competência porque a
vítima M. R. V. é homem (conclusão implicada por modus ponens
conjuntivo: S1∧S2→S3).
A rigor: “no conflito de competência entre o 2º Juizado Especial Criminal do Foro
Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba e o Juizado de Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher”. Neste e nos demais casos de remissão às lides,
optamos por simplificar a exposição.
22
320
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
Segundo o desembargador, “como o próprio nome diz”, compete
ao Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher
processar e julgar os “crimes decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher e respectivas medidas protetivas de
urgência”. Sendo assim, decide-se que a “a competência para processar
e julgar o presente caso se firme no 2ª Juizado Especial Criminal do
Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba”, razão
pela qual e com máxima urgência, devem-se “adotar as providências
necessárias no sentido de agilizar a marcha processual”.
A respectiva cadeia de inferências pode ser assim modelada.
S1 – As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha não
devem ser aplicadas no conflito de competência porque a vítima
M. R. V. é homem (premissa implicada).
S 2 – O Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar
Contra a Mulher não é competente para julgar o caso de M. R. V.
(conclusão implicada por modus ponens: S1→S2).
S3 – O conflito de competência procede (conclusão implicada por
modus ponens: S2→S3).
S 4 – A competência para processar e julgar o presente caso
deve firmar-se no 2ª Juizado Especial Criminal do Foro Central
da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (conclusão
implicada por modus ponens: S3→S4).
S5 – O 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca
da Região Metropolitana de Curitiba deve adotar as providências
necessárias no sentido de agilizar a marcha processual (conclusão
implicada por modus ponens: S4→S5).
A segunda jurisprudência refere-se a conflito negativo de
competência suscitado pelo Dr. Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da
Comarca de Pelotas face a redistribuição do feito determinada pelo
Dr. Juiz de Direito do JECRIM23 da mesma Comarca, ao entender que
a competência para julgamento é do Dr. Juiz de Direito do JECRIM.24
Segundo o suscitante, o feito trata, em tese, de crimes tipificados nos
Por JECRIM, sigla de Juizado Especial Criminal, define-se um órgão da Justiça
Ordinária com competência para julgar crimes considerados de menor potencial ofensivo.
24
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de Jurisdição nº 70044908549.
Relator: Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, 10 de maio de 2012. Disponível em:
<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017.
23
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
321
artigos 147 e 163 do Código Penal. Uma vez que o sujeito ativo neste
processo é M. S. C., de 26 anos, e o sujeito passivo é seu pai N. P. C., de
60 anos, argumenta que a Lei Maria da Penha não se aplica ao caso. A
Procuradoria de Justiça opinou pela procedência do conflito.
O Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa começa seu voto,
tornando mutuamente manifesto o Boletim de Ocorrência 6047/2010
da Delegacia de Polícia Civil de Pelotas, que originou o procedimento.
Segundo Canosa, “Resulta, daí, que há noticia criminis relativa à prática
dos delitos de dano e ameaça, sendo apontado como autor M. S. C.
(filho da vítima), constando como vítima seu pai, N. P. C.” (grifos no
original, abreviaturas nossas). Em seguida, o desembargador profere
sua conclusão: “Constando como vítima um homem – no caso, o pai do
acusado –, não há incidência da Lei 11.340/06”.
Para fundamentar sua decisão, Canosa opta por tornar mutuamente
manifesto três casos precedentes da Corte.
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA.
VÍTIMA. HOMEM. A lei Maria da Penha foi criada para
dar proteção à mulher. Quando a vítima do crime for um
homem, não se aplica a Lei Maria da Penha.. CONFLITO DE
COMPETÊNCIA PROCEDENTE.”
(Conflito de Jurisdição Nº 70042334987, Terceira Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José
Giacomolli, Julgado em 19/05/2011) - destaquei
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA
DA PENHA. CRIME DE MAUS TRATOS PRATICADO PELA
MÃE CONTRA O CASAL DE FILHOS. NÃO INCIDÊNCIA
DA LEI 11.340/06. Havendo estatuto próprio de proteção da
criança vítima de violência, não se pode aplicar indistintamente
uma lei criada com a finalidade de proteger a mulher da violência
masculina, em razão, principalmente, da sua inferioridade física.
Aliado a isso, a aplicação da Lei Maria da Penha só ocorre
quanto aos fatos praticados por homem contra mulher, o
que inocorre in casu, devendo o feito ser apreciado pelo
juízo comum suscitado. CONFLITO NEGATIVO JULGADO
PROCEDENTE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO.”
(Conflito de Jurisdição Nº 70046682498, Terceira Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco
Conti, Julgado em 09/02/2012) - destaquei
322
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
“CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
LEI Nº 11.340/06. DESCABIMENTO. JUIZADO ESPECIAL
CRIMINAL COMPETENTE PARA INSTRUIR E JULGAR
O FEITO. AUSÊNCIA DE FATOS QUE ENSEJEM
A INCIDÊNCIA DAS MEDIDAS PREVISTAS NA LEI
MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DE HOMEM CONTRA
HOMEM. RÉU DENUNCIADO POR INFRAÇÃO AO ART.
129, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL, AINDA QUE, EM TESE,
O FATO DEVESSE SER ENQUADRADO NO § 9º DAQUELE
DISPOSITIVO. Conflito de jurisdição julgado improcedente.”
(Conflito de Jurisdição Nº 70040055972, Primeira Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José
Martinez Lucas, Julgado em 16/03/2011) – destaquei. (grifos
no original).
Em comum, os três casos precedentes da corte referem-se à
inaplicabilidade da Lei quando o sujeito passivo é homem, seja adulto,
seja criança, independentemente de o sujeito ativo ser mulher ou homem.
Segue disso o voto no sentido de “julgar procedente o conflito, para fixar
como competente para exame da matéria o Juiz de Direito do JECRIM
da Comarca de Pelotas”.
Posto isso, o argumento pode ser assim modelado.
S1 – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada em casos nos
quais a vítima é homem (premissa implicada).
S2 – Três precedentes da Corte consideram inaplicável a Lei Maria
da Penha em casos de vítimas masculinas (premissa implicada).
S3 – A vítima é homem no conflito de jurisprudência entre 3ª Vara
Criminal da Comarca de Pelotas e o JECRIM da Comarca de
Pelotas (premissa implicada).
S4 – O conflito de jurisprudência entre a 3ª Vara Criminal da
Comarca de Pelotas e o JECRIM da Comarca de Pelotas é
procedente (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo:
S1∧S2∧S3→S4).
S 5 – O Juiz de Direito do JECRIM da Comarca de Pelotas é
competente para julgar o caso (conclusão implicada por modus
ponens: S4→S5).
A terceira jurisprudência trata de conflito de competência, com
parecer favorável da Procuradoria de Justiça, suscitado pelo Juiz da 2ª
Vara Criminal de Caxias do Sul, contra decisão do magistrado do Juizado
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
323
Especial Criminal, que “determinou a redistribuição do feito àquele
Juízo, por entender tratar o caso dos autos de matéria relativa à violência
doméstica e familiar contra a mulher”.25 O caso refere-se à prática do
delito de ameaça de A. F. S. contra J. M. O., seu ex-companheiro.
O Des. Luiz Mello Guimarães relata que o conflito de competência
deve prosperar, uma vez que considera “não ser aplicável na hipótese
dos autos a Lei nº 11.340/2006,26 pois a vítima, no caso, é do sexo
masculino” (grifo nosso).
Nesse excerto, o argumento subjacente pode ser assim modelado:
S1 – A vítima J. M. O. no caso de conflito de competência suscitado
pelo Juiz da 2ª Vara Criminal de Caxias do Sul contra decisão do
magistrado do Juizado Especial Criminal é do sexo masculino
(premissa implicada com base na explicatura dos enunciados do
desembargador).
S2 – A Lei nº 11.340/2006 [Lei Maria da Penha] não é aplicável na
hipótese dos autos conflito de competência (conclusão implicada
por modus ponens S1→S2).
S 3 – O conflito de competência deve prosperar (conclusão
implicada por modus ponens S2→S3).
A constatação de que a vítima é homem sustentará, em seguida,
o encaminhamento do processo para o Juizado Especial Criminal de
Caxias do Sul.
Ora, o juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
não é competente para o julgamento de crime de ameaça, mesmo
que no âmbito doméstico, contra a vítima homem.
[...].
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o conflito de competência
para declarar competente o juízo do Juizado Especial Criminal da
Comarca de Caxias do Sul.
Esse argumento pode ser assim modelado:
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70062842471
(n° CNJ: 0476810-53.2014.8.21.7000). Relator: Des. Luiz Mello Guimarães, 12 de
fevereiro de 2015. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017.
26
Mais adiante, o desembargador afirma que “Assim, em sendo vítima um homem – no
caso, o ex-companheiro da acusada –, não há incidência da Lei 11.340/06”, citando o
artigo 5º da Lei 11.340/06 como fundamento.
25
324
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S1 – A vítima J. M. O. no caso de conflito de competência é do
sexo masculino (premissa implicada com base na explicatura dos
enunciados do desembargador).
S 2 – O juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher não é competente para o julgamento de crime de ameaça
contra a vítima homem mesmo que no âmbito doméstico
(premissa implicada com base na explicatura dos enunciados do
desembargador).
S3 – Guimarães julga procedente o conflito de competência de
competência para declarar competente o juízo do Juizado Especial
Criminal da Comarca de Caxias do Sul (conclusão implicada por
modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3).
O quarto caso refere-se a “recurso de apelação interposto em face
do indeferimento de medidas protetivas pleiteadas em favor de D. S.
G.” (abreviatura nossa)27. O apelante argumenta ser vítima de violência
doméstica e que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada por analogia
por tratar-se de idoso vulnerável.
O Des. Jayme Weingartner Neto assim se posiciona:
A fixação de competência no âmbito dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar, criados pela Lei 11.340/06, depende da
análise de três vetores que indicam, quando presentes de forma
cumulativa, a incidência da cognominada Lei Maria da Penha.
A um, a existência de relação íntima de afeto entre agressor e
vítima; a dois, a violência de gênero, direcionada à prática delitiva
contra mulher; e, a três, a situação de vulnerabilidade da vítima
em relação ao agressor.
No caso dos autos, tratando-se de vítima do sexo masculino,
inviável reconhecer a incidência da Lei nº 11.340/06 que visa
coibir a violência de gênero. Portanto, em se tratando de lei que
visa à proteção especial às mulheres, inviável acolher o presente
pleito. (negritos no original).
27
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação crime nº 70063020689 (n°
CNJ: 0494631-70.2014.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 11 de março
de 2015. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
325
Neste excerto, observamos que o desembargador apresenta
no consequente do condicional28 a conjunção de, nos seus termos, três
vetores para a aplicação da Lei Maria da Penha: relação íntima de afeto
entre agressor e vítima, violência de gênero direcionada à prática delitiva
contra mulher e situação de vulnerabilidade da vítima em relação ao
agressor. Isso implica dizer que, conforme o relator, a Lei somente pode
ser aplicada na presença cumulativa dos vetores. O caso não atende
explicitamente ao segundo consequente do enunciado condicional, ou
seja, trata-se de “vítima do sexo masculino”. Resta evidente que, “em
se tratando de lei que visa à proteção especial às mulheres”, é “inviável
acolher o presente pleito”.29
S 1 – O desembargador afirma que a fixação de competência
para julgar casos de violência doméstica e familiar no âmbito
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, criados pela
Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha], depende da análise de três
vetores [relação íntima de afeto, violência de gênero contra
mulher e vulnerabilidade] que [relação íntima de afeto, violência
de gênero contra mulher e vulnerabilidade] indicam, quando
[relação íntima de afeto, violência de gênero contra mulher e
vulnerabilidade] estão presentes de forma cumulativa em casos de
violência doméstica e familiar, a incidência da cognominada Lei
Maria da Penha [Lei 11.340/06] (premissa implicada derivada da
explicatura do primeiro enunciado do voto do desembargador).
S2 – O desembargador vota que é inviável reconhecer a incidência
da Lei nº 11.340/06 [Lei Maria da Penha] que [Lei Maria da
Penha] visa coibir a violência de gênero no âmbito doméstico
e familiar no caso dos autos de apelação interposto em face do
indeferimento de medidas protetivas pleiteadas em favor de D.
28
Dada uma formulação condicional padrão do tipo ‘Se P, então Q’ ou ‘P implica Q’,
definem-se por antecedentes do condicional os termos representados por P que sucedem
a conjunção ‘se’ e definem-se por consequentes do condicional os termos representados
por Q que sucedem a conjunção ‘então’.
29
Para reforçar o argumento, o desembargador acrescenta decisão precedente do STJ,
segundo a qual o “sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida lei, é a
mulher” e do TJ/RS, segundo a qual “a Lei nº 11.340/2006 se aplica em proteção apenas
às vítimas do sexo feminino, de modo que as medidas protetivas de urgência por ela
reguladas não podem ser requeridas pelo homem em desfavor da mulher”.
326
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S. G., uma vez D. S. G tratando-se de vítima do sexo masculino
(conclusão implicada por modus ponens S1→S2).
S3 – O desembargador vota que é inviável acolher o pleito de
recurso de apelação interposto em face do indeferimento de
medidas protetivas pleiteadas em favor de D. S. G (conclusão
implicada por modus ponens S2→S3).30
O quinto caso refere-se a “conflito de competência suscitado pelo
Juiz de Direito da 6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre contra
o Juiz de Direito do 1º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto
Alegre”, que também foi analisado pelo Des. Jayme Weingartner Neto.31
O Desembargador inicia seu voto colacionando parecer do Procurador
de Justiça para, nos seus termos, “evitar tautologia”. Seguem excertos
do parecer.
Ocorre que, no caso, não se trata de delito previsto no âmbito
da Lei 11.340/06. Não houve violência de homem contra
mulher, houve, em tese, lesão corporal de natureza leve e ameaça
praticadas por uma mulher contra um homem. A Lei Maria da
Penha trata da violência contra a mulher no âmbito familiar, mais
especificamente, da violência de homem contra mulher.
Logo, por não se tratar, no caso, de fato relacionado à violência do
gênero, não está paliado por tal diploma legal. O sujeito passivo da
violência doméstica, objeto da Lei 11.340/06, é a mulher, de modo
que, em se tratando de vítima de gênero masculino, não se aplica
tal diploma legal, o que retira a competência do juízo suscitante.
[...]
Dessa forma, está-se a tratar, em tese, diante dos delitos previstos
no art. 129, caput, e 147, ambos do Código Penal, a competência
30
Em lógica proposicional, esse argumento poderia ser assim modelado: P→(Q∧R∧S)
– Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então dever haver relação íntima de afeto,
violência de gênero contra mulher e vulnerabilidade; ¬R – Não há violência de gênero
contra mulher neste caso; ¬P – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso;
¬P→T – Se a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso, então é inviável
acolher apelação; T – É inviável acolher apelação.
31
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70075577759
(nº CNJ: 0321890-19.2017.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 29 de
novembro de 2017. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
327
para julgar o fato é do Juizado Especial Criminal, ope legis.32
(grifos no original).
Nesse voto mais recente, Weingartner Neto produz um argumento
condicional diferente daquele exarado em 2015. A aplicação da Lei Maria
da Penha agora só é admitida quando houver “relações domésticas e
familiares” e violência contra mulher. Nos seus termos, “ainda que se trata
de delito envolvendo relações domésticas e familiares”, o caso se refere
a “vítima do sexo masculino”, razão pela qual é “inviável a aplicação
do rito da Lei Maria da Penha” e, por consequência, a competência do
caso não deve ser do Juizado Especial Criminal. Em síntese, o sexo do
sujeito passivo é, outra vez, suficiente para não aplicar a Lei.
O primeiro excerto pode ser assim modelado:
S1 – Houve, em tese, lesão corporal de natureza leve e ameaça
praticadas por uma mulher contra um homem no caso de conflito
de competência... (premissa implicada da explicatura dos
enunciados do voto).
S2 – Não houve violência de homem contra mulher no caso de
conflito de competência (premissa implicada da explicatura dos
enunciados do voto).
S3 – O caso de conflito de competência ... não constitui delito
previsto no âmbito da Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha]
(conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3).
S 4 – A Lei Maria da Penha trata, mais especificamente, da
violência de homem contra mulher no âmbito familiar (premissa
implicada da explicatura dos enunciados do voto).
S 5 – O caso de conflito de competência... não trata de fato
relacionado à violência do gênero
S6 – O caso de conflito de competência... não está paliado por tal
diploma legal [Lei Maria da Penha] (conclusão implicada por
modus ponens conjuntivo: S4∧S5→S6).
S7 – O sujeito passivo da violência doméstica e familiar objeto da
Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha] é mulher.
S 8 – A vítima [sujeito passivo da violência doméstica e
familiar] é de gênero masculino [homem] no caso de conflito
de competência... (premissa implicada da explicatura dos
enunciados do voto).
32
Expressão latina que significa “por força da lei”.
328
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
S9 – Não se aplica tal diploma legal [A Lei Maria da Penha] ao caso
de conflito de competência... (conclusão implicada por modus
ponens conjuntivo: S7∧S8→S9).
S10 – O fato de a Lei Maria da Penha não se aplicar ao caso de
conflito de competência... retira a competência do juízo suscitante
[6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre] (premissa
implicada da explicatura dos enunciados do voto).
S11 – O caso de conflito de competência... trata de delitos previstos
no art. 129, caput, e 147, ambos do Código Penal (premissa
implicada da explicatura dos enunciados do voto).
S12 – A competência para julgar o fato é do Juizado Especial
Criminal Criminal do Foro Central de Porto Alegre, ope
legis (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo:
S10∧S11→S12).33
Weingartner Neto complementa:
Em suma, é da essência do conceito legal de violência doméstica e
familiar, para efeitos de aplicação da legislação especial protetiva
(e, vale lembra, mais gravosa para o sujeito ativo do delito, o que
implica cuidado com o princípio constitucional da reserva legal),
ação ou omissão, contra mulher, baseada no gênero, independente
de orientação sexual – mas não do sexo (artigo 5º, “caput” e
parágrafo único da Lei 11.340/2006).
Tratando-se, portanto, de vítima do sexo masculino, inviável
a aplicação do rito da Lei Maria da Penha, ainda que se trata
de delito envolvendo relações domésticas e familiares. (grifos
nossos).
5 Considerações finais
Considerados os avanços da Lei Maria da Penha (2006) para a
proteção de vítimas femininas de violência doméstica e familiar em geral,
persistem em aberto aspectos teóricos sobre sua aplicação, entre os quais
33
Em lógica proposicional, esse argumento poderia ser assim modelado: P→(Q∧R)
– Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então dever haver relações domésticas e
familiares e a vítima deve ser mulher; ¬R – Não há vítima mulher neste caso; ¬P – A
Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso; ¬P→Q – Se a Lei Maria da Penha
não deve ser aplicada ao caso, então o conflito de competência deve ser acolhido; ¬P
– A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada ao caso; Q – O conflito de competência
deve ser acolhido.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
329
a questão de escopo. Se, de um lado, tem-se admitido na jurisprudência
uma interpretação mais alargada que acolhe transexuais femininas,
travestis, drag queens e transformistas e faz prevalecer uma interpretação
do item lexical ‘mulher’ como gênero, aspecto mais controverso é sua
aplicação por analogia a vítimas heteroafetivas masculinas. Posto isso,
analisamos jurisprudências sobre a extensão do escopo da Lei Maria da
Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar
com base no aparato descritivo e explanatório da teoria de conciliação de
metas de Rauen (2013, 2014) e teoria da relevância de Sperber e Wilson
(1995 [1986]), investigando se os tribunais acolhem esta hipótese de
extensão e observando a respectiva argumentação.
Tendo sido selecionados cinco casos, os resultados sugerem haver
uma interpretação categórica sobre o tema nos tribunais da região sul do
Brasil, segundo a qual a Lei Maria da Penha deve ser aplicada somente
em casos onde o sujeito passivo de violência doméstica e familiar é
mulher. Em comum, as decisões referem-se a conflitos de competência
entre varas especiais que tratam de violência doméstica e familiar e varas
que abrangem demais situações do Direito Penal. Para dirimir esses
conflitos (meta Q), todos os relatores utilizaram-se de argumentos em
dois estágios, de tal modo a se posicionam em favor da inaplicabilidade
da Lei (submeta P), destacando que o sujeito passivo nesses casos é
masculino (ação O).
Em essência, há um recuo a uma interpretação default ou mais
“literal” do item lexical ‘mulher’ no texto do art. 5º da Lei, enquanto
SeR HUmANO dO SexO FemININO. Uma vez que a vítima de agressão não é
mulher, resta concluir por negação do consequente que a Lei é inaplicável
às lides; e uma vez que a Lei Maria não deve ser aplicada a vítimas
masculinas, resta concluir por afirmação do antecedente que procede o
conflito de competência.
Agradecimentos
Os autores agradecem as contribuições pertinentes dos consultores
da Revista de Estudos da Linguagem para o aperfeiçoamento do
presente texto e assumem integral responsabilidade pelos equívocos
remanescentes. Ademais, agradecem o Programa Unisul de Iniciação
Científica (PUIC) pela viabilização do estudo.
Declaração de autoria
330
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019
Declaramos que o texto foi redigido integralmente pelos dois autores. O
primeiro autor é mais diretamente responsável pelo aporte teórico e pela
metodologia descritivo-explanatória. O segundo autor é mais diretamente
responsável pelo aporte das informações do campo do direito e pela
prospecção e seleção do corpus.
Referências
ARAUJO, L. A. D.; NUNES JÚNIOR, V. S. Curso de direito
constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
BIANCHINI, A. Lei Maria da Penha: Lei N. 11.340/206: aspectos
assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014
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Sistemas de discurso e eficácia na comunicação
em contextos de promoção da saúde: contribuições
da técnica do detalhamento acadêmico
Discourse Systems and Efficiency in Communication
in Health Promoting Contexts: The Academic Detailing
Technique’s Contributions
Dóris Cristina Gedrat
Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade Luterana do
Brasil, Canoas, Rio Grande do Sul / Brasil.
doris.cristina10@gmail.com
Gehysa Guimarães Alves
Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade Luterana do
Brasil, Canoas, Rio Grande do Sul / Brasil.
gehysa@terra.com.br
Resumo: Considerando-se a comunicação como um processo intercultural, o objetivo
deste artigo é mostrar a presença da comunicação interdiscursiva nas interações
sociais e profissionais, destacando o detalhamento acadêmico como técnica que visa
à aproximação do sistema de discurso da área de comércio e vendas de medicamentos
com o sistema de discurso médico. Buscou-se fundamento na análise do discurso
etnometodológica, com foco na comunicação entre profissionais da saúde, considerandose esta essencialmente intercultural. Conclui-se que o detalhamento acadêmico contribui
para melhorar o uso racional de medicamentos e otimizar a eficiência de sistemas
de saúde porque promove uma interação entre sistemas de discursos diferentes, que
têm objetivos e focos diferentes, almejando chegar ao melhor resultado possível
considerando os usuários do sistema.
Palavras-chave: sistemas de discurso; detalhamento acadêmico; promoção da saúde;
interdisciplinaridade.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.333-358
334
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
Abstract: Taking communication as an intercultural process, the purpose of this essay
is to show how interdiscourse communication is present in social and professional
interactions, highlighting academic detailing as a technique that aims at bringing
together the drug market and the medical discourse systems. The scientific basis is found
in ethnomethodological discourse analysis, focusing communication among health
professionals, viewed as essentially intercultural. The main conclusion is that academic
detailing contributes to improve rational use of medications and to enhance efficiency
in health systems because it promotes an interaction among different discourse systems,
which have different aims and foci. It aims at the best possible results considering the
system’s users.
Keywords: discourse systems; academic detailing; health promotion; interdisciplinarity.
Recebido em 01 de março de 2018
Aceito em 05 de julho de 2018
1. Introdução
Qualquer ação social é realizada por alguma ou várias formas
de comunicação, pois o próprio termo, “ação social”, deixa implícito,
em primeiro lugar, um sistema de significado comum compartilhado e,
em segundo, a comunicação. No entanto, esta não é algo simples de se
explicar, e isso ocorre em função de duas razões em especial: as pessoas
frequentemente não expressam o que realmente pensam, ou não acreditam
no que dizem (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). No entanto,
não se está, neste momento, considerando a desonestidade ou falta de
sinceridade, e sim o fato de a linguagem ser complexa e essencialmente
ambígua, principalmente quando as pessoas que se comunicam pertencem
a diferentes sistemas de discurso.
Nessa perspectiva, pretende-se refletir, à luz da análise linguística
de discurso de base etnometodológica, sobre a comunicação intercultural
em situações de interação social e profissional, destacando como exemplo
ilustrativo o detalhamento acadêmico, técnica que utiliza metodologias
de mudança de comportamento para fornecer educação e informação de
forma objetiva (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Assim,
buscou-se na etnometodologia um subsídio que mostra a comunicação
entre os sistemas de discurso da área médico-clínica e os das áreas
de vendas, comércio e marketing de medicamentos. O fenômeno
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está relacionado ao fato de que, na comunicação, há continuamente a
interação entre diferentes sistemas de discurso: comunicação intercultural
(SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012; JONES, 2013). O foco ou
objetivo de um grupo pertencente a um sistema de discurso nem sempre é
o mesmo do grupo que utiliza outro sistema que pertence a outra cultura.
O detalhamento acadêmico auxilia na aproximação de sistemas de
discurso diferentes, no caso do presente estudo, o da área de comércio e
vendas de medicamentos por um lado, e, por outro, o sistema de discurso
médico, que prescreve medicamentos em função do diagnóstico clínico
(COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015).
Considera-se aqui a perspectiva da linguística aplicada quanto
aos conceitos de cultura, discurso e interação. Entende-se a comunicação
como um processo de interação social entre grupos ou pessoas de
ocupações diferentes. Quando pessoas com diferentes ocupações se
comunicam, é mais difícil derivarem-se as inferências envolvidas no
ato da comunicação e, portanto, o processo torna-se mais propenso ao
insucesso do que quando os participantes são do mesmo grupo. Para essa
reflexão, resgatam-se, da área da análise etnometodológica do discurso, as
noções de sistemas de discurso e interdiscurso (SCOLLON; SCOLLON;
JONES, 2012; JONES, 2013).
A etnometodologia, segundo Jones (2013), é o ramo da sociologia
que mais influenciou a linguística aplicada em abordagens da comunicação
sobre saúde e risco. Seu iniciador, o sociólogo Harold Garfinkel (1967),
enfocava as atividades diárias como métodos através dos quais as pessoas
compreendem o mundo social e se fazem compreender umas pelas outras.
Por sua vez, o psicólogo social Eliot Mishler está entre os mais
influentes pesquisadores da linguística aplicada à comunicação sobre
saúde e risco (MISHLER, 1984; MISHLER; AMARASINGHAM;
OSHERSON; HAUSER; WAXLER; LIEM, 1981), com a clássica
observação de que os encontros médicos frequentemente envolvem uma
“luta” entre “vozes” que competem entre si: a voz do mundo do paciente
e a voz do mundo da medicina. Essa competição serve como ponto de
partida para muitas investigações sobre comunicação clínica. O que
Mishler quer dizer com “vozes”, claro, vai muito além do que aquilo
que médicos e pacientes específicos dizem durante uma consulta. Para
ele, “a voz” representa uma ordem normativa (MISHLER, 1990), uma
forma não apenas de dizer algo, mas também de ver a vida, de organizar
o conhecimento e de se relacionar com outras pessoas. A esse respeito,
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vozes são similares ao que Gee (2011) chamaria de “Discursos” (com D
maiúsculo), definidos como formas de combinar e integrar linguagem,
ações, interações, maneiras de pensar, acreditar, valorar e de utilizar
vários símbolos, ferramentas e objetos para encenar um tipo particular
de identidade socialmente reconhecível (p. 201, apud JONES, 2013, p.
9). A observação de Mishler, de que o poder e a autoridade dos médicos
vêm não apenas do que eles são e sabem, mas de como eles falam, incitou
uma forma totalmente nova de pensar sobre encontros de saúde.
2. Comunicação intercultural e interdiscurso
O termo “cultura” é carregado de significados, muitas vezes
diversos. A cultura pode ser identificada com a posse de certos
conhecimentos (línguas, arte, literatura, ser alfabetizado), ou tem o
propósito de habilitar alguém a ocupar um posto ou cargo. Ambas são
noções que sugerem que ter cultura ou ser culto é o mesmo que ser
importante ou superior. Outras definições indicam cultura não como uma
propriedade de um indivíduo, mas como qualidade de uma coletividade.
Também é interessante observar que a coletividade aparece como um
adjetivo qualificativo para distinguir tipos de cultura, que têm diversos
tipos de expressão artística, cultural e de linguagem. (CHAUÍ, 2010).
Segundo Williams (1981), cultura, originalmente, definia o
cultivo de plantas e o cuidado com animais e com a terra (agricultura),
a educação das crianças, o cuidado com os deuses (culto) e com os
ancestrais e seus monumentos (sua memória). No final do século
XVIII, o termo passou a ser relacionado ao estilo de vida de um povo,
à civilização. No século XIX, a ideia de cultura predominante continua
designando uma forma de viver totalmente distinta. Desde então, houve
um intenso desenvolvimento da noção de cultura enquanto cultivo ativo
da mente: um estado desenvolvido da mente (uma pessoa “de cultura”);
os processos desse desenvolvimento (“atividades culturais”); os meios
para esses processos (as artes, por exemplo). Tais noções convivem com
o uso antropológico e, por extensão, sociológico, de cultura indicando o
modo de vida de um povo ou de grupos sociais. Hoje, além do espírito
informativo, existe uma visão de cultura enquanto sistema significativo
através do qual uma ordem social é comunicada, reproduzida,
experienciada e explorada (WILLIAMS, 1981).
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No presente estudo, opera-se com a noção de cultura enquanto
ferramenta para pensar (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012), que
divide as pessoas em grupos de acordo com alguma característica que
auxilia a se compreender algo sobre elas e como são diferentes ou
parecidas com outras pessoas (de outros grupos):
A “cultura norte-americana” e a “cultura chinesa” não são as
únicas culturas envolvidas num diálogo entre um japonês gay
que mora nos EUA e um chinês heterossexual. Nós também
estamos lidando com a cultura japonesa, a cultura gay, a cultura
do estudante universitário, a cultura cristã de um deles e a cultura
budista do outro, as culturas de gênero e geração, as culturas de
vários websites e de grupos de afinidade que se criam ao redor de
produtos específicos e a cultura popular. (SCOLLON, SCOLLON,
JONES, 2012, p. 2)
Assim, toda comunicação, de alguma forma, é intercultural
(SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Pensando em cultura dessa
maneira, como algo que se faz, pode-se concluir que ela se expressa
distintamente em diferentes momentos ou contextos. E, para compreender
comunicação intercultural, é necessário focar não tanto nas pessoas, mas
tentar descobrir algo sobre elas com base na “cultura” a que pertencem
(SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). As pessoas pertencem a
diferentes grupos – famílias, comunidades, instituições como escolas e
trabalho –, cada um dos quais utiliza um tipo de sistema de comunicação
à disposição, sendo que as ideias e a forma como são transmitidas
dependem desses sistemas específicos de comunicação. Quando os
utilizam, estão fazendo algo de determinada maneira e expressando
que são membros de um grupo social que fornece as ferramentas para
o processo de comunicação. Esses grupos, ao se comunicarem, estão
revelando a sua identidade. Tais ferramentas culturais utilizadas pelos
indivíduos para se comunicarem uns com os outros e encenarem diferentes
identidades culturais são chamadas de “sistemas de discurso”. Esses são
caracterizados como uma “caixa de ferramentas com ideias e crenças,
formas convencionais de tratar as pessoas, formas de comunicação com
textos e linguagens diversas e mídia e métodos que apontam como se
utilizam essas ferramentas” (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012, p. 8).
Jones (2013) argumenta que, quando atitudes e crenças afetam a
maneira como as pessoas se comunicam, os linguistas aplicados tendem
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a enxergá-las não como conjuntos de suposições estáticos, mas sim como
parte de um discurso ativo de que as pessoas lançam mão para reivindicar
identidades em situações específicas:
Aplicações dessa perspectiva geralmente levam a uma das
duas abordagens analíticas seguintes: uma focando a maneira
como as pessoas de diferentes grupos administram as interações
sobre saúde e risco com respeito a coisas como enquadramento,
posicionamento e organização da conversação, uma abordagem
que se debruça fortemente em fundamentos da sociolinguística
interacional; a outra focando aspectos mais amplos do discurso
(incluindo coisas como ideologias, sistemas faciais e concepções
culturais do self e da comunicação) e como pessoas os utilizam
para atingir certas metas interacionais, uma abordagem que se
aproxima da antropologia linguística. (JONES, 2013, p. 158)
Todo grupo que utiliza uma caixa de ferramentas específica pode
ser considerado participante de um sistema de discurso particular. Além
disso, cada pessoa participa, simultaneamente, de um número de sistemas
culturais diferentes: é membro de um grupo corporativo particular,
de um grupo profissional ou ocupacional particular, uma geração, um
gênero, uma região e uma etnia, todos associados a diferentes sistemas
de discurso. Como resultado, virtualmente toda comunicação atravessa
algumas fronteiras que distribuem os indivíduos de acordo com os
sistemas de discurso dos quais participam (SCOLLON; SCOLLON;
JONES, 2012).
Nessa perspectiva, o que usualmente se consideram diferenças
“culturais” entre pessoas (país ou língua de origem, por exemplo)
na comunicação é menos significativo do que as diferenças oriundas
do fato de que todos são participantes de vários sistemas de discurso
simultaneamente. Esses sistemas não são usualmente considerados
ao tratar-se de “comunicação intercultural”, ou seja, não se leva em
consideração que estão associados a gêneros diferentes, sexualidades,
gerações, locais de trabalho e profissões. Além da participação simultânea
de cada um em vários sistemas de discurso, constata-se que valores
e comportamentos associados a um sistema de discurso em que um
indivíduo participa podem entrar em conflito com os de um sistema de
discurso em que outro participa, podendo inclusive haver contradições
entre dois sistemas utilizados por uma mesma pessoa, que terá de lidar
com esses conflitos e encontrar uma forma de conciliação para a situação.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
339
A comunicação interdiscursiva é a comunicação entre diferentes sistemas
de discurso e, considerando as possibilidades acima, ela pode ser vista
também como algo que ocorre internamente, dentro de cada sujeito
(SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012).
A essência da análise intercultural e interdiscursiva propõe
focar seu olhar nas pessoas, realizando ações em tarefas particulares
e concretas e perguntar, sem pressupor, qual é o papel dos sistemas de
discurso em suas ações e como são produtivas em termos de “cultura”
ou de participação em sistemas de discurso específicos. Além disso,
investigar se essas ações são significativas para indivíduos pertencentes
a diferentes sistemas discursivos e como essas ações, tarefas ou práticas
estão posicionadas dentro de quais sistemas de discurso (SCOLLON;
SCOLLON; JONES, 2012).
A análise intercultural da comunicação é importante para que
este estudo alcance sua meta. Em primeiro lugar, porque, como se
mostrará adiante, o detalhamento acadêmico é, essencialmente, baseado
na comunicação enquanto interação social entre indivíduos. Além
disso, os processos de comunicação focalizados são os que ocorrem
entre profissionais da saúde, e esses processos são multidisciplinares e,
portanto, interculturais (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012), uma
vez que os participantes originam-se de grupos profissionais diferentes
e, por isso, pertencem a sistemas de discurso diferentes.
Conforme já se pontuou anteriormente, o atravessamento de
diferentes sistemas de discurso pode produzir conflitos de identidade
para participantes dos sistemas, o que pode levar a confusões ou
desentendimentos na comunicação. Esses conflitos e identidades
múltiplas não são problemas a serem solucionados, são características
de todas as situações de comunicação profissional. Em praticamente
todos os sistemas de discurso orientados por um objetivo, os indivíduos
serão, simultaneamente, participantes tanto dos sistemas de discurso
corporativos quanto dos profissionais. Em alguns casos, a participação em
um sistema tenderá a menosprezar ou questionar a participação total em
outro sistema (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Isso é verdadeiro
para membros de grande variedade de sistemas de discurso profissionais
ou ocupacionais, como o dos engenheiros, dos administradores da
indústria de viagens, dos motoristas, dos profissionais do comércio
exterior, dos jornalistas de esporte, dos fotógrafos de publicidade, dos
eletricistas e carpinteiros, ou dos músicos de orquestra. Em cada caso,
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há o problema em potencial: as pessoas são, simultaneamente, membros
do sistema de discurso de seu grupo profissional ou ocupacional e do
sistema de discurso institucional, organizacional ou corporativo.
Dessa forma, identidades atravessadas existem e operam na
maior parte da comunicação entre colegas de profissão ou entre membros
da mesma estrutura corporativa. À medida que as pessoas participam
simultaneamente de múltiplos sistemas de discurso que se atravessam, é
necessário que elas estejam constantemente sintonizando e ajustando sua
identidade e sua adesão a cada sistema de forma que todos ou quase todos
os objetivos sejam pelo menos minimamente alcançados (SCOLLON;
SCOLLON; JONES, 2012). Isso ficará evidente, mais adiante, ao
apresentar-se o detalhamento acadêmico, técnica que permite uma análise
linguística, de base etnometodológica, que demonstra como o discurso
influencia positiva ou negativamente a comunicação sobre saúde e risco.
Ela prevê situações de conversação entre profissionais pertencentes a
diferentes culturas e, portanto, usuários de diferentes sistemas de discurso,
que utilizam ferramentas diferentes para fazer coisas diferentes e lá estão,
frente a frente, para negociar significados sobre saúde.
Quando existem pessoas de várias práticas sociais e profissionais
interagindo, também se tem comunicação intercultural, segundo a
perspectiva aqui adotada (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Por
isso, dizer que o cuidado em saúde está se tornando uma empresa cada
vez mais multicultural não quer dizer apenas que ela envolve pacientes
e promotores da saúde de diferentes países interagindo, mas também
que cada vez mais pessoas de diferentes grupos profissionais estão
trabalhando juntos (MÁSEIDE, 2007). Os funcionários do hospital podem
compartilhar práticas interpretativas em virtude de sua participação
comum em um sistema de discurso institucional ou corporativo. No
entanto, eles também têm diversos tipos de conhecimentos e habilidades
diferentes, assim, engajam-se em diferentes formas de interações e
utilizam diferentes características de discurso baseadas nos sistemas de
discurso profissional dos quais participam. O cuidado em saúde é cada vez
mais caracterizado como um fenômeno no qual pessoas com diferentes
modos de construção discursiva do conhecimento e de comunicação
sobre ele trabalham juntas e negociam significados (IEDEMA; RHODES;
SCHEERES, 2006).
O estudo da comunicação profissional em medicina tem como
questão-chave o modo como os indivíduos de diferentes profissões se
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organizam para interagir de forma bem-sucedida, isto é, de maneira que
consigam negociar os significados próprios dos sistemas de discurso
a que pertencem, atingindo, assim, os seus alvos. Outra questãochave é a forma como as instituições facilitam essas interações, sem
comprometer a autonomia e a identidade profissional. Essas questões
tocam a prevalência da interdiscursividade em comunicação sobre saúde
e risco, o atravessamento de diferentes sistemas de discurso aos quais
diferentes profissionais pertencem, ou diferentes sistemas de discurso em
que um mesmo profissional participa. Criam-se desafios e oportunidades
quando essas vozes diversas e às vezes concorrentes interagem e,
simultaneamente, relacionamentos e identidades vão se estabelecendo
através do discurso (JONES, 2013).
No detalhamento acadêmico isso ocorre intensamente, uma
vez que médicos que prescrevem medicamentos interagem em
conversações com profissionais do comércio e marketing. Além de
todas as diferenças pessoais entre eles, uma vez que podem ter religiões
diferentes, hobbies diferentes, gêneros diferentes e crenças em geral,
eles também pertencem a culturas profissionais diferentes e utilizam
ferramentas discursivas distintas ao interagir linguisticamente. Portanto,
no detalhamento acadêmico, vê-se a tentativa de se superarem questões
discursivas problemáticas na comunicação, já que o confronto de
diferentes identidades ocorre por meio de diferentes sistemas de discurso,
instaurando-se a comunicação intercultural (JONES, 2013; SCOLLON;
SCOLLON; JONES, 2012)
A técnica do detalhamento acadêmico é utilizada em contextos
de saúde relacionada à prescrição de tratamentos. Considera-se que os
médicos que prescrevem medicamentos, os prescritores, para o fazerem
com qualidade, necessitam de informações atualizadas e de fontes
confiáveis acerca da efetividade comparativa, segurança e custos dos
tratamentos disponíveis. Devido a limitações como restrição de tempo,
dificuldades com o acesso a informações em português e demandas diversas
que consomem tempo, eles muitas vezes tendem a utilizar fontes mais
convenientes de informação, tais como as apresentadas pelos representantes
de indústrias farmacêuticas (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015).
No entanto, esta é uma área que tem muito conflito de interesse, na qual
sistemas de discurso com objetivos bem distintos interagem.
Finalmente, sustenta-se, neste artigo, que, do ponto de vista da
comunicação, o detalhamento acadêmico contribui para melhorar o uso
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racional de medicamentos e otimizar a eficiência de sistemas de saúde
porque promove uma aproximação interdiscursiva. A metodologia
utilizada no detalhamento acadêmico leva a uma interação entre sistemas
de discursos diferentes, que têm objetivos e focos diferentes, e que
almeja chegar ao melhor resultado possível considerando os usuários
do sistema. Em outras palavras, a técnica reconhece que a comunicação
é intercultural e opera com base nas diferenças culturais de cada
interlocutor (JONES, 2013; SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012).
Nessa perspectiva, o objetivo deste estudo é mostrar, à luz da análise
linguística de discurso de base etnometodológica, que a comunicação é
um processo intercultural, portanto interdiscursivo. Além disso, tem o
propósito de destacar, como exemplo prático de superação das questões
problemáticas na comunicação, o detalhamento acadêmico, visto como
técnica que visa à aproximação do sistema de discurso do comércio e
vendas de medicamentos com o sistema de discurso médico que prescreve
os medicamentos em função do diagnóstico clínico.
3. O interdiscurso na técnica do detalhamento acadêmico
Este estudo tem como foco os sistemas de discurso voltados para
saúde e risco, por isso orienta-se pelo método da etnometodologia, que
é a área da sociologia mais influente nas abordagens da comunicação
sobre saúde e risco. A principal contribuição desta abordagem aos estudos
de saúde e risco é a atenção que dedica à forma como as identidades
sociais, e outros fatos sociais, como doença e risco, constituem-se
momento a momento, à medida que as pessoas se engajam em seus
encontros rotineiros umas com as outras. Assim, a etnometodologia
propõe que se observe o papel do enfermo como algo que é realizado
organizacionalmente, através de atuações repetitivas de várias práticas
sociais e profissionais (JONES, 2013).
O detalhamento acadêmico é uma estratégia que propõe visita
educativa cuja realização envolve a interação face a face entre dois
profissionais. Utiliza metodologias de mudança de comportamento para
fornecer educação e informação de forma objetiva e uma abordagem
baseada em serviços (ao invés do foco em vendas), que pode ser
diretamente relacionada às situações clínicas vivenciadas por um
profissional de saúde (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015).
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É realizado por universidades ou instituições sem fins lucrativos
e visa minimizar a lacuna existente entre a melhor ciência disponível e a
prescrição na prática real. Deve ser executado por profissionais da saúde
qualificados nessa perspectiva, os quais devem passar por um treinamento
específico, que os torna “facilitadores”, apresentando-se para as visitas
munidos de identificação da instituição promotora e de material de apoio
apropriadamente preparado para esta finalidade.
Para a aplicação do detalhamento acadêmico, seguem-se as
etapas na Figura 1:
FIGURA 1 – Etapas do processo envolvido para realização de detalhamento acadêmico
Fonte: Costa, Brasil, Afonso Júnior (2015, p. 13).
A etapa 1, prospecção e identificação de problemas, diz respeito
aos problemas que geram demanda pelo detalhamento acadêmico, ou
seja, aqueles relacionados a um distanciamento entre o que as evidências
científicas ou protocolos clínicos recomendam e o que é realizado
na prática clínica devido a outras influências, como a da indústria
farmacêutica. Tais problemas podem ser identificados por meio de
consulta com especialistas, entrevistas telefônicas, análise de bancos
de dados, estudos de utilização de medicamentos, informes e alertas da
vigilância sanitária, revisão de literatura ou pela detecção de problemas
similares observados em outros países. A técnica do detalhamento
acadêmico é considerada eficaz quando a solução para o problema
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
identificado depender de uma mudança de comportamento e para o qual
outras técnicas mais simples, como lembretes em sistemas informatizados
ou disseminação de informes, não forem suficientes.
Na etapa 2 do processo, define-se a finalidade da realização do
detalhamento acadêmico. O objetivo das visitas dos facilitadores aos
prescritores deve ser o de resolver um problema específico que seja
mensurável e as finalidades da referida técnica variam de desenvolvimento
e divulgação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas a alterações em
padrões de prescrição de medicamentos, dentre outros. As visitas podem
ser direcionadas aos profissionais de saúde (individualmente ou em grupo),
à comunidade ou aos pacientes. Evidências quanto à eficácia dessa técnica
são encontradas no Brasil e no exterior. Por exemplo, com a finalidade
de desenvolvimento e implementação de protocolos clínicos e diretrizes
terapêuticas, foi aplicado o detalhamento acadêmico para cumprimento
de protocolo clínico para triagem pré-natal de Streptococos B (SILVA;
STEIN; SCHÜNEMANN; BORDIN; KUCHENBECKER; DRACHLER,
2013) e nos Estados Unidos para triagem de câncer colorretal (CURRY;
LENGERICH; KLUHSMAN, 2011). Com a finalidade de alterar o padrão
de prescrição de medicamentos, seu uso auxiliou na redução de prescrições
inadequadas em um hospital com relação aos critérios legais na Austrália
(SHAW, HARRIS, KEOGH, GRAUDINS, PERKS, THOMAS, 2003)
e do uso de antibióticos de amplo espectro em um centro acadêmico,
nos Estados Unidos (SOLOMON; VAN HOUTEN; GLYNN; BADEN;
CURTIS; SCHRAGER; AVORN, 2001).
Para a etapa 3, estimativa de orçamento, elaboração de
cronograma e designação de equipe, uma equipe técnica deverá ser
formada, composta por, no mínimo, um especialista no assunto a ser
abordado, além de pesquisadores e estagiários, sendo um dos integrantes o
coordenador da equipe, o qual acompanhará todas as etapas, gerenciando
o processo de forma homogênea e orientando os demais membros da
equipe. Além disso, é responsável pelo treinamento dos facilitadores.
A equipe definirá o número de visitas necessárias, os materiais a serem
produzidos e/ou adquiridos, a abrangência da execução do detalhamento
acadêmico (local ou nacional) e o orçamento.
A etapa 4 trata da elaboração e aquisição de materiais de apoio,
que devem ser atrativos, objetivos e simples. Eles serão utilizados como
suporte para a visita e como material informativo a ser fornecido ao
prescritor, o qual geralmente tem pouca disponibilidade de tempo, por ser
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
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muito ocupado. O material utilizado com profissionais deve ser elaborado
com linguagem técnica e seu conteúdo deve ser estruturado a partir da
definição de mensagens-chave, ser baseado em revisão sistemática da
literatura, conter evidências científicas e informações de apoio à tomada
de decisão terapêutica, estudos de caso e referências. Deve ser revisado
por pares antes de utilizado.
Destacam-se, para o presente estudo, as etapas 5 e 6, voltadas,
respectivamente, para a identificação dos prescritores e para a seleção e
treinamento dos facilitadores. Quanto à escolha dos prescritores a serem
visitados, muitas vezes não é possível abranger todos os existentes entre
a população alvo. Neste caso, um bom critério é a seleção daqueles que
possam servir como multiplicadores do processo, para melhor disseminar
a informação, ou podem-se selecionar os que apresentam problema com a
sua prescrição. Como pode haver recusa ou não localização do prescritor,
devem-se sempre selecionar mais prescritores do que o número mínimo
necessário. É recomendado que cada facilitador não faça mais do que
quatro visitas por dia.
Na etapa 6, recrutam-se os profissionais da saúde que farão
as visitas aos prescritores: os facilitadores. Para ser um facilitador,
é importante que o candidato seja um bom comunicador, tenha
disponibilidade, seja simpático, tenha noções de conceitos relacionados
à Medicina Baseada em Evidência (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO,
2008), conheça o fluxo de atendimento do sistema de saúde no qual irá
atuar, possua experiência prática no assunto, compreenda e internalize a
importância do trabalho a ser desenvolvido, a fim de executar as visitas
com convicção e eficiência, e possua veículo próprio para locomoção
(COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Os facilitadores recebem
um treinamento que os prepara para as visitas aos prescritores. Esse
treinamento tem a duração aproximada de 12 horas e inclui as etapas
descritas abaixo.
(1) Estudo sobre a técnica do detalhamento acadêmico e sobre o
problema das barreiras à mudança de prescrição. Neste momento,
eles também tentarão formular suas próprias mensagens-chave para
a abordagem durante as visitas.
346
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(2) Treinamento sobre técnicas de visitação. Os facilitadores vêm a
conhecer métodos de abordagem (técnicas de visitação) a serem
utilizadas durante a visita médica do detalhamento acadêmico
e poderão contar com a participação de convidados externos
com experiência no tema, como representantes de indústrias
farmacêuticas (drug detailers) ou profissionais que já realizam
detalhamento acadêmico.
(3) Treinamento sobre os conteúdos a serem abordados nas visitas.
Pode haver a participação do especialista na área dos prescritores
a serem visitados.
(4) Aplicação de teste individual sobre as técnicas de visitação e o
conteúdo. Este momento tem como objetivo que o facilitador
faça uma revisão sobre seu conhecimento a respeito da técnica,
das evidências científicas apresentadas aos prescritores sobre
a necessidade de mudanças nas prescrições, além de outras
informações que possam ser questionadas durante a visitação.
(5) Simulação da visita. Os facilitadores atuam ora como prescritor, ora
como facilitador, exercitando o manuseio e a entrega do material a
ser utilizado nas visitas. Essas simulações poderão ser gravadas e
assistidas para serem avaliadas e podem contar com a presença de
um especialista da área atuando como prescritor (COSTA; BRASIL;
AFONSO JÚNIOR, 2015).
Finalmente, na etapa 7 são realizadas as visitações médicas
para detalhamento acadêmico. Os facilitadores recebem uma lista de
prescritores a serem visitados, com suas informações de contato. Antes da
visita, cada facilitador liga para o prescritor, em seu ambiente de trabalho,
e agenda um horário em que o médico não tenha pacientes, estimando
a duração da visita entre 15 e 20 minutos. A visita para o detalhamento
acadêmico deve passar pelas etapas listadas na Figura 2:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
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FIGURA 2 – Estrutura geral das visitas
Etapa
Ações
Introdução
• Criar um ambiente adequado para a visita
• Atender às necessidades imediatas do prescritor
• Praticar a arte da “conversa fiada” para estabelecer rapportc
• Demonstrar atenção por meio de sua linguagem corporal
• Explicar o motivo da sua visita
• Confirmar se o tempo/disponibilidade para a visita ainda é
conveniente para o prescritor
Construir confiança e
estabelecer a sua
credibilidade
• Mencionar suas credenciais
• Ressaltar imparcialidade e independência
• Basear a visita na assistência clínica
• Apresentar informações credíveis e relacionadas à assistência ao
paciente
• Demonstrar empatia, honestidade, empenho, competência
Identificar as
necessidades
dos prescritores
• Utilizar perguntas abertas para que o prescritor fale
• Utilizar mínimos encorajadores para manter a conversa fluindo
•Repetir o que ouviu para demonstrar que está prestando atenção e
verificar se entendeu corretamente
• Fornecer informações, mas também conhecer a opinião, os
sentimentos e as ideias
Apresentar as
características e
benefícios
das “mensagenschave”
• Apresentar as principais mensagens da visita na medida em
que perceba as crenças, necessidades, valores e interesses dos
prescritores
• Transformar fatos ou características das mensagens em benefício/
valor para o prescritor e paciente
• Orientar a superação de barreiras para a mudança
Superar objeções e
lidar
com quaisquer
respostas
desafiadoras
• E.g. raiva ou indiferença que sejam obstáculos para que o
prescritor “compre a ideia”
• Estar alerta (ouvindo, observando sinais não-verbais) para os
obstáculos à sua mensagem
Fechar o ciclo de
comunicação
• Utilizar de repetições para garantir que suas mensagens tenham
sido recebidas
• Oferecer mais apoio
• Ganhar credibilidade para a próxima visita
• Oferecer os materiais impressos e de apoio
Continuar e manter o
relacionamento
• Filosofia servidora
• Comprometer-se com os objetivos mútuos
• Importante para a mudança de comportamento
Fonte: Costa, Brasil, Afonso Júnior (2015, p. 26)
348
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A experiência profissional do facilitador é menos importante
do que suas habilidades de comunicação e a solidez e amplitude de sua
compreensão da terapêutica clínica e barreiras à mudança de prescrição.
Caso o facilitador não domine os conceitos teóricos necessários, eles
deverão ser abordados em treinamento. Observa-se nesse método
a tentativa de aproximação entre diferentes sistemas de discurso,
procurando-se facilitadores que tenham perfil apropriado para a área de
vendas, mas que sejam provenientes da área médica, logo pertencentes
a este sistema de discurso. As características relativas à atitude de um
bom comunicador têm prevalência em relação às outras.
A técnica do detalhamento acadêmico lida com o interdiscurso,
elemento integrante da comunicação intercultural que diz respeito à
interação entre sistemas de discurso de diferentes naturezas, utilizados
por diferentes pessoas participantes do discurso (JONES, 2013). Por
essa razão, a referida técnica foi escolhida aqui para exemplificar como
a análise do discurso pode contribuir para a eficácia da comunicação em
contextos de saúde. Como mostram os fluxogramas que representam a
operacionalização do detalhamento acadêmico, o facilitador atua como
mediador entre sistemas de discurso pertencentes à área médico-clínica
e sistemas de discurso das áreas do comércio, vendas e marketing. Esses
dois grupos de sistemas de discurso visam objetivos bem diferentes e,
portanto, a chance de haver concorrência e desacertos na comunicação
é grande. Com base nisso, o facilitador tem a incumbência de fazer uma
aproximação entre esses sistemas de discurso, atuando diretamente no
interdiscurso, minimizando diferenças e proporcionando oportunidades
para entendimento. Ele o faz, por exemplo, ao seguir um protocolo para
as visitas que se aproxima da conduta médica, com horário marcado,
com visita no próprio consultório do prescritor, e com a utilização de
evidências científicas para destacar as propriedades dos tratamentos
alternativos que demonstra ao seu alvo. Por outro lado, ele também
utiliza procedimentos próprios da área das vendas e marketing ao portar
materiais de divulgação de alta qualidade, que atraiam os olhos e a atenção
do prescritor, e demonstrar conhecimento a respeito dos medicamentos
e procedimentos médicos contemplados nas entrevistas.
Este procedimento visa uma apropriação, por parte dos
facilitadores, das ferramentas próprias do sistema de discurso dos
profissionais de áreas como marketing e vendas, com o intuito de
cativarem seus colegas de profissão, pertencentes ao sistema de discurso
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da área médica. Os facilitadores já possuem e utilizam as ferramentas
culturais próprias desse sistema, para o qual um dos alvos é o tratamento
de problemas com base nas melhores evidências científicas. Ao inseriremse no contexto do marketing e das vendas, assimilando as expressões
e construções discursivas que este grupo utiliza para atingir seus fins,
o facilitador passa a criar um novo grupo ocupacional, aquele que
articula os profissionais da medicina e os profissionais do comércio,
e cuja caixa de ferramentas culturais contém material de ambos os
grupos, possibilitando que ele atinja objetivos de ambos (SCOLLON;
SCOLLON; JONES, 2012).
4. Discussão e considerações finais
A técnica do detalhamento acadêmico vem sendo utilizada no
Brasil e no exterior, apresentando resultados surpreendentes no que tange
à adesão de prescritores em seu comportamento frente a tratamentos
e medicamentos sobre os quais obtiveram informações detalhadas e
baseadas cientificamente (SILVA; STEIN; SCHÜNEMANN; BORDIN;
KUCHENBECKER; DRACHLER, 2013; SHAW; HARRIS; KEOGH;
GRAUDINS; PERKS; THOMAS, 2003; AVORN, 2007; VASUDEV;
LAMOURE; BEYAERT; DUA; DIXON; EADIE; HUSAREWYCH;
DHIR; TAKHAR, 2017; BRENNAN; MATTICK, 2012).
Os profissionais que efetuam as visitas, os facilitadores, e sua
equipe não possuem relação financeira com a indústria que produz os
medicamentos e os comercializa. A técnica não consiste numa estratégia
de vendas, mas sim de mudança de atitude em relação à prescrição, sendo,
portanto, conduzida pelas entidades promotoras da saúde que desejam essa
mudança. O método consiste numa visita de um profissional da saúde,
treinado para este fim, a outro que prescreve, prescritor, durante a qual
ele informa a este as melhores evidências e diretrizes clínicas sobre o que
deve ser feito para determinada situação clínica, com vistas a possibilitar
a utilização de uma prescrição baseada na melhor evidência científica.
O objetivo desta prática é melhorar o cuidado dispensado ao usuário do
sistema de saúde (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015).
Escolheu-se, neste estudo, a técnica do detalhamento acadêmico
porque ela ilustra bem o que a perspectiva da análise linguística
do discurso que embasa este estudo diz a respeito da comunicação
intercultural e do interdiscurso. Dessa forma, faz-se aqui uma tentativa
350
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de explicar como essa comunicação pode ser utilizada para promover a
saúde ao invés de vulnerabilizá-la.
Como exemplificação dos processos linguísticos envolvidos
na proposta metodológica apresentada, descrevem-se, a seguir, as duas
situações: (1) a atuação de um representante da indústria farmacêutica
(RIF) num encontro regular com um prescritor, para divulgar os produtos
de seu laboratório; (2) a atuação de um profissional da saúde enquanto
facilitador (F) num programa de detalhamento acadêmico:
(1) RIF: utiliza linguagem de mercado e recursos cativantes do
marketing e vendas sobre a vantagem de se adquirem determinados
medicamentos, tentando convencer o prescritor a utilizar a
avaliação indicada pelo laboratório que ele representa; menciona
que os laboratórios financiam eventos para os profissionais que
indicam os seus produtos, como forma de sedução para o consumo
dos produtos indicados.
(2) F: faz a mediação entre a linguagem do mercado e as vantagens
científicas relacionadas ao produto. A linguagem é clara, coloquial,
mas embasada em conhecimentos científicos. O facilitador utiliza
material escrito atraente, como no ramo de marketing e vendas,
que informam sobre as descobertas científicas relacionadas aos
produtos em questão.
Em ambos os casos, o prescritor é responsável pela escolha do
melhor produto. Como os benefícios dos produtos são muito semelhantes
de uma indústria para a outra, a forma como ele escolherá pode estar
relacionada à eficácia da comunicação exercida por um ou por outro.
Defende-se, aqui, que o discurso do facilitador é mais eficaz para a
promoção da saúde dos indivíduos que recebem os tratamentos dos
prescritores do que o do representante da indústria farmacêutica. O
facilitador transita entre dois sistemas de discurso diferentes, como
mediador, criando um terceiro sistema de discurso, o que articula as
características do discurso da indústria farmacêutica e as informações
por ela veiculadas de um lado e, de outro, as características do discurso
baseado em evidências próprio da academia. Dessa forma, vê-se a
comunicação intercultural exemplificada e a atuação do interdiscurso
na área da promoção da saúde. O sistema de discurso do marketing e
vendas sozinho, utilizado pelo representante da indústria farmacêutica,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
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tem eficácia no que tange a persuadir o prescritor a comprar o que é de
interesse dos laboratórios, não repercutindo, no entanto, em benefício
para a promoção da saúde da população.
A prática do detalhamento acadêmico aos prescritores, como meio
de melhorar a qualidade das decisões sobre a terapia medicamentosa e a
redução de despesas desnecessárias, foi iniciada há cerca de trinta anos
pelos Drs. Jerry Avorn e Stephen Soumerai da Universidade de Harvard,
nos Estados Unidos. De acordo com eles, algumas das características mais
importantes desse método incluem: realizar entrevistas para investigar o
conhecimento e as motivações para os padrões de prescrição vigentes;
focar os programas em categorias específicas de médicos, bem como
em seus líderes de opinião; definir claramente os objetivos educacionais
e comportamentais, assim como evitar o sobretratamento; estabelecer
credibilidade através de uma identidade organizacional respeitada,
fazendo referência a fontes oficiais e imparciais de informações e
apresentando ambos os lados de questões controversas; estimular a
participação ativa do prescritor durante as visitas; utilizar materiais
educativos gráficos concisos, destacando e repetindo as mensagens
essenciais e fornecer reforço positivo das práticas melhoradas em visitas
subsequentes (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015).
Todos os passos descritos acima convergem na direção de
minimizar os conflitos naturais na comunicação intercultural, a fim de que
os diferentes sistemas de discurso, ao entrarem em contato, possam otimizar
o entendimento entre as partes interagentes. Assim, estaria ocorrendo
o que Jones (2013) descreve como a questão-chave na comunicação
profissional em medicina, isto é, a negociação de significados próprios dos
sistemas de discurso em interação a fim de atingir seus alvos. No caso do
detalhamento acadêmico, o alvo dos promotores da saúde é o de atender
aos usuários do sistema de saúde da melhor forma, maximizando seu bemestar e, para isso, prescrevendo os melhores tratamentos e medicamentos,
segundo o que eles acreditam e sempre fizeram. Por seu turno, o alvo dos
profissionais que fazem as visitas, os facilitadores, além do bem-estar
dos usuários, é fazer valer a voz do discurso próprio das vendas, a fim de
desmistificar padrões rígidos de comportamento nas prescrições médicas
e abrir espaço para o entendimento de que a mudança é positiva e de que
há opções de substâncias e medicamentos cientificamente comprovados
bem diferentes daqueles comumente utilizados, considerando que estes
podem estar superados.
352
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019
Os temas saúde e risco não são meramente uma questão de escolha
individual, mas discursivamente construídos dentro de grupos sociais com
diferentes tamanhos e formatos (JONES, 2013). Para a maioria das pessoas,
embora a família seja o grupo social principal, existem vários outros aos
quais elas pertencem, como grupos que se formam ao redor de certos tipos
de atividades que podem impactar na saúde, tais como usuários de drogas,
ou esportes extremos, grupos profissionais como os médicos, enfermeiros
e promotores da saúde, instituições como hospitais e companhias de
seguro, redes sociais que os conectam através de teias complexas de
relacionamentos a pessoas que não conhecem e talvez nunca encontrem.
Todos eles podem ter um impacto sobre como se pensa, se fala e se age
em relação à saúde e ao risco, e essas questões também podem funcionar
como ferramentas para a manutenção desses grupos e a construção de
barreiras entre eles (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982). A metodologia do
detalhamento acadêmico opera com base nos atravessamentos discursivos
permanentemente presentes na comunicação interdiscursiva. Uma vez
que todos os indivíduos pertencem a diferentes sistemas de discurso, isso
impacta em sua identidade e, consequentemente, em seu pensamento, fala
e comportamento frente a temas como saúde e risco.
Neste momento é possível observar-se a contribuição da análise
da língua e do discurso conforme a visão da linguística, baseada na
etnometodologia, que leva em conta o uso da língua no momento em que
o sujeito está atuando em uma situação determinada, em um contexto
naturalístico. A partir de excertos de conversações entre profissionais da
saúde, médicos e pacientes, promotores da saúde e usuários do sistema
de saúde, pode-se constatar a presença de diferenças entre sistemas de
discurso que criam conflitos e afastam as pessoas ao invés de convergir
o discurso para o mesmo objetivo. É importante alertar as pessoas sobre
este fato e incentivá-las a alterarem seu comportamento, no sentido de
serem mais tolerantes com o discurso do outro, compreendendo que
sua cultura (as ferramentas das quais o outro lança mão para exercer as
suas funções e interagir profissional e socialmente) o levam a utilizar
tal sistema de discurso.
A sociolinguística interacional foca sua reflexão no fato de que as
pessoas de diferentes grupos podem ter diferentes expectativas durante
interações sobre o que estão fazendo e quem estão sendo (GUMPERZ,
1982; TANNEN, 2005). As pessoas podem iniciar interações sobre saúde
e risco, por exemplo, com ideias diferentes sobre como a informação
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deveria ser organizada, que tópicos são permitidos, como as sequências de
fala como narrativas deveriam ser estruturadas, como a mudança de tópico
deveria ser sinalizada e como coisas como respeito e empatia devem
ser demonstradas. Essas expectativas diferentes são frequentemente
manifestadas com sinais sutis como a escolha das palavras, as pausas,
ritmo e entonação, olhar, gestos e outros comportamentos não verbais
(GUMPERZ, 1982). Por isso, dificuldades nessas interações são às vezes
um sentido mais sutil de mal entendimento, ou seja, um sentimento de
que a interação não progrediu tão suavemente ou de forma tão bemsucedida como poderia (SCHEGLOFF, 1987). Em função disso, tais
dificuldades em comunicação intercultural são frequentemente difíceis
de serem detectadas. Uma questão incômoda relacionada à comunicação
intercultural não é tanto a que ocorre entre pessoas, mas aquela que ocorre
dentro delas à medida que lutam para reconciliar as expectativas por
vezes conflitantes sobre o que elas estão fazendo e quem elas estão sendo
trazidas para dentro das interações (JONES, 2013). Isso acontece em
todos os contextos em que as pessoas interagem, portanto, em contextos
promotores da saúde também.
Aqui, mais uma vez, vê-se a contribuição da linguística
aplicada à comunicação sobre saúde e risco, compreendendo esta como
essencialmente intercultural, na qual interagem vozes frequentemente
concorrentes. Segundo Jones (2013), através disso, criam-se desafios
e oportunidades e estabelecem-se relacionamentos e identidades.
Compreendendo essas propriedades intrínsecas da comunicação
intercultural e da interação entre diferentes sistemas de discurso, a
linguística fundamentada na etnometodologia abre caminhos para
mudança através da análise dessas interações. Ao fazer isso, o foco
será aproveitar as oportunidades criadas para o estabelecimento de
relacionamentos e de identidades para promover a saúde e não para
vulnerabilizá-la. Os diferentes profissionais integrantes das equipes
promotoras da saúde, com base nesse conhecimento, terão a oportunidade
de conscientizarem-se da importância de entrarem em contato com a
cultura de seus parceiros, com as ferramentas diferentes que cada um usa
para pensar, passando a compreender um pouco, dessa forma, algo sobre
eles, como são diferentes ou parecidos uns com os outros (SCOLLON;
SCOLLON; JONES, 2012). A partir do conhecimento da cultura do outro,
será mais fácil entender e aceitar as diferenças e, consequentemente, a
comunicação poderá atingir mais consenso e menos conflito.
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A contribuição do detalhamento acadêmico aparece no sentido
de reconciliar expectativas por vezes conflitantes que os comunicadores
possuem na comunicação intercultural. Como foi destacado na Figura
1, a etapa 6 do processo envolvido na técnica é o recrutamento de
facilitadores, profissionais da área médica e farmacêutica, e a realização
de seu treinamento. Este tem como objetivo inseri-los no contexto
discursivo dos profissionais que, originalmente, fazem a divulgação e
as vendas dos medicamentos aos prescritores.
Enquanto a falta de comunicação intercultural sobre saúde e
risco é muitas vezes o resultado das crenças diferenciadas que as pessoas
têm sobre coisas como o funcionamento do corpo e os mecanismos de
contágio, é possível que com mais frequência ela seja uma questão de
diferença de crenças do funcionamento do discurso sobre como diferentes
aspectos de saúde e risco deveriam ser representados, quem deve dizer
o que para quem, quando, onde e como, e como textos e conversações
deveriam ser estruturados (JONES, 2013). Isso pode ser compreendido
apenas a partir da definição de “cultura” como sistemas de discurso.
A linguística aplicada lançou uma definição mais modesta, porém
em certo sentido mais prática, de cultura. Culturas são vistas não
como sistemas de crença e comportamento, mas como sistemas
de discurso. Recursos que as pessoas têm à sua disposição para
construir discursivamente várias práticas sociais e identidades
sociais e para encenar essas práticas e reivindicar essas identidades
em interações sociais situadas. (JONES, 2013, p. 157)
Os facilitadores, a partir de sua imersão no sistema de discurso do
comércio e das vendas de medicamentos, não simplesmente utilizam as
mesmas palavras e frases-chave, mas interagem com o comportamento
e as crenças sobre o funcionamento do discurso pertencentes ao sistema
de discurso dos comerciantes, passando a enxergar o mundo com uma
lente nova, que irá se ajustar àquelas que eles já possuem nos sistemas de
discurso aos quais pertencem. Dessa forma, o entendimento intercultural
pode melhorar e os mesmos alvos de médicos e farmacêuticos quanto
à prescrição de medicamentos podem se concretizar através do ajuste
discursivo. Assim, pode haver a mudança de comportamento almejada
pelos que aplicam a técnica do detalhamento acadêmico.
A linguagem e o discurso têm importância fundamental na
construção identitária e na tomada de atitudes nas práticas sociais voltadas
à promoção da saúde. O discurso e o comportamento produzidos pelos
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diferentes sistemas de discurso vinculam-se diretamente à convicção de
que, à medida que a saúde evolui de um fragmentado sistema centrado
em ferramentas de serviço e pagamento para uma visão mais holística de
cuidado e cobertura compreensivos, o detalhamento acadêmico poderá
fortalecer o seu papel de fornecer as informações não comerciais e
essencialmente baseadas em evidências que ajudarão a melhorar a base
científica e o acesso ao cuidado que se quer para pacientes (IEDEMA;
RHODES; SCHEERES, 2006)
Mesmo quando questões como atitudes e crenças afetam a
maneira como as pessoas se comunicam sobre saúde e risco, os analistas
do discurso tendem a enxergá-las não como conjuntos de suposições
estáticos, mas sim como parte de um discurso ativo de que as pessoas
lançam mão para reivindicar identidades em situações específicas
(ROBERTS, 2010). Ao realizar a técnica do detalhamento acadêmico,
profissionais de diferentes áreas do conhecimento estão construindo uma
identidade discursiva que agrega ferramentas culturais diversas, utilizadas
para se atingirem metas antes pertencentes ora ao sistema discursivo
médico-farmacêutico, ora ao sistema discursivo de comércio e vendas.
Com essa aproximação interdiscursiva, entende-se que o uso racional de
medicamentos e a eficiência de sistemas de saúde podem ser qualificados,
atingindo-se, portanto, melhores resultados para os usuários do sistema.
Declaração de autoria
Ambas as autoras participaram de todas as etapas do artigo; porém
Dóris Cristina Gedrat encarregou-se mais da discussão dos resultados,
enquanto Gehysa Guimarães Alves ocupou-se principalmente da revisão
e aprovação da versão final do trabalho.
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Da Carta de Princípios (1979) à Carta ao povo brasileiro
(2002): variações ethicas1 do Partido dos Trabalhadores
From the Charter of Principles (1979) to the Letter Adressed to
Brazilian People (2002): ethical variations of the Worker’s Party
Melliandro Mendes Galinari
Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, Minas Gerais / Brasil
melliandro@yahoo.it
Luciana de Souza Pereira
Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, Minas Gerais / Brasil
pereira.s.luciana@gmail.com
Resumo: O Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil, tem sido estudado por diversos
historiadores e cientistas sociais, além de ser avaliado constantemente pelas mídias
e pelo senso comum quanto a mudanças de postura político-discursivas ao longo de
sua existência. Neste artigo, temos como objetivo analisar o ethos institucional do
PT em dois momentos históricos distintos, a saber, no momento precedente à sua
fundação (1979), a partir da chamada Carta de Princípios, e no ano eleitoral em que
obteve a vitória para a Presidência da República (2002), com base na Carta ao Povo
Brasileiro. Com isso, pretende-se apontar como foram construídas, retoricamente, as
diferentes imagens do partido nesses dois documentos, estabelecendo um contraste
linguístico-discursivo panorâmico. Inicialmente, o artigo situa o surgimento do PT no
contexto brasileiro e seu percurso até chegar à Presidência da República. Em seguida,
1
Vale ressaltar, desde já, que a palavra “ethica”, grafada com “h”, é uma derivação
proposital da palavra grega “ethos”, não devendo, assim, ser confundida com o vocábulo
“ética”, tal e qual entendido no senso comum, ou seja, como traço de “boa moral” ou
“honestidade”. As variações ethicas do Partido dos Trabalhadores, nesse sentido, dizem
respeito tão somente às “imagens de si” decorrentes de seus discursos, sejam elas quais
forem, sem que com isso haja uma atribuição de avaliações positivas ou negativas.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.359-400
360
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
no sentido de contextualizar as suas históricas mudanças, são trazidos apontamentos
de cientistas políticos e historiadores, com o intuito de apresentar, por amostragem,
pontos de vista controversos sobre as metamorfoses do PT. Enfim, o trabalho se atém
à análise propriamente dita das cartas mencionadas, no sentido de apreender como
o ethos é construído enquanto dimensão retórica. A conclusão mostra, dentre outras
coisas, que, na Carta de 1979, constrói-se um partido de feição radicalmente classista,
posicionando-se ao lado das massas exploradas contra as elites dominantes. Na Carta
de 2002, por sua vez, tal conflito é silenciado, sobressaindo-se um ethos de caráter
nacionalista e conciliador.
Palavras-chave: Partido dos Trabalhadores (PT); discurso Político; Análise do
Discurso; ethos; Retórica.
Abstract: Since its foundation the Brazilian worker’s party (PT) has been studied by
several historians and social scientists. It has also been constantly probed by the media
and common sense due to political-discursive changes of its posture. The purpose of his
article is to analyse the institutional ethos of PT in two distinctive historical moments.
Firstly, the moment before its foundation (1979), beginning with the so called Charter
of Principles, and secondly, the election year when victory to the presidency of the
republic was achieved (2002), based on the letter to the Brazilian people. Thus, it is
intended to point in these two moments how the different images of the party were
rhetorically constructed by establishing a linguistic-discursive panoramic contrast.
Initially the article sets the party’s origin in the Brazilian context and its course to the
presidency of the republic. Hence, for contextualization of its historical changes, notes
of political scientists and historians are brought up with the intention of presenting,
by sampling, controversial points of view on the party metamorphoses. Ultimately,
this paper is concerned to the analysis of the letters which have been mentioned with
the intention of apprehending how the ethos is constructed as a rhetorical dimension.
The conclusion shows, amongst other things, that in the 1979 letter a party radically
classicist is built, it also posits itself next to the exploited mass against the dominant
elite. In the 2002 letter, however, such conflict is silenced, highlighting a nationalist
and conciliator ethos.
Keywords: Worker’s Party (PT); political discourse; Discourse Analysis; ethos;
Rhetoric.
Recebido em 02 de abril de 2018
Aprovado em 09 de setembro de 2018
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361
1 Introdução
Este artigo pretende averiguar, a partir de uma análise discursiva,
como se deu, retórica e linguisticamente, uma guinada identitária na
imagem institucional (ou ethos) do Partido dos Trabalhadores (PT),
tendo-se como amostragem dois conhecidos documentos emitidos por
essa instância política (em anexo): a Carta de Princípios, assinada pela
Comissão Provisória no dia 1 de maio de 1979 (momento que antecedeu
a fundação oficial da sigla, em 10 de fevereiro de 1980), e a Carta ao
Povo Brasileiro, lançada à população em junho de 2002, em função das
eleições presidenciais daquele ano, disputadas por Luís Inácio Lula da
Silva (PT) e José Serra (PSDB), dentre outros. Para tanto, usaremos
como parâmetro teórico de análise a noção de ethos desenvolvida nos
âmbitos teóricos da Retórica e da Análise do Discurso, que pressupõe,
em termos gerais, que toda tomada de palavra, seja pelo conteúdo, seja
pela forma da enunciação, implica (direta ou indiretamente) a construção
de “imagens de si”. Buscaremos ressaltar, dessa forma, que o ethos pode
ser apreendido não apenas em função de um orador/locutor individual,
mas, também, em relação a uma instância institucional, como o PT e
partidos políticos (ou instituições) em geral.
Em 1979, como se sabe, o Presidente Figueiredo enviou
finalmente para o Congresso, em meio a pressões pela redemocratização
do país, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Sancionada no final
daquele ano, a Lei reestabelecia o pluripartidarismo no Brasil e, dessa
forma, o bipartidarismo vigente no Regime Militar, representado pela
ARENA (frente de apoio ao Regime autoritário) e pelo MDB (frente de
oposição), foi extinto, dando voz e vez à estrutura partidária tal e qual
conhecemos hoje.2
2
A ARENA (Aliança Renovadora Nacional) se transformou no Partido Democrático
Social (PDS), que, em função de dissidências, gerou o Partido da Frente Liberal
(PFL, atual DEM). Mais adiante, o próprio PDS foi rebatizado algumas vezes até
se tornar o Partido Progressista (PP), tal e qual conhecemos hoje. Foi nessa mesma
dinâmica que outros partidos foram surgindo, como, por exemplo, o PSDB. Quanto
ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), houve apenas o acréscimo do “p” de
Partido, tornando-se conhecido, durante décadas, como PMDB (Partido do Movimento
Democrático Brasileiro). Porém, poucos meses antes do fechamento deste artigo, no dia
19/12/2017, decidiu-se em convenção nacional da legenda que esta voltaria às origens,
rebatizando-se como MDB, sua designação atual.
362
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É nesse contexto que se pretende criar um partido novo: o
Partido dos Trabalhadores (PT).3 De acordo com alguns documentos de
fundação, teria sido a partir da desigualdade entre as classes sociais, da
necessidade da classe explorada oferecer resistência e se defender, de
forma organizada, da opressão e dos privilégios das classes dominantes
e, ainda, da carência de oferecer aos trabalhadores uma expressão política
unitária, que se solidificou fortemente a ideia de se instituir e construir
um partido de base independente. Isso porque o MDB, partido que se
opunha ao Regime Militar, já não cumpria, aos olhos da base idealizadora
do PT, o papel de funcionar autenticamente como um instrumento de luta
dos trabalhadores, em função de sua composição altamente heterogênea
e contraditória, isto é, composta por setores empresariais e trabalhistas
a um só tempo. Nessa direção, em 1º de maio de 1979, exatamente em
um Dia do Trabalhador, foi tornada pública a Carta de Princípios do
PT,4 no sentido de conduzir o movimento de consolidação e legalização
do partido. Segundo o documento,
o MDB, por sua origem, por sua ineficácia histórica, pelo
caráter de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas
sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória,
em que se congregam industriais e operários, fazendeiros e
peões, comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos
interesses são incompatíveis e nas quais, logicamente, prevalecem
em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser
reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares
de “tomar de assalto” o MDB é muito mais que insensata: é fruto
de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de
Para exemplificar os movimentos que se articulavam e que viriam a contribuir
para a origem do Partido dos Trabalhadores (PT), podemos falar da inquietação de
eclesiásticos de esquerda da Igreja Católica quanto ao modelo autoritário e econômico
vigente, acrescentando-se a liderança do Movimento Revolucionário Trotskista,
extinto oficialmente pelo Regime Militar, e representações de grupos que participaram
ativamente da luta contra o Regime como a Ala Vermelha do Partido Comunista do
Brasil/Ala-PC do B, a Ação Libertadora Nacional/ALN, a Ação Popular MarxistaLeninista/AP-ML, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário/PCBR, o Movimento
de Emancipação do Proletariado/MEP.
4
A Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores faz parte dos Anexos deste
artigo e foi extraída do sítio: <https://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2014/03/
cartadeprincipios.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018.
3
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363
setores de nossas classes dominantes. Aglomerado de composição
altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais
conservadoras, o MDB tem-se revelado, num passado recente, um
conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas
exploradas brasileiras. (Anexo I, linhas 121-133)
Buscando, portanto, uma “terceira via” representativa, isto é,
fora da dicotomia ilusória entre ARENA e MDB, o Movimento Pró-PT
aprovou, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion/SP, o lançamento
oficial da legenda. Como sugere o Manifesto de Criação, o Partido dos
Trabalhadores nasceria
da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na
vida social e política do país para transformá-la, (...) da decisão dos
explorados de lutar contra um sistema econômico e político que
não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar
uma minoria de privilegiados.5
Com essa pequena introdução, somada à própria leitura do Anexo
I deste trabalho, podemos ter já uma ideia da vitalidade, da identidade
e da energia dessa nova instituição: tratava-se de um partido de massas,
que visava atuar não apenas nas disputas eleitorais, mas, também, no
dia a dia dos trabalhadores, dentro de uma nítida concepção de luta de
classes. No entanto, com o passar dos anos, mais claramente a partir da
campanha presidencial de 2002, algumas contradições se apresentaram,
acompanhadas de vivas críticas de vários setores da esquerda. A Coligação
“Lula Presidente” (2002) teria sido composta, tempos depois da Carta
de Princípios, justamente pelas mencionadas forças contraditórias, num
gesto de alianças políticas até então bastante criticado pela práxis usual
do partido.
Além do PT, do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) – âmbitos tradicionais da esquerda –, a frente
eleitoral encabeçada pela candidatura Lula, em 2002, foi incrementada
pelo Partido Liberal (PL) – legenda do então candidato a vice, o
megaempresário José Alencar –, pelo Partido da Mobilização Nacional
(PMN), incluindo (ainda que extraoficialmente) o apoio de outros setores
conservadores, como aqueles ligados à família de José Sarney (PMDB),
O Manifesto de Criação do Partido pode ser visto no sítio: <http://csbh.fpabramo.org.
br/uploads/manifestodelancamento.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018.
5
364
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quadros do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Progressista
(PP). Interessantemente, na Carta ao Povo Brasileiro,6 de 2002 (Anexo
II), um trecho é bastante representativo dessa polêmica estratégia política:
a crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o
caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos
e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças
populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados
matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a
um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares
de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio.
Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso
projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos
suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
(Anexo II, linhas 30-37) (itálicos nossos)
O fato é que, da Carta de 1979 à Carta de 2002, mudanças
significativas no plano discursivo parecem ter acontecido, e muito se tem
falado, durante essa trajetória, em reconstrução de imagens (ou ethos) do
PT, o que vem dividindo as opiniões entre uma crítica visceral à legenda
e, no sentido oposto, uma sofisticada justificativa política para corroborar
essa guinada comportamental. Nessa perspectiva, cientistas políticos
(e/ou historiadores) como Fausto (2012), Vianna (2006), Sader (2005),
Reis (2007), Petit (2006) e Mattoso (2013), dentre outros, além de atores
políticos diversos e movimentos sociais, têm apontado metamorfoses no
discurso petista, com argumentos que indicam discrepâncias significativas
no decorrer dos anos, ora pelo sabor das circunstâncias, ora pelas
transformações da realidade brasileira.
A partir desse controverso dilema, e isentando-nos de fazer
uma contextualização histórica mais pormenorizada do PT entre 1979 e
2002 (arco de tempo dos documentos em anexo), buscaremos resgatar,
na sequência do artigo, algumas “vozes” que se debruçaram sobre o
problema da mudança de postura ethica do PT. Com isso, temos como
objetivo, concomitantemente, (i) atestar a relevância sócio-política da
questão aqui abordada em escala nacional, (ii) fornecer um quadro
contextual (por amostragem) de como o problema tem sido visto/avaliado
e (iii) apresentar um parâmetro mínimo para as análises dos Anexos
A Carta ao Povo Brasileiro foi extraída do sítio: <http://novo.fpabramo.org.br/uploads/
cartaaopovobrasileiro.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018.
6
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365
presentes na terceira parte do artigo, momento em que buscaremos
apresentar a contribuição específica da Análise do Discurso e da Retórica
para esse debate.
2 As Críticas da Metamorfose, as Metamorfoses da Crítica
Inicialmente, é comum observar que o PT teria passado, pouco
a pouco, de “partido de militantes” a um “partido de funcionários”, à
medida que foi conquistando pleitos oficiais, principalmente após a
sua chegada à Presidência da República, em 2002: os que antes eram
líderes de movimentos sociais, agora se tornam prefeitos, assessores ou
deputados; os que antes alimentavam esses movimentos, agora se veem
como articuladores da política profissional. Segundo Reis (2007, p. 16),
não se quer afirmar que estas metamorfoses tivessem se realizado
de forma integral. Que características presentes na gênese do PT
tivessem se dissolvido no ar. Mas é como se as novas referências
[...] estivessem agora predominando, conferindo à dinâmica do
Partido um rumo distinto, diferentes e imprevistos horizontes.
Petit (2006), por exemplo, nos fala dos encontros que Lula e seus
assessores nutriram, após ocupar a Presidência da República – senão
antes, como sugere a Carta de 2002 –, com representantes de setores da
elite econômica, tais como empresários, banqueiros etc., no sentido de
sinalizar que um Governo do PT se esforçaria para controlar a inflação,
acalmar os mercados e/ou garantir espaços para representações políticas
estranhas à sua própria história, construindo, assim, uma governabilidade
de coalizão. Nessa perspectiva, alianças petistas foram vistas por
pensadores como Fausto (2012) e Petit (2006) como “oportunistas”,
tais como as alianças com o PMDB ou concessões políticas feitas às
bancadas Evangélica e Ruralista nas casas legislativas. Tais acertos teriam
impactado em medidas de cunho econômico que teriam conduzido o
partido ao “centro” político (ou, até mesmo, à “direita”), como muitos
sustentaram.
Isso nos levaria facilmente à percepção de que o PT teria
modificado as teses que outrora eram defendidas, assim como o seu
discurso. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, muitas das críticas não se
abstiveram em admitir, sem alguma polêmica, os avanços dos governos
Lula no plano da política social, a partir de programas como o Bolsa
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Família e o Fome Zero (que, dentre outras coisas, retiraram milhões
de pessoas da linha da pobreza), a expansão do crédito para as classes
médias e mais necessitadas, a política de cotas, a construção de novas
universidades etc. Ainda em um direcionamento crítico, Sader (2005)
considera que o Partido dos Trabalhadores teria surgido como uma
legenda forte de esquerda, mas que perdera essa força ao caminhar para
o “centro”, mantendo a continuidade da política econômica neoliberal do
governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Petit (2006)
nos lembra, voltando ao passado, que o PT, nas eleições de 1989, não
obteve apoio significativo do empresariado brasileiro. No entanto, desde
o início dos anos 1990, o partido teria iniciado uma modesta (porém
contínua) aproximação com a classe empresarial do país. Dessa forma, na
visão do cientista, as candidaturas do PT de 1994 já teriam sido custeadas
pela metade por empresários e banqueiros.
De um ponto de vista um pouco diferente, Nobre (2013) afirma
que, no momento em que o governo de Fernando Henrique se aliou
ao PFL (hoje DEM), foi estabelecida uma corrente de forças em que,
ao Partido dos Trabalhadores, só restariam duas alternativas diante de
eleições futuras: permanecer na oposição indefinidamente ou caminhar
em direção ao centro, à maneira do PMDB. Esse caminhar ao centro
é um típico movimento do sistema político brasileiro e caracterizaria,
assim, para o PT, uma estratégia nova e mais flexível de alianças após três
derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil (1989, 1994 e 1998).
Nessa perspectiva, já haveria, no contexto das eleições presidenciais de
1994, uma sinalização de que o PT estaria prestes a tomar essa direção.
Nas palavras do pesquisador,
se permanecesse em oposição inflexível, o PT estaria afastado
do poder, fosse por um longo período, fosse indefinidamente,
mas garantindo com isso a polarização necessária para manter
a estrutura fundamental do novo sistema. Se, ao contrário, o PT
fizesse o movimento em direção ao peemedebismo, também a
continuidade do novo arranjo deveria estar de alguma maneira
garantida, já que significaria a aceitação da lógica do Plano Real
e seu novo padrão de desenvolvimento econômico subordinado
para o país. (NOBRE, 2013, p. 54)
Podemos observar que este percurso de caminhar ao centro
(ou à direita, como denunciaram os “mais radicais”) é tradicional na
política brasileira. Mais do que isso, o conteúdo citado seria também
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367
a base de algumas justificativas – desta vez enunciadas como positivas
– da mudança de postura do PT: o partido precisaria chegar ao poder
para realizar transformações sociais defendidas historicamente, ainda
que parcialmente. Entretanto, na conjuntura brasileira, tal escalada não
seria possível se o partido continuasse a insistir naquela imagem dura,
inflexível e radical de sua fundação. Mesmo assim, Vianna (2006, p.
94) considera que, em 1998, a esquerda brasileira ainda se abstinha de
consolidar alianças na direção do centro político. Chegando em 2002, “a
esquerda busca o centro, seja em sua política de alianças, seja no discurso
moderado”. Nessa linha de raciocínio, o autor aponta a importância da
articulação do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002, ao afirmar
que o “movimento de ‘ida ao centro’ por parte do PT pôde credenciálo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição
republicana” (VIANNA 2006, p. 98).
Dessa maneira, e voltando às críticas, constantemente nos é dito
que o PT teria entrado no pleito de 2002 para vencer a disputa a qualquer
preço, não se importando com os novos rumos aos quais o partido se
subordinaria. Reis (2007, p. 17) acrescenta, nesse sentido, que o
PT preparou-se profissionalmente para a campanha de 2002.
Na condição de grande partido, que já era, arrecadou finanças
consideráveis. Em seguida, moderou o discurso político, um
processo que já vinha se desdobrando, desde a campanha de
1994, mas que alcançaria, em 2002, com a Carta aos Brasileiros,
um novo patamar. Finalmente, articulou assessoria de marketing
que viabilizaria a proposta do candidato através dos meios de
comunicação, além de tratar do seu visual, despindo Lula de
quaisquer vestígios que o pudessem assimilar a uma liderança
radical. (itálicos do autor)
Dessa forma, estudiosos apontam o ano de 2002 como um marco
na materialização das mudanças de direção do Partido dos Trabalhadores,
tanto com a moderação de pautas de cunho mais radical de esquerda,
quanto com a atuação de profissionais de marketing que puderam atuar
na imagem e na própria campanha de um modo geral. Considerando
as consequências da vitória de Lula, Iasi (2014a) visualiza a gestão do
PT por outro ângulo, considerando que, quando o assunto era a questão
social, o governo buscou proximidade com setores da grande “burguesia
monopolista”. Para ele, nessa dinâmica, parte da burguesia teria
“sequestrado” a representação da classe trabalhadora. Assim, a gestão
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do PT teria ofuscado a importância da luta de classes, tão alimentada por
ele em sua fundação e anos posteriores, priorizando uma administração
mais preocupada com o capital. Para o autor, essas ações limitaram o
governo do PT, que atalhou pelo caminho do “reformismo fraco”, em
detrimento de um “reformismo forte”.
Dessa forma, para não romper com as exigências do mundo
do capital, isto é, com os anseios da burguesia monopolista, o governo
petista precisou contingenciar consideravelmente as demandas dos
trabalhadores. Consequentemente, o PT, arquitetado tradicionalmente sob
um viés socialista (ou de defesa dos direitos e interesses dos oprimidos),
teria se transformado no articulador da burguesia monopolista no país.
Iasi (2014b) afirma, desse modo, que, na gestão do PT, o Brasil teria
finalmente transitado do status da dominação burguesa “sem hegemonia”,
para o status de dominação burguesa “com hegemonia”. Nas palavras
do pesquisador,
o preço da governabilidade e do aparente sucesso de governo é o
desarme das condições políticas, organizativas e de consciência
de classe que poderiam apontar para uma ruptura com a ordem
do capital. O que presenciamos aqui é, paradoxalmente, o fato
que a experiência do PT se não levou à meta socialista suposta
inicialmente, cumpriu factualmente uma outra tarefa: encerrou
o ciclo de consolidação da revolução burguesa no Brasil (IASI,
2014b, p. 17).
Isso pode ser explicado, também, em função de várias críticas
que partidos políticos tidos como “mais à esquerda”, tais como o PCB,
o PSTU ou o PSOL, por exemplo, fizeram à gestão petista após 2002: o
partido teria investido no aumento de crédito e na solução dos impasses
sociais mais pela via do consumismo desenfreado do que por reformas
estruturais profundas (como as reformas política, agrária, urbana,
previdenciária e tributária); mais pela via do ajuste do salário mínimo
acima da inflação do que pelos caminhos de um salário mínimo tal e qual
sugerido, por exemplo, pelo DIEESE (Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos).7 Nesse sentido, Safatle (2013)
7
No link a seguir se pode ver o valor do salário mínimo sugerido pelo DIEESE,
baseado na cesta básica, desde 1994: <http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/
salarioMinimo.html>.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
369
avalia, de forma também crítica, que o governo do PT (2003-2010)
demonstrou uma evidente incapacidade de gerenciar os impasses do
presidencialismo de coalizão brasileiro. Para ele, é como se a
governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda
nacional a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação
popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando, de
maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de
sempre (SAFATLE, 2013, p. 14).
Por outro lado, Mattoso (2013) considera que o que houve foi
um novo modelo de política que, de maneira sutil, deixava de priorizar
a indústria e o crescimento econômico sob o viés das exportações;
priorizava, um pouco diferentemente, a expansão do mercado interno,
valorizando o papel do Estado, popularizando o crédito e ampliando as
políticas sociais nos primeiros 10 anos em que esteve à frente do país.
Dessa maneira, o governo buscava mostrar o reconhecimento geral de
que as políticas sociais beneficiavam, além da inclusão social, a redução
da desigualdade e da pobreza, favorecendo a economia e o crescimento
do PIB. Nessa direção, o pesquisador faz a seguinte consideração, de
cariz mais positivo:
na verdade, o evidente sucesso dos governos eleitos após 2002 não
se deveu exclusivamente à esfera da economia ou do social, mas
ao uso de políticas inovadoras capazes de articular o econômico
e o social e potencializar o crescimento, a produtividade e
a institucionalidade, gerando algo inexistente ao longo das
duas décadas anteriores, o desenvolvimento... Depois de anos
de neoliberalismo, de subordinação aos interesses rentistas e
de ausência de políticas econômicas pró-desenvolvimento,
fortaleceu-se o uso de políticas desenvolvimentistas e de combate
à pobreza, mais intensamente após 2006, com a mais efetiva
articulação do econômico e do social e com o enfrentamento
das crises internacionais com políticas inovadoras e anticíclicas.
(MATTOSO, 2013, p.119-120)
Como se vê até aqui, estamos longe de um consenso sobre o
problema, ou melhor, são complexas as críticas da mudança, assim como
as mudanças da crítica. Sem entrar em maiores detalhes, esse pequeno
panorama pôde nos dar uma ideia mínima da relevância da questão aqui
abordada, assim como da densidade e/ou variedade de pontos de vista
370
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
(mais ou menos negativos ou positivos). O que podemos perceber com
esses apontamentos é que a transformação do Partido dos Trabalhadores
salta aos olhos daqueles que acompanham o percurso da legenda – ou seja,
a mudança em si não é contestada –, embora essa transformação venha
acompanhada de julgamentos distintos nos planos social e acadêmico.
Como se pode constatar, o problema é bastante complexo e não
desprovido de emotividade, se observamos os julgamentos variados da
metamorfose discursiva e comportamental do PT. Outro complicador é o
que poderíamos entender por certos termos citados neste artigo, que dizem
respeito a uma filosofia político-discursiva, tais como “direita”, “esquerda”
e, até mesmo, “centro”. Nesse caso, Bobbio (1995) nos esclarece que a
tão difundida dicotomia – direita e esquerda – foi considerada obsoleta
por vários pensadores, após a queda do muro de Berlim. Não obstante,
afirmar isso categoricamente seria algo temerário, uma vez que a díade se
encontra no cerne do debate político contemporâneo, sendo reivindicada
como bandeira por vários setores políticos e movimentos sociais. Dito de
outra forma, os termos direita e esquerda são ainda largamente utilizados
para fazer menção a diferenças no pensar e no agir políticos. O ponto
complicador é que não se pode chegar a uma verdade definitiva ou
essencial sobre o binômio, visto que “direita e esquerda não são conceitos
absolutos mas historicamente relativos” (BOBBIO, 1995, p. 81). Citando
Marco Revelli, o autor ainda arremata:
“Direita” e “esquerda” não são conceitos absolutos. São conceitos
relativos. Não são conceitos substantivos ou ontológicos. Não
são qualidades intrínsecas ao universo político. São lugares do
“espaço político”. Representam uma determinada topologia
política, que nada tem a ver com a ontologia política: “Não se é
de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se
é ‘comunista’, ‘liberal’, ou ‘católico’”. Em outros termos, direita
e esquerda não são palavras que designam conteúdos fixados de
uma vez para sempre. (BOBBIO, 1995, p. 91-92)
Esse é um grande problema que também atravessa o nosso objeto
de análise: enquanto muitos definem o PT da Carta de 2002 como uma
instituição que caminhou para o centro (e até mesmo para a direita), seus
partidários continuam reivindicando a etiqueta de partido de esquerda,
não obstante mudanças significativas tenham ocorrido no discurso e no
agir político da legenda, desde a Carta de 1979. Sendo assim, não cabe a
este trabalho definir categoricamente o que seria “direita” ou “esquerda”,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
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pois se trata de noções históricas cambiantes. Prova disso é que são
catalogadas várias tipologias de direita (“autoritária”, “conservadora”,
“liberal” etc.) e “esquerda” (“reformista”, “revolucionária”, para ficar
com dois exemplos). Com a ajuda de Bobbio, no entanto, poderíamos
traçar linhas ou princípios gerais que poderiam, pelo menos, funcionar
como um guia básico para a nossa reflexão, independentemente das
flutuações históricas.
Nesse sentido, o autor, com base em outros tantos pensadores,
nos informa que a direita possui ainda um apego sistemático à tradição,
ou seja, às práticas tradicionais e conservadoras do fazer político,
agarrando-se correntemente à manutenção da ordem e às hierarquias (ou
desigualdades sociais). Isso implica obviamente dizer que as suas práticas
efetivas no campo social caminhariam nessa direção, independentemente
de qualquer discurso eleitoral. Já os valores da esquerda desembocariam
na emancipação dos homens, principalmente dos mais explorados, no
sentido de libertar os indivíduos das amarras impostas pelos privilégios
de raça, casta, classe etc.
Essa diferenciação básica, apesar de problemática, parece estar
na origem das críticas ao PT vistas acima, principalmente a partir de
2002. O seu vínculo ao campo da tradição estaria denunciado pela aliança
ao empresariado (representada, como já visto, pelo vice de Lula, José
Alencar), mas também pela apregoada continuidade da política econômica
neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, passando pelas concessões
a setores conservadores, como as bancadas evangélica e ruralista.
Parece ser nesse sentido, curiosamente, até mesmo a avaliação positiva
empreendida por Vianna (2006, p. 98), ao afirmar que o “movimento de
‘ida ao centro’ por parte do PT pôde credenciá-lo a estabelecer alianças
com significativos setores dessa tradição republicana”. (grifo nosso)
No entanto, como foi afirmado, setores de diversos movimentos
sociais (como o Movimento dos Sem Terra [não sem críticas pontuais])
e apoiadores do PT, ainda continuaram a considerá-lo, mesmo assim,
como um partido “autenticamente” de esquerda, o que prova mais uma
vez que os conceitos são cambiantes, e que não caberia a este trabalho
encerrar (ou julgar) essa questão. Nesse caso, os critérios para se definir
o seu estatuto legítimo de esquerda estariam no combate à pobreza e
na amplitude das políticas sociais. Contornando essa questão, portanto,
nosso objetivo a seguir será apenas mostrar, de forma panorâmica, o que
uma leitura retórico-discursiva poderia acrescentar sobre o entendimento
372
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das mudanças simbólicas do partido, a partir de nossos Anexos, até
mesmo para contribuir para debates futuros.
3 O que dizem as cartas: o ethos do PT em perspectivas
Como se sabe, o ethos se define, retoricamente, como as “imagens
de si” decorrentes de acontecimentos discursivos (AMOSSY, 2008, 2010).
Como diria Maingueneau (2008), os textos (orais e escritos) atribuem,
explicita ou implicitamente, um “tom” específico ou uma determinada
“corporalidade” aos seus enunciadores, não apenas em função do conteúdo
que escolhem/proferem, mas, também, em função de como eles enunciam,
o que nos coloca diante de seleções linguísticas significativas do ponto de
vista retórico. Por conta dos limites deste artigo, e por ser uma noção já
bastante abordada em textos sobre a Retórica e a Análise do Discurso, não
faremos uma explanação teórica mais ampla sobre a noção de ethos. Ao
leitor não familiarizado com a questão, sugerimos a consulta dos textos
de Galinari (2012), Maingueneau (2008) e Amossy (2008), com os quais
este artigo se encontra em consonância. Sendo assim, a seguir, buscaremos
mostrar, em termos bem gerais, as imagens partidárias produzidas pelas
Cartas do PT de 1979 e 2002, respectivamente.8 Em termos linguísticos,
buscaremos nos ancorar em mecanismos diversos presentes nos textos,
mas, em um grau um pouco maior, nos chamados índices de modalização,
direcionando-os para a construção do ethos com alguns esclarecimentos
conceituais oportunos em notas de rodapé.9
8
Por serem textos relativamente extensos, não faremos uma análise minuciosa (linha
a linha), mas apenas discutiremos alguns trechos que julgamos serem representativos
do “conjunto de cada obra”. Nessa perspectiva, o artigo também não contém um
investimento teórico denso sobre o ethos e demais categorias conceituais da linguística.
Por um lado, por se tratarem de categorias já bastante conhecidas e, por outro, para que
a análise de nosso objeto principal – o conteúdo dos Anexos – não fique prejudicada.
9
O fenômeno linguístico da “modalização” permite-nos realizar o caminho que vai
do enunciado à enunciação. Trata-se, aqui, de uma série de elementos da língua que
não se referem propriamente ao “que se diz”, ou seja, ao conteúdo asseverado pelas
sentenças, mas ao “como se diz”. Para tanto, a linguagem possui “termos ou expressões
modalizadoras” que nos ajudam a apreender, no discurso, as marcas linguísticas de
sua instância produtora. Os índices linguísticos de modalização podem ser de várias
ordens: a organização frástica (assertiva, interrogativa, imperativa, exclamativa), modos
e tempos verbais, expressões adverbiais, predicados cristalizados com adjetivos (“é
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373
3.1 A Carta de 1979 – Anexo I
No Anexo I, de 1º de maio de 1979, nota-se que a modalidade
enunciativa10 predominante é composta por asserções em 3ª pessoa,
intercaladas em alguns momentos com o uso do “nós” (linhas 55-62 e
144-151, sobretudo). O manejo dominante da 3ª pessoa promoveria, a
nosso ver, um certo efeito de objetividade para o discurso, seja para se
descrever o próprio PT (como se este estivesse “fora da enunciação”), seja
para se construir uma análise crítica da conjuntura brasileira, tematizando
pontos fulcrais como a própria sociedade, a exploração dos oprimidos
pelas elites, os processos de luta dos trabalhadores ou os perfis políticos
de partidos como o PTB e o MDB. Vejamos um trecho inicial:
a ideia da formação de um partido só dos trabalhadores é tão antiga
quanto a própria classe trabalhadora. Numa sociedade como a
nossa, baseada na exploração e na desigualdade entre as classes,
os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se
manter organizados à parte, para que lhes seja possível oferecer
resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios
das classes dominantes. (Anexo I, linhas 1-6)
Além da tematização da nova ideia de formação de um partido
“só” de trabalhadores (“organizados à parte”),11 o fragmento é sintomático
de um conteúdo – um “ele(s)” – que se encontra repisado durante toda a
Carta, de alta relevância para a edificação do ethos. Trata-se da dicotomia
certo”, “é preciso”, “é necessário”), performativos (“eu ordeno”, “eu prometo”, “eu
te proíbo”), verbos auxiliares (poder, dever, ter que/de, haver de, precisar de), verbos
de atitude proposicional (“eu creio”, “eu sei”, “eu duvido”, “eu acho”), a entonação e
demais marcadores prosódicos etc. Para maiores detalhes, ver Neves (2011), Paveau
e Sarfati (2006) e Galinari (2018).
10
A partir de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002, p. 182-184), além de outros estudos
variados em linguística, podemos dizer que as modalidades enunciativas referemse ao manejo dos pronomes pessoais, de modo a mostrar um maior ou menor grau
de subjetividade/objetividade no discurso. Nesse caso, a enunciação em 1ª pessoa
produziria um efeito de subjetividade; a enunciação em 2ª pessoa, um efeito de
interlocução; a enunciação em 3ª pessoa, um efeito de objetividade.
11
Expressões adverbiais como “à parte” ou “só” fazem parte das modalidades
epistêmicas, comentadas mais adiante neste artigo. Neste momento, o foco incide sobre
a modalidade enunciativa em terceira pessoa, que permite ao texto tratar de referentes
no mundo social e político.
374
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
retórica profunda, e de feições classistas, entre “os de baixo” e “os de
cima” (linhas 111-113). Os primeiros, colocados sempre na dinâmica da
“luta”, seriam os “explorados e oprimidos”, como se vê no fragmento
acima. Esses objetos de referência encontram-se atualizados ao longo de
todo o texto, designados por outras expressões retóricas: “o operariado
e os setores proletarizados de nossa população” (linhas 13-14), “o povo
brasileiro” (linha 63), as “massas trabalhadoras, exploradas e oprimidas”
(linhas 113, 144, 192 e 233). Já “os de cima”, por seu turno, apresentados
na citação anterior como as “classes dominantes”, atualizam-se também,
no desenrolar do texto, a partir do uso de expressões também carregadas
de sentido: “os patrões e o governo” (linha 27), os “partidos e governos
criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas” (linhas 67-68)
[como o PTB de Vargas e o MDB, com seu programa “pró-capitalista”],
“os detentores do poder” (linha 91), as “elites privilegiadas” (linha 165),
o “modelo econômico vigente” (linha 156) e os “setores do empresariado
nacional” (linhas 198-199).
Dessa forma, o novo partido se funda radicalmente com um
ethos classista, isto é, engajado na luta pelos trabalhadores e, além
disso, corajoso, colocando-se de forma destemida à disposição dos mais
necessitados para os embates necessários contra os famigerados patrões
e os programas pró-capitalistas da burguesia dominante. Trata-se, assim,
de um partido “só” de trabalhadores (organizados “à parte”), advérbios
que modalizam um tom convicto quando combinado ao estilo assertivo
em 3ª pessoa, assegurando categoricamente um ethos de “partido de
massas”, expressão presente explicitamente na linha 192. Nessa toada, na
continuidade do fragmento acima apresentado, o PT se mostra também
seguro em relação àquilo que diz, isto é, sem deixar margens para dúvidas,
descrevendo (após a linha 7) o processo emancipatório de combate dos
trabalhadores contra o jugo servil da elite, incluindo as greves deflagradas,
as tentativas de sabotagem do governo e dos patrões, o posicionamento
de outros partidos, a situação do país etc. Podemos acrescentar que essa
“análise de conjuntura”, descrita minuciosamente não apenas no início,
mas também ao longo de toda a Carta de 1979, daria retoricamente ao
PT e seus signatários ares de expertise, de conhecimento aprofundado
da realidade brasileira, apontando tanto para um ethos politizado, quanto
para a imagem (“quase técnica”, oriunda do vocabulário dos cientistas
sociais) de um bom observador crítico de seu tempo e de sua história.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
375
Em função do quadro político brasileiro, da opressão sofrida pelos
mais necessitados, o novo partido é posto, como se vê também na citação
anterior, como uma necessidade de sobrevivência da classe operária
(“têm permanente necessidade de”), mostrando mais uma vez o grau
acentuado de certeza e de convicção da instância oratória, engajamento
que se repete a seguir:
é por isso que a ideia de um partido dos trabalhadores, ressurgindo
no bojo das greves do ano passado e anunciado na reunião
intersindical de Porto Alegre, em 19 de janeiro de 1979, tende
a ganhar, hoje, uma irresistível popularidade. Porque se trata,
hoje, mais do que nunca, de uma necessidade objetiva para os
trabalhadores. (Anexo I, linhas 46-49)
Devemos entender a “irresistível popularidade” do PT justamente
diante do quadro adverso para os mais pobres, quadro descrito
em praticamente toda a Carta, o que, necessariamente, exige uma
organização “à parte” da classe trabalhadora. Dessa forma, o ethos de
“conhecimento aprofundado” da realidade brasileira (dos pobres) e de
consciência política, assim como de firmeza e engajamento classista, teria
despertado determinadas reações dos outros partidos que ostentariam
“fachadas democráticas” (para usar uma expressão da linha 68), receosos
do crescimento da nova sigla. As classes dominantes, portanto, cientes
da organização partidária crescente dos trabalhadores, ou melhor, do
próprio PT,
(...) se apressam a sair a campo com suas propostas de PTB.
Mas essas propostas demagógicas já não conseguem iludir os
trabalhadores, que, nem de longe, se sensibilizaram com elas. Esse
fato comprova que os trabalhadores brasileiros estão cansados das
velhas fórmulas políticas elaboradas para eles. Agora, chegou a
vez de o trabalhador formular e construir ele próprio seu país e
seu futuro. (Anexo I, linhas 50-55)
O trecho é bastante significativo, mais uma vez, do comportamento
enunciativo (ou ethos) da nova instância partidária: mostra-nos uma arguta
capacidade de análise conjuntural do país, perscrutando as dinâmicas
sociais de ação e reação de forças políticas antagônicas. Uma postura
firme de coragem e empenho se apresenta, assim, em forma de denúncia
de propostas demagógicas vãs, incapazes de iludir a classe trabalhadora,
o que corrobora um ethos de enunciador seguro, convicto e propenso
376
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019
a transmitir confiança a quem o lê ou escuta. Além do “tom” assertivo
em 3ª pessoa, com verbos semanticamente carregados no presente do
indicativo, esse ethos é amplificado pelo uso de modalidades linguísticas
epistêmicas,12 tais como (na citação acima) a expressão adverbial “nem
de longe”, “agora” (“chegou a vez de...”) ou, ainda, fórmulas como
“esse fato comprova que”, com as quais o enunciador mostra um grau
acentuado de certeza/firmeza diante do conteúdo asseverado. Expressões
ou advérbios já salientados como “só”, “à parte” e “têm permanente
necessidade de” também atestam esse grau acentuado de certeza
epistêmica, podendo assumir também um caráter deôntico de palavra
de ordem, apontando mais uma vez para um ethos convicto/militante.
Procedimentos semelhantes são adotados quando o assunto é o MDB,
com o acréscimo das chamadas modalidades apreciativas13 (em itálico):
o MDB, por sua origem, por sua ineficácia histórica, pelo caráter
de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas sobretudo
por sua composição social essencialmente contraditória, em
que se congregam industriais e operários, fazendeiros e peões,
comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos
12
As chamadas modalidades epistêmicas, com base em Neves (2011), se caracterizam
como elementos linguísticos imbuídos de um valor modal referente à possibilidade
e à necessidade, em termos da expressão do conhecimento e da crença, da certeza
e da incerteza, do possível e do impossível. Uma série de advérbios ou expressões
adverbiais as caracterizam (certamente, possivelmente, com certeza, quem sabe,
talvez etc.), dando ao enunciador um caráter convicto ou duvidoso diante do conteúdo
proposicional asseverado.
13
A partir de Paveau e Sarfati (2006), podemos afirmar que as modalidades apreciativas
são caracterizadas por uma série variada de expressões, nomes/substantivos, adjetivos,
advérbios (e até mesmo verbos) propícios a qualificar algo. Dito de outra forma, ao
serem escolhidos ou combinados, tais elementos podem apreciar seres, objetos ou
eventos, mostrando, de certa forma, a subjetividade do enunciador (ou o seu ethos)
diante dos referentes construídos pelo discurso. Nesse sentido, é importante esclarecer
que certas expressões já destacadas acima, produzidas em uma moldura enunciativa em
terceira pessoa, como “os de baixo”, os “explorados e oprimidos” versus “os de cima”,
as “classes dominantes”, as “elites privilegiadas” etc., são exemplos vivos de modos
de apreciação específicos. Não podemos esquecer que as modalidades se interpenetram
e só possuem sentido em um contexto, em que, por exemplo, o efeito de objetividade
em terceira pessoa pode formar um quadro enunciativo propício para a emergência
retórica de qualificadores de elementos no mundo.
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377
interesses são incompatíveis e nas quais, logicamente, prevalecem
em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser
reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares
de “tomar de assalto” o MDB é muito mais que insensata: é fruto
de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de
setores de nossas classes dominantes. Aglomerado de composição
altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais
conservadoras, o MDB tem-se revelado, num passado recente, um
conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas
exploradas brasileiras. (Anexo I, linhas 121-133) (Itálico nosso)
Aqui podemos encontrar, portanto, além dos indícios epistêmicos
de acentuada convicção e militância (“jamais poderá ser”, “é muito mais
que”), algo representativo do que acontece no documento como um todo:
uma série de expressões nominais e adjetivas (em itálico) destinadas a
qualificar fenômenos sociais da realidade brasileira – no caso, o MDB –,
reforçando um ethos de conhecimento profundo (e crítico) do contexto
político nacional, com feições de enfrentamento corajosamente classista.
Passando adiante, essa seria a moldura ethica de uma série de atos de fala
emparelhados sistematicamente da linha 156 até o final do documento,
trecho também preenchido por diversos indícios de convicção epistêmica.
Referimo-nos à repetição exaustiva, obstinada, de uma mesma estrutura
sintática significativa, tendo como sujeito o “PT” (ou o “Partido dos
Trabalhadores”) e uma predicação verbal asseverativa. A nosso ver, esse
longo repisar sintático, presente do começo ao fim do trecho assinalado,
seria capaz de somar às dimensões ethicas já vistas um caráter obstinado
e incansável, o que poderia demonstrar, institucionalmente, tenacidade,
firmeza e empenho pela própria forma da enunciação.
Sem entrar em maiores detalhes, pela extensão do trecho referido,
basta atentarmo-nos para os seguintes fragmentos: o “PT” (sempre como
sujeito) “denuncia” (linha 156), “defende” (linha 159), “entende” (linhas
162, 166 e 174), “proclama” (linhas 171, 177 e 184), “afirma” (linha 186
e 211), “se declara” (linha 190 e 230), “recusa-se” (linha 197), “define-se”
(linhas 208 e 210), “(não) pretende” (linhas 207 e 227), “se constituirá”
(linha 215), “respeitará” (linha 216) “irá promover” (linha 220) etc.
Ressaltamos, aqui, o tom explícito de promessa dos últimos quatro verbos
assinalados, a maior parte deles conjugada no futuro, o que assinala um
ethos de engajamento e compromisso público, mas não apenas: outros
atos de fala se interpenetram, sempre a partir da linha 156, num misto de
378
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promessas, asserções/definições, declarações, proclamações, denúncias,
recusas etc., mostrando-nos um partido assertivamente “sem patrões”
(linha 195), predestinado a “acabar com a relação de exploração do
homem pelo homem” (linha 205), além de solidário para com “as massas
oprimidas do mundo” (linhas 232-233). Dito isso, cabe-nos ressaltar,
ainda, um último aspecto do ethos também presente na Carta de 1979,
em particular nos trechos enunciados na primeira pessoa do plural:
nós, dirigentes sindicais, não pretendemos ser donos do PT,
mesmo porque acreditamos sinceramente existir, entre os
trabalhadores, militantes de base mais capacitados e devotados, a
quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido. Estamos
apenas procurando usar nossa autoridade moral e política para
tentar abrir um caminho próprio para o conjunto dos trabalhadores.
Temos a consciência de que, nesse papel, neste momento, somos
insubstituíveis, e somente em vista disso é que nós reivindicamos o
papel de lançadores do PT. (Anexo I, linhas 55-62) (Itálico nosso)
A primeira pessoa do plural (“nós”) reforça mais claramente
um ethos de enunciador coletivo, até mesmo pela assinatura no final do
documento (“a Comissão Nacional Provisória”). No entanto, esse “nós”
é bem delineado por um aposto singular: os “dirigentes sindicais”, o que
confere à nascente instituição uma imagem não apenas classista, mas,
sobretudo, de sindicalistas. Curiosamente, mesmo assim, tal instância
busca produzir um efeito de modéstia e de posicionamento democrático/
inclusivo: não reivindicam para si uma propriedade do partido, pois
acreditam ser essa a tarefa dos próprios trabalhadores, postos como mais
“capacitados” e “devotados” para conduzir o seu próprio combate. O PT
se colocaria, assim, como uma instância aberta, inclusiva e democrática,
sendo os dirigentes sindicais “insubstituíveis”, mas apenas na medida em
que cumprem um papel de pontapé inicial para a fundação da legenda,
devido à sua “autoridade moral e política” de defensores históricos da
classe trabalhadora. Isso só viria corroborar, mais uma vez, o ethos
classista e coletivo que vínhamos sublinhando para o partido, ainda
não personificado simbolicamente na figura singular de um líder (como
o próprio Lula, por exemplo). Como veremos a seguir, algo diverso
acontece, em termos de ethos, na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002.
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3.2 A Carta de 2002 – Anexo II
Como se sabe, a Carta ao povo brasileiro, assinada por Luiz
Inácio Lula da Silva, data de 22 de junho de 2002, momento precedente
às eleições presidenciais daquele ano. No plano enunciativo, não
notamos uma predominância quase exclusiva de asserções em 3ª pessoa
(“ele”), como vimos no Anexo I. Tal modalidade enunciativa, embora
significativa, convive agora com mais intensidade com o uso da 1ª pessoa
do plural (“nós”) e, ainda, com a aparição emblemática da 1ª pessoa do
singular (“eu”). Essa “mixagem” enunciativa do Anexo II já pode ser
notada nas palavras iniciais, a partir das quais mostraremos como se dá
a construção de referentes importantes e significativos para o ethos do
PT nesse documento, em contraste com a Carta de 1979:
o Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar
para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos
e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma
poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e
político. Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual
modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e
social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos
depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas
fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.
(Anexo II, linhas 1-8) (Itálico nosso)
Sem perder de vista a pertença do texto a um ano eleitoral (2002),
assim como a sua possibilidade de interferência no ethos institucional do
PT (e não apenas do candidato Lula, que não é o nosso objeto específico),
podemos observar que o referente central aqui talhado já não é mais
composto pela mesma dicotomia encontrada anteriormente. A pujante
antítese cunhada em 1979 entre “os de cima” e “os de baixo”, ou seja,
entre as elites dominantes e as massas exploradas, encontra-se agora
substituída por outra forma de polarização: o “atual modelo” (linhas 5,
14, 18, 26, 49, 61), representado pelas gestões de Fernando Henrique
Cardoso (PSDB), e o “novo modelo” (linha 54), aglutinado pela figura
de Lula, ou melhor, pela “nossa candidatura” (linha 30).
A gestão do PSDB, também atualizada como “atual ciclo
econômico e político” (linhas 3-4), “governo Fernando Henrique
Cardoso” (linha 67) ou, simplesmente, como “atual governo” (linhas
88 e 123), é descrita de forma objetiva e crítica em diversas partes do
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documento. O “atual modelo” é figurado, por exemplo, como uma enorme
“decepção”, por frustrar esperanças e descumprir promessas (linhas 5-8);
é posto como um modelo político esgotado e fracassado, tendo submetido
o país ao risco iminente de uma “estagnação crônica” (linhas 13-19); foi
incapaz de tomar as necessárias medidas (“corajosas e cuidadosas”) para
a mudança que a sociedade desejava (linhas 24-26); nesse sentido, é posto
também como responsável pela crise econômica, financeira e social pela
qual o país atravessava, por não tomar as providências pertinentes diante
das turbulências do mercado (linhas 60-62; 68-70; 88-92).
De forma semelhante ao Anexo I, notamos no PT, a partir da
assinatura de Lula, um ethos firme de partido crítico, combativo e
engajado num projeto político para o país, dada a riqueza de modalidades
apreciativas presentes nos trechos assinalados acima. Encena-se com tudo
isso, mais uma vez, uma imagem enunciativa de conhecedor profundo,
tanto da realidade brasileira, quanto de seus adversários. Mas o que
chama a atenção, nessa dinâmica, é o desaparecimento do ethos classista
de outrora. Ou seja: o combate se dá, agora, entre modelos de gestão
(“atual modelo” x “novo modelo”), e não mais entre classes sociais que
deveriam organizar-se “à parte” (“os de cima” x “os de baixo”). Isso fica
ainda mais claro em trechos como os seguintes:
O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar (Anexo
II, linha 1) (Itálico nosso)
A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o
caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos
e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças
populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados
matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a
um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares
de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio.
Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso
projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos
suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
(Anexo II, linhas 30-37) (Itálico nosso)
Em primeiro lugar, curiosamente, notamos que termos como
“operariado”, “trabalhadores”, “massas exploradas” (“oprimidas”),
“setores proletarizados” (etc.), além da palavra “luta”, não se encontram
grafados no Anexo II, que opta por expressões mais genéricas/abstratas
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para se referir à população, esvaziadas de um possível conteúdo classista,
tais como “o Brasil” (linha 1), “nosso povo” (linha 9), “povo brasileiro”
(vide título, linhas 7, 38, 106).14 O mesmo se pode averiguar em relação a
expressões como “classes dominantes”, “elites”, “patrões” etc., também
silenciadas no texto de 2002. Sendo assim, poderíamos cogitar que, no
lugar do ethos classista de antes, temos agora a construção retórica de um
caráter mais nacionalista para o partido (“o Brasil”, “defesa do Brasil”,
“nosso povo”, “povo brasileiro”), baseado em uma política de coalização
e pacificação dos conflitos ideológicos.
Além dos termos acima em itálico, atestam essa postura ethica
(pacificadora/nacionalista/conciliadora) expressões como “autêntica
aliança pelo país” (linha 57), a disposição para “dialogar com todos os
segmentos da sociedade e com o próprio governo” (linha 105), a proposta
de construção de “um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos”
(linha 119), além do gran finale enunciado por Lula: “chamo todos os
que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de
mudanças corajosas e responsáveis” (linhas 156-157) (itálico nosso) .
Contrariamente aos velhos tempos, portanto, o PT, outrora
ancorado em uma “autoridade moral e política” de sindicalistas, isto é, de
defensores históricos da classe trabalhadora (a serviço de uma organização
partidária dos oprimidos, independente), assume agora o papel de
aglutinador de uma “vasta coalizão” (“suprapartidária”), composta por
setores ideologicamente difusos (empresários e trabalhadores, setores de
variados matizes ideológicos etc.). Como nos mostram, mais uma vez,
os termos em itálico (acima), trata-se de uma postura institucional (ou
ethos) diametralmente oposta às imagens de si projetadas pelo Anexo
I: como ressaltamos (Anexo I, linhas 121-133), o que se rechaçava
em 1979 era justamente a crença ilusória na possibilidade de qualquer
partido de composição sócio-ideológica heterogênea – no caso, o MDB
–, representar verdadeiramente as camadas exploradas. Em 2002,
porém, a luta de classes e a exortação a uma organização “à parte”
dos trabalhadores, como solução de mudança e bem-estar social, são
substituídas pelas ideias patrióticas de “solidariedade”, “fraternidade” e
“união” (de “todos”) em prol de “mudanças corajosas e responsáveis”.
A palavra “massas” encontra-se na linha 41, mas associada ao “consumo de massas”,
e não a uma classe social laboriosa propriamente dita.
14
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Encaixando-se, ao que parece, no próprio perfil anteriormente
combatido, o PT de 2002 também aparenta ostentar, diferentemente de
seus primórdios, um conhecimento aprofundado, mas desta vez no plano
jurídico-econômico e/ou financeiro-administrativo, o que possivelmente
esclarece o significado da expressão “mudanças responsáveis”, referida
logo acima. Se antes os jargões predominantes eram aqueles do cientista
social, propensos a descrever sócio-politicamente a conjuntura em que
se vivia e a situação dos explorados, dentro de um viés acentuadamente
classista, a “corporalidade” do enunciador da Carta de 2002, para usar
uma terminologia de Maingueneau (2008), já irradiaria uma expertise
técnica característica dos campos econômico e mercadológico.
Sem entrar em detalhes, notamos isso em diversas e exaustivas
expressões próprias dessas esferas, que se interpenetram continuamente
na manutenção temática de tópicos de gestão ao longo do texto:15
“voltar a crescer”, “gerar empregos”, “redução de nossa vulnerabilidade
externa”, “mercado interno”, “consumo de massas”, “novo contrato
social”, “crescimento com estabilidade”, “respeito aos contratos”,
“mercado financeiro”, “dívida interna e externa”, “endividamento
público”, “nervosismo dos mercados”, “especulação”, “Banco central”,
“aplicações financeiras”, “investidores”, “populismo cambial”, “ancora
fiscal”, “finanças públicas”, “exportações”, “importações”, “combate
à inflação”, “geração de empregos”, “juro alto”, “oscilação cambial”,
“dívida pública”, “equilíbrio fiscal”, “superávit primário” etc.
Como se pode notar, o ethos aqui projetado, embora não descarte
a questão social, se sedimenta substancialmente dentro da competência
na área financial e econômica, possibilitando uma imagem partidária
favorável no que tange ao mérito da gestão eficiente, responsável e
competente. Por um lado, pode-se cogitar, teríamos com tal atitude uma
resposta (ou promessa) diante da “crise econômica” e do “nervosismo
dos mercados” que abalavam a sociedade brasileira em 2002 (o chamado
“Risco Brasil”). Isso porque pairava no ar, como se sabe, uma suposta
ameaça de que Lula, com a sua vitória, não honraria os contratos,
podendo, assim, arremessar o Brasil em apuros jurídico-institucionais.
Mas, por outro lado, essa nova postura ethica teria visado, eleitoralmente,
Vide principalmente, mas não apenas, os fragmentos entre as linhas 19-23, 38-41,
56-74, 80-83, 88-96, e praticamente todo o trecho em que Lula fala em primeira pessoa
a partir da linha 114 até o final do documento.
15
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construir uma imagem do PT não apenas afeita à competência estrita
na área político-social, como rezava a sua reputação (ou ethos prévio):
precisava-se associar a legenda, também, a uma capacidade de gestão
eficiente e responsável. É nesse quadro descrito até agora, caracterizado
por uma imagem enunciativa nacionalista, suprapartidária e técnica
do ponto de vista econômico-administrativo, que o PT se lança como
modelo alternativo à “gestão atual” com a promessa de mudar o Brasil.
O comportamento promissivo e oscilante entre ousadia (plano social) e
responsabilidade (plano econômico) pode ser constatado, de modo bem
representativo, nos seguintes trechos:
o novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do
governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto,
de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação
nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a
um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com
estabilidade. (Anexo II, linhas 54-60) (Itálico nosso)
Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate
à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de
empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais
solidário e fraterno, um Brasil de todos. (Anexo II, linhas 117-119)
(Itálico nosso)
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento
econômico com estabilidade e responsabilidade social. As
mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente,
dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas
públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos
fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça
social. (Anexo II, linhas 148-152) (Itálico nosso)
Fica claro aqui, a partir das expressões e conectivos em itálico
(“mas”, “com”, “e”), a assunção de um ethos conciliador e aglutinador
de um “novo contrato social”, capaz de alcançar pretensamente as tão
sonhadas/ousadas mudanças sociais (“responsabilidade social”, “geração
de emprego”, “distribuição de renda”, “justiça social”), porém (“mas”)
“com” estabilidade econômica “e” controle da inflação. É nesse sentido,
também, que podemos entender as diversas promessas equilibradas entre a
ousadia (plano social) e a responsabilidade (plano econômico), tais como:
o “incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes
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e criativas”, o compromisso com as reformas (“estruturais”) tributária,
agrária, previdenciária, trabalhista e urbana (linhas 38-48); a valorização
do agronegócio e, a um só tempo, da agricultura familiar (linhas 97-98);
a promoção do equilíbrio fiscal e/ou preservação do superávit primário
como “meio” para o crescimento e não como “fim” (linhas 131-137). Com
tudo isso, emerge a convicção política de que “um Brasil de todos” poderia
ser construído apenas com medidas capazes, aparentemente, de agradar
a totalidade absoluta das frações da sociedade, plasmadas solidariamente
em uma única entidade abstrata: o povo, o Brasil.
Dito isso, podemos ainda afirmar que, além desse ethos de
conciliação nacionalista (não-classista), imbuído de uma competência
técnica tanto na área social, quanto, sobretudo, no campo responsável
da gestão técnica, econômica e jurídica, o PT se diferencia em 2002,
apresentando-nos uma imagem institucional já encarnada na figura
emblemática do líder. Esse efeito de personificação do partido é
possibilitado, podemos cogitar, seja pela assinatura particular de Lula
(e não mais da instituição, como em 1979), seja pela enunciação em
primeira pessoa (do singular, principalmente, e do plural):
Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito
que o atual governo colocou o país novamente em um impasse.
Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o
fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação
decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de
que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções
inéditas. Estamos de novo atravessando um cenário semelhante.
(Anexo II, linhas 88-93) (Itálico nosso)
Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação.
Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão
do poder de comprar dos salários dos trabalhadores. (Anexo II,
linhas 114-116) (Itálico nosso)
Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para
impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na
capacidade do governo de honrar os seus compromissos. (Anexo
II, linhas 135-137) (Itálico nosso)
O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento
econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que
querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de
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mudanças corajosas e responsáveis. (Anexo II, linhas 155-157)
(Itálico nosso)
A primeira pessoa do plural é oscilante em todo o documento:
ora o “nós” inclui, em seu espectro semântico, o enunciador Lula, o PT
e os interlocutores – a nação brasileira (“estamos de novo atravessando
um cenário semelhante”) –, ora se reserva apenas a Lula e o PT (como
na promessa “vamos preservar o superávit primário”). Mas o fato é que
Lula se faz presente em todos esses usos e, particularmente, se impõe de
forma inequívoca como figura de destaque a partir do “eu” que se aflora
em diversos fragmentos. É interessante observar que esse novo ethos do
PT, personificado na figura do líder (carismático), tem sido denominado,
por muitos estudiosos das ciências políticas, como lulismo, fenômeno
que conta, singelamente, ao lado de outros recursos retóricos, com a
assunção generalizada da primeira pessoa em documentos do partido.
Não é por acaso que, segundo Ricci (2010, p. 23), o lulismo
teve início na campanha de 1994, mas atingiu sua configuração
como engenharia política em 2002, quando se arquitetou a
campanha presidencial, cristalizando-se com a divulgação
da Carta ao Povo Brasileiro, em junho daquele ano. Alterou
profundamente o projeto inicial petista, que se orientava por um
discurso estratégico afiliado à lógica dos movimentos sociais que
emergiram nos anos 1980 que, por sua vez, sustentavam-se na
declarada autonomia política e na organização horizontalizada
(com prevalência dos mecanismos de democracia direta), cujo
discurso assentava-se no anti-institucionalismo e anticapitalismo.
Dessa forma, é possível notar um projeto vertical de poder em
vias de se institucionalizar, principalmente com a vitória de Lula nas
eleições de 2002, sendo o lulismo uma estratégia retórica significativa
nesse processo. O PT, assim, funde-se com a imagem de seu principal
expoente, a partir de uma via carismática de identificação diante da
população como um todo, como se vê nos trechos já assinalados: “como
todos os brasileiros”, Lula quer a verdade; com todos os brasileiros
(“nós”), atravessa um cenário de crise e acredita na mudança a partir do
esforço e da consciência de todos; o líder sabe ainda, como ninguém (ou
melhor, como os mais pobres), dos malefícios da inflação.
Dessa forma, com essa autoridade pessoal (e não mais sindical),
um PT encarnado na figura de Lula conclama a nação para se unir ao redor
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de um “programa de mudanças corajosas e responsáveis”. Em suma, o
apanágio da esperança, como instrumento de mudança, deixaria de ser a
organização político-institucional coletiva e “à parte” (o partido, como em
1979), para se cristalizar no indivíduo e em sua epopeia pessoal (a pessoa,
como em 2002). Enfim, tecemos até aqui um cenário de variação ethica
do Partido dos Trabalhares da Carta de 1979 à Carta de 2002. Mesmo sem
ter condições, por questões de limites, de abordar mais detalhadamente
os dois documentos, acreditamos termos tido condições de salientar essas
mudanças em termos gerais e significativos com o auxílio de alguns
elementos linguístico-discursivos. Dessa forma, passamos finalmente
às nossas derradeiras reflexões.
4 Considerações finais
Podemos afirmar que mudanças discursivas significativas
ocorreram, ao longo dos anos, nas imagens de si do Partido dos
Trabalhadores. Em ambos os Anexos analisados, notamos a presença
substantiva de um ethos engajado, militante e convicto diante dos
conteúdos asseverados, em função de asserções sólidas e de ocorrências
de mecanismos linguísticos de forte sobrecarga epistêmica e apreciativa.
O tom de “promessa” atravessa, com variações de conteúdo, ambos
os documentos. Entretanto, as diferenças na postura parecem ser bem
maiores no que tange a várias outras questões politicamente relevantes.
Em termos gerais, a Carta de 1979 nos apresenta um partido de feição
radicalmente classista, desnudando o conflito entre as elites e as massas
exploradas (os “de cima” x os “de baixo”). Aproximando-se dos menos
favorecidos, repisando a ideia de uma organização independente com
o povo trabalhador, o PT se coloca como um partido de massas e como
um instrumento coletivo de luta, no sentido de “acabar com a exploração
do homem pelo homem”. Nessa perspectiva, trata-se de um partido
sem patrões, assentado em uma representatividade plural/deliberativa/
democrática, ou seja, não encarnada, ainda, nesse ou naquele expoente
individual de liderança. Notamos assim, com a ajuda de Bobbio (1995),
que nesta Carta a postura do PT se enquadra mais prototipicamente (pelo
menos) nos ideais básicos da chamada “esquerda”, pois, voltando-se
explicitamente contra a tradição de exploração do homem pelo homem,
encarna a ideia de emancipação e de libertação da classe trabalhadora.
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A Carta de 2002, por sua vez, nos apresenta um ethos de
envergadura nacionalista e de feições pacificadoras: silenciando o
conflito entre as classes sociais, colocando em seu lugar uma dialética
de modelos de gestão (“atual modelo” x “novo modelo”), o partido
constrói para si uma imagem de administrador eficiente, pautada numa
vasta erudição em terminologias financeiras/mercadológicas. Em defesa
do Brasil, e erigindo-se como um aglutinador de uma vasta coalizão
suprapartidária (formada por todas as classes, patrões e empregados),
o PT, ao mesmo tempo, assenta o seu caráter na figura emblemática de
Lula. Tal personagem, no lugar do partido, passaria a ser o fiador das
esperanças de mudança política. Isso, a principio, vincularia o partido (ou
aproximaria) do campo da tradição (nacionalismo, conciliação de classes,
personalismo etc.), âmbito prototípico da chamada “direita” (ou “centro”,
para alguns). No entanto, não nos cabe aqui produzir categoricamente
essa classificação, uma vez que, como vimos, os conceitos de direita e
esquerda são relativos e cambiantes historicamente.
Construindo mais uma ponte com o conteúdo da segunda parte
deste artigo, restaria saber se tais mudanças ethicas foram positivas/
necessárias ou se representaram uma “traição” ao povo trabalhador,
constituindo, na melhor das hipóteses, um “erro” profundo da legenda
ao longo da história. Dito de outra forma, seriam mesmo essas variações
discursivas representativas da consolidação da burguesia monopolista no
país, a partir de uma governabilidade que teria desarmado as condições
políticas, organizativas e de consciência de classe dos trabalhadores?
(IASI, 2014b). Teriam, dessa forma, conduzido a esquerda nacional “a
uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular direta e
com eleições que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força
financeira com seus corruptores de sempre”? (SAFATLE, 2013, p. 14).
Ou tais variações ethicas, que viam se delineando desde 1994, seriam
representativas de uma estratégia nova, necessária e mais flexível de
alianças, após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil,
partindo-se do pressuposto de que o partido precisaria chegar ao poder
para realizar, pelo menos, parte das transformações sociais defendidas
historicamente? Nessa perspectiva, teriam sido importantes (positivas)
as articulações políticas do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002,
tendo o “movimento de ida ao centro” credenciado o partido a estabelecer
alianças com setores significativos de nossa tradição republicana?
(VIANNA, 2006, p. 98).
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Optamos, neste trabalho, por deixar tais questões em aberto. Não
nos cabe aqui dizer se tais mudanças sóciodiscursivas foram “positivas”
ou “negativas”, como muito se discute nas esferas sociais e acadêmicas do
Brasil, mas apenas ressaltar como as variações ethicas do PT realmente
se deram, por contraste. Acreditamos que a simples chamada de atenção
para os textos analisados (ainda pouco explorados) possui grande valor,
não só no sentido de evidenciar que as Ciências da Linguagem (e uma
Revista como esta) têm algo a contribuir para as discussões políticas,
mas também para reforçar a necessidade de sempre (re)colocar a questão
na ordem do dia, devido a sua relevância social naquilo que concerne
aos comportamentos discursivos pertinentes às esquerdas em geral e, em
particular, ao PT dentro de sua história.
Vivemos, no momento de fechamento deste texto, um período
conturbado, em que a Presidenta do Brasil, Dilma Rousseff (PT), foi
afastada por um processo de impeachment, tendo assumido o seu lugar,
em 2016, o Vice-Presidente Michel Temer (PMDB). Como se sabe, isso
deu vazão a grandes discussões sobre a viabilidade ou não de alianças,
por parte da chamada esquerda, com partidos mais ao “centro”, ou até
mesmo de “direita”, além de suas possíveis consequências econômicas,
sociais e políticas. Dessa forma, acreditamos que o trabalho pode ser
pertinente tanto para a compreensão teórica do ethos (associado às
instituições partidárias), quanto para servir de material para a reflexão
sobre comportamentos político-discursivos mais interessantes ao futuro
de nosso país.
Declaração de Contribuição de Cada Autor
Declara-se, para os devidos fins, que os dois autores – Melliandro
Mendes Galinari e Luciana de Souza Pereira –, contribuíram igualmente
na confecção de todas as partes do artigo: desde a feitura, idealização e
reformulação da parte teórica, até as análises e reanálises do objeto de
investigação, incluindo a escrita e a reescrita conjuntas.
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Análise do Discurso no blog RadFem:
ser mulher para além do corpo
RadFem blog’ Discourse Analysis:
Being a Woman Beyond the Body
Rafael De Tilio
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais / Brasil
rafaeldetilio.uftm@gmail.com
Paola Marques Del Nero
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais / Brasil
pamarqdel@hotmail.com
Resumo: Sendo a internet um campo de disputas, há também, nesse sentido, espaço
para os movimentos sociais. A popularização da internet permitiu a consolidação de
redes de contatos que se constituíram como organizações políticas e grupos feministas.
Valer-se das mídias sociovirtuais para fazer feminismo é, potencialmente, aproximar
mais pessoas das discussões. Nos campos teórico e político, ao problematizar a
categoria mulher (ou mulheres), perguntando quem são as mulheres, as feministas
têm enfrentado o debate contemporâneo sobre identidade (e sujeito) de diferentes
maneiras, sendo variadas, também, as posições teóricas e políticas. Sendo assim, o
objetivo dessa pesquisa foi compreender os efeitos de sentidos produzidos sobre a
categoria mulher e suas interlocuções no blog RadFem (feminismo radical), a partir
da Análise do Discurso (AD) de Michel Pêcheux. Perante o que foi exposto na análise,
faz-se possível elencar alguns efeitos de sentidos presentes no blog RadFem sustentados
em discursos pautados em concepções binárias de perspectiva biológica e opressoras
para caracterizar o que se entende por mulher. Assim, ressalta-se que a AD mostra-se
como uma possibilidade de interpretação para a abordagem dos temas que relacionem
sexualidade, gênero e Psicologia Social.
Palavras-chave: análise do discurso; feminismo radical; blog; mulher.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.401-422
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Abstract: Word Wide Web is a field of disputes and a space for social movements. The
popularization of the internet allowed the consolidation of networks that constituted
themselves as political organizations, alike the feminist groups. Feminism by virtual
sexual networks (as internet) potentially bringing people closer to the discussions. In
the theoretical and political fields, by questioning the category of woman (or women)
– asking who are women feminists have faced the contemporary debate on identity
(and subject) in different ways, and theoretical and political positions have also
varied. The objective of this research was to understand the effects of senses produced
(discourses) on the woman category and their interlocutions in a blog post RadFem
(radical feminism), from Michel Pêcheux’s Discourse Analysis (AD). It is possible to
list some effects of senses present in the blog RadFem sustained in discourses: based
on binary conceptions of biological perspective and oppressors to characterize what
is meant by woman. Thus, it is emphasized that the AD is shown as a possibility of
interpretation approach to sexuality, gender and Social Psychology.
Keywords: discourse analysis; radical feminism; blog; woman.
Recebido em 09 de julho de 2018
Aceito em 16 de setembro de 2018
1 Introdução
A chamada primeira onda do feminismo moderno teve seu
início a partir das últimas décadas do século XIX, quando as mulheres,
primeiro na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo
o primeiro deles o direito ao voto, assim como no Brasil. Este feminismo
inicial perdeu força a partir da década de 1930 e só aparecerá novamente,
com importância, na década de 1960 (PINTO, 2010).
Durante a década de 1960, na Europa e nos Estados Unidos, o
movimento feminista ressurge potencializado, e as mulheres pela primeira
vez falam diretamente sobre a questão das relações de poder entre homens
e mulheres. O movimento aparece, então, como algo libertário, que não
quer só espaço (no trabalho, na vida pública, na educação) para a mulher,
mas que luta por uma nova forma de relacionamento entre homens e
mulheres, para que esta tenha liberdade e autonomia sobre sua vida e seu
corpo. Isso aponta para o fato de que existe outra forma de dominação
(além da de classe), a de gênero, e que uma não pode ser representada
pela outra, devido às suas características próprias. Este fato caracteriza
a reivindicação mais original do movimento (PINTO, 2010).
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Enquanto na Europa e nos Estados Unidos o cenário era propício
para o surgimento de movimentos libertários, principalmente aqueles
que lutavam por causas identitárias, no Brasil ocorria um momento de
repressão da luta política, obrigando muitos grupos sociais a irem para a
clandestinidade e partirem para a guerrilha. Foi durante o regime militar
que aconteceram as primeiras manifestações feministas no Brasil na
década de 1970 (PINTO, 2010).
Com a redemocratização dos anos 1980, o feminismo no Brasil
entrou em uma fase de efervescência na luta pelos direitos das mulheres:
inúmeros grupos e coletivos passaram a tratar de uma gama ampla de
temas – violência, sexualidade, trabalho, igualdade no casamento, direito
à terra, à saúde materno-infantil, luta contra o racismo, direitos sexuais
(PINTO, 2010).
É importante esclarecer que o projeto feminista teve sua origem
histórica ligada à tradição moderna. Borges (2014), por exemplo, elenca
três elementos centrais na construção teórica do feminismo, oriundos das
teorias sociais modernas: a premissa de uma experiência de opressão e
dominação compartilhada por todas as mulheres; a aposta na criação
de um ator coletivo, portador de interesses, demandas, reivindicações;
a criação de uma utopia emancipatória das mulheres. Estas ideias,
atualmente, constituem um denso campo de controvérsias e disputas.
Durante a segunda onda do feminismo, surge o Feminismo
Radical, nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970, caracterizando
uma corrente rica em reflexão e investigações acadêmicas sobre a origem
das desigualdades sexuais, além da forte militância contra todas as formas
de opressão feminina originárias do sistema patriarcal, nominalmente a
luta pelos direitos das mulheres, o repúdio contra as violências sexuais
e domésticas. Sendo assim, afirma que a raiz da desigualdade social em
todas as sociedades é o patriarcado, a dominação do homem sobre a
mulher. Para vencer a opressão feminina, as feministas radicais defendem
que é fundamental concentrar os esforços na busca das explicações sobre
as diferenças entre os sexos e a subordinação da mulher no sistema
patriarcal e que as mulheres devem se unir na luta contra os homens, assim
como devem rejeitar o Estado e todas suas instituições por serem produto
do homem e, portanto, de caráter patriarcal (SANDERBERG, 2002).
Uma das questões sobre as quais as feministas (não apenas as
radicais) têm se debruçado refere-se à suposição de uma identidade
comum e universal entre as mulheres. Nos campos teórico e político, ao
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problematizar a categoria mulher (ou mulheres), perguntando quem são
as mulheres, as feministas têm enfrentado o debate contemporâneo sobre
identidade (e sujeito) de diferentes maneiras, sendo variadas, também, as
posições teóricas e políticas. Uma das características do feminismo pósmoderno consiste em desautorizar qualquer apelo a noções identitárias
calcadas numa essência interna fixa ou fora da história, da linguagem,
da cultura e das relações de poder. Se, em um primeiro momento, o
feminismo apostou na ideia de uma mesma opressão e de uma mesma
identidade, num momento posterior esta universalidade foi duramente
criticada, pois foi denunciada como um feminismo produzido por
mulheres brancas, heterossexuais, de classe média e intelectualizadas
(BORGES, 2014).
Assim, as mulheres que participavam desses movimentos
utilizando a categoria gênero como sinônimo de mulher reforçavam a ideia
de que as diferenças entre homens e mulheres não dependiam do sexo
biológico e sim dos fatores culturais nos quais as pessoas estavam inseridas
(ABDO; PEREIRA; SPIZIRRIL, 2014). O emprego do termo gênero
facilitou a observação dos papéis sociais e das relações entre feminino
e masculino e foi ponto de apoio na composição de subjetividades
políticas, públicas e/ou relacionais (ABDO; PEREIRA; SPIZZIRRI,
2014). Porém, Butler (2012), assim como outros autores, faz uso de uma
inversão no debate feminista sobre a categoria gênero, com base em seus
questionamentos e problematizações. Assim, ao invés de conceder a
divisão binária existente entre “gêneros feminino e masculino” como um
dado prévio, a autora busca realizar uma genealogia feminista da categoria
gênero, com a finalidade de expor e desconstruir sua suposta naturalidade.
Nesse sentido, aposta no conceito de gênero performativo, ou seja, não
entende o gênero como um conjunto de elementos essencialmente ligados
à natureza dos corpos, nem apenas como um conjunto de características
culturalmente impostas (ANJOS; LIMA, 2016).
Assim, conforme Butler (2012), o gênero e sua divisão binária são
performativamente constituídos no sentido em que só existem a partir do
momento mesmo de sua expressão. Dessa maneira, o gênero não estaria
ligado a uma essência atemporal de um determinado corpo ou alma,
mas é construído a todo o momento pela repetição de uma performance
estilizada de feminilidade e/ou masculinidade (ANJOS; LIMA, 2016).
Ainda, Butler (2012) constrói uma crítica radical e incisiva à formulação
de um conceito fundamental para a história do movimento feminista,
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sendo este o próprio conceito de gênero. Contudo, a autora não o faz
com fins de dissolver o movimento feminista, mas sua crítica é realizada
exatamente na perspectiva de potencialização política do movimento
feminista, em contraposição ao seu processo de cristalização pautado pelo
enraizamento de suas ações em determinadas formulações essencialistas
do conceito gênero. Butler (2012) questiona a suposta necessidade de
regularidade e coerência da categoria “mulheres” como essencial para a
conquista dos objetivos políticos do movimento feminista. Isso devido
ao fato de que, primeiramente, pela própria noção que orienta a busca de
um sujeito uno e coerente: a noção de representação. Ou seja, quando se
admite previamente a representação como fundamento para a legitimação
de um sujeito jurídico, sendo um apelo a uma identidade unificadora das
demandas e opressões vividas pelas “mulheres”, é uma estratégia política
que se encontra atrelada à obrigação da representatividade. Quando
a política é tomada nesses termos, tem-se que, desde o momento de
partida, as regras do jogo estão limitadas por princípios de uma formação
discursiva a qual tem por base mecanismos de exclusão. Assim, para
que se possa ser representado, é necessário que se atenda às exigências
requeridas para ser reconhecido enquanto sujeito (ANJOS; LIMA, 2016).
Porém, Anjos e Lima (2016) ainda questionam: até que ponto essa
estratégia de política representacional adotada pelo movimento feminista
não traria consigo a controversa consequência de tornar concretas as
normas de relações de gênero até então instituídas? Dessa forma, de
acordo com Coelho (2016), se as formas de produção de existência
podem ser mutáveis, a compreensão sobre as questões de gênero
pode originar críticas aos binarismos. Nesse sentido, os movimentos
sociais transgêneros (doravante trans) problematizam suas categorias
universalistas a partir da crítica ao binarismo feminino/masculino,
contrariando a ontologia biologicista preponderante na epistemologia
da ciência moderna (ALVES, 2017).
A inconsistência epistemológica de um modelo universal de
mulher tem conquistado posição nos estudos contemporâneos de gênero,
produzindo dissidências no próprio movimento feminista, tais como o
feminismo negro, ecofeminismo, transfeminismo, feminismo lésbico,
putafeminismo e feminismo jovem. O conceito de interseccionalidade
(HENNING, 2015), surgido no âmbito das reivindicações de direitos
dos movimentos feministas em interface com raça e classe social,
considera tais identidades múltiplas e susceptíveis às diversas formas de
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desigualdades, nomeadamente o sexismo, o racismo e a xenofobia, que
funcionam juntas, mas de maneiras específicas (ALVES, 2017).
Nesse contexto, as mídias sociovirtuais se tornaram instrumentos
de produção e difusão de ideias e podem servir como espaço de ataques
e ameaças. Portanto, ser sujeito nas mídias sociovirtuais reflete um
processo de comunicação, de relacionamentos, mas também um
processo político. Sendo a internet um campo de disputas, há também,
nesse sentido, espaço para os movimentos sociais. Desde 1990, década
do advento da internet comercial, são comuns referências ao termo
ciberfeminismo, sendo que vários grupos foram aglutinados dentro dessa
categoria (tecnofeminismo, pósfeminismo, transfeminismo, ciberpunk,
póspornografia e ativismo riotgrrrl). Essa movimentação se associa à
terceira onda do movimento feminista, quando houve renovação prática
e teórica sobre os “feminismos” e também sobre a participação das
mulheres nos meios tecnológicos (COELHO, 2016).
A popularização da internet permitiu a consolidação de redes
de contatos que se constituíram como organizações políticas e grupos
feministas (COELHO, 2016). Quando movimentos sociais e sociovirtuais
são abordados, estes devem ser vislumbrados do ponto de vista das
continuidades e descontinuidades, uma vez que valer-se das mídias
sociovirtuais para fazer ativismo político feminista é aproximar mais
pessoas das discussões. Utilizar a plataforma digital é uma tentativa
de romper com possíveis ciclos de violência e com as tentativas de
silenciamento.
É preciso que, pessoalmente ou mediados pela interface digital,
seja possível fazer um feminismo com mulheres, mas não contra
mulheres. É preciso que “esse” ou “aquele” feminismo não se perca ou
se afaste da gênese do movimento e que lute por uma sociedade mais
igualitária. É preciso ainda que o feminismo seja uma teoria e uma prática
que agreguem mulheres e não que as isolem ou as apartem (COELHO,
2016).
Nesse sentido, o objetivo dessa pesquisa foi compreender os
efeitos de sentidos produzidos sobre a categoria de mulher no blog
“RadFem” (feminismo radical) a partir da Análise do Discurso de Michel
Pêcheux.
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2 Dispositivo teórico
A Análise do Discurso (AD) reúne três regiões do conhecimento:
a teoria da sintaxe e da enunciação, a teoria da ideologia e a teoria do
discurso (determinação histórica dos processos de significação), todas
atravessadas por uma teoria do sujeito de natureza psicanalítica. Essa
perspectiva teórica e metodológica visa compreender como os sentidos
são produzidos a partir de uma análise dos próprios gestos de interpretação
que ela, a AD, considera como atos no domínio simbólico. Sendo assim,
a AD não se limita à interpretação, mas considera os mecanismos de
produção de sentidos como parte dos processos de significação. Logo,
não há chave de interpretação, mas sim método e construção de um
dispositivo teórico e analítico (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS,
1997; PÊCHEUX, 2014).
Em resumo, a AD visa à compreensão de como um objeto
simbólico produz sentidos, ou seja, como ele está investido de
significância para e por interlocutores (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX;
FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Assim, propõe considerar o que é dito
em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que
é dito de outro, procurando compreender o não-dito naquilo que é dito,
como uma presença de uma ausência necessária. Isso é compreendido
na AD por intermédio do conceito de Esquecimento Número 2, sendo
este da ordem da enunciação: ao falarmos de determinadas maneiras,
famílias parafrásticas são mobilizadas ao longo de nosso dizer que
indicam que o dizer poderia ser outro (isto é, poderia ser dito de outra(s)
maneira(s)). Tal “esquecimento” produz em nós a impressão da realidade
do pensamento, que faz acreditar existir uma relação direta entre o
pensamento, a linguagem e o mundo, fazendo com que pensemos que o
dito só pode ser dito daquela exata maneira e não de outra (ORLANDI,
2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997, PÊCHEUX, 2014).
Quando a memória é pensada em relação ao discurso, aquela
é tratada como interdiscurso, ou seja, como aquilo que fala antes, em
outro e de outro lugar, independentemente. Isso constitui a memória
discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna
sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível.
Assim, o interdiscurso disponibiliza sentidos que afetam o modo como a
significação afeta o sujeito em uma situação discursiva dada (ORLANDI,
2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014).
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Portanto, o dizer não é propriedade particular do(s) indivíduo(s).
As palavras significam pela história e pela língua. O que é dito em outro
lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa
que controla o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo
como os sentidos se constituem nele e por ele. Assim, deduz-se que há
uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, que é a que existe
entre o intradiscurso (aquilo que estamos dizendo naquele momento,
em condições dadas), e o interdiscurso, ou seja, entre a constituição do
sentido e sua formulação. Assim sendo, a constituição (interdiscurso)
determina a formulação (intradiscurso), e é nessa tensão que os sentidos
são constituídos (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997;
PÊCHEUX, 2014).
Além disso, pelo funcionamento do interdiscurso, suprime-se,
por assim dizer, a exterioridade como tal para inscrevê-la no interior da
textualidade, uma vez que esse mecanismo determina aquilo que, da
situação, das condições de produção, é relevante para a discursividade.
Isso significa que é o interdiscurso que especifica as condições nas quais
um acontecimento histórico é suscetível de vir a inscrever-se no espaço
potencial de coerência próprio a uma memória discursiva (ORLANDI,
2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014).
Dessa dita “ilusão” de autoria do discurso, compreende-se o que,
na AD, é nomeado como Esquecimento Número 1, sendo este o resultado
do modo como somos afetados pela ideologia, sendo este esquecimento
da instância do inconsciente. Assim, temos a ilusão de sermos a origem
do que dizemos quando, na realidade, os sentidos são retomados do
pré-existente. Os sentidos são determinados pela maneira como nos
inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela
vontade individual. Desse modo, podemos dizer que os esquecimentos
(número 1 e 2) são estruturantes, uma vez que eles partem da constituição
dos sujeitos e dos sentidos (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS,
1997; PÊCHEUX, 2014).
Os discursos (compreendidos na AD como efeitos de sentidos
entre interlocutores) ocorrem a partir de relações de força. Segundo
essa concepção, pode-se considerar que o lugar a partir do qual fala
o sujeito é constitutivo do que ele diz. Esse mecanismo repousa nas
formações imaginárias (FImag). Estas explicitam que não são os
sujeitos, nem seus lugares empíricos como são inscritos na sociedade
que funcionam no discurso, mas sim que os sentidos são constituídos por
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meio de imagens desses sujeitos, que resultam de projeções. São essas
projeções que permitem passar das situações empíricas (os lugares dos
sujeitos) para as posições dos sujeitos no discurso. Sendo assim, o que
significa no discurso são essas posições, e elas significam em relação
ao contexto sociohistórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito).
Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do
discurso, dentro de uma conjuntura sociohistórica (ORLANDI, 2007;
PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014).
Desse modo, com base em um determinado contexto social
e histórico, que abrange valores e sentidos de referências (Formação
Ideológica – FI), as palavras/expressões/termos mudam de sentido
de acordo com as posições discursivas daqueles que as empregam
(Formação Discursiva – FD), determinando o que pode ou não pode
ser dito. É importante ressaltar que a FI (assim como as FD e as FImag)
é inconsciente e interpela os indivíduos em sujeitos dos discursos. Ou
seja, quando falamos em FI, é impossível (porque o analista do discurso
também é interpelado pela ideologia) ter consciência/conhecimento total
desse processo, mas apenas de alguns dos seus indícios.
Assim, podemos compreender que o discurso se constitui em
seus sentidos, uma vez que aquilo que o sujeito diz se inscreve em
uma específica FD e não em outra, para ter um sentido. Dessa forma,
conclui-se que as palavras não possuem sentidos nelas mesmas, pois
derivam seus sentidos das FD em que se inscrevem. A partir disso, as FD
representam no discurso as FI (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS,
1997; PÊCHEUX, 2014). Portanto, numa FI há várias FD. E dentro da
sua FD de referência os interlocutores (automática e inconscientemente
na tentativa de estabilizar seus discursos) se pautam em antecipações
dos seus sentidos e dos sentidos dos interlocutores – ao que se denomina
FImag, conforme mencionado.
3 Procedimentos Metodológicos
Este estudo classifica-se como qualitativo de caráter exploratório.
De acordo com Leite (2008), a pesquisa qualitativa permite analisar os
fenômenos considerando o contexto ao qual eles estão inseridos, as causas
e interrelações que possam permear entre a análise e as conclusões. O
caráter exploratório, como o próprio nome sugere, explora algo novo;
além disso, é utilizado quando se tem poucos estudos e conhecimentos
científicos sobre o tema.
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Um blog (contração de web e log) pode ser compreendido como
um sítio eletrônico que permite a rápida atualização de informações
referentes a um autor, assunto ou tema, permitindo participação coletiva
ou não, a depender das funcionalidades elegidas e permitidas pelos
seus administradores. No caso, o blog RadFem define-se como o site
oficial acerca do feminismo radical no Brasil, mas ele recebe/recebeu
poucos acessos (apesar de os dados sobre número de sites existentes
no mundo, quantos estão hospedados no Brasil, tempo de duração/
existência e acesso aos sites etc. não serem exatos), sendo considerado
uma plataforma de pouco expressão e limitado alcance (SIMILARWEB,
2018), provavelmente restrito aos seus interessados ou sectários do
movimento. Igualmente, não há no blog quaisquer informações referentes
aos seus idealizadores e responsáveis, o que lhe fornece uma impressão
de universalização, hegemonia e consenso acerca do material e dos
argumentos postados.
Assim, no processo de escolha e definição do corpus, foi realizada
uma leitura cuidadosa de todos os posts do blog (desde junho de 2014
até dezembro de 2017), visando selecionar alguns que enfatizassem a
argumentação a respeito da definição da categoria “mulher” a partir
da vertente do Feminismo Radical. Por fim, foram selecionadas duas
postagens do blog, ambas de 2015: (1) uma postagem intitulada Saindo
do culto trans (RADFEM, 2015a), publicada originalmente em 11 de
Maio de 2015 (este texto foi originalmente publicado em outro blog de
nome Purple Sage e traduzido para o português com a permissão da
autora) e que discorria acerca da não aceitação de mulheres transexuais
no movimento, assim como o relato do processo pelo qual a autora
(uma autodesignada TERF, acrônimo para transexclusionary radical
feminist) passou a defender tal argumento; (2) um fragmento destinado
ao esclarecimento de dúvidas, intitulado RADFAQ (RADFEM, 2015b)
e que dispõe da seguinte introdução “Olá! Este é um lugar para tirar
dúvidas. Essa seção será constantemente atualizada. Se você tem alguma
dúvida que ainda não foi sanada abaixo, deixe nos comentários”. Isto
posto, algumas questões foram respondidas pela autora como por
exemplo: “Qual a visão de gênero de vocês radfem?”; “Então vocês
acham que ter vagina é o que faz de uma mulher, mulher?”; “Mas e as
pessoas intersexo?”; “E as pessoas trans?”; entre outras. Sendo assim,
tais questões são respondidas e esclarecidas abertamente.
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Em termos de etapas para realização da análise do discurso
(GOMES, 2007; ORLANDI, 2007), após a seleção das materialidades
linguísticas, os analistas consideraram as ocorrências do interdiscurso
e do Esquecimento Número 2 na composição dos efeitos dos sentidos
(transposição da superfície linguística para objeto discursivo),
estabelecendo as FD dominantes nas quais esses objetos discursivos se
inscrevem. Após essa etapa, é revelada a Formação Ideológica (FI) que
sustenta as FD e as influências das FImag que interpelam os sentidos,
valendo-se da análise do Esquecimento Número 1; a esse último
movimento (desvelamento da FD e da FI) dá-se o nome de processo
discursivo.
4 Resultados e Discussão - Formações Discursivas, Objetos
Discursivos e Processos Discursivos
As diferentes concepções referentes ao que se conceitua como
mulher, sendo estas pautadas em categorias biológicas e/ou sociais,
caracterizam a primeira FD, nomeada como FD1. Dessa maneira,
para exemplificar as FD1, foram recortados alguns trechos de uma das
postagens (RADFEM, 2015a), destacando duas superfícies linguísticas,
especificadas como S1e S2:
S1: “Li livros sobre transgeneridade e finalmente me decidi que
“mulher” era uma categoria social, mas isso nunca foi fácil de
explicar” (RADFEM, 2015a, § 02)
S2: “Pensei que eram apenas mulheres que aconteceu de nascerem com
as partes erradas” (RADFEM, 2015a, § 02).
E para exemplificar a hipótese de que as ditas TERF, que
dizem lutar pelos direitos das mulheres, passam a se comportarem de
maneira opressiva em seu discurso, reproduzindo, consequentemente,
a opressão do patriarcado, foram retiradas duas superfícies linguísticas
que caracterizam a FD2.
S3: “O que muitas feministas radicais estão dizendo na verdade é que
não concordam com as políticas transgêneras porque as políticas
transgêneras em geral são prejudiciais às mulheres, mas elas não
desejam que nenhum mal aconteça a quem é transgênero. Elas
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estão apenas se preocupando com as mulheres, o que é algo que
as feministas sempre fizeram” (RADFEM, 2015a, § 04)
S4: Foi recortado o seguinte trecho: “o feminismo deveria libertar as
fêmeas humanas da opressão” (RADFEM, 2015a, § 08).
4.1 Superfícies Linguísticas e Objetos Discursivos
Em relação à FD1, na S1, que constitui um dos efeitos de sentidos
da FD1, torna-se possível pressupor que a autora do post se mostra
confusa em relação à definição de mulher segundo uma concepção que
a caracteriza como uma “categoria social”, e também a considera uma
questão “difícil de explicar”. Podemos inferir aqui que definir mulher
segundo uma categoria social implicaria uma discussão referente ao
gênero. Assim, devemos partir do pressuposto de que o conceito gênero
não é homogêneo dentre as variadas perspectivas teóricas, sendo um
objeto de muitos questionamentos (DE TILIO, 2014). Dessa forma,
entender que o conceito gênero possui variados sentidos, sustentados
em diversas concepções teóricas, implica ampliar as possibilidades de
compreensão desse conceito e não adotar uma única explicação como
verdade.
No mais, podemos pressupor aqui uma concepção de gênero
entendida como uma categoria social, a partir dos argumentos de Scott
(1995), que propôs uma das primeiras teorizações sobre gênero. Scott
(1995) define gênero como o conjunto dos sentidos dinâmicos (não
biologicamente determinados) que são construídos nas relações de
poder que embasam as relações entre homens e mulheres. Dentro desta
perspectiva teórica, a história e os agrupamentos humanos, por meio da
cultura e da socialização, organizam de diversas maneiras as relações
sociais, e, assim, o gênero não seria a diferença sexual, mas sim as
representações e as relações (de poder) produzidas a partir da discutida
e polêmica diferença sexual e, portanto, passíveis de alteração. Dessa
maneira, não seria a diferença sexual por si só que organiza as relações
entre homens e mulheres, mas sim são as relações de poder que definem
como os sexos devem manter suas interações e, mesmo que o binarismo
(de sexo) continue, o essencialismo biológico de gênero pode ser extinto
(DE TILIO, 2014).
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É importante ressaltar que, nesse contexto, Butler (2012)
pressupõe que a genealogia, em uma perspectiva foucaultiana, toma
o gênero e a análise relacional, por ele sugerida, como efeitos de
instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e
difusos. Além disso, Butler (2012) destaca que suas críticas reflexivas ao
gênero e ao feminino se baseiam em duas instituições: o falocentrismo e
a heterossexualidade compulsória. O feminino, assim como o masculino,
não é mais considerado como uma noção estável, nem genuína ou
autêntica, assim como o próprio conceito de mulher. Nesse sentido,
a autora propõe repensar e problematizar o suposto sujeito universal
feminismo (ALVES, 2017).
Isso exemplifica como as produções de sentidos sobre gênero
e sexo estão instruídas e condicionadas às FD e FI, que ditam diversas
concepções sobre o que torna uma pessoa mulher ou homem, elencadas
em compreensões biológicas e/ou representadas por papéis sociais.
E, apesar do fato de haver múltiplos significados da categoria gênero,
que reverberam, portanto, em disputas teóricas e se materializam em
políticas públicas que podem encarnar uma concepção biologizante
das identidades, ressalta-se que, para Butler (2012), o gênero não está
passivamente inscrito sobre o corpo como um recipiente sem vida. O
que se supõe como uma característica natural dos corpos é algo que se
antecipa e que se produz mediante certos gestos corporais naturalizados
– performatividade (BENTO, 2012). Ou seja, exemplificando, mulheres
se comportam como mulheres, agem como mulheres, pois estão inseridas
em uma sociedade (FI) que dita quais são determinados papéis para serem
executados por uma mulher, e o mesmo vale para os homens.
Outro efeito de sentido nesse primeiro trecho é provocado pelo
uso da expressão “finalmente me decidi”, que logo se contradiz com
“mas isso nunca foi fácil de explicar”, já que a autora se convence a
priori de que mulher se constitui como uma categoria social. Porém,
pode-se pressupor que isso não esclarece integralmente, para ela, o que
se define como “ser mulher”, valendo-se de explicações biologizantes. Tal
concepção será posteriormente analisada, em outro recorte selecionado.
Essas diferenças de concepções se pautam em diferentes FImag
a respeito da categoria “mulher”, construídas e constituídas socialmente.
Assim, podemos identificar o efeito do interdiscurso que disponibiliza
dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação
discursiva dada. Nesse contexto, o fato de o já-dito sobre mulher ser uma
414
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categoria social (segundo a qual a autora do post se convenceu a partir
de leituras feitas por ela mesma) afeta a maneira como ela significa para
atribuir sentidos e expressar sua opinião a respeito do que se considera
mulher. Dessa forma, fica evidente, conforme Orlandi (2007), que o dizer
não é propriedade particular e que significa pela história e pela língua.
Em relação à S2 podemos inferir que a autora equivale as
mulheres trans aos homens, pois elas nasceram com corpos masculinos
ao passo que mulheres de verdade nascem com vagina e útero – e por isso
são mulheres de verdade. Portanto, como as mulheres trans nasceram e
foram socializadas como homens não poder participar dos movimentos
feministas por mais que aleguem que nasceram com um corpo errado.
As FD e FI que circunscrevem esse efeito de sentido argumentam que é a
biologia dos corpos (a natural diferença sexual) que determina os papéis
de gênero e a vivência da sexualidade. Maneira mais adequada de dizer
isso é considerar que as performatividades normativas são inscritas nos
corpos como verdades biológicas (ALVES, 2017).
Fica assim explícita a concepção de sexo e gênero defendida
pela autora do post, o que diverge de considerações que afirmam que
nem sempre as expectativas sociais relacionadas às pessoas nascidas
com determinadas configurações biológicas (femininas ou masculinas)
redundarão na identificação com certo gênero (homem ou mulher),
conforme argumenta Bento (2012) em seus estudos sobre a vivência
transexual. E, no que se refere às mulheres transexuais, é notório que,
em nossa sociedade pautada em uma concepção patriarcal, machista
e binária, elas não recebem o mesmo tratamento dado às mulheres
cisgênero1, tidas como mulheres “de verdade”, uma vez que possuem
útero e vagina, tampouco as mesmas oportunidades, de modo que as
mulheres transexuais, além de serem vitimadas pelo machismo, também
o são pelo sexismo, de base biologizante, que lhes nega o estatuto da
feminilidade.
Agora, em relação à FD2, foram mobilizadas duas superfícies
linguísticas. Na S3, ao afirmarem que “não desejam que nenhum mal
aconteça a quem é transgênero”, estão atribuindo sentido ao termo
“mal” a partir de seus interesses e necessidades pessoais, ignorando a
opressão que causam aos transexuais, mais especificamente às mulheres
Denomina-se cisgênero ou “cis” pessoas que se identificam com o gênero que lhes
foi atribuído quando ao nascimento.
1
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415
trans, que se deparam com um feminismo conservador, o qual rompe
com a possibilidade de se viver o gênero fora dos marcos das identidades
genitalizadas (ALVES, 2017).
Podemos identificar, então, relações de força presentes nesse
objeto discursivo, uma vez que o lugar a partir do qual fala o sujeito é
constitutivo do que ele diz. E estas ditas relações de forças, sustentadas
no poder desses diferentes lugares, se fazem valer na “comunicação”. Ou
seja, a autora da postagem, ao afirmar que não deseja que nenhum mal
aconteça a quem é transgênero, desconsidera o sofrimento e a negação de
direito que causa a essas pessoas não serem reconhecidas como mulheres e
serem desapropriadas de um lugar no movimento feminista, similarmente
ao que o patriarcado provoca nas mulheres. Mas é importante dizer que
nem todas as feministas radicais são TERF. Todavia, no caso da autora
da postagem, é evidente a desrresponsabilização das TERF pela opressão
das mulheres (mesmo as trans) realizada por mulheres que, ao seu ver,
lutam por direitos das mulheres.
Conforme Zirbel (2007) argumenta, para as feministas radicais,
o patriarcado era um sistema sexuado de poder e dominação no qual
os homens possuem privilégios e controle sobre a sociedade e sobre
o corpo das mulheres, utilizando-se dos mais diversos meios para este
fim (pornografia, estupro, violência doméstica, assédio sexual, leis
restritivas sobre a contracepção, esterilização e aborto, etc.). De acordo
com Zirbel (2007, p.7), o patriarcado estaria presente “(...) em todas as
sociedades históricas e em todas as relações sociais, sendo responsável
pela exclusão sistemática das mulheres de todas as instâncias de poder e
pela permanente desvalorização dos papéis e tarefas a elas atribuídos”.
Ainda, ao afirmar que “estão apenas se preocupando com as
mulheres, o que é algo que as feministas sempre fizeram”, isso pode ser
assemelhado ao funcionamento do Esquecimento Número 2 e, assim,
podemos identificar um “não-dito”, caracterizado como um não dizer, já
que o dito traz consigo necessariamente um pressuposto, não-dito mas
presente (ORLANDI, 2007), o qual reafirma a posição da autora do post
quanto à relevância de um determinismo biológico em detrimento das
construções sociais e sexuais dos indivíduos. Dessa forma, poderiam
ter dito que estão apenas se preocupando com as mulheres “de verdade”
(detentoras de útero e vagina), uma vez que excluir mulheres trans
(entendidas por elas como homens) do movimento garantiria uma proteção
dos direitos de pessoas biologicamente mulheres. O funcionamento
416
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do Esquecimento Número 2 esclarece que, se outras palavras fossem
utilizadas, outros seriam os efeitos de sentidos produzidos (ORLANDI,
2007).
Já na S4, o sentido atribuído pela autora, ao utilizar do termo
“deveria”, ilustra o funcionamento do Esquecimento Número 2, que
poderia vir a expressar sua opinião a respeito de sua insatisfação de
aceitação de mulheres trans no movimento. Podemos, assim, pressupor
que a autora considera a participação de mulheres trans como uma
opressão provocada por homens, sendo esta a mesma opressão praticada
por homens que se reconhecem como homens. Ou seja, para elas,
mulheres trans no movimento feminista provocam um desfalque dos
interesses das consideradas, por elas, como mulheres “de verdade”.
Desta forma, poderia ter sido dito: “o feminismo deveria libertar as
mulheres com útero e vagina da opressão causada por homens”, sendo
estes considerados os que possuem pênis, independente de sua categoria
social e desejos.
Ainda, a partir dessa S4, é possível presumir que a opinião da
autora do post pode vir a reproduzir a mesma opressão que o feminismo
combate: a do patriarcado. Nesse sentido, com a proliferação dos
movimentos feministas (pautados numa luta por uma sociedade livre do
patriarcado, que espera que as mulheres não sofram mais com a opressão
de gênero, que as relações sociais entre homens e mulheres não sejam
tão assimétricas, que as mulheres sejam ensinadas a se empoderarem
e não se alienem diante de seu gênero), fica contraditório excluir uma
parcela dessas mulheres, ditas aqui como tal, por não possuírem em
sua constituição biológica útero e vagina, sendo consideradas mulheres
“ilegítimas”, uma vez que uma dada configuração do corpo (entende-se
aqui como corpo biológico) não deveria condicionar a um modo de estar
no mundo, sentimentos, comportamentos ou inclinações eróticas.
4.2 Processo Discursivo
Na perspectiva da AD, a compreensão do processo discursivo
visa explicitar as condições materiais de produção dos sentidos, ou seja,
quais são as principais FD, FImag e FI concernentes à produção dos
discursos (ORLANDI, 2007). Ou seja, como o Esquecimento Número
1 interpela a produção dos sentidos entre os interlocutores. Dessa forma,
o analista constrói um percurso que procura relacionar as FD com a FI
(GOMES, 2007).
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Sendo assim, ressalta-se que, a partir do Esquecimento Número
1, sendo este da instância do inconsciente, tem-se a ilusão de sermos
a origem do que dizemos, quando, na verdade, sentidos já definidos
interpelam os sujeitos (ORLANDI, 2007). Esse esquecimento também
é conhecido como esquecimento ideológico e, na AD, o indivíduo é
interpelado pela ideologia, para que se produza o sentido, situando-os em
FD específicas. Nesse contexto, é importante destacar a(s) influência(s)
da Ideologia e da(s) ideologia(s)2 (PÊCHEUX, 2014) na constituição
do sujeito e dos sentidos. Assim considerada, a ideologia é a função
da relação necessária entre linguagem e mundo (ORLANDI, 2007).
Portanto, no processo discursivo, revelam-se quais FI que sustentam
as FD e quais as influências das FImag, valendo-se da incidência do
Esquecimento Número 1.
Após a análise das superfícies linguísticas (S1 a S4), depreendese que a sociedade patriarcal machista e autoritária caracteriza um dos
principais aspectos da FI da nossa sociedade, que sustenta a argumentação
da autora do post, quando esta se mostra contra a inclusão de mulheres
trans no movimento feminista radical e, assim, passa a reproduzir (mesmo
sem se dar conta disso) o que o patriarcado provoca nas mulheres:
opressão.
De acordo com Zirbel (2007), o argumento do patriarcado
começa a ser utilizado no final do século XIX, entre as feministas radicais
estadunidenses, como explicativa para a subordinação das mulheres.
Ainda segundo a autora, o conceito de patriarcado se mostrou útil do
ponto de vista da mobilização política e foi importante na medida em
que distinguia forças específicas na manutenção do sexismo, tendo como
objetivo demonstrar que a subordinação da mulher não era natural, mas
enraizada nas práticas sociais.
O patriarcado traz implícita a noção de relações hierarquizadas
entre indivíduos com poderes desiguais e oferece os dispositivos
2
Ideologia [em geral, com i maiúsculo] é “uma estrutura e um funcionamento tais
que fazem dela uma realidade não-histórica, no sentido em que esta estrutura e este
funcionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda história”, ou seja,
é a interpelação (inconsciente) que transmuta o indivíduo em sujeito (PÊCHEUX,
2014, p. 137); e ideologia(s) (com i minúsculo) seria a série de valores destacada e
reconhecida, em grupos/sociedades específicas, como a desejável de ser incorporada/
exercida pelos sujeitos.
418
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para explicações referentes às desigualdades e a dominação/opressão
(ZIRBEL, 2007). Nesse sentido, é possível que mulheres transexuais,
por não possuírem útero e vagina em sua constituição biológica natural,
sejam consideradas como homens (uma vez que foram socializadas
segundo os esquemas masculinizatórios) e, inferiores, por algumas
feministas radicais. Dito de uma maneira mais explícita, as feministas
radicais propõem uma análise de gênero partindo da raiz das opressões
(o patriarcado), mas, ao ignorarem a existência das diversidades de
identidades de gênero3 (SILVA, 2015), reproduzem uma opressão de
cunho similar à proveniente do patriarcado, porém com mulheres trans.
Nesse sentido, seguindo os argumentos de Praun (2011), a ideologia
dominante difundida consegue manter uma ordem social que perpetua
as relações de poder dissimétrica entre os sexos.
Disso se infere outra FI, que sustenta concepções biologizantes
sobre o que se considera ser mulher. De acordo com Zirbel (2007, p. 46),
“(...) as feministas radicais trabalhavam com uma categoria universal de
mulher que incluía traços biológicos e aspectos socialmente construídos,
criando uma identidade coletiva válida para diferentes culturas e tempos
históricos”. Os elementos em comum (pautados em aspectos biológicos/
essencialistas) equivaleriam em sentidos para caracterizar alguém como
mulher.
Nesse sentido, essa FI pautada no essencialismo biológico
atesta as FD referentes às discussões do feminismo radical acerca da
exclusão de mulheres trans, uma vez que essas (por não possuírem
útero e vagina) não são consideradas mulheres de verdade, embora se
sintam e se autodeclarem como tal. Sendo assim, as ditas TERF passam
a reproduzir padrões e estereótipos cisgêneros e sexistas, enfatizando
que aspectos biológicos seriam determinantes para a construção da
sexualidade humana assim como das relações de poder. Afinal, segundo
Alves (2017), o que leva a legitimidade de um modelo de mulher ser
pautado na presença ou não de vagina e útero?
3
A identidade de gênero pode ser traduzida pela convicção de ser masculino ou feminino,
conforme os atributos, comportamentos e papéis convencionalmente estabelecidos
para machos e fêmeas. As identidades definem-se em termos relacionais e, enquanto
categorias, podem organizar e descrever a experiência da sexualidade das pessoas. Na
sociedade contemporânea, as identidades tornam-se instrumentais para reivindicação
por legitimidade e respeito.
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419
A partir do que foi exposto, podemos compreender a diferença
entre homens e mulheres como não-determinada biologicamente e,
por isso mesmo, imutável, passando a considerá-la do ponto de vista
psicossocial e, assim, como algo sujeito à mudança (PRAUN, 2011).
De acordo com Alves (2017, p. 09), a partir das explicações de que
existem diversas práticas discursivas (médica, psicológica, jurídica,
autobiográfica) que ampliam as discussões a respeito das diferentes
perspectivas teóricas sobre o universo trans:
Se não existe uma essência sexual [...], se a heterossexualidade
não é a única norma social viável [...], se a narrativa autobiográfica
consiste num fator determinante na expressão de gênero [...],
se o corpo pode ser moldado pela tecnologia [...] e pelo desejo
[...], definitivamente, não há mais espaço para um discurso de
naturalização e legitimação de um único modelo de mulher.
Partindo desta concepção, não é possível conceber um gênero
original e muito menos genuíno ou essencialista. Sendo uma
mulher cisgênero ou uma mulher transgênero, torna-se possível
pensar apenas em gêneros flexíveis, múltiplos e instáveis, gêneros
- escrito no plural, pois, assim grafados, afirmam a pluralidade e
a diversidade, promovendo rupturas e fissuras no enquadramento
reducionista, higienista e eugenista de sujeitos e corpos.
É importante ressaltar que as concepções hegemônicas de
masculinidade e feminilidade dependem do momento histórico, das
leis, das religiões, da organização familiar e política, dentre outras.
São esses fatores que levam a sociedade a construir, em determinado
momento histórico, a concepção de gênero considerada verdadeira,
normal e adequada, sendo por meio da linguagem (e do discurso) que
se estabelecem e se mantêm as relações sociais e de poder.
5 Considerações Finais
Ressalta-se que a AD mostra-se como uma possibilidade de
interpretação para a abordagem dos temas relacionados à sexualidade,
gênero e Psicologia Social. Assim, a linguagem passa a ser um elemento
envolvido na elaboração do pensamento e na interpretação da mensagem
comunicada e não apenas um código para a comunicação humana,
sendo responsável por guiar as percepções dos indivíduos, construindo
e criando as interações sociais, além de permitir a cristalização das
420
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relações de poder. Nesse sentido, ela (a linguagem) seleciona quem tem
mais poder para atribuir sentidos, provocando uma naturalização dos
sentidos atribuídos.
Perante o que foi exposto na análise, faz-se possível elencar alguns
efeitos de sentidos presentes no blog RadFem sustentados em discursos
pautados em concepções binárias, essencializantes e opressoras para se
caracterizar a mulher. Assim, foi interpretado que a autora do post passa
a considerar relevante um determinismo biológico em detrimento das
construções sociais e sexuais dos indivíduos, já que não identifica como
mulher indivíduos que não possuem útero e vagina desde o nascimento.
Em função disso, não considera o direito de participação de mulheres
trans no movimento feminista radical e reproduz, mesmo sem se dar conta
disso, uma opressão similar à que o patriarcado provoca nas mulheres.
Contudo, essa repressão de uma dita “minoria”, no caso, mulheres
transexuais, coloca em pauta a discussão acerca da necessidade de
construir políticas públicas para assim conceber mudanças em variados
segmentos sociais: no plano jurídico, no sistema de saúde, no âmbito
escolar, assim como incentivar pesquisas sobre as diversidades sexuais.
Por fim, é relevante destacar que, apesar de as mídias sociais
atuarem como campos de disputas e aproximarem mais as pessoas de
discussões, essa pesquisa possui a limitação de ter utilizado apenas
um blog como instrumento. Além disso, esta pesquisa abordou apenas
quatro trechos de uma postagem de um blog específico que discorre
sobre interesses da vertente feminista radical. Nesse sentido, uma AD de
outros textos e contextos que abordem a questão do que se compreende
ser mulher (e suas interfaces) se faz necessária e interessante para uma
compreensão mais ampla referente ao tema. Outra potencialidade seria
incluir na análise relatos e opiniões de mulheres trans para ampliação de
discussões a respeito das diferentes possibilidades de se compreender o
ser mulher. Por fim, compreender os diferentes modos de se expressar
no mundo é permitir refletir a respeito da fluidez e da multiplicidade
possível de existência de distintas identidades sexuais.
Contribuição dos autores
Os autores contribuíram igualmente em todas as etapas (concepção,
delineamento metodológico, coleta e análise dos dados e redação
científica) desta pesquisa e artigo.
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Mulher, verão e cerveja: a produção de sentidos
na peça publicitária da cerveja Itaipava, no Brasil
Women, Summer and Beer: The Production of Meanings
in the Itaipava Adds, in Brazil
Tatiana Barbosa de Sousa
Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais / Brasil
tatianabsg@gmail.com
Guilherme Beraldo de Andrade
Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais / Brasil
guilhermeberaldo@hotmail.com
Resumo: Com o intuito de analisar o funcionamento de sentidos produzidos pela
excessiva exposição da imagem da mulher como apelo comercial nas propagandas da
marca Itaipava no Brasil e compreender como se dão os efeitos de sentidos causados
pelo uso da imagem da mulher no meio publicitário, analisaremos recortes de peças
publicitárias desta marca, tomando como base teórica a semântica histórica da
enunciação, tal como proposta por Guimarães, além de outros conceitos fundamentais
para este estudo que se estabelece em diálogo constante com a análise de discurso.
Neste artigo, compreendemos como o processo de produção de sentidos se dá em
outras formas significantes para além do texto e como esses efeitos de sentido afetam,
direta e indiretamente, o comportamento do homem na relação para/com a mulher na
nossa sociedade.
Palavras-chave: semântica histórica da enunciação; análise de discurso; imagem da
mulher; efeitos de sentido.
Abstract: In order to observe the work of meanings that are produced by the excess of
the image of the women as a commercial appeal in the advertisings made by the brand
Itaipava in Brazil, and understand how the effects of meanings caused by the use of the
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.423-452
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image of women in the marketing area we will analyze pieces of advertisement used
by this brand, having as the theoretical basis the studies in the Historical Semantics of
Enunciation, as presented by Guimarães, besides other essential concepts to this study
that is established in the constant possible dialogue with the discourse analysis. In this
article, we try to understand how the process of production of meanings happen in other
meaningful ways that are out of the text, and how these meaning effects affect, directly
and indirectly, the behavior of the men in relation to/with the women in our society.
Keywords: historical semantics of enunciation; discourse analysis; women image;
effects of meaning.
Recebido em 10 de julho de 2018
Aceito em 16 de setembro de 2018
1 Considerações Iniciais
Nossa proposta, neste artigo, é abordar o tema da exposição do
feminino na propaganda de cerveja. Temos observado que a imagem da
mulher foi, ao longo de várias décadas, e ainda é um recurso midiático que
vem sendo utilizado de maneira que pode ser considerada depreciativa
e machista, na maior parte das vezes. Ao longo do tempo, a mulher vem
recebendo, por parte daqueles que produzem as peças publicitárias, uma
significação que a coloca não exatamente numa posição de fragilidade
e submissão, mas o de mulher fatal – “mulherão” –, mulher cobiçada
sexualmente e considerada o grande objeto de consumo e desejo dos
homens. Com essa ressignificação, fez-se a abertura de um viés comercial
em que a imagem da figura feminina se relaciona diretamente ao consumo
de um produto, em especial, as cervejas brasileiras.
Refletir sobre a imagem da mulher nas peças publicitárias de
cerveja no Brasil significa tocar em uma questão delicada e complexa,
uma vez que estamos em uma esfera do saber que contempla questões
ideológicas que afetam e produzem efeito sobre as práticas na/da sociedade
brasileira, e deixam transparecer a formação predominantemente machista
e patriarcal em que estamos inseridos. Entendemos que aquilo que é
ideologicamente estabilizado ecoa de modo natural entre os dizeres, como
se aquele dizer fosse o único a ser aceito como certo e/ou verdadeiro.
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Assim, detectaremos, por meio das análises propostas, que
o funcionamento discursivo nas peças publicitárias afirma posições
machistas e preconceituosas em relação à capacidade da mulher e
indiciam a repetição na significação da mulher como a apresentada nas
epígrafes deste texto.
Observamos a existência de um cuidado prático/técnico que
visa ao apagamento do machismo e dos preconceitos por parte dos que
formulam a propaganda cervejeira em geral, aqui representada pela peça
da cerveja Itaipava, que mostra no seu funcionamento os ecos de uma
memória de dizeres e nos remete a uma formação machista estabilizada
ao longo do tempo, em nossa sociedade.
2 A mulher na sociedade brasileira
O discurso verbal e imagético que circula nas mais diferentes
peças publicitárias de cerveja traz um eco de significação daquilo que
se espera das mulheres. Na maioria das vezes, jovens, brancas e magras,
loiras e de cabelos lisos despontam como objeto de desejo, tanto de
homens que visam tê-las para a satisfação dos seus prazeres, quanto de
mulheres que buscam, por meio de diferentes maneiras e uso de artefatos,
aproximarem-se dessa imagem vendida como a verdadeira beleza da
mulher, sem que necessariamente essa caracterização corresponda ao
padrão da mulher brasileira.
Quando falamos em padrão da mulher brasileira, queremos fazer
lembrar que o povo brasileiro e, assim, a mulher brasileira, é a mistura
de várias raças. A miscigenação de muitos povos que aqui em nosso país
se instalaram é marca da diversidade brasileira.
Desde a colonização/invasão do território brasileiro, e queremos
pontuar que isso é efeito dos modos como a mulher é significada no
mundo, a miscigenação se deu, em grande parte, por meio da prática de
estupro de mulheres negras, de índias e de outras etnias consideradas
inferiores às dos invasores europeus.
Conforme destaca Moreno:
E, no entanto, a mulher brasileira é hoje resultante de uma mescla
de raças e etnias, em que se amalgamaram brancas, negras e índias,
com uma pitada posterior de japonesas, árabes e tantas mais. Nossa
beleza vem justamente da diversidade. E nossa diversidade tem
características absolutamente diferentes do modelo eurocêntrico
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idealizado com que nos bombardearam. Somos brancas, negras,
mulatas, índias, mestiças, nisseis, sanseis. Temos curvas generosas
que advêm dessa mistura de raças/etnias que nos compõem. Somos
magras e gordas; crianças, jovens e velhas – nossa população já
exibe índices respeitáveis de mulheres de terceira idade; somos
altas, baixas, de estatura mediana. Temos o frescor da juventude e
a beleza da maturidade. E somos, fundamentalmente, uma nação
de mulheres em movimento (MORENO, 2008, p. 37-38).
Fazendo com que, portanto, a dificuldade de se chegar a um
padrão seja acentuada, essa prática midiática, frequentemente vista como
inofensiva e despretensiosa por aqueles que consomem o produto (nesse
caso, a cerveja), faz com que a imagem da mulher seja estereotipada
e banalizada, o que contribui, entre tantas outras coisas, para o seu
desmerecimento no mercado de trabalho, no respeito dispensado pelos
demais e no reconhecimento familiar, por exemplo. É por ter sua
sustentação em pilares machistas que a sociedade brasileira, em geral,
acata esses dizeres como “normais” ou até mesmo “engraçados”, já que
aquilo que é ideológico transita naturalmente entre os costumes e dizeres
de uma sociedade, no caso de nossa análise, a sociedade brasileira,
especialmente a parcela masculina e consumidora de cerveja.
Podemos perceber que, em algumas publicações lançadas
recentemente, têm havido uma tentativa de ruptura com este modo
de veicular a imagem da mulher na mídia. Tal movimento pode ser
compreendido com uma resposta das empresas anunciantes ao crescimento
do número de mulheres atuantes no mercado de trabalho, em posições de
prestígio em grandes empresas, nas mesas dos bares, lado a lado com o
público masculino que mencionamos acima. Porém, os efeitos de sentidos
que temos observado nas propagandas de cerveja, especialmente, fazemnos interpretar que a imagem do feminino nas peças publicitárias não
retrata a imagem da mulher consumidora de cerveja, ou da mulher que
contribui diretamente no funcionamento da sociedade, mas, ao contrário,
significa a mulher a partir de um padrão de beleza praticamente inatingível,
equiparada a um objeto, ou até mesmo alimento, que o homem consumidor
daquela marca será capaz de conquistar ou “possuir”.
A partir dessa consideração, voltamos para o que vem sendo
difundido como fundamento da ordem publicitária e entendemos que as
campanhas utilizam um modelo de beleza que, como dito anteriormente,
não representa, em sua essência, o perfil estético da mulher brasileira, mas
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funciona a partir de uma memória de sentidos de uma mulher idealizada
no imaginário masculino, e fazendo com que este modelo de beleza
torne-se um objeto de persuasão para a venda.
Assim, a fim de alcançar o objetivo da nossa pesquisa, analisamos
o funcionamento discursivo produzido na excessiva exposição da imagem
da mulher como apelo comercial em um vídeo da marca Itaipava,
veiculado no Brasil, e seus efeitos. Além disso, mostraremos como
se dá a significação da imagem da mulher no meio publicitário como
argumento de venda, ou seja, usada para garantir as vendas do produto
como uma forma de alcançar o imaginário do consumidor de cerveja,
especialmente o masculino.
É pela atualidade do tema e sua discussão que consideramos a
pertinência desse estudo no campo das ciências da linguagem. Nosso
interesse é observar, pelo diálogo possível entre os pressupostos
teóricos da análise de discurso e os dispositivos teórico-metodológicos
da semântica histórica da enunciação, por meio de recortes do corpus
elencado para análise, como se dão os efeitos de sentidos veiculados com
a ideação da mulher “gostosa” – “mulherão” – como inspiração de vendas.
Desse modo, buscamos mostrar como o processo de produção
de sentidos se dá em outras formas significantes para além do texto
e como esses efeitos de sentido influenciam, direta e indiretamente,
o comportamento do homem na relação para/com a mulher na nossa
sociedade. Faremos este estudo observando a relação tecnologia e
linguagem, tomando a tecnologia como um ponto simbólico, político
e ideológico, tal como proposto por Dias (2013, p. 50): “uma instância
de produção de discursos, de relação de poder”, pois “as questões de
tecnologia são uma forma de reivindicar um sentimento comum da
comunidade” (SFEZ, 2002, p. 24).
A partir disso, pensamos que a relevância do presente estudo
está em mostrar os efeitos, na sociedade, do processo de produção de
sentidos quando se parte da imagem (estereotipada) da mulher, julgando-a
e impondo a essa mulher um lugar social de objeto a ser comprado e
consumido.
3 O vídeo e a tecnologia de linguagem
Neste artigo, olhamos para o filme publicitário como base
material utilizada para a veiculação de peças publicitárias de uma marca
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de cerveja, a Itaipava, a qual constitui o nosso corpus de análise. Levandose em consideração que o vídeo-filme é, para nós, uma tecnologia de
linguagem, mostraremos como ela funciona como parte do processo de
significação dentro da análise proposta.
Podemos observar, ao longo da evolução tecnológica que tem
ocorrido nas últimas décadas, que a utilização da tecnologia é um fator
determinante na modificação na maneira como os homens relacionam-se
entre si, com o meio em que vivem e com as máquinas, o que nos chama
a atenção para uma nova maneira de significação do sujeito diante de si
mesmo. Este ponto torna-se relevante uma vez que estamos inseridos
em uma sociedade imersa no excesso de informação e conhecimento.
Isso nos move a compreender as peças publicitárias também afetadas
por uma tecnologia de linguagem específica, a partir da qual se podem
produzir outras diferentes significações; aqui, para nós, como o vídeo
produz e faz circular conhecimento e/ou significação acerca da mulher.
No campo dos estudos das Ciências da Linguagem, o estudo
de diferentes bases materiais como tecnologias de linguagem adquire
grande importância na década de 90, de acordo com Orlandi (2013),
pois, além de se fazerem significar de diversos modos, “re-organiza[m]
a vida intelectual, re-distribui os lugares de interpretação desloca o
funcionamento da autoria e a própria concepção de texto” (p. 62-63).
Com o advento da utilização de outras tecnologias, como o
computador e o smartphone, passou a ser importante, dentro do processo
de significação, entender como acontece a construção dos sentidos e
como estes circulam e se fazem significar na sociedade. Neste viés, a
base material utilizada para fazer com que os sentidos circulem ganha
destaque.
Orlandi explica que:
O corpo da palavra se estende até os seus limites tensionada
pelas tecnologias. A dimensão do virtual, tão explorada em nosso
cotidiano e em nosso imaginário de usuários (ou não) dos discursos
eletrônicos e para-eletrônicos nos levam a compreender que a
materialidade da linguagem – seus múltiplos significantes – em
sua plasticidade incorpora os modos de existência do concreto
nas suas diversas modalidades: formal (abstrato), empírico,
virtual. E todas elas nos confrontam com o significante: com
seus limites, com seus delimites, com suas falhas, seus equívocos,
sua incompletude incontornável (ORLANDI, 2013, p. 66) (grifo
nosso).
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Ora, se diferentes materialidades produzem significações
diversas, conforme explicitado acima, é importante apontarmos para o
fato de que o vídeo contribui para a produção dos sentidos identificados no
processo analítico desenvolvido neste trabalho. Uma vez que partimos de
uma materialidade que circula no âmbito midiático (o vídeo), e sendo esse
lugar de dizer diretamente afetado pelas tecnologias, faz-se necessário
considerar que os sentidos que são apreendidos acerca da imagem da
mulher na sociedade brasileira através da circulação desta peça midiática
são uns, e não outros, porque são produzidos e veiculados nesta e a partir
desta materialidade específica.
Sendo assim, retomando os estudos de Levy (1996), o autor
afirma não haver fronteiras entre o mundo virtual e o mundo real. Analisar
esta materialidade como tecnologia de linguagem no discurso midiático –
em que se enfatiza a relevância da comunicação digital como mediadora
e/ou influenciadora de comportamentos humanos – apresenta-se como
uma consideração pertinente na relação sujeito/linguagem no processo
de significação.
4 A mulher estereotipada
Para chegarmos ao entendimento do que é ou de quem é esta
mulher estereotipada, buscaremos a compreensão acerca do termo
estereótipo, que, por estar intimamente relacionado à repetição e à
memória, é uma das formas materiais pelas quais podemos abarcar os
nossos gestos de interpretação. Conforme o Novo Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa:
V.t.d.1. Imprimir estereotipia. 2. Tip. Converter em estereótipo.
3. Tip. Imprimir com estereótipos. 4. Reproduzir fielmente.
5. Tornar fixo, inalterável: Para se popularizar, conseguiu
estereotipar o sorriso. P. 6. Tornar-se fixo, inalterável: De tão
repetida a frase estereotipou-se (FERREIRA, 1986, p.720) (grifo
nosso).
A palavra, de etimologia grega, é utilizada para descrever
comportamentos, ideias generalizadas ou padrões que determinem
modelos fixos (conforme vimos na definição do dicionário acima),
relacionados a pessoas – tornar um modelo inalterável de modo que ele
possa ser reproduzido fielmente.
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Já no senso comum, a palavra estereótipo ganha significações
que vão além dessas já estabilizadas pelo dicionário. Traremos aqui,
como uma ilustração dessa afirmação, definições que foram colocadas
para a palavra “estereótipo” no dicionário informal, disponibilizado pela
plataforma Google. Vejamos as cinco primeiras entradas que aparecem
na página para a palavra estereótipo:
1) Ideia, conceito ou modelo que se estabelece como padrão./Ideia de Preconceito./ Coisa que não é original e se limita a seguir
modelos conhecidos. /O estereótipo do japonês é ser inteligente.
2) 1.chapa ou clichê usado em estereotipia./2.trabalho impresso
por meio de estereotipia. / 3.modelo conceitual rígido que se aplica
de forma uniforme a todos os indivíduos de uma sociedade ou
grupo, apesar de seus matizes e divergências.
3) Refere-se a opinião preconcebida a respeito das coisas e das
pessoas. Estereótipo revela uma imagem simplificada as margens
das individualidades.
4) Estereótipo são generalizações que as pessoas fazem sobre
comportamentos ou características de outros. Estereótipo
significa impressão sólida, e pode ser sobre a aparência, roupas,
comportamento, cultura etc. Estereótipo são pressupostos
sobre determinadas pessoas, baseados em generalizações de
situações que aconteceram anteriormente, mas sem ligação com
a atual, e muitas vezes eles acontecem sem ter conhecimento
sobre grupos sociais ou características de indivíduos, como a
aparência, condições financeiro, comportamento, sexualidade
etc. O Estereótipo também é muito usado em Humorismo, como
um conceito pré-concebido, sendo muito mais aceito quando
manifestado desta forma, situações que poderiam ser consideradas
normalmente como manifestação de racismo, xenofobia,
machismo, misandria, intolerância religiosa e homofobia,
possuindo salvo-conduto e presunção de inocência para atingir
seu objetivo.
5) Estereótipo é base cognitiva do preconceito. É a representação
mental de grupos sociais e do agir de seus membros. / Um exemplo
de estereótipo seria a representação mental que grande parte da
população tem frente às brasileiras como sendo somente carne
(bunda, seios e nada mais) (DICIONÁRIO INFORMAL, 11 de
agosto de 2016).
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Temos que o entendimento social acerca da palavra “estereótipo”,
em sua maioria, remete a algo ruim, que nos leva ao preconceito que se
propaga por sentidos estabilizados ao longo do tempo na sociedade e tem
como consequência, por exemplo, o machismo, a homofobia e outros
citados acima. De acordo com as observações de Carrozza (2011, p. 12)
“o estereótipo se reafirma no seu acontecimento, enquanto repetição”.
Podemos então afirmar que é eco de um comportamento ou dizer que
faz com que ele se torne naturalmente verdadeiro e/ou aceitável entre
um grupo de pessoas.
A carta que Pero Vaz Caminha enviou aos portugueses, na ocasião
do descobrimento do Brasil, data do ano de 1.500, é um dos mais antigos
documentos de que se tem registro sobre o país. Nele encontramos, com
detalhes, como a mulher brasileira era significada, aos olhos de Caminha,
naquela ocasião:
Acudiram a praia dezoito ou vinte homens. A feição deles é serem
pardos, maneira de avermelhados. Andam nus, sem cobertura
alguma [...]. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem
moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas
espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas
das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha [...]. E uma daquelas moças [...] era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa,
que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela. (CARTA DE PERO VAZ
DE CAMINHA, 1500).
A fim de melhor compreender os sentidos acerca do imaginário
do que é ser a mulher brasileira, desde a época da colonização/invasão,
esboçaremos aqui um DSD (Domínio Semântico da Determinação)
dessa citação, dividido em dois recortes, que nos auxiliarão no processo
analítico. Cada um dos recortes será parafraseado em busca da construção
dos sentidos que aqui se constituem, conforme abaixo:
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Recorte 1: Acudiram a praia dezoito ou vinte homens. A feição
deles é serem pardos, maneira de avermelhados. Andam nus, sem
cobertura alguma [...].
1’ Os homens são pardos.
1’’ Os homens brasileiros são pardos.
1’’’ Mulheres brasileiras são pardas.
1’’’’ Ser brasileiro é andar nu.
1’’’’’ Ser brasileira é andar nua.
1’’’’’’Os homens portugueses não são pardos.
1’’’’’’’As mulheres portuguesas não são pardas.
Recorte 2: Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem
moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas
espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas
das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos
nenhuma vergonha [...]. E uma daquelas moças [...] era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa,
que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela.
2’ Ser moça é ser gentil.
2’’ Estas moças são gentis.
2’’’ Ser mulher brasileira é ser gentil.
2’’’’ Estas moças têm a vergonha alta, cerrada e limpa da cabeleireira.
2’’’’’ Ser mulher brasileira é ter a vergonha alta, cerrada e limpa
da cabeleireira.
2’’’’’’ Estas moças não têm vergonha (pelo)
2’’’’’’’ As mulheres brasileiras não têm vergonha.
2’’’’’’’’ Ser mulher portuguesa é ter pelo.
2’’’’’’’’’ Ser mulher brasileira é causar vergonha.
2’’’’’’’’’’ Ser mulher europeia (portuguesa) é ter pudor.
Com estas paráfrases, vamos propor o seguinte DSD acerca do
imaginário da mulher presente no discurso de Caminha:
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DSD1:
Cor Parda – |
Andar Nua –|
Ser Gentil –|
Ter a vergonha (...)
cabeleireira –|
Não ter vergonha (pelo) –|
Causar Vergonha –|
MULHER BRASILEIRA
___________________________
Mulher Portuguesa
Logo no início, se contrastarmos os recortes (1) e (2),
perceberemos que o número de homens era superior ao número de
mulheres. Sabemos que as mulheres sobre as quais Pero Vaz escreve em
sua carta são as índias que habitavam nossa terra naquela época e que,
por traços de sua cultura, andavam nuas ou seminuas (dependendo de
sua tribo) e, por característica racial, tinham a pele de cor parda. Essas
características chamavam a atenção dos europeus naquele momento,
por terem a sua cor de pele bem mais clara. Tais diferenças, somadas à
gentileza que lhes era característica, conforme relatado na carta acima,
são as primeiras marcas que remetem à repetição de uma ideia que pode,
possivelmente, ter levado à formação de um imaginário, o estereótipo da
mulher brasileira. Em outras palavras, há aqui já na descrição de Caminha
uma memória de sentidos sobre a mulher brasileira.
Esse imaginário é potencializado pela mídia cada vez que uma
peça publicitária, que reforça o estereótipo de uma mulher de beleza
padronizada, não respeitando a diversidade cultural aqui encontrada e
que está sempre com o corpo à mostra, é veiculada.
Percebemos, portanto, que estereótipo é um termo que está
diretamente relacionado à ideia de repetição, o que nos leva a pensar em
uma estabilização de sentidos. Guimarães (2010, p. 11) afirma que “o
sentido deve ser considerado a partir do funcionamento da linguagem no
acontecimento da enunciação”. Isso quer dizer que o sentido é produzido
no acontecimento por relações de determinação que envolvem uma
exterioridade que não é expressa diretamente naquele enunciado dito,
mas pelas relações que determinam os elementos deste enunciado.
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Carrozza (2011) explica que a publicidade utiliza-se constantemente da ideia de estereótipo, já que é um artifício que contribui para que
diversos consumidores sejam atraídos de uma só vez e que isto só é válido
uma vez que a formulação posta seja automaticamente compreendida
pelo público consumidor e os sentidos apresentados sejam administrados
pela marca que veicula a campanha publicitária.
Em relação à imagem da mulher inferiorizada, pertencente à
dominação do imaginário masculino que circula em nosso país, discursos
de caráter religioso afetavam e autorizavam o homem a ter poder sobre
o corpo da mulher para a reprodução. Sabemos que, outrora, ser casada
significava uma relação de autoridade e submissão e, como destacamos
acima, tal direito era garantido por Deus aos homens.
Foi entre os séculos XIX e XX que a família conseguiu a
possibilidade de assumir diversos formatos como conhecemos hoje.
Através das modificações no cenário econômico que foram trazidas pelas
guerras, revoluções, fim da escravidão e etc., as mulheres vislumbraram
a necessidade da sua inserção no mercado de trabalho para complemento
ou, até mesmo, garantia do sustento familiar. Esta modificação ocorreu
porque os homens precisaram buscar trabalhos em outros lugares e,
muitas vezes, não voltavam, deixando suas famílias abandonadas. Esse
movimento provocou um importante deslizamento acerca do imaginário
existente até então daquele papel desempenhado pela mulher na nossa
sociedade. Porém, ao enfrentar o mercado de trabalho, as mulheres
assumiam o risco de ter sua identidade de “mulher honesta” colocada
em xeque, já que agora elas não seriam mais classificadas como “bela,
recatada e do lar”.1
1
“Bela, recatada e do lar” é um conjunto de atributos que a revista Veja confere, em sua
manchete de 18 de abril de 2016, à Marcela Temer, esposa do atual (2018) presidente
do Brasil, Michel Temer, e vem seguido pela foto de uma mulher jovem, com sorriso
sereno e expressão tranquila, sugerindo que qualquer mulher que não possua tais
adjetivos, considerados positivos pela redação da revista, estivesse longe de um modelo
aceito e/ou esperado acerca do padrão do que é “ser mulher”, como se aquela única
mulher retratada pela imagem publicada pudesse revelar a realidade de todas as outras
mulheres brasileiras. De acordo com o site www.revistas.com.br, em 22 de junho de
2016, a Veja é uma das revistas semanais da Editora Abril, e, no Brasil, com tiragem
superior a um milhão de exemplares, a de maior circulação no país, com variedade
de reportagens que tratam de temas recorrentes na atualidade do Brasil e do mundo.
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Saad, sobre a alteração no cenário urbano e familiar, esclarece que
A urbanização acentuada pelo êxodo rural, a elevação nas taxas
de desemprego e a proliferação dos condomínios verticais
reorganizaram a arquitetura das cidades, reduzindo o espaço
físico das residências e agrupando mais a família nuclear.
Nessa época de incertezas políticas, de aumento da violência
urbana, as dificuldades econômicas enfrentadas hoje pelo casal,
a necessidade e o desejo feminino de instruir-se, produzir e
obter resultados financeiros, aliados à diminuição do tempo de
dedicação ao lar, à possibilidade de planejamento familiar, ao
receio de não bem cumprir suas funções maternas, de não poder
prover adequadamente o sustento da prole, conduzem à redução
do número de filhos (2010, p. 21).
Tais mudanças trouxeram para este novo cenário a influência de
novos paradigmas veiculados pelos meios de comunicação em massa
que acabaram por transformar costumes e padrões.
A partir desta transição, a mulher foi capaz de conquistar, pelo
menos teoricamente, direitos que até então eram unicamente garantidos
aos homens, tais como: acesso à educação, respeito igualitário de deveres
e direitos perante a sociedade e a Igreja, o Estado e, também, o marido.
O que se constata, na prática, porém, é que, ainda hoje, meados
de 2018, o status do casamento garante à mulher a aceitação da sociedade
como uma mulher de bem e “de respeito”. Isso acontece porque
Foi longo o caminho percorrido pela ascensão feminina à condição
de pessoa, de pessoa capaz, de pessoa capaz e livre. A dificuldade
da mulher para ser considerada e respeitada, pelos familiares,
pelo marido e pela sociedade, com fundamento em sua condição
humana e não somente pela aptidão biológica para a maternidade,
encontrou óbice nos costumes e na cultura. O discurso masculino
e religioso sobre a clássica divisão entre mulher de família e a
mulher da vida, entre a mulher honesta e a teúda e manteúda
propagou o preconceito e impôs e incentivou comportamentos
condicionantes da moralidade limitadoras de direito (SAAD,
2010, p.29).
Apresentaremos um DSD para o melhor entendimento da
construção dos sentidos desta citação.
436
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Recorte 3: Foi longo o caminho percorrido pela ascensão feminina
à condição de pessoa, de pessoa capaz, de pessoa capaz e livre.
A dificuldade da mulher para ser considerada e respeitada, pelos
familiares, pelo marido e pela sociedade, com fundamento em
sua condição humana e não somente pela aptidão biológica para
a maternidade, encontrou óbice nos costumes e na cultura.
3’ Ser mulher é não ser pessoa.
3’’ Ser mulher é não ser capaz.
3’’’ Ser mulher é não ser livre.
3’’’’ Ser mulher é não ser respeitada.
3’’’’’ A cultura é desrespeitosa com a mulher.
3’’’’’ Os costumes são desrespeitosos com a mulher.
DSD2:
MULHER
_______________________
Ser pessoa
Ser capaz
Ser livre
Ser respeitada
|– Cultura e Costumes
Pela relação de antonímia que se estabelece no DSD acima,
percebemos que mulher e respeito, ao longo do tempo, andam em
linhas opostas. Esse distanciamento é determinado pela cultura e pelos
costumes que ganham força na medida em que são reforçados pelo uso
e pela repetição, ecoando sentidos e sedimentando com naturalidade que
a mulher não deve/merece ser respeitada fora da esfera da maternidade,
conforme a citação de Saad acima.
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Recorte 4: O discurso masculino e religioso sobre a clássica
divisão entre mulher de família e a mulher da vida, entre a mulher
honesta e a teúda e manteúda propagou o preconceito e impôs
e incentivou comportamentos condicionantes da moralidade
limitadoras de direito.
4’ Há uma divisão entre mulher de família e mulher da vida.
4’’ A divisão entre mulher de família e mulher da vida é clássica.
4’’’ O discurso masculino e religioso é um divisor entre a mulher
de família e a mulher da vida.
4’’’’ O discurso masculino e religioso é um divisor entre mulher
honesta e mulher teúda e manteúda.
4’’’’’ Ser mulher de família é ser mulher honesta.
4’’’’’’ Ser mulher da vida é ser mulher desonesta.
4’’’’’’’ Ser mulher da vida é ser teúda e manteúda.
4’’’’’’’’ Ser mulher de família é não ser teúda e manteúda.
4’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso é propagador de
preconceito contra a mulher da vida.
4’’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso impõe um comportamento
condicionante da moralidade.
4’’’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso incentiva um
comportamento condicionante da moralidade.
4’’’’’’’’’’ O discurso religioso é masculino.
DSD 3:
Preconceito├ discurso masculino ┤
Preconceito ├ discurso religioso ┤
Comport. moral ├ discurso masculino ┤
Comport. moral ├ discurso religioso ┤
Mulher da vida
_____________
MULHER DE
FAMÍLIA
├ Ser desonesta
├Ser teúda e manteúda
├ Ser Honesta
├Não ser teúda e
manteúda
Entendemos, pelas relações estabelecidas neste DSD, que o
discurso religioso, que é masculino, impõe maneiras de ser e de ver,
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diferentemente, mulheres que são classificadas como “de família”,
aquelas que seguem os padrões de filhos e casamento impostos pela igreja,
e “da vida”, aquelas que fogem a este padrão, ao estereótipo determinado
em séculos anteriores pelo discurso religioso dominante da época.
Este longo percurso, mencionando pela autora, deixou em
nossa sociedade uma memória de sentidos que afeta os sujeitos e se
faz ecoar através dos discursos. Essas diferentes redes de sentido, as
significações, são possíveis uma vez que então inscritas na memória
discursiva (interdiscurso).
O interdiscurso pode ser definido como um conjunto de implícitos,
tudo aquilo que já foi dito e esquecido, mas que é determinante daquilo
que está na superfície do discurso, o intradiscurso. Portanto, conforme já
formulado por Pêcheux (2009[1975], p. 167), “o processo discursivo não
tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso
prévio”. Assim sendo, afirmamos, então, que, independentemente da
conquista alcançada pela mulher, o fio condutor do discurso alçará uma
memória que nos leve a esta imagem de submissão outrora imposta a ela.
5 Das considerações teóricas
Para alcançarmos os objetivos deste estudo, tomamos como
ponto de partida o funcionamento do discurso publicitário no mercado
cervejeiro. Embora existam órgãos para regulamentá-lo, percebemos que
este é um espaço de dizer que nem sempre obedece às regras determinadas
e fere, muitas vezes, a integridade de um grupo social, especialmente a
das minorias, ponto que permeia as questões de discussão do grupo de
pesquisa “Discurso, Sentidos e Sociedade” (DISENSO), neste artigo,
representada pelas mulheres.
Na busca pela compreensão de como se configuram política e
socialmente as minorias do século XXI, temos observado ecos da história
do conceito de “ser mulher” que são mantidos, reescritos e (re)significados
nos diferentes discursos que circulam na sociedade contemporânea, além
de perceber como a diferença e o preconceito materializam, na linguagem,
os equívocos, não-ditos e/ou ditos. Assim, chegamos aos efeitos da
significação que, na historicidade dos discursos2 analisados, conduzem a
2
Conforme Orlandi (2005, p. 21) “Discurso é efeito de sentido entre locutores”.
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novos sentidos que se irrompem e instalam o mesmo de modo diferente,
possibilitando ressignificações e deslocamentos das e sobre as minorias.
Podemos perceber que a influência midiática atinge a todas
as faixas etárias e utiliza-se de técnicas que façam com que seu
público fique seduzido pelo produto anunciado, levando-o à compra,
independentemente do meio de veiculação: televisão, rádio, impressos,
internet, etc.
Carrozza (2011) esclarece que a beleza é um dos recursos
utilizados para a sedução do público consumidor pelo mercado
publicitário. Podemos entender que a campanha publicitária precisa
de um modelo de beleza que seja reconhecido pela sociedade, ou seja,
reconhecido (e aceito) por grande número de pessoas e, assim, será um
objeto persuasivo.
Para melhor compreender como a linguagem funciona neste
processo enunciativo, apresentaremos aqui alguns conceitos chave da
Semântica Histórica da Enunciação que se farão necessários para a
análise do corpus selecionado.
Tomando como ponto de partida o estudo daquilo que fora
excluído por Saussure (2002), os estudos da linguagem vêm abordando,
ao longo dos anos, diferentes aspectos, resultando em teorias distintas,
dentre elas, a Semântica Histórica da Enunciação, inicialmente proposta
por Guimarães e em pleno desenvolvimento no Brasil. Embora a presença
do elemento subjetivo da linguagem tenha sido incluída nos estudos, a
história ainda havia sido mantida fora de observação. Guimarães (2010,
p. 66) explica que a Semântica Histórica da Enunciação trata “a questão
do sentido como uma questão enunciativa em que a enunciação seja vista
historicamente”, não no aspecto temporal, mas pela historicidade, de
uma maneira que sempre remete a alguma coisa. Para tanto, o sentido,
visto como discursivo, deve ser apreendido a partir do acontecimento
enunciativo. Ele define:
Um acontecimento enunciativo cruza enunciados de discursos
diferentes em um texto. A enunciação, então, se dá como o lugar
de posições do sujeito que são os liames do acontecimento com
a interdiscursividade. Deste modo aquilo que se significa, os
efeitos de sentido, são efeito do interdiscurso no acontecimento.
[...] A enunciação em um texto se relaciona com a enunciação de
outros textos efetivamente realizados, alterando-os, repetindoos, omitindo-os, interpretando-os. (GUIMARAES, 2010, p. 68).
440
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As noções de discurso como “efeito de sentido entre locutores.”
(ORLANDI, 2005, p. 21) e de interdiscurso como “[...] o conjunto do
dizível, histórica e linguisticamente definido.” (PÊCHEUX, 2009, p.
166), já trabalhadas pela Análise de Discurso, tanto por Pêcheux quanto
por Orlandi, foram adotadas pela semântica histórica. Um discurso, que
é exterior à língua e ao sujeito, se produz em relação a outros discursos.
Sob a perspectiva semântica, o sentido em um acontecimento
enunciativo é resultado da presença do interdiscurso, ou ainda, resultado
dos cruzamentos de distintos discursos no acontecimento. A presença de
posições de sujeito no acontecimento enunciativo determina a unidade de
sentido da enunciação, o que é chamado de dispersão do sujeito e ocorre,
afirma Guimarães (2010), como consequência da dispersão de discursos
diversos (recortes de interdiscurso), formadora do texto. Observa-se que
“pela interdiscursividade e sua necessária intertextualidade, o sentido não
é formal, mas tem uma materialidade, tem historicidade” (GUIMARAES,
2010, p. 68).
O funcionamento da língua, que está exposta ao interdiscurso,
acontece porque ela é afetada pela posição de sujeito que o individuo
ocupa no acontecimento, produzindo sentidos. O sentido não é apenas a
memória; são efeitos de memória e do presente do acontecimento.
Outro ponto importante para a semântica histórica que foi
levantado por Guimarães (2010) é o da argumentatividade. O autor busca
nos legados de Oswald Ducrot (1973) as bases para a estruturação desse
conceito. O semanticista afirma que é pela interdiscursividade que ocorre
a produção da argumentatividade em um acontecimento específico, ou
seja, ela independe da intenção do sujeito e se dá para esse sujeito através
da interdiscursividade.
Diferentemente dos estudos retóricos, a semântica, apoiada
no viés estabelecido por Anscombre e Ducrot (1976), considera que a
argumentação é uma relação de linguagem e significação, que remete a um
já-dito do interdiscurso. Na retórica, a argumentação pode ser entendida,
além de um recurso pedagógico para acesso a determinado conhecimento,
como uma maneira através da qual se adquire conhecimento sobre algo,
ou, ainda, uma estratégia de convencimento. Em qualquer uma dessas
abordagens, argumentar é apresentar algo como o pressuposto para que
alguém aceite algo que não é linguagem, mas uma conclusão.
No processo de convencimento, destaca-se o chamado auditório,
aqui para nós o possível consumidor, que vem a ser “o conjunto de pessoas
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que queremos convencer e persuadir” (ABREU, 2009, p. 41). É função
do auditório a recepção ou não da argumentação do orador. É, pois, a
quem se orienta todo o discurso e, se cabe ao auditório a aceitação ou não
mídia a ser veiculada, é necessário que a peça apresentada seja muito bem
formulada para que o objetivo final, a venda do produto, seja alcançado.
Ainda neste sentido, Massmann (2009, p. 30, grifo nosso) afirma
que “para persuadir e/ou convencer, é preciso dominar a arte da palavra,
conhecer seus segredos, seus artifícios e suas técnicas”.
Além da importância de dominar a arte da palavra, conforme
citado acima, ressalta-se, também, a presença e importância da
persuasão imagética encontrada em um audiovisual. Esses recursos estão
diretamente relacionados ao tipo de público a ser atingido e ao tipo de
imagem à qual a empresa deseja vincular sua marca e seu produto.
Já para a Semântica Histórica da Enunciação:
O argumento não é algo que indica um fato que seja capaz de
levar a uma conclusão. Um argumento é um enunciado que, ao
ser dito, por sua significação, leva a uma conclusão (uma outra
significação). Mais especificamente, argumentar é dar uma
diretividade ao dizer (GUIMARAES, 2010, p. 78).
Assim, argumentar objetiva uma finalidade que conduz o texto
a um futuro. O enunciado representa a diretividade natural da língua,
que deve conter como unidade de significação a argumentatividade. O
interdiscurso, que coloca a língua em funcionamento, é o constituinte
do sentido da argumentação, o que demonstra que a língua possui uma
autonomia relativa e permite dizer que ela é histórica. Então, “o que se
diz pela argumentação não significa só o que a relação de orientação
argumentativa parece sustentar” (GUIMARAES, 2010, p.79). O autor
reforça que é pelo interdiscurso como memória no acontecimento que
a argumentação deve ser observada e que a posição de onde um sujeito
fala é o argumento decisivo.
Observaremos, no momento da análise, que fazer semântica é
tratar a questão da significação, que é a língua colocada em funcionamento
pelo interdiscurso no acontecimento, como linguística, histórica, e
considerar o sujeito que enuncia. Assim, deve-se perceber que, conforme
posto acima, a linguagem funciona determinada pelo que está fora dela
e não se confunde com o momento em que seus elementos acontecem.
O acontecimento constitui o sentido e tem sua autonomia relativa: traz
em sua interioridade marcas de exterioridade.
442
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Nossa inquietação neste trabalho ocorre, na medida em que a
imagem da mulher que é veiculada nas propagandas cervejeiras é tomada
pelo viés sexual, apresentada como fonte do prazer, associada à marca da
cerveja, pronta para ser consumida pelos homens, assim como o próprio
produto a ser comprado (a cerveja) e disponível à sua satisfação, ao seu
consumo.
Porém, Mary del Priore (2012, p.7) define que “as mulheres do
século XXI são feitas de rupturas e permanências”. As rupturas são os
movimentos que garantem a elas a possibilidade do fortalecimento e da
conquista. Já as permanências evidenciam as suas fragilidades, que não
deixam que elas sejam vistas além do foco masculino; consequências de
pertencerem a uma sociedade patriarcal e machista.
Como analistas da linguagem, faremos a busca pela compreensão
do processo de produção de sentidos dos enunciados e do texto a partir
dos pressupostos metodológicos da Semântica Histórica da Enunciação,
lugar de observação dos acontecimentos de linguagem.
6 Um lugar de análise
O corpus escolhido para a análise deste artigo é um dos vídeos
que compõem a campanha publicitária da Cerveja Itaipava, veiculada
no Brasil, no ano de 2016. A marca Itaipava, um dos produtos do Grupo
Petrópolis, entrou no mercado nacional brasileiro em 1994 e ocupa hoje
posição de destaque entre as cervejas mais vendidas no país.
Além desses fatores, a Itaipava garante oferecer um ingrediente
que nenhuma outra cerveja tem: o verão! Desde 2014, a modelo Aline
Riscado, a personagem Verão, assumiu a identidade da marca nas
propagandas da cerveja e tem levado o público masculino ao delírio
desfilando com pouca roupa, muitas curvas e esbanjando sensualidade
ao servir a cerveja nos bares por onde passa. Tal estratégia aumentou o
número de vendas da marca, apontam os resultados.
Temos observado que, com o fortalecimento dos grupos
feministas nos últimos anos, com a facilidade e rapidez de dissipar
comentários bons e ruins pelas redes sociais e com o crescente número de
mulheres consumidoras de cerveja, pode-se notar uma sutil alteração no
modo de como as marcas têm abordado o feminino em suas enunciações,
naquilo que é posto no intradiscurso.
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Como nossa análise pauta-se no discurso publicitário e os
anúncios fazem-se significar tanto pela linguagem verbal quanto pela
não verbal, algumas características da imagem (a linguagem não verbal)
também serão apontadas durante a análise.
No vídeo observado,3 de trinta e um segundos de duração,
percebemos que a cena acontece em um bar, aparentemente frequentado
por um público de classe média, onde trabalham um garçom e uma
garçonete. Já no primeiro segundo de exibição da imagem, podemos notar
que o garçom está vestido com camisa branca de mangas compridas,
enquanto sua colega de trabalho, a famosa Verão, exibe curvas e
sensualidade em um uniforme nada tradicional para uma garçonete.
Outro fator que chama a atenção, ainda logo no início do vídeo,
é a presença de um casal no bar. Este já é um movimento de ruptura com
as peças anteriores, nas quais os bares eram frequentados apenas pelo
público masculino e, quando havia a presença de mulheres, eram grupos
de mulheres solteiras, também belas e com pouca roupa, garantindo
que o ambiente estivesse perfeito aos olhos dos homens bebedores da
cerveja Itaipava.
As falas entre as personagens se iniciam, e é interessante observar
que, através de algumas enunciações e gestos das personagens, podem
ser percebidas tentativas de afastamento do memorável de uma sociedade
machista e patriarcal, conforme mencionamos no início deste artigo.
Porém, também é percebido um eco dos dizeres de outrora. Na mesa em
que há apenas homens, eles chamam a garçonete de Verão. Já na mesa em
que está o casal, dois pontos chamam a nossa atenção: o primeiro deles é
que a namorada toma a iniciativa de pedir a bebida (bem gelada), o que
demonstra, em nosso entendimento, uma não submissão ao namorado e,
além disso, ela direciona o pedido ao garçom que está no caixa do bar.
Porém, a atitude da namorada é imediatamente interrompida pelo
namorado, que, amavelmente, sugere que a cerveja, para ser mesmo boa
(uma Itaipava 100%), tem que ser pedida para a garçonete Verão e que o
garçom deveria ficar lá no caixa onde estava (longe do casal).
A namorada, que por suas expressões faciais demonstra entender
as reais intenções do namorado, expressa confiança e independência
ao chamar a garçonete, que sorri, também demonstrando compreender
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A4ouBKy0GHE>. Acesso em:
17 jul. 2016.
3
444
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a “tolice” masculina manifestada através de tal atitude do cliente, que
agradece a sua namorada enviando um beijinho.
Em relação aos elementos que compõem o cenário, as roupas
escolhidas para as duas personagens do gênero feminino também
merecem destaque. Há a diferença no figurino escolhido para uma e outra.
Isso acontece porque, embora o namoro representado no vídeo seja, pelo
intradiscurso, um namoro moderno, sem traços machistas, sabemos que
há uma memória de sentidos que dita a regra que mulher que exibe corpo
em bar não “serve” para namorar. Esta memória confirma-se através
da comparação dos dois figurinos e da necessidade do cliente em ter a
garçonete (o corpo dela) perto de sua mesa servindo-o, mas não o de sua
namorada à mostra para os outros homens que ali estão.
O uso da imagem do feminino como um objeto de sedução e prazer,
associado ao consumo da cerveja, é um argumento de convencimento.
As roupas curtas e provocantes e as poses insinuantes fazem com que
o público masculino tenha a sensação de possuí-la assim que ingerir a
bebida e isto funciona como um argumento para o consumo da cerveja.
Temos uma cena enunciativa em que o locutor, predicado como
Cerveja Itaipava, anuncia seu produto. Nessa enunciação, a marca enuncia
cerveja no modo de dizer específico, determinando que cerveja só é 100%
cerveja se for com a Verão.
Na enunciação “É que cerveja 100% é com a Verão” e na imagem,
que podemos parafrasear pelo enunciado “uma mulher chamada Verão
e com pouca roupa serve cerveja”, o acontecimento é atravessado pelo
publicitário e pelo político. Podemos dizer que “Verão” caracteriza a
“cerveja 100%” e instala um acontecimento que interpretamos como
“ao comprar Itaipava, você está adquirindo também a/o Verão”. Na
cena enunciativa, a enunciação determinante do dizer circunscrevese a todo o público consumidor da marca Itaipava. O locutor dessa
enunciação, predicado como Cerveja Itaipava, regula que “todos os
consumidores de Itaipava consumirão a Verão” e, nessa enunciação,
“Verão” é uma determinação para a cerveja 100%. O político, o embate,
funciona no sentido de que quem consome Itaipava consome Verão,
aqui personificado por uma mulher que exibe seu corpo; uma mulher
– “mulherão” – representando todas as outras mulheres “gostosas” que
os homens consumidores da cerveja Itaipava poderão deliciar ao fazer
uso da cerveja. Há a regulação por um acontecimento que projeta “os
consumidores da Itaipava consomem este corpo”.
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Nesse acontecimento, o dizer está no tempo fora do tempo
produzido pela enunciação. O locutor anuncia seu produto, “Cerveja
100% é com a Verão”, por uma formulação, uma enunciação que enuncia
algo cristalizado, que não é novo nas peças publicitárias cervejeiras,
evocando a memória no tempo do acontecimento. Nessa cena enunciativa,
o político está presente na contradição entre aquilo que está enraizado
em uma memória de que quem consome cerveja é o público masculino
e aquilo que é mostrado, através do intradiscurso: uma namorada que
toma a frente do consumo de cerveja do casal, em um bar, ambiente
também pertencente ao público masculino em nossos dizeres, que ecoam
características machistas e patriarcais que regem nossos discursos, como
já escrevemos acima.
A enunciação põe a afirmação pela regulação do locutor Itaipava
no seu modo de dizer específico de que Itaipava e Verão são sinônimos.
Temos a normatividade e a afirmação de pertencimento do/da Verão à
Cerveja Itaipava. O memorável pode trazer ecos de sentido que nos levem
a pensar que mulheres que frequentam bar estão ali para se oferecer
aos homens. Isso é uma projeção do acontecimento que é expandida
pela imagem, na qual “mulher gostosa com pouca roupa serve a cerveja
Itaipava”. O acontecimento e o político estão entrelaçados para mostrar
que a Verão é um produto a ser consumido pelos clientes da Itaipava.
Essa projeção é histórica e ocorre na medida em que acontecimento
e língua funcionam afetados pelo memorável. É neste ponto de encontro
que a enunciação se faz no dissenso e no acontecimento, que consumir
Itaipava é consumir mulher gostosa. Essa normatividade exclui as outras
ideias de mulheres bebedoras de cerveja e frequentadoras de bar postas
no intradiscurso e, a imagem, no equívoco, projeta a ideia do consumo
do corpo feminino.
A partir desta descrição da cena, queremos saber, pelo processo
de designação, o que a palavra “Verão” designa. Assim, observaremos
quais sentidos “Verão” apresenta neste acontecimento enunciativo,
considerando o memorável recortado pelo presente do acontecimento
e a interpretação que é projetada, ou seja, a futuridade de sentidos que
é anunciada pela temporalidade do acontecimento. Para isto, faremos o
DSD do recorte (5), abaixo:
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Recorte 5:
Cliente Masculino 1: Verão?
Verão: Oi! Já vou aí.
Cliente feminino (namorada): Por favor! (para o garçom, que
acena para ela). Você traz uma Itaipava bem gelada para a gente?
Cliente Masculino 2 (namorado): Não, pera aí! É que cerveja
100% é com a Verão ali. Não, e sem falar que o rapaz está no
caixa, né? Alguém tem que ficar lá.
Cliente feminino (namorada): Tá bom. Verão...
Cliente Masculino 2 (namorado) Manda um beijo para a
namorada como “agradecimento” por ela ter chamado a garçonete.
5’ Cerveja 100% é Itaipava
5” Cerveja 100% é servida pela Verão
5”’ Verão é a garçonete
5”” Verão é mulher
5””’ Verão é gostosa
5’’’’’’Verão é mulher com pouca roupa
5’’’’’’’ Mulher para namorar não exibe seu corpo
5’’’’’’’’ Verão não é para namorar
Inicialmente, podemos considerar que a palavra Garçonete
determina Verão, que se articula por elipse. No texto da enunciação,
“Verão” é reescrito por expansão por “cerveja 100%” que especifica o
sentido de “Verão”.
“Verão” está articulado ao enunciado cerveja 100% por
predicação, caracterizando-o. Podemos parafrasear “cerveja 100%” por
“Itaipava”.
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DSD 4:
Itaipava ┤
_
Cerveja 100% ┤
Mulher fácil
_
VERÃO
Mulher para namorar
├ garçonete
├ pouca roupa
├ mulher gostosa
├ não mostrar o corpo
A imagem que acompanha a cena enunciativa também lhe
determina sentidos, determinando assim o que “Verão” significa. Como
vimos acima, a imagem foi parafraseada por “uma mulher chamada Verão
e com pouca roupa serve cerveja”.
No momento em que o namorado manda o beijo como
agradecimento pela atitude madura de sua namorada em concordar ser
atendida pela bela Verão, a cena é interrompida pelo enunciador, e a
câmera fecha a imagem na personagem central da propaganda, a cerveja
Itaipava. A enunciação “Aqui é Verão 100% do ano” pode nos levar à
compreensão de várias significações, ainda depreendidas do que foi
estabelecido pelo DSD (4), esboçado acima. Ora, se Itaipava tem uma
relação de sinonímia com cerveja 100% e esta cerveja determina Verão,
a garçonete “gostosa” com pouca roupa que serve Itaipava, podemos
entender que o enunciado, na verdade, faz a publicidade não da cerveja
que será ingerida pelo possível consumidor, mas da mulher a que ele
terá acesso, o ano todo, se comprar esta cerveja.
Vejamos como isto pode ser confirmado em um diálogo que
acontece no final da propaganda, conforme o recorte (6).
Recorte 6:
Cliente Masculino 2 (namorado): Só tá faltando um tira gosto,
né amor? Verão! (e faz um sinal com o dedo chamando a garçonete
até a mesa).
Cliente feminino (namorada): (Suspira, sem acreditar no que
estava vendo/ouvindo).
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Para este recorte, vamos propor as seguintes paráfrases:
6’ Tira gosto é comida
6’’ Em um bar come-se tira gosto
6’’’ Verão serve tira gosto
6’’’’ Ao pedir tira gosto, terei a Verão perto de mim
6’’’’ A Verão é um tira gosto
6’’’’’ A namorada sabe que quem serve tira gosto é a Verão
6’’’’’’ A namorada desaprova o pedido do namorado
DSD 5:
comida┤
bar┤
┤
TIRA GOSTO
├
Verão
Observando-se o DSD acima, confirmamos o que explicitamos
na descrição do DSD de número 4, em relação à utilização da imagem
da mulher como argumento de vendas de um produto, aqui como se ela
fosse uma comida, ou melhor, um tira gosto que acompanharia os deleites
do bebedor da cerveja Itaipava. Sabendo-se que tira gosto é uma comida
que está diretamente relacionada à personagem Verão, entendemos que,
neste vídeo, Verão é, também, um tira gosto. Na linguagem informal,
comer alguém é o mesmo que manter relações sexuais com esta pessoa.
Porém, o jargão é utilizado em situações que expressem o caráter ativo
do homem nestas relações, destacando, mais uma vez, a falta de respeito
com que a mulher é tratada nestas propagandas como consequência
da memória discursiva enraizada em uma sociedade com pilares
essencialmente machistas. Ao suspirar profundamente, a namorada
demonstra a consciência de que a verdadeira intenção de seu namorado
é ter a Verão mais próxima a ele e não o petisco propriamente dito, uma
vez que já estava claro, ao longo do vídeo, que toda vez que um produto
é pedido a personagem Verão vem até a mesa, dando ao cliente, neste
caso o namorado, a sensação de ter o pertencimento de seu corpo.
O que nos chama a atenção nesta análise é a percepção de que não
há, ainda, a ruptura com o padrão midiático coercivo de uma memória
machista e patriarcal. Ao expor o corpo feminino e igualá-lo a um produto,
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a cerveja, a empresa anunciante, aqui representada pela cerveja Itaipava,
desconsidera o respeito que deveria dispensar àquela parcela de mulheres
que escolheram ser apreciadoras de seu produto.
O corpus constituinte deste artigo apresenta características muito
peculiares, pois, além de trazer as marcas de um enunciado linguístico,
apresenta também enunciados cuja materialidade não é linguística;
eles produzem sentido pela maneira como lidam com a exposição da
imagem da mulher em relação à divulgação da marca da cerveja. Há um
apagamento da identidade da mulher como sujeito que passa a ser vista
(tanto pelo locutor, quanto pelo público consumidor) como um produto
de consumo e objeto de divulgação da mídia.
As enunciações significam uma vez que constituem a cena
enunciativa. Através da exposição da imagem do feminino nos anúncios
cervejeiros, somos rememorados à ideia da dominação masculina e à
diferença entre as identidades de gênero. Assim, as práticas discursivas
que predominam nas propagandas evidenciam a dominação masculina
e fortalecem que a imagem da mulher esteja atrelada à submissão nos
diversos setores da sociedade, ainda no século XXI, lugar de permanências
e rupturas, como já posto anteriormente neste artigo.
7 Considerações Finais
O presente estudo torna-se relevante ao evidenciar que a imagem
da mulher que é veiculada pela empresa, na peça observada, não é a
da mulher que bebe a cerveja, além de desconsiderar quem é a mulher
brasileira nos diversos setores da sociedade, especialmente aquela que
é consumidora de cerveja, ressaltando a memória da mulher objeto, a
mulher para consumo.
Compreendemos, através das análises abordadas, que embora
tenha havido uma tentativa de deslizamento no modo de significar o
feminino, as significações trazidas pela memória discursiva de séculos
anteriores ainda são muito presentes neste discurso da atualidade. Este
discurso que circula, predominantemente, é contrário às mudanças, à
heterogeneidade, à ressignificação de sentidos.
Pode-se observar que, embora se tenha rompido, no intradiscurso,
com padrões de comportamentos e estereótipos impostos às mulheres
no passado, há, ainda, presentes no acontecimento de dizer, as marcas
fortes de uma sociedade patriarcal e machista.
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Tem-se, pelas enunciações e pelos implícitos, que o corpo feminino
é um recurso utilizado pela mídia como uma manifestação discursiva
atrelada à sedução do público masculino, que pela materialidade do vídeo
em que é veiculada, garante o sucesso das vendas do produto.
Amparados pelos dizeres de Guimarães (2010, p.47), supracitados,
em que “o passado faz com o presente e o futuro sejam significados”,
podemos compreender como a repetição da ideia da utilização da
exposição da imagem da mulher como um produto de consumo (igualada
à cerveja, ou ao petisco) provoca a compreensão das enunciações das
propagandas de cerveja.
A exposição da imagem do corpo feminino na propaganda
observada nos mostra um distanciamento entre o que é veiculado pela
mídia e o papel da mulher na sociedade do século XXI, aquela quem
tem optado, entre outras coisas, por ser consumidora assídua do mercado
cervejeiro.
Declaração de contribuição de cada autor:
Esse é um artigo escrito em coautoria pelos dois autores no início citados
(Tatiana Barbosa de Sousa e Guilherme Beraldo de Andrade), durante
nosso processo de doutoramento e aprofundamento de conhecimento
no âmbito das Ciências da Linguagem, especialmente em Semântica
Histórica da Enunciação.
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Cronotopia: um fenômeno de largo espectro
Chronotopy: A Broad-Spectrum Phenomenon
Maria Marta Furlanetto
Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil
mmartafurlanetto@gmail.com
Resumo: Este estudo tem o objetivo de explorar o fenômeno da cronotopia a partir de
seu inacabamento teórico, conforme a experiência realizada por Bakhtin com o gênero
romance, abrindo vias para estudiosos da área. Estabelece vínculos com campos de
estudo das ciências sociais e da linguagem e propõe um olhar que parte da concepção
de metáfora como figuração, abordando autores que perspectivaram o tempo e o espaço
em contextos histórico-sociais. A título de experiência de abordagem, mostra uma
possibilidade de análise cronotópica (estudo de caso), estabelecendo um quadro em que
faz convergir o olhar sociológico, histórico, discursivo no panorama cultural, modo de
funcionamento dos cronótopos para estudo figurativo da vida social.
Palavras-chave: figuração; metáfora; cultura.
Abstract: This study aims to explore the phenomenon of chronotopy from its theoretical
unfinishing, according to Bakhtin’s experience with the novel, opening ways for scholars
of this area. It establish links with fields of study of social sciences and language and
proposes a view that starts from the conception of metaphor as figuration, approaching
authors who have looked at time and space in historical and social contexts. As an
experience of approach, it shows a possibility of chronotopic analysis (case study),
establishing a framework in which converges the sociological, historical, discursive
look in the cultural panorama, mode of functioning of the chronotopes for the figurative
study of social life.
Keywords: figuration; metaphor; culture.
Recebido em 1º de junho de 2018
Aceito em 29 de agosto de 2018
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.453-482
454
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019
1 Introdução
Inicio a reflexão sobre cronotopia – conceito retomado com muita
frequência pelos estudiosos de Bakhtin – apresentando um recorte de
discussão sobre o tempo feita entre dois personagens na obra 1Q84, de
Haruki Murakami (2013, Livro 3): a fala de Tengo em interação com
Aomame:
Os homens concebem o tempo como uma linha reta. É como
marcar uma haste de madeira reta e comprida e definir que o que
está do lado de cá é o passado e do de lá é o futuro. E que aqui e
agora é o presente. (MURAKAMI, 2013, p. 50)
Na prática, porém, o tempo não é linear. No amplo sentido da
palavra, o tempo não possui forma. (p. 51)
Talvez o tempo não seja linear como supomos ser. Pode ser que
ele tenha o formato de uma rosca trançada (...) (p. 51)
A concepção de cronótopo é bem mais complexa que a visão de
tempo crônico; neste ensaio, o propósito é tentar melhor compreender
Bakhtin (2014a) em sua elaboração e possibilidades do conceito na obra
Questões de literatura e de estética, também para além da literatura. O
cronótopo seria, hipoteticamente, um mediano entre o tempo crônico
e o linguístico, produzindo figurações (em um plano metafórico) por
suas marcas históricas (tempo) e sociais (lugares/espaços/sujeitos). A
discussão entre os dois personagens de Murakami (Tengo e Aomame),
em todo caso, se justifica por eles estarem, na narrativa, envolvidos em
uma situação extraordinária que implica mundos paralelos (1984 e 1Q84).
Não é, porém, a análise do romance o tema deste trabalho.
Dada tal configuração, tomo como noções centrais as de figuração
(conforme Elias (2001), excedência (ou exotopia), eventicidade –
seguindo inspiração proveniente de uma releitura de Morson (2015);
e faço uma experiência de análise cronotópica de obra literária do
século XVII (Astrée), a partir do exame realizado por Elias (2001) em
perspectiva histórico-sociológica.
Figurações concentrariam uma forma que resume,
conceitualmente, uma representação, um foco em que tempo/espaço/ser
humano se amalgamam. Na definição possível de cronótopo no sentido
artístico-literário, Bakhtin diz que “ocorre a fusão dos indícios espaciais
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455
e temporais num todo compreensivo e concreto.” (BAKHTIN, 2014a, p.
211).1 É, portanto, no sentido de unidade espaçotemporal que Bakhtin
fala de cronótopo, que funciona como centro irradiador (históricocultural) numa obra. Tais unidades compõem valores cronotópicos, ou,
se quisermos, manifestação de valores (axiologia) por figurações, já que
representam “medida” e forma das experiências humanas, como que
vistas do alto e numa escala temporal ampla. A validade dessa perspectiva
é que, sendo diferentes os pontos de vista, os valores subjetivos em uma
mesma sociedade ou grupo diferem, como diferem estes de outros sujeitos
de uma cultura alheia, mesmo que numa porção geográfica considerada
um país ou uma nação, sobretudo se a época (cronologicamente) é outra.
As noções complementares surgirão, mais ou menos explicitamente, no
curso da discussão.
Para desenvolver o trabalho, a) contextualizo o tema, mostrando
as influências de autores e teorias recebidas por Bakhtin para elaborar o
conceito de cronótopo e explorá-lo na literatura romanesca; b) apresento
sinteticamente o conceito de espaço-tempo como tratado na teoria da
Relatividade Geral, com base em trabalho de Stephen Hawking; c)
exploro a relação entre a ordem das coisas do mundo e a ordem dos
signos; d) delineio o estudo da temporalidade tal como perspectivada
por Benveniste, em sua relação com a subjetividade; e) mostro a relação,
perspectivada por Bakhtin, entre exotopia (distanciamento) e cronotopia,
propondo uma análise cronotópica a partir de estudo sociológico efetivado
por Norbert Elias na obra romanesca Astrée (século XVII), com apoio
da noção de figuração. Na conclusão, sintetizo o que a reflexão teórica
e a análise realizada mostram como possibilidades para o tratamento
cronotópico de material discursivo.
2 Contextualização
Clark e Holquist (1998) explicam que Bakhtin manifestou a
preocupação com o espaço e o tempo ao perceber a imediaticidade com
que essas categorias são sentidas na experiência real. Essa experiência foi
trasladada para uma “poética histórica do romance” com a introdução do
1
Na edição americana: “Forms of time and of the chronotope in the novel” (BAKHTIN,
1981, p. 84).
456
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termo cronótopo,2 “uma unidade para estudar textos de conformidade com
a razão e a natureza das categorias temporais e espaciais representadas.”
(p. 296). Trata-se de um conceito construído exatamente para engajar
a realidade, com base na ideia de que as pessoas organizam seu mundo
em certo número de figurações tal como o experimentam – imagens
construídas em função, essencialmente, do tempo e do espaço.
A ideia de Bakhtin teria sido inspirada, conforme Clark e Holquist
(1998), pela sugestão de Hermann Minkowski (Cf. 2012), matemático
alemão (1864-1909), sobre uma quarta dimensão – tempo como a
quarta dimensão do espaço, trabalho desenvolvido no início do século
XX –, e então ele estabeleceu a indissociabilidade dessas categorias
e sua dimensão histórica. Como essa modelagem seria paradigmática
justamente na literatura de tempos passados, elas constituiriam lugares
ideais para a análise dessas figurações cronotópicas: “os autores são
inelutavelmente forçados a empregar as categorias organizadoras dos
mundos que eles próprios habitam.” (CLARK; HOLQUIST, 1998,
p. 296). Por exemplo: a conhecida expressão Tempo é dinheiro expõe
uma maneira específica de valorar o mundo contemporâneo capitalista;
Viver é lutar corresponde a uma crença ou modo de encarar o mundo
em muitos contextos e figurações grupais.
Como essa metáfora, as formas específicas de organização do
mundo pela linguagem mostram direções de compreensão das culturas,
representando caminhos sintéticos do modo de percepção humano e das
ações correspondentes. Metáforas sintetizam uma ligação entre campos
e domínios que parecem, à primeira vista, mais ou menos distantes uns
dos outros – daí a ideia de transposição (meta-). Como dizia Lacan (1994,
p. 487, grifo no original), “Uma palavra por outra, tal é a fórmula da
metáfora”.3 Não quero, contudo, ao fazer apelo ao conceito de metáfora,
meramente admitir a equivalência de cronótopo e metáfora; quero,
2
Embora encontremos as duas formas – cronótopo e cronotopo – em textos de língua
portuguesa, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) não registra
nenhuma delas. Opto pela forma acentuada, registrando a alternativa que possa surgir
em citações.
3
Nessa óptica, o que seria a fagulha criadora brotaria “entre dois significantes dos quais
um substituiu outro, tomando seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante
oculto continua presente por sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia.”
(LACAN, 1994, p. 487). Desse jogo resulta que a metáfora se localiza no ponto em
que o sentido surge exatamente do não sentido.
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457
antes, pensar a respeito de seus pontos de contato. Em sentido amplo, a
cronotopia se aproxima da metáfora, justamente pela figuração, modos
de contato em sua união de elementos categorizados como distintos
pela percepção humana, transplantados na linguagem: espaço, tempo,
humanidade; mas seu espectro, seja na literatura, seja em outras esferas,4
tem uma complexidade própria. Assim, tenho percepção da figuração
cronotópica como uma imagem alargada das metáforas mais localizadas.
Seria como ver um panorama histórico-social (um universo) ao lado de
uma situação localizada. Uma imagem astronômica poderia ser: olhar
a Terra em si mesma e, alternativamente, olhá-la pela óptica do sistema
solar ou do Universo, buscando compreendê-la como parte de um enorme
e complexo conjunto espaçotemporal.
Sigo ainda, abaixo, a explanação de Clark e Holquist, inserindo
outros autores e comentários pessoais.
Bakhtin (2014a, p. 212) explicita o que deve a Kant por ter
mostrado a importância do espaço e do tempo como categorias primárias
da percepção – embora não como “transcendentais”, como o filósofo
as apresenta, mas como realidade imediata; a inspiração conduzia-o
justamente para a compreensão cotidiana da vida. A outra influência
marcante é do fisiologista Ukhtômski, pela importância atribuída a essas
categorias na experiência humana, ou seja, no modo de o corpo representar
o mundo. Ou seja, psicológica e neurologicamente há um padrão que
“enforma nossa percepção do universo” (CLARK; HOLQUIST, 1998,
p. 297). É assim que se formam cronótopos particulares de mundos
particularmente percebidos. Desse modo, o cronótopo funciona como
ponte entre o mundo real (o real impossível, inatingível) e o mundo
representado – melhor, simbolizado. Essa é a forma de o tempo e o
espaço tomarem corpo, e de serem, finalmente, figurados na vida pela
atividade humana.
Sabe-se que Bakhtin, ao tratar do cronótopo, fixou-se no elemento artístico-literário,
abstendo-se de relacioná-lo com “outras esferas da cultura” (BAKHTIN, 2014a, p.
211). Isso permite inferir que em qualquer outra manifestação o fenômeno ocorre, até
porque foi essa observação, na vida cotidiana, que o levou ao estudo em uma esfera de
interesse imediato. É também o comentário de Pechey (2007, p. 84, tradução minha)
a respeito: “Ele parece, contudo, implicar que todo discurso é cronotópico na medida
em que, de alguma forma, deve tematizar suas próprias inescapáveis condições [...]”.
4
458
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Assim, remontando à época helenística, Bakhtin procura mostrar
como ocorreu o advento do romance, detectando cronótopos particulares
nos romances gregos; por exemplo, o tempo de “aventuras de provações”
(de caráter abstrato), porém com um desenlace feliz. Pode-se associar
essa abstração às histórias contadas no interior da cultura popular. “A
realização da metáfora do caminho da vida, com suas diversas variantes,
desempenha um papel importante em todos os tipos de folclore.”
(BAKHTIN, 2014a, p. 242).
Outro cronótopo detectado por Bakhtin em histórias da época
helenística é o do “tempo de aventura da vida cotidiana”. “Em termos
de tempo, a aventura particular torna-se agora algum gênero de
metamorfose. Em termos de espaço, alguma forma de espaço social
substitui a paisagem física.” (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 300). O
tempo, neste caso, diz respeito a mudanças que marcam uma crise no
curso da vida individual, e então Bakhtin vê o espaço que se desenrola
como uma estrada – uma metáfora.
O “tempo biográfico” é outro cronótopo, embora não existissem
na época clássica romances biográficos propriamente ditos. Seriam dois
os tipos básicos: o “tempo platônico” – curso da vida de quem busca o
conhecimento verdadeiro, e parte de fontes folclóricas – formando-se um
espaço simbólico que inclui dificuldades de progredir na caminhada; e o
“tempo de família”, incluindo histórias de clãs e famílias. O espaço típico
desse cronótopo é a ágora (praça pública em Atenas) (cf. BAKTHIN,
2014a, p. 250-251).
Porém, além desse investimento específico no mundo literário,
Bakhtin tem uma perspectiva ampla do cronótopo, visto ser ele
determinante do que se entende hoje como os recortes da textualidade
que são os gêneros. Os gêneros são “ícones que fixam a Weltanschauung
das eras de onde brotam. (...) Um gênero, por conseguinte, encarna uma
ideia historicamente específica do que significa ser humano.” (CLARK;
HOLQUIST, 1998, p. 293). Assim, pode-se afirmar que o tratamento
cronotópico é válido para os gêneros de ordem diferente do literário,
embora não se encontre comumente essa perspectiva de análise, pelo
menos com o uso específico do conceito. Os gêneros têm, pois, uma
existência cultural, como destaca Machado (2005, p. 159), exprimindo
o grande tempo das culturas e civilizações – o que prescinde de um
nascimento original e da morte definitiva, caracterizando, pois, ao mesmo
tempo o inacabamento e a eventicidade.
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No final de seu estudo (introdutório, conforme explicita) sobre
os cronótopos, Bakhtin (2014c, p. 355) aponta, como significado
fundamental dessa categoria, o temático. “Eles são os organizadores dos
principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os
nós do enredo são feitos e desfeitos. (...) Ao mesmo tempo salta aos olhos
o significado figurativo dos cronotopos.” Eles funcionam então, pode-se
acrescentar, como uma malha abstrata de texto, uma grelha [grille] de
leitura e interpretação (ver algo como, quer dizer, formar uma tela para ver
através dela – metáfora, enfim) – portanto, de nível meta. Como expressa
Bakhtin, uma “imagem-demonstração dos acontecimentos.” (p. 355). Ele
assume que a linguagem, como tesouro de imagens, é essencialmente
cronotópica (p. 356).
Outro aspecto do tema é que os cronótopos mais fundamentais
podem incluir em si, como em camadas, cronótopos pequenos, com seu
próprio tema, e que podem também se cruzar, se entrelaçar, permutar,
coexistir. Um cronótopo interessante é o “da soleira”, já metafórico,
definido por Bakhtin como da crise e da mudança de vida (BAKHTIN,
2014c, p. 354). Outros são o “da escada”, “do corredor”, “da rua”, “da
praça” – onde ocorrem movimentos fundamentais dos personagens
(crises, quedas, renascimentos).5
Na obra Symboles et allégories, de Matilde Battistini (2004), que
é apresentada como um guia das artes, encontram-se fotos de trabalhos
artísticos da Idade Média, do Renascimento e do mundo moderno,
organizando-se em quatro seções temáticas, que privilegiam exatamente
as visões cronotópicas: símbolos do tempo com suas personificações;
símbolos do homem com os arquétipos do imaginário cultural; símbolos
do espaço com seus lugares mágicos; e alegorias, com os temas
iconográficos da história da arte (vícios, virtudes, amor, artes, ciências).
Cada um desses grandes temas, por sua vez, se desdobra em subtemas. A
escada, por exemplo, referida por Bakhtin (2014c, p. 354), e que remete
5
Com relação a esse acréscimo bem mais recente (apêndice ao trabalho anterior)
sobre a cronotopia, Holquist (2015, p. 35) esclarece que, ao fazê-lo, Bakhtin estendeu
seu interesse na aplicação literária para uma categoria epistemológica mais ampla – o
que produziu um efeito contrário ao que se esperaria: em vez de clarificar o conceito,
parece tê-lo tornado mais opaco, apresentando asserções contraditórias. Apesar disso,
Holquist julga possível que se chegue, dialogicamente, a uma concepção unificada
das duas perspectivas.
460
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a subir, funciona imaginariamente como elevação espiritual, intelectual
e moral; pode representar uma iniciação e ascensão em níveis, como
podemos ver em algumas propagandas modernas. Na obra de Battistini
aparecem ainda, por exemplo: o além, a viagem, a montanha, o jardim, a
floresta, o labirinto. Quanto ao tempo, aparecem desdobramentos como
as estações, a noite, a vida, a morte, a aurora.
A cronotopia vincula-se à exotopia (excedência/distância/
distanciamento), na perspectiva de Bakhtin. Amorim (2006) nota que,
relativamente à exotopia, o tempo (como quarta dimensão do espaço)
é, para Bakhtin, o princípio predominante do cronótopo; é sua própria
concepção que ele procura no decurso do tempo de formação do romance,
o que leva, por extensão, à concepção de humanidade, de identidade e
de mudanças identitárias. Isso presume encarar o mundo da cultura na
grande temporalidade, que projeta e historiciza as atividades humanas,
assim coletivizadas. E ao prender-se aos gêneros, uma análise que
identifica um cronótopo acaba levando a uma perspectiva de identidade
humana. Amorim também destaca, em seu texto, que exotopia e
cronótopo são conceitos que se marcam menos ou mais nos textos das
diversas linguagens: poesia, romance, filme, pintura... com graus de
profundidade – como mostra a autora ao analisar parte da filmografia
do iraniano Kiarostami.
O importante nessa questão, para Bakhtin (2003, p. 225), era “a
capacidade de ler os indícios do curso do tempo em tudo, começando
pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (até conceitos
abstratos).”. Quando Bakhtin estuda os romances que ele chama de
educação, destaca exatamente aqueles em que a formação humana não
é tratada como um assunto particular, pelo contrário:
O homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em
si mesmo a formação histórica do mundo. O homem já não se situa
no interior de uma época mas na fronteira de duas épocas, no ponto
de transição de uma época a outra. Essa transição se efetua nele e
através dele. Ele é obrigado a tornar-se um novo tipo de homem,
ainda inédito. (BAKHTIN, 2003, p. 222)
Por esse motivo, Bakhtin vê nisso algo que considera especial: a
força que organiza o futuro, que dá um peso histórico aos acontecimentos.
E por isso também atribuiu um lugar especial a Rabelais, ao lado de
Goethe, tendo este autor atingido, para ele, a quintessência “da visão do
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461
tempo histórico na literatura universal” (2003, p. 226), com a realização
de cronótopos em sua forma mais límpida. Também vemos esse
fenômeno contraditório e heterogêneo na observação da análise históricosociológica realizada por Norbert Elias ao focalizar as figurações de
grupos e comunidades durante o Ancien Régime na França – o que
aponto, adiante, retomando a análise sociológica de um romance de
época efetuada por ele.
Galé (2014) procura focalizar a construção e a descrição do
observador na elaboração do texto autobiográfico de Goethe Viagem à
Itália, afirmando que aí é possível observar a formação de um homem
renascido. “Goethe parece querer mostrar seu trajeto formativo na
esteira de uma alternativa ao mergulho no eu, característica central da
era moderna” (2014, p. 51), em oposição, portanto, ao romantismo.
Assim, ele procura relacionar-se com a natureza de modo tenso, como
observador interessado, mas que não pode fiar-se meramente em seu
interior, em sua subjetividade. Ele passará a dar importância ao olhar,
como observou Bakhtin (2003) em O tempo e o espaço nas obras de
Goethe. E com essa atitude o olhar “se aguça e se educa simultaneamente,
para em seguida voltar para o fenômeno que novamente afeta o olhar
que se aguça, e assim por diante.” (GALÉ, 2014, p. 53). Desse modo,
Goethe quer conhecer-se melhor atentando para o exterior, para as coisas
que vê em sua relação com o que teriam sido no grande tempo (daí a
relação espaçotemporal destacada por Bakhtin), e isso inclui as grandes
construções do passado e as artes como uma segunda natureza, e não
como coisas arbitrárias – como é possível perceber na obra de Battistini
(2004), retratando símbolos e alegorias de mundos em transformação.
Como a definição de cronótopo, em Bakhtin, não está claramente
exposta, e não há protocolo, em seus trabalhos, para a identificação e
análise dos cronótopos, várias direções ficaram abertas aos estudiosos
para a pesquisa do tema e tratamento de uma heurística. Bemong e
Borghart (2015, p. 20) apontam, no trabalho de Scholz sobre cronótopos
e suas conexões com a filosofia de Kant, a seguinte orientação:
Scholz observa corretamente que “[os] significados se revelam
gradualmente à medida que o argumento progride e os exemplos
se acumulam. Termos bakhtinianos, em outras palavras, são
frequentemente encontrados ‘em uso’, sem declaração explícita
das regras que regem tal uso”.
462
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É possível tirar duas lições dessa observação:
1. Bakhtin estava em plena experiência de demonstração de um
conceito em seu inacabamento teórico, abrindo vias para os
estudiosos, ao mesmo tempo estimulando sua criatividade em
observação, análise e refinamento teórico;
2. em outra direção, pondo sob a lente o próprio material de análise
(e seus gêneros específicos), somos os interessados em percorrer
o labirinto das obras para, sabedores de como dirigir o olhar –
cultural, histórico, sociológico –, detectar no que se oferece para
análise as possibilidades, sugerindo os níveis (do micro ao macro
e vice-versa) e as designações. Os cronótopos, certamente, não são
previstos pelos autores das obras – eles aparecem sob análise. Por
isso mesmo hão de surgir, de modo interessante, muitos nomes e
muitos níveis de abstração.6
Trata-se, aqui, de explorar um pouco essas direções.
3 O espaço-tempo na teoria da Relatividade Geral – nota intermédia
Hawking explica que Isaac Newton foi quem primeiro forneceu
um modelo matemático de tempo e espaço em sua obra Principia
Mathematica, de 1687.
No modelo de Newton, tempo e espaço constituíam um fundo no
qual se desenrolavam os eventos, porém sem serem afetados por
eles. O tempo era separado do espaço e considerado uma única
linha, como um trilho de trem, infinito em ambas as direções (...).
O tempo era considerado infinito, no sentido de que sempre tinha
existido e de que existiria para sempre. (HAWKING, 2009, p. 32)7
Entretanto, a crença comum das pessoas, no período (mas não
só), era de que a criação do universo físico se teria efetuado basicamente
como se mostra hoje, e há uns poucos milhares de anos – o que trouxe
6
Um exemplo de trabalho que adota essa postura é o de Falconer (2015).
Isso remete à nossa experiência de senso comum conforme a fala do personagem de
Murakami (2013) na abertura deste texto, e que também é visualizada no estudo da
temporalidade em Benveniste, em seção mais adiante.
7
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463
à baila o questionamento: se o universo foi criado, por que teria havido
“uma espera infinita antes da criação?” (HAWKING, 2009, p. 32). Essa
foi uma preocupação filosófica de Kant. O outro lado da questão é: se o
universo existisse desde sempre, “por que tudo que iria acontecer já não
tinha acontecido, significando que a história tinha acabado?” (p. 32). E
ainda: por que não havia equilíbrio térmico no universo?
Essa contradição lógica, vis-à-vis do modelo de Newton,
desaparece no contexto da relatividade geral, formulada em 1915 por
Einstein (1879-1955), pela qual tempo e espaço estão constitutivamente
interligados. “Não se pode curvar o espaço sem também envolver o tempo.
Assim, o tempo tem uma forma.” (HAWKING, 2009, p. 35). O tempo fica
combinado às três dimensões do espaço para formar o espaço-tempo. É
por isso que Bakhtin apreciou a sugestão de Minkowski, que contribuiu
com fundamentos matemáticos para a teoria especial da relatividade, de
considerar o tempo como uma quarta dimensão do espaço, embora, em seu
estudo da evolução do romance, tenha inicialmente se voltado mais para
Kant. “Bakhtin estava obcecado pela interconexão de espaço e tempo.”,
destacam Clark e Holquist (1998, p. 295). A teoria da relatividade geral
inclui o efeito da gravidade, “afirmando que a distribuição de matéria e
energia deforma e distorce o espaço-tempo, de modo que ele não seja
plano.” (HAWKING, 2009, p. 35). É claro que Bakhtin não adotou o
sentido específico do fenômeno na teoria da relatividade, apenas fez uma
transmutação para a crítica literária, entendendo o processo como “quase
metáfora” (BAKHTIN, 2014a, p. 211).
O cronótopo, teoricamente encarado, poderia ser uma metáfora
conceitual na teoria de Bakhtin, remetendo a uma figuração em formas
semióticas diversas (umas mais visíveis, outras menos), dando suporte
e visibilidade aos movimentos culturais e sócio-históricos. Segundo
seu efeito de realidade, teríamos uma metáfora, não de caráter retórico,
mas como tela cuja arquitetura pode ser compreendida em caráter
de metadiscurso. Seria possível mostrar, assim, de modo mais ou
menos consciente, como se manifestam as épocas, pelo aparecimento,
desenvolvimento e transformação de seus gêneros, e a própria forma
de desenvolvimento da história social. A tipificação, em Bakhtin
(2014a), foi operada em seu estudo do romance, mas é extensível a
qualquer manifestação cultural – servindo, aliás, em conjunção com
as manifestações ideológicas, para operar e construir certa escala de
visibilidade desse fenômeno nos vários campos da vida social. Assim, a
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visibilidade figurativa da literatura – mais especialmente da narrativa do
romance – deve esmaecer, pelo menos em hipótese, nos gêneros menos
afinados ao estético, sem por isso inexistir, visto que refletem técnica e
axiologicamente a vida em sociedade.
4 A ordem das coisas e a ordem dos signos
Note-se que, em todo o desenvolvimento das formas cronotópicas
encontradas por Bakhtin ao processar a genealogia do romance, há algo
fundamental que se liga ao nascimento desse estudo, como explicam
Clark e Holquist (1998, p. 305): “Esta outra história é a das atitudes
cambiantes que as pessoas demonstraram em relação a sua própria
linguagem. Por vezes, elas mostraram não ter consciência do corte havido
entre a ordem das coisas e a ordem dos signos que as nomeiam.”. Isso
corresponde à ilusão de que as palavras estariam ligadas essencialmente
àquilo que nomeiam; a língua constituiria o “real”, além de que também
seria homogênea em si mesma, como se deseja ver uma língua nacional
(assim politicamente legitimada). Qualquer língua nacional, entretanto,
tem estratos discursivos que a levam à heteroglossia. Isso se percebe na
análise feita por Elias (2001) da história da sociedade de corte, ao mostrar
o desenvolvimento do processo civilizatório – da autoconsciência.
Apresento essa perspectiva na seção 6.
Kant tem destaque no empreendimento de Bakhtin com respeito
ao conceito de cronótopo, alicerçado, como visto acima, na questão
filosófica da relação mente/mundo; ele examina as posições empirista
(relativa ao “mundo dado”) e racionalista (relativa ao “mundo apreendido
ou postulado”) e busca uma síntese (cf. SOBRAL, 2005, p. 141).
A grande figura do racionalismo é Descartes (século XVII), teórico
das possibilidades do conhecimento humano: se o conhecimento direto
da realidade é impossível, o sujeito, como ser autônomo e consciente,
pode chegar ao conhecimento no exercício do pensamento (racional),
tendo como modelo a matemática. Do lado empirista – defendendo
basicamente que o conhecimento vem da experiência –, Locke recusa o
inatismo, a universalidade de princípios que regem a vida humana, vendo
na mente apenas um receptor passivo de impressões externas. Hume
(século XVIII) desenvolve as ideias empiristas em nível intelectual, e
recusa a possibilidade de conhecimento real do mundo.
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465
Kant ([198-?]), por sua vez, na obra Crítica da razão pura, de
1781, aponta o que há de comum entre o racionalismo e o empirismo
(conhecimento puro e conhecimento empírico): é impossível conhecer
diretamente a realidade, seja a priori – que os racionalistas consideram
superior ao segundo –, seja a posteriori – que os empiristas consideram
superior ao primeiro. A síntese proposta por ele se realizou apontando,
primeiramente, pontos positivos das duas grandes correntes: nos
racionalistas, a postulação de ideias inatas e a consideração do eu como
entidade intelectualmente perceptível; nos empiristas, a postulação dos
sentidos como principal fonte de conhecimento do mundo, e a ideia
relativamente correta de que a matemática não fornece conhecimento
de mundo, mas apenas relações de ideias. Como erro, apontou nos
racionalistas a afirmação de que os sentidos enganam e só proporcionam
um conhecimento inferior; e de que a razão seria o único meio de obter
conhecimento, por meio da matemática. E apontou nos empiristas: a
recusa das ideias inatas e da possibilidade de intuição imediata do eu; a
recusa de haver relações necessárias de causa e efeito e a ideia de que o
futuro seria semelhante ao passado.
Nesse passo, a síntese kantiana corresponde a um sistema baseado
na causalidade necessária, com três princípios: a) existem ideias inatas;
b) há um eu imediatamente perceptível; c) passado e futuro se assemelham
a partir da intuição (sentidos) e do entendimento (cf. SOBRAL, 2005,
p. 141 et seq.).
Com respeito ao conceito de cronotopia, qual a influência de
Kant? É a ideia de que o mundo só pode ser apreendido por meio de
categorias propostas pelo homem, sendo as de causalidade e de espaçotempo as que Bakhtin efetivamente aproveitou, reinterpretando-as.
Recusou, por outro lado, a concepção de sujeito transcendente e as teses
universalizantes, provindas da tendência de Kant pelo racionalismo.
Em Língua e realidade, ensaio instigante do filósofo tchecobrasileiro Flusser, que teve como mestres Ludwig Wittgenstein e Edmund
Husserl e criou uma metodologia de análise fenomenológica particular,
o autor mostra sua posição a respeito da relação língua/realidade de
modo bastante instrutivo. A tese de Flusser (2007) sobre a língua e as
línguas se resume em asserções: a língua é realidade, forma realidade,
cria realidade e propaga realidade – tópicos que correspondem aos
capítulos da obra. Esse modo de sentir a língua parece corresponder em
Bakhtin à ideia básica de que suas unidades discursivas, os enunciados,
466
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019
manifestados na forma de gêneros, “são correias de transmissão entre
a história da sociedade e a história da linguagem.” (BAKHTIN, 2003,
p. 268). Isso faz parte da assunção de que os gêneros discursivos têm
uma história ligada aos estilos e ao tom de manifestação da linguagem
nos vários campos de conhecimento e nas práticas sociais.
Flusser propõe, de início, supor a existência de uma única língua.
Se assim fosse, haveria
uma correspondência aparente perfeita e unívoca entre dado bruto
e palavra. (...) A língua seria o aspecto interno da realidade, e a
realidade seria o aspecto externo da língua única. (...) A língua
única seria idêntica ao espírito humano, ou, pelo menos, àquilo
que Kant chama de razão pura. (FLUSSER, 2007, p. 51, grifo
do autor)
Sucede, porém, que essa “situação hipotética e paradisíaca”
da língua é ilusória. E isso engendra um problema epistemológico: as
chamadas categorias do conhecimento não podem ser universais. Para
Flusser, “há tantos sistemas categoriais, e, portanto, tantos tipos de
conhecimento, quantas línguas existem ou podem existir.” (p. 52). Ele
explica isso de outra maneira, para ressaltar a relação língua/realidade:
a realidade, este conjunto de dados brutos, está lá, dada e brutal,
próxima do intelecto, mas inatingível. Este, o intelecto, dispõe
de uma coleção de óculos, das diversas línguas, para observá-la.
Toda vez que troca de óculos, a realidade “parece ser” diferente.
A dificuldade dessa imagem reside na expressão “parece ser”.
Para ser, a realidade precisa parecer. (FLUSSER, 2007, p. 52-53).
Para contornar uma questão que surgiria como intolerável
(essa infinidade de sistemas de realidade), o autor prefere dizer que “os
dados brutos se realizam somente quando articulados em palavras. Não
são realidade, mas potencialidade. A realidade será, em consequência,
o conjunto das línguas.” (2007, p. 53). Como consequência dessa
perspectiva, “a verdade absoluta, isto é, a correspondência entre língua
e realidade em si, é tão inarticulável quanto o é essa realidade em si.”
(2007, p. 82, grifos do autor). Isto posto – e como Flusser podia raciocinar
em várias línguas –, uma outra consequência é que o poliglotismo abre a
possibilidade de uma vida múltipla do intelecto, bem como a tradução,
permitindo ultrapassar os limites de uma única língua. Mas há ainda uma
restrição: Flusser está falando, para a ciência e a filosofia, do estudo da
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realidade através das línguas flexionais. Os outros dois tipos, as línguas
aglutinantes (dos mongóis, tártaros, turcos, hunos) e as isolantes (do
Extremo Oriente) seriam praticamente, para o Ocidente, impenetráveis.
Não saberíamos como esses povos pensam a realidade.
Para complementar essa visão mais filosófica da ordem sígnica
do mundo, desenvolvo na seção 5 a perspectiva linguística e enunciativa
de Benveniste sobre a temporalidade em seu vínculo com o humano.
5 Benveniste e a temporalidade
No texto sobre linguagem e experiência humana dos Problèmes
de linguistique générale II, Benveniste (1974) trata de duas categorias
que, conforme observa, aparecem em todas as línguas e são independentes
de qualquer determinação cultural; seriam fundamentais do discurso
e mostrariam a experiência subjetiva dos seres humanos: pessoa e
tempo.8 Como trato aqui da temporalidade, dou destaque a esse tópico.
Certamente, pessoa e tempo não estão dissociados, mas de imediato não
é necessário marcar sua relação. Posteriormente, caberá pensar em que
aspecto(s) essa relação nos serve para entender a cronotopia.
Benveniste destaca que as formas temporais são as mais
ricas entre aquelas da experiência subjetiva, mas também as mais
difíceis de explorar. E mostra que a categoria tempo recobre muitas
representações, formas diferentes de apresentar o encadeamento das
coisas, simultaneamente estabelecendo que a língua conceptualiza o
tempo de modo totalmente diferente.
Nenhuma língua, diz ele, desconhece o tempo, apesar de parecer
assim do ponto de vista das línguas flexionais, em que se reconhece a
categoria verbo. A expressão de tempo seria compatível com qualquer
tipo de estrutura linguística.9 Outra confusão comum seria pensar
que o sistema temporal de uma língua reproduz a natureza do tempo
“objetivo”, como se a língua fosse reflexo da realidade. Cada uma, com
8
Todas as citações do texto de Benveniste foram traduzidas por mim.
Ver, porém, o que diz Flusser (2007, p. 88), comparando quatro línguas flexionais
quanto ao tempo futuro. Como filósofo, ele diz que “toda língua flexional tem estrutura
ontológica diferente, mas até certo ponto semelhante. Essa semelhança permite a
comparação entre as estruturas.” No entanto, diz, se é possível comparar frases com
determinada forma temporal traduzindo-as para uma mesma língua, elas não vão
significar a mesma coisa.
9
468
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efeito, elabora seu próprio sistema relativamente à realidade, divergindo
substancialmente nisso.
Para chegar ao que concebe como tempo específico da língua,
Benveniste expõe duas noções distintas de tempo: o físico e o crônico.
O primeiro é “um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à
vontade”.10 “Tem por correlato no homem uma duração infinitamente
variável que cada indivíduo mede conforme suas emoções e o ritmo de sua
vida interior.” (1974, p. 70). O segundo é o tempo dos acontecimentos, “que
engloba também nossa própria vida como sequência de acontecimentos.”
(1974, p. 70). É nosso tempo vivido. Como se caracteriza esse tempo?
Nossa vida tem pontos de referência que nos situam numa escala
reconhecida consensualmente. Um observador pode percorrer com o
olhar acontecimentos já realizados em duas direções: do passado para
o presente ou do presente para o passado. Assim é que o tempo crônico
admite um olhar bidirecional, ao passo que nossa vida vivida escorre
num só sentido: “o que chamamos tempo é a continuidade em que se
dispõem em série esses blocos distintos que são os acontecimentos. Os
acontecimentos não são o tempo, eles estão no tempo. Tudo está no tempo,
exceto o próprio tempo.” (BENVENISTE, 1974, p. 70-71, grifo do autor).
Como o tempo físico, o tempo crônico se desdobra em duas
versões – uma objetiva, outra subjetiva. O tempo socializado, objetivado, é
aquele do calendário. Nele se reflete a recorrência de fenômenos naturais.
Como ponto zero de cômputo escolhe-se um evento fundamental que
supõe um curso novo para um povo. Essa é uma condição estativa, para
Benveniste. Uma segunda é diretiva: a partir de um eixo, estabelece-se
um antes e um depois. A terceira é mensurativa: são fixadas unidades
de medida para denominar intervalos constantes entre ocorrências de
fenômenos cósmicos (dia/noite, mês/ano; semana, quinzena, século...).
Um acontecimento, desse modo, pode ser situado e reconhecido num
ponto determinado desse eixo – o “modelo experimental”, segundo
expressão do personagem Tengo (referido no início do texto), que funciona
bem há muito tempo. E, por aí, sabemos nossa situação relativamente
a acontecimentos, sabemos onde estamos na vastidão da história. Não
fosse assim, estaríamos perdidos num tempo errático; em consequência,
“nosso universo mental passaria à deriva” (BENVENISTE, 1974, p. 72).
Lembrar a forma do trilho na explicação de Hawking, com base em Newton: o trilho
se estende ao infinito nas duas direções.
10
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Apesar do reconhecimento da fixidez da estrutura do tempo
crônico, Benveniste lembra que a organização social desse tempo é na
realidade atemporal, pelo próprio fato de sua fixidez: é que as quantidades
e denominações conhecidas não participam absolutamente da natureza
do tempo – são vazias de temporalidade.
Uma coisa, porém, é situar um acontecimento no tempo crônico,
outra é inseri-lo no tempo linguístico. É pela língua que se manifesta a
experiência humana do tempo, que é igualmente irredutível ao tempo
crônico e ao tempo físico. “O que o tempo linguístico tem de singular é
que ele é organicamente ligado ao exercício da fala [parole], que ele se
define e se ordena como função do discurso.” (BENVENISTE, 1974, p.
73). O centro desse tempo é o presente da instância da fala. Assim, um
enunciado no presente situa um acontecimento como contemporâneo da
instância do discurso que o menciona. Ele não pode, pois, ser localizado
numa partição qualquer do tempo crônico. O presente de uma fala,
portanto, se reinventa a cada momento novo de fala. Essa reinvenção
singulariza cada enunciação.
Então, Benveniste declara: “O presente linguístico é o
fundamento das oposições temporais da língua.” (1974, p. 74). Ele se
desloca no discurso e divide outros dois momentos igualmente inerentes
ao exercício da fala: aquele em que o acontecimento sai do presente
e se torna memorável, e aquele em que o acontecimento é apenas
uma possibilidade, que pode surgir como presente em prospecção.
Na verdade, Benveniste assinala: só há uma expressão temporal – o
presente (coincidência acontecimento/discurso). Desse modo, ao lado
dele, há os tempos “não-presentes”, de nível diferente. “A língua deve,
por necessidade, ordenar o tempo a partir de um eixo, e este é sempre e
somente a instância de discurso.” (1974, p. 74).
Benveniste nota que um fato significativo das línguas é que
comumente formas para o passado não faltam; por outro lado, muitas
línguas não têm forma específica para o futuro, utilizando elementos
auxiliares. Mais significativo ainda é que, apesar de a instância de
discurso de que resulta o presente ser nova a cada enunciação, como uma
experiência intrinsecamente subjetiva, sucede ao mesmo tempo que essa
temporalidade seja aceita pelo interlocutor. Assim ocorre a condição de
inteligibilidade da linguagem:
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a temporalidade do locutor, embora literalmente estranha e
inacessível ao receptor, é identificada por este à temporalidade
que informa sua própria fala quando ele se torna, por sua vez,
locutor. Um e outro se encontram, assim, em acordo no mesmo
comprimento de onda. (BENVENISTE, 1974, p. 76-77)
É então que o tempo do discurso funciona como fator de
intersubjetividade. Somente essa condição, diz Benveniste, permite a
comunicação linguística.
Como é perceptível, o tempo linguístico vincula o sujeito
à enunciação, e, como presente temporal, a uma situação e espaço
específicos de enunciação. Associa-se, nessas circunstâncias, também
ao que Benveniste chamou tempo físico, essa duração variável que o
próprio ritmo individual da vida interior determina, marcada pela carga
afetivo-emocional e em função dos acontecimentos no tempo crônico
do calendário.
O tempo linguístico, de caráter sígnico, envolve o sujeito pelo que
a própria língua permite ou obriga, e indica um limite para o memorável:
o que não é mais presente, bem como o limiar do sonho e da utopia; o que
não é ainda presente ou nunca será, embora faça parte da vida presente
– porque a vida também se faz de possibilidades e de expectativas.
Amarra-se, desta forma, o que é visada individual (a proximidade
ou o distanciamento – exotopia) ao que se forja como grande temporalidade;
nessa dimensão da coletividade, somos todos passageiros do tempo, que
não estão em espaços e tempos separados, mas sempre na fronteira ou
no limiar de algo em mudança, sofrendo necessariamente deslizamentos
e rupturas. É uma forma de dizer que, como Bakhtin (2014a, p. 211)
assumia, toda a nossa cognição está fundada no reconhecimento da
existência do espaço-tempo, indispensável para a efetivação dos sentidos,
o reconhecimento da subjetividade e o reconhecimento (percepção) da
alteridade nos eventos humanos – irrepetíveis.
Observe-se, com Holquist, que a influência de Kant sobre
Bakhtin não tocou em absoluto a linguagem, que foi desconsiderada
por aquele (focado na relação mente/mundo), enquanto para Bakhtin
era essencial, pelo fato “de a linguagem humana subscrever a eficácia
dos cronotopos nas culturas humanas” (HOLQUIST, 2015, p. 50). Ora,
tempo e espaço em Kant são categorias transcendentais. Assim, diz
Holquist: “Em nosso uso cotidiano dos cronotopos, a abstração tempoespaço é domesticada quando a dispomos no discurso.” (p. 50). E aqui,
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é justamente Benveniste que é apontado, ao trabalhar as categorias de
pessoa e tempo na linguagem.
6 Exotopia (distanciamento) e cronotopia – estudo de caso
Amorim (2006) lembra a associação entre cronótopo e exotopia,11
conceitos criados em momentos distintos, mas funcionando como modos
possíveis de trabalhar a relação espaço/tempo.
O conceito de exotopia trata da questão da criação individual.
(...) O conceito de cronotopo trata de uma produção da história.
Designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de
onde as várias histórias se contam ou se escrevem. Está ligado aos
gêneros e a sua trajetória. (2006, p. 105).
Com relação a essa citação, diria que a ideia de lugar coletivo
pode remeter ao que se poderia chamar de espaços ideológicos, no sentido
de produção de figurações que abarcam comunidades maiores ou menores
(considerando os modos de interdependência estabelecidos), criando
uma rede de valores e configurações interdiscursivas – ou ainda, um
espaço-tempo simbólico que rege a vida humana (talvez se possa apelar
para a expressão metametaforicidade ao propor a leitura das figurações
desse nível). O importante, sobre essas configurações, é o que Bakhtin
chamou “qualidade da apreensão da realidade do mundo” (BAKHTIN,
2003, p. 247, grifo do autor), como comentou com respeito às imensas
mudanças mundiais da época do Renascimento.
No plano histórico e político, em analogia, a proposição acima,
de Bakhtin, parece consentânea com a perspectiva do sociólogo Elias
(2001) ao explicar o desenvolvimento e a manutenção da corte real
e da sociedade de corte do Ancien Régime (França, com Luís XIV
em seu ápice), que ele perspectiva como figurações específicas de
11
O termo exotopia, corrente em português a partir da tradução do francês da Estética
da criação verbal, mais recentemente, pela tradução de Paulo Bezerra (2003), tornouse distância ou distanciamento (embora também encontremos transgrediência).
Dependendo das línguas e dos tradutores, também se pode encontrar extraposição,
extralocalidade, outsideness, que remetem sempre ao “encontrar-se fora”. Exotopia
e cronótopo não têm (ainda) registro no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa), embora as palavras estejam bem vivas e circulem.
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interdependência de pessoas, constituindo um elo histórico-social entre
as sociedades feudais (anteriores) e as industriais (posteriores).
A sociedade de corte não é um fenômeno existente fora dos
indivíduos que a constituem; os indivíduos que a constituem, seja
o rei ou o camareiro, não existem fora da sociedade que formam
em sua convivência mútua. O conceito de “figuração” serve para
expressar esse estado de coisas. (...) homens singulares formam
entre si figurações de tipos diversos, ou (...) as sociedades não
são nada mais que figurações de homens interdependentes. Hoje
em dia, utiliza-se com frequência, nesse contexto, o conceito de
“sistema”. Mas enquanto não pensarmos em sistemas sociais
como sistemas de indivíduos, o uso desse conceito nos leva a
flutuar no vazio. (ELIAS, 2001, p. 43)
É por isso que Elias pode assumir: “Um homem poderoso como
Luís XIV nunca foi livre, em qualquer sentido absoluto da palavra.” (p.
55). Ele precisava, para conservar e exercer adequadamente o poder,
manter em consonância suas inclinações individuais e o que era exigido
da posição de rei. E uma figuração típica e extremamente significativa
nas sociedades de corte é a que se representa pelo cerimonial e pela
etiqueta (cf. ELIAS, 2001, p. 53).
Um exemplo da diferença de figurações nas sociedades é oferecido
por Elias ao distinguir a estrutura da sociedade burguesa relativamente
àquela da sociedade aristocrática de corte: “Na vida das pessoas da corte,
a convivência social implica um espaço e um tempo completamente
diferentes daqueles da vida dos profissionais burgueses.” (2001, p. 79).
Isso implicava diferença no número de pessoas em contato, extensão,
tipo e temas de conversação, rigidez ou não das relações diretas. Tudo
isso se vincula, fisicamente, ao próprio tipo de moradia que cada grupo
podia ostentar. Esse podia não se vincula às posses reais, mas às posições
hierárquicas dos indivíduos nas variadas ordens do Estado. Pode-se
perceber, então, ainda que de modo vago, as linhas figurativas da vida em
mundos de mesma época cronológica e de mundos espaçotemporalmente
tão divergentes, apesar de interdependentes.
Elias não deixa de mostrar, nessa investigação sociológica sobre
as relações realeza/aristocracia de corte no Ancien Régime – detendo-se
nas figurações dinâmicas do ambiente de absolutismo do reinado de Luís
XIV –, o que determinada produção literária indiciava sobre o que ele
definiu como “sociogênese do romantismo aristocrático no processo de
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curialização”,12 que nomeia o capítulo VIII da obra. Trata-se de polos
que se tocam ou reverberam: quanto mais mecanismos de dependência
prendiam os aristocratas ao rei (em função de fatores diversos de
ordem conjuntural), processo que já se delineava quando Henrique IV
(Henrique de Navarra, rei de classe guerreira) passou a reinar na França
(a partir de 1589), mais se verificava ressentimento nessa aristocracia,
que, no entanto, não se permitia manifestá-lo abertamente, porque, de
fato, dependia em vários níveis dessa relação na corte. Representava
um processo necessário rumo à civilização, que implica autocontrole,
disciplina, de que o próprio rei devia imbuir-se para reinar (Luís XIV
nunca foi livre, como registrado acima conforme a expressão de Elias).
Contudo, se a mudança de figurações sociais era inevitável no
grande tempo (ou longa duração), o ressentimento provocado naqueles
que sofriam as coerções precisava de uma válvula de escape. É desse
fenômeno que surge a ideia de sociogênese do romantismo aristocrático.
Como? Na fase de transição da noblesse d’épée (“nobreza de espada”,
de guerreiros) para a nobreza de corte no processo civilizador europeu,
explica Elias (cf. p. 220), a geração já instalada na corte começa a sentir a
nostalgia de uma vida campestre (dir-se-ia, em português, saudade); mais
tarde, cria-se uma visão onírica. “A vida no campo se torna um símbolo da
inocência perdida, da simplicidade e naturalidade espontâneas; torna-se o
contraponto da vida urbana e de corte” (p. 220). Isso não dizia respeito,
porém, ao que seria, na realidade, a vida no campo: era o imaginário
funcionando como saída em momentos de excesso de pressão na vida
cortesã; uma fuga. Esse imaginário reflete, em movimentos românticos,
o deslocamento de rota das figurações. As imagens idealizadas da vida no
campo e da natureza campestre funcionam por contraste com as coerções
e conflitos rotineiros.
O nexo entre as figurações humanas e a sensibilidade em relação
à natureza se mostrou, na França, a partir do século XVI, diz Elias
(cf. p. 231) – e se materializou também em poemas e narrativas. “O
desenvolvimento da imagem humana a partir daquilo que vivenciamos
como ‘natureza’ é um dos aspectos do desenvolvimento global da
sociedade.” (p. 233). Manifesta-se, claro, na arte em geral; na pintura,
por exemplo, os cortesãos eram incorporados à natureza pelo fundo
paisagístico idealizado nos quadros.
12
Derivado de cúria (relativo à cúria, próprio do foro), assim como curial/curialidade
– metaforicamente: conveniente, adequado, apropriado.
474
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Aqui, porém, em função do foco de reflexão, selecionei um romance
analisado por Elias, Astrée (Astréia), escrito por Honoré d’Urfé (15671625). Roman-fleuve (“romance-rio”, na terminologia dos franceses),
composto em cinco tomos e publicado de 1607 a 1627, totalizava cerca
de 5.000 páginas.13 Era ambientado no século V, à época dos druidas, e
tinha como personagens o pastor Céladon e a ninfa Astrée. O último tomo
da obra, completando o romance inacabado devido à morte de d’Urfé, foi
redigido por seu secretário, que libertou os personagens de uma situação
sem saída. O tema central é uma intriga amorosa, permeada de intrigas
secundárias e complementares. Cabe verificar o que seriam os possíveis
cronótopos correspondentes às figurações humanas na perspectiva analítica
de Elias. O autor, claro, não pretendeu fazer uma análise cronotópica de
caráter literário. Sirvo-me de sua perspicácia sociológica para passar a
esse outro olhar, com base nas correlações apontadas por ele.
Esse romance “teve grande repercussão nos círculos da sociedade
de corte em formação. Foi durante algum tempo objeto de um verdadeiro
culto literário, organizando-se em torno dele jogos de sociedade e
reuniões mundanas.” (ELIAS, 2001, p. 247-248). A questão aqui é olhálo, como o faz Elias, como testemunho do tipo de vida dos indivíduos:
inclinações, sentimentos, comportamentos, já que é produto literário de
um período em que o deslocamento de poder favorecia “o governo central
em detrimento das camadas de senhores regionais e locais, antes mais
autônomas.” (p. 248). Formava-se uma nova figuração humana – o que
se consubstanciou inequivocamente no reinado de Luís XIV.
Nesse processo, a identidade é flutuante, ambígua; não houve um
corte definitivo; valores e ideais ainda tinham traços da tradição, da vida
“antiga”. Os novos nobres ainda podiam devanear. D’Urfé, guerreiro de
muitas batalhas (e vencido nas guerras religiosas entre os grupos católicos
e protestantes), também incorporara muito do “refinamento civilizador”, e
ao mesmo tempo não apreciava mudanças estruturais, como tantos outros
– e essa marca se encontra em seu romance “sentimental” (como foi
qualificado), caracterizando de fato uma perspectiva barroca. O material
para a criação estilística passa a uma forma distinta daquela utilizada no
que Bakhtin especificou como “ciclo romântico de cavalaria abstrato”
(BAKHTIN, 2014b, p. 181); a nova forma, na prática, correspondia a
Cf. Espace Français.com: <www.espacefrancais.com/honore-durfe/>. Acesso em:
29 jan. 2017.
13
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475
um “disfarce da realidade circundante num material alheio, como uma
mascarada singular e heroicizante.” (2014, p. 181). Astrée, no caso,
manifesta uma reação da nobreza ao conflito: permanecer na gaiola de
ouro (a corte com suas coerções) cujas portas se fechavam, ou viver na
obscuridade, sem glória. Surge a nostalgia de algo perdido.
O romance descreve o mundo utópico de uma nobreza que se
tornava cada vez mais aristocrática, cada vez mais uma nobreza de
corte. Deixando a espada de lado, criava-se um mundo protegido
para atuar, um mundo mimético no qual as pessoas podem
vivenciar, fantasiadas de pastores e pastoras, as aventuras nãopolíticas de seus corações, sobretudo os sofrimentos e as alegrias
do amor, sem entrar em conflito com as coerções, os mandamentos
e as proibições do mundo real, não-mimético. (ELIAS, 2001,
p. 249-250)
As classes de nobres aparecem no romance semidisfarçadas:
cavaleiros, príncipes, reis; druidas e mágicos correspondem à classe
eclesiástica; ninfas são as damas da corte; pastores e pastoras são a
camada nobre de nível mais baixo, associados à vida campestre. É o
mundo campestre, a relação com a natureza, pois, que predomina como
figura cronotópica da fuga (alternância de mundo). Por isso mesmo, os
pastores são o grupo principal, a quem esse mundo pertence de direito,
e Céladon é o herói enamorado da ninfa Astrée.
A polêmica, o autor a cria fazendo a camada mais baixa opor-se à
superior, que inclui as ninfas, relativamente a seu modo de vida na corte,
contrapondo autenticidade a modos requintados com base em rituais –
ou seja, “alienados”. No cronótopo, os temas amor e autenticidade são
sua contraparte, o que significa que Céladon e Astrée não entram em
sintonia: vivem tentando resolver seus conflitos. Bakhtin expressa, sobre
esse tipo de romance, a meta de sua produção: “Encontrar-se e realizar-se
naquilo que havia de estrangeiro, heroicizar a si e a sua luta num material
estrangeiro: este foi o patos do romance barroco.” (2014b, p. 181). É daí
que, para ele, a denominação “romance de provações” é acertada para o
romance barroco. A provação do herói e de sua palavra seria a principal
ideia organizadora do romance (2014, p. 182). Ela corresponderia, no
caso, ao reconhecimento de uma tensão nas forças históricas de formação
dos grupos em sua hierarquia de poder, com uma consequente reação.
O ponto crucial na armadura do romance, na percepção de
Elias, é a conexão entre a alienação da corte e o princípio de uma nova
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consciência, ou seja, “a ascensão para um novo estágio na escada em
espiral da consciência” (ELIAS, 2001, p. 251).14 O tema tratado é o da
relação realidade/ilusão – considerando o ponto atingido no Renascimento,
dada a urgência, no período, de que a sociedade pudesse ter controle
sobre o mundo em que vivia. Este ponto, em termos contemporâneos,
foi discutido na seção 4 deste ensaio (A ordem das coisas e a ordem dos
signos). O que seria o real e o ilusório, o objetivo e o subjetivo? Haveria,
pois, estágios de consciência no desenvolvimento da sociedade, por
meio do distanciamento entre as representações emotivas e o elemento
racional. Era uma busca da identidade das coisas.
Elias mostra que a ideia de couraça, de autocontrole exigido
especialmente na corte, era uma forma de caminhar nessa direção
civilizadora – a busca de conhecimento por meio de nexos, conhecimento
mais objetivo, mais conceitual, mais científico. O elemento da
contradição, nesse processo, é que ele é acompanhado da incerteza de que
se trate, de fato, de um objeto, um fato ou acontecimento não ilusório.
Uma resposta – tranquilizadora, digamos – para as sociedades daquela
época foi aquela a que chegou Descartes, ao estabelecer o que seria uma
forma segura de adquirir conhecimento científico: reflexão sobre o modo
de refletir, dúvida hiperbólica e, finalmente, a “certeza” de um método
seguro de observação. Porém, ainda assim,
Uma vez que, para o sentimento, há uma cisão, um abismo entre
o “sujeito” que conhece e o “objeto” a ser conhecido, a própria
noção de realidade parece suspeita e ingênua. Será que tudo o que
vem à tona através do conhecimento não passa de uma invenção
do pensamento humano, ou de uma imagem influenciada pelos
órgãos sensoriais humanos? (ELIAS, 2001, p. 254)
Qual o problema persistente? Para Elias, é que os homens não
conseguem distanciar-se suficientemente de si mesmos e do modo como
pensam, “a ponto de incluírem a estrutura do próprio distanciamento
como elemento fundamental em sua imagem e sua concepção da relação
sujeito-objeto.” (2001, p. 255). Todo o esforço despendido resultou
fatalmente em dicotomias forçadas (que parecem evidentes) no estilo
A figura da escada em espiral (caracol) utilizada por Elias permite explicar o
movimento de ascensão intelectual: a cada patamar, quem sobe pode apreciar a si
mesmo nos patamares inferiores, o que provê uma autorreflexão histórica.
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“mundo exterior”/“mundo interior”: a contenção emocional a que se viram
forçados isolou-os como se fossem seres singulares dentro de uma couraça.
Esse jogo está presente em Astrée, explica Elias: de um lado, os
personagens-modelo são ora apresentados refreando sentimentos, ora se
disfarçam, atuando em dois papéis alternadamente, vivendo ora como “si
mesmos”, ora num mundo ilusório, como outras pessoas. No contorno
da natureza, então, o tema da máscara é um indicador cronotópico das
trocas humanas em mundo incerto. Mas o que seria considerado real nessa
sociedade imaginada e naquela que era a destinatária do romance? O jogo
continua a balançar entre ser e dever ser, fatos e normas, diz Elias (2001,
p. 255). O que uma pessoa seria, de fato, ficava inextricavelmente ligado
a sua ascendência social e sua posição social na sociedade. “Astréia é um
romance da nobreza, que põe em cena aristocratas sob diversos disfarces
para um público aristocrático.” (2001, p. 256). O relevante dessa situação
é que a dissimulação é, na obra, um tema de reflexão de seu autor por
intermédio de seus personagens, portanto a conversação contínua refletia
as preocupações que habitavam as cabeças na época considerada.
Ecoando o tema de provação do romance, o tipo de relação
amorosa que se desenvolve em Astrée envolve o controle emocional e o
distanciamento, conforme o deslizamento da figuração social para uma
forma cada vez mais contida, dominada pelas normas nas várias camadas
da elite aristocrática. No caso de Astrée, diz Elias, o que predomina, já
que há uma contraposição às camadas mais altas, realizada por d’Urfé,
são atitudes e sentimentos mais liberais de uma camada mais modesta (cf.
ELIAS, 2001, p. 256) – o que responde, da parte do autor, a uma atitude
de luta, explica Elias, “no plano ideológico e com armas ideológicas”
(2001, p. 257). Trata-se sempre, então, de um fundo político e de atitude
de ressentimento e protesto relativamente à camada mais poderosa da
corte. Num mesmo período, portanto, veem-se forças centrípetas e forças
centrífugas em tensão, dando o tom aos acontecimentos políticos e sociais.
A relação amorosa em questão, em Astrée, como mostra Elias, é
regida pelo ideal de vínculo afetivo de camada intermediária da nobreza.
Sua realização afetiva só pode ocorrer pelo casamento, e nada mais. Dado
esse constrangimento normativo, todo o processo se mostrará como uma
prova – daí o tema da provação e das máscaras que são experimentadas
para conduzir o jogo, a atitude de distanciamento e autorreflexão um em
relação ao outro. Elias destaca, no jogo, que a estratégia de aproximação
ocupa boa parte do romance (cf. ELIAS, 2001, p. 258), criando ansiedade
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e, simultaneamente, certo “deleite em adiar o prazer amoroso”, que atinge
especialmente o herói pastor, Céladon (lembremos que Astrée é uma
ninfa, da camada superior aristocrática). Ambos duelam com as palavras e
estão em constante conflito – conflito que d’Urfé nunca resolveu (ou não
pretendia resolver), pois ao morrer deixou a relação amorosa em estado
de impasse, só resolvida no último volume da obra por seu secretário,
como explicitado anteriormente.
Astrée é um exemplo de como e por que movimentos românticos
surgem e desaparecem: eles expressam de algum modo o anseio pela
libertação de coerções cuja tensão tenha chegado a um ponto insuportável,
provocando a criação de utopias15 e ilusões (2001, p. 261). No entanto,
o enredo de d’Urfé mostra o conflito político de fundo:
Seus pastores querem escapar da coerção da sociedade aristocrática
de corte sem abrir mão dos privilégios e da superioridade que os
diferenciam, justamente por sua civilidade de aristocratas, dos
homens rústicos que cheiram a ovelhas e cabras, portanto dos
verdadeiros camponeses e pastores. (ELIAS, 2001, p. 263)
Enfim, o que a análise do romance mostra como forma de
manifestação do romantismo é que os homens tentam escapar de coerções
civilizadoras que constituem seu próprio modo de vida, com figurações
específicas, o que é um empreendimento impossível, uma vez que já
interiorizaram essas coerções e vivem de seus privilégios (formação,
educação, cultura), nem sempre se dando conta de que criam ilusões.
Afinal, diz Elias (2001, p. 264), “uma convivência social sem coerções
(...) é inimaginável e impossível.”
É nesse sentido que Bakhtin também caracteriza o romance
barroco em seu aspecto de discurso patético, mais especificamente
por seu caráter de provação: é na polêmica interna da acusação e da
justificação que ele se desenrola, refletindo “forças culturais, sociais,
reais, conscientes delas mesmas.” (BAKHTIN, 2014b, p. 187). O
romance também surge na forma de um discurso “substituto” (digamos
assim): como Bakhtin expressa, “é o discurso do pregador sem púlpito,
é o discurso do juiz terrível sem poder judiciário e punitivo, do profeta
Roland Barthes (2004, p. 290) assim definiu utopia: “A Utopia é o campo do desejo,
diante do Político, que é o campo da necessidade. Donde as relações paradoxais desses
dois discursos: eles se completam, mas não se compreendem [...]”.
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sem missão, do político sem força política, do crente sem igreja, etc.”
(p. 187). É o que se percebe na perspectiva histórico-sociológica de Elias
(2001). Soa como uma luta previamente perdida e sem sentido, servindo
de fato como expressão de nostalgia – e, na prática, como deleite da
aristocracia, que pôde degustar pela leitura e em sonhos, durante vinte
anos, o fruto proibido.
Pode-se observar, nas figurações de dependências propostas
e descritas por Elias (2001) em correspondência com o enredo e os
temas levantados em Astrée, que o peso da perspectiva exotópica
(ou de distanciamento) nas coerções que conduzem ao processo
civilizatório é relevante também na relação com o elemento temporal
(a grande temporalidade do processo civilizador). A orientação históricosociológica de Elias em seu estudo da sociedade de corte, exemplificada
parcialmente pela análise do romance de d’Urfé, permite visualizar
traços razoavelmente nítidos do espaço-tempo experimentado/vivido
com menos ou mais consciência – em todo caso, indo na direção da
autoconsciência por autorreflexão e distanciamento, o que os próprios
romances de época vão desenhando, caracterizando a formação de
identidades. Ou seja, eles refletem (falam de) suas próprias condições de
produção, e nisso são, em sua ficção, muito reais – daí não poderem ser
ignorados e tidos como produção secundária de época. Para o historiadorsociólogo, são documentos que refletem vida.
7 Reflexões (in)conclusivas
Este trabalho não reflete, sobretudo por inacabamento teóricoconceitual na direção pretendida, os estudos e as tentativas de exercício
de análise de parcelas de obras e situações sociais em curso. Considere-se,
ainda, o lembrete de que o estudo desenvolvido por Bakhtin deixou, como
era inevitável, alguns conflitos a serem retrabalhados por outrem. Ficou,
porém, o estímulo oferecido justamente por essa abertura, que exige
refinamento teórico e metodologia de análise – e um olhar diferenciado
considerando os campos de trabalho e as modalidades de linguagem e
de gênero na atividade de interpretação.
Procurei enxergar as direções e os temas para os quais apontava
Bakhtin em sua elaboração conceitual e em que medida seria possível
incorporar algo a sua compreensão visitando obras e autores de diversos
campos – também retornando às questões de espaço-tempo revisitadas
no campo da Física.
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Pensei no fenômeno da cronotopia, modo de visão interpretativa
do histórico-social, como forma de enclave e ajuste entre o tempo crônico
e o linguístico, produzindo figurações (em um plano metafórico) por suas
marcas históricas (tempo) e sociais (lugares/espaços/sujeitos) – e não
apenas marcação de situação espacial e temporal de acontecimentos a
enquadrar, por exemplo: o acontecimento X ocorreu no século XIX, na
década de 1800, na região X, com tais personagens.
Tomei figurações a partir de estudo histórico-sociológico de
Elias, que mostra as interdependências entre indivíduos, grupos, classes,
em seus lugares e tempos, passando de um nível a outro mais complexo
ao olhar as interdependências e normas que regem essas dependências
em níveis cada vez mais abrangentes – como a buscar melhor visão e
compreensão, panoramicamente. A visão cronotópica tem essa exigência:
olhar do alto, sentir para interpretar com abrangência. Daí a relevância da
figura que o autor criou: a escada em espiral (a subida ao topo do farol,
se a figura for interessante).
Pareceu-me pertinente e provocador o exame que Elias (2001)
fez do romance Astrée (século XVII) em sua obra, que parecia pedir uma
experiência de análise cronotópica a sobrepor-se à análise sociológica.
Tenho tentado realizar sobreposições em materiais já analisados sob
outros ângulos (da literatura, da psicanálise, da história), como que
fornecendo nova coloração, compondo palimpsestos.
No percurso feito, vejo as figurações cronotópicas como um
resultado de interpretação que tem como foco o amálgama (unidade)
humano/espaço/tempo, figurações que funcionam, uma vez propostas
como leitura, como elementos irradiadores de caráter histórico-cultural,
como valores axiológicos dando visibilidade aos acontecimentos no
espaço-tempo. Há muito ainda a caminhar.
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do estudo, em 1973. Na obra, ele corresponde às páginas 349-362.
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