Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.27 - Nº 2 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 27 n. 2 p. 455-1124 abr./jun. 2019 Revista de estudos da linguagem Universidade Federal de Minas Gerais REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira Faculdade de Letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETORA: Sueli Maria Coelho Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Editores convidados Gabriel de Ávila Othero Sonia Maria Lazzarini Cyrino Revisão e Normalização Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Heliana Ribeiro de Mello Alda Lopes Durães Ribeiro Úrsula Francine Massula Secretaria Úrsula Francine Massula REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 Revista de estudos da linguagem V. 27 - Nº 2 - abr.-jun. 2019 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Científico) [Spain] Sindex (Sientific Indexing Services) [USA] Web of Science [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany] Revista de estudos da linguagem Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Editores-associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Conselho Editorial Alejandra Vitale (UBA, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, França) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Scott Schwenter (OSU, Columbus, Ohio, Estados Unidos) Shlomo Izre'el (TAU, Tel Aviv, Israel) Stefan Gries (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Teresa Lino (NOVA, Lisboa, Portugal) Tjerk Hagemeijer (ULisboa, Lisboa, Portugal) Comissão Científica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Alessandro Panunzi (Unifi, Florença, Itália) Alina M. S. M. Villalva (ULisboa, Lisboa, Portugal) Aline Alves Ferreira (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Ana Lúcia de Paula Müller (USP, São Paulo/SP, Brasil) Ana Maria Carvalho (UA, Tucson/AZ, Estados Unidos) Ana Paula Scher (USP, São Paulo/SP, Brasil) Anabela Rato (U of T, Toronto/ON, Canadá) Aparecida de Araújo Oliveira (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Aquiles Tescari Neto (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Augusto Soares da Silva (UCP, Braga, Portugal) Beth Brait (PUC-SP/ Universidade de São Paulo-USP, São Paulo/SP, Brasil) Bruno Neves Rati de Melo Rocha (UFPA, Altamira/PA, Brasil) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL, Pelotas/RS, Brasil) Celso Ferrarezi (UNIFAL, Alfenas/MG, Brasil) César Nardelli Cambraia (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Cristina Name (UFJF, Juiz de Fora/MG, Brasil) Charlotte C. Galves (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Deise Prina Dutra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Diana Luz Pessoa de Barros (USP/ UPM, São Paulo/SP, Brasil) Dylia Lysardo-Dias (UFSJ, São João del-Rei/MG, Brasil) Edwiges Morato (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Emília Mendes Lopes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Esmeralda V. Negrão (USP, São Paulo/SP, Brasil) Flávia Azeredo Cerqueira (JHU, Baltimore/MD, Estados Unidos) Gabriel de Avila Othero (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Gerardo Augusto Lorenzino (TU, Filadélfia/PA, Estados Unidos) Glaucia Muniz Proença de Lara (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Hanna Batoréo (UAb, Lisboa, Portugal) Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Heronides Moura (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Hilario Bohn (UCPEL, Pelotas/RS, Brasil) Hugo Mari (PUC-Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil) Ida Lucia Machado (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Ivã Carlos Lopes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jean Cristtus Portela (UNESP-Araraquara, Araraquara/SP, Brasil) João Antônio de Moraes (UFRJ, Rio de Janeiro/ RJ, Brasil) João Miguel Marques da Costa (Universidade Nova da Lisboa, Lisboa, Portugal) João Queiroz (UFJF, Juiz de Fora/MG, Brasil) José Magalhaes (UFU, Uberlândia/MG, Brasil) João Saramago (Universidade de Lisboa) José Borges Neto (UFPR, Curitiba/PR, Brasil) Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Laura Alvarez Lopez (Universidade de Estocolmo, Stockholm, Suécia) Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam, Amsterdã, Holanda) Laurent Filliettaz (Université de Genève, Genebra, Suiça) Leonel Figueiredo de Alencar (UFC, Fortaleza/CE, Brasil) Livia Oushiro (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Lodenir Becker Karnopp (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Luiz Amaral (UMass Amherst, Amherst/MA, Estados Unidos) Luiz Carlos Cagliari (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Luiz Carlos Travaglia (UFU, Uberlândia/MG, Brasil) Marcelo Barra Ferreira (USP, São Paulo/SP, Brasil) Marcia Cançado (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Márcio Leitão (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB, Brasil) Marcus Maia (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Antonieta Amarante M. Cohen (UFMG, Belo Horizonte/ MG, Brasil) Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR, Curitiba/PR, Brasil) Maria do Carmo Viegas (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Luíza Braga (PUC/RJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Marta P. Scherre (UNB, Brasília/DF, Brasil) Miguel Oliveira, Jr. (Universidade Federal de Alagoas) Milton do Nascimento (PUC-Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil) Monica Santos de Souza Melo (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Patricia Matos Amaral (UI, Bloomington/IN, Estados Unidos) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP, São Paulo/SP, Brasil) Philippe Martin (Université Paris 7, Paris, França) Rafael Nonato (Museu Nacional-UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Raquel Meister Ko. (Freitag, UFS, Brasil) Roberto de Almeida (Concordia University, Montreal/QC, Canadá) Ronice Müller de Quadros (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Ronald Beline (USP, São Paulo/ SP, Brasil) Rove Chishman (UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Seung- Hwa Lee (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Sírio Possenti (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Suzi Lima (U of T / UFRJ, Toronto/ON - Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Tommaso Raso (UFMG, Belo Horizonte/MG-Brasil) Tony Berber Sardinha (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Vander Viana (University of Stirling, Stirling/Sld, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF, Niterói/RJ, Brasil) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL, Londrina/PR, Brasil) Vera Menezes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Vilson José Leffa (UCPel, Pelotas/RS, Brasil) Sumário / Contents Apresentação: Estudos de Gramática Formal Gabriel de Ávila Othero Sonia Maria Lazzarini Cyrino ............................................................ 467 A extração de genitivos e a periferia esquerda do sintagma de determinante do português brasileiro The extraction of genitives and the left periphery of the Determiner Phrase in Brazilian Portuguese Adeilson Pinheiro Sedrins .................................................................. 475 A intensificação de adjetivos: fatores contextuais Intensification of adjectives: contextual factors Luisandro Mendes de Souza .............................................................. 507 A pragmaticalização de capaz em português brasileiro e a codificação da atitude do falante The pragmaticalization of capaz in Brazilian Portuguese and the codification of the speaker’s attitude Patrícia Rodrigues Marcus Vinicius Lunguinho ............................................................... 549 An Experimental Study on the Interpretation of Bare Singulars in Mexican Spanish Um estudo experimental sobre a interpretação de singulares nus no espanhol mexicano Ohanna Teixeira Barchi Severo ......................................................... 575 Adjetivos em português brasileiro: posição pré-nominal e modificação de eventos Adjectives in Brazilian Portuguese: prenominal position and event modification Thais Deschamps ............................................................................... 603 Bare Singular Count Nouns in Dutch as a Heritage Language in Brazil Nomes singulares nus em neerlandês como língua de herança Antonio Codina Bobia ....................................................................... 631 Capaz como marcador negativo enfático no dialeto gaúcho “Capaz” as a Negative Emphatic Marker in Gaucho Dialect Rerisson Cavalcante Leonor Simioni .................................................................................. 669 Coordenação e paralelismo Coordination and Parallelism Ana Márcia Martins da Silva ............................................................. 701 Da posição do verbo temático em cinco variedades ibéricas On the position of the thematic verb in five Iberian varieties Aquiles Tescari Neto .......................................................................... 737 Deslocamento de tópico contrastivo no português brasileiro: uma proposta semântico-pragmática Contrastive topic dislocation in Brazilian Portuguese: a semantic-pragmatic proposal Fernanda Rosa da Silva ...................................................................... 771 Fonologia autônoma, Sintaxe mais Simples: explorando as interfaces na Arquitetura em Paralelo Autonomous phonology, simpler syntax: exploring the interfaces in the Parallel Architecture Giuseppe Varaschin ............................................................................ 881 O constituinte-QU in situ e os efeitos de Common Ground no português brasileiro infantil The WH-Constituent in situ and the effects of Common Ground in Child Brazilian Portuguese Clariana Vieira Elaine Grolla ...................................................................................... 839 O modelo do Léxico-Gramática no Brasil The Lexicon-Grammar Model in Brazil Roana Rodrigues Larissa Picoli ...................................................................................... 885 O papel da sintaxe na aquisição de adjetivos no português brasileiro The role of syntax in the acquisition of adjectives in Brazilian Portuguese Cristina de Souza Prim ....................................................................... 911 Os verbos ir, dever e poder e seus infinitivos: sintaxe interna e externa The verbs ir (‘go’), dever (‘must’) and poder (‘can/may’) and their infinitives: internal and external syntax Maurício Resende Paulo Ângelo de Araújo-Adriano ....................................................... 935 Prefix allomorphy in complex verbs of Brazilian Portuguese Alomorfia prefixal em verbos complexos do português brasileiro Indaiá de Santana Bassani .................................................................. 967 Sobre o licenciamento de “sequer” em interrogativas do português brasileiro On the licencing of “sequer” in Brazilian Portuguese interrogatives Thayse Letícia Ferreira ...................................................................... 1015 The relevance of future vs. non-future languages for the understanding of the role of tense in counterfactuals sentences A relevância de línguas do sistema futuro vs. não-futuro para se entender o papel do tempo gramatical em sentenças contrafactuais Luiz Fernando Ferreira Ana Müller ......................................................................................... 1051 Verbos de movimento do português brasileiro: evidências contra uma tipologia binária Brazilian Portuguese motion verbs: evidence against a two-way typology Letícia Lucinda Meirelles .................................................................. 1101 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 Apresentação: Estudos de Gramática Formal Gabriel de Ávila Othero Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil gabriel.othero@ufrgs.br Sonia Maria Lazzarini Cyrino Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo / Brasil cyrino@unicamp.br Esta edição da Revista de Estudos da Linguagem se dedica ao tema “Estudos de Gramática Formal”. A ideia para organizarmos este número temático da RELIN surgiu a partir de um convite da editorachefe, a Heliana Mello (UFMG), a quem devemos deixar registrado nosso agradecimento pela imensa ajuda na organização desta edição. Os estudos linguísticos formais têm longa tradição no Brasil, em especial as áreas de Fonologia e Morfologia (cf. CÂMARA JR., 1969 e 1970, por exemplo), com outras áreas (como a Sintaxe e a Semântica) se fortalecendo especialmente com a chegada de textos gerativistas ao país ao longo das décadas de 1970 e 1980. Contudo, nos parece que os estudos em gramática formal vêm perdendo seu espaço no cenário nacional nos últimos anos.1 Por isso, uma edição dedicada aos estudos linguísticos formais nos pareceu oportuno. Vislumbramos uma edição que contemplasse as “áreas centrais” da gramática: Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica e Pragmática. E, de fato, recebemos artigos que A reedição recente de obras clássicas de gramática formal (como a tradução comentada de Estruturas sintáticas e a edição crítica de Estrutura da Língua Portuguesa), no entanto, mostra que os estudos gramaticais de cunho formal seguem despertando interesse (cf. CHOMSKY, 2015, e CÂMARA JR., 2019, nas referências). 1 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.467-474 468 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 tratavam de assuntos relacionados a todas essas áreas – ou que faziam interface entre duas ou mais áreas. Após longo processo de revisão anônima por pares e de editoração e diálogo com os autores, o resultado que agora sai publicado aqui é uma edição sobre gramática formal que apresenta 19 artigos, resultados da pesquisa de 25 diferentes pesquisadores, de 18 instituições de ensino brasileiras (PUCRS, UFBA, UFF, UFMG, UFPR, UFRGS, UFRJ, UFRPE, UFS, UFSC, UFSCar, UFV, UnB, Unicamp, Unifesp, Unipampa, USP, UTFPR). Os artigos estão organizados em ordem alfabética, mas podem ser acessados em qualquer ordem – uma das vantagens da plataforma eletrônica das revistas atuais. O primeiro texto é A extração de genitivos e a periferia esquerda do sintagma de determinante do português brasileiro, de Adeilson P. Sedrins (UFRPE), que apresenta um estudo que “busca ampliar para o PB [português brasileiro] a validação da postulação da projeção de uma categoria funcional F, como a projeção mais proeminente na estrutura nominal localizada acima de DP” em construções genitivas. Sua pesquisa adota a perspectiva da sintaxe cartográfica (cf. CINQUE, 1999; BELLETI, 2004; RIZZI, 2004) e traz dados de diferentes línguas (como inglês, espanhol, holandês) para sustentar sua análise para o PB. O próximo artigo é A intensificação de adjetivos: fatores contextuais, de Luisandro Mendes de Souza (UFRGS), em que o autor “discute a intensificação de adjetivos graduais modificados por muito a partir de uma abordagem referencial do significado”, dando ênfase na análise de “anomalias semânticas na combinação de muito com adjetivos absolutos de grau máximo”. Sua proposta é que uma expressão do tipo muito + adjetivo pressuponha “que todos os indivíduos a quem a predicação se aplica sejam A, e que a identificação de um grau máximo como uma função total dos absolutos de grau máximo [tenha] características de uma implicatura”, em uma clara interface entre semântica e pragmática. Depois desse artigo, continuamos na área da Pragmática (dessa vez, com uma interface com a Sintaxe), com o texto A pragmaticalização de capaz em português brasileiro e a codificação da atitude do falante, de Patrícia Rodrigues (UFPR) e Marcus V. Lunguinho (UnB). Nesse trabalho, os autores examinam “as propriedades das construções do português brasileiro com a expressão capaz, como Capaz que a Maria Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 469 viajou”, que podem assumir diferentes significados, a depender de seu padrão entoacional: “[c]om uma entoação plana, capaz é interpretado como um modal epistêmico, enquanto com a acentuação em capaz (...), essa expressão passa a ser interpretada como um marcador pragmático, expressando surpresa ou o ponto de vista contrário do falante”. Sua hipótese é de que cada interpretação está associada a uma estrutura sintática diferente, tornando o estudo interessante tanto do ponto de vista pragmático como sintático. Na sequência, Ohana T. B. Severo (UFRJ), apresenta o artigo An experimental study on the interpretation of bare singulars in Mexican Spanish, em que trata da interpretação de nominais singulares nus no espanhol mexicano. O texto tem viés experimental e apresenta os resultados de um teste com 134 informantes, em um experimento de compreensão off-line, em que os informantes escolhiam entre interpretações de volume ou de número, a partir de diferentes cenários. A conclusão resultante do experimento foi que “a ausência de morfema de plural (sintaxe massiva) não desencadeia uma interpretação massiva de singulares nus; singulares nus são interpretados como nomes contáveis pluralizados mesmo que eles não estejam pluralizados”. O artigo seguinte, Adjetivos em PB: posição pré-nominal e modificação de evento, de Thais Deschamps (UFPR), trata da relação entre a posição pré-nominal dos adjetivos do português brasileiro e as propriedades dos adjetivos avaliativos em línguas como o inglês e o espanhol. A autora considera que os adjetivos avaliativos podem selecionar um argumento evento, e busca traçar “um paralelo entre essa propriedade e a posição pré-nominal em PB de maneira mais ampla”. Em seguida, temos o artigo de Antonio José Maria Codina Bobia (UFV), Bare singular count nouns in Dutch as a heritage language in Brazil, sendo, neste número temático, um outro trabalho que aborda os nominais nus do português brasileiro. O autor avalia “a distribuição de DPs em sentenças genéricas em falantes de neerlandês como língua de herança em Holambra, Brasil, especialmente em relação à aceitabilidade de nomes singulares nus”. Também em um estudo experimental, o autor tenta averiguar se, “devido à influência do PB os falantes de Holambra poderiam aceitar NNs [nominais nus] em contextos semelhantes aos dos brasileiros”, uma vez que a distribuição de nominais singulares nus é mais restrita na L1 desses falantes. Os resultados do estudo sugerem que “uma gramática ligeiramente diferente surgiu nos falantes de holandês de 470 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 Holambra, sofrendo atrito devido à influência do PB”, especificamente no caso de construções com singulares nus. Na sequência, temos o artigo Capaz como marcador negativo enfático no dialeto gaúcho, de Rerisson Cavalcante (UFBA) e Leonor Simioni (Unipampa), outro texto em que a partícula “capaz” é investigada, dessa vez na interface entre sintaxe, semântica e pragmática. Os autores comparam o uso de capaz com outros marcadores negativos do português e propõem a estrutura sintática de construções com a partícula. No artigo Coordenação e paralelismo, Ana Márcia Martins da Silva (PUCRS) se debruça sobre estruturas coordenadas encontradas em textos reais de disciplinas de produção textual de graduandos, com o objetivo de “chegar a um princípio de paralelismo que seja eficiente para a identificação de estruturas malformadas”. Em seguida, temos o trabalho de Aquiles Tescari Neto (Unicamp), que trata Da posição do verbo temático em cinco variedades ibéricas, que investiga o movimento de verbo em duas línguas: o português (brasileiro e moçambicano) e o espanhol (colombiano, venezuelano e peruano). Através de resultados de julgamento de gramaticalidade, o autor analisa quatro padrões de ordenação da forma verbal em relação a um advérbio e o seu objeto. O autor constatou que há variação intralinguística e interlinguística, e seus resultados favorecem “um abandono do movimento nuclear (para a sintaxe da subida do verbo), em proveito tão somente da assunção de movimentos sintagmáticos.” O próximo texto, Deslocamento de tópico contrastivo no português brasileiro: uma proposta semântico-pragmática, de Fernanda Rosa Silva (UFF), também está situado na interface semântica-pragmática. A autora investiga propriedades informacionais de construções com tópico contrastivo em PB, dando ênfase a estes quatro pontos: (i) posição de origem do elemento deslocado; (ii) tipo de pergunta (aberta ou fechada) no contexto discursivo; (iii) elemento com ou sem retomada pronominal; e (iv) tipo de relação contrastiva. A autora chega à conclusão que “a marcação prosódica do tópico contrastivo indica contraste”, ao passo que “o deslocamento [de um constituinte] tem a função de direcionar a atenção do ouvinte para um elemento disponível no contexto” e depois “atribuir uma propriedade a esse elemento”. No texto Fonologia autônoma, sintaxe mais simples: explorando as interfaces na Arquitetura em Paralelo, Giuseppe Varaschin (UFSC) explora a interface Fonologia-Sintaxe, no modelo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 471 da sintaxe mais simples (cf. CULICOVER; JACKENDOFF, 2005; JACKENDOFF, 2007). O autor argumenta em favor da visão de Culicover e Jackendoff (2005) discutindo a regra do acento nuclear (CHOMSKY; HALLE, 1968; HALLE; VERGNAUD, 1987) e chegando à conclusão de que é possível atribuir mais autonomia entre os diferentes componentes gramaticais, em especial à fonologia e à prosódia (com relação à sintaxe). O próximo artigo, O constituinte-QU in situ e os efeitos de Common Ground no português brasileiro infantil, de Clariana Lara Vieira (USP) e Elaine B. Grolla (USP), traz um estudo sobre o efeito pragmático de perguntas com elemento-QU in situ em PB em fase de aquisição da linguagem. As autoras investigam os efeitos de Common Ground e chegam à conclusão de que existe “uma associação entre o QU-in situ e o contexto pragmático, tanto nos dados adultos (...) quanto nos dados infantis”. No trabalho O modelo do Léxico-Gramática no Brasil, de Roana Rodrigues (UFS/UFSCar) e Larissa Picoli (UFSCar), encontramos uma apresentação do modelo do Léxico-Gramática, tendo por base trabalhos realizados no Brasil desde o ano 2000. As autoras fizeram uma detalhada revisão da literatura nacional dentro do modelo: “[c]ompilamos e descrevemos 38 trabalhos, entre teses, dissertações e artigos, sob o arcabouço do LG no Brasil”, apresentando os avanços de pesquisas na área em solo nacional. Na sequência, temos outro artigo que trabalha com dados de aquisição da linguagem: O papel da sintaxe na aquisição de adjetivos no Português Brasileiro, de Cristina de Souza Prim (UTFPR). A autora analisa o processo de aquisição de adjetivos qualificativos em PB, a partir de um ponto de vista sintático. Seu objetivo central é revelar como a criança “aprende” a posição do adjetivo com relação ao nome que modifica durante o processo de aquisição. Ela argumenta que o PB é “uma língua de traços fortes opcionais, que se aplicam para adjetivos, mas também para WHs e para possessivos”. O próximo texto, Os verbos ir, dever e poder e seus infinitivos: sintaxe interna e externa, de Mauricio S. Resende (Unicamp) e Paulo Ângelo de Araújo-Adriano (Unicamp), “investiga as propriedades sintáticas internas (isto é, a constituição morfofonológica) e externas (ou seja, a relação com outros constituintes da sentença) dos infinitivos que ocorrem com os verbos ir, dever e poder”. Os autores comparam duas 472 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 análises de construções com esses verbos, uma no quadro da Morfologia Distribuída e outra análise de cunho minimalista. O artigo Prefix allomorphy in complex verbs of Brazilian Portuguese, de Indaiá Bassani (Unifesp), também investiga propriedades morfológicas de verbos, dessa vez, verbos de mudança morfologicamente complexos. O objetivo central do texto é verificar “se há ou não correlações entre a forma morfofonológica do prefixo, a semântica da raiz e a estrutura argumental do verbo”. A autora conclui que “não é possível associar exclusivamente as formas morfológicas prefixais à semântica específica da raiz ou ao comportamento morfossintático do verbo, embora seja possível observar tendências gerais” e que a “teoria de alomorfia proposta em Embick (2010), baseada em localidade e linearidade, se mostra efetiva para analisar a escolha dos alomorfes dos núcleos R (relacionador), v e Th (Vogal temática)”. Na sequência, temos o trabalho de Thayse Letícia Ferreira (UFSCar), Sobre o licenciamento de “sequer” em interrogativas do PB, em que a autora investiga a distribuição e as restrições que atuam sobre o item lexical “sequer” em contexto de interrogação em PB. Ela chega à conclusão de que as “interrogativas polares, de alternativa e de constituinte (wh) são ambientes propícios para o aparecimento de ‘sequer’, ao passo que questões de alternativa polar (A-não-A) bloqueiam sistematicamente a presença desse item”. Luiz Fernando Ferreira (USP) e Ana Müller (USP) são os coautores do próximo artigo, The relevance of future vs. non-future languages for the understanding of the role of tense in counterfactuals sentences. Em diversas línguas pertencentes a diferentes famílias, sentenças contrafactuais, ou seja, aquelas cuja proposição denotada é falsa, exibem morfologia de passado. Para discutir as propostas teóricas sobre contrafactualidade, os autores deste artigo examinam as sentenças contrafactuais em karitiana, uma língua que tem um sistema temporal futuro vs. não-futuro. O estudo é relevante pois busca aprofundar a descrição das sentenças contrafactuais nessa língua que é tipologicamente distinta das línguas tratadas na literatura em relação à expressão da contrafactualidade. Esses dados, segundo os autores, “desafiam o poder explanatório das principais abordagens teóricas e apoiam uma delas”, fato que mostra a contribuição de um estudo dessa natureza. Finalmente, no artigo Verbos de movimento do português brasileiro: evidências contra uma tipologia binária, Letícia L. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 473 Meirelles (UFMG) analisa o comportamento sintático de verbos de movimento do PB, “com o intuito de mostrar que o português brasileiro não se caracteriza como uma língua emoldurada nos verbos (verb-framed language)”. Para ela, “a presença de sintagmas preposicionados, de adjuntos adverbiais e de orações subordinadas, determinam como nossa língua expressa as propriedades semânticas trajetória, direção e maneira em sentenças com verbos de movimento”, o que torna difícil classificar o PB dentro de um padrão tipológico restrito, no que toca a tipologia verbal, tal como proposto por Talmy (1985, 2000). Esperamos que este volume dedicado a recentes estudos linguísticos formais no Brasil possa cumprir seu objetivo de preencher uma necessidade no contexto da pesquisa universitária, ao fazer circular hipóteses, resultados e análises decorrentes de diversas questões levantadas nas investigações das áreas nucleares da gramática. Referências BELLETTI, A. (Ed.). Structures and beyond: the cartography of syntactic structures. New York: Oxford University Press, 2004. CÂMARA JR., J. M. Problemas de linguística descritiva. Petrópolis: Vozes, 1969. CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970. CÂMARA JR., J. M. Estrutura da língua portuguesa: edição crítica. Edição, estabelecimento de texto, introdução e notas de Emilio G. Pagotto, Maria Cristina Figueiredo Silva e Manoel Mourivaldo SantiagoAlmeida. Petrópolis: Vozes, 2019. CHOMSKY, N. Estruturas sintáticas: tradução comentada. Tradução e comentários de Gabriel de Ávila Othero e Sergio Menuzzi. Petrópolis: Vozes, 2015. CHOMSKY, N.; HALLE, M. The sound pattern of English. New York: Harper & Row, 1968. CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads. A Cross-linguistic Perspective. New York: Oxford University Press, 1999. 474 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 467-474, abr./jun. 2019 CULICOVER, P.; JACKENDOFF. R. Simpler syntax. Oxford: Oxford University Press, 2005. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:o so/9780199271092.001.0001 EMBICK, D. Localism versus Globalism in Morphology and Phonology. Cambridge: MIT Press, 2010. doi: https://doi.org/10.7551/ mitpress/9780262014229.001.0001 JACKENDOFF, R. Language, consciousness, culture: essays on mental structure. Cambridge: MIT Press, 2007. DOI: https://doi.org/10.7551/ mitpress/4111.001.0001 HALLE, M.; VERGNAUD, J-R. An Essay on Stress. Cambridge: MIT Press, 1987. RIZZI, L. The structure of CP and IP. The Cartography of Syntactic Structures. New York: Oxford University Press, 2004. v. 2. TALMY, L. Lexicalization Patterns: Semantic Structure in Lexical Forms. In: SHOPEN, T. (Ed.). Language Typology and Syntactic Description: Grammatical Categories and the Lexicon. New York: Cambridge University Press, 1985. v. 3, p. 57-149. TALMY, L. Toward a Cognitive Semantics: Typology and Process in Concept Structuring. Cambridge, MA: MIT Press, 2000. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 A extração de genitivos e a periferia esquerda do sintagma de determinante do português brasileiro1 The extraction of genitives and the left periphery of the Determiner Phrase in Brazilian Portuguese Adeilson Pinheiro Sedrins Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns, Garanhuns, Pernambuco / Brasil sedrins@gmail.com Resumo: Este artigo se insere nos estudos de perspectiva da cartografia da sintaxe, centrando a discussão no fenômeno da extração de constituintes para fora do Sintagma de Determinante (DP, do inglês Determiner Phrase) no Português Brasileiro (PB), enquanto um fenômeno que pode ser melhor acomodado assumindo uma estrutura de DP robusta em termos de categorias funcionais. O estudo busca ampliar para o PB a validação da postulação da projeção de uma categoria funcional F, como a projeção mais proeminente na estrutura nominal localizada acima de DP. A análise é centrada na extração de construções genitivas, as quais são assumidas como constituintes projetados em posição de especificadores, contra uma análise de adjunção para essas construções, como a apresentada em Avelar (2006). Com este estudo, pretende-se apresentar uma proposta em que a estrutura do sintagma nominal reflete a arquitetura do nível da sentença, como também permite uma estrutura de DP mais homogênea entre diferentes línguas como o PB e o húngaro, por exemplo. O quadro teórico em que se desenvolvem a discussão e a análise é o da gramática gerativa. Palavras-chave: genitivos; extração; periferia do DP; português brasileiro. Este é artigo é uma revisão da discussão apresentada no capítulo 4 da nossa tese de doutorado (SEDRINS, 2009). 1 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.475-506 476 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 Abstract: This paper is part of the studies on the cartography of the DP structure, focusing on the discussion of the phenomenon of the extraction of constituents out of DPs in Brazilian Portuguese (BP), a phenomenon that can be better accommodated assuming a robust DP structure in terms of functional categories. The study seeks to extend to BP the validation of the postulation of the projection of an FP category, as the most prominent projection in the nominal structure located above DP. The analysis is centered on the extraction of genitives, which are assumed to be constituents projected as specifiers, against an adjunction analysis for these constructions, as presented in Avelar (2006). With this study, we intend to present a proposal in which the structure of the noun phrase reflects the sentence-level architecture, but also allows a more homogeneous DP structure between different languages such as BP and Hungarian, for example. The theoretical framework in which discussion and analysis are developed is that of generative theory. Keywords: genitives; extraction; periphery of DP; Brazilian Portuguese. Recebido em 15 de setembro de 2018 Aceito em 13 de janeiro de 2019 1 Introdução O movimento do nominal modificado deixando o genitivo para trás, como em (1), ilustrado na configuração arbórea em (2), seria um movimento problemático para uma proposta na qual os genitivos são gerados – no caso do exemplo em (1), do Chomsky - dentro do DP, uma vez que tal movimento parece apontar para uma violação de constituência.2 (1) Qual livro (que) você leu [Qual livro do Chomsky]? No modelo aqui adotado, níveis intermediários não são visíveis a computações sintáticas (CHOMSKY, 1995). Observe-se que em (2) o material movido para o início da sentença corresponde ao nível D’. Suponha que o genitivo [do Chomsky] estivesse adjungido a NP, novamente, teríamos um problema de movimento porque estaríamos movendo elementos descontínuos: D, cuja posição é preenchida por qual e apenas parte do NP, já que [do Chomsky] não seria movido. 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 (2) 477 DP do Chomsky D’ NP Qual N livro A ideia básica a ser desenvolvida neste artigo é a de que em vez de um movimento como (2), impossível de ser realizado no modelo de gramática aqui adotado, a derivação de construções como aquela em (1) pode ser capturada como mostra (3): (3) FP do Chomsky F’ F DP D’ Qual do Chomsky NP N livro Como mostra (3), no caso em que um “constituinte parcial” é movido para o início da sentença, como em (1), o genitivo se move primeiro para [Spec, FP] e, em seguida, o DP é movido, sem problemas de constituência, uma vez que a projeção DP é um objeto visível para a computação sintática. A fim de desenvolvermos nossa proposta, organizamos o artigo da seguinte maneira: na seção 2, discutimos a possibilidade de considerarmos as construções genitivas no PB como adjuntos, sendo, portanto, licenciados dentro do DP como tais e, mais ainda, sendo licenciados de acordo com a proposta de adjunção sem rótulos (HORNSTEIN; NUNES, 2006, 2008), 478 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 adotada para o estudo de genitivos do PB apresentado em Avelar (2006). Essa proposta de genitivos como adjuntos, no entanto, é repensada na seção 3, ao assumirmos que o licenciamento de genitivos como especificadores seria mais coerente para abarcar propriedades morfossintáticas que essas construções apresentam nas línguas naturais. Na sequência, na seção 4, discutimos a natureza da projeção FP, como a projeção mais proeminente do DP, e de que maneira a sua postulação para as construções nominais do PB permite acomodar os casos de extração de constituintes aqui discutidos. Em seguida, nossas considerações finais são apresentadas. 2 Genitivos como adjuntos Nesta seção, iremos discutir alguns argumentos apresentados na literatura gerativista que sustentam uma abordagem de que as construções genitivas seriam geradas como adjuntos dentro do domínio do DP. Defendemos neste artigo que genitivos são gerados em configuração de especificador e não em configuração de adjunção, por isso, os argumentos a serem discutidos nesta seção serão reavaliados na seção 3. Numa abordagem como a desenvolvida em Grimshaw (1990), sobre a natureza da estrutura argumental de nomes, os casos de sintagmas nominais com construções de múltiplos genitivos, aquelas construções em que além do genitivo com interpretação de tema, aparecem também os genitivos com leitura de possuidor ou agente, são casos em que o núcleo nominal não projeta uma estrutura argumental, e, dessa forma, todos os sintagmas genitivos que aparecem nesse tipo de construção apresentam status/propriedades sintático-semânticas de adjunto e não de argumentos. Grimshaw (1990) verificou que apenas quando um nome apresenta uma leitura eventiva (mais precisamente uma leitura de “evento complexo”, nos termos da autora), ele torna obrigatória a presença de um complemento, fato que evidencia que apenas esse tipo de nome licencia verdadeiros argumentos. Uma das propriedades de um nome com leitura eventiva é o fato de que, quando licencia um agente, este é realizado na forma de um byphrase, mas não na forma genitiva.3 Isso pode ser observado no PB a partir do contraste em A destruição da cidade [by-phrase pelos bárbaros]/*A destruição da cidade [agente dos bárbaros], em que destruição é um exemplo de nome com leitura eventiva. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 479 Uma vez que em construções de múltiplos genitivos o agente é realizado na forma genitiva, os genitivos, nesse tipo de construção, seguindo a proposta de Grimshaw (1990), são mais modificadores do que argumentos. A possibilidade de realizar os genitivos com uma cópula é também uma evidência em favor do tratamento desses genitivos como adjuntos (GRIMSHAW, 1990; ALEXIADOU; HAEGEMAN; STAVROU, 2007). (5) é um exemplo do inglês e (6), um exemplo do PB: (5) a. John’s dog/ The dog is John’s (GRIMSHAW, 1990, p. 97, ex. (118a)) (6) a. O livro do João/ O livro é do João Note-se que um verdadeiro argumento, nos termos de Grimshaw, não pode ser um predicado: (7) The destruction of the city / *The destruction is of the city (8) A destruição da cidade/ *A destruição é da cidade4 Os mesmos contrastes encontrados no inglês são encontrados no PB, conforme os exemplos (7) e (8) mostram. Observe-se que, excetuando-se o genitivo tema, realizado com um nominal do tipo destruição, de natureza eventiva, os demais genitivos, realizados com nomes do tipo livro e foto podem funcionar como predicados, similar ao que ocorre com casos de adjetivos, os quais são tradicionalmente tratados como adjuntos, como ilustra (9): (9) a. O livro do João/ O livro é do João b. O livro velho/ O livro é velho Um parecerista anônimo aponta que em (8) temos uma construção ambígua. O genitivo da cidade pode ser tanto um complemento (ex.: A destruição da cidade pelos cidadãos é algo incompreensível), quanto um adjunto (ex.: A destruição da cidade sobre o campo está apenas começando) – os exemplos mencionados são do parecerista. Isso indica que “A destruição da cidade” pode ser uma construção aceitável, principalmente se “da cidade” não é lido como tema. 4 480 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 Uma outra evidência em favor do tratamento de genitivos como adjuntos – que será descarta mais adiante – é o fato de que eles não apresentam, contrariamente aos verdadeiros argumentos, uma interpretação semântica específica. Em (10a), o complemento da cidade apresenta uma relação temática específica com o núcleo nominal e só pode ser interpretado como o tema, enquanto que em (10b), do João pode ter pelo menos três possibilidades de interpretação, ou como tema, ou como agente ou como possuidor:5 (10) a. A destruição da cidade b. O livro do João Com base nas propriedades acima destacadas, para as construções de múltiplos genitivos, vamos supor que tais construções sejam casos de construções com múltiplos adjuntos. Assim, uma construção como (11), com um núcleo nominal não-eventivo, apresentaria três adjuntos conforme sinalizado entre colchetes. (11) O quadro [ADJUNTO dos girassóis] [ADJUNTO de Picasso] [ADJUNTO daquele museu] Um caminho para capturar as possibilidades de extração desses genitivos seria assumir uma abordagem como aquela desenvolvida em Avelar (2006). De acordo com a proposta de Avelar, PPs adjuntos de nomes introduzidos pela preposição de no PB são manipulados na sintaxe como verdadeiros DPs, com inserção tardia da preposição de. O autor assume que a adjunção ao DP modificado não precisa ser rotulada, seguindo a proposta de adjunção sem rotulação obrigatória, apresentada em Hornstein e Nunes (2006). Ainda de acordo com a proposta, a extração observada, no PB, de adjuntos adnominais, na forma de de-phrases, se dá no caso em que esses adjuntos são rotulados à estrutura, tornando-se visíveis para operações de movimento. Vejamos o exemplo em (12), retirado de Avelar (2006): Em (10a), da cidade é interpretada como a coisa destruída. Em (10b), João pode tanto ser interpretado como o agente, quem escreveu o livro, ou como o possuidor, o dono do livro, ou, ainda, como o assunto do livro (no caso de o livro ser sobre o João). Ver também nota 4. 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 481 (12) a. Os bombons daquela caixa b. DP DP2 Os bombons NP N aquela caixa (Inserção tardia da preposição de) Para uma estrutura como (12b), o verbo da sentença seleciona DP1 e nenhuma barreira, a princípio, impede o movimento do DP1 ou do DP2 para a periferia da sentença, quando necessário. (13) ilustra um caso de movimento do DP1. (13) a. Qual bombom a criança comeu qual bombom daquela caixa? CP b. Qual bombomi TP vP VP DP1 ..........DP2 Qual bombom daquela caixa Uma vez que o DP2, adjunto, em (13), foi apenas concatenado, não rotulado, a extração do DP1 não viola constituência. (14) ilustra o caso em que o genitivo adjunto, o DP2, é extraído. Note-se que, para ser extraído, a rotulação entre DP1 e DP2 tem de ser estabelecida, para que DP2 esteja visível à operação Mover do sistema computacional. 482 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 (14) a. De qual caixa a criança comeu o bombom de qual caixa? CP b. De qual caixai TP vP VP DP1 DP1 ........ DP2 o bombom de qual caixa Suponhamos, agora, que para nosso exemplo apresentado na introdução e repetido aqui em (15a), assumamos uma estrutura como (15b), tomando os genitivos como adjuntos e assumindo a proposta de adjunção sem rotulação obrigatória: (15) a. Qual livro (que) você leu do Chomsky? CP b. Qual livro TP vP VP DP1 ....... DP2 Qual livro do Chomsky Note-se que um movimento como em (15b) não viola constituência. Para os casos em que DP2 é extraído, podemos pensar que houve rotulação e, uma vez que tal genitivo está na periferia do DP, ele pode ser movido, como mostra (16b). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 483 (16) a. De que autor você leu o livro de que autor? CP b. De que autor TP vP VP DP1 DP1 ........ DP2 o livro de que autor Essa abordagem também permite extrações como a apresentada em (17a), a seguir: (17) a. Qual livro do Chomsky a Maria rasgou qual livro do Chomsky, do João CP b. Qual livro do Chomsky TP vP VP DP3 DP1 ................. do João DP1 ........ DP2 Qual livro do Chomisky (17a) é uma construção com mais de um argumento genitivo (do Chomsky e do João) e, como podemos verificar em (17b), a proposta de adjunção para genitivos, nos termos de adjunção sem rotulação obrigatória, poderia acomodar o fenômeno de extração também quando mais de um genitivo é licenciado. Contudo, algo mais precisa ser dito. Conforme observado para algumas línguas, como o espanhol (TICIO, 2003), o italiano (GIORGI; LONGOBARDI, 1991) e o francês 484 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 (VALOIS, 1996), em construções com múltiplos genitivos, o padrão de extração segue a hierarquia possuidor>agente>tema: apenas o mais proeminente na estrutura pode ser extraído para fora do domínio nominal. Numa abordagem em que esses genitivos sejam tratados como adjuntos e a adjunção é dada sem rotulação obrigatória, parece que, em termos estruturais, nada impede a extração de qualquer dos genitivos. Vejamos a configuração de (18): (18) DP4 (possuidor) DP3 (agente) DP1 g DP2 (tema) NP g N livro (18) ilustra a possibilidade de adjunção dos genitivos à projeção do DP (com base na assunção de Avelar de que em PB, todos os adjuntos adnominais introduzidos por de são adjungidos à projeção DP). Nesse caso, nenhuma ordem é obtida entre os genitivos e a rotulação poderia se dar entre DP1 e qualquer um dos DPs adjungidos a ele. Se este for o caso, precisaríamos dizer algo mais sobre como a gramática opera com um objeto na forma apresentada em (18), a fim de explicar por que apenas o genitivo com interpretação de possuidor pode ser extraído, bloqueando a extração dos demais, como ocorre, por exemplo, no espanhol,6 em construções com múltiplos genitivos. No espanhol, os seguintes exemplos retirados de Ticio (2003) exemplificam essa restrição: (i) a.*¿[De quiénagente] has leído [varios libros tagente [de Juanpossuidor]]? ‘De quem você leu vários livros do João?’ b. ¿[De quiénagente] has leído [varios libros tagente]? ‘De quem você leu vários livros?’ Para explicar a agramaticalidade de (ia), a autora assume que a projeção que hospeda o genitivo possuidor é mais proeminente que a projeção que hospeda o genitivo agente, funcionando como barreira para a extração deste último. Quando o possuidor não está projetado na estrutura (ib), a extração do agente resulta numa sentença gramatical 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 485 Por esse motivo e, principalmente por razões que passaremos a discutir na próxima seção, o tratamento para as construções genitivas como se fossem licenciadas como adjuntos será dispensado em nossa análise. Assim, a seguir, apresentamos a proposta de que os sintagmas genitivos são gerados em posição de Spec de categorias internas ao DP, mostrando que os exemplos de extração que parecem uma violação de constituência podem ser acomodados numa abordagem em que FP, uma projeção funcional acima de DP, é projetada. 3 Genitivos como especificadores Vimos na seção anterior que os genitivos com interpretação de agente e possuidor apresentam propriedades semânticas semelhantes a de adjuntos e não de verdadeiros argumentos do nome. Duas propriedades foram apontadas: a primeira delas foi a possibilidade de realizar os genitivos com uma cópula e a segunda foi o fato de que elas não apresentam, contrariamente aos verdadeiros argumentos, uma interpretação semântica específica. Essas propriedades, no entanto, podem ser tomadas como reflexo das propriedades do domínio em que cada genitivo é gerado, e não reflexo do espanhol. O mesmo tipo de restrição parece ser aplicar para o francês, conforme observado em Valois (1996): (ii) a. *La ville (theme) dont nous désapprouvons [DP l’invasion des bosniaques (agent)] ‘a vila da qual desaprovamos a invasão dos bosnianos’ b. *De qui avez-vous (agent) donné [DP le portrait de ce colectionneur (possessor)] au musée dês Beaux-Arts? ‘De quem você doou o retrato desse colecionador ao Museu de Belas Artes?’ (VALOIS, 1996, p. 369, ex. (54)) O exemplo acima mostra que no francês um genitivo tema não pode ser extraído quando um genitivo agente é realizado (iia) e, da mesma forma, a extração do genitivo agente é bloqueada em (iib) pela presença do possuidor. No PB, um genitivo mais alto na estrutura parece também bloquear a extração de um genitivo mais interno no DP, como sugerem os contrastes em (iii): (iii) a. [possuidor De quem] o João rasgou a foto/as duas fotos [tema do Superman]? a’. *[tema De quem] o João rasgou a foto/as duas fotos [possuidor da Maria]? b. [agente De que fotógrafo] o João rasgou a foto/as duas fotos [tema de um artista famoso]? b’. *[tema De que artista famoso] o João rasgou a foto/as duas fotos daquele fotógrafo? 486 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 do fato de que tais genitivos seriam projetados como adjuntos dentro da construção nominal, como buscaremos argumentar adiante. Assim sendo, o argumento em favor da projeção de genitivos em configuração de adjunção se empobrece. A argumentação de que apenas “verdadeiros argumentos” de N, objetos de nomes como destruição, por exemplo, seguindo a análise de Grimshaw (1990), apresentam uma interpretação semântica delineada, pode ser capturado assumindo-se que apenas este é projetado dentro do domínio temático do DP, mais precisamente o domínio do NP, daí a semântica mais delineada desse constituinte. Por sua vez, a interpretação semântica menos delineada para outros genitivos pode ser capturada assumindo que estes são licenciados fora do domínio temático, gerados no domínio de concordância do DP. A proposta de que apenas o argumento verdadeiro é gerado dentro do domínio temático da construção nominal segue a ideia desenvolvida em Grimshaw (1990) de que apenas nomes de evento/processo projetam uma estrutura argumental licenciando argumentos gramaticais. Assim, como argumento verdadeiro de N, o objeto de um nome com estrutura argumental é licenciado dentro do domínio temático da construção nominal (no domínio mínimo de N) onde recebe seu papel-temático. Em nossa proposta, nomes não-eventivos não projetam estrutura argumental e os genitivos que são licenciados com esse tipo de nome não compõem, portanto, sua estrutura argumental. Esses genitivos são licenciados em termos de papel-temático de forma indireta em relação ao núcleo nominal, sendo projetados no domínio de concordância da construção nominal. Já no tocante à impossibilidade de servirem como predicados em construções de cópula, gostaríamos de sugerir que essa propriedade está relacionada mais com a natureza eventiva do núcleo nominal, do que com a natureza de adjunto do sintagma genitivo. Note-se que não é apenas um verdadeiro argumento que não pode ser utilizado em construção de cópula, como mostra (19), mas todo o DP com o núcleo nominal eventivo: (19) a. *Aquela destruição é de Roma. b. *Aquela é a destruição de Roma. (20) a. Aquele livro é do Chomsky. b. Aquele é o livro do Chomsky. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 487 O contraste entre (19) e (20) sugere que a possibilidade de predicação em construção de cópula parece estar relacionada mais à natureza eventiva do núcleo nominal do que com o tipo de construção genitiva. Enquanto nomes de natureza eventiva não permitem construções com cópula dos tipos apresentados em (19), nomes de natureza nãoeventiva o permitem. Com base nisso, passemos agora a propriedades que sugerem que os genitivos em construções de múltiplos genitivos são licenciados diferentemente de verdadeiros adjuntos. Numa perspectiva comparativa, uma característica interessante apresentada por sintagmas genitivos é que, contrariamente a “adjuntos puros” (URIAGEREKA, 2002), tais construções apresentam marcas de Caso: genitivo em inglês, alemão e grego, por exemplo; dativo ou nominativo em húngaro; dativo em alemão; etc. (cf. ALEXIADOU; HAEGEMAN; STAVROU, 2007, p. 549). Se associamos marcas de Caso a argumentos, da mesma forma em que sujeito e objeto, argumentos do verbo, apresentam tais marcas em línguas de morfologia visível para Caso, então, o fato de que os genitivos possuidor, agente e tema apresentam marcas de Caso pode ser uma evidência de que tais construções sejam licenciadas em especificadores, ou, pelo menos, constitui uma propriedade que diferencia verdadeiros adjuntos de sintagmas genitivos. Isso porque Caso é uma propriedade conferida em configurações específicas na sintaxe (em CHOMSKY, 1995 há uma proposta de que Caso seja licenciado em configuração núcleo-especificador, por exemplo). As construções genitivas também podem ser diferenciadas de “adjuntos puros” no que tange à propriedade de concordância que essas construções apresentam com o núcleo nominal que modificam.7 Em línguas como o húngaro, por exemplo, o padrão de concordância que um genitivo pronominal apresenta com o núcleo nominal é muito similar ao padrão de concordância entre o sujeito e o núcleo de flexão no domínio da sentença, como observam Alexiadou, Haegeman e Stavrou (2007): O termo “adjunto puro” é aqui tomado de Uriagereka (2002), um texto em que o autor observa que típicos adjuntos, entre outras características, não participam de relações de Caso ou de concordância. 7 488 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 (21) a. (én) szeret-0-em 1SG amar-PRES-1SG ‘Eu amo’ b. János szeret-0-0 János amar-PRES-3SG ‘Janos ama’ c. a(z) (én) haz-a-0-m a 1SG casa-POS-SG-1SG ‘a casa’ d. a János haz-a-0-0 the János house-POSS-SG-3SG ‘A casa de Janos’ (ZRIBI-HERTZ, 2003, p. 142, ex. (3) apud ALEXIADOU; HAEGEMAN; STAVROU, 2007, p. 557, ex. (17)) Outra propriedade diz respeito ao fato de que, em línguas como o inglês, as construções genitivas podem ocupar a mesma posição que um verdadeiro complemento do nome. A posição [Spec, DP], no inglês, pode tanto alojar um verdadeiro argumento, como em (22a), ou um genitivo possuidor/agente, como mostra (22b), mas não um típico adjunto (22c): (22) a. Rome’s destruction (the destruction of Rome) ‘A destruição de Roma’ b. John’s car (the car of John) ‘O carro de João’ c. *Chocolate’s cake (chocolate cake) Assim, uma abordagem que trate o genitivo em (22b) como um adjunto e o genitivo em (22a) como um complemento carece de uma explicação para o fato de que ambos possam ser realizados numa mesma posição, contrariamente ao que ocorre com o típico adjunto em (22c). Ainda em relação a uma língua como o inglês, como capturar o fato de que o genitivo em posição pré-nominal não pode co-ocorrer com um determinante, como mostra (23), se assumíssemos que o genitivo é realizado como adjunto do DP? Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 489 (23) a. (*the) John’s car Outra propriedade interessante das construções genitivas é que elas podem entrar em relação de ligação. Observando (24) abaixo, uma construção do italiano com dois genitivos, Giorgi (1991) pontuou que o sintagma di Mario só pode ser interpretado como o agente (o responsável pela descrição) e della propria madre, que contém a anáfora propria, só pode ser interpretado como o tema (o alvo da descrição). (24) a. La descrizione di Marioi della propriai madre ‘A descrição de Mario da própria mãe’ (GIORGI, 1991, p. 30, exemplo (16)) Como de acordo com a Teoria de Ligação (cf. CHOMSKY, 1981) uma anáfora deve estar ligada e, para tal, ser c-comandada por seu antecedente/referente, uma saída óbvia para representar a estrutura em (24), do italiano, seria uma configuração em que di Mario é gerado em posição acima de della propria madre, posição a partir da qual Mario c-comanda a anáfora própria, como ilustrado em (25):8 NP (25) N’ descrizione di Mario della propria madre A impossibilidade de em (25) o sintagma della propria madre ser interpretado como agente e de di Mario ser interpretado como tema decorre do fato de que para tal interpretação della propria madre teria de ser gerado acima do genitivo di Mario e, assim, a anáfora propria não poderia ser ligada por Mario, como ilustrado em (26): É crucial assumir aqui o caráter funcional da preposição que em termos sintáticos parece ter um papel completamente nulo, seguindo análises gerais como as de Chomsky (1986), Giorgi e Longobardi (1991), Valois (1996), Ticio (2003), Avelar (2006), entre muitos outros trabalhos. O caráter nulo da preposição de, pelo menos quando introduz genitivos em PB, reflete o fato de que esta preposição não interfere em relações de c-comando. 8 490 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 (26) *NP N’ descrizione della propria madre di Mario Num exemplo do PB equivalente ao do italiano em (24), como dado em (27), encontramos o mesmo padrão de leitura: (27) A descrição de João da própria mãe (para os colegas) Em (27), João é interpretado como o agente, enquanto da própria mãe é interpretado como tema. Para essa construção, uma leitura em que a mãe do João fez uma descrição dele não é permitida.9 Note-se que, seja qual for a derivação proposta para dar conta de (27), temos de garantir que a anáfora própria seja gerada numa posição a partir da qual esteja ligada por João, ou seja, João tem de c-comandar a anáfora própria. Dessa forma, se a interpretação dos dados é correta,10 construções genitivas no PB podem ser antecedentes para reflexivos dentro do sintagma nominal. A ligação entre um genitivo possuidor ou agente e o genitivo tema é semelhante àquela estabelecida pelo sujeito da sentença que pode ligar o objeto. Dessa forma, se os genitivos possuidor e agente Um parecerista anônimo observa ser possível uma leitura em que “da própria mãe”, num exemplo como o apresentado em (27), possa também ter uma leitura de agente, principalmente se desconsiderarmos a construção “para os colegas”. Em relação a esse ponto, observamos que o melhor contexto para a leitura de [a própria mãe] como agente seria aquele em que esse sintagma fosse encabeçado pela preposição por (ex.: a descrição do João pela própria mãe). Concordamos, contudo, que possa haver sim a leitura agentiva para a própria mãe em exemplos como em (27), algo para o qual precisamos retornar com mais cuidado. De acordo com a nossa intuição, a leitura imediata é a de tema para [a própria mãe] e isso precisa ser melhor investigado, recorrendo-se, por exemplo, a julgamentos de mais falantes do PB. Na leitura de agente para [a própria mãe], sendo própria uma anáfora para João, o agente a própria mãe deveria ser c-comandado por João, o tema. Logo, o tema deveria ser licenciado numa posição mais proeminente na estrutura do que o agente. Essa possibilidade deixamos em aberto devido à necessidade de se recorrer a mais julgamentos sobre a leitura desse tipo de construção. 10 Ver nota anterior. 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 491 são gerados em posição de Spec, como propomos aqui, a ligação do genitivo tema pode ser obtida. Centrado agora mais precisamente nos dados do PB, uma evidência interessante é fornecida a partir da extração de ilhas fracas. Como (27), a seguir, mostra, no PB, a clássica assimetria entre a extração de argumentos e adjuntos a partir de ilhas fracas é obtida. De acordo com o que foi observado na literatura sobre esse fenômeno, a extração de um argumento, a partir de uma ilha fraca, é melhor que a extração de um adjunto, como mostrado a seguir. (27) a. Com quem você não acha que o João falou com quem? b. ??Como você não acha que o João falou com a Maria como? (27) são casos de extração a partir de contextos de ilhas fracas, mais precisamente, ilhas de negação. Enquanto que, em (27a), a extração do argumento que está na sentença encaixada para o início da sentença matriz resulta numa construção aceitável no PB, a extração do adjunto da sentença encaixada para a periferia esquerda da sentença matriz em (27b) é agramatical. Interessantemente, o resultado da extração de construções genitivas em contextos de ilhas fracas em (28) é semelhante ao resultado obtido com a extração de argumentos em (27): (28) a. De que pessoa/De que autor você não acha que o João rasgou o livro De que pessoa/De que autor? b. De qual medicamento você não acha que o governo proibiu a venda de qual medicamento? Comparando os dados de (27) com os dados de (28), vemos que o comportamento sintático de construções genitivas, em relação ao fenômeno da extração a partir de contexto de ilha fraca, difere do padrão encontrado para verdadeiros adjuntos e se assemelha ao comportamento de extração para argumentos. Em suma, as propriedades observadas nesta seção parecem desfavorecer o tratamento das construções genitivas como construções adjuntas. Além disso, vimos também que a adoção de uma teoria como a apresentada em Avelar (2006), para os casos de extração de adjuntos adnominais introduzidos por de, não se apresenta adequada para o 492 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 tratamento das construções com múltiplos genitivos. Se as construções com múltiplos genitivos fossem tratadas como casos de múltiplos adjuntos, algo mais teria de ser dito sobre o funcionamento da gramática, no que diz respeito à forma como esses adjuntos seriam organizados na estrutura, a fim de acomodarmos, por exemplo, o padrão de extração verificado nas línguas naturais. 4 A projeção FP nas construções nominais Descartando o tratamento de adjunto para as construções de múltiplos genitivos, e, assim, descartando uma proposta de adjunção sem rótulos para tais construções, passemos, a seguir, a um outro viés pelo qual poderíamos manter nossa análise sem a postulação de uma projeção FP: a proposta de extraposição do genitivo. Como colocamos na introdução, a derivação para a construção em (29), de acordo com a proposta aqui delineada, é apresentada em (30): (29) Que livro (que) você leu do Chomsky? (30) CP DP1 Que livro TP vP VP v FP do Choomsky F’ DPi do Choomsky Que D’ NP N livro Como mostra (30), o genitivo é alçado para a posição [Spec, FP] e, em seguida, o DP é alçado para a periferia esquerda da sentença, resultando em construções como em (29). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 493 Uma análise de movimento do material que “sobra”, após o movimento do PP genitivo, é apresentada para o PB em Bastos (2006), mas de forma diferente da aqui proposta. A autora argumenta a favor de uma extraposição do PP que pode se dar à direita ou à esquerda da construção nominal, de forma que as ordens de constituintes apresentadas em (31) sejam ordens previstas no PB: (31) a. O João riscou de Van Gogh quantas pinturas? b. O João riscou quantas pinturas de Van Gogh? (BASTOS, 2006, p. 14, ex. (52)) De acordo com a autora, as ordens (31a) e (31b) são resultados de extraposição do PP, como mostra (29a) e (29b): (32) a. [CP ... [V PP [DP WH N tPP]] b. [CP ... [V [DP WH N tPP] PP] De acordo com (32), o PP sai da construção nominal, num movimento ou à esquerda (32a), ou à direita (32b). Para mostrar que em (32b) o PP de Van Gogh não está in situ, Bastos apresenta dados em que um advérbio como ontem pode aparecer entre quantas pinturas e de Van Gogh, como em (33): (33) O João riscou quantas pinturas ontem de Van Gogh? A presença do advérbio, em (33), indica que houve movimento do objeto para uma posição acima de VP. Contudo, temos de assumir que esse movimento foi precedido por um movimento do PP de Van Gogh, permitindo que o material remanescente dentro do DP (quantas pinturas) fosse posteriormente movido, assim, sem violação de constituência. Da mesma forma, o advérbio ontem aparece em posição similar para a ordem de (32a), caso em que, na proposta de Bastos, corresponde à extraposição do PP à direita. (34) O João riscou de Van Gogh ontem quantas pinturas? O fenômeno de extraposição à direita do PP, como propõe Bastos para (34), remete ao modelo da teoria gerativa padrão (ROSS, 1967; ROSENBAUM, 1967; CHOMSKY, 1977), em que exemplos do inglês, 494 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 como em (35b), eram tidos como resultados de regras transformacionais aplicadas pela gramática, as quais moviam o PP para o final da sentença. (35) a. A review of this article came out yesterday. ‘Uma resenha desse artigo apareceu ontem’ b. A review came out yesterday of this article. ‘Uma resenha apareceu ontem desse artigo’ (ROSS, 1986, p. 176, ex. (5.45)) Com o advento da proposta de Kayne (1994), na qual o fenômeno de adjunção à direita é banido da gramática (ver também ZUART, 1992 apud BÜRING; HARTMANN, 1995; FUKUI; TAKANO, 1998), o fenômeno da extraposição tem sido reinterpretado sob formas alternativas que descartam a possibilidade de movimento à direita (ver, por exemplo, KASAI (2008) e trabalhos ali citados). Seguindo a intuição desses trabalhos, descartamos um movimento como em (32b), como proposto por Bastos-Gee (2006) para o PB, e argumentamos que os casos de aparente extraposição do PP são casos em que este constituinte se encontra na posição [Spec, FP]. Assim, reinterpretando os dados apresentados em Bastos, repetidos aqui em (36), a derivação se dá como ilustrado em (37). (37a) é a derivação de (36a) e (37b) é a derivação de (36b).11 (36) a. O João riscou de Van Gogh (ontem) quantas pinturas? b. O João riscou quantas pinturas (ontem) de Van Gogh? (37) a. [CP ... [ZP PPi [VP adv[VP V [FP PP [DP WH N PPi]]]]]] b. [CP ... [ZP DPi [VP adv[VP V [FP PPi [DPi WH N PPi]]]]]] Omitimos demais operações em (37), como o movimento do verbo, focando apenas no movimento do PP. 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 495 Para a derivação de (36a), uma vez que o genitivo de Van Gogh é alçado para a periferia da construção nominal, para a posição [Spec, FP], ele é em seguida alçado para uma posição mais alta na estrutura e, assim, casos em que um advérbio como ontem aparece entre Van Gogh e quantas pinturas são resultantes de uma configuração como (37a). Por sua vez, em (36b) o genitivo é primeiramente alçado para [Spec, FP], lá permanecendo, e o DP remanescente é alçado para uma posição acima de VP. Com a postulação de uma projeção como FP, no topo da construção nominal, nossa análise permite acomodar os dados do PB de aparentes casos de extraposição do PP, sem, contudo, propor um deslocamento à direita. Dessa forma, a análise aqui proposta torna desnecessária a postulação de operações de adjunção à direita pela gramática e se adéqua a uma teoria de gramática como a proposta em Kayne (1994).12 Para a existência de uma projeção acima de DP, tal como estamos assumindo aqui, Grohmann (2003) argumenta que essa é a projeção que hospeda sintagmas possuidores topicalizados, dentro de construções nominais, em línguas como o holandês, o flamengo do oeste e certos dialetos do norueguês (projeção denominada TopP, pelo autor). De acordo com o autor, o deslocamento dos possessivos dentro da construção nominal, nessas línguas, apresenta similaridades entre a construção nominal e o domínio da sentença, fato que favorece um paralelismo entre o domínio da sentença e o domínio nominal. Se o domínio da sentença parece projetar uma categoria como TopP, como propõe Rizzi (1997), para hospedar constituintes topicalizados, não seria uma surpresa se no domínio do DP, que apresenta uma arquitetura semelhante à da sentença, a categoria Top fosse projetada. De fato, Grohmann mostra convincentemente que no holandês e no flamengo do oeste o tipo de topicalização encontrado no domínio nominal apresenta os mesmos efeitos de “anti-localidade” observados em construções de topicalização no domínio da sentença. Um parecerista anônimo observa que a postulação de uma nova categoria funcional compromete a ideia minimalista de gramática. Nesse caso, estaríamos maximizando algum componente da Faculdade da Linguagem. Particularmente, estaríamos ampliando o léxico com a postulação de uma “nova” categoria funcional. De fato, o enxugamento seria no sistema computacional, com a exclusão de uma operação de adjunção à direita. 12 496 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 A análise de Grohmann é centrada em construções de duplicação do possessivo prenominal em línguas germânicas, observando de que forma sua teoria de anti-localidade se aplica. Em termos descritivos, como observa o autor, uma construção com duplicação do possuidor é uma expressão nominal complexa que contém um sintagma possuidor, um pronome possessivo prenominal (que corresponde à duplicação do possuidor) e o núcleo nominal em si, N, que representa o possuído. Grohmann oferece uma estrutura como (38) para tais construções: (38) [DP POSS PRON NP] (GROHMANN, 2003, p. 202, ex. (8)) Exemplos dessas construções são dados em (39) a (41): (39) [meiner Cousine aus Griechenland] ihre Show A prima da Grécia dela show ‘O show da minha prima da Grécia’ (Holandês) (40) [men zuster ut Gent] euren boek Minha irmã de Gante dela livro ‘o livro da minha irmã de Gante’ (West Flemish) (41) [vår kollega fra Tromsø] sine vurderinger Nosso colega de Tromso REFL julgamentos ‘Os próprios julgamentos do nosso colega de Tromso’ (Norueguês) (GROHMANN, 2003, p. 205-206, ex. (15a), (16a) e (17a)) Conforme os dados de (39) a (41) mostram, a relação entre o possuidor e o pronome possessivo pode ser assumida como uma relação de resumpção. O pronome “copia” o DP possuidor à esquerda na construção nominal. De acordo com Grohmann (2003), o fenômeno da duplicação observado nessas línguas se dá devido à atuação do efeito de “anti-localidade” que, como efeito drástico na interface fonética da Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 497 gramática, faz com que ambas as cópias (possuidor e pronome possessivo) sejam foneticamente realizadas. Esse efeito é obtido porque o possuidor realiza um movimento dentro do limite do domínio de concordância do DP (movimento interno a um mesmo domínio prolífico). Línguas como o holandês e o flamengo do oeste, além de apresentarem o fenômeno de duplicação do possuidor, também permitem que tal constituinte seja deslocado para a periferia esquerda da construção nominal. Esse fenômeno é ilustrado a seguir:13 (42) Verhosfstadt den dienen zen fouten Verhosfstadt RP seus erros ‘Os erros de Verhosfstadt’ (Flamengo do oeste) (43) (der) Merkel der ihre Fresse a.DAT Merkel RP dela caneca ‘A caneca de Merkel’ (Holandês) (GROHMANN, 2003, p. 216, ex. (50) e (51)) A derivação de (42) e (43) é ilustrada em (44): (44) [ToP POSS Topº [DP POSS → RP Dº [AgrP POSS Agrº [PossP POSS → PRON Possº [NP …]]]]]] O movimento que POSS realiza dentro do mesmo domínio de concordância, da posição de [Spec, PossP] para [Spec, AgrP] faz com que a cópia em [Spec, PossP] seja pronunciada na forma pronominal zen, como em (42). Da mesma forma, dentro do domínio discursivo, o movimento seguido que POSS realiza da posição [Spec, DP]14 para RP é usado em Grohmann (2003) para indicar o pronome resumptivo. É imperativo pontuar que, na análise de Grohmann (2003), DP é uma categoria projetada no domínio discursivo da construção nominal. Assim sendo, o movimento de POSS de [Spec, DP] para [Spec, TopP], na análise do autor, se dá dentro de um mesmo domínio prolífico (o discursivo), daí o efeito de output observado em FF: a cópia de POSS em [Spec, DP] é pronunciada na forma de pronome resumptivo. 13 14 498 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 [Spec, TopP], faz com que a cópia em [Spec, DP] seja pronunciada na forma do resumptivo, den dienen em (42). A cópia mais alta de POSS corresponde a Verhofstadt. A postulação de uma projeção como TopP no topo da construção nominal permite Grohmann acomodar os casos de deslocamento à esquerda do possessivo, bem como explicar o fenômeno da duplicação que ocorre com a presença de um resumptivo, atrelada a sua teoria de anti-localidade. De forma similar à proposta de Grohmann (2003), Giusti (1996) propõe que o fenômeno da duplicação do possessivo em línguas germânicas pode ser comparado ao fenômeno de deslocamento à esquerda do clítico, em línguas românicas, sugerindo que, da mesma forma que um constituinte topicalizado ocupa a posição de TopP, nas línguas românicas, o possuidor prenominal, em construções de duplicação de possessivo, ocupa a posição [Spec, TopP] (cf. HAEGEMAN, 2004, p. 229). Outra evidência para a existência de uma projeção acima de DP provém da comparação entre contrastes de extração de DPs possessivos prenominais entre línguas germânicas, de um lado, que não permitem tal extração, e línguas como o húngaro e o grego moderno que a permitem. Tanto línguas germânicas (45), quanto o húngaro (46), por exemplo, podem realizar um DP possessivo precedendo o artigo: (45) Flamengo do oeste Da zyn Valère de zyne. Aquele são Valère o dele ‘Aqueles são de Valère’.’ (HAEGEMAN, 2004, p. 214, ex. (7)) (46) Húngaro Mari-nak a kalap-já Mari-DATIVO o chapéu-3SG ‘O chapéu de Mari’ (ALEXIADOU; HAEGEMAN; STAVROU, 2007, p. 135, ex. (105)) A realização do possuidor precedendo o artigo, nos exemplos acima, sugere que tal constituinte seja gerado em [Spec, DP], como tem sido assumido, por exemplo, em Szalbocsi (1994). Apesar de em ambas Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 499 as línguas, flamengo do oeste e húngaro, o possuidor ocupar a posição [Spec, DP], apenas nesta a última a extração do possuidor é possível: (47) Húngaro Ki-nekk ismer-té-tek [DP tk a vendég-é-Ø-t]? Quem-DAT conhecer-PAS-2PL o convidado-POS-3SG-AC ‘De quem você conheceu o convidado?’ (GRAVUSEVA (2000), p. 744, ex. (1c)) (48) Flamengo do oeste *Wiensen ee-j gie boek gelezen? De quem teve-você você livro ler ‘De quem você leu o livro?’ (HAEGEMAN, 2004, p. 212, ex. (2c)) De acordo com a análise desenvolvida em Gravuseva (2000), a possibilidade de extração do possuidor está relacionada à disponibilidade do movimento desse constituinte para a posição [Spec, DP]. Ou seja, uma vez que o possuidor estiver em [Spec, DP] ele pode ser extraído para fora do domínio nominal. Essa proposta de Gravuseva (2000) captura a intuição por trás das análises que assumem que, para ser movido para fora de um DP, um constituinte tem de se encontrar na margem da construção nominal (cf. GIORGI; LONGOBARDI, 1991). Se a análise da autora estiver correta e assumindo que o possuidor prenominal no flamengo do oeste se encontra em [Spec, DP], como o dado em (45) sugere, a impossibilidade de extração em (48) carece de explicação. Haegeman (2004) parte da proposta de Gravuseva (2000) para argumentar a favor da existência de uma projeção acima de DP, uma posição de natureza A’, para onde possuidores extraíveis são alçados. Discutindo o contraste entre línguas que permitem a extração do possuidor e línguas que não a permitem, a autora observa que a possibilidade de extração de um possuidor está relacionada à posição periférica que esse constituinte ocupa dentro da construção nominal. Assim, em línguas germânicas, que não permitem a extração do possuidor prenominal, este se encontra em [Spec, DP], posição não periférica da construção nominal, uma vez que há outra categoria projetada acima de DP. 500 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 Por outro lado, em línguas como o grego moderno e o húngaro, por exemplo, que permitem extração do possuidor prenominal, este é alçado para uma posição acima de [Spec, DP], posição a partir da qual pode ser extraído. Os dados em (49) e (50), a seguir, ilustram o contraste entre esses dois tipos de línguas: (49) Línguas germânicas [FP [DP possuidori [D’ pronomei [IP ... [NP]]] (50) Húngaro [FP possuidor [DP [D’ az [IP ... [ NP]]] (HAEGEMAN, 2004, p. 238, ex. (69)-(70)) A postulação de uma projeção acima de DP, representada por FP nos exemplos (49) e (50), permite acomodar o fato de que tanto em húngaro quanto em línguas germânicas existe a possibilidade de um possuidor ser realizado numa posição acima daquela onde o determinante é projetado, ao mesmo tempo em que permite capturar a assimetria de extração desse possuidor prenominal entre essas línguas: no húngaro, o possuidor se encontra na margem da construção nominal [Spec, FP], posição a partir da qual pode ser extraído (cf. (50)), enquanto em línguas germânicas, o possuidor prenominal se encontra em numa posição mais interna [Spec, DP] não sendo possível a sua extração para fora do domínio nominal, FP funcionando como uma barreira. Haegeman (2004) observa que os possuidores prenominais em línguas como o húngaro e o grego, que permitem sua extração, apresentam características de elementos projetados em posições A’: em húngaro, o dativo prenominal ocupa a mesma posição para onde elementos wh dentro do nominal são movidos; em grego, o possessivo prenominal recebe uma leitura de foco. Já no caso de línguas germânicas, o possuidor prenominal não recebe nenhuma leitura de foco ou de ênfase contrastiva, indicando que provavelmente ocupa posição distinta daquela ocupada por possuidores prenominais do húngaro e do grego. Assim, a postulação de uma projeção acima de DP, como uma projeção cujo Spec se caracteriza como uma posição A’, que acomoda elementos relacionados com leitura de foco, por exemplo, além de ser empiricamente motivada, dado o contraste observado entre o húngaro Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 501 e o holandês, do ponto de vista teórico permite explicar o fato de que apesar de o húngaro e o holandês apresentarem possuidores prenominais, apenas em húngaro a extração é possível, tendo em vista que o possuidor prenominal ocupa posições distintas nessas línguas. Ainda, a projeção de uma posição A’ dentro do domínio nominal para hospedar possíveis constituintes focalizados, por exemplo, como parece ser o caso do grego, é um resultado desejável, uma vez que assumimos que a estrutura do DP é paralela à estrutura da sentença. Voltemos ao caso particular do PB. Na proposta aqui delineada, nos casos em que o nome modificado é movido, deixando a construção genitiva para trás, como em (51b), a seguir, houve um movimento prévio do genitivo para [Spec, FP], seguido do movimento do nome modificado para uma posição acima de VP. Disso decorre que, apesar de o genitivo em (51a) e em (51b) parecerem estar numa mesma posição, apenas em (51a) ele estaria na posição em que foi gerado. (51) a. A Maria leu o livro do Chomsky. b. A Maria leu o livro ontem do Chomsky. Diferenças de leitura em relação a propriedades de foco sugerem que de fato do Chomsky, em (51a), está numa posição diferente da que aparece em (51b), validando nossa proposta de movimento do genitivo para [Spec, FP], no caso de (51b). Em ambos os exemplos, o genitivo (do Chomsky) é o último elemento à direita na sentença. Conforme os dados em (52) mostram, em (52a), mas não em (52b), o genitivo pode receber leitura de foco: (52) Pergunta: De que autor a Maria leu o livro ontem? a. R1: A Maria leu o livro do Chomsky (ontem). b. R2: #A Maria leu o livro ontem do Chomsky.15 Em línguas como o português, a posição natural para a ocorrência de um constituinte focalizado é a posição mais encaixada na estrutura, a periferia direita da sentença (cf. MENUZZI; MIOTO 2006; COSTA, Esse tipo de sentença em (52b) é aceitável em contextos nos quais o foco recai sobre o advérbio ontem: Pergunta – Quando a Maria leu o livro do Chomsky? Resposta – A Maria leu o livro ontem do Chomsky, ou, ainda, A Maria leu ontem o livro do Chomsky. 15 502 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 1998). Note-se que, apesar de, tanto em R1, quanto em R2, o genitivo ser realizado na posição da periferia direita da sentença, apenas em R1 esse constituinte pode receber leitura de foco, como mostra o contraste em (52). Esse contraste pode ser naturalmente capturado se atribuirmos a diferença de leitura a posições diferentes que o genitivo ocupa em cada uma delas. No caso de R1, o genitivo está na posição de base, em que foi gerado, posição mais encaixada na estrutura (complemento de V), podendo, assim, receber leitura de foco. Por outro lado, em R2, o genitivo foi movido para [Spec, FP], permitindo o posterior movimento de o livro e, nesse caso, a leitura de foco não está disponível. Se esta análise estiver correta, podemos pensar que o movimento do genitivo para [Spec, FP], em R2, se deve a uma “defocalização” do genitivo,16 nos termos sugeridos por Costa (1998) para casos de scrambling do objeto no português. 5 Considerações finais Com a discussão apresentada neste artigo, buscamos mostrar que a postulação de uma projeção funcional acima de DP é não só empiricamente adequada para dar conta do contraste de extração de elementos prenominais, verificado entre línguas como o húngaro e o holandês, por exemplo, como também nos permite acomodar o fato de que elementos licenciados em posição pré-determinante, em línguas como o grego, apresentem informações de caráter discursivo, mas não em línguas germânicas (cf. HAEGEMAN, 2004). Uma vez que os possuidores prédeterminantes, no húngaro e no grego, ocupem a posição A’ de [Spec, FP], mas em línguas germânicas ocupem [Spec, DP], as propriedades contrastivas entre essas línguas são naturalmente acomodadas. Mais precisamente, em relação ao PB, a existência da projeção FP, acima de DP, nos permite acomodar propriedades sintáticas de deslocamento, Costa (1998) observa que em português europeu existe scrambling do objeto com vistas a uma “defocalização” desse constituinte quando um advérbio como bem é realizado depois do objeto. A abordagem adotada em Costa é baseada no trabalho de Cinque (1993) de acordo com o qual a leitura de foco recai sempre no constituinte mais encaixado na sentença. No nosso caso, sugerimos que a diferença entre R1 e R2 se deve à diferente posição que o genitivo ocupa na sentença. 16 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 503 verificadas em casos de movimento “parcial” da construção nominal, como o movimento do nome modificado em (51b). Do ponto de vista teórico, a projeção de FP nos permite manter uma análise para a extração de PPs no PB lançando mão de apenas uma única restrição da gramática, a restrição de Localidade. Ainda, se uma teoria como a de Kayne (1994) é relevante para a gramática, nossa análise, que propõe o encalhamento do genitivo em [Spec, FP], em vez de sua extraposição à direita, se torna mais adequada. Com o estudo aqui apresentado, acreditamos que os pontos explorados possam servir para um campo de estudo que tem se mostrado bastante promissor na área dos estudos formais, que é o da cartografia da sintaxe. Mais especificamente, as questões aqui apresentadas podem contribuir para o estudo da cartografia das estruturas nominais do PB, algo ainda muito pouco explorado. Agradecimentos Agradecemos imensamente aos pareceristas anônimos deste artigo pelas valiosas sugestões e provocações apresentadas. Buscamos incorporar nesta versão final muito do que foi sugerido, no entanto, outras questões para as quais não pudemos retornar com afinco servirão para o desenvolvimento de trabalho futuro. Agradecemos, sobretudo, pelas referências sugeridas, pela reflexão sobre os dados aqui apresentados, bem como por apontarem falhas que precisaram ser, e na medida do possível foram, em sua maioria, corrigidas. Referências ALEXIADOU, A.; HAEGEMAN, L.; STAVROU, M. Noun Phrase in the Generative Perspective. Berlin: Mouton de Gruyter, 2007. (Studies in Generative Grammar, 71) DOI: https://doi.org/10.1515/9783110207491 AVELAR, J. O. de. Adjuntos adnominais preposicionados no português brasileiro. 2006. Tese (Doutorado) – UNICAMP, Campinas, 2006. BASTOS-GEE, A. Discontinuous Wh-Constituents in Brazilian Portuguese. In: CAMACHO et al. (Ed.). Selected Papers from the 36th Linguistic Symposium on Romance Languages (LSRL). New Brunswick: John Benjamins Publishing Company, 2006. p. 29-42. 504 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 BÜRING, D.; HARTMANN, K. All Right! In: LUTZ, U.; PAFEL, J. (Ed.). On Extraction and Extraposition in German. Amsterdam: John Benjamins, 1995. CHOMSKY, N. Knowledge of Language: Its Nature, Origin and Use. London: Praeger Publishers, 1986. CHOMSKY, N. Lectures on Government and Binding. Dordrecht: Foris publications, 1981. CHOMSKY, N. On Wh Movement. In: CULICOVER, P. W.; WASOW, T.; AKMAJIAN, A. (Ed.). Formal Syntax. New York: Academic Press, 1977. p. 71-132. CHOMSKY, Noam. The Minimalist Program. Cambridge, MA: MIT Press, 1995. CINQUE, G. A Null Theory of Phrase and Compound Stress. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 24, n.2, p. 239-297, 1993. COSTA, J. Word Order Variation: A Constraint Based Approach. Haia: Holland Academic Graphics, 1998. FUKUI, N.; TAKANO, Y. Simmetry in Syntax: Merge and Demerge. Journal of East Asian Linguistics, [S.l.], v. 7, n.1, p. 27-86, 1998. GIORGI, A.; LONGOBARDI, G. The Syntax of Noun Phrases. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. GIORGI, A. On NPs, θ-Marking and C-Comand. In: GIORGI, A.; LONGOBARDI, G. The Syntax of Noun Phrases. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. GIUSTI, G. Is There a TopP and a FocP in the Noun Phrase? University of Venice Working Papers in Linguistics, Venice, v. 6, n. 1, p. 105-128, 1996. GRAVUSEVA, E. On the Syntax of Possessor Extraction. Lingua, [S.l.], v. 110, n. 10, p. 743-772, 2000. GRIMSHAW, J. Argument Structure. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1990. GROHMANN, K. Prolific Domains: On the Anti-Locality of Movement Dependencies. Amsterdam: John Benjamins, 2003. DOI: https://doi. org/10.1075/la.66 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 505 HAEGEMAN, L. DP-Periphery and Clausal Periphery: Possessor Doubling in West Flemish. In: ADGER, D.; De CAT, C.; TSOULAS, G. Peripheries: Syntactic Edges and Their Effects. Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 2004. p. 211-240. DOI: https://doi.org/10.1007/14020-1910-6_9 HORNSTEIN, N.; NUNES, J. Adjunction, Labeling and Bare Phrase Structure. Biolinguistics, Oxford, v. 2, n. 1, p. 57-86, 2008. HORNSTEIN, N.; NUNES, J. Some Thoughts on Adjunction. Maryland: College Park; Universidade de Maryland, 2006. Texto não publicado. Disponível em: <http://linguistica.fflch.usp.br/sites/linguistica.fflch. usp.br/files/u89/2009%20Hornstein%20%26%20Nunes%20Some%20 Thoughts%20on%20Adjunction.pdf>. Acesso em: jun. 2018. KASAI, H. Linearizing Rightward Movement. In: WEST COAST CONFERENCE ON FORMAL LINGUISTICS, 26th., 2008, Somerville. Proceedings… Somerville, MA: Cascadilla, 2008. p. 315-323. KAYNE, R. The Antisymmetry of Syntax. Cambridge, MA: The MIT Press, 1994. MENUZZI, S. M.; MIOTO, C. Advérbios monossilábicos pós-verbais no PB: sobre a relação entre sintaxe e prosódia. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 211-244, 2006. DOI: https:// doi.org/10.17851/2237-2083.14.2.211-243 RIZZI, L. The finite structure of the left periphery. In: HAEGEMAN, L. (Ed.). Elements of Grammar: Handbook of Generative Syntax. Dordrecht: Kluwer, 1997. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8_7 ROSENBAUM, P. S. The Grammar of English Predicate Complement Constructions. Cambridge, MA: The MIT Press, 1967. ROSS, J. R. Constraints on Variables in Syntax. 1967. Dissertation (Ph.D) - Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1967. ROSS, J. R. Infinite Syntax. Norwood: Ablex, 1986. SEDRINS, A. P. Restrição de extração de argumentos e adjuntos de nome no português brasileiro. 2009. 214f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2009. 506 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 475-506, abr./jun. 2019 SZALBOCSI, A. The Noun Phrase. In: KIEFER, F.; KISS, K. E. (Ed.). The Syntactic Structure of Hungarian. San Diego: Academic Press, 1994. p. 179-274. (Syntax and Semantics, 27). TICIO, M. E. On the Structure of DPs. 2003. Dissertation (Doctoral) – University of Connecticut, Connecticut, 2003. URIAGEREKA, J. Pure Adjuncts. In: CONGRESO DE GRAMÁTICA GENERATIVA, 11., 2002, Zaragoza. Actas… Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2002. VALOIS, D. On the Structure of the French DP. Canadian Journal of Linguistics, [S.l.], v. 41, n. 4, p. 349-375, 1996. ZRIBI-HERTZ, A. On the Asymmetrical But Regular Properties of French Possessive DPs. In: COENE, M.; D’HULST, Y. (Ed.). From NP to DP: The Expression of Possession in Noun Phrases. Amsterdam, Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2003. p. 141-163. DOI: https://doi.org/10.1075/la.56.10zri ZWART, C.J-W. Dutch Expletives and Small Clause Predicate Raising. In: NORTH EAST LINGUISTIC SOCIETY, 22., 1992, Amherst, MA. Proceedings… Amherst, MA: University of Massachusetts; GLSA Publications, 1992. p. 477-491. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 A intensificação de adjetivos: fatores contextuais Intensification of adjectives: contextual factors Luisandro Mendes de Souza Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil luisandro.mendes@ufrgs.br Resumo: Este artigo discute a intensificação de adjetivos graduais modificados por muito a partir de uma abordagem referencial do significado. Assumindo a proposta que estipula que temos entidades de tipo <d> no modelo (von STECHOW, 1984; KENNEDY, 1997, 2007; KENNEDY; McNALLY, 2005a, entre outros), argumentamos que, em português brasileiro, há anomalias semânticas na combinação de muito com adjetivos absolutos de grau máximo, como previsto pela literatura. Contudo, nos casos em que a modificação é possível, isso se deve a dois fatores: ou o grau máximo é um padrão funcional convencionalizado, ou o padrão de comparação é intensional, seguindo a hipótese de Toledo e Sassoon (2011), para quem adjetivos absolutos têm classe de comparação intensional, em oposição à classe de comparação extensional dos adjetivos relativos. Por fim, propomos que muito A pressupõe que todos os indivíduos a quem a predicação se aplica sejam A, e que a identificação de um grau máximo como uma função total dos absolutos de grau máximo tem características de uma implicatura. Palavras-chave: semântica; pragmática; adjetivos graduais; modificadores graduais. Abstract: This paper discusses the intensification of gradable adjectives modified by muito ‘very’ using a referential approach to semantics. Assuming an approach which stipulates that there are entities of type <d> in the model (von STECHOW, 1984; KENNEDY, 1997, 2007; KENNEDY; McNALLY, 2005a, among others), we argue that in Brazilian Portuguese anomalies can be seen in the combination of muito with absolute gradable adjectives of maximum standard, as foreseen by the literature. However, in the cases in which the modification is possible, this can be related to two factors: or the maximum degree is a conventionalized functional standard, or the standard is intentional, according to the hypothesis of Toledo and Sassoon (2011), to whom absolute eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.507-547 508 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 adjectives have an intentional class of comparison, against the extentional comparison class of the relative adjectives. Lastly, we propose that muito A presupposes that all the individuals to whom the predication applies are A and that the identification of a maximum degree as a total function in the case of absolutes with a maximum standard has features of an implicature. Keywords: semantics; pragmatics; gradable adjectives; degree modifiers. Recebido em 09 de setembro de 2018 Aceito em 10 de janeiro de 2019 Introdução A discussão sobre a modificação adjetival no português brasileiro a partir de uma abordagem formal do significado ainda é insipiente. Trabalhos como Guimarães (2007) ou Quadros Gomes (2011, 2012, entre outros) descrevem alguns aspectos de modificadores como muito, bem, todo, etc., particularmente as suas distribuições sintáticas e suas interpretações, sem, no entanto, avançar muito na caracterização formal desses modificadores. Na Semântica Formal, o significado linguístico pode ser entendido como as condições para que uma sentença seja considerada verdadeira (condições de verdade). A fórmula T, nomeada a partir do lógico Alfred Tarski (1901-1983), que a idealizou, resume a essência da abordagem. Exemplificando, a oração A neve é branca é verdadeira se e somente se “A neve é branca”, na qual a expressão em itálico é a nossa língua objeto, e a expressão entre aspas duplas é a nossa metalinguagem. Para evitar a circularidade de usar como metalinguagem a nossa própria língua objeto (entre outros problemas, como a vagueza), os lógicos e semanticistas vêm utilizando uma linguagem simbólica para representar a contribuição dos elementos linguísticos para o significado da oração, além de sempre ter como norte o princípio de composicionalidade fregueano, que afirma que o significado do todo é função da soma do significado das partes e o modo como se combinam.1 Para mais detalhes, ver Pires de Oliveira (2001); Chierchia (2003); Cançado (2008); e referências lá citadas. 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 509 Procurando aprofundar formalmente os estudos já feitos sobre a modificação adjetival por graduadores, nosso objetivo principal será discutir mais detidamente a contribuição composicional de muito na modificação de adjetivos graduais, tais como alto, gordo, reto, cheio etc. Particularmente, queremos verificar se a interpretação dessa modificação é a mesma para todas as subclasses desse tipo de adjetivo. Adjetivos não graduais, por sua vez, não são passíveis de sofrer o mesmo tipo de modificação (cf. retangular, atômico, grávida, etc. são alguns exemplos típicos). Recentemente, alguns autores propuseram que os adjetivos graduais podem ser divididos em duas classes: os relativos e os absolutos (KENNEDY; McNALLY, 2005a; ROTSTEIN; WINTER, 2004, entre outros). Os exemplos típicos podem ser vistos a seguir: (1) a. O João é alto. b. A toalha está suja. c. A toalha está limpa. Do nosso ponto de vista, devemos nos perguntar como o mundo tem que ser para que (1a) seja verdadeira. A paráfrase comumente assumida para (1a) é a seguinte: [[O João é alto]] é uma sentença verdadeira se e somente se (sse) “o grau de altura que João exibe excede o padrão para um indivíduo ser considerado alto no contexto de proferimento”. Aqui, introduzimos uma notação importante: o que consta entre os colchetes duplos [[ ]], a função de interpretação, é a nossa língua objeto, e o que está entre aspas duplas é a metalinguagem – que será entendida como uma hipótese sobre o significado da expressão. O trabalho do semanticista formal, então, será traduzir essa hipótese para uma linguagem simbólica que possa ser controlada e definida com precisão – tradicionalmente se utiliza o Cálculo de Predicados. Assumindo que o DP sujeito denota um indivíduo, e que o verbo de ligação é vazio (por simplicidade), a pergunta fundamental é: o que denota o predicado alto? Vamos assumir, neste trabalho, a perspectiva de que adjetivos graduais denotam relações entre indivíduos e graus. Assim, [[alto]] = ALTURAalto(x,d). Essa formalização é chamada de entrada lexical e ela busca representar o significado da expressão; por meio dela entendemos que alto é uma relação entre um indivíduo x e um grau d na escala de altura. Veremos com mais detalhes a formalização 510 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 dessa oração na próxima seção. Por ora, o que importa é que precisamos de um mecanismo que relacione o grau que o indivíduo sujeito exibe do predicado (o grau referencial) com um grau advindo do contexto (um grau dito padrão). Por isso, a oração apresenta um valor de verdade relativo, pois o que conta como alto sempre depende da situação, e não apenas das propriedades objetivas do sujeito da oração. Esse mecanismo de que necessitamos, um operador sem conteúdo fonológico, será apresentado também na próxima seção, partindo da abordagem que acreditamos ser a mais influente na literatura (von STECHOW, 1984; KENNEDY, 1997, entre outros). Nos exemplos (1b) e (1c), a situação é um pouco diferente, acreditamos. Embora possamos admitir a existência de uma certa variação no grau de sujeira/limpeza que um objeto pode exibir para ser considerado sujo ou limpo, para que (1b) seja verdadeira, basta que a toalha apresente um grau mínimo de sujeira, as passo que (1c) será verdadeira se ela não apresentar nenhuma sujeira. Ou seja, aparentemente, não precisamos de informações contextuais para decidir o valor de verdade dessas orações, sendo suficiente que verifiquemos o estado dos objetos que são sujeitos da predicação. Não é difícil ver que adjetivos desse tipo são demonstravelmente graduais (cf. A toalha verde está bem suja/está mais suja do que a azul/está tão suja que vou pedir outra). Kennedy e McNally (2005a) propõem que as paráfrases adequadas para as sentenças (1b) e (1c) seriam as seguintes: (1b’) [[A toalha está suja]] = 1 sse “o grau de sujeira da toalha excede o grau mínimo na escala de sujeira”. (1c’) [[A toalha está limpa]] = 1 sse “o grau de limpeza da toalha é o grau máximo na escala de limpeza”. Isso quer dizer que o padrão de comparação implícito dessa classe de adjetivos graduais não advém do contexto, mas já seria dado lexicalmente. Para os autores, isso explicaria porque adjetivos dessa classe são anômalos com modificadores graduais como very (‘muito’). Afinal, se uma toalha limpa está na posição máxima da escala, não haveria espaço para a intensificação – supondo que a operação semântica de very seja alçar o grau que o sujeito exibe para uma posição mais alta do que o padrão na escala (KLEIN, 1980; von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005a, 2005b). Se a modificação ocorre, eles sugerem que Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 511 alguma operação de coerção poderia transformar os adjetivos dessa classe em relativos. Contudo, como Quadros Gomes (2011, 2012) mostra, no português, muito modifica indiferentemente adjetivos graduais relativos e absolutos, e o resultado da modificação sempre gera um predicado que tem valor de verdade relativo; isto é, para decidirmos as condições de verdade de uma sentença como x é muito A, temos de verificar o que conta como muito A no contexto. Veremos que essa história não está contada completamente. O que nos levou a investigar com mais cuidado o tema foi a seguinte questão: será que a interpretação para todas as classes é a mesma? Dito de outro modo, será que as condições de verdade são as mesmas, independentemente do adjetivo modificado? Se Quadros Gomes estiver certa, como um adjetivo absoluto, ao ser modificado por muito, torna-se um predicado relativo? Os exemplos em (2), ilustram muito modificando as duas classes de adjetivos graduais: um adjetivo gradual relativo (2a) e dois adjetivos graduais absolutos, um com padrão mínimo (2b) e um com padrão máximo (2c). (2) a. O João é muito alto. b. A toalha está muito suja. c. A toalha está muito limpa. [adjetivo com padrão relativo] [adjetivo com padrão mínimo] [adjetivo com padrão máximo] Simplificadamente, podemos assumir que (2a) é verdadeira se e somente se “a altura de João excede o padrão alçado de altura no contexto de proferimento da sentença, considerando os indivíduos que são altos”. Por hipótese, o papel semântico de muito seria alçar um padrão de comparação implícito, como a literatura também argumenta para very. Para tentar esclarecer a noção de alçamento do padrão, comparemos com a forma positiva (cf. O João é alto). Alçar o padrão significa assumir que, na mesma situação, o padrão para ser considerado “muito alto” deverá ser maior do que o padrão para ser considerado “alto”. Digamos, por ilustração, que um sujeito pode ser considerado alto se tiver mais de 1,75m de altura, mas, para ser muito alto, deve ter mais de 1,85m (voltaremos a isso na seção 1). Em tese, se a contribuição semântica de muito é sempre a mesma, essa paráfrase também poderia ser aplicada aos outros casos. (2b) é verdadeira se e somente “o grau de sujeira que a toalha exibe excede o 512 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 padrão alçado de sujeira naquele contexto”. Ou seja, algo descrito como muito sujo apresenta mais sujeira do que algo descrito simplesmente como sujo. Mas, o problema é lidar com casos como (2c). A literatura espera que sentenças desse tipo sejam semanticamente anômalas (KENNEDY; McNALLY, 2005a). Se para que uma sentença como A toalha está limpa seja verdadeira, basta que a toalha não apresente nenhum grau de sujeira, (2c) deveria significar que o grau de limpeza que a toalha exibe excede o padrão para a toalha ser considerada limpa, isto é, o grau máximo, surge a pergunta: como alçar um padrão que já estaria no máximo da escala? Olhando com mais cuidado, parece-nos que (2c) não é verdadeira nas mesmas condições em que (2a) e (2b) o são. Numa primeira leitura, basta que a limpeza da toalha exceda o que se considera como limpo naquela situação. Mas essa é uma leitura relativa, o que implicaria que o adjetivo mudou de tipo e foi coagido a ter essa interpretação (logo, essa não seria a interpretação usual do adjetivo). Contudo, esse caso não tem características aparentes de coerção. Para resolver esse problema, assumiremos a hipótese de Toledo e Sassoon (2011), para quem a classe de comparação de adjetivos absolutos é diferente da dos adjetivos relativos. Ela seria intensional (o padrão de comparação vem de outro mundo possível), permitindo que adjetivos que não necessitam de um padrão contextual em seu uso não-modificado, adquiram um padrão proporcionado contextualmente. Portanto, a paráfrase adequada seria: [[2c]] = 1 sse “o grau de limpeza que a toalha exibe no mundo atual excede o grau de limpeza da toalha em um outro mundo possível”. Quanto a esses mundos possíveis, eles são selecionados dentro das expectativas ou desejos do falante. Além disso, defenderemos que muito denota uma relação parcial (“x é maior ou igual a y”) entre um grau referencial (o grau que o indivíduo sujeito da predição apresenta) e um grau padrão (o grau contra o qual ele é comparado implicitamente na escala dada pelo adjetivo). Os outros aspectos do seu significado são pragmáticos, particularmente a classe de comparação mais restrita (noção que apresentaremos na próxima seção) e o efeito de alçamento do padrão. Outra hipótese resultante da discussão concerne o estatuto do grau máximo dos adjetivos absolutos de padrão máximo. Defenderemos que esse grau é uma inferência pragmática, provavelmente uma implicatura escalar, dada a característica do cancelamento e sua sistematicidade. A discussão desse tema nos ocupará na seção 2. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 513 Assim, nossos objetivos imediatos são: i) discutir o alcance e os limites dessas hipóteses; ii) discutir a hipótese de Toledo e Sassoon (2011), para quem adjetivos relativos têm classes de comparação extensionais enquanto adjetivos absolutos têm classes de comparação formadas por contrapartes do mesmo indivíduo sob diferentes índices; e iii) sugerir uma entrada lexical para muito que capture as propriedades discutidas. 1 Alguns fundamentos da semântica dos adjetivos graduais Já é bem conhecida na literatura a distinção entre adjetivos graduais e não graduais (KLEIN, 1980, 1991; KENNEDY, 1997, 2007; DEMONTE, 2011, entre muitos outros).2 Klein (1980) mostra que adjetivos graduais são aqueles que aceitam modificação por intensificadores e outras construções graduais, como a oração comparativa canônica ou a oração consecutiva. Iniciando, comparemos, então, o adjetivo alto, um gradual típico, com o adjetivo retangular, nos exemplos em (3) e (4): (3) a. O João é alto. b. O João é muito alto. c. O João é mais alto que o Pedro. d. O João é tão alto que precisa se abaixar para passar pela porta. (4) a. Aquela mesa é retangular. b. #Aquela mesa é muito retangular. c. #Aquela mesa é mais retangular do que a porta. d. #Aquela mesa é tão retangular que não precisará ser reformada. Esse é um teste sintático (por isso não nos deteremos nas interpretações dessas orações). Afinal, a gradabilidade do adjetivo é verificada pela possibilidade de ele ocorrer na lista de construções oferecida. É preciso levar em conta que, se interpretável, uma sentença como (4b), por exemplo, será verdadeira em condições diferentes daquelas oferecidas para (3b). Isso quer dizer que (4b) não significaria algo como Contudo, na tradição gramatical brasileira, Cunha e Cintra (2008) foram dos poucos gramáticos tradicionais a reconhecer que nem todos os adjetivos aceitam os graus superlativo ou comparativo. 2 514 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 “a retangularidade da mesa apontada pelo falante excede o padrão alçado do que conta como uma mesa retangular no contexto”. Nossa intuição é que (4b) poderia ser usada com a intenção de enfatizar uma posição que foi negada pelo interlocutor que duvida que o objeto apontado possa ser descrito com o adjetivo retangular. Ou seja, acreditamos que o que poderia salvar a estrutura é alguma inferência pragmática. Há outras características semânticas que também precisam ser mencionadas (BIERWISCH, 1989; KENNEDY, 2007). Boa parte dos adjetivos graduais tende a aparecer em pares, pelo menos os dimensionais, como alto/baixo, gordo/magro, longe/perto etc., denotando diferentes perspectivas de uma mesma escala. Assim, assumindo que alto/baixo são perspectivas diferentes da escala de altura, a literatura afirma que a diferença entre os polos se dá em relação ao ordenamento dos indivíduos no domínio: alto os ordenaria de forma ascendente (do mais baixo ao mais alto), ao passo que baixo os ordenaria de forma descendente (do mais alto ao mais baixo). Exemplificando, suponha que o nosso domínio de discurso tenha cinco indivíduos: De = {Abel, Bruno, Carlos, Diego, Elias}. Na escala de altura, eles estarão organizados em função do grau que exibem da propriedade. Digamos que as ordenações para alto e baixo sejam as seguintes, assumindo que, no nosso contexto, as alturas dos indivíduos sejam as que seguem abaixo: Alto: {Elias > Diego < Abel < Carlos < Bruno} Baixo: {Bruno > Carlos > Abel > Diego > Elias} Bruno: 1,90m; Carlos, 1,83m; Abel, 1,79m; Diego, 1,73m; Elias, 1,69m Por esse motivo, com muito alto nos movemos numa direção da escala, e com muito baixo, em outra. Ou seja, o modificador faz sempre a mesma coisa; o que muda, a direção do nosso movimento na escala, é efeito do ordenamento do domínio. Além disso, praticamente todos os adjetivos são vagos,3 uma vez que geram casos limítrofes. Isto é, há situações em que não sabemos dizer se uma sentença com a estrutura x é A é verdadeira ou falsa. As exceções são os adjetivos graduais absolutos, que, de acordo com Kennedy (2007), não seriam vagos por não gerar o paradoxo de Sorites, justamente por não gerar casos limítrofes. Para o autor, eles geram outro fenômeno, a imprecisão. Ver também: van Rooij (2011). 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 515 Mesmo adjetivos de gosto pessoal, como bom, gostoso e divertido, têm essa propriedade, embora diferentemente dos dimensionais (cuja escala tende a ser apenas uma – alto/baixo: altura, gordo/magro: peso, etc.). Para decidir se algo é bom, normalmente, temos que nos perguntar “bom em que sentido?”.4 Feita essa breve explicação, vejamos a distinção que nos preocupará mais detidamente neste artigo. Para nossos propósitos, adjetivos de gosto pessoal também serão considerados como adjetivos relativos, mesmo que nossa discussão use adjetivos dimensionais, como o caso exemplar. 1.1 Duas classes de adjetivos graduais: relativos e absolutos Cruse (1986, e estudos lá citados) notou que os adjetivos graduais não formavam um conjunto semanticamente homogêneo. Ele percebeu que alguns pares de adjetivos, como sujo/limpo ou aberto/ fechado, embora demonstravelmente graduais pelos testes tradicionais, comportavam-se de forma diferente sob a negação e sob a modificação por advérbios como quase. Comparemos os pares em (5) e (6):5 (5) a. O João não é alto. -/-> O João é baixo. b. A toalha não está limpa. → A toalha está suja. (6) a. #O João é quase alto. b. A toalha está quase limpa. c. #A tolha está quase suja. No caso de um adjetivo como alto, em (5a), note que a negação não acarreta que o sujeito esteja no outro lado do espectro da escala; ou seja, não acarreta que ele seja baixo. Pares de adjetivos dessa classe, os graduais relativos, têm escalas com lacunas extensionais (cf. KLEIN, 1980), e são essas regiões que explicam os casos limítrofes. Contrastivamente, note que a nossa intuição é clara em relação ao caso (5b): se a toalha não está limpa, acarreta que ela está suja, e vice-versa. Além disso, esses adjetivos têm outro problema: o de poder ser verdadeiro para um falante e falso para outro, gerando desacordos (cf. LASERSOHN, 2005). 5 Usamos os exemplos correlatos em português para facilitar a exposição. 4 516 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 Por outro lado, o comportamento com modificadores como quase mostra que a estrutura das escalas desses dois tipos de adjetivos é diferente (cf. (6)). A escala de limpo/sujo envolve um limite no qual estaria localizada a transição entre os polos. O que quase faz, em (6b), é expressar que o sujeito está em uma região da escala muito próxima dessa transição, embora ainda se encontre no lado que consideramos sujo.6 Note que a estranheza de (6a) e (6c) pode ser explicada se considerarmos que não há um padrão natural para que um indivíduo seja considerado alto, ou em que ponto da escala se deixa de ser baixo para ser alto. Quase sujo também é anômalo por razões similares, embora possamos admitir que haja situações em que o sujeito possa ainda ser considerado como limpo, mas que já esteja no limiar de ser considerado sujo. Claro, isso indicaria que esse tipo de adjetivo é passível de influências contextuais, algo que, como veremos a seguir, parece ser o caso dos absolutos, embora em menor grau.7 Resumiremos esquematicamente essas diferenças em seguida.8 i) Adjetivos graduais Relativos: são vagos (geram casos limítrofes), altamente dependentes de contexto (o que conta positivamente como A varia de situação para situação) e, por isso, o padrão é dito relativo. Exemplificando, vejamos como as condições de verdade de uma sentença como (7a) seriam computadas. Em (7b), vemos a especificação das condições de verdade na forma de uma paráfrase que será formalizada logo adiante. Ver Rotstein e Winter (2004) para uma discussão aprofundada da semântica de modificadores como almost (quase) e a sua relação com a estrutura das escalas de adjetivos relativos e absolutos, que eles chamam de parciais e totais, respectivamente. 7 Essa é uma discussão importante. Veremos mais adiante que ela é relevante na consideração das classes de comparação desses adjetivos. Contudo, teremos de deixar para outro momento um aprofundamento da discussão sobre a relação entre o caráter de transitoriedade/permanência das propriedades e a sua relação com as classes de adjetivos graduais. 8 Uma apresentação e discussão mais detalhada delas pode ser encontrada em Souza (2019), considerando dados do português brasileiro, ou nos trabalhos clássicos sobre o tema (ROTSTEIN; WINTER, 2004; KENNEDY; MCNALLY, 2005; KENNEDY, 2007; DEMONTE, 2011). 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 517 (7) a. O João é alto. b. [[(7a)]] = 1 sse “o grau de altura de João excede o padrão contextual de alto”. Para dizermos se (7a) é verdadeira, precisamos que o contexto nos forneça duas informações: a classe de comparação (CC) e o padrão para ser considerado verdadeiro que x é A em relação a essa CC. Supondo que João seja uma criança de 10 anos, o padrão de alto será tomado considerando-se esse conjunto de indivíduos, e não o conjunto dos jogadores de basquete. Anteriormente, assumimos que os adjetivos graduais denotam domínios que ordenam os indivíduos em função do grau que exibem da propriedade que o adjetivo denota. Uma classe de comparação, intuitivamente, é caracterizada como aquele conjunto dos indivíduos salientes no discurso (KLEIN, 1980). Mais especificamente, ela nos fornece o padrão contextual e segmenta o domínio em três conjuntos: i) aqueles que estão na extensão positiva do adjetivo (para quem a sentença x é A é verdadeira); ii) aqueles que estão na extensão negativa (para quem a sentença x é A é falsa); e iii) aqueles que estão na lacuna extensional (para quem a sentença x é A não é verdadeira nem falsa). Além disso, para os nossos propósitos, vamos assumir que adjetivos denotam predicados graduais (CRESSWELL, 1976; KENNEDY, 2007). Isto é, são funções parciais de indivíduos a graus,9 como vemos em (8a), que se tornam predicados de indivíduos via modificação de um operador não pronunciado pos, que está definido em (8b), e que também tem a função de relacionar o grau referencial com o grau padrão. (8) a. [[alto]] = λd<d>. λx<e>. ALTURAalto(x,d) b. [[pos]] = λG<det>. λx<e>. $d[G(x)(d) & d ≥ dpadrão contextual] Estamos assumindo a abordagem de Heim e Kratzer (1998), além da ontologia clássica, que assume que temos indivíduos, mundos, valores de verdade, etc. No nosso modelo de mundo, também temos graus, de tipo semântico <d>, como indivíduos. Assim, uma escala pode ser concebida como um conjunto de graus ordenados (do maior para o menor, ou vice-versa, dependendo da polaridade do adjetivo) ao longo de uma dimensão. Klein (1980) e Burnett (2014) são abordagens alternativas para a semântica adjetival que não assumem graus como indivíduos. 9 518 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 Assim, reescrevendo (7b) com essas entradas lexicais, temos (9): (9) [[(7b)]] = 1 sse $d[ALTURAalto(joão,d) & d ≥ dpadrão contextual] Utilizando a terminologia de Kennedy (1997), pos é uma relação parcial (“maior ou igual a”) entre dois graus: o grau referencial, aquele que o sujeito exibe, e um grau padrão, dado pelo contexto. Esse grau é visto como uma variável livre10 e, por isso, não é preso na fórmula por um quantificador. Por sua vez, note que o grau referencial está quantificado. Assumindo as regras usuais de Aplicação Funcional11 e baseandonos nas entradas lexicais dadas em (8), a derivação será a seguinte (vale lembrar que estamos assumindo, por simplicidade, que o verbo de ligação é semanticamente vazio; assim, a denotação do SV é igual à denotação do SA): (10) a. [[ [SV é [SA pos [A alto]]] ]] = [[ [SA pos [A alto ]] ]] = [[pos]] ([[alto]]) = λG<det>. λx<e>. $d[G(x)(d) & d ≥ dpadrão contextual] (λd<d>. λx<e>. ALTURAalto(x,d)) = λx<e>. $d[[λd<d>. λx<e>. [ALTURAalto(x,d)](x)(d)] & d ≥ dpadrão contextual] = λx<e>. $d[ALTURAalto(x,d) & d ≥ dpadrão contextual] b. [[(7a)]] = [[SV]]([[O João]]) = λx<e>. $d[ALTURAalto(x,d) & d ≥ dpadrão contextual] (joão) = $d[ALTURAalto(joão,d) & d ≥ dpadrão contextual] ii) Adjetivos graduais Absolutos: esses adjetivos têm usos imprecisos, baixa dependência contextual e seu padrão é dito lexical/natural. Para ilustrar essas características, vejamos as sentenças em (11): Mostrar isso tecnicamente nos tiraria do escopo do artigo. Além disso, desconheço alguém na literatura que tenha mostrado passo a passo como interpretar variáveis de grau livres. Kennedy (1997, cap. 2, p. 125) sugere que essa interpretação poderia funcionar como a dos pronomes livres, usando, portanto, os mecanismos usuais de atribuições de valores a variáveis. Como ele afirma, dado que o grau padrão é uma variável livre, “seu valor deve ser determinado por uma função de contextos a graus”. [trad. nossa] 11 Cf. Heim e Kratzer (1998, p. 44): “Aplicação Funcional: Seja α um nó ramificado, {β, γ} é o conjunto dos filhos de α, e [[β]] é uma função cujo domínio contém [[γ]], então [[α]] = [[β]]([[γ]]).” 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 (11) a. A toalha está limpa. b. A toalha está suja. 519 [padrão máximo] [padrão mínimo] Para que (11a) seja verdadeira, a toalha deve apresentar grau 0 de sujeira (ou muito próximo disso). (11b), por outro lado, será verdadeira com qualquer grau mínimo de sujeira. Isso mostra que a verdade da sentença não depende do que conta como limpo/sujo na situação, embora esse tipo de adjetivo permita a verdade da sentença mesmo que a toalha não esteja 100% limpa. Esse aspecto também mostra até que ponto o contexto pode influenciar nosso julgamento. Podemos imaginar que hospitais tenham menos tolerância à sujeira em comparação com outros ambientes. Assim, para um quarto de hospital estar limpo, sua limpeza deve ser bem mais cuidadosa do que a que toleraríamos para um quarto de hotel, por exemplo. A influência contextual reside nesse aspecto: em que ponto no espectro da escala fazemos a transição entre o sujo e o limpo, ou entre o polo positivo e o negativo da escala. Kennedy (2007) caracteriza esse fenômeno como ‘imprecisão’, para diferenciar da vagueza, que gera os casos limítrofes por conta da lacuna extensional (que é a incerteza sobre a verdade ou falsidade da sentença em alguns casos).12 Alguns autores (TOLEDO; SASSOON, 2011; McNALLY, 2011; McNABB, 2012) sugerem também que alguns objetos têm padrões diferentes e que isso está ligado ao conhecimento sociocultural do uso deles. Em relação a um copo, o padrão de cheio, por exemplo, depende de estarmos falando de um copo de suco, de chope, de leite, de água, etc. Isso quer dizer que o máximo na escala depende do objeto ao qual se aplica o predicado. Aqui está uma diferença crucial: enquanto as propriedades do sujeito da predicação importam pouco para os adjetivos relativos; no caso dos absolutos elas são fundamentais. Para capturar formalmente essas características, Kennedy e McNally (2005a) e Kennedy (2007) propõem que os adjetivos absolutos têm, em sua entrada lexical, um padrão natural. Compare (8a) com as entradas lexicais em (11). Lá, vemos que o adjetivo simplesmente relaciona o indivíduo com um grau na perspectiva da escala que ele denota. Alto é um predicado que mapeia seu argumento de indivíduo Kennedy (2007) usa, também, como evidência a diferença de comportamento em relação ao paradoxo de Sorites, mas como a apresentação dessa diferença nos tomaria muito espaço, remeto o leitor ao trabalho do autor. 12 520 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 num lugar na escala de altura, num grau. Por isso, ele seria simplesmente uma função de medida. Para Kennedy (1997), a função de introduzir um grau para relacioná-lo com o grau padrão dado contextualmente é do modificador pos. No caso dos absolutos, sujo mapeia seu argumento num lugar na escala de sujeira e já traz especificado que esse lugar é uma posição na escala que apresenta pelo menos um grau mínimo de sujeira (formalmente: d ≥ min(EA)). Como limpo é o adjetivo que fecha a escala, ele mapeia seu argumento no máximo da escala, o grau 0 de sujeira (formalmente: d = max(EA)), supondo que a escala de limpeza/ sujeira tenha no máximo a ausência de sujeira e qualquer grau abaixo disso já possa ser considerado do lado do positivamente sujo. (11) a. [[Amin]] = λd<d>. λx<e>. [ESCALAAdjetivo(x)(d) & d ≥ min(EA)] b. [[Amax]] = λd<d>. λx<e>. [ESCALAAdjetivo(x)(d) & d = max(EA)] Como comparação, segue a entrada lexical de Rotstein e Winter (2004, p. 274) em (12). Note que a diferença entre as duas propostas está no peso lexical desse grau. (12) a. [[Abs(max/min)]] = {x ∈ EA: x ≥ dEA} “x pertence à escala do adjetivo tal que x é maior ou igual ao grau padrão na escala do adjetivo.” Em Kennedy e McNally (2005a), temos uma função total, “x tem o grau máximo na escala de A”, no caso dos absolutos de grau máximo. Já em Rotstein e Winter (2004), vemos uma função parcial “x tem pelo menos um grau na escala de A”. Ainda assim, as denotações em (11) também requerem um operador que pega uma função <det>, converte-a em <et> (um predicado de indivíduos), e satura o argumento de grau (o operador pos que vimos em (8b)). Kennedy (2007) reconhece o problema, já que, em tese, vemos em (11) os componentes lexicais necessários para derivar as condições de verdade de sentenças como (10). Ele defende que essa assunção é necessária para manter o paralelo com os adjetivos relativos, no sentido que todos os adjetivos graduais são funções de medida e que podem ser argumentos de modificadores comparativos. No final das contas, não há problema composicional aparente na aplicação de pos, mas, acreditamos, seria necessário que ele denotasse, pelo menos, uma função de identidade Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 521 e que ligasse existencialmente o argumento de grau. E isso significaria que o operador tem dois significados. Afinal, ele não precisaria mais ser um tipo de relação entre o grau que o sujeito exibe da propriedade e o grau padrão. Ilustrando mais tecnicamente a interpretação a partir dos tipos semânticos montagueanos, vemos que a derivação guiada pelos tipos ocorre como ilustrado abaixo. Como dissemos na nota 9, vamos assumir um modelo em que, além dos tipos básicos (<e> e <t>), temos na nossa ontologia, também, graus, de tipo <d>. (13) S<t> ru DP<e> SV<et> ru V SA<et> ru pos<<d,et>,<et>> A<d,et> Feita essa rápida apresentação da semântica dos adjetivos graduais, passemos à discussão da semântica de muito. 2 O papel composicional de muito 2.1 O que denota um intensificador Dentro do estudo da semântica dos modificadores graduais, há algumas propostas para a semântica dos advérbios graduadores. Numa abordagem que não assume graus na ontologia, Klein (1980) é o trabalho seminal. Em sua proposta, o papel do intensificador very (‘muito’) é alçar o padrão de comparação que o graduador requer, além de, semanticamente, ser uma função que pega a denotação do adjetivo e retorna o subconjunto dos indivíduos para os quais é verdadeiro que o predicado se aplica. Intuitivamente, se para ser alto o indivíduo precisa ter, por exemplo, pelo menos 1,75m, para ser muito alto, ele precisaria estar acima de 1,85m. Assim, o conjunto daqueles indivíduos que estão acima de 1,85m seria mais restrito do que aquele que inclui quem está abaixo disso (note que o conjunto dos muito altos seria menor do que o conjunto dos altos, já que o conjunto dos altos inclui também os muito 522 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 altos). Nessa perspectiva, a classe de comparação da forma positiva inclui indivíduos que são altos, que são baixos, e os que estão na lacuna extensional (os nem altos nem baixos). O subconjunto fica mais restrito porque very toma como classe de comparação apenas o conjunto dos (positivamente) altos. Como esse modelo não assume graus como indivíduos na ontologia (logo, escalas não são primitivos teóricos), os operadores de modificação gradual são concebidos como funções que operam sobre o domínio que os adjetivos denotam, não sobre a posição do padrão na escala. Na abordagem que estamos assumindo aqui, que assume graus na ontologia, very é uma relação de superioridade entre dois graus, um referencial e um padrão alçado, e se aplica a um predicado com uma classe de comparação mais restrita (von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005a; McNABB, 2012). Não vamos aprofundar essa discussão aqui;13 assim, por ser a abordagem mais influente, continuaremos a assumir a proposta gradual. Contudo, utilizaremos a noção de classe de comparação da abordagem de delineação de Klein (1980). Relembrando, como dissemos na seção anterior, a diferença entre os polos dos adjetivos graduais é a perspectiva na escala (ascendente ou descendente). Assim, alto é o conjunto dos indivíduos que exibem a propriedade altura, ordenados do menor para o maior. O conjunto daqueles que são altos no contexto será dado pela classe de comparação, que é um subconjunto segmentado a partir do que se considera como positivamente alto na situação. Note, então, que a classe de comparação de muito alto será mais restrita, pois promoverá outro corte no domínio, dando-nos uma classe de comparação que envolve apenas aqueles que são positivamente altos. Exemplificando, com um domínio que envolve os seguintes indivíduos: De = {a, b, c, d, e}. McNabb (2012) é um trabalho que busca teoricamente e experimentalmente discutir e testar o alcance e as limitações das duas abordagens no tratamento de intensificadores no inglês, no hebreu e no árabe. Sua conclusão favorece a abordagem gradual. Contudo, os experimentos de Panseri, Foppolo e Guasti (2013) sobre a interpretação de adjetivos com crianças e adultos parece favorecer a abordagem sem graus de Klein, embora não discutam o tema da modificação dos adjetivos. 13 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 523 Classe de comparação de alto: Positivamente altos {a, b, c} Positivamente baixos {e} Lacuna {d} Classe de comparação de muito alto: Altos {a, b, c} Muito altos {b} Lacuna {Ø} Para Kennedy e McNally (2005b), partindo de von Stechow (1984), o papel de very parece ser o mesmo de pos, uma relação parcial entre o grau referencial e o grau padrão. A diferença é que x is very A requer um padrão mais alto e uma classe de comparação mais restrita do que o x is A, o que explicaria a diferença entre eles. Como dissemos anteriormente, uma classe mais restrita significa que o predicado very A tem como domínio de aplicação aqueles indivíduos para quem é verdade que eles são A no contexto. Vejamos a entrada lexical oferecida por Kennedy e McNally (2005a, p. 370), para uma discussão mais detalhada: (14) [[very]] = λG<det>. λx<e>. $d[STD(d)(G)(λy.[[pos(G)(y)]]) & G(d)(x)] Há dois aspectos importantes nessa proposta: a) modificadores graduais denotam uma relação entre dois graus (KENNEDY, 1997), um referencial (o dado pela oração) e um padrão (advindo do contexto); very é a relação STD aqui, que pode ser entendida como uma relação parcial entre graus, isto é, “maior ou igual a”; e b) very traz, em sua entrada lexical, que o padrão é um grau da propriedade G, considerando uma classe de indivíduos que são positivamente G e garantindo que o domínio de aplicação seja mais restrito. Essa entrada lexical se aplica sem problemas a adjetivos relativos (cf. (21)). O problema é que os autores defendem que ela estaria restrita a essa classe de adjetivos. Para Kennedy e McNally (2005a, p. 370), very modificando adjetivos absolutos, gera anomalias, como nos casos a seguir:14 (15) a. ??I always leave the door to my office very open. Eu sempre deixo a porta do meu escritório muito aberta. b. ??That drug is currently very available. #Aquele remédio no momento está muito disponível. Note que os julgamentos em relação às sentenças equivalentes em português são distintos. 14 524 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 Estudos posteriores, Demonte (2011) e McNabb (2012), mostram que very modifica adjetivos absolutos de grau mínimo (cf. (16)), contrariamente ao que Kennedy e McNally (2005a) afirmam nos exemplos em (15b). Para estes, a anomalia se explica porque o papel de alçar o padrão de very seria vácuo, uma vez que o padrão dos absolutos já estaria no grau máximo da escala. Mas note que há um contraste. Very produz anomalia com alguns adjetivos absolutos de grau máximo, mas não com absolutos de grau mínimo, como bent (torto). (16) The nail is very bent. (McNAAB, 2012) “O prego está muito torto.” Kennedy e McNally (2005a) admitiam que very poderia modificar absolutos de grau máximo, mas em casos como (17) o adjetivo estaria sendo coagido a uma interpretação relativa; e, ainda, certos adjetivos poderiam transitar entre uma interpretação relativa e uma absoluta, como full, por exemplo. Doetjes (2008) defende a mesma hipótese. Ou seja, ou o adjetivo é polissêmico ou sofreu coerção. (17) a. The restaurant is very full tonight. “O restaurante está muito cheio hoje à noite.” b. #The door is very closed. “A porta está muito fechada.” McNabb (2012) segue na mesma linha. Ele propõe uma semântica para very, como vemos em (18), na modificação de uma sentença como (18a). Mas, nesse caso, LARGE, que opera sobre a denotação do adjetivo, estabelece que a diferença entre os graus comparados é grande. Assim, um objeto very bent seria um objeto que apresenta um alto grau na escala de curvatura, isto é, um grau de curvatura que excede o grau mínimo de curvatura em um intervalo grande. A diferença em relação ao adjetivo no uso positivo é que a relação pos não especifica essa diferença, pois a relação é de “pelo menos”, e X é A pode ser verdadeira mesmo que x tenha um grau na escala de A que seja igual ao padrão no contexto. (18) a. The nail is very bent. b. [[very bent]] = λx<e>. BENT(x) ≥ LARGE(BENT) > dminstand(bent)(c) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 525 Note que nada impede, nessas propostas, que very modifique adjetivos de grau máximo. Não há restrição sintática ou composicional tanto em Kennedy e McNally (2005a), quanto em McNabb (2012). A gramática do inglês geraria combinações very + A, seja ele relativo ou absoluto, e o que impediria que os falantes fizessem combinações do tipo very + A abs-max seriam fatores contextuais e lexicais. Afinal, se o contexto permitir, por exemplo, no caso de (17a), a sentença pode ser interpretada. E isso tem a ver com as expectativas que temos, no caso desse exemplo, em relação à ocupação do restaurante. Além disso, acreditamos, partindo da caracterização dos graduadores proposta por Kennedy (1997) como denotando alguma relação entre um grau referencial e um grau padrão, que não precisamos assumir que exista um modificador como LARGE na forma lógica. A relação parcial “≥” nos parece suficiente, pois o que conta como “muito” não deixa de ser uma avaliação subjetiva do falante. Ou seja, o intervalo entre o grau padrão de muito A e o grau referencial não precisa ser grande. Concretamente, se o padrão de muito alto é 1,85m e se o indivíduo a tiver 1,86m, a é muito alto será uma sentença verdadeira nesse contexto. Além disso, há mais uma questão que precisaria ser esclarecida em relação à denotação proposta em (14). Assumindo que ela pudesse se aplicar aos adjetivos absolutos, precisaríamos explicar como o padrão correto é computado. No caso dos relativos o padrão advém de uma classe de comparação formada por outros indivíduos. Essa caracterização não se aplica aos absolutos, como veremos na próxima seção, já que para se decidir o valor de verdade de uma sentença da forma x é A-abs não olhamos para um padrão contextual ou para uma classe de comparação formada por outros indivíduos, mas apenas para o grau que o indivíduo exibe da propriedade que lhe é atribuída. Feita essa breve revisão das propostas para uma semântica de intensificadores similares, vejamos o que já foi dito sobre muito na combinação com adjetivos em português. 2.2 A semântica de muito Como dissemos, nosso foco é a modificação de muito sobre adjetivos graduais. Uma apresentação mais detalhada sobre todos os usos de muito em português pode ser encontrada em Guimarães (2007), juntamente com uma discussão sobre a complexidade de se oferecer 526 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 uma semântica mínima que dê conta dos usos que a expressão apresenta. Guimarães, embora faça uma discussão das opções teóricas de análise, não oferece claramente uma formalização para o muito como advérbio adjetival, nem nos oferece uma paráfrase como hipótese. Ele afirma vagamente (GUIMARÃES, 2007, p. 97) que “o quantificador denota o grau em que se dá a predicação denotada pelo adjetivo sobre a entidade da qual se está predicando”. O que nos leva a supor que ele estaria entendendo muito como o nome de um grau ou intervalo na escala. Quadros Gomes (2011, 2012, e em outros estudos) discute o papel semântico de modificadores graduais, considerando a divisão da classe dos adjetivos graduais em relativos e absolutos. Apesar de não propor formalmente uma denotação para o advérbio, a autora sugere que sua essência é que o resultado da modificação por muito sempre gera um predicado de escala aberta. Com isso, entendemos duas coisas: a) que o parâmetro de muito é sempre relativo, isto é, o que conta como muito A é contextual, independentemente da estrutura da escala do adjetivo; e b) que muito A é um predicado vago. Além disso, a autora parece assumir, não explicitamente, que muito transforma adjetivos absolutos em adjetivos relativos, dada a característica de aparente manipulação de onde o grau máximo poderia se situar na escala que o adjetivo denota. Vejamos um caso que a autora discute com mais detalhes (QUADROS GOMES, 2011, 2012). Assumindo que o par satisfeito/ insatisfeito denota uma escala cujo polo positivo tem como padrão um grau máximo, para que (19a) seja verdadeira, o cliente não pode ter nenhum grau de insatisfação (desconsiderando-se a imprecisão). Note que isso quer dizer que o cliente está já no final da escala, no grau máximo. Por outro lado, um cliente insatisfeito é alguém com qualquer grau mínimo de insatisfação. Como explicamos, então, (19b)? Como alçar o padrão se o padrão do adjetivo não modificado já é o máximo na escala? Pela proposta de Kennedy e McNally (2005a), (19b) deveria ser anômala ou ter uma interpretação relativa, via coerção. (19) a. O cliente está satisfeito. b. O cliente está muito satisfeito. Para Quadros Gomes (2012), (19b) é semanticamente bem formada, porque manipulamos o grau máximo. Suponha que, no contexto, um cliente contaria como satisfeito se estivesse com 80% na Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 527 escala de satisfação. Assim, alguém muito satisfeito seria um cliente com satisfação de 90% ou acima disso. Note que essa caracterização tem um problema: o ouvinte precisa saber antecipadamente que o falante mudou o padrão. A nossa intuição em relação a essa explicação da autora para a gramaticalidade de (19b) é de que estamos encurtando a escala, e não criando espaço para o efeito de alçamento de muito. Retomemos, agora, os nossos casos exemplares, apresentados na introdução em (2) e repetidos, por conveniência, em (20): (20) a. O João é muito alto. b. A toalha está muito suja. c. A toalha está muito limpa. [adjetivo com padrão relativo] [adjetivo com padrão mínimo] [adjetivo com padrão máximo] Como dissemos na introdução, uma das questões que nos levou a esse estudo foi a sensação de que esses casos não tinham, ainda, sido discutidos com a profundidade que mereciam. Sugerimos que a paráfrase que melhor caracteriza o significado de (20a) é (20a’), partindo das propostas da literatura. (20a’) [[O João é muito alto]] = 1 sse “a altura de João excede o padrão alçado de altura no contexto de proferimento da sentença, considerando aqueles indivíduos que são altos”. Veja que, detalhes formais de composição à parte, a denotação proposta por Kennedy e McNally (2005a) se aplicaria sem problemas a esse caso, como ilustramos a seguir: (21) [[O João é muito alto]] = 1 sse $d[STD(d)(ALTURAalto)(λy. [[pos(ALTURAalto)(y)]]) & ALTURAalto (d)(j)] Em prosa: “existe um grau padrão na escala de altura (considerando aqueles indivíduos que são positivamente altos) e João apresenta pelo menos esse grau”. Para que essa derivação funcione, muito deverá estar na mesma posição estrutural que pos (lembrando que o verbo de ligação é vácuo, por simplicidade). 528 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 (22) S<t> ru SV<et> DP<e> O João ru V SA<et> é wo DegP<<d,et>,<et>> A<d,et> muito alto Essa denotação se aplicaria aos casos dos adjetivos absolutos? Vejamos, primeiramente, o caso (20b). Dissemos anteriormente que uma paráfrase como a vista para (20a) também funciona intuitivamente para esse exemplo, mas note o problema: como lidar com o componente da entrada lexical que traz outros indivíduos como padrão de comparação implícito? (20b’) [[A toalha está muito suja]] = 1 sse “o grau de sujeira que a toalha exibe excede o padrão alçado de sujeira naquele contexto” Antes de olharmos para casos como (20c), vejamos os exemplos em (23). Acreditamos que, em português, muito + Abs-max gera anomalia em alguns casos. Mas note que a anomalia surge com situações em que já temos algum tipo de expectativa criada pelo indivíduo que é sujeito da predicação ou pelo contexto dado. (23) a. #O copo está muito cheio. [copo de chope tradicional] b. #A sala 5 está muito cheia. [sala com uns 5 lugares vagos] c. #Essa loja está muito fechada. [a loja já encerrou o expediente] Nossa expectativa em relação ao preenchimento de copos de chope nos faz esperar que ele esteja completamente preenchido pelo líquido; portanto, (23a) é semanticamente anômala. O mesmo pode ser dito sobre (23b); supondo que não tenhamos nenhuma expectativa de baixa ocupação da sala, declarar isso a respeito de uma sala com, digamos, 30 lugares, também nos soa incongruente. Por fim, (23c) também é anômala, em função de características do sujeito. Uma loja não pode estar mais ou menos aberta ou fechada, ao passo que uma janela ou uma porta podem estar (cf. A janela/porta está muito aberta). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 529 Nosso argumento reside num ponto que outros autores já fizeram (McNALLY, 2011; TOLEDO; SASSOON, 2011) e que acreditamos ser crucial na compreensão desses casos: a expectativa sobre a posição do grau máximo na escala varia de acordo com o objeto sujeito do predicado. Formalmente, capturando a intuição que expressamos em relação às condições de verdade de uma sentença como (20a), gostaríamos que uma semântica adequada para muito representasse o traço comum que o advérbio tem em todos os seus usos, que é expressar um tipo de comparação implícita entre graus, um referencial e um padrão. Assumamos, então, que o grau referencial é o dado pela oração, na terminologia de Kennedy (1997), e que o grau padrão pode ser contextual, no caso dos adjetivos relativos, ou lexical, no caso dos absolutos. Contrariamente ao que propõe McNabb (2012), (cf. (15)), podemos conceber o efeito de alçamento do padrão como um efeito pragmático, como a literatura vinha fazendo: o domínio em que se aplica o predicado é o conjunto dos indivíduos para quem é verdadeiro que eles são A no contexto; o padrão para ser muito A é maior do que o padrão para ser A. Além disso, há o aspecto subjetivo, pois o que conta como “muito” é um julgamento do falante, podendo gerar desacordos (como os predicados de gosto pessoal).15 Assumamos que é isso que explica a sensação de que muito sempre gera um predicado com valor de verdade relativo, isto é, o que conta como “muito” é um julgamento do falante. Desta forma, uma semântica mínima para muito na modificação adjetival pode ser definida como em (24), ignorando por ora um componente da paráfrase: considerando os indivíduos que são A. (24) [[x é muito A]] = 1 sse $d[A(x,d) & d ≥ d’PA(EA)] Onde: PA(EA) = padrão alçado na escala do adjetivo Em (25), vemos o que o predicado muito denota. Sendo mais específico agora, vamos assumir que o domínio de aplicação desse predicado é mais restrito, e isso pode ser implementado formalmente por meio de um pressuposto, e não como parte do conteúdo lexical visto na denotação oferecida por Kennedy e McNally (2005a) em (14). Discutir a subjetividade do julgamento do que conta como “muito” nos tiraria do foco do artigo. Essa questão ficará para outro momento. 15 530 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 (25) [[muito]]C = λG<det>. λx<e> : x ∈ {x: x é (pos) G em C}. $d[G(x,d) & d ≥ d’Padrão(EA)(C)] Note que há um superescrito na função de interpretação. Isso representa que a interpretação dessa expressão é relativa a um contexto. Podemos entender o contexto como envolvendo conjuntos de indivíduos (o nosso domínio de discurso: De) e as classes de comparação para os conjuntos dos quais fazem parte esses indivíduos, organizados em função dos padrões negociados/assumidos na situação, como exemplificamos na seção 1. No plano sintático, podemos assumir, então, que, dentro da projeção máxima do adjetivo, pos, muito, mais, etc. ocupam a posição de especificador do sintagma adjetival. Claro, note que a caracterização tradicional de modificadores como muito ou mais é como advérbio, portanto deveriam ocupar posições não argumentais, isto é, fora da projeção máxima do núcleo adjetival. Contudo, se o grau é concebido como um argumento semântico do adjetivo, podemos assumir, também, que os modificadores dessa classe de adjetivo tenham uma realização sintática ocupando uma posição argumental.16 Por brevidade, representamos apenas o SA abaixo em (26): (26) SA ru SGrau A’ | | muito A pos | mais alto Retornando à caracterização semântica, como Klein (1980) nota, a modificação pelo intensificador acarreta a forma positiva. Assim, de Essa é uma área praticamente inexplorada em português brasileiro. Neeleman, de Koot e Doetjes (2004) propõem duas classes de modificadores graduais: especificadores e adjuntos. Martinho (2007) discute algumas opções para a sintaxe adjetival e sugere que o sintagma de grau seja uma projeção funcional do adjetivo, como propõe Kennedy (1997), entre outros lá citados; mas ambos consideram, principalmente, as orações comparativas. 16 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 531 (27a), inferimos que O João é alto. Mas será que essa inferência é mesmo um acarretamento? Na proposta que fizemos em (25), o predicado traz como pressuposto que o indivíduo a que o predicado se aplica pertence ao conjunto dos indivíduos que são positivamente altos no contexto. Evidências nesse sentido são as inferências que vemos em (27a-c): (27) a. O João não é muito alto. → O João é alto. b. O João é muito alto? → O João é alto. c. O João não é muito alto, mas é alto. Mesmo negando que o sujeito seja muito alto, podemos inferir que ele seja alto. Isso não poderia acontecer, afinal, pela denotação de Kennedy e McNally (2005a), pois o pertencimento do indivíduo à classe dos indivíduos que são positivamente As no contexto faz parte do conteúdo proposicional e, portanto, deveria estar sob o escopo da negação. Note que a interrogativa continua pressupondo que o indivíduo seja alto. A questão soa pragmaticamente infeliz se o falante não estiver pressupondo que o sujeito seja alto. (27c) deveria ser anômala se o conteúdo negado incluísse o domínio dos indivíduos que são positivamente altos. Nossa contribuição, assim, é assumir que esse conteúdo, o fato do indivíduo ao qual o predicado muito A-relativo se aplica pertencer ao conjunto dos positivamente As no contexto, é um pressuposto,17 e não parte do conteúdo proposicional, como proposto por Kennedy e McNally (2005a) ou von Stechow (1984). Se o efeito de alçamento do padrão é contextual, o que muito faz semanticamente é relacionar comparativamente dois graus, o referencial e o padrão. Isso quer dizer que o advérbio não mexe na escala, esse ajuste do padrão é um requisito contextual (o que entendemos ser um pressuposto) Talvez não seja um pressuposto tradicional. Nem todos os falantes que consultei concordam com a nossa intuição a esse respeito. Por exemplo, no diálogo abaixo, a resposta de B deveria ser incongruente, mas conforme aponta um dos pareceristas não é. Se o diálogo é perfeito, parece-nos que se deve ao caráter subjetivo de muito, o que nos leva a crer que o diálogo é um exemplo de desacordo, não uma evidência de que o falante A não estaria tomando como pressuposto que o João pertence ao conjunto dos altos. A: O João é muito alto. B: Não, o João na verdade é baixo. 17 532 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 e a vagueza resulta do aspecto subjetivo: muito gera desacordos e também casos limítrofes. Mas note que em relação à comparação com mais ou menos, que são relações totais (> e <), muito estabelece uma relação parcial (≥). Será que seria assim também com muito + absolutos? Vejamos agora, então, o caso dos absolutos com padrão máximo. 2.3 muito + absolutos A questão que nos interessa nesta seção é entender se a semântica mínima proposta para muito na seção anterior é capaz de dar conta da interpretação e das anomalias que vemos na combinação de muito com outra subclasse de adjetivos graduais, os absolutos. A questão de pano de fundo é se a interpretação (ou as condições de verdade) da combinação muito + adjetivo absoluto é a mesma da combinação muito + adjetivo relativo. Primeiramente, vamos relembrar alguns fatos. Como a literatura mostra, muito é insensível à distinção relativo/absoluto, e a combinação sempre parece resultar em um predicado cujo padrão é relativo (QUADROS GOMES, 2011, 2012). Nesse aspecto, embora Quadros Gomes compare very com muito, partindo de Kennedy e McNally (2005a), a literatura já mostrou, como dissemos, que very também é insensível às escalas dos adjetivos (McNABB, 2012). Mas isso não quer dizer que as interpretações sejam as mesmas. Vejamos os exemplos em (28) e (29): (28) a. O chão está muito sujo. b. A toalha está muito molhada. (29) a. O chão está muito limpo. b. A toalha está muito seca. Primeiramente, devemos nos perguntar se em (28a) e (28b) temos o efeito de alçamento do padrão com os adjetivos absolutos de grau mínimo. A resposta é afirmativa. Nossa intuição é que um chão descrito como sujo está em uma posição diferente na escala de sujeira de um chão descrito como muito sujo. Da mesma forma, uma toalha muito molhada é uma toalha com alto grau de umidade. Mas esse alçamento precisa ser significativamente maior? Não necessariamente. Parece-nos que basta que o grau referencial seja maior ou igual ao padrão mínimo, mesmo que levemente alçado. E isso é previsto pela semântica que oferecemos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 533 Já com (29) temos um problema, pelo menos para a semântica dos adjetivos absolutos de grau máximo tal como proposta por Kennedy e McNally (2005a). Se o sujeito já tem o grau máximo na escala, como alçar o padrão? E por que não sentimos que a modificação é anômala ou sofreu alguma coerção? Ao mesmo tempo, como explicamos os casos em que temos de fato anomalia (cf. (22))? Lembrando, para alguns autores (McNALLY, 2011; TOLEDO; SASSOON, 2011; McNABB, 2012) o sujeito (e suas propriedades18) determina a posição do grau máximo na escala, e esse máximo não depende, apenas, das propriedades físicas do objeto. Não é apenas uma imprecisão (cf. (30)). (30) a. O copo de suco está cheio. b. A taça de vinho está cheia. c. A sala 5 está cheia. Se olharmos com cuidado os exemplos em (30), veremos que a posição do grau máximo na escala de alguns adjetivos absolutos não precisa ser necessariamente no final da escala. Ou melhor, no caso de um adjetivo como cheio, o máximo da escala não precisa ser o preenchimento total do objeto, o que deixaria espaço para alçamento do padrão. Era essa a intuição de Quadros Gomes (2011, 2012), nos parece: algumas escalas permitem alçamento do padrão se há espaço para rebaixamento do padrão máximo. Mas a história não é exatamente essa. (30a) será julgada verdadeira mesmo que o copo não esteja totalmente cheio. Já uma taça de vinho (cf. (30b)) poderia ser considerada cheia se a taça estivesse com vinho até a metade da sua capacidade. (30c) também seria julgada verdadeira mesmo que ainda restassem alguns poucos lugares vagos. Se é assim, esperaríamos que o efeito de alçamento só surgisse com absolutos de grau máximo que tenham espaço na escala para que isso ocorra. Mas será sempre assim? Isso explicaria (23)? Note que vazio é algo parecido. (30a) é anômala se o referente sujeito for um copo completamente vazio. Mas, (30b) é perfeita se a sala for uma sala de cinema com 50 lugares dos quais apenas 5 estiverem ocupados. Que propriedades seriam essas é uma pergunta complicada. Acreditamos que, nesse caso, nosso conhecimento enciclopédico seja a resposta, como a discussão dos exemplos em (29) ilustra. 18 534 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 (30) a. #O copo está muito vazio. b. A sala 5 está muito vazia. Voltemos, por um momento, aos exemplos em (29). Quais são as condições de verdade dessas sentenças? A paráfrase que viemos oferecendo deveria se aplicar a esses casos também. Vejamo-las: (29a’) [[O chão está muito limpo]] = 1 sse “o grau de limpeza do chão excede o grau máximo na escala de limpeza, considerando aqueles indivíduos que estão limpos”. (29b’) [[A toalha está muito seca]] = 1 sse “o grau de umidade da toalha excede o grau máximo19 na escala de umidade, considerando aqueles indivíduos que estão secos”. Há um problema com essas paráfrases. Como vimos, para decidir o valor de verdade de uma sentença da forma x é Adj-Abs não precisamos olhar para o contexto, mas apenas para o indivíduo sujeito da predicação. Deveríamos esperar que o julgamento do valor de verdade de uma sentença como (29a) fosse algo similar, e, portanto, deveríamos comparar a limpeza do chão com ele mesmo. O mesmo pode ser dito de (29b): a sentença é verdadeira se o grau de umidade (no caso nenhuma umidade) que a toalha apresenta excede o que esperávamos que ela apresentasse. Toledo e Sassoon (2011) oferecem uma proposta que embasa essa nossa intuição. Para os autores, adjetivos absolutos têm uma classe de comparação intensional, ao passo que adjetivos relativos têm classe de comparação extensional. No caso dos relativos, a visão tradicional (pelo menos desde KLEIN, 1980) é a de que a classe de comparação (CC) é constituída por um conjunto de indivíduos salientes no contexto, ordenados em função da posição em que se encontram na escala do predicado. A classe de comparação pode vir explicitamente na sentença por meio de adjuntos, como vemos em (31). Mas, note que, nesse caso, o sintagma afeta a interpretação do adjetivo, inserindo um padrão funcional (cf. SOLT, 2011). De O João é muito alto, inferimos que O João é alto, mas essa inferência, aparentemente, não é lícita se houver um sintagma Digamos que na escala de umidade o grau mínimo é qualquer grau de umidade e o máximo é a ausência total de umidade. 19 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 535 adjunto do adjetivo que denote uma classe de comparação na sentença. Nesse caso, João poderia ser considerado baixo se mudássemos a classe de comparação. (31) O João é muito alto (para uma criança de 10 anos). CC: {x: x é uma criança de 10 anos} = {..., João, Alex, Ricardo, Bruno} (31’) O João é muito alto para uma criança de 10 anos, mas ainda é o mais baixo da família. Podemos ter classes de comparação intensionais também para adjetivos relativos, mudando o verbo de ligação de ser para estar, como vemos em (32). Agora, ao invés de compararmos a altura de João com a altura de outras crianças de 10 anos, como fazemos em (31), estamos comparando a altura do sujeito com a sua própria altura em outros mundos. Esses mundos podem ser mundos diferentes do nosso, em função das expectativas do falante,20 ou diferentes instâncias temporais do indivíduo. (32) O João está muito alto (para uma criança de 10 anos). CC: {a altura de João em w1, a altura de João em w2, ...} Para Toledo e Sassoon (2011), a classe de comparação dos absolutos, obrigatoriamente, deve ser intensional. Contudo, acreditamos que, embora esse pareça ser o caso típico, nada impede que absolutos tenham, também, uma classe de comparação extensional. Se assim for, a hipótese deles faz predições incorretas em relação ao português. Para esses autores, uma classe de comparação intensional compreende diferentes instâncias do mesmo indivíduo sobre diferentes índices (tempo ou mundo). Vejamos o caso em (33), comparando os usos de ser e estar. Não vamos nos aprofundar nesse tema aqui. Cremos ser razoável supor que a base modal envolvida poderá ser circunstancial. E, como veremos adiante, em alguns casos podemos ter uma base bulética. 20 536 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 (33) O banheiro é/está muito sujo para um banheiro de aeroporto. CC intensional: {o banheiro de aeroporto está d sujo em w1, ... o banheiro de aeroporto está d sujo em wn} CC extensional: {o banheiro do aeroporto 1, o banheiro do aeroporto 2, ...} Com o verbo ser, o banheiro referenciado é comparado com outros banheiros de aeroporto; e sem a classe de comparação explícita, a sentença continua gramatical. Se a classe de comparação extensional fosse exclusiva de relativos, esperaríamos que a sentença O banheiro é muito sujo fosse anômala. Com o verbo estar, fica mais claro que, além de a sujeira ser algo transitório, o falante compara o banheiro com outras instâncias dele, seja outros momentos no tempo ou noutros mundos (mundos esses que acreditamos ser os mundos em que as expectativas do falante sobre a limpeza de banheiros de aeroportos são satisfeitas). Apesar disso, há algumas restrições em relação à classe de comparação. Segundo alguns autores (TOLEDO; SASSOON, 2011; McNALLY, 2011), a classe de comparação explícita tem de ser sempre intensional, e não extensional; por isso a anomalia em (34a) ou (35). (34) a. #Esse chão é (muito) limpo/sujo para um chão. b. O chão deste aeroporto está/é muito sujo para um chão de aeroporto. c. O chão deste aeroporto está/é muito limpo para um chão de aeroporto. (35) ??This glass is full for a wine glass. (McNALLY, 2011) (34a) é anômala porque não podemos comparar o indivíduo sujeito com outros indivíduos da mesma classe, segundo McNally (2011) – em (35), temos o exemplo dela. Mas, como dissemos anteriormente, (34b) e (34c) são bem formadas, o que nos mostra que podemos ter, também, classes de comparação extensionais com adjetivos absolutos em português – provavelmente porque um chão de aeroporto é uma classe de indivíduos mais restrita do que chão. Resta a dúvida se, nesse caso, não estaríamos coagindo o adjetivo a uma interpretação relativa. Essa Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 537 questão precisará ser explorada mais detidamente em outro momento. Por ora, gostaríamos de dizer que não. Ainda argumentando a favor de uma classe de comparação diferente para os absolutos, Toledo e Sassoon (2011) sugerem que isso está ligado ao fato de os absolutos, em geral, denotarem propriedades transitórias, o que evidenciaria que as classes de comparação desses adjetivos envolvem contrapartes do mesmo objeto, e não outros objetos da mesma classe. Vamos sugerir, então, que, para todos os efeitos, em português, o verbo ser requereria uma classe de comparação extensional, o estar, uma intensional, e que elas são compatíveis tanto com adjetivos relativos quanto com absolutos. Ou seja, a hipótese deveria prever que ser com adjetivos absolutos deveria ser anômala: #o copo é muito cheio. Esse nos parece ser o caso. Mas afinal, seria possível interpretar a intensificação de um absoluto de grau máximo em uma situação em que o objeto já tem o grau máximo na escala do adjetivo? Imagine que o copo referido em (36) é um copo de suco “cheio até a boca”. A nossa hipótese para lidar com esse caso é a de que o padrão é criado intensionalmente, selecionando aqueles mundos em que as expectativas do falante são preenchidas. O falante usará (36) para descrever o copo porque o grau que o copo apresenta na escala de preenchimento excede as expectativas que ele tinha sobre o preenchimento de copos de suco. Assim, a paráfrase de (36a) seria a que vemos em (36b): (36) a. O copo está muito cheio. b. [[(36a)]] = 1 sse “o grau d em que o copo está cheio é pelo menos um grau d (na escala de preenchimento do copo) em w@ ≥ o grau d’ em que o copo está cheio (na escala de preenchimento do copo) e d’ = max em w1”. (base modal: mundos em que as expectativas/desejos do falante são satisfeitas em relação ao preenchimento do copo.) Onde: w@ = mundo atual e w1 mundos possíveis acessíveis de w@. Muito continua sendo a relação de “pelo menos” entre dois graus, mas o grau referencial está no mundo atual, e o grau padrão está em outro mundo possível. Note que o grau referencial (o grau que o indivíduo exibe 538 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 no mundo atual) não precisa ser o grau máximo na escala, mas poderia ser. Tudo que precisamos é que esse grau exceda o grau que o indivíduo exibe em outros mundos; ou seja, que ele exceda o grau que o falante esperava que fosse o máximo. A intensionalização do adjetivo, podemos assumir, é fruto da classe de comparação ativada pelo uso de estar. Mas como chegamos em (36b) a partir da denotação que propomos em (25)? Para responder isso, precisamos de algumas reformulações: a) muito deve buscar o padrão lexical (não precisa ir ao contexto); b) aparentemente, estar ativa uma classe de comparação intensional; por fim, c) muito não precisa trazer pressuposto algum. Em síntese, muito poderia ter outra entrada lexical, como vemos em (37): (37) a. [[muito2]] = λG<det>. λx<e> $d[G(x,d) & d ≥ d’Padrão(EA)] Combinando essa denotação com a do adjetivo de grau máximo, temos [primeira versão]: (38) [[(36a)]] = 1 sse $d[PRENCHIMENTOcheio(c,d) & d = max(EA em w@) & d ≥ d’(EA em w1)] A diferença, portanto, entre a aplicação de muito a um adjetivo relativo e a um adjetivo absoluto está em que: com os relativos, o grau padrão de comparação é fornecido por uma classe de comparação mais restrita, dada contextualmente a partir de uma classe de comparação formada por outros indivíduos. Já para os absolutos, o grau de comparação, a variável d’ não ligada na fórmula, será buscada em uma classe de comparação contextual, no mundo atual ou não, dependendo de informações gramaticais (o verbo de ligação ser ou estar) ou das propriedades do próprio objeto (a posição na escala do grau do adjetivo apresentado pelo sujeito); e essas propriedades dependem de expectativas do falante. Além disso, vamos supor que a função semântica dos verbos de ligação ser/estar seja, justamente, buscar uma classe de comparação. Ou seja, talvez eles sejam os responsáveis por ser uma função de graus a padrões em uma escala. Como ser é extensional, ele vai buscar o padrão a partir de uma classe de comparação que envolve outros indivíduos salientes no contexto. Estar, por requerer uma classe intensional, vai buscar um padrão para uma classe de comparação que envolve o mesmo indivíduo, selecionado a partir de uma base modal saliente no contexto. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 539 Toledo e Sassoon (2011) não exploram os refinamentos da implementação formal dessa ideia, por estarem mais preocupados com o desenvolvimento da noção de que adjetivos graduais relativos e absolutos envolvem classes de comparação diferentes. Acreditamos, contudo, que essa é uma ideia promissora, a qual deixaremos para ser implementada formalmente em outro momento. Por fim, o leitor pode estar se perguntando como podemos controlar as expectativas do falante. Toledo e Sassoon (2011, p. 11) assumem que a interpretação dos absolutos envolve, também, um mecanismo de gramaticalização: “[...] the type of standard that is usually selected for an adjective is encoded as a default convention for this adjective. The default is employed whenever this is possible.” Assim, é o grau convencionalizado como máximo dos adjetivos absolutos que regula as expectativas para determinados objetos. Isso quer dizer que entramos no reino do conhecimento enciclopédico/cultural/convencional, algo difícil de controlar formalmente, mas que não nos parece problemático, dada a variabilidade contextual da transição entre os polos no caso de adjetivos absolutos. No final das contas, o que parece ser contextual é lexical, dependente do conhecimento de mundo do falante. Além disso, é provável que possamos regular a posição do máximo na escala em função de diferentes bases modais também. Claro, precisamos levar em conta que, em alguns casos, parece que absolutos de grau máximo podem ter usos relativos, como vemos no diálogo em (39). Nesse caso, o adjetivo cheio não parece ter seu significado tradicional absoluto. Logo, a explicação mais simples parece ser em termos de polissemia. (39) A: – Vamos em outro bar, esse está muito cheio. B: – Tem lugar pra sentar, não está completamente cheio. A: – Mas está muito barulhento aqui. Podemos concluir que o melhor caminho para caracterizar os adjetivos absolutos é assumir que eles são funções parciais. Outro aspecto que precisa ser discutido é o papel do grau natural dos absolutos, especialmente dos absolutos de grau máximo: até onde precisamos que seja parte do conteúdo lexical desses adjetivos? Kennedy e McNally (2005a) assumem isso para explicar os efeitos de incompatibilidade com modificadores como completamente e totalmente, que seriam capazes 540 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 de identificar esse grau máximo dos absolutos (cf. completamente vazio/ cheio vs. #completamente baixo/alto). Além disso, lembremos que para verificar o valor de verdade de uma sentença da forma x é alto, precisamos considerar o que conta como alto para a classe de comparação fornecida pelo contexto; já com um adjetivo absoluto (de grau máximo ou mínimo), consideramos apenas as características do objeto e algum eventual padrão dado pelo contexto para aquele indivíduo (cf. x está cheio/vazio). Mas e se o grau máximo como uma função total fosse concebido como um efeito pragmático? Digamos que a denotação do adjetivo de grau absoluto seja como a dos adjetivos absolutos de grau mínimo, uma função de medida que mapeia seu argumento de indivíduo em uma posição da escala descrita pela forma positiva. Isto é, x está limpo é verdadeira se e somente se x se encontra no espectro da escala que descrevemos como limpo. Enquanto a posição dos relativos na escala é dependente de contexto, a dos absolutos não é. Esse nos parece ser o fato mais importante. Assim, vamos supor que essa característica possa ser entendida como uma implicatura escalar, que surge a menos que o contexto forneça indicações em contrário. Assim, x está limpo será interpretado como “x está completamente limpo”, a menos que o contexto negue isso. Antes de encerrar o artigo, vamos considerar rapidamente essa última questão. 2.4 O grau máximo seria um efeito pragmático? Há um aspecto importante da semântica dos adjetivos absolutos de grau máximo que intriga boa parte da literatura. Aparentemente, podemos cancelar o entendimento de que o sujeito tem grau máximo. Observemos as sentenças em (40); nelas, negamos que o sujeito tenha o grau máximo na escala, e a sentença não é contraditória: (40) a. O copo está cheio, mas não está completamente cheio. b. O avião é seguro, mas não é 100% seguro. Esse fato mostraria que Rotstein e Winter (2004) estariam certos, (contra KENNEDY; McNALLY, 2005a): ao invés de identificar um grau máximo, um adjetivo absoluto de grau máximo precisa ser uma função parcial, “x tem pelo menos o grau d no intervalo positivo/negativo da escala de A” e não “x tem o grau máximo no intervalo positivo/negativo na escala de A”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 541 Há outros argumentos contra a hipótese de que o grau máximo como função total seja lexical. Comparemos (41) com (42). Sem contexto algum, (42a) pode ser inferido de (41a); o mesmo se dá com (42b) e (41b). Como dissemos anteriormente, acreditamos que essa relação seja de pressuposição. (41) a. O arame é muito curvo. → b. O arame é muito reto. → (42) a. O arame é curvo. b. O arame é reto. Imaginemos, então, o seguinte experimento hipotético. Em um primeiro momento, mostramos ao indivíduo um arame completamente reto e perguntamos a ele se (42b) descreve o objeto. A resposta esperada é: sim. Agora, perguntamos se (41b) descreveria o mesmo arame. A resposta esperada é: não ou não sei. O design do experimento deveria garantir que o falante não tem nenhuma expectativa funcional sobre o arame. Num segundo momento, deixamos claro que queremos um arame ligeiramente curvo (completamente reto não serve, nem um arame com muitas dobras). Ou seja, temos uma expectativa funcional agora. Em seguida, mostramos o mesmo arame e perguntamos ao ouvinte se (41b) descreve o arame que estamos lhe mostrando. Resposta esperada: sim. Esse experimento fictício mostra que, sem expectativa alguma operando no contexto, muito + Abs(max) deve gerar anomalias em português e que fatores pragmáticos afetam a interpretação – particularmente a classe de comparação e alguma base modal. Além disso, esse pequeno experimento mostra que as expectativas são essenciais para interpretar a intensificação adjetival de adjetivos graduais absolutos. Poderíamos testar, também, se de fato os falantes do português tratariam como anômalas sentenças que apliquem adjetivos absolutos de grau máximo a objetos cuja convenção social de uso cria a expectativa de que eles apresentem o máximo na escala do adjetivo. Ou seja, isso nos mostraria que esse efeito é uma implicatura (provavelmente escalar) que poderia ser cancelada, em casos como (40), e não disparada por outros fatores contextuais, como expectativas. McNabb (2012) fez experimentos com very + A. O experimento consistia no indivíduo selecionar a melhor descrição dentre as seguintes para o objeto que lhe era mostrado: x is very A, x is A, x is not A, x is neither A, nor not A. Os objetos estavam inseridos em três diferentes classes de comparação (numa era o segundo maior, noutra era o elemento do 542 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 meio, e na terceira era o segundo menor). A conclusão dos experimentos mostrou que o contexto (no caso, a classe de comparação em que está inserido) afeta a interpretação dos relativos e absolutos de grau mínimo, mas não afeta a interpretação dos absolutos de grau máximo. Mesmo quando o objeto apontado era o maior da classe, os falantes resistiam a descrevê-lo como very A. É importante frisar que não foi fornecida nenhuma informação funcional particular na tarefa. O experimento apenas apresentava o objeto dentro de uma série e perguntava se a frase poderia descrever o objeto escolhido. Note que, embora não seja nitidamente visível, há uma similaridade importante com as implicaturas escalares.21 Um exemplo típico é a interpretação dos numerais cardinais. O João tem dois filhos receberia duas leituras: i) O João tem pelo menos dois filhos; ii) O João tem exatamente dois filhos. Para essa sentença, a segunda leitura seria uma inferência pragmática, uma implicatura conversacional generalizada escalar. Numa escala horniana típica, a declaração envolvendo a alternativa mais fraca implica, conversacionalmente, a negação da alternativa mais forte. Portanto, se a escala é <todos, alguns>, e a expressão escolhida é alguns N VP, essa declaração implica que não todos N VP. Ou, com o exemplo do numeral, se a escala dos numerais é <..., 4, 3, 2, 1, 0>, a escolha de 2 implica a negação dos demais. Digamos, então, que a escala de um adjetivo como cheio possa ser <muito cheio, cheio, vazio>. Frente a isso, a inferência produzida nos leva a supor que o significado de cheio seja “x apresenta o grau máximo na escala de preenchimento”, explicando o exemplo (40). Se nosso raciocínio estiver correto, a forma lógica em (38) poderia ser reformulada como em (38’) [versão final]: (38’) [[(36a)]] = 1 sse $d[PRENCHIMENTOcheio(c,d) & dem w@ ≥ d’(EA em w1)] Ou seja, de acordo com (38’), o copo está muito cheio será verdadeira se o grau que o copo exibe na escala de preenchimento no mundo atual excede o grau o que o copo exibe na escala de preenchimento em um mundo acessível pela base modal contextual (digamos que seja uma base bulética). Esse grau como o máximo na escala, excedendo aquilo que o falante esperava para o preenchimento do copo, portanto, será considerado uma inferência pragmática, que acreditamos ser uma implicatura conversacional escalar. 21 Baseio-me, aqui, em Pires de Oliveira e Basso (2014) e referências lá citadas. 543 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 Considerações Finais Resumindo as conclusões deste estudo, defendemos que a contribuição composicional de muito na modificação de adjetivos graduais seja uma relação de superioridade entre um grau de referência e um grau padrão com classe de comparação mais restrita. Em segundo lugar, o efeito de alçamento do padrão é produto da classe de comparação, e logo, do contexto. Isso era o que Klein (1980) já afirmava em outra abordagem: a classe de comparação mais restrita faz com que o padrão de x is very A seja elevado em relação ao padrão de x is A. Assim, podemos deixar esse aspecto como um pressuposto. Por fim, muito A-gradual é um predicado vago, porque muito também cria lacunas extensionais, e não porque o grau padrão pode ser manipulado contextualmente, o que nos soa como um fato. Ou seja, muito modificando um adjetivo absoluto de grau máximo pode ser a relação de superioridade entre o grau que o indivíduo exibe e um grau máximo. Esse máximo será extensional se a escala apresentar espaço para alçamento e, ao mesmo tempo, poderá ser intensional se houver expectativas/desejos do falante envolvidos na situação. Mas, o essencial é que a sensação de escala aberta que Quadros Gomes (2011, 2012) menciona resulta não do padrão contextual de muito, mas sim do fato de esse modificador produzir lacunas extensionais, que, no caso dos absolutos, poderiam ser resultado de uma diferença tal entre os graus comparados que o indivíduo sujeito da predicação não está nem acima do esperado nem abaixo do padrão lexical. A questão da classe de comparação com os adjetivos absolutos merece uma investigação mais detalhada. Como, em português, temos os verbos ser e estar, que são especializados para propriedades permanentes e transitórias (em geral), esse fato precisa ser considerado também. Ao contrário do que acontece com o inglês, as classes de comparação extensionais, em português, são pragmaticamente felizes com adjetivos absolutos de grau máximo. Além disso, vimos que o grau máximo como uma função total no caso dos absolutos de grau máximo parece ser uma inferência pragmática, pois é cancelável. Acreditamos que esses temas merecem ser discutidos com mais profundidade, e poderiam, inclusive, ser objetos de trabalhos experimentais. 544 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 Agradecimentos Gostaria de agradecer aos dois pareceristas anônimos pela leitura atenta e pela série de questões que colocaram ao longo do texto, me fazendo perceber temas e conceitos que precisavam ser esclarecidos. Agradeço também ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR que gentilmente me recebeu como pós-doutorando durante o ano de 2017, período em que este estudo foi desenvolvido. Diferentes versões do texto foram apresentadas no II Colóquio de Semântica Referencial na UFSCar, em setembro de 2017 e no I Seminário de Modificação Gradual, em novembro de 2017 na UFPR. Agradeço aos participantes desses eventos pelos questionamentos e sugestões. Algumas pessoas com quem conversei sobre as ideias expostas aqui também foram fundamentais no processo, em particular Lara Frutos, Renato Basso, Kayron Bevilácqua e Denise Mazocco. Roberta Pires de Oliveira tem sido uma importante interlocutora desde a minha entrada na pós-graduação na UFSC em 2004, a ela agradeço a leitura e a parceria. Por fim, agradeço à minha bolsista de iniciação científica, Juliana Schaidhauer, que revisou o texto. Referências BIERWISCH, Manfred. The Semantics of Gradation. In: BIERWISCH, M.; LANG, E. (Org.). Dimensional Adjectives. Berlin: Springer, 1989. p. 71-261. BURNETT, Heather. A delineation solution to the puzzles of absolute adjectives. Linguistics & Philosophy, [S.l.], v. 37, p. 1-39, 2014. CANÇADO, Márcia. Manual de semântica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. CHIERCHIA, Gennaro. Semântica. Trad. L. Negri, L. A. Pagani e R. Ilari. Campinas: Editora da Unicamp; Londrina: EDUEL, 2003. CRESSWELL, M. The Semantics of Degree. In: PARTEE, B. (Org.). Montague Grammar. New York: Academic Press, 1976. p. 261-292. DOI: https://doi.org/10.1016/B978-0-12-545850-4.50015-7 CRUSE, David. Lexical Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. 545 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008. DEMONTE, Violeta. Adjectives. In: von HEUSINGER, K.; MAIENBORN, C.; PORTNER, (Org.). Semantics: An International Handbook of Natural Language Meaning. Berlin: Walter de Gruyter, 2011. p. 1314-1340. DOETJES, Jenny. Adjectives and Degree Modification. In: KENNEDY, C.; McNALLY, L. (Org.). Adjectives: Syntax, Semantics and Discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 123-155. GUIMARÃES, Márcio R. Dos intensificadores como quantificadores. 2007. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. HEIM, I.; KRATZER, A. Semantics in Generative Grammar. Oxford: Blackwell, 1998. KENNEDY, Christopher. Projecting the Adjective. 1997. Dissertation (PhD) – University of California at Santa Cruz, 1997. KENNEDY, Christopher. Vagueness and Grammar: the Semantics of Relative and Absolute Gradable Adjectives. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 30, n. 1, p. 1-45, Feb. 2007. KENNEDY, Christopher; McNALLY, Louise. Scale Structure, Degree Modification, and the Semantics of Gradable Predicates. Language, [S.l.], v. 81, n. 2, p. 345-381, 2005a. KENNEDY, Christopher; McNALLY, Louise. The syntax and semantics of multiple degree modification in English. In: MÜLLER, S. (org.). Proceedings of the HPSG05 Conference. Department of Informatics, University of Lisbon, CSLI Publications, 2005b. KLEIN, Ewan. A Semantics for Positive and Comparative Adjectives. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 4, n.1, p. 1-45, 1980. KLEIN, Ewan. Comparatives. In: von STECHOW, A.; WUNDERLICH, D. (Org.). Semantics: an international handbook of contemporary research. Berlin: de Gruyter, 1991. p. 673-691. 546 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 LASERSOHN, Peter. Context Dependence, Disagreement, and Predicates of Personal Taste. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 28, n. 6, p. 643-686, Dec. 2005. MARTINHO, Fernando J. S. Sintaxe e semântica dos adjetivos graduáveis em português. 2007. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade de Aveiro, Aveiro, 2007. McNABB, Yaron. The Syntax and Semantics of Degree Modification. 2012. Dissertation (PhD) – University of Chicago, Chicago, 2012. McNALLY, Louise. The relative role of property type and scale structure in explaining the behavior of gradable adjectives. In: NOUWEN, R. et al. (Org.). Vagueness in Communication. Bourdeaux: Springer, 2011. p. 151-168. NEELEMAN, A.; von de KOOT, H.; DOETJES, J. Degree expressions. The Linguistic Review, [S.l.], v. 21, p. 1-66, 2004. PANSERI, Francesca; FOPPOLO, Francesca; GUASTI, Maria Teresa. Acquisition Meets Comparison: An Investigation of Gradable Adjectives. In: CAPONIGRO; I.; CECCHETTO, C. (Org.). From Grammar to Meaning: The Spontaneous Logicality of Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p. 266-293. PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Semântica formal: uma breve introdução. São Paulo: Mercado de Letras, 2001. PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; BASSO, Renato. Arquitetura da conversação: teoria das implicaturas. São Paulo: Parábola, 2014. QUADROS GOMES, Ana Paula. A semântica de grau em PB. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA, XIII., SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE LETRAS E LINGUÍSTICA (SILEL), III., Uberlândia. Anais... Uberlândia, EDUFU, 2011. v. 2, n. 2, p. 1-9. QUADROS GOMES, Ana Paula. Modificadores de adjetivos de grau em PB. In: SIMELP - SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA: A FORMAÇÃO DE NOVAS GERAÇÕES DE FALANTES DE PORTUGUÊS NO MUNDO, III., 2011, Macau. Anais... Macau: Universidade de Macau, 2012. p. 5-1-5-11. 547 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 507-547, abr./jun. 2019 van ROOIJ, Robert. Vagueness and Linguistics. In: RONZITTI, G. (Org.). The Vagueness Handbook. Dordrecht: Springer, 2011. p. 1-57. ROTSTEIN, Carmen; WINTER, Yoad. Total Adjectives vs. Partial Adjectives: Scale Structure and Higher-Order Modifiers. Natural Language Semantics, [S.l.], v. 12, n. 3, p. 259-288, 2004. SOLT, Stephanie. Comparison to Arbitrary Standards. In: SINN AND BEDEUTUNG, 16., Utrecht. Proceedings... Utrecht: Universiteit Utrecht, 2011. p. 557-570. SOUZA, Luisandro M. de. Adjetivos graduais e a interpretação de maximizadores e minimizadores. Revista de Estudos da linguagem, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, 2018, p. 13-48, 2019. von STECHOW, Armin. Comparing Theories of Comparison. Journal of Semantics, Oxford, v. 3, n. 1-2, p. 183-199, 1984. TOLEDO, Assaf.; SASSOON, Galit W. Absolute vs. relative adjectives: variance within vs. between individuals. In: SEMANTICS AND LINGUISTIC THEORY CONFERENCE, 21, 2011, New Brunswick. Proceedings… New Brunswick: Rutgers University, 2011. p. 135-154. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 A pragmaticalização de capaz em português brasileiro e a codificação da atitude do falante The pragmaticalization of capaz in Brazilian Portuguese and the codification of the speaker’s attitude Patrícia Rodrigues Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná / Brasil rodriguespatriciaa@gmail.com Marcus Vinicius Lunguinho Universidade de Brasília (UnB), Brasília, Distrito Federal / Brasil marcuslunguinho@gmail.com Resumo: O objetivo deste trabalho é examinar as propriedades das construções do português brasileiro com a expressão capaz, como Capaz que a Maria viajou. Essas construções podem ter significados diferentes, dependendo do padrão de entoação a elas associado. Com uma entoação plana, capaz é interpretado como um modal epistêmico, enquanto com a acentuação em capaz, tal como falado na região sul do Brasil, essa expressão passa a ser interpretada como um marcador pragmático, expressando surpresa ou o ponto de vista contrário do falante. A hipótese defendida no trabalho é a de que essas leituras estão associadas a duas estruturas sintáticas distintas: as sentenças com capaz epistêmico são bioracionais, ao passo que as sentenças em que capaz funciona como marcador pragmático são mono-oracionais. Com base nas propostas de Speas e Tenny (2003) e de Hill (2007, 2014) acerca da existência de uma projeção associada ao ato de fala (denominada Speech Act Phrase – SAP) e visível para a computação sintática, propomos que capaz como um marcador pragmático é uma expressão que sofreu um processo de mudança linguística denominado pragmaticalização (DOSTIE, 2004) e, em consequência dessa mudança, é inserido diretamente no núcleo de SAP, projeção que faz a interface da sintaxe com a pragmática conversacional. Palavras-chave: modalidade epistêmica; marcador pragmático; interface sintaxepragmática. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.549-574 550 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 Abstract: The main aim of this paper is to examine the properties of Brazilian Portuguese constructions involving the expression capaz ‘capable’ (Capaz que a Maria viajou, literally ‘capable that Maria travelled’) which can have different meanings depending on the intonation pattern associated to it. With a flat intonation, capaz can be an epistemic modal; with an intonation stressing capaz, as spoken in Southern Brazil, it can be a pragmatic marker, expressing the speaker negative point of view or the speaker’s surprise. The hypothesis defended here is that these readings are related to two different structures. Constructions with epistemic capaz are treated as biclausal structures, whereas constructions with capaz functioning as a pragmatic marker are analyzed as monoclausal structures. Based on Speas and Tenny (2003) and Hill (2007, 2014), who assume the existence of a Speech Act Phrase (SAP), a projection associated with the speech act and visible for the syntactic computation, we propose that when it acts as a pragmatic marker, capaz is an expression that undergoes a process of linguistic change called pragmaticalization (DOSTIE, 2004) and, as a consequence, is externally merged into the head of SAP, a projection at the interface of syntax with conversational pragmatics. Keywords: epistemic modality; pragmatic marker; syntax-pragmatics interface. Recebido em 09 de setembro de 2018 Aceito em 28 de dezembro de 2018 1. Introdução O principal objetivo deste artigo é examinar as propriedades de construções do português brasileiro como (1), que envolvem a expressão capaz e que podem ter significados diferentes, dependendo do padrão de entoação a elas associados: (1) Capaz que a Maria viajou de ônibus! Com uma entonação plana, (1) é interpretada como ‘é possível/ provável que a Maria tenha viajado de ônibus’. Denominaremos capaz com esse sentido de capaz epistêmico. Com outra entoação, em que o acento recai sobre capaz, tal como falado na região sul do Brasil, (1) manifesta o ponto de vista contrário do falante ou sua dúvida/surpresa Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 551 com relação à proposição [Maria viajou de ônibus].1 Ou seja, ao enunciar (1) com esse padrão de entoação, o falante expressa que ele não acredita ou que ele duvida que a Maria tenha viajado de ônibus, ou ainda que ele está muito surpreso de ouvir sobre a viagem da Maria. Denominaremos capaz com esse sentido de capaz mirativo, tomando como base a definição de miratividade como uma categoria descritiva que denota informação nova ou inesperada para o falante (cf. DELANCEY, 2001; AIKHENVALD, 2012; entre outros). O exame de construções como (1) mostra que, para cada leitura, capaz apresenta propriedades morfossintáticas distintas. A nossa hipótese é que capaz mirativo é uma expressão que sofreu um processo de pragmaticalização (cf. DOSTIE, 2004), tornando-se um marcador pragmático. A fonte desse processo é, presumivelmente, o adjetivo capaz, que primeiramente perde seu significado etimológico de ‘ser habilidoso/ ser apto’, desenvolvendo a leitura epistêmica mais gramatical de ‘ser possível/ser provável’ (capaz epistêmico). Em seguida, capaz adquire uma função discursiva, tornando-se um marcador pragmático codificando a atitude do falante (capaz mirativo). Para dar conta das estruturas com capaz mirativo, adotamos as propostas de Speas e Tenny (2003) e de Hill (2007, 2014), de acordo com as quais fenômenos discursivo-pragmáticos fazem parte da estrutura sintática e são codificados no domínio de uma projeção sintática: a categoria Speech Act (SA). O significado de capaz mirativo seria então derivado de uma estrutura mono-oracional, como se vê em (2a), na qual capaz é inserido diretamente (externally merged) no núcleo do sintagma Speech Act. Além disso, essa expressão pragmaticalizada c-seleciona um ForceP nucleado por que como complemento. Com relação às construções com capaz epistêmico, argumentamos que elas formam uma estrutura bi-oracional, como se vê em (2b), na qual capaz é inserido diretamente (externally merged) em um núcleo funcional modal Mod que seleciona um CP como complemento. A expressão capaz pode então ser associada a duas categorias distintas, o que mostra diferentes estágios de gramaticalização dessa expressão: As diferentes curvas prosódicas associadas aos enunciados com capaz são facilmente percebidas pelos falantes (cf. BASSI; GORSKI, 2014). Embora a prosódia constitua um fator relevante na compreensão do ato ilocucional, uma investigação sobre a conexão entre os atos de fala e a entoação das sentenças foge ao escopo deste artigo. 1 552 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 (2) a. [ SAP capaz [ ForceP que [ TP b. [ ModP capaz [ CP que [ TP O artigo encontra-se organizado da seguinte forma. A seção 2 introduz as propostas de Speas e Tenny (2003) e de Hill (2007, 2014) acerca da codificação sintática de fenômenos da esfera pragmática. As seções 3 e 4 descrevem as propriedades (morfossintáticas e semântico-discursivas) das construções com capaz epistêmico e com capaz mirativo, respectivamente, e apresentam nossa proposta de análise para cada um desses usos de capaz. Finalmente, a seção 5 traz as considerações finais do artigo. 2. A interface entre a sintaxe e a pragmática conversacional No âmbito da Teoria Gerativa, Ross (1970) foi o primeiro trabalho que apresentou um tratamento formal para a interface entre a sintaxe e a pragmática conversacional. Partindo de sentenças declarativas como (3a), o autor propõe que elas tenham uma Estrutura Profunda como (3b): (3) a. Prices slumped. b. I V[+v, +performative, +communication, +linguistic, +declarative] you [prices slumped] Na Estrutura Profunda da qual deriva a sentença declarativa (3a), há quatro constituintes: um constituinte que traz a informação relativa ao falante (representado pelo pronome de 1ª pessoa I), um verbo performativo abstrato/implícito, um constituinte que traz a informação relativa ao ouvinte (representado pelo pronome de 2ª pessoa you) e a oração prices slumped, que aparece encaixada ao verbo performativo implícito e que veicula o conteúdo que o falante quer transmitir ao ouvinte. A essa Estrutura Profunda aplica-se uma transformação que vai apagar os constituintes referentes ao falante, ao verbo performativo e ao ouvinte e, como resultado, vai permitir que a oração encaixada se realize como uma oração independente.2 A proposta de Ross (1970) ficou conhecida como Hipótese Performativa e, segundo ela, todas as sentenças são associadas a um ato ilocucionário que é codificado em uma Estrutura Profunda na qual há 2 Ross (1970, p. 249) denomina essa transformação de Apagamento do Performativo. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 553 um verbo performativo e a informação sobre os participantes do ato de fala (ou seja, o falante e o ouvinte).3 Embora o trabalho de Ross (1970) dê uma importante contribuição para mostrar de que forma os atos de fala se constroem na sintaxe, esse trabalho recebeu várias críticas e, por isso, foi abandonado. Recentemente, a Hipótese Performativa foi retomada na esteira do projeto cartográfico,4 especialmente com a proposta de Rizzi (1997) de desmembrar o Sintagma Complementador (CP) em um conjunto de categorias como Força, Tópico, Foco e Finitude – categorias essas que fazem parte do que ele denominou periferia esquerda da sentença. Ao postular que categorias como Tópico e Foco são ativas na sintaxe, abriu-se (mais uma vez) a possibilidade de integrar categorias discursivopragmáticas à sintaxe. A consequência disso foi um crescente interesse por fenômenos relacionados ao discurso e à pragmática conversacional, tais como: advérbios e partículas discursivamente orientados e marcadores pragmáticos (HILL, 2007, 2014; HAEGEMANN; HILL, 2013; CRUSCHINA, 2015; HOLMBERG, 2015; WILTSCHKO; HEIM, 2016; WILTSCHKO, 2018; ZU, 2018), complementadores ilocucionários (CORR, 2016), concordância alocutiva (MIYAGAWA, 2012, 2017; ZU, 2015), logoforicidade e indexicalidade de pronomes (SPEAS, 2004; BAKER, 2008; GIORGI, 2010; SIGURÐSSON, 2014), vocativos (HILL 2014) e muitos outros. Apesar de se tratar de um conjunto heterogêneo de fenômenos, as análises propostas para eles compartilham a mesma hipótese de trabalho: as informações sobre os participantes do ato de fala são representadas na sintaxe. Essa hipótese pode ser pensada como um projeto tentativo de sintaticização do discurso (o termo é de HAEGEMAN; HILL, 2013) que não só recupera muito da Hipótese Performativa de Ross (1970) como também a atualiza. Uma versão moderna da Hipótese Performativa é encontrada em Speas e Tenny (2003). De acordo com as autoras, a pragmática conversacional é codificada na sintaxe por meio da categoria Speech Act Embora Ross (1970) ilustre sua Hipótese Performativa unicamente com dados de sentenças declarativas, essa hipótese se aplica a todos os tipos de sentenças. 4 Remetemos o leitor interessado no projeto cartográfico aos trabalhos: Rizzi (1997, 2013), Cinque (1999), Cinque e Rizzi (2010), Rizzi e Cinque (2016), Rizzi e Bocci (2017). 3 554 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 (sa), que projeta, na sintaxe, uma estrutura predicativa performativa que tem a seguinte configuração:5 saP (4) sa (falante) sa sa* sa* (conteudo do enunciado) sa* (ouvinte) Na representação acima, o núcleo Speech Act projeta uma estrutura com um argumento externo, um especificador e um complemento para a saturação dos papéis pragmáticos de falante, conteúdo do enunciado e de ouvinte, respectivamente.6 Tomando como ponto de partida a proposta de Speas e Tenny (2003) representada acima, Hill (2007, 2014), com base no estudo de partículas do romeno, propõe outra configuração para o mapeamento sintático da pragmática conversacional:7 (5) SASP SAS’ (falante) SAS SAHP SAH’ (ouvinte) SAH ForceP (enunciado) A configuração em (4) foi extraída de Speas e Tenny (2003, p. 320). A motivação para a categoria Speech Act vem do trabalho de Cinque (1999), em que o autor propõe o núcleo funcional Speech Act Mood como parte da sua hierarquia funcional. 7 A configuração em (5) foi extraída de Hill (2014, p. 147). 5 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 555 Segundo a autora, o sintagma de Força (ForceP) é selecionado como complemento do núcleo SAH e recebe o papel pragmático de enunciado. Pela configuração em que aparece, o núcleo SAH assemelha-se a um verbo, pois seleciona um complemento direto e projeta uma posição de especificador. Tal posição é preenchida por um constituinte ao qual é atribuído o papel pragmático de ouvinte. Finalmente, o núcleo SAS toma o SAHP como complemento e, da mesma forma que o núcleo SAH, também projeta uma posição de especificador. Essa posição é ocupada por um constituinte ao qual é atribuído o papel pragmático de falante. Como se vê, na proposta de Hill (2007, 2014), o sintagma Speech Act se compõe de duas camadas, sendo a camada mais alta relacionada ao falante (SAS) e a camada mais baixa relacionada ao ouvinte (SAH). Hill (2014) argumenta que esse tipo de formalização abre caminho para novas abordagens no campo da interface entre a sintaxe e a pragmática, porque, ao mesmo tempo que mantém a autonomia da pragmática como um componente da gramática, busca determinar em que medida a computação sintática acessa traços relativos à conversação. 3. Capaz epistêmico: propriedades e análise 3.1 Propriedades das sentenças com capaz epistêmico As sentenças com capaz epistêmico como (6a) têm sentido equivalente ao das sentenças com a construção impessoal é capaz que, em (6b). Em (6a), da mesma forma que em (6b), o falante se refere à proposição subjacente [A Maria viajou de ônibus] como provável. Essas sentenças estão, pois, relacionadas à modalidade epistêmica, revelando o grau de certeza do falante com relação ao conteúdo da proposição e poderiam, assim, ser parafraseadas por (6c): (6) a. Capaz que a Maria tenha viajado de ônibus. b. É capaz que a Maria tenha viajado de ônibus. c. É provável/possível que Maria tenha viajado de ônibus. A expressão capaz com sentido epistêmico também pode aparecer combinada com um complemento infinitivo introduzido pela preposição de, como em (7a). Importante mencionar que, com esse sentido de capaz, (7a) tem sentido correspondente ao da construção impessoal com a cópula (7b): 556 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 (7) a. Capaz da Maria ter viajado de ônibus. b. É capaz da Maria ter viajado de ônibus. Em construções como (6a-b) e (7a-b), capaz não funciona mais como o adjetivo capaz das construções predicativas que indicam habilidade/aptidão/capacidade, ilustradas em (8a-b), em que capaz se flexiona em número para concordar com o sujeito da predicação. A expressão capaz em (6a-b) e em (7a-b) tem forma morfológica fixa, como atestado pela inaceitabilidade de (8c-d): (8) a. Os alunos são capazes de fazer suas próprias escolhas. b. O João é capaz de fazer suas próprias escolhas. c. *São capazes / capazes que eles tenham viajado. d. *São capazes / capazes deles terem viajado. Além disso, o adjetivo capaz indicando habilidade/capacidade seleciona dois argumentos – um DP e uma oração infinitiva introduzida pela preposição de, conforme se vê nos exemplos (8a-b) – ao passo que capaz epistêmico seleciona apenas um argumento, de natureza oracional – uma oração infinitiva introduzida por de, como em (9a), ou uma oração finita, como em (9b): (9) a. É capaz / Capaz da Maria viajar de ônibus. b. É capaz / Capaz que a Maria viaje de ônibus. Capaz epistêmico pode aparecer também, como em (10a), em uma estrutura com cópula, estrutura essa aparentemente similar à estrutura (8b) na qual capaz apresenta sentido de habilidade. No entanto, o contraste apresentado em (10b-c) revela que o DP em posição de sujeito não é argumento externo de capaz epistêmico, mas chegou a essa posição por meio de alçamento.8 Além disso, (10d) deixa claro que o alçamento do sujeito também é possível a partir de complementos Não é objetivo deste trabalho discutir, em profundidade, o contraste entre essas construções, mas o leitor poderá encontrar em Castroviejo e Oltra-Massuet (2016a,b, 2018) uma proposta de análise para as diferenças entre ser capaz indicando habilidade e ser capaz epistêmico do espanhol. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 557 finitos. Finalmente, (10d) mostra que capaz não pode ser interpretado como indicando habilidade: (10) a. A Ana é capaz de querer um pedaço de bolo. b. *Essa pedra é capaz de querer um pedaço de bolo. c. Essa pedra é capaz de rolar montanha abaixo. d. A Maria é capaz que viaje de ônibus. Dessa breve discussão, destacam-se dois fatos importantes. O primeiro é que capaz epistêmico não tem o mesmo funcionamento que capaz indicando habilidade/capacidade. O segundo é que capaz epistêmico pode ser encontrado em contextos distintos: (i) com ou sem a presença da cópula, e (ii) com um complemento infinitivo ou com um complemento finito. Em relação aos exemplos com e sem cópula, não é possível estabelecer contraste quanto à possibilidade de encaixamento. Como se vê em (11), tanto a versão com cópula como a versão sem cópula podem ser encaixadas: (11) a. O técnico disse que (é) capaz da minha placa de som não aceitar Windows. b. O técnico disse que (é) capaz que minha placa de som não aceite Windows. Também não é possível estabelecer contraste quanto à possibilidade de subjuntivo no caso da complementação finita. Conforme mostram os dados em (12), o subjuntivo é possível tanto na presença da cópula quanto na sua ausência:9 (12) a. É capaz que o João volte pra casa ainda hoje. b. Capaz que o João volte pra casa ainda hoje. O modo indicativo também é atestado no caso da complementação finita, como em (i): (i) Capaz que o João vai viajar de ônibus. No entanto, devido à variação que existe na língua quanto ao uso do subjuntivo, não é possível determinar, sem um estudo mais aprofundado, se a variação entre subjuntivo e indicativo nas construções com capaz reflete, de fato, uma variação nesse contexto específico ou uma variação entre dialetos distintos. 9 558 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 É possível, contudo, observar um contraste de comportamento entre as sentenças com cópula e as sentenças sem cópula quanto à possibilidade de modificação adverbial de capaz. Enquanto sentenças como (13), nas quais a cópula está presente, aceitam facilmente a modificação, sentenças como (14), nas quais a cópula está ausente, não a aceitam e são bastante marginais: (13) a. É muito / realmente / perfeitamente capaz do João ser aprovado no concurso. b. É muito / realmente / perfeitamente capaz que o João seja aprovado no concurso. (14) a. ??Muito / realmente / perfeitamente capaz do João ser aprovado no concurso. ?? b. Muito / realmente / perfeitamente capaz que o João seja aprovado no concurso. Essa diferença de aceitabilidade é menos evidente em casos em que capaz é modificado por bem, como em (15): (15) a. É bem capaz / Bem capaz do João ser aprovado no concurso. b. É bem capaz / Bem capaz que o João seja aprovado no concurso. Em suma, capaz epistêmico tem comportamento diferente de capaz indicador de habilidade, pode aparecer precedido ou não de uma cópula e pode ser seguido de um complemento infinitivo ou de um complemento finito. Na seção que segue, discutiremos a estrutura dessas construções. 3.2 A sintaxe de capaz epistêmico Considerando a descrição do comportamento das construções com capaz apresentada na seção anterior, nossa proposta é a de que capaz epistêmico resulta de um processo de gramaticalização que afeta capaz com sentido de habilidade/capacidade. Essa proposta se alinha com os estudos sobre a mudança diacrônica dos modais (cf. TRAUGOTT, 1985; NARROG, 2012, entre outros). O fenômeno da gramaticalização é geralmente definido como um processo de mudança na qual um item em particular se torna mais gramatical com o passar do tempo; ou seja, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 559 por meio da gramaticalização, não só um item lexical se torna gramatical, como também um item gramatical se torna mais gramatical (cf. HOPPER; TRAUGOTT, 2003; ROBERTS; ROUSSOU, 2003; LEHMANN, 2015). Roberts e Roussou (2003) abordam a gramaticalização a partir da ideia de que o movimento diacrônico de um dado morfema se dá sempre de uma posição mais baixa para uma posição mais alta na estrutura hierárquica das categorias funcionais. Assim, os percursos de gramaticalização são definidos pelas reanálises sucessivas para posições mais altas na hierarquia funcional. Para os autores, o mecanismo básico da gramaticalização é a perda de movimento. No caso de capaz epistêmico, presumivelmente, capaz é resultado da gramaticalização de capaz predicativo com sentido de habilidade/ capacidade, que seleciona um complemento infinitivo introduzido pela preposição de – ver o exemplo (8b). A partir desse significado, capaz desenvolve o sentido mais gramatical de possibilidade/probabilidade. Ambos os sentidos podem estar associados com a estrutura sintática aparente ‘X ser capaz de Y’, como mostra o exemplo em (16a). A extensão do sentido de capaz teria permitido um novo mapeamento sintático dos argumentos, resultando nas construções impessoais epistêmicas em (16b-c):10 (16) a. O João é capaz de levantar a mesa. (sentido de habilidade ou possibilidade) b. (É) capaz do João levantar a mesa. (sentido epistêmico) c. (É) capaz que o João levante a mesa. (sentido epistêmico) Com relação à estrutura sintática das sentenças com complemento infinitivo, assumimos que as sentenças sem a cópula são equivalentes às sentenças com a cópula; ou seja, assumimos que, nas sentenças sem a cópula, ela está elidida. Essa também é a nossa proposta para as sentenças com complemento finito: seguindo Bassi e Gorski (2014), propomos que as sentenças com capaz que seriam o equivalente das construções impessoais do tipo é capaz que com elisão da cópula. Grández Ávila (2010) descreve um percurso de gramaticalização semelhante para capaz no espanhol americano. A autora propõe também que capaz que é uma expressão mais gramaticalizada do que es capaz que. 10 560 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 É importante observar que nossa análise difere da análise que Cruschina (2015) apresenta para a expressão capace che do italiano – expressão essa similar à expressão capaz que do português. De acordo com a argumentação do autor, as sentenças com capace che não são equivalentes às construções impessoais com è capace che com elisão da cópula. Para justificar sua análise, o autor apresenta os dados em (17) e em (18): (17) a. È capace / *Capace che piova. ‘É capaz / Capaz que chova’ b. Dicevano che è capace che piova. ‘Disseram que é capaz que chova’ c. *Dicevano che capace che piove. ‘Disseram que capaz que chove’ Em (17a), observa-se que capace che, ao contrário de è capace che, não aceita um verbo flexionado no subjuntivo; em (17b), vê-se que a expressão è capace che pode ser encaixada, diferentemente de capace che, em (17c), que não pode aparecer encaixada. O exemplo em (18) mostra que capace che é incompatível com modificação: (18) *Molto / abbastanza / próprio / veramente capace che era stanco. Literalmente: ‘Muito / quase / já / realmente capaz que estava cansado’ De acordo com Cruschina, o fato de capace che não poder ser seguido de um verbo no subjuntivo nem poder aparecer em uma oração encaixada sugere que essa expressão constituiria um fenômeno que ocorre unicamente em orações matrizes. Além disso, a impossibilidade de modificação indicaria a gramaticalização de capace como um núcleo funcional. Assim, para o autor, a estrutura impessoal è capace che seria bi-oracional, enquanto capace che seria mono-oracional, envolvendo um elemento mais gramaticalizado que ocupa um núcleo funcional orientado para o falante acima de CP. Cruschina (2015) adota a proposta de Hill (2007), acerca da representação sintática de papéis pragmáticos, e propõe 561 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 que capace é um elemento funcional que ocupa o núcleo de SAP e que seleciona um CP nucleado por che. Os dados do português apresentados na seção anterior mostram que essa língua tem comportamento diferente do comportamento do italiano. O exemplo em (11b) mostra que capaz que epistêmico pode aparecer em uma oração encaixada, e o exemplo em (12b) atesta que capaz que epistêmico pode ser seguido de um verbo no subjuntivo. Essas propriedades, que não podem ser associadas a propriedades de orações matrizes, sugerem que capaz que não poderia ser analisado como um elemento funcional em uma estrutura mono-oracional. No entanto, o exemplo em (14b) indica que, sem a presença da cópula, capaz não pode ser facilmente modificado. Argumentamos que essa marginalidade em relação à modificação não é resultado de uma estrutura como a proposta por Cruschina para o italiano: (14a), por exemplo, em que o complemento de capaz é uma oração infinitiva, também apresenta restrições à modificação, e, nesse caso, claramente não é possível propor que uma oração infinitiva seja analisada como oração matriz. Esses dados sugerem que a impossibilidade de modificação estaria diretamente ligada à elisão da cópula. Assim, assumimos neste trabalho que a expressão capaz que é equivalente à expressão é capaz que com a elisão da cópula e propomos para os dois tipos de construção a mesma análise estrutural – ambas formam estruturas bi-oracionais. Argumentamos que capaz predicativo com sentido de habilidade/capacidade (que aparece ilustrado em 19a) passa por um processo de gramaticalização que resulta no surgimento de capaz epistêmico. Como consequência dessa mudança, capaz epistêmico passa a ser inserido diretamente em um núcleo funcional Mod que seleciona um CP como complemento (como aparece ilustrado em 19b): (19) a. AdjP DP Adj Adj PP capazhabilidade b. TP T (é) ModP Mod CP capazepistêmico Essa análise é compatível com a generalização de Roberts e Roussou (2003) sobre a tendência de elementos que adentram o sistema funcional por meio de gramaticalização serem reanalisados em posições mais altas na estrutura. Não excluímos, no entanto, a necessidade de 562 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 estudos futuros mais aprofundados para entender melhor essa questão. As sentenças em (15), por exemplo, que mostram que o advérbio bem pode modificar capaz mesmo na ausência da cópula, parecem apontar para um processo de gramaticalização da expressão bem capaz. 4. Capaz mirativo: propriedades e análise 4.1 Propriedades das sentenças com capaz mirativo A leitura mirativa de capaz apresenta algumas nuances. Capaz mirativo pode, por exemplo, veicular o sentido de ‘eu não acredito’ ou o de ‘é verdade?’, ‘é mesmo?’. Essas possibilidades interpretativas de capaz mirativo estão ilustradas em (20) e em (21):11 (20) Na: Sabia que a minha filha disse que essas cores que você escolheu para fazer os tapetes vão ficar bem bonitas juntas? Ni: Capaz que ela disse isso! Que legal! (21) C: Essa carne que você assou hoje ficou dura. M: Capaz!! Eu fiz com tanto cuidado! Como se vê, os falantes identificados como ‘Ni’ e como ‘M’, ao usarem capaz mirativo, demonstram não aceitarem imediatamente a informação apresentada pelo seu interlocutor e reagem, questionando seu conteúdo (cf. BASSI; GORSKI, 2014). Em (20), o falante identificado como ‘Ni’ se surpreende inicialmente com o que foi afirmado por ‘Na’, duvidando de sua declaração. O enunciado de ‘Ni’ poderia ser parafraseado por ‘É verdade? Eu não acredito que ela disse isso!’, com um tom de surpresa. Em (21), ao utilizar capaz, o falante ‘M’ também demonstra surpresa e incredulidade com relação à afirmação de ‘C’. A exclamação que segue a expressão capaz confirma que, para ‘M’, essa afirmação é totalmente inesperada. A resposta de ‘M’ poderia ser parafraseada por ‘É mesmo? Eu fiz com tanto cuidado!’. Capaz mirativo também pode ser interpretado como o ponto de vista contrário do falante sobre o que foi afirmado. Nesses casos, muitas vezes, capaz pode ser equivalente a ‘não’, e a atitude do falante pode ser Esses exemplos foram extraídos de Bassi e Gorski (2014, p. 605). A referência aos interlocutores foi mantida como no original. 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 563 expressa com mais ou menos convicção e com alguma dose de ironia. Essa outra possibilidade interpretativa de capaz mirativo é apresentada nos exemplos (22) e (23):12 (22) L: Se chover assim não vai ter a Semana Farroupilha. M: Capaz que não! (23) F: A gente poderia, neste feriado, ir pescar lá no Guaíba. O que tu acha da minha ideia? R: Ah tá, capaz que eu vou pescar contigo! Nem falar. Em (22), Capaz que não! expressa a não concordância do falante ‘M’ em relação à afirmação de ‘L’. Ou seja, a expressão capaz que serve para ‘M’ manifestar seu ponto de vista contrário ao da previsão de ‘L’ de que a Semana Farroupilha não vai acontecer se a chuva continuar. Já em (23), ‘R’ expressa mais do que uma negação enfática ao convite de ‘F’. Além de recusar o convite, ‘R’ também expressa seu ponto de vista negativo sobre a ideia propriamente dita de pescar na companhia de ‘F’, dando a entender que tal ideia é absurda. Vale observar que em (21) também é possível interpretar capaz como veiculando um ponto de vista negativo, além da surpresa, pois a sequência do enunciado não esclarece se ‘M’ adere ou não à declaração de ‘C’. Esses exemplos mostram que capaz não veicula simplesmente uma negação enfática por parte do falante. A função primeira de capaz parece ser a de expressar o ponto de vista do falante sobre a proposição expressa na oração introduzida por que – essa oração pode estar elidida na sentença, como no exemplo (22). Assim, a sentença pode expressar apenas surpresa, incredulidade, ou, juntamente com a surpresa, o posicionamento contrário em relação ao que foi afirmado pelo interlocutor. Dessa forma, capaz mirativo se enquadra na definição de miratividade tal qual proposta por DeLancey (2001), para quem esse termo se refere à marcação linguística de um enunciado como veiculando informação nova ou inesperada para o falante, com nuances de surpresa. Na seção 4.3, discutiremos os sentidos de capaz mirativo. Esses exemplos foram extraídos de Bassi e Gorski (2014, p. 610 e 608, respectivamente). Como nos exemplos anteriores, mantivemos a referência aos interlocutores como no original. 12 564 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 Com relação às suas características morfológicas, capaz mirativo, tal como capaz epistêmico, tem uma forma fixa: (24) *Capazes que eles viajaram de ônibus! No entanto, diferentemente de capaz epistêmico, o verbo da oração finita introduzida por que só pode ser flexionado no modo indicativo: (25) a. Capaz que a Maria viajou de ônibus! b. #Capaz que a Maria viaje de ônibus! Além disso, capaz mirativo não pode se combinar com uma oração infinitiva introduzida pela preposição de: (26) #Capaz da Maria viajar de ônibus! Outra característica das construções com capaz mirativo é que elas não podem ser encaixadas: (27) #O João disse / acha que capaz que a Maria viajou de ônibus! Por fim, capaz mirativo pode co-ocorrer com o advérbio bem sem mudança de sentido, mas não pode co-ocorrer com outros advérbios de intensidade. Nas construções em que capaz aparece combinado com bem, há uma intensificação da surpresa e/ou oposição: (28) a. Bem capaz que a Maria viajou de ônibus! (= Duvido que a Maria tenha viajado de ônibus) b. *Muito / realmente capaz que a Maria viajou de ônibus! Em síntese, as propriedades examinadas nesta seção confirmam que a forma de capaz mirativo não pode ser equiparada à forma de capaz epistêmico. Na seção que segue, discutiremos a estrutura das construções com capaz mirativo. 4.2 A sintaxe de capaz mirativo O comportamento das estruturas com capaz mirativo descrito na seção precedente mostra claramente que, no seu sentido mirativo, capaz Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 565 é uma expressão diretamente ligada à atitude do falante, veiculando surpresa / dúvida / ponto de vista contrário com relação a uma afirmação do interlocutor. Em ouras palavras, capaz mirativo não está relacionado com a modalidade epistêmica. Além disso, essa expressão, diferentemente de capaz epistêmico, se combina unicamente com uma oração finita no indicativo e não pode ser encaixada nem modificada. Essa expressão pode aparecer, no entanto, acompanhada do advérbio bem, que tem a função de intensificar a reação de surpresa ou de oposição do falante. Capaz mirativo pode, assim, ser definido como um marcador pragmático que codifica o ponto de vista do falante. O termo ‘marcador pragmático’ tem sido utilizado para designar um conjunto bastante heterogêneo de formas que, de modo geral, como a forma capaz, não produzem um efeito no nível estritamente proposicional, mas assinalam as intenções potencialmente comunicativas do falante (FRASER, 1996). Nossa proposta é a de que essa forma é resultante de um processo de pragmaticalização sofrido por capaz epistêmico. Acerca do conceito de pragmaticalização, Dostie (2004) mostra que há [...] duas trajetórias que levam à gênese de unidades que não pertencem às principais classes de palavras (isto é, substantivos, verbos, adjetivos ou advérbios). Por um lado, uma unidade lexical pode desenvolver usos gramaticais. Nesse caso, ela estará submetida a um processo de “gramaticalização”. Por outro lado, uma unidade lexical/gramatical pode desenvolver empregos onde não desempenha um papel no nível referencial, mas no nível conversacional. Nesse caso, será o resultado de um processo de “pragmaticalização” (DOSTIE, 2004, p. 24 – tradução nossa).13 Como define Dostie, a gramaticalização e a pragmaticalização são processos de mudança linguística que diferem em relação ao resultado da mudança. Se um item lexical passou a desempenhar funções No original: “[...] deux trajectoires menant à la genèse d’unités qui n’appartiennent pas aux classes majeures de mots (c’est-à-dire aux noms, aux verbes, aux adjectifs ou aux adverbes). D’une part, une unité lexicale peut développer des emplois grammaticaux; elle aura alors été soumise à un processus de ‘grammaticalisation’. D’autre part, une unité lexicale/grammaticale peut développer des emplois où elle ne joue pas un rôle sur le plan référentiel, mais bien, sur le plan conversationel; elle sera alors le résultat d’un processus de ‘pragmaticalisation’”. 13 566 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 gramaticais, desenvolvendo-se em uma categoria gramatical/funcional, esse item sofreu um processo de gramaticalização. Se um item (lexical ou gramatical) passou a desempenhar funções da esfera discursivopragmática, desenvolvendo-se em um elemento do discurso, esse item sofreu um processo de pragmaticalização.14 É possível, igualmente, descrever o processo de mudança sofrido por capaz mirativo como um processo de subjetificação, conforme a tendência apontada por Traugott (1989) de que o significado tende a se tornar cada vez mais subjetivo, uma vez que que veicula a atitude do falante em relação a uma proposição. A nossa hipótese é que (bem) capaz mirativo, marcador pragmático, é inserido diretamente (externally merged) em uma categoria que assumimos ser a categoria Speech Act, localizada acima da periferia esquerda da sentença, como discutido na seção 2. Como capaz mirativo possui uma função exclusivamente pragmática, indicando a atitude do falante, essa expressão seria inserida em SAS, uma posição relacionada ao falante, como na estrutura em (29), onde o papel pragmático de falante (speaker p-role) pode ser checado no especificador de SASP: (29) SASP (falante) SAS’ SAS SAHP capaz SAH’ (ouvinte) SAH ForceP Force que TP Se assumirmos, como Hill (2014), que vocativos são inseridos no especificador de SAH, a ordem linear observada em (30) sugere que capaz efetivamente deve ser inserido em SAS, pois capaz precede linearmente o vocativo cara: Não há consenso na literatura acerca de os processos de gramaticalização e pragmaticalização envolverem os mesmo os mecanismos (cf. ROBERTS, 2010). 14 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 567 (30) Capaz, cara, que a Maria viajou de ônibus! A proposta de pragmaticalização de capaz mirativo a partir de capaz epistêmico, apresentada nesta seção, e a proposta de gramaticalização de capaz epistêmico a partir do adjetivo capaz indicando habilidade/capacidade, apresentada na seção 3, descrevem a trajetória de gramaticalização/pragmaticalização percorrida por capaz. Reafirmamos que essa análise é compatível com a generalização de Roberts e Roussou (2003) sobre a tendência de se reanalisar em posições mais altas na estrutura um elemento que adentra o sistema funcional. Na próxima seção, sugerimos uma possível trajetória semântico-pragmática para esse processo. 4.3 As leituras de capaz mirativo A gramaticalização das expressões modais com mudança de sentido do domínio habilitativo para o domínio epistêmico tem sido bastante estudada e documentada na literatura, como mencionado acima. Assim, a proposta de gramaticalização de capaz epistêmico a partir do adjetivo capaz indicando habilidade se baseia nesse percurso já atestado, além de se alinhar com propostas similares para capaz em espanhol (GRÁNDEZ ÁVILA, 2010; CASTROVIEJO; OLTRA-MASSUET, 2016a,b, 2018). Com relação à proposta de pragmaticalização de capaz mirativo, a trajetória semântico-pragmática que parte de capaz epistêmico e resulta em capaz mirativo não é tão óbvia assim. A nossa hipótese de trabalho, que precisa ser desenvolvida em trabalhos futuros, é a seguinte: (31) Pragmaticalização de capaz mirativo (i) capaz epistêmico está associado ao significado de possibilidade/ probabilidade e esse significado gera uma dúvida; (ii) pelo fato de poder expressar dúvida, capaz passa para o domínio da expressividade/atitude, podendo exprimir surpresa/incredulidade; (iii) a expressão de surpresa pode ser intensificada e adquirir um valor de rejeição/negação. Uma trajetória semelhante é descrita por Vincent (2005) para a subjetificação de par exemple ‘por exemplo’ em francês, que perde o sentido de exemplificação, ilustração, para se tornar um marcador 568 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 pragmático que transmite surpresa, como no exemplo (32). A autora especifica que, a partir desse estágio, par exemple assume diferentes características de interjeições, podendo marcar uma rejeição categórica da opinião de outrem: (32) Il m’a trompé, par exemple! Literalmente: “Ele me tem enganado, por exemplo!” ‘Ele me enganou!’ Assumimos que tanto a expressão de surpresa quanto a expressão de negação se encaixam na definição de miratividade como marcação linguística de um enunciado que transmite informação nova ou inesperada para o falante, com nuances de surpresa. De modo geral, miratividade é compreendida como parte da categoria evidencialidade, que se refere à marcação gramatical da fonte da informação. DeLancey (2001) afirma, contudo, que várias línguas, como tibetano e hare, fornecem evidências de que miratividade deve ser reconhecida como um fenômeno distinto da evidencialidade. Isso não significa, no entanto, que não possa haver uma sobreposição na expressão desses fenômenos. Além da sobreposição dos fenômenos miratividade e evidencialidade, DeLancey também aponta para a ligação entre evidencialidade e modalidade, afirmando que, em um nível mais abstrato, evidencialidade, miratividade e modalidade podem ser pensadas como conceitualmente relacionadas. A esse respeito, ele cita, por exemplo, “[...] a leitura claramente evidencial de certos usos de must em inglês, como no caso em que dizemos de alguém que não apareceu quando era esperado: (1) He must have gotten lost” (DELANCEY, 2001, p. 370 – tradução nossa).15 Segundo o autor, não deveria ser uma surpresa a constatação de interação e sobreposição entre essas categorias, porque cada categoria representa a indexação gramatical das maneiras como a proposição pode se desviar de um ideal de conhecimento. [...] O estatuto não marcado do conhecimento é a proposição conhecida pelo falante por meio de experiência direta, assumida como certamente verdadeira e completamente consistente No original: “[…] the clearly evidential readings of certain uses of English must, as when we say of someone who has failed to show up when expected: (1) He must have gotten lost”. 15 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 569 com o conhecimento de mundo do falante. Evidencialidade, miratividade e modalidade representam dispositivos para marcar uma proposição como não cumpridora de um desses critérios. Dessa perspectiva, não é nada surpreendente encontrar interação e sobreposição entre essas categorias na forma como são expressas nas línguas. Particularmente, não surpreende que formas de um tipo de sistema desenvolvam funções de outro tipo, como quando sentidos evidenciais se desenvolvem em construções mirativas (vejam meus comentários sobre modais no início deste artigo)16 (DELANCEY, 2001, p. 379-380 – tradução nossa)17 Dessa forma, considerando, como afirma DeLancey, que evidencialidade, miratividade e modalidade interagem e se sobrepõem, e que formas de um tipo de sistema podem desenvolver funções de outro sistema, não é tão surpreendente que a forma capaz possa ter desenvolvido uma função mirativa a partir do domínio da modalidade epistêmica. 5. Considerações finais Este artigo discutiu duas construções do português brasileiro envolvendo a expressão capaz. Nessas construções, capaz pode ser analisado como um modal epistêmico, com o sentido de possibilidade/ probabilidade (capaz epistêmico) ou pode funcionar como um marcador pragmático com uma função mirativa, ou seja, veiculando surpresa/ dúvida/ponto de vista contrário do falante (capaz mirativo). Propusemos que essas construções possuem estruturas sintáticas distintas. As sentenças com capaz epistêmico formam estruturas bioracionais nas quais capaz é um elemento modal inserido diretamente em um núcleo O comentário a que se refere o autor está citado no final parágrafo precedente. No original: “[…] represents the grammatical indexation of ways in which a proposition can deviate from an ideal of knowledge. […] The unmarked knowledge status is a proposition which is known by the speaker by direct experience, is assumed to be certainly true, and is fully consistent with the rest of the speaker’s knowledge of the world. Evidentiality, mirativity, and modality represent devices for marking a proposition as failing to meet one of these criteria. From this perspective, it is hardly surprising to find interaction and overlap among these categories as they are expressed in languages. In particular, we need not be surprised that forms from one kind of system develop functions of another, as when evidential senses developed into fundamentally mirative constructions, (and see my comment on modals at the beginning of this paper)”. 16 17 570 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 Mod que seleciona um CP como complemento. Já as sentenças com capaz mirativo formam estruturas mono-oracionais nas quais capaz é um marcador pragmático inserido diretamente na categoria Speech Act, localizada acima da periferia esquerda da sentença, na interface da sintaxe com a pragmática, onde papéis pragmáticos (falante e ouvinte) são codificados. Propusemos igualmente que capaz mirativo é uma expressão que sofreu um processo de pragmaticalização. Presumivelmente, a origem desse processo é a expressão capaz em seu uso epistêmico. Sugerimos a hipótese de que o sentido de surpresa/dúvida/ negação de capaz mirativo desenvolveu-se a partir do sentido de possibilidade de capaz epistêmico. Essas análises são compatíveis com a generalização de Roberts e Roussou (2003) de que uma vez que um elemento adentra o sistema funcional, ele tende a ser reanalisado sucessivamente em posições mais altas na estrutura, criando percursos de gramaticalização. Acreditamos que os dados examinados neste trabalho constituem evidência empírica para a proposta da categoria Speech Act, e, nesse sentido, podem contribuir para a discussão sobre a “sintaticização do discurso” (cf. HAEGEMAN; HILL, 2013) e para uma melhor compreensão acerca da computação sintática dos atos de fala. Contribuição dos autores Este artigo resulta de um projeto conjunto dos dois autores, o qual se volta a catalogar, descrever e analisar um conjunto variado de fenômenos do português brasileiro cujo entendimento demanda uma articulação entre a sintaxe e a pragmática conversacional. Como se trata de projeto comum, ambos os autores participaram de todas as etapas de realização da investigação, quais sejam: a) levantamento e discussão das fontes bibliográficas, b) coleta dos dados, c) sistematização e descrição das propriedades das construções com capaz aqui examinadas e d) proposta e discussão de possibilidades de análise para os dados. Todas essas etapas culminaram com o presente artigo cuja redação ficou a cargo dos dois autores. Referências AIKHENVALD, A. Y. The essence of mirativity. Linguistic Typology, [S.l.], v. 16, n. 3, p. 435-485, 2012. BAKER, M. On the nature of the antiagreement effect: evidence from wh-in-situ in Ibibio. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 39, n. 4, p. 615-632, 2008. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 571 BASSI, A.; GÖRSKI, E. M. A multifuncionalidade do item capaz na fala gaúcha: uma abordagem baseada no uso. Alfa, Araraquara, v. 58, n. 3, p. 593-622, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-5794-1409-4 CASTROVIEJO, E.; OLTRA-MASSUET, I. On capacities and their epistemic extensions. In: TORTORA, C.; DEN DIKKEN, M.; MONTOYA, I.; O’NEILL, T. (Ed.). Romance Linguistics 2013. Selected Papers from the 43rd Symposium on Romance Linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2016a. p.59-78. DOI: https://doi.org/10.1075/rllt.9.04cas CASTROVIEJO, E.; OLTRA-MASSUET, I. What does be capable tell us about capacities? An answer from Romance. In: MARTIN, F., PITTEROFF, M.; PROSS, T. (Ed.). Morphological, Syntactic, and Semantic Aspects of Dispositions. Stuttgart: University of Stuttgart, 2016b. p. 30-51. CASTROVIEJO, E.; OLTRA-MASSUET, I. Generic and actiondependent abilities in Spanish ‘Be capable’. Glossa, Leiden, v. 3, n. 1, p. 131-132, 2018. DOI: https://doi.org/10.5334/gjgl.495 CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads: A cross-linguistic perspective. Oxford: Oxford University Press, 1999. CINQUE, G.; RIZZI, L. The cartography of syntactic structures. In: HEINE, B.; NARROG, H. (Ed.). The Oxford Handbook of Linguistic Analysis. New York: Oxford University Press, 2010. p. 51-65. CORR, A. V. Ibero-Romance and the Syntax of the Utterance. 2016. 294 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Department of Theoretical and Applied Linguistics, University of Cambridge, 2016. CRUSCHINA, S. The expression of evidentiality and epistemicity: Cases of grammaticalization in Italian and Sicilian. Probus, [S.l.], v. 27, n. 1, p. 1-31, 2015. DeLANCEY, S. The mirative and evidentiality. Journal of Pragmatics, v. 33, n. 3, p. 371-384, 2001. DOI: https://doi.org/10.1016/S03782166(01)80001-1 DOSTIE, G. Pragmaticalisation et Marqueurs Discursifs: Analyse sémantique et traitement lexicographique. Bruxelas: De Boeck/Duculot, 2004. FRASER, B. Pragmatic markers. Pragmatics, [S.l.], v. 6, n. 2, 167-190, 1996. 572 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 GIORGI, A. About the Speaker: Towards a syntax of indexicality. Oxford: Oxford University Press, 2010. GRÁNDEZ ÁVILA, M. A Functional Approach to the Subjectification of Facultative Meaning: The case of capaz in American Spanish. 2010. 37f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Department of Linguistics, University of Amsterdam, 2010. HAEGEMAN, L.; HILL, V. The syntacticization of discourse. In: FOLLI, R.; TRUSWELL, R; SEVDALI, C. (Ed.). Syntax and its Limits. Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 370-390. DOI: https://doi.org/10.1093/ acprof:oso/9780199683239.003.0018 HILL, V. Vocatives and the pragmatics-syntax interface. Lingua, [S.l.], v. 117, n. 2, p. 2077-2105, 2007. HILL, V. Vocatives: How syntax meets with pragmatics. Leiden: Brill Publishers, 2014. HOLMBERG, A. The Syntax of yes and no. Oxford: Oxford University Press, 2015. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780198701859.001.0001 HOPPER, P. J.; TRAUGOTT, E. C. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. DOI: https://doi.org/10.1017/ CBO9781139165525 LEHMANN, C. Thoughts on Grammaticalization. 3. ed. Berlim: Language Science Press, 2015. MIYAGAWA, S. Agreements that occur mainly in the main clause. In: AELBRECHT, L.; HAEGEMAN, L.; NYE, R. (Ed.). Main Clause Phenomena: New Horizons. Amsterdam: John Benjamins, 2012. p. 79112. DOI: https://doi.org/10.1075/la.190.04miy MIYAGAWA, S. Agreement Beyond Phi. Cambridge, MA: MIT Press, 2017. NARROG, H. Modality, Subjectivity and Semantic Change. New York: Oxford University Press, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/ 9780199694372.001.0001 RIZZI, L. The fine structure of the left periphery. In: HAEGEMAN, L. (Ed.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8_7 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 573 RIZZI, L. Notes on Cartography and further explanation. Probus, [S.l.], v. 25, n. 1, p. 197-226, 2013. RIZZI, L.; BOCCI, G. The left periphery of the clause: primarily illustrated for Italian. In: EVERAERT, M.; VAN RIEMSDIJK, H. (Ed.). The Wiley Blackwell Companion to Syntax. 2. ed. Oxford: Blackwell, 2017. p. 2171-2200. DOI: https://doi.org/10.1002/9781118358733. wbsyncom104 RIZZI, L.; CINQUE, G. Functional categories and syntactic theory. Annual Review of Linguistics, [S.l.], v. 2, n. 1, p. 139-163, 2016. ROBERTS, I. Grammaticalization, the clausal hierarchy and semantic bleaching. In: TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. (Ed.). Gradience, Gradualness and Grammaticalization. Amsterdam: John Benjamins, 2010. p. 45-73. DOI: https://doi.org/10.1075/tsl.90.05rob ROBERTS, I.; ROUSSOU, A. Syntactic Change: A minimalist approach to grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9780511486326 ROSS, J. R. On declarative sentences. In: JACOBS, R. A.; ROSENBAUM, P. S. (Ed.). Readings in English Transformational Grammar. Washington: Georgetown University Press, 1970. p. 222-272. SIGURÐSSON, H. Á. Context-linked grammar. Language Sciences, [S.l.], v. 46, p. 175-188, 2014. DOI: https://doi.org/10.1016/j.langsci.2014.06.010 SPEAS, M. Evidentiality, logophoricity and the syntactic representation of pragmatic roles. Lingua, [S.l.], v. 114, n. 3, p. 255-276, 2004. SPEAS, M.; TENNY, C. Configurational properties of point of view roles. In: Di SCIULLO, A.M. (Ed.). Asymmetry in Grammar. Amsterdam: John Benjamins, 2003. p. 315-344. DOI: https://doi.org/10.1075/la.57.15spe TRAUGOTT, E. C. On regularity in semantic change. Journal of Literary Semantics, [S.l.], v. 14, n. 3, p. 155-173, 1985. TRAUGOTT, E. C. On the rise of epistemic meanings in English: an example of subjectification in semantic change. Language, [S.l.], v. 65, n. 1, p. 31-55, 1989. VINCENT, D. The journey of non-standard discourse markers in Quebec French: Networks based on exemplification. Journal of Historical Pragmatics, [S.l.], v. 6, n. 2, p. 188-210, 2005. 574 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 549-574, abr./jun. 2019 WILTSCHKO, M. Response particles beyond answering. In: BAILEY, L.; SHEEHAN, M. (Ed.). Order and Structure in Syntax I: Word order and syntactic structure. Berlim: Language Science Press, 2018. p. 241-279. WILTSCHKO, M.; HEIM, J. The syntax of sentence peripheral discourse markers. A neo-performative analysis. In: KALTENBÖCK, G; KEIZER, E.; LOHMANN, A. (Ed.). Outside the Clause: Form and function of extra-clausal constituents. Amsterdam: John Benjamins, 2016. p. 305340. DOI: https://doi.org/10.1075/slcs.178.11wil ZU, Vera. Probing for conversation participants: the case of Jingpo. In: APARICIO TERRASA, H.; FRANICH, K.; FLINN, G.; PIETRASZKO, A.; VARDOMSKAYA, T. (Ed.). Proceedings of the 49th annual regional meeting of Chicago Linguistic Society. Chicago: Chicago Linguistic Society, 2015. p. 379-389. ZU, V. Discourse Participants and the Structural Representation of the Context. 2018. 279 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Department of Linguistics, New York University, 2018. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 An Experimental Study on the Interpretation of Bare Singulars in Mexican Spanish Um estudo experimental sobre a interpretação de singulares nus no espanhol mexicano Ohanna Teixeira Barchi Severo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil ohannasevero@hotmail.com Abstract: This paper explores the interpretation of bare singulars (count nouns that are not preceded by determiners) as coche (“car”) in María compró coche ayer (“Mary bought (a/some) car(s) yesterday”) in Mexican Spanish. A quantity judgment task was performed with 134 L1 Mexican speakers and they had to choose one between two scenarios where different quantities of the tested noun were shown. In this task, while presenting two different characters, one that has two big portions of x (Volume) and another that has six different portions of x (Number), it is presented a comparative sentence (Marcelo tiene más X que Lena (“Marcelo has more X than Lena”)) and asked whether the sentence was true or false given the context. The results show that a Number interpretation was preferred for bare singulars (Marcelo tiene más bici que Lena (“Marcelo has more bike than Lena”)) and a Volume interpretation was preferred for substance mass nouns (Marcelo tiene más agua que Lena (“Marcelo has more water than Lena”)). That is, the absence of the plural morpheme (mass syntax) does not trigger a mass interpretation of bare singulars; bare singulars are interpreted as pluralized count nouns even when they are not pluralized. Keywords: Mexican Spanish; bare singulars; count/mass distinction; quantity judgment task. Resumo: Esse trabalho explora a interpretação de singulares nus (nomes contáveis que não são precedidos de determinantes) como coche (“carro”) em María compró coche ayer (“Maria comprou (um/alguns) carro(s) ontem”) no Espanhol Mexicano. Um julgamento de quantidade foi feito com 134 falantes mexicanos L1 e eles tiveram que eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.575-601 576 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 escolher um entre dois cenários em que diferentes quantidades do nome testado eram mostradas. Nessa tarefa, enquanto duas personagens diferentes foram apresentadas, uma que possuía duas porções grandes de x (Volume) e outra que possuía seis diferentes porções de x (Número), é apresentada uma sentença comparativa (Marcelo tiene más X que Lena (“Marcelo tem mais X que Lena”)) e perguntado se a sentença é verdadeira ou falsa, dado o contexto. Os resultados mostram que a interpretação de Número foi a preferida para singulares nus (Marcelo tiene más bici que Lena (“Marcelo tem mais bicicleta que Lena”)) e a interpretação de Volume foi a preferida para nomes massivos de substância (Marcelo tiene más água que Lena (“Marcelo tem mais água que Lena”)). Isto é, a ausência de morfema de plural (sintaxe massiva) não desencadeia uma interpretação massiva de singulares nus; singulares nus são interpretados como nomes contáveis pluralizados mesmo que eles não estejam pluralizados. Palavras-chave: Espanhol Mexicano; singulares nus; distinção contável/massiva; tarefa de julgamento de quantidade. Submitted on September 10th, 2018 Accepted on November 29th, 2018 1 Introduction A consensus in the literature about Spanish is that count (e.g. perro (“dog”)) and mass nouns (e.g. agua (“water”)) do not have the same distribution. First, while count nouns can be pluralized and combined directly with numerals, mass nouns cannot (tres perros (“three dogs”)/ *tres aguas (“*three waters”)). Constructions with numerals and mass nouns are hypothesized to require an intervening container phrase (tres vasos de agua (“three cups of water”)) except in some restricted scenarios, particularly, in ‘restaurant talk’ as in tres cafés, por favor (“three coffees, please”) (cf. FRISSON; FRAZIER, 2005, p. 28). Second, some quantifiers are more likely to occur with mass nouns (demasiado esfuerzo (“too much effort”)) (CARTER, 2007, p. 84). A question that has been debatable is the productivity, distribution and interpretation of the so-called bare singulars. Bare singulars are count nouns that occur in a sentence without being preceded by a determiner and that are not pluralized as illustrated in (1) and (2): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 577 (1) Lleva jersey. wear-IND.PRS.3sg pullover ‘She is wearing a pullover’ (one or more than one). (2) Comprará coche. buy-IND.FUT.3sg car ‘She will buy a car’ (one or more than one). (ESPINAL, 2010, p. 984 – examples 2a and 2b) In this paper we discuss the interpretation of bare singular nouns in Mexican Spanish from an experimental perspective. Based on a quantity judgment task (BARNER; SNEDEKER, 2005’s paradigm) we will explore the interpretation of bare singulars (count nouns, e.g. coche (“car”)) in contrast with substance mass nouns (e.g., agua (“water”)) and object mass nouns (e.g. mobiliario (“furniture”)) in have-predicates. Previous literature on bare singulars in Romance languages has explored the interpretation of such constructions both from a formal semantics perspective as well as from an experimental perspective. From the formal semantics literature, much research on the field started after Chierchia (1998)’s typology that predicted the existence of languages where mass nouns could occur in the bare singular form (I drank water) but count nouns could not (*I have book). Specialists on Romance languages observed that this did not apply either to Brazilian Portuguese (cf. DOBROVIE-SORIN; OLIVEIRA, 2008; MÜLLER, 2002; MUNN; SCHMITT, 2005; PARAGUASSU; MÜLLER, 2008; OLIVEIRA; ROTHSTEIN, 2011; SCHMITT; MUNN, 1999; among others) or Catalan/ dialects of Spanish (cf. DAYAL, 2003; DOBROVIE-SORIN et al., 2006; ESPINAL; MCNALLY, 2009; FARKAS; SWART, 2003; OGGIANI MORGAS, 2011; Van GEENHOVEN, 1996). The work on bare singulars in Spanish has documented the distributional restrictions of bare singulars, but it has not explored, to the best of my knowledge, the interpretation of bare singulars in contrast with other nouns (substance and object mass nouns) experimentally. That is the goal of this paper. This paper is structured as follows. First, I overview the characteristics of bare singulars described in the literature of Spanish (Section 2). Then, I present my research questions and experimental studies in Mexican Spanish (Section 3). Finally, I discuss the results of this study in light of the relevant literature (Section 4). 578 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 2 Literature on bare singulars in Spanish 2.1 Grammatical properties of bare singulars Espinal and McNally (2009), Espinal (2010) and Oggiani Morgas (2011) have described the distribution of bare singulars in the Peninsular Spanish, Catalan and Uruguayan Spanish. Below we overview the properties that characterize bare singulars in Spanish. Object position bare singulars are hypothesized to be only grammatical in the object position, as exemplified in the contrast between (3) and (4): Bare singular: subject position. (3) *Niño vive Boy live-IND.PRS.3sg ‘A boy lives in the montain.’ en in la the montaña. mountain Bare singular: object position. (4) Juan tiene auto. Juan have-IND.PRS.3sg car ‘Juan has a car.’ (OGGIANI MORGAS, 2011, p.7 – examples 4 and 5) Lexical restriction of verbs it is claimed that bare singulars are more likely to occur as arguments of possessive and locative verbs (have-predicates: comprar (“to buy”), tener (“to have”), vender (“to sell”), llevar (“to wear”)): (5) Juan lleva Juan carry-IND.PRS.3sg ‘Juan carries a hat.’ sombrero. hat (6) * Juan rompió vaso. Juan break-IND.PRF.3sg glass. ‘Juan broke a glass.’ (OGGIANI MORGAS, 2011, 13a-13b). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 579 Number neutrality bare singulars are hypothesized to be number neutral, that is, can be interpreted as referring to a single individual as well as to a plural set, as exemplified in (1) and (2). Adjectives Furthermore, it is claimed that bare singulars are more likely to be acceptable with adjectives that denote a subkind of a particular kind (7a) than with qualitative and descriptive adjectives that modify a particular individual (7b): (7) a. Juan tiene pareja formal. Juan have-IND.PRS.3sg partner formal ‘Juan has a long-term partner.’ b. * Juan tiene pareja alta. Juan have-IND.PRS.3sg partner tall ‘Juan has a tall partner.’ (OGGIANI MORGAS, 2011; 8 – examples 7 and 8) When characterizing bare singulars in Spanish, the literature has compared the distribution of bare singulars with indefinites (Yo he visto un perro (“I saw a dog”)) and with bare plurals (Yo he visto perros (“I saw dogs”)). Oggiani Morgas (2011) has explored a series of features that could be used to distinguish bare singulars from those other classes in the discursive/referential level. Below I present the constructions used by Oggiani Morgas to distinguish bare singulars from indefinites. Distributive and cumulative interpretations Oggiani Morgas has shown that bare singulars but not indefinites allow a cumulative interpretation. In the examples below, the bare singular apartamento ‘apartment’ could be interpreted as one or more than one apartment in each city, while the indefinite just could be interpreted as one apartment in each city. 580 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Bare singular: Context 1 (distributive): Context 2 (cumulative): (8) a. Juan tiene apartamento en distintas ciudades. Juan have-IND.PRS.3sg apartment in different cities ‘Juan has an apartment in different cities.’ (OGGIANI MORGAS, 2011; 8 – examples 9a) Indefinites: Context 1 (distributive): Context 2 (cumulative): b. Juan tiene un apartamento en distintas ciudades. Juan have-IND.PRS.3sg an apartment in different cities ‘Juan has an apartment in different cities.’ (OGGIANI MORGAS, 2011; 8 – examples 9b) Scope Oggiani Morgas, (2011) has also argued that bare singulars take narrow scope under negation and under intensional verbs (like querer (“to want”)) while indefinites take wide scope in the same environment. A similar claim is made by Miller and Schmitt (2005),1 while indefinites are ambiguous (9a), bare singulars are restricted to a narrow scope interpretation (9b). (9) a. El niñito no trajo una pelota. (neg > a, a > neg) The boy neg bring-IND.PRF.3sg a ball “The boy didn’t bring a ball.” Narrow scope interpretation: “the boy didn’t bring any balls” (neg > a) The authors did an experimental study with L1 Chilean Spanish speakers and have shown that the interpretation of bare singulars and indefinites is indeed different in terms of scope. 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 581 Wide scope interpretation: “there was a certain ball (out of a set a balls) that the boy didn’t bring” (a > neg) b. El niñito no trajo pelota. (neg > a, *a > neg) The boy neg bring-IND.PRF.3sg ball “The boy didn’t bring a ball.” Narrow scope interpretation: “the boy didn’t bring any balls” (neg > a) (MILLER; SCHMITT, 2005; 92 - examples 1 and 2) Telicity Oggiani Morgas (2011) also claims that bare singulars favor atelic predicates (10a), while indefinites are compatible with both (10b): Bare singular (10) a. Juan va a buscar apartamento durante un año/ Juan go-FUT.3sg look for-INF apartment for a year #en un año. in one year ‘Juan is going to look for an apartment for a year/#for a year’ Indefinite b. Juan va a buscar un apartamento durante Juan go-FUT.3sg look for-INF an apartment for year/ un año/ en un año one year in one year ‘Juan is going to look for an apartment for a year/for a year.’ (OGGIANI MORGAS, 2011; examples 12a and 12b) 2.2 Formal approaches for bare singulars So far we have seen that the literature suggests that the distribution of bare singulars is characterized by: 1) being restricted to the object position; 2) number neutrality, and 3) not sharing the same discursive 582 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 properties as indefinites (as proposed by Oggiani Morgas, 2011; contra Espinal, 2010). Crucially, bare singulars are indeed grammatical in some dialects of Spanish. Given that, the question that I will address in this paper is the interpretation of bare singulars (count nouns) in comparison with mass nouns. The puzzle that motivates this project is the following: while bare singulars have a plural counterpart (coche/coches (“car/cars”)), substance mass nouns don’t (arena/*arenas (“sand/*sands”)): as illustrated in the introduction, substance mass nouns cannot be pluralized except in very restricted coercion scenarios (me gustaría dos aguas, por favor (“I would like two (bottles of) water, please”)).2 If syntax drives the interpretation of nouns, will the interpretation of count nouns in Mexican Spanish depend on its syntactic form? Will we find significant differences in the interpretation of Juan tiene más coche que Maria (“Juan has more car than Maria”) (bare singular) and Juan tiene más coches que Maria (“Juan has more cars than Maria”) (bare plural)? Or, will the interpretation of coche (“car”) in its bare and plural form remain the same regardless its syntactic form? In the next section I explore this question experimentally. 3 On the interpretation of Bare Singular Mexican Spanish 3.1 Introduction In this project I conducted two experimental tasks: a grammatical judgment (likert scale) task and a quantity judgment task. The grammatical judgment task was performed in order to verify the level of acceptance of bare singulars in Mexican Spanish. In this task, 28 L1 Mexican Spanish speakers were introduced with sentences with bare singulars in the subject and object position and had to evaluate its acceptability. Participants had to evaluate whether a sentence sounded possible/good for them or impossible/bad. Participants had to rate the sentences on a scale from 1 to 5 where 1 was considered impossible and 5 possible. The participants were exposed to 18 sentences of four different types of sentences as described below: Here, I am talking specifically about Spanish. In other languages such as Brazilian Portuguese, there are expressions like as águas-do mar ‘the sea waters’ or as areias do deserto ‘the desert sands’. This is not the case of bare singulars in Spanish. 2 583 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 1) Intransitive sentences (bare singular in the subject position). 2) Transitive sentences (bare singular in the subject position). 3) Transitive sentences (bare singular in the object position). 4) Transitive sentences (bare singular in the subject and object position). Following the literature on the topic (cf. Section 2), I expected that sentences with bare singulars in the subject position would be more likely to be evaluated as unnatural/impossible sentences (rating: 1 or 2). Contrariwise, sentences where bare singulars are in the object position would be more likely to be evaluated as natural/possible sentences (rating: 4 or 5). All the sentences are exposed bellow on table 1: TABLE 1 – Experimental sentences used in the Likert Scale Study Sentences Sentence type (as presented above) Perro ladra y tiburón nada. (“Dog(s) bark and sharks swim”) 1 Juan encontró lodo en su jardín. (“Juan have founded sludge in his garden”) 3 Cucaracha busca comida vieja para alimentarse. (“Cockroach(es) look for old food to feed themselves”) 4 La policía procura ladrón. (“(The) police look for thiev(es)”) 3 Ventana se quebró. (“(A) window has broken”) 1 Niño encontró su amigo en la escuela. (“(A) child founded his friend in school”) 2 Oso busca comida en verano. (“Bear(s) look for food in summer”) 4 María alquiló apartamento por dos semanas. (“Maria rents apartment(s) for two weeks”) 3 Chocolate se acabó. (“There is no more chocolate”) 1 Juana tiene perro. (“Juana has dog(s)”) 3 584 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Leche hirvió. (“(The) milk boiled”) 1 El viejo lleva bastón para sostenerse. (“The old man carries (a) bat to sustain himself”) 3 Hierba crece. (“Grass grow up”) 1 Leche tiene mucho calcio. (“Milk has a lot of calcium”) 2 Niño brinca. (“Child(ren) play”) 1 Hormiga llevó hoja en la espalda. (“Ant(s) took leaves in their back”) 4 Marcus llevó manzana ayer para la fiesta. (“Marcus took apple(s) to the party yesterday”) 3 Mariposa tenía asas coloridas. (“Butterflie(s) have colors wings”) 2 The results support my original predictions: sentences with bare singulars in the subject position were rejected by most participants while sentences with bare singulars in the object position were more likely to be accepted (Table 2). TABLE 2 – Percentage of evaluation 4-5 (natural/possible) per type of sentence Position of bare singular Percentage 4-5 responses Intransitive sentences (bare singular in the subject position). 21% Transitive sentences (bare singular in the subject position). 13% Transitive sentences (bare singular in the object position). 51% Transitive sentences (bare singular in the subject and object position). 16% Further corroborating evidence for the results found on the grammatical judgment task come from a corpus search in the database Corpus del Español del Siglo XXI (CORPES).3 We searched for four 3 http://www.rae.es/recursos/banco-de-datos/corpes-xxi Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 585 count nouns (coche (“car”), bolígrafo (“pen”), bici (“bicycle”) and pelota (“ball”)); out of the 216 sentences were those nouns occurred (a total of 2119 files were searched), 47 occurrences included bare singular nouns in object position. In most cases, those nouns occur with havepredicates like Trae coche? (“Did you bring (a/the) car(s)?”), Como no traía bolígrafo… (“(She) did not used to bring pen(s)…”), Romero lanzó pelota (“Romero threw ball(s)”) and Todas mis amigas tenían bici (“All my friends had bike(s)”). 3.2 Quantity judgment task 3.2.1 Preliminary aspects of the method Quantity judgment tasks have been used in a variety of languages as a useful task to explore the interpretation of count, substance and object mass nouns. The seminal work of Barner and Snedeker (2005) for English was composed of three studies. The first one was a study where the participants were asked the question ‘Who has more x?’ while being exposed to two sets: one that included a single big object (a big fork, a big shoe) or pile of substance (a pile of toothpaste) and another that included three objects (three forks, three shoes) or three piles of substances (Figure 1). ‘X’ in ‘Who has more x?’ could be a count noun such as shoes, a mass noun such as toothpaste or what is called in the literature an object mass noun: that is, a noun that denotes an object (silverware) but that has the same syntactic distribution as a mass noun (cf. CHIERCHIA, 2010; GRIMM; LEVIN, 2011; SCHWARZSCHILD, 2011).4 In English, nouns such as silverware cannot be combined directly with numerals, cannot be pluralized and cannot be combined with the count quantifiers such as many (*many silverware). Two observations about object mass nouns should be made: first, not all languages have object mass nouns; second, a given object mass noun in a language A won’t necessarily be an object mass noun in another language. The same holds for other categories of nouns; for example, hair is mass in English, but count in Italian (capelli) (LUZZATI; MONDINI; SEMENZA, 2012, p. 65). 4 586 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 FIGURE 1 – Stimuli for Barner and Snedeker (2005, study 1) Observing Figure 1 it is clear that the ‘Number’ set (e.g. three small forks) was never as voluminous as the ‘Volume’ set (e.g. big fork). That was intentionally designed: the participant had to choose either the numerous set (characterized by a smaller volume/dimension in comparison with the other set) or a voluminous set (that comprehend of a singleton set with a large object). In this task, Barner and Snedeker (2005) were investigating whether participants would provide different answers based on the syntactic distribution of the nouns (count nouns vs. substance/object mass nouns) or whether they would base their judgments on the denotation of nouns (objects: count nouns/object mass nouns vs. substances: substance mass nouns). Their second study followed the same reasoning, but participants were exposed to two big objects/piles of substances vs. six small objects/ piles of substances (Figure 2). This follow-up was done because of object mass nouns. Given the example provided in Figure 1, Barner and Snedeker wanted to make sure that the participants were not reanalyzing silverware in ‘Who has more silverware?’ as ‘Who has more fork?’. FIGURE 2 – Stimuli for Barner and Snedeker (2005, study 2) 587 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 The results for Barner and Snedeker (2005) studies 1 and 2 are presented on Table 3. Participants (16 adults and 16 4-year olds) based their responses on Number in most trials for count and object mass nouns and on Volume for substance mass nouns. TABLE 3 – Responses presented in percentage of Number responses (BARNER; SNEDEKER, 2005 – Studies 1 and 2) Study 1 (Adults) Study 1 (Children) Study 2 (Adults) Study 2 (Children) Count noun 100% 89% 93.8% 97.9% Mass noun 0% 9% 0% 39.6% Object mass nouns 97% 95% 97.9% 91.7% The third of Barner and Snedeker’s studies is particularly relevant for us, as it involved what the authors called “flexible nouns”. Flexible nouns are nouns that allow a count and a mass syntax in English: that is, they can be pluralized (who has more chocolates?) and they can be used in their bare form (who has more chocolate?) as well. The nouns tested were nouns that allow this variation in English: chocolate, paper, string, stone. The same methodology used in Study 1 and 2 was used in Study 3 (cf. Figure 3). FIGURE 3 – Stimuli for Barner and Snedeker (2005, study 3) For Study 3, Barner and Snedeker (2005) report that flexible nouns in count syntax (chocolates) were more likely to be associated with the Number response while flexible nouns in mass syntax were more likely to be associated with the Volume response (cf. Table 4). 588 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 TABLE 4 – Responses presented in percentage of Number responses (BARNER; SNEDEKER, 2005 – Study 3 – Flexible nouns) Study 3 (Adults) Study 3 (Children) Count syntax 97% 95% Mass syntax 3% 25% That is, these results suggest that morphosyntax (absence and presence of the plural morpheme) affected the judgments of English speakers when evaluating flexible nouns. The main difference between English and Romance languages such as Mexican Spanish and Brazilian Portuguese is that the set of nouns that allow bare singular nouns Mexican Spanish and Brazilian Portuguese is not as small as it is in English. For that reason, the question for languages where bare singulars are productive is whether the interpretation of those nouns when bare is a mass interpretation (Volume) due to the syntax or is count (Number) due to the semantics of the noun. This is explored in the following study. 3.2.2 Quantity judgment studies in Mexican Spanish Based on the paradigm proposed by Barner and Snedeker (2005) reviewed in 3.2.1 I did a study in Mexican Spanish were participants had to evaluate bare singular nouns. In this task, participants were exposed with two sets of objects: one voluminous (Volume) and another associated with a numerous set (Number). 134 L1 speakers of Mexican Spanish participated in this task. Participants answered eight critical questions: three questions that included count nouns (bici (“bycicle”), coche (“car”), pelota (“ball”)) (Figure 4), three with substance mass nouns (agua (“water”), arroz (“rice”), azúcar (“sugar”)) (Figure 5) and two with object mass nouns (joyería (“jewelry”), mobiliario (“furniture”)) (Figure 6). The target question consisted of comparing two individuals (a man and a woman): one of them owned a voluminous set of objects or portions of a substance and another owned a numerous set of objects or portions of a substance. The target question was Juan tiene más X que Maria? (“Juan has more X than Maria?”). Participants had to answer ‘yes’ or ‘no’. Two lists were created with the same questions. The character who owned the Volume and the Number set varied within the list (50% on the right, 50% of the time on the left). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 589 FIGURE 4 – Example of stimulus (count noun) – Juan tiene más pelota que Maria? (“Juan has more ball(s) than Maria?”) FIGURE 5 – Example of stimulus (object mass noun) – Lucas tiene más mobiliario que Carol? (“Lucas has more furniture(s) than Carol?”) FIGURE 6 – Example of stimulus (mass noun) – Pedro tiene más agua que Julia? (“Pedro has more water(s) than Julia?”) 590 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Participants also answered one control question at the end of the questionnaire where one of the count nouns was pluralized (Marcelo tiene más bolígrafos que Lena? (“Marcelo has more pens than Lena?”)/ Marcelo tiene más bicis que Lena? (“Marcelo has more bicycles than Lena?”)). We expected that the plural would always trigger a Number response. All the materials (critical and control sentences) are introduced on Tables 5 and 6. TABLE 5 – Critical and control questions (Mexican Spanish) – List 1 Type of noun Picture Right Picture Left Juan tiene más pelota que Maria? (“Juan has more ball(s) than Maria?”) Count Volume Number Pedro tiene más agua que Julia? (“Pedro has more water than Julia?”) Mass Volume Number Object mass noun Volume Number Julio tiene más arroz que Ana? (“Julio has more rice than Ana?”) Mass Number Volume Marcelo tiene más bici que Lena? (“Marcelo has more bicycle(s) than Lena?”) Count Volume Number Lucas tiene más mobiliario que Carol? (“Lucas has more furniture(s) than Carol?”) Object mass noun Number Volume Pedro tiene más coche que Julia? (“Pedro has more car(s) than Julia?”) Count Number Volume Rafael tiene más azúcar que Sofia? (“Rafael has more sugar than Sofia?”) Mass Volume Number Type of noun Picture Right Picture Left Count Number Volume Critical question Carla tiene más joyería que Paula? (“Carla hay more jewelry(ies) than Paula?”) Control question Marcelo tiene más bolígrafos que Lena? (“Marcelo has more pens than Lena?”) 591 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 TABLE 6 – Critical and control questions (Mexican Spanish) – List 1 Type of noun Picture Right Picture Left Juan tiene más pelota que Maria? (“Juan has more ball(s) than Maria?”) Count Number Volume Pedro tiene más agua que Julia? (“Pedro has more water than Julia?”) Mass Number Volume Fake mass noun Number Volume Julio tiene más harina que Ana? (“Julio has more flour than Ana?”) Mass Volume Number Marcelo tiene más bolígrafo que Lena? (“Marcelo has more pen(s) than Lena?”) Count Number Volume Lucas tiene más mobiliario que Carol? (“Lucas has more furniture than Carol?”) Fake mass noun Volume Number Pedro tiene más coche que Julia? (“Pedro has more car(s) than Julia?”) Count Volume Number Rafael tiene más azúcar que Sofia? (“Rafael has more sugar than Sofia?”) Mass Volume Number Type of noun Picture Right Picture Left Mass Volume Number Critical items Carla tiene más joyería que Paula? (“Carla has more jewelry than Paula?”) Control question Marcelo tiene más bicis que Lena? (“Marcelo has more bicycle(s) than Lena?”) 3.2.2.1 Results The results of this study are presented on Table 7. TABLE 7 – Results of the Quantity Judgment Task in Mexican Spanish in percentage of ‘Number’ responses Noun type Percentage of ‘Number’ responses Count noun (bare singulars) 74 % Substance mass noun 16 % Object mass nouns 87 % Count nouns (plural – control question) 96% 592 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 ANOVA tests were run and indicated a significance in relation to the variable type of noun (p=0 (p<0,05)). The results suggest that the participants favor a Number interpretation for count and object mass nouns (as well as for the control [bare plural] as expected) and a Volume interpretation for substance mass nouns. That is, despite the mass syntax of bare singulars, participants favor a cardinal interpretation for those nouns. Similar results were found in Brazilian Portuguese (LIMA; GOMES, 2016), a language characterized by allowing bare singulars in object position productively. These results might suggest that the semantics of the nouns, and not their syntax, drives the interpretation of bare singulars in Mexican Spanish in quantity judgment tasks. 4. General discussion The results found here are parallel to the results found in previous studies for Brazilian Portuguese (LIMA, 2015; GOMES; LIMA, 2015; LIMA; GOMES, 2016). Table 8 summarizes the results of similar tasks in Brazilian Portuguese. TABLE 8 – Percentage of Number responses - Quantity judgments tasks in Brazilian Portuguese (cf. LIMA; GOMES, 2016) Noun type Percentage of ‘Number’ responses Substance mass nouns (bare) 31% Object mass nouns (bare) 88% Count nouns (bare singular) 80% Count nouns (plural form; control question) 92% The results of quantity judgment in Mexican Spanish (as well as in Brazilian Portuguese) suggest that bare singulars will be interpreted based on their semantics as count nouns despite the syntactic features (mass syntax). Two aspects can be taken into consideration when analyzing these results. First, in the corpus search I found no example of a bare singular being interpreted as a mass noun (Volume interpretation). All examples are associated with a count (Number), not a mass (Volume) interpretation (cf. Appendix 1). Second, these results could be explained Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 593 in terms of the lexical statistics hypothesis put forth by Samuelson and Smith (1999). In novel word tasks where a novel word (blicket) was preceded by a determiner that could be associated with count and mass nouns (the blicket, my blicket) Samuelson and Smith observed that participants tended to analyze novel words as count nouns. Their explanation for this phenomenon is the fact that count nouns are more frequent in English. If we establish a parallel between this proposal and the results found here, we could say that in Mexican Spanish participants favor a count interpretation of bare singulars because these nouns are more frequently found in ‘Number’ contexts. That is, pelota ‘ball’ is usually interpreted as a count noun and is usually counted, regardless its syntactic form. This fact, however, does not exclude the possibility (to be verified in future work) that bare singulars could allow a mass interpretation. Semantic theories that proposed that bare singulars denote kinds (cf. OLIVEIRA; ROTHSTEIN, 2011) would predict that both Volume interpretation and a Number interpretation would be available. That is because kinds are open to different measurements, because they denote lattice structures with vague atoms. This is not the case for the plural nouns, which denote atomic lattice structures; thus, they can only be counted. From an ontological perspective, the proposal requires the domain of individuals to be sorted: kinds have properties that are not those of plural predicates (BEVILÁQUA; OLIVEIRA, 2014, p. 273). Experimental work in Brazilian Portuguese has shown that bare singulars can be interpreted as mass nouns in tasks were a mass interpretation is favored (cf. BEVILÁQUA; OLIVEIRA, 2014). That is, in marked contexts, bare singulars may be interpreted as mass, but this is not likely to be the most plausible interpretation of bare singulars. Final remarks This paper explored the interpretation of bare singulars (count nouns that are neither preceded by a determiner nor suffixed by a plural morpheme) in argument position in Mexican Spanish. In languages like English most count nouns should either appear in their singular form preceded by a determiner (I saw a ball) or pluralized without necessarily being preceded by a determiner (I saw balls) but not in a bare singular form (* I saw ball). In English, a small set of count nouns (i.e., flexible nouns) can occur as bare and as plural arguments (stone/ 594 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 stones; chocolate/chocolates; string/strings; paper/papers). Previous studies (BARNER; SNEDEKER, 2005) investigated the interpretation of flexible nouns. In quantity judgment tasks, participants are presented with two characters: one that has a big portion of X (where X can be a noun that denotes an artifact such as chair or substance such as water) and another that has many portions of X. The participants were asked either the ‘bare singular’ question, “Who has more X?” or the ‘plural’ question, “Who has more Xs?”. Barner and Snedeker (2005) observed that when the flexible noun occurred in its bare form (“who has more stone?”) participants preferred a Volume interpretation; contrariwise when the noun occurred in its plural form (“Who has more stones?”) participants preferred a cardinal/number interpretation. In this paper I presented the results of a quantity judgment task in Mexican Spanish where the alternation bare vs. plural form is not restricted to a small set of nouns. A likert scale task, corpora search and previous literature on the topic (ESPINAL, 2010; ESPINAL; McNALLY, 2009; OGGIANI MORGAS, 2011) suggest that bare singulars can occur in object argument position (María compró coche ayer (“Mary bought (a/some) car(s) yesterday”)) in some dialects of the Spanish language investigated so far. Given that, the goal of this paper was to investigate the interpretation of bare singulars in Mexican Spanish in contrast with bare plurals and mass nouns. Would bare singulars be available for a count interpretation (cardinality) given that bare singulars are count nouns that denote entities that are available for counting (cf. CHIERCHIA 1998, 2010), or would the mass syntax overrule the semantic properties of those nouns and trigger a mass interpretation as observed for English? The results for the quantity judgment task (134 Mexican Spanish adult speakers) have shown that participants consistently chose the ‘Number’ response for bare singulars (74%) and object mass nouns (87%) while mass nouns were rarely associated with the ‘Number’ answer (16%). Critically, the participants associated bare plurals with the ‘Number’ interpretation in most of the trials (96% of the trials). These results show that bare plurals (Marcelo tiene más bicis que Lena (“Marcelo has more bicycles than Lena”)) are necessarily associated with the Number interpretation. These results are compatible with much literature in semantics that has shown that the plural blocks any mass interpretation of nouns in Romance languages (cf. MÜLLER, 2002; OLIVEIRA; ROTHSTEIN, 2011). Bare singulars were preferably Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 595 interpreted as referring to Number by the participants. These results suggest that while a pluralized noun is necessarily associated with a cardinal interpretation (number of individuals), bare singulars can be interpreted as referring to Volume (by hypothesis), but are preferably interpreted as referring to cardinalities despite the mass syntax (no determiner, non-pluralized nouns). In English this seems not to be the case because the set of flexible nouns is very restricted; as such the alternation between the bare singular and bare plural form for flexible nouns might be an strategy for emphasizing a Volume interpretation for such nouns (in their bare form). In Mexican Spanish, we observed that the default interpretation for count bare singulars in neutral contexts is a Number interpretation in contrast with mass nouns where the default interpretation is Volume. These results are parallel with similar studies on bare arguments in Brazilian Portuguese (cf. LIMA; GOMES, 2016) where bare plurals are always associated with a Number interpretation and bare singulars are interpreted as referring to Number, not Volume, contrary to the pattern observed in the English data. Thus, based on data from Mexican Spanish in contrast with the data from Brazilian Portuguese, this paper shows that in languages where bare singulars (count nouns) can be productively used, they will not be interpreted as a mass noun (Volume). That is compatible with the lexical statistics hypothesis (SAMUELSON; SMITH, 1999): the fact that count nouns are more frequently used in Number contexts (un perro/perros (“a dog/ dogs”), etc) makes that bare singulars (perro (“dog”)) will be more likely to be interpreted as referring to Number, regardless their syntactic form. As such, the Number interpretation is not restricted to pluralized nouns; bare singulars are preferably interpreted as Number and a mass interpretation (Volume) is likely to be available, but restricted to marked contexts. Meanwhile, further studies are needed to verify whether bare singulars denote kinds in Mexican Spanish as Oliveira and Rothstein (2011) suggested for bare singulars in Brazilian Portuguese. Acknowledgements I would like to thank Suzi Lima for supervising this project and Ana Lúcia Pessotto for the help with the statistical analysis of this study’s data. Additionally, I would like to thank the reviewers for their suggestions, which helped me to clarify some points in the article. All usual disclaimers apply. 596 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 References BARNER, D.; SNEDEKER, J. Quantity judgments and individuation: Evidence that mass nouns count. Cognition, [s. l.], v. 97, n. 1, p. 41-66, 2005. BEVILAQUA, K.; OLIVEIRA, R. P. de. Brazilian Bare Phrases and Referentiality: Evidences from an Experiment. Revista Letras, Curitiba, v. 90, n. 2, 2014. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/rel.v90i2.37234. CARTER, D. M. A Cross-Linguistic Account of the Mass-Count Distinction. In: JORNADAS DE INVESTIGACIÓN LITERARIA Y LINGÜÍSTICA DE LOS ESTUDIANTES GRADUADOS DEL PROGRAMA DE ESPAÑOL, II., 2007. CARTER, S. R.; JENSEN, D. C.; MILLETT, R. P. Method and mechanism for the creation, maintenance, and comparison of semantic abstracts. U.S. Patent, n. 7, p. 197-451, 27 mar. 2007. CHIERCHIA, G. Reference to kinds across language. Natural Language Semantics, [s. l.], v. 6, n. 4, p. 339-405, 1998. CHIERCHIA, G. Mass nouns, vagueness and semantic variation. Synthese, [s. l.], v. 174, n. 1, p. 99-149, 2010. DAYAL, V. A semantics for pseudo-incorporation. 2003. Thesis (Master) – Rutgers University, Rutgers, 2003. DOBROVIE-SORIN, C.; BLEAM, T.; ESPINAL, M. T. Bare nouns, number and types of incorporation. In: VOGELLER, S.; TASMOWSKI, L. (ed.). Non-definiteness and Plurality. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 2006. p. 51-79. Doi: ttps://doi.org/10.1075/la.95.04dob DOBROVIE-SORIN, C.; OLIVEIRA, R. de. Reference to kinds in Brazilian Portuguese: definite singulars vs bare singulars. In: GRØNN, A. (ed.): Proceedings of SuB12. Oslo: ILOS, 2008. p. 107-121. ISBN 978-82-92800-00-3. ESPINAL, M. T. Bare nominals in Catalan and Spanish. Their structure and meaning. Lingua, [s. l.], v. 120, n. 4, p. 984-1009, 2010. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 597 ESPINAL, M. T.; McNALLY, L. Characterizing “have” predicates and indefiniteness. In: NEREUS INTERNATIONAL WORKSHOP, IV., 2009, Konstanz. Proceedings […]. Konstanz: Konstanz University, 2009. [Arbeitspapier, v. 124, n. 27, p. 27-43] FARKAS, D.; SWART, H. de. The semantics of incorporation. Stanford: CSLI, 2003. (Stanford Monographs in Linguistics). FRISSON, S.; FRAZIER, L. Carving up word meaning: Portioning and grinding. Journal of Memory and Language, [s. l.], v. 53, n. 2, p. 277291, 2005. GOMES, A. P. Q.; LIMA, S. Bare singular mass nouns can be interpreted as count nouns. In: ANPOLL: INTERNATIONAL PSYCHOLINGUISTICS CONGRESS: DOMAIN SPECIFICITY IN LANGUAGE ACQUISITION AND PROCESSING, 3rd, 2015, Rio de Janeiro. Abstracts […]. Rio de Janeiro: Anpoll, 2015. p. 27-28. GRIMM, S.; LEVIN, B. Furniture and other functional aggregates: More and less countable than mass nouns. Sinn und Bedeutung, v. 16, p. 6-8, 2011. LIMA, S. O. de. Quantity judgments in bilingual speakers (Yudja/ Brazilian Portuguese). Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 50, n. 1, p. 84-90, 2015. Doi: https://doi.org/10.15448/1984-7726.2015.1.18389 LIMA, S. O.; GOMES, A. P. Q. The interpretation of Brazilian Portuguese bare singulars in neutral contexts. Revista Letras, Curitiba, v. 93, p. 193209, 2016. Doi: http://dx.doi.org/10.5380/rel.v93i1.42690. LUZZATTI, C. G.; MONDINI, S.; SEMENZA, C. Lexical Impairment in Agrammatism. In: BASTIAANSE, R.; THOMPSON, C. K. (ed.). Perspectives on Agrammatism. Hove: Psychology Press, 2012. p. 60-74. Doi: https://doi.org/10.4324/9780203120378 MILLER, K.; SCHMITT, C. The interpretation of indefinites and bare singulars in Spanish child language. In: CONFERENCE ON THE ACQUISITION OF SPANISH AND PORTUGUESE AS FIRST AND SECOND LANGUAGES, 6th, oct. 2003, Albuquerque. Selected Proceedings […]. Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, 2005. p. 92-101. 598 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 MÜLLER, A. The semantics of generic quantification in Brazilian Portuguese. Probus, [s. l.], v. 14, n. 2, p. 279-298, 2002. MUNN, A.; SCHMITT, C. Number and indefinites. Lingua, [s. l.], v. 115, n. 6, p. 821-855, 2005. OGGIANI MORGAS, C. On discourse referential properties of bare singulars in Spanish. 2011. 77f. Thesis (Master) – Utrecht University, Utrecht, 2011. OLIVEIRA, R. P. de. Dobras e redobras: do singular nu no português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. OLIVEIRA, R. P. de; ROTHSTEIN, S. Bare singular noun phrases are mass in Brazilian Portuguese. Lingua, [s. l.], v. 121, n. 15, p. 2153-2175, 2011. PARAGUASSU MARTINS, N.; MÜLLER, A. L. The default denotation of nouns in Brazilian Portuguese. In: WORKSHOP ON FORMAL LINGUISTICS, VII., 2008, Curitiba. Curitiba: UFPR, 2008. SAMUELSON, L. K.; SMITH, L. B. Early noun vocabularies: do ontology, category structure and syntax correspond?. Cognition, [s. l.], v. 73, n. 1, p. 1-33, 1999. SCHMITT, C.; MUNN, A. Against the nominal mapping parameter: Bare nouns in Brazilian Portuguese. In: ANNUAL MEETING OF THE NORTH EAST LINGUISTIC SOCIETY, 29., 1999, Amherst. Proceedings […]. Newark: GLSA; University of Delaware, 1999. p. 339-354. SCHWARZSCHILD, R. Stubborn distributivity, multiparticipant nouns and the count/mass distinction. In: ANNUAL MEETING OF THE NORTH EAST LINGUISTIC SOCIETY, 39., 2008, Amherst. Proceedings […]. Amherst: GLSA; University of Massachussets, 2011. p. 661-678. VAN GEENHOVEN, V. Semantic incorporation AND indefinite descriptions: semantic and syntactic aspects of West Greenlandic noun incorporation. 1996. Dissertation (PhD) – University of Tübingen, Tübingen, 1996. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 599 APPENDIX 1 Countable nouns corpus search: Pelota “El otro día una mujer agarró su vientre y lo arrancó, se puso a jugar pelota con su embarazo, ella dijo al final, y ambos mirarían la blancura de la leche.” “¿Vas a jugar pelota después del trabajo?, preguntó.” “Hernández se combinó con tres relevistas para tirar pelota de siete hits y Miguel Flores se fue de 4-2 con tres producidas, al ganar los Sultanes de Monterrey 8-0 a Langosteros de Cancún, para asegurar la serie.” “Lee dominó a los Rockies de Colorado al lanzar pelota de seis hits y los Filis de Filadelfia comenzaron ayer la defensa de su título de la Serie Mundial con una victoria de 5-1 en su primer partido en los playoffs del 2009 en las Grandes Ligas.” “Silva volvió a traer pelota de cuadrangular, en la Serie Final de la Mexicana del Pacífico admitió en un juego cuatro vuelacercas y ahora fueron tres.” “Matt Albers, Tommy Hottovy y Dan Wheeler se combinaron para lanzar pelota de dos hits en dos entradas y un tercio.” “Sobre la escalinata de la universidad había un par de chiquillos jugando pelota.” “El cubano Michael Tejera lanzó pelota de cinco imparables y dos anotaciones a lo largo de cinco entradas, pero el tamaulipeco Pablo Ortega fue víctima de un tardío rally quisqueyano de dos anotaciones en el séptimo rollo para enfilarse al triunfo.” “Romero lanzó pelota de cinco imparables en igual número de entradas y el bullpen venezolano esparció una carrera, sucia y seis inatrapables el resto de la ruta.” “Miguel Ojeda y Carlos Valencia impulsaron tres carreras cada uno y Roberto “Metralleta” Ramírez lanzó pelota de tres hits en seis innings para que los Diablos Rojos del México apalearan 13-1 a los Saraperos de Saltillo y se quedaron con la serie 2-1.” “El pítcher estelar de los neoyorquinos tiró pelota de cuatro hits en ocho entradas, en las que admitió una carrera y concedió una base por bolas, además de que ponchó a siete enemigos.” “Mauricio Lara lanzó pelota de un hit en cinco innings y se combinó con cuatro relevistas para que los Algodoneros de Guasave blanquearan 3-0 a los Águilas de Mexicali para igualar el compromiso.” “Travis Minix (3-2) lanzó pelota de tres hits en siete entradas y se combinó con Thomas Melgarejo y Miguel Saladín (4) para que los Saraperos de Saltillo blanquearan 3-0 a los Tecolotes de Nuevo Laredo para ligar su cuarto éxito en fila.” 600 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 “Ricky Nolasco lanzó pelota de cuatro imparables hasta la novena entrada y Ronny Paulino bateó cuadrangular de tres carreras en la victoria de los Marlines de Florida por 5-1 sobre los Filis de Filadelfia y el veterano Jamie Moyer (1-1).” “En cuatro entradas tiró pelota de siete hits, seis carreras limpias y concedió dos boletos.” “Derek Lowe cargó la derrota, luego de seis rollos en los que tiró pelota de nueve hits y cuatro carreras.” “Dempster (4-3) fue retirado de la lista de lesionados y lanzó pelota de cuatro hits en cinco innings en su primera salida desde el 15 de junio, cuando experimentó una molestia muscular en la espalda.” “En el patio central los niños jugaban pelota escandalosamente.” Bici “En esa época, todas mis amigas tenían bici y siempre andábamos de arriba para abajo.” “En esa época, si no tenías bici, no eras nadie.” Bolígrafo “Como no traía bolígrafo debió ejercitar la memoria, lo que apenas.” Coche “Ha de ser horrible trabajar de chofer y no tener coche.” “Ella soñará con mejorar, con tener coche, casa grande, vestidos y amigas importantes.” “En cambio, se acercaría más el momento de tener coche y no avisar dónde iría;” “Tengo dinero, coche, las joyas que quiero.” “¿Trae coche?” “Pocos traen coche propio, los más andan en camión.” “- Va a ir Bárbara porque ella tiene coche.” “Aquí no hay coche.” “No tengo coche.” “Está muy lejos, además usted tiene coche y yo no.” “Es la única que conozco que tiene coche en donde quepa la consola.” “¿En su casa tienen coche?” “-Pero no tenemos coche, comandante.” “-¿Tienen coche? -pregunta el comandante a León y a Georgina.” “A buscar a Mary. Hijos, qué mala suerte que no tengas coche, manito.. Este...¿Miguel?” Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 601 “Entonces te recomiendo que tu estrella de cristal la coloques en el espejo retrovisor del coche, claro, si tienes coche (Mishanti hace la aclaración para no herir los sentimientos del pobre diablo), si no, cómprate unas veladoras de la abundancia y encomiéndate a la diosa Lakshmi, e invócala para que tu denario bendito.” “¿Traes coche?” “No tengo coche.” “Quizá en sectores que en términos demográficos son minoría, como los universitarios y más de universidades privadas, usualmente territorio de privilegiados en medio de una vasta mayoría de gente que no habla dos idiomas ni tiene coche del año, ni viaja de vacaciones al extranjero, pero se trata de una teleaudiencia que representa millones de potenciales clientes o enemigos con capacidad de compra e influencia de decisión futura.” “De todo hice, mientras tuve coche: me les acerqué a unas y a otras, dejé que se me acercaran algunas (pocas, en realidad), utilicé miradas apropiadas, invité copas, y recibí al cien por ciento fracasos rotundos.” “Pero fueron tiempos felices porque tuve los mejores amigos, la mejor educación, tuve coche antes que todos mis amigos, me fui de reventón desde los 14 años porque tenía hermanos más grandes que me llevaban como mascota.” “-¡Qué bueno que no trajimos coche! -Lucía.” “Sé que no trajo coche.” “como la familia no tenía coche, el medio de transporte oscilaba entre el tranvía con ruta hacia Chapultepec, o alguno de los autobuses citadinos que indicaban su ruta con yeso disuelto en agua para pintar el itinerario en el parabrisas: “Escandón-Buena Vista,” “Calatrava no tenía coche, pero le bastaba pedir aventón hasta el muelle, y una vez allí tomar un autobús hasta el centro de la ciudad; sin embargo prefería vivir exiliado -decía estudiar física- y no visitar la ciudad.” “Como un año o poco más antes de caer al bote, un amigo que tenía coche me dio un aventón a mi casa saliendo de la escuela.” Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 603-630, abr./jun. 2019 Adjetivos em português brasileiro: posição pré-nominal e modificação de eventos Adjectives in Brazilian Portuguese: prenominal position and event modification Thais Deschamps Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná / Brasil thadeschamps@gmail.com Resumo: Esse trabalho busca fazer uma aproximação entre a posição pré-nominal em português brasileiro e as propriedades apontadas para adjetivos avaliativos em inglês e espanhol, conforme observado principalmente em Fábregas, Leferman e Marín (2013). Apontamos que as propostas em português brasileiro de distinguir duas posições adjetivais claramente distintas na anteposição nos levam a perder algumas propriedades que, de maneira mais abstrata, parecem ser compartilhadas por boa parte dos adjetivos antepostos – especialmente uma certa “intermediação” entre o adjetivo e o nome na leitura obtida. A partir da observação de que a leitura avaliativa é uma propriedade comumente apontada para a posição pré-nominal, trazemos a proposta de Fábregas, Leferman e Marín (2013) de que adjetivos avaliativos se distinguem de adjetivos individual-level e stage-level por poderem selecionar um argumento evento e buscamos traçar um paralelo entre essa propriedade e a posição pré-nominal em português brasileiro de maneira mais ampla. Palavras-chave: adjetivos; modificação de eventos; posição adjetival. Abstract: This paper aims to draw a parallel between the prenominal position in Brazilian Portuguese and properties of Evaluative Adjectives that have been observed for English and Spanish, particularly as Fábregas, Leferman and Marín (2013) noted. We disagree with proposals for Brazilian Portuguese that claim there are two clearly distinct prenominal adjectival positions in Brazilian Portuguese. Such a conception would lead us to set aside some properties that, once more abstractly conceived, seem to be shared by a great portion of prenominal adjectives (namely, that there is some sort eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.603-630 604 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 of “intermediation” between the adjective and the name in the A+N obtained reading). Departing from the observation that an evaluative reading is a commonly noted property for the prenominal adjectival position, we bring Fábregas, Leferman e Marín’s (2013) proposal, which posits that Evaluative Adjectives are distinct from individual-level and stage-level adjectives for being able to select an Event argument and attempt to establish a connection between this property and the prenominal adjectival position in Brazilian Portuguese in a broader sense. Keywords: adjectives; event modification; adjectival position. Recebido em 10 de setembro de 2018 Aceito em 17 de dezembro de 2018 1 Introdução Em trabalhos sobre adjetivos em português brasileiro (PB), uma questão que há muito tem motivado o trabalho de linguistas é a distinção entre as posições pré- e pós-nominal no que concerne a distribuição sintática da classe (geralmente dividida em subclasses, sejam nocionais, i.e. pelo seu significado, sejam pela sua estrutura argumental) e seus respectivos padrões de interpretação (ou a busca por identificá-los). Gramáticas tradicionais já observavam que a posição típica de adjetivos em PB é pós-nominal. A anteposição, nessa visão, seria apenas um recurso estilístico. O fato de haver adjetivos que ocorrem exclusivamente em uma ou noutra posição não costuma ser mencionado. Na perspectiva da linguística, Perini (2005), na seção de sua gramática destinada ao sintagma nominal (SN), distingue duas posições estruturais na anteposição e duas na posposição em que adjetivos podem figurar: (1) [ Det PV4 Poss PV3 Ref PV2 Qf PV1 PNE PNI] N [ModI ModE] A posição de pré-núcleo interno (PNI) constituiria uma classe fechada (composta pelos itens mau, novo, velho, claro e grande), ao passo que a de pré-núcleo externa (PNE) seria aberta, com poucos itens exclusivos à ela (logo, que não poderiam ocorrer como modificadores pós-nominais – em outras palavras, exclusivamente pré-nominais): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 605 mero, pretenso, meio, suposto e, talvez, reles. A única dentre as quatro posições que teria a possibilidade de recursividade seria a de modificador externo (ModE). Para além dos problemas de natureza observacional dessa proposta, o autor não aborda as distinções de interpretação entre as posições e as restrições selecionais de cada uma. Apesar de observar brevemente que “[...] boa parte dos itens que podem ocorrer como modificadores podem também ocorrer como PNE” (PERINI, 2005, p. 103), qual seria essa “boa parte” ou qual seria a motivação para que nem todos os itens que podem figurar em ModE possam atuar como PNE são questões deixadas de lado. Uma propriedade específica da posição pré-nominal é sugerida por Boff (1991). Ela propõe a existência de um traço [+avaliativo],1 que estaria presente apenas em alguns adjetivos e seria o responsável por permitir que aparecessem na anteposição: (2) a. um livro interessante b. um interessante livro (3) a. um livro vermelho b. *um vermelho livro Apesar de essa intuição acerca do caráter avaliativo de muitos adjetivos pré-nominais ter uma boa cobertura empírica, ela não é capaz de explicar a alternância de leituras que encontramos no caso de alguns itens lexicais: (4) a. um grande jogador b. um jogador grande (5) a. o novo professor b. o professor novo A autora propõe alguns testes para identificar se o adjetivo teria esse traço – por exemplo, ser complemento de verbos como considerar ou julgar. A leitura avaliativa é entendida, assim, como na maior parte da literatura, como uma propriedade “não objetiva”, produto de um julgamento do falante. Um problema latente desse teste é que é possível levar adjetivos a terem leitura avaliativa (e, portanto, “passarem” nesse teste) por coerção. 1 606 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Menuzzi (1992) também adota uma abordagem lexicalista para explicar a distribuição sintática (e padrões inferenciais) dos adjetivos, mas baseada em sua estrutura argumental. Em sua teoria, adjetivos se dividiriam em quatro grandes classes de acordo com o número e a natureza dos argumentos que selecionam: categoremáticos (i.e. extensionais), que têm apenas um argumento, e cuja denotação não depende das propriedades do nome núcleo; relacionais, com tipicamente dois argumentos, sendo o segundo uma classe de comparação; referenciais (ou gentílicos); e intensionais (como suposto, próximo, etc.). A classe dos intensionais e as dos relacionais seriam as únicas passíveis de anteposição, uma vez que, dentro do modelo de Menuzzi, é necessária a presença de um segundo argumento para o que adjetivo não seja reinterpretado como núcleo do sintagma: (6) a. um cego soldado b. um soldado cego (Categoremático) (7) a. uma professora inteligente b. uma inteligente professora (Relacional) (8) a. um soldado francês b. um francês soldado (Referencial) (9) a. um suposto assassino b. *um assassino suposto (Intensional) No caso de categoremáticos (cf. (6)) e referenciais (cf. (8)), os elementos que funcionam como núcleo do sintagma e como modificador se alternam de acordo com a ordem, uma vez que ambos teriam apenas um argumento; caso essa alternância não seja possível devido à carga referencial do item lexical, a sequência se torna agramatical. Intensionais precisam necessariamente ser antepostos (cf. (9)), e os relacionais (cf. (7)) seriam aqueles que verdadeiramente poderiam aparecer em ambas as posições – ainda que essa proposta tenha como previsão uma alternância na interpretação: quando pospostos, o segundo argumento (i.e. a classe de comparação) pode ser interpretada de forma absoluta ou com referência à classe denotada pelo nome, ao passo que, na anteposição, apenas a última leitura seria possível: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 607 (10) a. uma professora inteligente (enquanto pessoa) (leitura absoluta) b. uma professora inteligente (enquanto professora) (leitura de classe) (11) a. #2 uma inteligente professora (enquanto pessoa) (leitura absoluta) b. uma inteligente professora (enquanto professora) (leitura de classe) Para o autor, a interpretação avaliativa seria um efeito colateral da configuração sintática e das relações argumentais estabelecidas entre o adjetivo relacional anteposto e o nome.3 Apesar de essa teoria fazer boas previsões, não nos parece claro que ela dê conta das leituras possíveis em um exemplo como (12): (12) a. Carla é uma bela dançarina. b. Carla é uma dançarina bela. Como esperado, a leitura mais saliente na posposição em (12b) é absoluta: uma dançarina que é bela enquanto pessoa. Contudo, em (12a) a interpretação preferencial não é que Carla é, dentre as dançarinas, particularmente bela (i.e. bela enquanto dançarina), como poderíamos esperar se o adjetivo selecionasse a classe do nome como classe de comparação, e sim uma leitura quase adverbial: (13) a. Carla é uma bela dançarina. b. Carla dança belamente. O símbolo # será utilizado para indicar que a sequência é gramatical, mas não apresenta a leitura pretendida. 3 Menuzzi (1992) propõe que a interpretação avaliativa seria derivada de o adjetivo ser simultaneamente o núcleo do SN e tomar o N como seu segundo argumento. Parecenos que seria um problema para essa proposta podermos ter dois ou mais adjetivos avaliativos ao mesmo tempo na anteposição, uma vez que apenas um dele poderia ser reinterpretado como núcleo: (i) O maravilhoso grande velho rei daquele país infelizmente faleceu. 2 608 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Note-se o contraste entre (12) e (13) comparados a (14): (14) a. João é um jogador de basquete alto. b. João é um alto jogador de basquete. c. *João joga basquete altamente. Em (14b), diferentemente de (12a), realmente temos o contraste de leituras apenas em termos de classe de comparação (i.e. em (14b), João é alto para os padrões dos jogadores de basquete), o que mostra que (12a) não se trata do mesmo caso. Além disso, essa proposta também precisaria ser readequada para dar conta dos dados abaixo: (15) a. a mesa redonda b. *a redonda mesa c. seus redondos olhos de criança brilhavam com animação [...] d. a às vezes redonda, às vezes quadrada mesa da sala de estar Adjetivos de formato não se enquadram totalmente nos critérios da proposta de Menuzzi; contudo, sua aproximação parece ser mais com a categoria dos categoremáticos, uma vez que sua interpretação não parece relativizável a uma classe de comparação (da mesma maneira que os relacionais, ao menos) e, como vemos em (15b), eles não podem ser antepostos. Contudo, eles podem ser antepostos se lhes conferirmos uma leitura avaliativa (cf. (15c)). (15d) apresenta um outro tipo de reconfiguração, que passa por mudarmos a forma como vemos o mundo. O formato de um objeto é geralmente tido como não limitado a um determinado intervalo de tempo – em outras palavras, é uma propriedade, na concepção comum que temos sobre o mundo, tipicamente individual-level (nos termos de CARLSON, 1977). Se imaginarmos um outro mundo em que, por exemplo, mesas sejam feitas de um material maleável que muda de formato a cada dia (em outras palavras: se conseguirmos interpretar a propriedade de maneira Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 609 relativa), (15d) é um exemplo aceitável sem necessariamente ter leitura avaliativa.4 Uma última proposta a ser abordada é a de Prim (2015). Para a autora, todos os adjetivos em PB seriam adjuntos, adjungidos à direita do nome em duas posições: ou como “relacionais”, ou como “qualificativos” – à exceção de alguns poucos adjetivos (velho, grande, pobre, certo, simples, suposto, meio, entre alguns outros) que poderiam figurar como núcleos em uma projeção dedicada específica à esquerda. A nomenclatura “relacional” não deve ser confundida com o que Menuzzi (1992) chamou de “classe relacional” (uma classe de adjetivos com duas posições argumentais). A referência, aqui, é a uma distinção comum em gramáticas de tradição europeia entre adjetivos relacionais e qualificativos. Bosque e Picallo (1996) colocam que adjetivos relacionais poderiam ser divididos em temáticos (que preenchem a estrutura argumental do nome e, portanto, recebem um papel temático do núcleo, e.g. “pesca baleeira” – aquilo que é pescado), e classificativos (que definem um domínio de classificação, e.g. “engenheiro elétrico”). Os “qualificativos”, por outro lado, carecem de uma definição precisa, mas parecem englobar em grande medida aquilo que vagamente é chamado de “avaliativo” (como o traço proposto por BOFF, 1991). Na proposta de Prim (2015), a anteposição de adjetivos que não aqueles gerados no núcleo pré-nominal seria possível apenas para os qualificativos, e aconteceria por meio do movimento da posição de base na posposição para uma projeção de tópico (TopP) interna a um sintagma determinante definido (DefP): Uma vez que podemos interpretar essa mudança como uma reconfiguração na estrutura argumental do adjetivo (cf. KRATZER, 1995; e como será mais elaborado na continuação do artigo), talvez seja possível resgatar a proposta de Menuzzi em termos de alternâncias argumentais nas grades temáticas de adjetivos categoremáticos e referenciais. 4 610 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 (16) (PRIM, 2015, p. 130) Essa teoria prevê, assim, que encontremos dois tipos de itens na anteposição: aqueles poucos com alternância de significado ou exclusivamente pré-nominais (excluídos os intensionais, que a autora não inclui em sua proposta), que figurariam em uma projeção específica; e adjetivos avaliativos, que poderiam se mover para a posição de tópico em sintagmas com leitura [+específica] em contextos realis, ou livremente em contexto irrealis.5 Tal proposta não faz nenhuma previsão sobre as alternâncias ou preferências de interpretação observadas por Menuzzi (1992), e tampouco permite uma análise integrada dos adjetivos opcionalmente antepostos com aqueles exclusivamente pré-nominais ou destes pré-nominais com sua contraparte pós-nominal, quando possível (a princípio, seriam duas entradas lexicais distintas). Contudo, interessa-nos a observação de que, novamente, temos dois tipos de adjetivos na anteposição: aqueles com uma mudança de interpretação clara, e os adjetivos qualificativos (que, Prim (2015) propõe que o movimento livre em contextos irrealis se daria pela presença de uma projeção de foco, ao invés de tópico. 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 611 aparentemente, podemos assumir se tratarem dos “adjetivos avaliativos” previamente mencionados). Assim, podemos elencar quatro propriedades já observadas sobre adjetivos em posição pré-nominal: a) b) c) d) alguns adjetivos apresentam uma mudança de interpretação (e.g. (4)); adjetivos que podem aparecer em ambas as posições apresentam não uma mudança de interpretação, mas talvez de referência (i.e. classe de comparação, nos termos de Menuzzi (1992)), quando antepostos; adjetivos avaliativos podem sempre ser antepostos; modificação adverbial forçando uma leitura stage-level permite (ou, ao menos, favorece) a anteposição.6 Com base nessas generalizações, iremos propor que a fonte de ao menos parte desses fenômenos é a possibilidade de o adjetivo tomar como um de seus argumentos um argumento evento.7 Nosso percurso argumentativo será o seguinte: na seção 2, analisaremos os adjetivos que apresentam mudanças claras de interpretação.8 Na seção 3, exploraremos as propriedades de adjetivos avaliativos: em 3.1, veremos uma Não abordamos a distinção entre adjetivos na posição pós-nominal; entretanto, notese que adjetivos classificativos nunca podem ser antepostos, nem sob modificação de qualquer espécie: (i) a. um forno elétrico b. *um elétrico forno c. *um às vezes elétrico forno Adjetivos classificativos são aqueles que Perini (2005) chamava de modificadores internos: precisam estar diretamente adjacentes ao nome e não podem ser modificados. 7 Estamos fazendo um uso não teórico do termo evento apenas para designar algum tipo de entidade relacionada a eventualidades ou a limites temporais. O uso desse termo não implica em um comprometimento em sua compreensão como um argumento davidsoniano ou kimiano. 8 Não abordaremos os adjetivos intensionais nessa proposta (como suposto, mas também certo, meio, etc.), mas consideramos que é possível que essa proposta possa se estender a eles, nas linhas de Menuzzi (1992). 6 612 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 proposta para adjetivos predicativos avaliativos para o espanhol e o inglês, e na seção 3.2 investigaremos sua aplicabilidade aos adjetivos adnominais avaliativos em PB. Na seção 4, veremos alguns argumentos adicionais para nossa proposta. Na conclusão, apresentaremos questões não abordadas, assim como algumas lacunas que precisarão ser examinadas em trabalhos futuros. 2 Adjetivos com mudança de interpretação Os adjetivos mencionados por Prim (2015), entre alguns outros, estão entre aqueles que se costuma observar como tendo diferenças significativas em sua interpretação nas posições pré- e pós-nominais: (17) a. um homem grande b. um grande homem (18) a. um jogador de futebol velho b. um velho jogador de futebol (19) a. um professor novo b. um novo professor (20) a. um homem pobre b. um pobre homem (21) a. um camponês simples b. um simples camponês (22) a. uma dançarina bela b. uma bela dançarina Um dos argumentos para se considerar a diferença de interpretação em (17) como evidência da existência de dois itens lexicais diferentes é sua contraparte em outras línguas: em inglês, por exemplo, utilizaríamos tall ou big em (17a), mas great em (17b). No entanto, não gostaríamos de seguir essa linha argumentativa, uma vez que ela não contribui para a explicação dos outros exemplos: em todos os demais casos, ao menos Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 613 em inglês, ou adjetivos usados tanto em (a) como em (b) são os mesmos e também apresentam essa ambiguidade (old friend, new teacher, poor man, simple farmer). Se tentarmos parafrasear cada leitura, veremos que há uma certa sistematicidade: (17’) a. um homem cuja dimensão é grande b. um homem que fez grandes coisas (18’) a. um jogador de futebol com idade avançada b. uma pessoa que antigamente jogava futebol ou alguém que é jogador de futebol há muito tempo (19’) a. um professor com pouca idade b. um professor que foi contratado ou que se formou recentemente (20’) a. um homem com pouco dinheiro b. um homem cuja condição de vida é de alguma forma trágica (21’) a. um camponês que é um indivíduo simples b. uma pessoa que é simplesmente (só) um camponês (22’) a. uma dançarina com bela aparência, bonita b. uma dançarina que dança belamente/muito bem Vemos que, em quase todos os exemplos, as paráfrases em (a) fazem referência diretamente ao indivíduo, ao passo que a modificação em (b) é sempre intermediada por algum outro elemento. O paralelo com a proposta de Menuzzi (1992) é latente, ainda que, como já mencionamos para (12) (repetido parcialmente em (22)), a explicação do segundo argumento como classe de comparação não dê conta de todos os casos. Interessantemente, fazer uso de verbos ou de advérbios captura bem o significado dessa segunda interpretação, como podemos ver mais claramente nos casos de (17b), (19b) e (22b).9 Podemos ver essa intermediação pelos padrões inferenciais desses adjetivos: Simples parece ter uma leitura quase intensional, ao passo que pobre parece ter uma leitura quase independente do sentido do nome, em que o sentido de pobre é definido contextualmente. Acreditamos, no entanto, que a intermediação por um outro elemento 9 614 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 (23) a. um grande homem ↛ um homem grande um homem que é grande b. um velho jogador de futebol ↛ um jogador de futebol velho um jogador de futebol que é velho c. um novo professor ↛ um professor novo um professor que é novo d. um pobre homem ↛ um homem pobre um homem que é pobre Como observou Menuzzi (1992), essas inferências também não são necessariamente licenciadas por adjetivos que podem ser opcionalmente antepostos (sua classe relacional): (24) uma inteligente professora ↛ uma pessoa inteligente10 Uma proposta como a de Prim (2015) de que essa leitura específica se devesse a uma projeção dedicada em que esses adjetivos fossem núcleos tem como obstáculo os casos em que esses adjetivos co-ocorrem:11 ocorre mesmo nesses casos; as leituras aparentemente particulares desses adjetivos se deveriam à sua própria contribuição lexical. 10 Com adjetivos com interpretações menos distintas em cada posição, o uso de um hiperônimo ajuda a evidenciar o padrão inferencial que Menuzzi identifica como a leitura absoluta do adjetivo. 11 A menos que a autora não assuma uma única posição exclusiva pré-nominal, e sim esteja adotando uma perspectiva cartográfica (com múltiplos núcleos para hospedar cada adjetivo) e tenha feito uso de um termo guarda-chuva. Já que ela faz uso de um termo guarda-chuva para os “relacionais” (imagino, assumindo a distinção entre temáticos e classificativos), essa é uma possibilidade. De toda forma, isso não resolve o problema apontado adiante em (27). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 615 (25) a. um velho grande jogador (da época do meu avô) b. o pobre novo professor do departamento c. ?um simples pobre morador de rua12 Além disso, ainda que esses adjetivos possam aparecer em posição mais interna à de outros adjetivos, como em (26), eles também podem figurar em posição mais externa a de itens que podem aparecer na posposição – os quais, pela proposta da autora, teriam que se mover para tópico, i.e. seriam necessariamente mais altos na estrutura –, como podemos ver em (27): (26) a. um inteligente grande rei b. o maravilhoso novo professor (27) a. a pobre inteligente professora (não conseguiu prever o que iria acontecer) b. um grande heroico povo Com foco, é possível inclusive termos a leitura exclusivamente pós-nominal dos itens (17)-(22) na anteposição (no item focalizado) – e, novamente, a leitura pré-nominal aparece em posição mais externa: (28) a. Nossa, mas ele foi um grande grande rei mesmo! b. Ele era um pobre pobre homem, você não tem ideia... Não ganhava nem 5 reais por dia! É interessante observar que esses adjetivos parecem ter ordens preferenciais entre si (excluídas leituras com foco contrastivo): (i) a. um velho grande jogador de futebol b. ?um grande velho jogador de futebol (ii) a. o pobre novo professor (não sabe o que espera ele) b. ?o novo pobre professor (não sabe o que espera ele) (iii) a. uma simples bela dançarina b. #uma bela simples dançarina Em (iiib), mais que agramatical, a ordem dos adjetivos parece bloquear a leitura adverbial de bela. 12 616 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Para além disso, os adjetivos parecem ter ou uma, ou outra leitura na anteposição (exceto em contextos especiais, como o de foco em (28)), o que levanta a questão de se é necessário assumirmos duas posições estritamente ordenadas entre si.13 Podemos concluir, assim, que na anteposição a interpretação dos adjetivos é mediada por algum “outro elemento”: em alguns casos, algo como uma classe de comparação; em outros, algo que dá origem a uma leitura adverbial. Nossa proposta, ao menos para esse último grupo, é que esse “algo” seja um argumento evento. 3 Propriedades dos adjetivos avaliativos Na discussão linguística sobre adjetivos em PB, uma propriedade frequentemente apontada é que a anteposição adjetival estaria ligada a uma leitura avaliativa; na introdução, abordamos algumas propostas que fazem uso dessa noção, ou que tentam derivá-la de alguma maneira. Nesta seção, assumindo a existência de algo como uma classe de adjetivos “avaliativos” (ou simplesmente de adjetivos mais prototipicamente ligados a essa função), iremos explorar algumas propriedades específicas que esses itens parecem possuir. Na seção 3.1, veremos uma abordagem que propõe que adjetivos avaliativos predicativos em inglês e em espanhol sejam capazes de interagir com um argumento evento. Na seção 3.2, faremos uma análise de como essa proposta dialoga com adjetivos avaliativos adnominais em PB. 3.1 Adjetivos avaliativos como estados davidsonianos O trabalho de Maeinborn (2005) acerca de estruturas copulares, verbos estativos e D-states14 levou a assunção de que haveria dois Cabe notar que essa questão coloca um entrave a mais na proposta de Prim (2015): como o adjetivo qualificativo já estaria ocupando o especificador de TopP, o adjetivo exclusivamente pré-nominal não teria como se mover acima dele. Prim (2015) não parece assumir que essa projeção de tópico dentro do sintagma determinante (definido) seja recursiva. Mesmo que aceitássemos essa possibilidade, dentro dessa proposta, a motivação para o movimento é checar o traço de especificidade do sintagma. Se o adjetivo qualificativo já houvesse se movido para TopP e checado esse traço, não haveria por que o adjetivo exclusivamente pré-nominal se mover por cima dele. 14 A autora assume a existência de dois tipos de estados: verbos verdadeiramente estativos (stative verbs) e verbos “D-state”, isto é, estados que teriam um argumento evento (Davidsoniano). 13 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 617 tipos de argumentos de evento disponíveis para os predicados: um argumento evento pleno, localizado no tempo e no espaço (uma entidade espaciotemporal – um argumento davidsoniano); e um argumento localizado em um mundo e tempo específicos, mas sem colocação no espaço – portanto, um objeto abstrato –, que a autora chama de um argumento de estado kimiano.15 Ela assume que adjetivos não são nem estados kimianos, nem estados davidsonianos: adjetivos denotariam apenas propriedades de indivíduos. Em estruturas copulares, seria a cópula que introduziria o argumento de estado kimiano. Fábregas, Leferman e Marín (2013) se opõem a essa proposta em dois aspectos. Primeiramente, eles observam que retirar o argumento evento (nesse caso, kimiano) do adjetivo e atribui-lo à cópula traz resultados indesejados translinguisticamente. Em segundo lugar, eles argumentam que nem todos os adjetivos são estados kimianos. Nomeadamente, o que eles chamam de adjetivos avaliativos aceitam, ao menos em inglês e espanhol, tanto modificação espacial quanto temporal: (29) John was rude John foi rude yesterday at his parents’ place. ontem na casa dos pais dele (30) Mary was nice this morning at the meeting. Mary foi legal hoje de manhã na reunião (FÁBREGAS; LEFERMAN; MARÍN, 2013, p. 243, tradução nossa) Adjetivos avaliativos também passam em outros testes utilizados para identificar a presença de um verdadeiro argumento evento, i.e. que pode ser localizado no tempo e espaço (i.e. davidsoniano), como a) ser complemento de verbos de percepção; b) permitir modificação de modo; c) poderem ser retomados por expressões como isso aconteceu...; e d) terem leitura habitual no presente:16 Os argumentos davidsonianos são assim chamados devido a terem como base de sua concepção o trabalho de Davidson (1967). Já o argumento kimiano é baseado nos trabalhos de Kim (1969, 1976). 16 E, para leitura de presente, precisarem de morfologia de progressivo. 15 618 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 (31) a. I saw John be/being rude to Mary. ‘Eu vi o João ser/sendo rude com a Maria.’ b. Max was elegantly modest at the reception last night. ‘O Max foi elegantemente modesto na recepção ontem à noite.’ c. John was extremely rude to his father in the kitchen. This happened shortly before most of the guests arrived. ‘John foi extremamente rude com o pai dele na cozinha. Isso aconteceu logo antes da maioria dos convidados chegar.’ d. Martha is (normally) cruel (to her employees). ‘Martha é (geralmente) cruel (com os empregados).’ (FÁBREGAS; LEFERMAN; MARÍN, 2013, p. 240-243, tradução nossa) Os autores apontam que, interessantemente, adjetivos avaliativos se comportam como predicados individual-level em uma série de propriedades: não aceitam inserção de There (cf. (32)), não tem leitura existencial com NPs nus ou indefinidos (cf. (33), só podem ter leitura genérica), não podem estar em predicação secundária (cf. (34)), e podem aparecer como complementos dos verbos considerar, julgar (cf. (35)):17 (32) a. *There were several policemen Spanish. b. *There were several policemen brave. (33) a. Doctors are well-read. b. Doctors are patient. (34) a. *O Pedro chegou velho/alto/francês. b. *O Pedro chegou corajoso/cruel/modesto. (35) a. O Pedro é considerado francês/velho/alto. b. O Pedro é considerado corajoso/cruel/modesto. Todos os exemplos a seguir são de Fábregas, Leferman e Marín (2013), traduzidos para o português quando possível. 17 619 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 No entanto, os adjetivos avaliativos também compartilham algumas propriedades com os stage-level, diferenciando-se assim dos ILs: como já visto, permitem a presença de advérbios episódicos (sempre, às vezes, frequentemente, etc.) e podem ser complemento de verbos de percepção (a despeito de, como os próprios autores apontam em seu artigo, a estrutura com adjetivos stage-level mudar a interpretação dos verbos). Os avaliativos, entretanto, diferem tanto dos ILs quanto dos SLs por uma série de propriedades: permitem forma progressiva (cf. (36)) e modificadores agentivos (cf. (37)); tem leitura de objeto afetado com a preposição com (leitura esta que em geral não está disponível para outros predicados, cf. (38)); aceitam retomada por “Isso aconteceu...” (cf. (31c)) e por “O que [ele] fez foi...” (cf. (39)); e, com o tempo presente em inglês, tem leitura habitual (cf. (40)): (36) a. O João está sendo modesto/rude/bobo. b. O João está sendo alto/velho/francês. c. *O João está sendo bêbado/doente/irritado. (37) a. O João foi cruel de propósito. b. *O João foi alto de propósito. c. *O João foi bêbado de propósito.18 (Avaliativo) (IL) (SL) (Avaliativo) (IL) (SL) (38) a. O João foi cruel com o pai dele. (leitura de objeto afetado) b. O João veio com o Luiz. (leitura comitativa) c. Com a correria, o João esqueceu as chaves. (leitura causal) (39) a. O que o João fez foi ser muito arrogante. (Avaliativo) b. ?*O que o João fez foi ser muito alto/nervoso. (IL/SL) (40) a. John is cruel to Maria. (AvaliativoLEITURA HABITUAL) b. John is being cruel to Maria. (AvaliativoLEITURA PRESENTE) c. Jeanne {*is being/is} tall/old. (ILLEITURA PRESENTE) d. Jeanne {*is being/is} sick/tired/nervous. (SLLEITURA PRESENTE) Assim como em inglês, trocar a cópula pelo verbo ficar (ou get em inglês) torna essa sentença possível; contudo, o ponto é justamente que adjetivos avaliativos não precisam da ‘ajuda’ de outros verbos para conseguirem obter a leitura desejada. 18 620 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 A lista completa de diagnósticos, e o comportamento dos adjetivos de cada tipo neles, é a seguinte: TABELA 1 – Diagnósticos individual-level x stage-level x eventualidade Diagnósticos IL SL Adjetivos Avaliativos - + - There-insertion Leitura existencial com DPs nus/indefinidos - + - Modificação secundária - + - Consider, judge + - + Advérbios episódicos - + + Complemento de verbos de percepção - + + Forma progressiva - - + Modificadores agentivos - - + Leitura de objeto afetado com com - - + “This happened” - - + “What pro did was...” - - + Leitura de presente com o tempo presente + + - Fonte: Fábregas, Leferman e Marín (2013, p. 241) Assim, os autores apontam que, diferentemente dos outros exemplos dados por Maienborn (que contemplavam majoritariamente adjetivos stage-level, i.e. a favor de uma interpretação em termos de estados kimianos), esses adjetivos avaliativos realmente parecem conter um argumento evento no sentido davidsoniano (com localização espacial). 3.2 Adjetivos avaliativos adnominais em PB Uma primeira questão a ser abordada é que tanto Maienborn (2005) quanto Fábregas, Leferman e Marín (2013) trataram de adjetivos em posições predicativas. Se seguíssemos a abordagem de Maienborn para os adjetivos, a ausência de cópula dentro do sintagma nominal impossibilitaria a introdução de qualquer elemento ‘eventivo’ na interpretação desses itens. A proposta de Fábregas, Leferman e Marín (2013), contudo, possibilita que trabalhemos com essa hipótese. Antes de investigarmos adjetivos em posição adnominal, é necessário verificarmos se adjetivos em PB se comportam da mesma forma que aqueles em inglês e espanhol. Como já visto nas glosas nos exemplos Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 621 anteriores, a resposta parece ser positiva: aceitam forma progressiva (cf. (41a)); aceitam modificadores de modo e tem leitura de objeto afetado com a preposição com (cf. (41b)); podem ser retomados por “Isso aconteceu” (cf. (41c)); e tem leitura habitual no presente (cf. (41d)): (41) a. Eu vi o João ser/sendo gentil com a Maria. b. O João foi pacientemente tolerante com as crianças na escola ontem. c. O João foi extremamente desonesto comigo no cinema. Isso aconteceu logo depois de eu ter sido sincera com ele. d. A Maria é (geralmente) generosa (com os empregados). Assim, podemos agora testar se essa leitura eventiva também está acessível em posição adnominal. Novamente, vemos que sim:19 (42) O professor pacientemente tolerante com as crianças dentro de sala de aula não tolera bagunça na rua. (43) O menino às vezes desonesto com os outros quando trocava figurinhas agora estava tomando do próprio remédio. A posição pré-nominal impõe algumas dificuldades por sintaticamente não permitir a presença de adjetivos modificados por sintagmas preposicionais (SPs), o que exclui tanto o argumento introduzido por com (que, de acordo com Fábregas, Leferman e Marín, é um dos elementos sinalizadores da leitura eventiva dos adjetivos avaliativos) quanto locativos de uma maneira geral, que tampouco podem aparecer separados na posposição: (44) a. *O tolerante professor com as crianças b. ?O tolerante professor em sala de aula20 Naturalmente, modificação de nomes próprios não é permitida em PB (a menos em casos contrastivos), assim como não é possível termos modificação temporal com tempo (tense). Modificadores temporais como sempre, às vezes, frequentemente, no entanto, são possíveis, e de acordo com Kratzer (1995), requereriam uma variável (espacio) temporal (na proposta da autora, selecionaram adjetivos stage-level). 20 Nesse exemplo, não é claro se o locativo modificaria o adjetivo ou o conjunto [A+N], o que talvez seja o fator responsável por tornar a sequência mais aceitável. 19 622 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 (45) a. *O desonesto menino com os outros b. *O desonesto menino quando trocava figurinhas A modificação temporal, contudo, é possível (cf. (46), e também como já apontado no exemplo em (15)), assim como a presença de modificadores de modo (em (47)): (46) a. O sempre tolerante professor b. O às vezes desonesto menino c. A frequentemente generosa gerente da empresa (47) a. A gentilmente receptiva secretária b. O facilmente manipulável rapaz c. A dolorosamente lenta reação Assim, adjetivos avaliativos em PB parecem se comportar da mesma forma que em inglês ou espanhol em posição predicativa. Dentro do SN, vemos um contraste entre as posições antes e depois do nome núcleo: na posposição, locativos e modificadores de modo e tempo são possíveis, assim como complementos com com, ao passo que a anteposição não permite a presença de SPs. 4 Anteposição e a modificação de eventos A partir desses dados, não é claro se seria possível distinguir se estamos lidando com um argumento kimiano ou davidsoniano. Já abordamos rapidamente a diferença entre esses dois tipos de argumentos evento: o argumento davidsoniano é localizado no tempo e espaço, enquanto o argumento kimiano estaria localizado apenas no tempo. Podemos resgatar a definição precisa de um estado kimiano em Maienborn (2005): (48) Estado Kimiano Estados-K são objetos abstratos para a exemplificação de uma propriedade P para um indivíduo x em um tempo t. (MAIENBORN, 2005, p. 303, tradução nossa) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 623 Como observam Fábregas, Leferman e Marín (2013), a definição de um estado kimiano parece sintetizar bem a interpretação stage-level dos adjetivos: uma propriedade temporalmente localizada (bounded). Uma possibilidade, assim, seria assumir que os adjetivos na anteposição poderiam ter leitura stage-level – como, inclusive, parecia ser sugerido em exemplos como (15). Gostaríamos de discordar dessa hipótese com base em alguns argumentos. Primeiramente, considerarmos que assumir que a diferença entre a anteposição e a posposição seria a possibilidade de leitura stagelevel não contribuiria para a compreensão da distribuição sintática dos adjetivos em PB, uma vez que a leitura stage-level está mais tipicamente associada à posposição, e não o contrário. Cinque (2010), por exemplo, observa que adjetivos pré-nominais em línguas românicas têm mais comumente leitura individual-level, ao passo que a posição pós-nominal seria ambígua entre as duas leituras: (49) As invisíveis estrelas de Andrômeda exercem um grande fascínio (não-ambígua) a. As estrelas de Andrômeda, que geralmente são invisíveis, exercem um grande fascínio (individual-level) b. #As estrelas geralmente invisíveis de Andrômeda, que estão invisíveis agora, exercem um grande fascínio (stage-level) (50) As estrelas invisíveis de Andrômeda são muitas (ambígua) a. As estrelas de Andrômeda, que geralmente são invisíveis, são muitas (individual-level) b. As estrelas geralmente visíveis de Andrômeda, que estão invisíveis agora, são muitas (stage-level) (CINQUE, 2010, p. 6-7 (adaptado)) Em segundo lugar, parece-nos que assumir que a distinção relevante fosse individual- vs. stage-level nos faria perder o paralelo com a interpretação “adverbial” de alguns adjetivos, como visto na seção 2. Ainda que Kratzer (1995) defenda que predicados stage-level introduzem algum tipo de variável espaciotemporal na estrutura – uma afirmação que possivelmente é compatível com interpretá-los como estados kimianos –, a interpretação dos adjetivos da seção 2 parece diferente daquela de certos adjetivos inerentemente stage-level como “vazio”: 624 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 (51) a. o copo vazio b. o copo está vazio c. *o copo é vazio d. ?Eu vi o copo estar vazio e. ?o frequentemente vazio copo Além disso, a interpretação “adverbial” não é necessariamente temporária: ainda que não possa ser atribuída diretamente ao indivíduo (devido ao intermédio do argumento evento), ela não pressupõe uma duração limitada. As diferenças de comportamento entre os adjetivos avaliativos e adjetivos stage-level, conforme a tabela 1, apesar de testarem esses itens em posição predicativa, também contribuem para mostrar que, mesmo compartilhando algumas propriedades (que podem ser explicadas pela presença de um argumento kimiano na interpretação stage-level), essas duas classes não podem ser equalizadas. Um possível contraponto passível de ser mencionado é o trabalho de Stowell (1991), que tem uma proposta similar à de Kratzer (1995). Para o autor, a interpretação eventiva do que ele chama de “adjetivos de propriedades mentais” (i.e. mental properties adjectives) é devido ao funcionamento desses itens como predicados stage-level: (52) a. John was clever to leave the party. ‘O João foi esperto de ir embora da festa.’ b. It was clever of John to leave the party. ‘Foi esperto do João ir embora da festa.’ c. John was clever. ‘O João foi esperto.’ Stowell também assume que esses adjetivos selecionem um argumento evento; mas, para além disso, esse argumento evento seria justamente o argumento espaciotemporal responsável pela leitura stagelevel (cf. KRATZER, 1995). Essa seleção argumental seria a razão de as sentenças em (52) terem limites temporais (como predicados stage-level típicos): a “esperteza” não é atribuída a John de maneira geral, e sim tão somente no que concerne sua decisão de ir embora da festa. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 625 Fábregas, Leferman e Marín (2013), entretanto, apontam (a partir das observações de KERTZ, 2006), que apesar da aparente leitura stagelevel nas construções instanciadas em (52), os adjetivos nesses exemplos continuam a se comportar como predicados individual-level, como pode ser visto nos testes com plurais nus, inserção de There e alternância entre leitura fraca/forte de sujeito:21 (53) a. American consumers are smart. (*∃/∀) (ILP) b. American consumers are smart to buy foreign goods. (*∃/∀) (ILP) c. American consumers are eager to buy foreign goods. (∃/∀) (SLP) (54) a. *There were lawmakers smart. (ILP) b. *There were lawmakers smart to endorse the proposal. (ILP) c. There are lawmakers eager to endorse the proposal. (SLP) (55) a. SOME/*Sm people are smart. b. SOME/*Sm people are smart to request a waiver. c. SOME/Sm people are eager to request a waiver. (ILP) (ILP) (SLP) (KERTZ, 2006, p.230) Nos exemplos em (53), o adjetivo avaliativo smart (esperto) só pode ter leitura genérica mesmo na presença do infinitivo em (53b) (Stowell analisa o infinitivo como uma manifestação overt do argumento evento), diferentemente do adjetivo exclusivamente SL eager, que permite leitura existencial em (53c). A inserção de There é um teste que, em inglês, permite que adjetivos stage-level apareçam pospostos ao nome. Novamente, adjetivos avaliativos se comportam como ILPs. Por último, Kertz menciona o teste com sujeitos fortes (SOME) e fracos (Sm): adjetivos individual-level não conseguem se combinar com sujeitos fracos, independentemente da presença ou não de um infinitivo (cf. (55a) e (55b)), ao passos que eager pode aparecer com ambos os tipos de sujeito. Essa distinção advém do trabalho de Milsark (1974). Em resumo, o autor observa que, em inglês, alguns DPs podem aparecer em contextos de inserção com There e outros não. Os contextos que permitem a inserção são chamados de fracos, enquanto os que não permitem seriam fortes. Além disso, Milsark observa que propriedades podem apenas ser predicadas em contextos fortes. Essa divisão foi posteriormente repensada em termos de predicados IL/SL, com ILs ligados a contextos fortes. 21 626 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Dessa forma, uma vez que as leituras predicativas parecem estar disponíveis com adjetivos adnominais e para preservar as diferenças observadas entre adjetivos avaliativos e adjetivos stage-level típicos, optamos por considerar que essas duas classes apresentam argumentos evento distintos. Consideraremos que adjetivos avaliativos e aqueles com mudança de interpretação na anteposição selecionam um argumento davidsoniano, sendo a impossibilidade de inserção de um locativo uma restrição sintática independentemente motivada. Também seguimos com Fábregas, Leferman e Marín (2013) na proposta de que esse argumento davidsoniano não faça parte da entrada lexical dos adjetivos, ao invés disso sendo obtido composicionalmente. Esses adjetivos seriam inerentemente individual-level, e sua leitura eventiva adviria de poderem selecionar um evento como argumento. Para os autores, eventos e indivíduos compartilhariam o mesmo tipo semântico (<e>), de modo que não é necessário postular mudança alguma na estrutura argumental desses itens. A formalização dessa proposta dentro do sintagma nominal, entretanto, não é tão simples, uma vez que o trabalho de Fábregas, Leferman e Marín propõe que o adjetivo introduza seu sujeito (em construções predicativas) a partir de uma projeção funcional PredP (a leitura eventiva se deveria à presença de um argumento evento, ao invés de um indivíduo, na posição de especificador de PredP). Essa estrutura não seria adequada para dar conta de adjetivos adnominais, especialmente considerando que é possível termos mais de um adjetivo adnominal, inclusive na anteposição. Prever que haja uma posição que pode ser opcionalmente preenchida por um evento (ou por outro elemento), contudo, nos parece um caminho promissor para lidar com essas estruturas pela possibilidade de fornecer uma análise integrada aos adjetivos relacionais no espírito de Menuzzi (1992). Consideramos que essa proposta tem a vantagem de prever que, na ausência de um argumento evento disponível para propiciar a leitura eventiva, o adjetivo terá leitura individual-level – como de fato ocorre: (56) um grande tubarão (57) uma bela mesa Uma vez que tais construções prototipicamente não introduzem eventos, a interpretação individual-level é muito mais saliente: de dimensão, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 627 em (56); e de beleza, em (57).22 Note-se que, em uma proposta que derive as diferenças de interpretação desses adjetivos de diferentes posições sintáticas – e, no limite, talvez de entradas lexicais distintas –, como Prim (2015), não esperaríamos encontrar diferenças tão claras de preferência de leitura entre SNs com nomes “eventivos” (nomes que, por alguma propriedade, licenciam essa leitura) e outros nomes, já que não há – a princípio – relação entre a posição sintática e a estrutura argumental do nome. Nesse sentido, uma questão a ser desenvolvida é identificar a origem desse argumento evento. Há uma influência significativa do nome, que, contrariamente a algumas observações já feitas na literatura, não precisa ser deverbal (para além de “uma bela dançarina”, podemos também ter “uma bela mãe”, “um belo médico”, etc.), mas tampouco precisa ser necessariamente humano (é possível imaginar contextos em que (56), por exemplo, tenha leitura eventiva).23 Uma possibilidade é que esse argumento seja vago, definido contextualmente de acordo com as concepções de mundo vinculadas a cada item lexical. Por último, cabe observar que aquilo que Fábregas, Leferman e Marín (2013) chamam de adjetivos avaliativos não abrange toda a gama de adjetivos com leitura potencialmente avaliativa que temos em PB; voltamos, assim, à questão de “adjetivos avaliativos” enquanto classe, enquanto traço ou enquanto uso. Tanto Fábregas, Leferman e Marín (2013) quanto Stowell (1991) mencionam apenas adjetivos relacionados ao comportamento humano, como cruel, modesto, etc. Observamos, porém, que adjetivos unicamente avaliativos (por vezes chamados de elativos na literatura) como maravilhoso, magnífico, fantástico, etc. aparentemente seguem o mesmo padrão em termos de interpretações e distribuição: (58) a. Eu vi o João ser/sendo maravilhoso com a Maria. b. O João foi gentilmente fantástico com as crianças na escola ontem. c. O João foi extremamente terrível comigo no cinema. Isso aconteceu logo depois de eu ter sido legal com ele. d. A Maria é (geralmente) fantástica (com os empregados). 22 23 Nesse caso, possivelmente com uma leitura de grau. Uma especulação possível é que o traço relevante seja animacidade. 628 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 Contudo, seria interessante analisar um número maior de itens para atestar a extensão dessas propriedades.24 Considerações finais Nesse trabalho, buscamos mostrar que um elemento comum na interpretação de uma grande parcela dos adjetivos adnominais prénominais é a presença de um elemento mediador da predicação entre o adjetivo e o nome-núcleo, que propomos se tratar de um argumento evento (ao menos no caso de uma parcela dos adjetivos). Devido ao comportamento desses adjetivos em posição predicativa, defendemos, junto com Fábregas, Leferman e Marín (2013), que esse argumento seja de natureza davidsoniana, e não kimiana, contra a análise de Maeinborn (2005). A investigação da origem desse argumento, assim como a formalização da estrutura sintática (e semântica) que permite que o adjetivo o acesse são temas para trabalhos futuros; contudo, apontamos que não é necessário que o nome seja deverbal, tampouco humano. Por último, é importante notar que essa proposta não dá conta de todos os casos de leitura avaliativa na anteposição. Recuperemos o exemplo anteriormente dado em (15c), repetido agora em (59): (59) seus redondos olhos de criança brilhavam com animação [...] Uma hipótese é que, nesse caso, o que esteja em jogo seja alguma medida de grau. Como observado por Menuzzi (1992), “a fim de que se possa ‘intensificar’ a atribuição de uma propriedade a alguém ou algo, é preciso que essa propriedade seja relativa, i.e. que se possa tê-la em maior ou menor grau em relação a alguma referência [...]” (MENUZZI, 1992, p. 135). O adjetivo redondo não é tipicamente relativo e tampouco avaliativo, mas se conseguirmos interpretá-lo como um ponto em uma escala (nesse sentido, (59) poderia ser parafraseado por “seus olhos muito redondos”), é possível que ele apareça na anteposição. Outro exemplo nesse sentido é (60): Uma questão bastante intrigante é o caso de legal e bonito – que apesar de apresentarem leituras claramente avaliativas, não aceitam facilmente a anteposição em qualquer contexto. 24 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 629 (60) a. *um vermelho vestido b. Eu gosto daquele vermelhíssimo vestido (MENUZZI, 1992, p. 134) Apesar não poder ser anteposto com facilidade, vermelho aceita a anteposição quando com marcação morfológica de superlativo, que estabelece um ponto em uma escala. Assim, a relação entre anteposição e grau (degree) é outro aspecto dessa estrutura que merece futuras investigações. Agradecimentos O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Referências BOFF, A. A posição dos adjetivos no interior no sintagma nominal: perspectivas sincrônica e diacrônica. 1991. 110f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – IEL, UNICAMP, Campinas, 1991. BOSQUE, I.; PICALLO, C. Postnominal adjectives in Spanish DPs. Journal of Linguistics, New York, n. 32, n. 2, p. 349-385, 1996. CARLSON, G. N. Reference to Kinds in English. 1977. Tese (Ph.D.) – Universidade de Massachusetts, Amherst, 1977. CINQUE, G. The Syntax of Adjectives: a Comparative Study. Cambridge, MA: MIT Press, 2010. DOI: https://doi.org/10.7551/ mitpress/9780262014168.001.0001 DAVIDSON, D. The Logical Form of Action Sentences. In: RESHER, N. (Ed.). The Logic of Decision and Action. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1967. p. 81-95. FÁBREGAS, A.; LEFERMAN, B.; MARÍN, R. Evaluative Adjectives are Davidsonian States. In: SINN UND BEDEUTUNG, 17, 2012, Paris. Proceedings… Paris: École Normale Supérieure, 2013. p. 237-253. 630 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 575-601, abr./jun. 2019 KERTZ, L. Evaluative adjectives: An adjunct control analysis. In: 25th WEST COAST CONFERENCE ON FORMAL LINGUISTICS, 25th., 2006, Somerville. Proceedings… Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, 2006. p. 229-235. KIM, J. Events and their descriptions: some considerations. In: RESHER, N. et al. (Ed.). Essays in Honor of Carl G. Hempel. Dordrecht: Reidel, 1969. p. 198-215. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-017-1466-2_10 KIM, J. Events as property exemplifications. In: BRAND, M.; WALTON, D. (Ed.). Action theory: Proceedings of the Winnipeg Conference on Human Action. Dordrecht: Reidel, 1976. p. 159-177. DOI: https://doi. org/10.1007/978-94-010-9074-2_9 KRATZER, A. Stage-level and Individual-level predicates. In: CARLSON, G. N.; PELLETIER, F. J. (Ed.). The Generic Book. Chicago: Chicago University Press, 1995. p.125-175. MAIENBORN, C. On the limits of the Davidsonian approach: the case of copular sentences. Theoretical Linguistics, [S.l.], v. 31, n. 3, p. 275-316, 2005. DOI: https://doi.org/10.1515/thli.2005.31.3.275 MENUZZI, S. Sobre a modificação adjetival do português: uma teoria da projeção dos adjetivos. 1992. 194f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – IEL, UNICAMP, Campinas, 1992. MILSARK, G. Existential Sentences in English. 1974. Tese (Ph.D.) – M.I.T., Cambridge, 1974. PERINI, M. A. Gramática descritiva do português. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005. PRIM, C. A Sintaxe dos adjetivos em português brasileiro. 2015. 158f. Tese (Doutorado em Linguística) – IEL, UNICAMP, Campinas, 2015. STOWELL, T. The alignment of arguments in adjective phrases. In: ROTHSTEIN, Susan. (Ed.). Perspectives on phrase structure. San Diego; London: Academic Press, 1991. (Syntax and Semantics, 25, p. 105-135). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 Bare Singular Count Nouns in Dutch as a Heritage Language in Brazil1 Nomes singulares nus em neerlandês como língua de herança Antonio Codina Bobia Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais / Brasil Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo / Brasil antoniocodina@gmail.com Abstract: The aim of this research was to evaluate the distribution of DPs in generic sentences, in Dutch Heritage Language Speakers (HLS) in Holambra, Brazil, especially regarding the acceptability of Bare Singular Count Nouns (BS). The Distribution of BS is more restricted in Dutch than in Brazilian Portuguese, nonetheless, we raised the hypothesis that, due to the influence of Brazilian Portuguese, these HLS would accept BS in contexts similar to those of Brazilians. We applied an acceptability judgement test to 60 adult HLS from Holambra (experimental group), 30 Brazilian monolinguals and 30 native Dutch speakers (control groups 1 and 2). We presented to each participant in the experimental group 10 Dutch stimulus sentences and 20 filler sentences in order to verify their acceptability on a five-item Likert scale. The results showed that sentences with BS eliciting a generic reading received high acceptability rates from the Experimental Group of Holambra (72% acceptability rate). These responses were more aligned with the Brazilian Control (78% acceptability rate) than with the Dutch Control (96% unacceptability rate). The statistical Regression Analysis of the BS showed that the Dutch Control had a significant divergent behavior (p.value = <216) when compared to the Experimental Group. The results seem thus to support our hypothesis that a slightly different grammar has risen in the Dutch HLS of Holambra, suffering attrition due to the influence of Brazilian Portuguese, since they accept Bare Singulars, showing no significant difference with the Brazilian Control Group. We will follow Oosterhof’s proposal (2008) on the distribution of empty determiners in Dutch and assume that the grammar of the Holambra speakers possesses a bundle of features allowing a 0[+R, +count, –pl] combination: That is, a singular count noun DP with an empty determiner, rendering a generic reading. 1 This paper is broady based on my MA research: Codina Bobia, 2017. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.631-668 632 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 Keywords: language acquisition; heritage languages; bare singular count nouns; Dutch; Brazilian Portuguese. Resumo: O objetivo desta pesquisa foi avaliar a distribuição de DPs em sentenças genéricas em falantes de neerlandês como língua de herança em Holambra, Brasil, especialmente em relação à aceitabilidade de nomes singulares nus (NNs). A distribuição de NNs é mais restrita em neerlandês do que no Português Brasileiro (PB), no entanto, levantamos a hipótese de que, devido à influência do PB os falantes de Holambra poderiam aceitar NNs em contextos semelhantes aos dos brasileiros. Aplicamos um teste de aceitabilidade em 60 HLS adultos de Holambra (grupo experimental), 30 monolíngues brasileiros e 30 falantes nativos de holandês (grupos de controle 1 e 2). Apresentamos a cada participante do grupo experimental 10 sentenças em neerlandês e 20 distratores, a fim de verificar sua aceitabilidade em uma escala Likert de cinco itens. Os resultados mostraram que sentenças genéricas com NNs receberam alta aceitação do Grupo Experimental de Holambra (72% de aceitabilidade). Essas respostas estão mais alinhadas com o Controle Brasileiro (78% de aceitabilidade) do que com o Controle Holandês (96% de inaceitabilidade). A análise de regressão estatística dos NNs mostrou que o Controle Holandês apresentou comportamento significativamente divergente (p. valor=<2-16) quando comparado com o Grupo Experimental. Os resultados parecem corroborar nossa hipótese de que uma gramática ligeiramente diferente surgiu nos falantes de holandês de Holambra, sofrendo atrito devido à influência do PB, uma vez que aceitam NNs, não mostrando diferença significativa com o Grupo de Controle Brasileiro. Seguiremos a proposta de Oosterhof (2008) sobre a distribuição de determinantes vazios em holandês, e propor que a gramática dos falantes de Holambra possui um conjunto de traços permitindo a combinação 0 [+ R, + count, -pl]: isto é, um nome nu singular contável com uma leitura genérica. Palavras-chave: aquisição de linguagem; línguas de herança; nomes singulares nus; neerlandês; português brasileiro. Submitted on September 14th, 2018 Accepted on December 17th, 2018 1 Introduction Our research aimed at evaluating the distribution of Determiner Phrases in Dutch Heritage Language Speakers (HLS) in the municipality Holambra, São Paulo, Brazil. Our objective was to compare aspects of Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 633 article use (and omission) in sentences with generic readings – especially Bare Singular Count Nouns (BS) – in the Dutch language spoken by the inhabitants of Holambra with that of Dutch and Brazilian speakers. Recently, Brazilian Portuguese (BP) has been one of the target languages of interest for studies on BS for allowing them with countable nouns in generic contexts, unlike other Romance (or Germanic) languages. Hence, Brazilian Portuguese allows: (1) Cachorro caça gato. which is inadmissible in other Romance languages: (2) b *Perro caza gato. (Spanish) (2) c *Chien chasse chat. (French) (2) d *Gos caça cat. (Catalan) (2) e *Cane persegue gatto. (Italian) or Germanic: (2) f *Dog chases cat. (English) (2) g *Hond achtervolgt kat. (Dutch) (2) h *Hund jagt katze. (German) Consequently, our main research question was: Do Dutch Heritage Language Speakers (HLS) of Holambra accept Bare Singulars as licit Dutch constructions in contexts not accepted in Standard Dutch? Considering studies regarding the influence of Majority Languages on the HL our prediction was that the HL speakers of Holambra would accept Bare Singulars in a similar way than Brazilian Portuguese speakers. To answer this question, we performed an Acceptability Judgement Test (AJT) with 60 subjects from this community. We also assessed whether these speakers followed patterns more aligned with BP than with Standard Dutch or vice versa, regarding the distribution of DPs in generic sentences. The subjects of our experiment are descendants of the first Dutch migrants who arrived in Holambra in the mid-twentieth century. Holambra 634 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 is a small town located in the state of São Paulo, in the southeastern region of Brazil. The first Dutch immigrants arrived in 1948 in what later would be the independent municipality of Holambra. Dutch is the L1 of most inhabitants of Holambra from the firstborn generation. These speakers do not seem to diverge significantly from Standard Dutch and/or other dialects from Dutch speaking areas in Europe (during our contact with the community we observed Limburgs and Brabants, for example).2 Groups of speakers like the inhabitants of Holambra are a representative example of HLS due to the peculiar character of the language acquisition process which they go through. Considering that typical language acquisition occurs within a family that speaks the same language as the language of the region or state in which the family lives, in the case of Heritage Languages we are faced with an atypical acquisition situation. According to Montrul (2012, p. 2), HLS are “the children of immigrants born in the host country or immigrant children who arrived in the host country some time in childhood”. We find a similar definition in Valdés (2000) who describes heritage language speakers as individuals who grew up in families whose language is not that of the dominant community. This is an atypical acquisition from which various forms of bilingualism can emerge. The example of the Dutch community in our study illustrates this process well: children born in homes where a language is spoken that is not the dominant language of the macro-environment (broad community and neighboring cities, province, state, etc.), nor of the surrounding society and its representative bodies (schools, public authorities, television, radio, etc.). To Scontras et al. (2015), HLS offer a unique field to study language acquisition issues, since this process contrasts with traditional monolingual or simultaneous bilingual acquisition. In HLS, we can find aspects of atypical acquisition, language attrition, processes that lead to different mental grammars than those of monolingual speakers. Likewise, Valdés (2005) acknowledges the importance of the inclusion of Heritage Languages in the range of Language Acquisition studies and proposes the reconceptualization of the Second Language The only remarkable phenomenon, aside from some basic code-mixing, was that the youngest participant of our research seemed unable to pronounce the shibboleth [sχ], pronouncing it instead as [sk]. Thus, the Dutch word “school”, [sχoːɫ], sounded more like the English [skuːl]. 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 635 Acquisition area, expanding it with the inclusion of several types of Language Acquisition, including the acquisition of dialects, standard language, specific registers and styles and written language. Similarly, it has to be mentioned that very little research has been undertaken on the influence of BP on Heritage Languages in Brazil, since there are no large communities of HLS in this country. This is due to the lack of great migratory flows in recent years.3 In effect, the peak of large migratory movements in Brazil – originating mainly from Italy, Central European Countries and Japan – occurred around the first decades of the twentieth century (FREITAS, 2003; MORALES, 2008) making it presently difficult to find communities with first- or second-generation HLS.4 We aimed, thus, at comparing the distribution of DPs in generic sentences and measuring whether there had been cases of language attrition – the erosion of the speakers’ first grammar – in the HLS, attributable to the majority language regarding the acceptability of Bare Singular Count Nouns. The null hypothesis is that the acceptability of DPs in generic sentences in Dutch as a Heritage Language in Holambra is the same as in Standard Dutch. 1.1 Heritage Languages A Heritage Language (HL) is, broadly speaking, a language spoken by people who grew up in families whose language is not the one of the dominant community (indigenous communities, migrants, etc.). Heritage Language Speakers (HLS) can be considered a type of bilinguals with the difference that their acquisition process of the nondominant language is interrupted at a given age, normally when entering school. It is often considered that HLS suffer from a “deviant” form of final acquisition state. This kind of acquisition, as bilingualism does, is a new and promising field broadening Language Acquisition studies due to its peculiar process involving a non-standard input situation. This is a very different situation than the United States, that has many inhabitants from Spanish speaking countries, or Europe which received (and is still receiving) large contingents of people from different origins over the last years. 4 Nowadays, there are some new arrivals from Syrian and Haitian citizens, as well as from people from several African and South American countries. Nevertheless, as they are new communities, they have no adult HLS. 3 636 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 Historically, the term HL originated a few decades ago in the United States and Canada due to the increase of their migrants’ population and the challenges they mean for the educational system. According to Acosta (2011, p. 132), in the USA, “El término ‘herencia’ se lleva manejando en los Estados Unidos desde los años 80 en política lingüística y desde los 90 en el campo de la educación y de la enseñanza de idiomas”. HL are typically minority languages and are also called ethnic minority languages or community languages (MONTRUL, 2012), as, in many countries, HL can also refer to the languages spoken by indigenous communities. A widely-accepted definition of HLS, only valid in Anglophone countries, of course, is found in Valdés: “a bilingual raised in a home where a non-English language is spoken, who speaks or merely understands the heritage language, and who is to some degree bilingual in English and the heritage language” (VALDÉS, 2000, p. 1). Montrul (2012, p. 2) defines HLS as: “[…] the children of immigrants born in the host country or immigrant children who arrived in the host country some time in childhood.” Scontras et al. (2015, p. 2) refer to HLS as “unbalanced bilinguals [...] whose home language is much less present in their linguistic repertoire than the dominant language of their society”. Benmamoun et al. (2013, p. 2) define heritage language speakers as “asymmetrical bilinguals who learned language X – the ‘heritage language’ – as an L1 in childhood, but who, as adults, are dominant in a different language”. Heritage Language Speakers are thus defined by the peculiar character of the language acquisition process they undergo. Indeed, if a typical acquisition takes place within a family (or community) speaking the same language as the one of the region or state in which they live, in the case of HLS we are dealing with an atypical language acquisition situation. To Scontras et al. (2015), this offers a unique testbed to study acquisition since in HL acquisition we find aspects of atypical acquisition and language attrition, processes which can lead to different mental grammars than those of monolinguals and bilinguals. According to Valdés (2005), the inclusion of HL in the field of language acquisition studies is also important and she proposes the reconceptualization of the SLA area, expanding it to include various types of language acquisition, including acquisition of dialects, standard languages, specific registers and styles, and written language. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 637 HL acquisition is hence characterized by exposure to a first language that is spoken only in limited contexts, followed by the acquisition of a second language, which is dominant in society. The moment of the growth of the second language largely depends on geographical, political, and other external circumstances. There is, however, consensus in the literature on the fact that the beginning of schooling is a turning point marking the transition between first and second language (see MONTRUL, 2012). Of course, this does not mean that the child has had no previous contact with the second language, neither that they should lose their first language when they begin attending school, but it is considered that the second language will take on an increasingly dominant character which may cause attrition with the first language (GUIJARRO-FUENTES; SCHMITZ, 2015). As aforementioned, our research on language acquisition was conducted with Dutch HLS of a Brazilian municipality of the state of São Paulo. This community, Holambra, is a typical instance of an HL setting: children born in families where a language is spoken (Dutch) that is not the dominant language (Brazilian Portuguese) of the macroenvironment (wider community and neighboring towns, province, state, etc.), neither of society and its representative organisms (schools, government, television, radio, etc.). As HL acquisition is an unusual process and its results are not the same as typical acquisition, bilingual or monolingual, it has led some theorists (BENMAMOUN et al. 2013; MONTRUL, 2008; POLINSKY; KAGAN, 2007) to assume a “incomplete acquisition”. Conversely, this stance has been rebutted by other researchers stating that the outcome of HLS is not due to an incomplete acquisition but is “a contact variety which differs from the monolingual variety of origin due to language change” (GUIJARRO-FUENTES; SCHMITZ, 2015, p. 241). Attrition is a much-mentioned condition in HLS. To Seliger (1996, p. 616), attrition is “the temporary or permanent loss of language ability as reflected in a speaker’s performance or in his or her inability to make grammaticality judgments that would be consistent with native speaker monolinguals of the same age and stage of language development”. Montrul (2008, p. 21) considers attrition as “the loss of a given property y of the language after property y was mastered with native-speaker level of accuracy and remained stable for a while, as in adults”. The difference between incomplete acquisition and attrition is that the latter implies 638 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 that a full grammar is attained (as in L1 acquisition) and is posteriorly lost because the language in question is not used. Albeit the term was coined meant for the loss of linguistic capacities of L1 speakers, it also appears to be an occurring phenomenon in HLS since they use less the minority language. 1.2 Dutch Determiner Phrases As in other languages, in Dutch the NP “denotes the set of entities that have the properties of being a car and being blue” whereas the definite Determiner “expresses that the denotation set of the NP blauwe auto ‘blue car’ contains exactly one entity and that it is this entity that the speaker refers to” (BROEKHUIS; KEIZER, 2012, p. 676). The structure of the Dutch DP is as follows:5 (3) a. de blauwe auto the blue car b. [DP [D de] [NP blauwe auto]] Noun phrases are generally used to refer to sets of entities in the D domain. Another possible use of noun phrases is the denotation of genericity. The examples in (4)a, b and c “express a general rule that is assumed to be true in the speaker’s conception of reality” (BROEKHUIS; KEIZER, 2012, p. 692). So, these sentences affirm that, broadly speaking, all zebras are striped. (4) a. De zebra is gestreept.6 the zebra is striped b. Een zebra is gestreept. a zebra is striped c. Zebras zijn gestreept. zebras are striped In this work, we will not discuss the position of adjectives in the DP, as it out of the scope of our research. We refer the reader to Menuzzi (1994) for a crosslinguistic study on the architecture of DPs in Dutch and Brazilian Portuguese. 6 This example and the next ones are from Broekhuis and Keizer, 2012. 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 639 Genericity is a property of the entire sentence, not only of the noun phrase, and has, consequently, some distinctive properties – like a preferential use of the present tense. We will, nevertheless, mainly focus on the noun phrase’s properties, discussing genericity and limiting our boundaries to the realm of count nouns. As seen in (4), Dutch count nouns can express genericity in three contexts: with a singular noun, preceded by a definite or indefinite article, and with bare plural nouns.7 Genericity in singular definite noun phrases depends highly on their pragmatic content. (5), for example, does not have a generic reading as it would not be probable that the characteristics of being caged could apply to all the specimens of the Zebra class. (5) De zebra zit in een KOOI. [specific] the zebra sits in a cage In (6), on the other hand, it is possible to give the NP either a specific or generic reading. The property of having stripes can apply to a particular zebra since it is part of the set of the members of the species, as for example the caged zebra of (5), or to the entire class of zebras. According to Broekhuis and Keizer (2012), an element enabling the speaker to perceive differences will be the locus of the accent. Referential readings of the noun phrase will have a main accent on the adjective, while the generic reading will have its main accent on the noun phrase: (6) De ZEbra is gestreept. [generic] the zebra is striped Still according to Broekhuis and Keizer (2012), context is not the only element determining a generic reading of a singular definite noun phrase. The examples in (7) could theoretically be read with a generic meaning but, due to an unclear reason they are only accepted with a referential reading, while their plural counterparts in (7’) are perfectly sound as generic utterances. Although Oosterhof (2008) reports on some Dutch varieties accepting plural count nouns anteceded by the definite article with a generic interpretation, as we already mentioned above. 7 640 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 (7) a. #Het meisje is intelligent. ‘the girl is intelligent’ b. #Het boek is duur. ‘the book is expensive’ c. #De braadpan is zwaar. ‘the frying pan is heavy’ (7’) a. Meisjes zijn intelligent. ‘girls are intelligent’ b. Boeken zijn duur. ‘books are expensive’ c. Braadpannen zijn zwaar. ‘frying pans are heavy’ To Broekhuis and Keizer (2012, p. 695), it could be argued that in these cases Whereas the noun vrouw ‘woman’ or zebra easily evokes a prototype, nouns like meisje ‘girl’, boek ‘book’ or braadpan ‘frying pan’ do not. Perhaps this suggestion can be supported by the fact that a prototypical reading can be evoked provided that the context provides sufficient clues that such a reading is intended.8 This can be seen through the sentences in (8) in which generic readings are possible since the syntactic context allows comparison of the involved NPs (BROEKHUIS; KEIZER, 2012). Nonetheless, these authors state that most speakers prefer using plural indefinite noun phrases (8’) instead of singular definites. (8) a. Het meisje is op die leeftijd volwassener dan de jongen. the girl is at that age more mature than the boy b. Het meisje uit de polder is volwassener dan het meisje uit de stad. the girl from the polder is more mature than the girl from the city (8’) a. Meisjes zijn op die leeftijd volwassener dan jongens. girls are at that age more mature than boys b. Meisjes uit de polder zijn volwassener dan meisjes uit de stad. girls from the polder are more mature than girls from the city Although some authors assume that generic sentences are only possible with “wellestablished species”, as we will see below. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 641 Visibly, the use of modifiers – AdvP in (8a) and PP in (8b) – plays a part in these interpretations creating an appropriate context for generic readings. This is also the case in (9) as the modifier gebonden seems to facilitate a prototypical reading (BROEKHUIS; KEIZER, 2012, p. 696). (9) a. *?Het boek is tegenwoordig onbetaalbaar. the book is nowadays unaffordable A book is unaffordable nowadays b. Het gebonden boek is tegenwoordig onbetaalbaar. the bound book is nowadays unaffordable A bound book is unaffordable nowadays As it had already been pointed for other languages by Carlson (1977) and Krifka et al. (1995), among others, sentences with definite singulars referring to more general classes like “the mammal” sound less natural than definite singulars used with well-established species, like “the zebra”. Thus, generic readings of definite noun phrases in Dutch would also be related to the level of the class: higher classes tend not to be expressed using a definite article in the utterance, as can be seen by the examples in (10) in which the definite article is less preferred to express genericity than the other possibilities. (10) a. %Het zoogdier is warmbloedig. the mammal is warm.blooded b. Een zoogdier is warmbloedig. a mammal is warm.blooded c. Zoogdieren zijn warmbloedig. mammals are warm.blooded In sum, it appears that the choice between referential reading and generic readings in singular definite noun phrases is not purely syntactic, but regards the speakers’ interpretation, also influenced by extra-linguistic factors. According to Broekhuis and Keizer (2012), Standard Dutch does 642 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 not allow generic readings in sentences like (11a). Although we have already mentioned that some varieties accept these readings.9 (11) a. #De zebra’s zijn gestreept. the zebras are striped b. De grote katten zijn gevaarlijke roofdieren. the big cats are dangerous predators (11b), on the other hand, is acceptable because “[…] the NP grote kat ‘big cat’ may be used as the name of the superset containing the subsets of cats denoted by the nouns leeuw ‘lion’, tijger ‘tiger’, etc. In other words, the noun phrase de grote katten does not refer to one, but to several species of animals, hence its plural form” (BROEKHUIS; KEIZER, 2012, p. 697). In sum, it seems that plural definite noun phrases can only be used as generics if they denote a set of entities which can be divided into other subclasses or species.10 Generic and non-generic indefinite noun phrases differ in that there are normally no indefinite DPs headed by indefinite articles in subject position, while generic DPs must absolutely hold this syntactic position, as can be seen in (12). And, we are not talking here about Dutch sentences in which adjuncts allow these kind of generic readings: Buiten de paartijd leven de ijsberen solitair. outside the mating season live the polar bears solitary Outside the mating season, polar bears live a solitary life. 10 There are some exceptions upon which we will not focus, such as, for example, the use of restrictive alleen (only): (ii) Er zijn vele soorten wilde paarden, maar alleen de zebra’s zijn gestreept. there are many kinds of wild horses but only the zebras are striped or the addition of a PP-modifier: (iii) Katten hebben een slechte reputatie, maar cats have a bad reputation but de katten met witte voetjes brengen geluk. the cats with white paws bring luck 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 643 (12) a. Er zwemt een vis in het water. [non-generic] there swims a fish[SG] in the water a’. Er zwemmen vissen in het water. [non-generic] there swim fish[PL] in the water b. Een vis zwemt in het water. [generic] a fishsg swims in the water b’. Vissen zwemmen in het water. [generic] fishpl swim in the water Nonetheless, Broekhuis and Keizer (2012) show constructions as (13) which do have a generic reading but seem to behave differently from the examples above. (13) a. Een goed mes is onmisbaar voor dit (soort) werk. a good knife is indispensable for this kind.of work b. Goede messen zijn onmisbaar voor dit (soort) werk. good knives are indispensable for this kind.of work This would be due to the kind of statement conveyed in this type of sentences which do not proclaim a categorical quality of the NP, in this case goed mes, good knife, but a generic activity of the NP dit soort werk, this kind of work. Consequently, to categorize (13) as nongeneric it should be stated that indefinite noun phrases introduced by een or ∅ can only occupy the canonic subject position in generic clauses (BROEKHUIS; KEIZER, 2012). As for the differences between singular and plural generic indefinite noun phrases, according to Broekhuis and Keizer (2012) they would not be synonymous. As they show with the primed sentences in (14), it seems there is an implicational unevenness, since implications are always valid in (14a) but not always in (14b). (14) a. Een zebra is gestreept ⇒ a’. Zebra’s zijn gestreept a zebra is striped zebras are striped b. Musicals zijn populair ⇒/ b’. Een musical is populair musicals are popular a musical is popular 644 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 Thus, it would seem that generic sentences with an indefinite singular noun phrase denote an inherent property of the members of that class while the ones with indefinite plural noun phrases “a more incidental or transitory property to the class” (BROEKHUIS; KEIZER, 2012, p. 701). This can be seen below as (15a) accepts an AdvP but (15b) does not.11 (15) a. Musicals zijn tegenwoordig populair. musicals are nowadays popular b. *Een musical is tegenwoordig populair. a musical is nowadays popular 1.3 Bare Singular Count Nouns in Brazilian Portuguese It is an undebatable fact that BP presents a wide range of possibilities to express genericity, as shown by Schmitt and Munn (1999, 2002) and many others (PIRES DE OLIVEIRA; ROTHSTEIN, 2011; MÜLLER, 2002; LOPES, 2006). We will not discuss the behavior of Bare Singular Nouns in BP, as there are no controversies about the fact that they are used in generic sentences, but just present some proposals regarding their nature in Brazilian Portuguese.12 Schmitt and Munn (1999) posit that BS are DPs without Num. Lopes (2006) partially agrees with the former for BS in generic sentences, however BS in existential sentences would in fact be number neutral indefinites. Thirdly, we have Pires de Oliveira and Rothstein’s theory (2011), arguing that BS are mass nouns. Finally, Müller (2002), defends that BS are only NPs, lacking a DP projection, that they cannot bear an existential reading and function as topical predicates in the left periphery of the sentence. On the other hand, one could imagine a situation in which (15)b could be accepted. If a film producer, for example, would like to remake a classical movie and should ask which one is best: “Citizen Kane” or “Singing in the Rain”, (15)b would then be a possible answer (MENUZZI, 2017). 12 There are several other works on the issue of Bare Singulars in Brazilian Portuguese: Menuzzi et al. (2015), Taveira da Cruz (2008), Cyrino and Espinal (2015), among others. 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 645 1.4 Conclusion In Section 1, we have seen that, in Dutch, three types of DPs can be used in generic contexts (16)a-c, a fourth is partially accepted depending on dialectical variation (16)d, and a fifth is ungrammatical (16)e,13 the same does not apply to BP, since all five options can express genericity (examples (17)a-e). (16) a. Definite singular: √ De kolibrie is een vogel. b. Indefinite singular: √ Een kolibrie is een vogel. c. Bare plural: √ Kolibries zijn vogels. d. Definite plural: % De Kolibries zijn vogels. e. Bare singular: * Kolibrie is een vogel. (17) a. Definite singular: √ O beija-flor é uma ave. b. Indefinite singular: √ Um beija flor é uma ave. c. Bare plural: √ Beija-flores são aves. d. Definite plural: √ Os beija-flores são aves. e. Bare singular: √ Beija-flor é ave. 2 Methods Our experiment consisted of a multifactorial analysis with 1 dependent variable and 5 independent ones. The dependent variable was the Acceptability Rate (from 1 to 5) given by the research’s participants. The 4 independent variables were: Subset (3); Group (2); DP type (5); Sentence (40). The Variable “Subset” contained the 3 groups of participants of our research population (n=120): the experimental group from the Dutch HLS, inhabitants of Holambra (n=60); the Dutch control group (n=30); and the Brazilian control group (n=30). The variable “Group” was created by dividing the research population (n=120) into two minor groups: group A and group B (n=60, each), in order to present different sentences to each group and gain predictability power. 13 Examples adapted from Ionin et al. (2011). 646 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 The variable “DP type” was composed of the 5 DPs: Definite Singular, Indefinite Singular, Indefinite Plural, Definite Plural, and Bare Singular. The 10 sentences tested, illustrated in (18) and (19) for Dutch and BP, respectively, were assigned to two counterbalanced lists, combined with 20 other filler items, resulting in two 30-item lists. (18) De natuur is perfect, nadat ze de bloemen bestuiven maken bijen honing. (19) A natureza é perfeita: depois de polinizar as flores, abelhas produzem mel. ‘Nature is perfect, after pollinating the flowers, bees produce honey’. 2.1 Participants The subjects of our experimental group of Dutch Heritage Language Speakers of Holambra14 (N = 60) were selected based on the following inclusion criteria: living in the community of Holambra and being from the first generation of immigrants born in Brazil (subjects between approximately 45 and 65 years old). The exclusion criteria were having received formal education in Dutch and having lived more than one year in the Netherlands after coming to Brazil. The Control group 1 (N = 30) was formed with native Dutch speakers. The inclusion criterion for the control group was being a native Dutch speaker and the exclusion criterion having been exposed to Brazilian Portuguese in their early years. The second control group consisted of 30 speakers of Brazilian Portuguese who were required to be native Brazilian Portuguese speakers. The exclusion criterion was having been exposed to Dutch in their early years. Our research was authorized by the UNICAMP Ethics Committee under CAAE number 56577816.6.0000.5404. 14 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 647 2.2 Proceedings In the first part of the data collection, the participants of the experimental group were briefly interviewed in Dutch in order to establish a link with the researcher and raise their sociodemographic profile as to guarantee the inclusion and exclusion criteria. These interviews, of approximately five minutes, were recorded and analyzed with the intention of observing whether there were occurrences of Article Omission in the spontaneous speech production of Dutch. No occurrences of Bare Singular Nouns were found in these interviews. The second part of the test was an Acceptability Judgement Task. 10 sentences, among which there were Bare Singulars, were presented to the participants who ought to judge their acceptability on a 1 to 5 Likert scale, ranging from 5 (Totally acceptable) to 1 (Totally unacceptable) These sentences in Dutch were recorded by a Dutch speaking person to avoid bias in the presentation of the stimuli and thus achieve a uniform reading. Each participant of the experimental group listened to 10 stimulus sentences alternating with 20 filler sentences in Dutch. The control groups (Standard Dutch and Brazilian Portuguese speakers) were not interviewed but the same 30 elements were tested: 10 stimulus sentences and 20 distractors. The tests with the Brazilian control group were conducted personally and the ones with the Dutch control group through the Qualtrics online survey tool (www.qualtrics.com). In both cases, the participants received a form with the written sentences and instructions as how to answer it. The experimental group was further divided in two smaller groups (N30 each) to obtain a stronger predictability and avoid item related bias. Each participant listened to a short, contextualized, sentence so as to elicit a generic reading. In Figure 1 we have an example with a bare noun (complete lists of the sentences can be found in the appendices). FIGURE 1 – Model of the experimental sentences’ presentation The recording the participant heard: Het is moeilijk om sommige vogels te fotograferen want ze vliegen te snel *adelaar, bijvoorbeeld, vliegt erg snel. It is difficult to photograph some birds because they fly too quickly, *eagle, for example, flies very fast. 648 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 The data was then recorded, transcribed and underwent statistical analysis. The obtained data was statistically analyzed with Linear Regression Analysis in order to guarantee a high analysis efficiency. We also applied the Shapiro-Wilk normality test as to assess the results’ distribution. 3 Results The overall results show that, basically, we can conclude that the Brazilian and Holambra speakers group together, and not only with respect to Bare Singulars. The behavior for Definite Singulars is similar for the 3 groups tested, with acceptability rates of 84%, 88% and 90%.15 Indefinite Singulars are better accepted by the Holambra group (84%), followed by the Dutch control group (72%) and, finally the Brazilian control group (61%), showing that there is a different behavior between both Dutch speaking groups one the one hand, and the Brazilian control group on the other.16 Bare plurals are well accepted by the Brazilian control (80%) and the experimental Holambra group (81%), but not so by the Dutch control group (51%). Definite plurals reach a higher acceptability rate in the Holambra group (90%), followed by the Brazilian control group (86%) and the Dutch (62%). Lastly, Bare singulars were not accepted by the Dutch control group, as was expected, with a 96% unacceptability rate, while both the Brazilian control group and the experimental group of Holambra rated them similarly: 78% and 72% respectively. The distribution of Definite Singulars’ acceptability was similar for the three groups (Figure 2), who considered them acceptable in 57% of the cases for the Brazilian Control, 63% for the Dutch Control and 66% for the Holambra Group, respectively. For ease of exposition, here we have joined the results of the totally and partially acceptable responses. 16 we will present the statistical analyses below in the sections correspondent to each DP type tested. 15 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 649 FIGURE 2 – Acceptability rate of Definite Singulars The overall Linear Regression results of the Definite singulars (Figure 3) showed that the two subsets (Brazilian and Dutch Control) are not significantly different than the Holambra group (p-value = 0.434 and 0.147, respectively). The Standard Error of both Control Groups was 0.1490, indicating that data dispersion is low, reinforcing the robustness of the test. FIGURE 3 – Linear Regression model of the Definite Singulars 650 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 The sentences with Indefinite Singulars were basically all well accepted by the participants. Figure 4 shows their acceptability rate in the experimental group from Holambra and both control groups. Respondents who accepted these sentences amounted to 56% in the experimental group, 47% in the Dutch control group, and 38% in the Brazilian control. The group in which we found a higher negative acceptability was the Brazilian Control, where 7% of the participants gave a Totally Unacceptable score. FIGURE 4 – Acceptability rate of Indefinite Singulars The Regression Analysis of this DPs subset showed that there was a significant difference between the Experimental Group and the Brazilian Control Group (p.value = 0.00109) but not between the Experimental group and the Dutch Control Group (p.value = 0.06110). The Standard Error of the Linear Regression also showed that the data dispersion of both Control Groups was 0.1639, thus a low-level dispersion. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 651 FIGURE 5 – Linear Regression model of the Indefinite Singulars Bare Plurals also showed slightly unexpected results, particularly in the Dutch Control group (Figure 6). Indeed, only 18% of this group accepted these sentences, compared to 57% of the Brazilian control and 49% of the experimental group. However, summing the 18% Totally Acceptable to the 33% Partially Acceptable responses for the Dutch control group the figure amounts to 51% of positive ratings. 652 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 FIGURE 6 – Acceptability rate of Bare Plurals This distribution variance was also reinforced by the Bare Plurals Regression analysis, showing that there is a significant difference between the Experimental Group and the Dutch Control (p.value = 1.5-6). The Standard Error of the two subsets was 0.16394. FIGURE 7 – Linear Regression model of the Bare Plurals Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 653 It is noteworthy that this time the sentences also received very low ratings from the other groups. 33% of the Brazilian control group considered it as being Totally Acceptable and 27% Partially Acceptable, while all the other participants (40%) gave it a level 3 rating (Doubtful). Also 13% of the experimental group thought it was Totally Unacceptable. There was no significant difference in the Regression Analysis either between the variables for this sentence (p.value < 0.05). Overall, these results show an acceptability rate which is lower than the expected one according to the literature on this type of DP. We have not reached a decisive conclusion on this issue and can, therefore, only advocate for the need of more research. Definite Plurals were well accepted by most of the participants of the experimental group, who had a similar response pattern as the Brazilian Control (Figure 8). This is an interesting result, as Standard Dutch, just like English, does not allow a generic reading with Definite Plurals. We could account for the acceptability of these constructions in two ways: 1) the influence of BP; 2) the Dutch dialect of the participants’ family which could allow this sentence. On the other hand, a rather high number of the Dutch control group also accepted these sentences: 35% Totally Acceptable and 27% Partially Acceptable responses. This number is relatively high and, in this case, as they did not receive influence from Brazilian Portuguese, one might suppose that most of the respondents accept Definite Plurals with generic readings due to their regional dialectic variation. FIGURE 8 – Acceptability rate of Definite Plurals 654 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 Regression Analysis of this subset (Figure 9) again showed that the Dutch Control Group behaved in a significantly different way than the Holambra Experimental Group (p.value = 3.23-8). This is an expected result due to the nature of the Definite Plural acceptability in Dutch, as we have seen above. The Brazilian Control Group was not significantly different than the Experimental Group (p.value = 0.424). The Standard Error was 0,14574 for both Control Groups, thus sustaining the wellness of the data distribution. FIGURE 9 – Linear Regression model of the Definite Plurals Bare Singular Nouns were rejected by the participants of the Dutch control group, as expected, but received a far lesser penalty from the experimental group of Dutch HL speakers, as shown below in Figure 10. As with the other stimuli, sentences with Bare Singulars eliciting a generic reading were presented for evaluation, and in this case a strong negative response was expected in the Dutch Control group. This prediction fulfilled itself, with 63% Totally Unacceptable and 33% Partially Unacceptable ratings. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 655 FIGURE 10 – Acceptability rate of Bare Singulars These results contrast sharply with the experimental group of Holambra whose response pattern was of 45% Totally Acceptable, 27% Partially Acceptable, 20% Doubtful, and only 6% and 3% Partially and Totally Unacceptable ratings respectively. These results were more aligned with the Brazilian Control Group: 60% Totally Acceptable, 18% Partially Acceptable and 7% doubtful ratings. The statistical Regression Analysis of the Bare Singulars subset shows this also as the Dutch Control has a significant divergent behavior (p.value = <2-16) when compared to the Experimental Group (Figure 11, below). The Standard Error for both Control Groups is 0.1474, guarantying a good confidence level of the sample. 656 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 FIGURE 11 – Linear Regression model of the Bare Singulars 4 Discussion The results of our AJT seem to show that there are some DP types which are preferential for generic readings in subject position across the different groups tested (Figure 12).17 Summarizing, overall, the heritage language speakers behave like Brazilian Portuguese speakers except with indefinite singulars, with which they group with Dutch speakers. Definite Singulars are well accepted by all groups tested. Indefinite Singulars are well accepted by the Holambra group, less by the Dutch, and receives the lowest ratings in the Brazilian control group. Bare plurals are, again, well accepted by the Holambra group, but behave the opposite way among the other two: Brazilians rate them high but the Dutch Control group, very low. Same results can be seen for Definite plurals and, finally, that Bare Singulars are well accepted by both the Brazilian and the Holambra Group while receiving severe unacceptability judgements from the Dutch control group, as we expected. Here again we will sum the results of the partially and totally responses to facilitate our exposition. 17 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 657 It is noteworthy that a pattern emerged in Dutch.18 Our results show an acceptability gradient going from Definite Singulars > Indefinite Singulars > Definite Plurals > Bare Plurals > Bare Singulars (Figure 12). These data could be an interesting starting point for a next level in the studies on DPs in Dutch. FIGURE 12 – Overall Aceptability Distribution Basically, all groups rated sentences with Definite Singulars with a high acceptability level. This is an expected outcome according to the literature regarding its distribution in both languages. As mentioned above, Indefinite Singulars are better accepted by the Holambra group (84%), followed by the Dutch control group (72%) and, finally the Brazilian control group (61%), showing that there is a different behavior between both Dutch speaking groups one the one hand, and the Brazilian control group on the other. This seems to indicate that Brazilians disprefer Indefinite Singulars in subject position, as was pointed out by Müller (2002). It also shows that, in this case, the behavior of the Holambra HLS is more aligned with the Dutch speakers than with the Brazilian ones. Bare plurals were well accepted by the experimental group of HLS and 18 As pointed by Menuzzi (personal communication). 658 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 by the Brazilian control group, but not by the Dutch control group – with only 53% acceptable responses. This was an unforeseen result since Bare Plurals – as Indefinite Singulars – were not supposed to suffer infelicity restrictions regarding generic readings (see DAYAL, 2004; and BROEKHUIS; KEIZER, 2012, for Dutch) and should receive higher acceptability rates. On the other hand, according To Diesing’s Mapping Hypothesis (1992, apud CARLSON, 2003) Bare Plurals are interpreted existentially if they appear within the VP while they elicit a generic reading if they are in the IP (as in his example, in (20) below). (20) Sharks are visible. (ambiguous) a. [IP Sharks [VP e are visible]] b. [IP [VP Sharks are visible]] Where in (20)a some sharks are visible at the moment of the utterance, and in (19)b sharks are visible entities. The fact that bare plurals used in characterizing sentences are ambiguous – as they can elicit two different logical representations – is also mentioned by Oosterhof (2008, p. 161): “on the one hand, kind-selecting predicates can take bare plurals, which suggests that bare plurals refer to kinds. On the other hand, there are speakers of Dutch who consider such sentences unacceptable”. Consequently, it could be that many of the Dutch participants interpreted the test sentences as above with an existential reading. Nevertheless, the sentences of our test were designed to raise generic reading, thus, further studies on the subject are needed. Definite plurals were well accepted by the experimental group (90%), and the Brazilian control group (86%). In the Dutch control group, on the other hand, 62% of the responses were rated as acceptable. Even so, this is very high if we consider Standard Dutch (BROEKHUIS; KEIZER, 2012). Nonetheless, as Oosterhof (2008) shows, there are interspeaker variations regarding this DP type in generic readings. Thus, as it is a dialectic variation, these results are not completely as surprising as they may seem at a first glance. This variation does not occur in the Dutch HLS since they rank as the Brazilian speakers, hence seemingly showing the role of attrition in the HL – as will also be confirmed by the results of the last item: Bare Singulars. Indeed, the sentences with Bare Singulars were well accepted by the Brazilian control group and the experimental 659 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 group, but not so by the Dutch control group, as was expected, since this language does not allow them (BROEKHUIS; KEIZER, 2012). To explain the acceptance of Bare Singulars in the grammars of the Holambra speakers, we will adopt the stance – following Adger (2003) – that Dutch allows a series of bundle features which can also encompass, in this case, the inclusion of Bare singulars in their system. To Oosterhof (2008), there are 3 types of empty determiners in Dutch (Figure 13). FIGURE 13 – Types of empty determiners in Dutch 0[+R] (kind-)referential interpretation 0[–R] variable-introducing/indefinite interpretation 0[–R, ι] definite/specific interpretation Source: Oosterhof (2008, p. 233). Where 0 is the empty phonological realization of the Determiner19 and [+R] or [-R] are related to referential interpretations and quantificational interpretations, respectively (as in LONGOBARDI, 2001).20 In order to express the relation of these features with plural and singular mass nouns, and singular and plural count nouns, Oosterhof adds the features [±count], [±pl] and presents the following combinations for standard Dutch (Figure 14). FIGURE 14 – Possible combinations of features on empty determiners [–count, –pl] [+count, –pl] [+count, –pl] [+R] [+R, –count, –pl] [+R, +count, –pl] [+R, +count, +pl] [–R] [–R, –count, –pl] [–R, +count, –pl] [–R, +count, +pl] [–R, ι] [–R, ι, –count, –pl] [–R, ι, +count, –pl] [–R, ι, +count, +pl] Source: Oosterhof (2008, p. 234). To Adger (2003, p. 261), empty Determiners are the ones in which “the spellout rules for particular feature bundles result in a null phonology”. 20 DPs with the [+R] value refer to an entity (i.e., an object or a kind), and DPs with the [–R] value do not directly refer to an entity but give information on the quantity of objects (or kinds, when the DP has a taxonomic interpretation (Oosterhof, 2008). 19 660 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 (21) %De Kolibries zijn vogels. ‘The hummingbirds are birds’ Hummingbirds are birds. To Oosterhof (2008), the variation in (21) can be described by assuming that there are two varieties of Standard Dutch: one variety does not have a definite article with the feature bundle [+R, +count, +pl]. Another variety does have a definite article with the same bundle of features, [+R, +count, +pl]”.21 Also, as sentences with bare singular count nouns are not accepted in standard Dutch, this language would lack a bundle of features englobing these type of constructions (as in 22). (22) *Zebra is gestreept. ‘Zebra is striped’ A zebra is striped. Following Oosterhof’s proposal (2008) on the distribution of empty determiners in Dutch, and the findings our research, we will assume that the grammar of the Holambra speakers possesses a bundle of features allowing a 0[+R, +count, –pl] combination: That is, a singular count noun DP with an empty determiner, rendering a generic reading. 5 Conclusion It seems thus that our results support our research hypothesis, namely that language attrition has influenced the Dutch Heritage Language Speakers of Holambra that a slightly different grammar has risen in the Dutch HL speakers of Holambra, insofar as the options to express genericity with DP/NP are concerned. Indeed, the distribution of Bare Singulars has shown significant differences, being accepted with a high rating score by most participants of the experimental group. As the results of the experimental group show acceptance of Bare Singulars, this could mean that they have developed a grammar with a combination of features allowing bare singular count nouns, as in the case of Brazilian Portuguese. 21 That would be the variety that accepts generic sentences with Definite Plurals. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 661 Acknowledgements The author would like to acknowledge the Brazilian Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) for the funding that made this research possible and the IEL, UNICAMP, for other forms of support. I would also like to thank the community of Holambra for their support and participation in the study. A special acknowledgement also goes to Sérgio Menuzzi for his valuable comments on this article. All errors, of course, are of my entire responsibility. References ACOSTA, Álvaro Corte. Hijos de hispanohablantes en el exterior: el desarrollo lingüístico de hablantes de herencia que adquieren el español rodeados de otros idiomas. In: Selección de artículos del II Congreso de Español como Lengua Extranjera en Asia-Pacífico (CE/LEAP). [S.l]: [S.n], 2011. Available at: <http://cvc.cervantes.es/ensenanza/biblioteca_ ele/publicaciones_centros/pdf/manila_ 2011/10_investigaciones_02. pdf>. Access on: 9 Feb. 2016. ADGER, David. Core Syntax: A minimalist approach. Oxford: Oxford University Press, 2003. BENMAMOUN, Elabbas et al. Heritage Languages and Their Speakers: Opportunities and Challenges for Linguistics. Theoretical Linguistics, [S.l.], v. 39, n. 3-4, p. 1-56, 2013. DOI: https://doi.org/10.1515/tl-20130009. Disponível em: <https://dash.harvard.edu/handle/1/11856180>. Acesso em: 3 mar. 2017. BROEKHUIS, Hans; KEIZER, Evelien. Syntax of Dutch. Nouns and Noun Phrases. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012. CARLSON, Gregory. Reference to Kinds in English. Amherst: University of Massachusetts, 1977. CARLSON, Gregory. Weak Indefinites. In: COENE, Martine; D’HULST, Yves (Ed.). From NP to DP: on the syntax and Pragma-Semantics of Noun Phrases. Amsterdam: Benjamins, 2003. v. 1, p: 195-210. CODINA BOBIA, Antonio. Article Omission in Dutch as a Heritage Language in Brazil. 2017. Dissertation (MA in Linguistics) – IEL, State University of Campinas, UNICAMP, Campinas, 2017. 662 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 CYRINO, Sonia; ESPINAL, M. Teresa. Bare Nominals In Brazilian Portuguese: more on The DP/NP analysis. Natural Language & Linguistic Theory, Dordrecht, v.33, n. 2, p. 471-521, 2015. DAYAL, Veneeta. Number Marking and (In)definiteness in Kind Terms. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 27, n. 4, p: 393-450, 2004. FREITAS, Sônia Maria de. O café e a imigração. São Paulo: Saraiva, 2003. GUIJARRO-FUENTES, Pedro; SCHMITZ, Katrin. The nature and nurture of heritage language acquisition. Lingua, [S.l.], v. 164, p. 239-250, June 2015. Doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.lingua.2015.05.008 IONIN, Tania et al. An experimental investigation of the expression of genericity in English, Spanish and Brazilian Portuguese. Lingua, [S.l.], v. 121, p. 963-985, 2011. KRIFKA et al. Genericity: An introduction. In: CARLSON, G; PELLETIER, F. (Ed.). The generic book. Chicago: University of Chicago Press, 1995. LONGOBARDI, Giuseppe. The structure of DPs: some principles, parameters and problems. In: BALTIN, Mark; COLLINS, Chris (Org.). The handbook of contemporary syntactic theory. Oxford: WileyBlackwell, 2001. p. 562-603. LOPES, Ruth E. Vasconcellos. Bare Nouns and DP Number Agreement in the Acquisition of Brazilian Portuguese. In: ASGARRA, Nuria; TORIBIO, Almeida Jacqueline (Ed.). Selected Proceedings of the 9th Hispanic Linguistics Symposium, Somerville: Cascadilla Proceedings Project, 2006. p. 252-262. MENUZZI, Sérgio. Adjectival positions inside DP. In: CREMMERS, C.; BOK-BENEMA, R. (Ed.). Linguistics in the Netherlands. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1994. p. 127-38. MENUZZI, Sérgio [Personal Communication]. Campinas, 17 ago. 2017 MENUZZI et al. Subject Bare Singulars in Brazilian Portuguese and Information Structure. Journal of Portuguese Linguistics, Lisboa, v. 14, n. 1, p. 7-44, 2015. DOI: http://doi.org/10.5334/ jpl.56. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 663 MONTRUL, Silvina. Incomplete acquisition in bilingualism: reexamining the age factor. Amsterdam: John Benjamins Publishing, 2008. MONTRUL, Silvina. Is the heritage language like a second language? In: ROBERTS, Leah et al. EUROSLA Yearbook. Amsterdam: John Benjamins, 2012. v. 12. MORALES, Leiko Matsubara. Cem anos de imigração japonesa no Brasil: o japonês como língua estrangeira. 2008. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008. MÜLLER, Ana. Genericity and the Denotation of Common Nouns in Brazilian Portuguese. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 18, n. 2, p. 287-308, 2002. OOSTERHOF, Albert. The Semantics of Generics in Dutch and Related Languages. Amsterdam: John Benjamins B.V., 2008. PIRES DE OLIVEIRA, Roberta; ROTHSTEIN, Susan. Two Sorts of Bare Nouns in Brazilian Portuguese. Revista da ABRALIN, v. Eletrônico, n. Especial, p. 231-266, 2011. POLINSKY, Maria; KAGAN, Olga. Heritage languages: In the ‘wild’ and in the classroom. Language and Linguistics Compass, [S.l.], v. 1, n. 5, p. 368-395, 2007. SCHMITT, Cristina; MUNN Alan. Against the Nominal Mapping Parameter: Bare nouns in Brazilian Portuguese. In: TAMANJI, P.; HIROTANI, M.; HALL, N. (Ed.). Proceedings of NELS. Newark: University of Delaware, 1999. v. 29, p. 339-353. SCHMITT, Cristina; MUNN Alan. The syntax and semantics of bare arguments in Brazilian Portuguese. Linguistic Variation Yearbook, [S.l.], v. 2, n. 1, p. 253-281, 2002. SCONTRAS, Gregory; FUCHS, Zuzanna; POLINSKY, Maria. Heritage language and linguistic theory. Frontiers in Psychology, Brussels, v. 6, n. 1545, Oct 2015. Available at: <http://journal.frontiersin.org/ article/10.3389/fpsyg.2015.01545/full>. Access on: 18 Nov. 2015. SELIGER, H. Primary language attrition in the context of bilingualism. In: BHATIA, T. J.; RITCHIE, W. C. (Ed.). Handbook of Second Language Acquisition. New York: Academic Press, 1996. p. 605-626. 664 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 TAVEIRA DA CRUZ, Ronaldo. O singular nu e a (pseudo) incorporação no PB. 2008. Thesis (PhD in Linguistics) – Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Florianópolis, 2008. VALDÉS, Guadalupe. Spanish for Native Speakers: AATSP Professional Development Series Handbook for Teachers K-16. New York: Harcourt College Publishers, 2000. v. 1. VALDÉS, Guadalupe. Bilingualism, heritage language learners, and SLA research: opportunities lost or seized? Modern Language Journal, [S.l.], v. 89, n. 3, p.410-426, 2005. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 665 APPENDICES APPENDIX A: Dutch Test Sentences for Group A 1. Het is algemeen geweten dat de ooievaar grote vleugels heeft. (DP type: Definite Singular) (It is well know that the stork has large wings) 2. Waarom heb je geen kippenfarm gestart? Omdat ik liever aan veeteelt doe want koe geeft melk. (DP type: Bare Singular) (Why didn’t you start a chicken farm? Because I prefer to work with cattle because cow gives milk) 3. Waarom denk je dat die geen vlees eet? Je weet toch dat leeuwen graag vlees lusten. (DP type: Indefinite Plural) (Why do you think that this one doesn’t eat meat? You know that lions like meat) 4. Het is moeilijk om sommige vogels te fotograferen want ze vliegen te snel, de adelaar, bijvoorbeeld, vliegt erg snel. (DP type: Definite Singular) (It is difficult to photograph some birds because they fly too fast, the eagle, for example, flies very fast) 5. Nee, niet alle zoogdieren zijn insecteneters: een eekhoorn eet bessen en noten. (DP type: Indefinite Singular) (No, not all mammals are insectivores: a squirrel eats berries and nuts) 6. Niet op de zuidpool: de ijsberen leven op de noordpool. (DP type: Definite Plural) (Not on the south pole: the polar bears lives on the north pole) 7. Zoogdieren kunnen in de zee leven, de walvissen zijn daar een voorbeeld van. (DP type: Definite Plural) (Mammals can live in the sea; the whales are an example of this) 8. Nee hoor, het is niet hetzelfde: een kat ziet in het donker. (DP type: Indefinite Singular) (No, it’s not the same: a cat can see in the dark) 9. Het dierlijk instinct is zeer sterk. Iedereen weet dat hond op katten jaagt. (DP type: Bare Singular) (The animal instinct is very strong. Everyone knows that dog chases cats) 10. De natuur is perfect, nadat ze de bloemen bestuiven maken bijen honing. (DP type: Indefinite Plural) (Nature is perfect, after pollinating the flowers, bees produce honey) 666 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 APPENDIX B: Brazilian Portuguese Test Sentences for Group A 1. É bem sabido que a cegonha tem asas grandes. (DP type: Definite Singular) (It is well know that the stork has large wings) 2. Por que você não se dedica à criação de frangos? Prefiro criar gado porque vaca dá leite. (DP type: Bare Singular) (Why didn’t you start a chicken farm? Because I prefer to work with cattle because cow gives milk) 3. Por que acha que esse não come carne? Você sabe que leões gostam de comer carne. (DP type: Indefinite Plural) (Why do you think that this one doesn’t eat meat? You know that lions like meat) 4. É difícil fotografar alguns pássaros porque voam muito rápido, o falcão, por exemplo, voa muito rápido. (DP type: Definite Singular) (It is difficult to photograph some birds because they fly too fast, the eagle, for example, flies very fast) 5. Nem todos os mamíferos são insetívoros: um esquilo come frutas e nozes. (DP type: Indefinite Singular) (No, not all mammals are insectivores: a squirrel eats berries and nuts) 6. Não é no Polo Sul: os ursos polares vivem no Polo Norte. (DP type: Definite Plural) (Not on the south pole: the polar bears lives on the north pole) 7. Há mamíferos que vivem no mar, as baleias são um exemplo disso. (DP type: Definite Plural) (Mammals can live in the sea; the whales are an example of this) 8. Não, não é a mesma coisa: um gato vê no escuro. (DP type: Indefinite Singular) (No, it’s not the same: a cat can see in the dark) 9. O instinto animal é muito forte. Todo mundo sabe que cachorro persegue gatos. (DP type: Bare Singular) (The animal instinct is very strong. Everyone knows that dog chases cats) 10. A natureza é perfeita: depois de polinizar as flores, abelhas produzem mel. (DP type: Indefinite Plural) (Nature is perfect, after pollinating the flowers, bees produce honey) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 667 APPENDIX C: Dutch Test Sentences for Group B 1. Het is algemeen geweten dat de ooievaars grote vleugels hebben. (DP type: Definite Plural) (It is well know that the storks have large wings) 2. Waarom heb je geen kippenfarm gestart? Omdat ik liever aan veeteelt doe want koeien geven melk. (DP type: Bare Plural) (Why didn’t you start a chicken farm? Because I prefer to work with cattle because cows produce milk) 3. Waarom denk je dat die geen vlees eet? Je weet toch dat een leeuw graag vlees lusten. (DP type: Indefinite Singular) (Why do you think that this one doesn’t eat meat? You know that a lion likes meat) 4. Het is moeilijk om sommige vogels te fotograferen want ze vliegen te snel, adelaar, bijvoorbeeld, vliegt erg snel. (DP type: Bare Singular) (It is difficult to photograph some birds because they fly too fast, eagle, for example, flies very fast) 5. Nee, niet alle zoogdieren zijn insecteneters: de eekhoorn eet bessen en noten. (DP type: Definite Singular) (No, not all mammals are insectivores: the squirrel eats berries and nuts) 6. Niet op de zuidpool: ijsberen leven op de noordpool. (DP type: Bare Plural) (Not on the south pole: polar bears lives on the north pole) 7. Zoogdieren kunnen in de zee leven, de walvis is daar een voorbeeld van. (DP type: Definite Singular) (Mammals can live in the sea; the whale is an example of this) 8. Nee hoor, het is niet hetzelfde: kat ziet in het donker. (DP type: Bare Singular) (No, it’s not the same: cat can see in the dark) 9. Het dierlijk instinct is zeer sterk. Iedereen weet dat een hond op katten jaagt. (DP type: Indefinite Singular) (The animal instinct is very strong. Everyone knows that a dog chases cats) 10. De natuur is perfect, nadat ze de bloemen bestuiven maken de bijen honing. (DP type: Definite Plural) (Nature is perfect, after pollinating the flowers, the bees produce honey) 668 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 631-668, abr./jun. 2019 APPENDIX D: Brazilian Portuguese Test Sentences for Group B 1. É bem sabido que as cegonhas têm asas grandes. (DP type: Definite Plural) (It is well know that the storks have large wings) 2. Por que você não se dedica à criação de frangos? Prefiro criar gado porque vacas dão leite. (DP type: Indefinite Plural) (Why didn’t you start a chicken farm? Because I prefer to work with cattle because cows give milk) 3. Por que acha que esse não come carne? Você sabe que um leão gosta de comer carne. (DP type: Indefinite Singular) (Why do you think that this one doesn’t eat meat? You know that a lion likes meat) 4. É difícil fotografar alguns pássaros porque voam muito rápido, falcão, por exemplo, voa muito rápido. (DP type: Bare Singular) (It is difficult to photograph some birds because they fly too fast, eagle, for example, flies very fast) 5. Nem todos os mamíferos são insetívoros: o esquilo come frutas e nozes. (DP type: Definite Singular) (No, not all mammals are insectivores: the squirrel eats berries and nuts) 6. Não é no Polo Sul: ursos polares vivem no Polo Norte. (DP type: Indefinite Plural) (Not on the south pole: polar bears lives on the north pole) 7. Há mamíferos que vivem no mar, a baleia é um exemplo disso. (DP type: Definite Singular) (Mammals can live in the sea; the whale is an example of this) 8. Não, não é a mesma coisa: gato vê no escuro. (DP type: Bare Singular) (No, it’s not the same: cat can see in the dark) 9. O instinto animal é muito forte. Todo mundo sabe que um cachorro persegue gatos. (DP type: Indefinite Singular) (The animal instinct is very strong. Everyone knows that a dog chases cats) 10. A natureza é perfeita: depois de polinizar as flores, as abelhas produzem mel. (DP type: Definite Plural) (Nature is perfect, after pollinating the flowers, the bees produce honey) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 Capaz como marcador negativo enfático no dialeto gaúcho1 “Capaz” as a Negative Emphatic Marker in Gaucho Dialect Rerisson Cavalcante Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia / Brasil rerissonaraujo@yahoo.com.br Leonor Simioni Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Jaguarão, Rio Grande do Sul / Brasil simionileonor@gmail.com Resumo: Este trabalho descreve propriedades sintáticas, semânticas e pragmáticas de sentenças que contam com o item capaz sendo utilizado com o valor de marcador negativo no dialeto gaúcho do português brasileiro (PB), em que este item expressa uma rejeição forte a um conteúdo proposicional prévio. O artigo também compara o comportamento de capaz com outros marcadores negativos não-neutros (dos tipos anafórico, enfático e metalinguístico) do português quanto à possibilidade de concordância negativa e à distribuição por tipos sentenciais distintos. E apresenta uma proposta de derivação sintática, com base no arcabouço da gramática gerativa, para as sentenças com esse item, assumindo que se trata de uma estrutura mono-oracional, em que capaz é gerado em uma posição de especificador na periferia esquerda da sentença, onde pode sofrer modificação adverbial; a cópula que opcionalmente o acompanha funciona com uma categoria funcional do sistema CP (e não como o núcleo de um VP). Palavras-chave: negação enfática; português brasileiro; dialeto gaúcho; sintaxe. Abstract: This paper describes the syntactic, semantic and pragmatic properties of sentences with capaz as a negative marker in the Gaúcho dialect of Brazilian Portuguese, expressing a strong rejection to a previously uttered propositional content. The paper also compares the behavior of capaz with that of other non-neuter negative markers Uma versão prévia deste trabalho foi apresentada no III Encontro Internacional de Sintaxe, Semântica e Interfaces, na Universidade Federal de Santa Catarina, em junho de 2018. 1 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.669-700 670 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 in Portuguese (anaphoric, emphatic and metalinguistic) with regard to the possibility of negative concord and the distribution across different sentential types. It proposes a syntactic derivation for sentences with negative capaz within the framework of generative grammar, assuming a monoclausal structure in which capaz is generated in a specifier position in the left periphery, where it can be modified by adverbs. The copula that optionally accompanies capaz is assumed to be a functional category in the CP system rather than a VP nucleus. Keywords: emphatic negation; Brazilian Portuguese; Gaúcho dialect; syntax. Recebido em 10 de setembro de 2018 Aceito em 10 de dezembro de 2018 1 Introdução Em português, o item capaz funciona como um adjetivo simples, expressando habilidade, possibilidade ou probabilidade, como em (1) e (2). (1) O João é capaz de fazer esse serviço. (2) É capaz de o/do João fazer isso. Entretanto, no dialeto gaúcho do português brasileiro (PBG), além destes usos anteriores, capaz também se comporta como um elemento negativo, expressando um significado similar à expressão de jeito nenhum, como em (3) e (4).2 (3) Capaz que eu vou na festa da Maria! (‘De jeito nenhum, eu vou na festa da Maria’) (4) É bem capaz que o João vai fazer esse serviço! (‘De jeito nenhum, o João vai fazer esse serviço’) Esse tipo de uso também pode ser identificado em regiões próximas ao estado do Rio Grande do Sul, mas, até onde vai o nosso Exceto quando indicado, os dados analisados são dados de intuição, submetidos ao julgamento de falantes nativos (inclusive da coautora do trabalho, que é falante nativa de PBG). 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 671 conhecimento, está completamente ausente em outros dialetos do português brasileiro ou europeu, nos quais uma sentença como (4) só pode ter um sentido afirmativo semelhante a (1) e (2). Neste trabalho, descreveremos o comportamento de capaz como marcador negativo no PBG. Mostraremos que capaz possui propriedades comuns aos marcadores de negação anafórica (no sentido de CAVALCANTE, 2012a), aos de negação metalinguística (no sentido de MARTINS, 2010, e de PINTO, 2010) e aos de negação enfática (CAVALCANTE, 2012b; Di TULLIO, 2008), por ocorrer apenas em contextos de réplica a um elemento contextual. Outras propriedades sintáticas e semânticas, entretanto, mostram que o capaz pode ser mais bem analisado como um item de negação enfática, codificando uma forte rejeição a um conteúdo proposicional, diferindo assim dos marcadores puramente anafóricos e dos metalinguísticos. O texto está dividido da seguinte forma: a seção 2 descreve as principais propriedades sintáticas e semânticas do capaz negativo, comparando o seu comportamento com o do capaz não-negativo; a seção 3 trata de outros itens negativos do português (brasileiro e europeu) que possuem valores discursivos semelhantes, comparando suas propriedades sintáticas com as do capaz gaúcho para verificar em que tipo de marcador negativo capaz se encaixa; a seção 4 apresenta a análise sintática adotada para as sentenças com o capaz negativo; e a seção 5 conclui o artigo. 2 As propriedades do capaz negativo gaúcho Nessa seção, apresentamos as principais características sintáticas e semânticas do capaz negativo gaúcho. 2.1 Negação neutra x negação enfática O capaz negativo nunca ocorre como uma simples negação neutra, meramente descritiva, mas marca um tipo de rejeição forte a um conteúdo proposicional previamente introduzido no discurso ou inferível na situação comunicativa, como em (5) e (6).3 O exemplo (7) mostra que o capaz em contextos out of the blue não recebe interpretação negativa: Em geral, capaz recebe acento marcado; quando acompanhado por bem, como em (6), o acento pode recair sobre este último. 3 672 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 (5) A: Tu sabia que o Rib’s fechou? B: Capaz! (‘Eu não acredito que o Rib’s fechou’) (6) A: Com essa gripe, acho melhor tu ficar em casa hoje. B: Mas bem capaz! (7) (‘De jeito nenhum eu vou ficar em casa hoje’) Capaz que eu vou ficar em casa hoje! (Na ausência de contexto prévio: ‘Eu provavelmente vou ficar em casa hoje’/ #‘Eu não vou ficar em casa hoje’)4 2.2 Variações: a cópula, o advérbio bem e o complementizador que O capaz negativo pode ocorrer em posição isolada, como um fragmento de resposta, como em (5), ou introduzindo uma sentença desenvolvida, como em (3) e (4). Nos dois casos, capaz aparece frequentemente acompanhado pelo advérbio bem, como em (4) e (6). Nos usos sentenciais, também pode vir acompanhado pela cópula é e pelo complementizador que. A coocorrência de é, bem e que em sentenças segue as seguintes linhas gerais: (i) os três itens podem ocorrer simultaneamente com capaz (cf. (8)). (ii) bem e que podem coocorrer sem a presença da cópula (cf. (9)). (iii) que pode ocorrer sem a cópula e sem o advérbio (cf. (10)). (iv) mas que nunca pode ser omitido quando em sentenças (cf. (11)). (v) a cópula pode aparecer sem o advérbio bem (cf. (12)), mas a sentença soa melhor quando ambos estão presentes. (vi) a cópula e que nunca aparecem em fragmentos não-oracionais (cf. (5) e (6)). Um parecerista anônimo afirma que aceita a interpretação negativa mesmo na ausência de um contexto sem um conteúdo proposicional previamente ativado. No entanto, reconhece que há uma entonação distinta no uso afirmativo e no negativo. Consideramos que isso se trata de um fenômeno de acomodação pragmática em um sentido semelhante ao Lewis (1979). Um interlocutor qualquer, ao ouvir uma frase como essa em uma situação em que lhe pareça fora de contexto, não trata como informação nova o conteúdo que ela veicula, mas como se tal conteúdo tivesse sido previamente enunciado. 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 (8) É bem capaz que eu vou na festa da Maria! (9) Bem capaz que eu vou na festa da Maria! 673 (10) Capaz que eu vou na festa da Maria! (11) Capaz *(que) eu vou na festa da Maria! (12) É capaz que eu vou na festa da Maria! Os padrões possíveis estão sintetizados no Quadro 1 a seguir: QUADRO 1 – Padrões de combinação de capaz, é, bem e que em sentenças e fragmentos Padrões é bem capaz que [S] é capaz que [S] Status Ok marginal bem capaz que [S] Ok capaz que [S] Ok é bem capaz [S] é capaz [S] * * capaz! Ok bem capaz! Ok bem capaz que! * é bem capaz que! * é bem capaz! * Quando é e bem estão presentes na sentença, devem aparecer em adjacência estrita um ao outro, bem como em adjacência a capaz. Nenhum elemento pode ser inserido entre é e bem ou entre bem e capaz, como mostram (13) e (14). (13) *É mesmo/de fato bem capaz que a Ana vai casar com esse cara! (14) *É bem mesmo/de fato capaz que a Ana vai casar com esse cara! Por outro lado, a adjacência entre capaz e o complementador pode ser quebrada, ao menos por um item como mesmo, como em (15): 674 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 (15) É bem capaz mesmo que eu vou votar de novo nesse candidato. Por fim, as construções com capaz podem ser antecedidas pelo item mas, seja em fragmentos de resposta ou em sentenças desenvolvidas, como mostram (16) e (17), o que confirma a ideia de que tais estruturas marcam um tipo de oposição ou contra-expectativa ao que foi dito previamente (cf. BASSI; GÖRSKI, 2014). (16) A: Será que a gente sai com essa chuva? B: Mas (bem) capaz! Vamos ficar em casa. (17) A: Tu comprou o livro do Everett? B: Ah, mas (é) (bem) capaz que eu vou gastar dinheiro com isso! 2.3 Posição e distribuição sintática Mesmo com essa variação quanto à presença de é, bem e que, o item capaz mantém uma posição fixa em relação à sentença em que ocorre. Sempre aparece em uma posição da periferia esquerda da sentença. Nunca aparece em posição medial ou final em relação aos constituintes principais (verbo e argumentos), independentemente da coocorrência de que em adjacência ao capaz ou em posição pré-sentencial, como mostram os exemplos em (18b-h). (18) a. Capaz que o João casou! b. #O João (bem) capaz (que) casou! c. #(Que) o João (bem) capaz casou! d. #O João (bem) capaz (que) casou! e. #O João casou (bem) capaz (que)! f. #O Pedro (bem) capaz (que) comprou aquele carro! g. #O Pedro comprou (bem) capaz (que) aquele carro! h. #O Pedro comprou aquele carro (bem) capaz! 2.4 Flexão de capaz e da cópula Em usos não-negativos, a cópula que acompanha capaz pode sofrer flexão em número e em tempo. Em sentenças pessoais, como em (19), a cópula se flexiona em pessoa e número, concordando com o 675 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 sujeito. Nesses casos, o capaz não-negativo também pode sofrer flexão de número. (19) Eles são capazes de fazer isso. (uso não-negativo) Mesmo em sentenças impessoais, em que se mantém na terceira pessoa singular por default, a cópula ainda pode se flexionar em tempo, como em (20). (20) a. Era capaz de acontecer um acidente. b. Seria bem capaz de eu ir na festa. (uso não-negativo) (uso não-negativo) Por outro lado, nos usos negativos, nem capaz nem a cópula podem sofrer modificação em tempo, pessoa ou número, ocorrendo sempre na forma fixa é, como em (21) a (23).5 (21) *Vai ser bem capaz que o João vai fazer esse serviço! (22) * Seria bem capaz que eu iria na festa da Maria! (23) *Era capaz que eu ia na festa da Maria! 2.5 Tempo e modo da sentença introduzida por capaz No uso não-negativo, (é) capaz pode introduzir uma sentença infinitiva, como em (19)-(20), ou finita, como em (24). (24) É capaz que o João chegue atrasado. (‘É possível que João chegue atrasado’) À primeira vista, as construções com a expressão é capaz que se assemelham superficialmente às sentenças clivadas, por sua estrutura “é X que…”, mas o caráter fixo da cópula que acompanha capaz mostra uma diferença significativa entre os dois tipos de estruturas sintáticas. As sentenças clivadas permitem alguma variação, ainda que limitada, na forma da cópula, que pode se flexionar em número e em tempo. (i) É João que vai pagar a conta. (ii) Foi João que pagou a conta. (iii) Foi/foram eles que pagaram a conta. (iv) Fomos nós que pagamos a conta. (v) Vai ser João que vai pagar a conta. 5 676 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 Já no uso negativo, a sentença introduzida por capaz sempre deve vir flexionada, como mostra (25), algo que é esperado, dada a obrigatoriedade do complementizador que apontada anteriormente. (25) A: Ouvi dizer que o João casou. B: Capaz que ele casou! (interpretação negativa) (‘Não acredito que ele casou! Sério?!’) B’: Capaz de ele casar/ter casado! (interpretação não-negativa) (‘É possível que ele case/tenha casado’) Além disso, a sentença finita introduzida pelo capaz não-negativo pode aparecer no modo subjuntivo, como em (24). No uso negativo, apenas o modo indicativo é permitido. A flexão subjuntiva bloqueia a interpretação negativa, como em (26).6 (26) (É bem) capaz que o João chegue atrasado! (apenas interpretação não-negativa) Cabe ressaltar que, nas estruturas em que o capaz vem acompanhado da cópula, observam-se algumas restrições quanto ao tempo da oração por ele introduzida; a interpretação negativa é favorecida pelo uso do futuro (do presente ou do pretérito) e marginal com formas do pretérito e presente, como ilustra o contraste em (27). Quando, porém, a cópula está ausente, os tempos pretérito e presente se tornam mais aceitáveis, como em (28). (27) a. É bem capaz que eu vou/ia sair com essa chuva!7 b. ?? É bem capaz que eu saí/saio com essa chuva! Um parecerista anônimo falante de PBG aponta que aceita a interpretação negativa com o subjuntivo. No entanto, essa interpretação é anômala tanto para a coautora do trabalho quanto para outros falantes consultados. É possível imaginar que se trate de uma questão de microvariação, ou, talvez, de algum tipo de interferência de outra gramática no julgamento do parecerista. Essa questão pode ser dirimida com a aplicação de testes de aceitabilidade com mais falantes de PBG, num momento futuro da investigação. 7 Os exemplos trazem formas perifrásticas, pois o futuro simples soa formal demais, contrastando com o caráter coloquial do capaz negativo. 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 677 (28) a. Capaz que eu vou/ia sair com essa chuva! b. Capaz que eu saí/saio com essa chuva! 2.6 Tipo ou Força sentencial Quanto ao tipo sentencial, o capaz negativo só pode ocorrer em sentenças declarativas matrizes. O uso em encaixadas é ou inaceitável ou bastante marginal, como em (29), que possui apenas uma interpretação afirmativa. (29) Eu acho/disse/contei que é (bem) capaz que ele vai/vá na festa! (leitura não-negativa) Além disso, o capaz não parece ser aceitável em interrogativas e imperativas, como mostram os exemplos em (30) e o contraste em (31). (30) a. É capaz que tu te mude/te muda? (leitura não-negativa) b. Tu acha que é capaz que tu te mude/te muda? (leitura não-negativa) (31) a. Não abre a porta! b. #Capaz que não abre a porta! Por outro lado, é possível expressar proibições através do uso de capaz em sentenças declarativas, como em (32). Nesses casos, a interpretação de proibição é muito mais uma inferência pragmática, semelhante à que ocorre a partir da versão B’. (32) A: Eu vou sair. B: Ah, é bem capaz que tu vai sair! B’: Ah, até parece que tu vai sair / que eu vou deixar tu sair! Na próxima seção, compararemos o comportamento do capaz negativo com o de outros elementos negativos com um valor discursivo não-neutro no português brasileiro e europeu. Outras propriedades do capaz serão apresentadas, como resultado dessa comparação. 3 Outros marcadores negativos não-neutros A primeira das características do capaz negativo é o fato de não veicular uma negação sentencial neutra, descritiva, mas precisar de um 678 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 contexto discursivo apropriado, negando um conteúdo previamente estabelecido contextualmente. Essa é uma propriedade que o capaz gaúcho tem em comum com outros itens negativos especiais do português e de outras línguas. Nesta seção, para tentar compreender melhor a natureza sintática e semântica do capaz negativo, compararemos o seu comportamento com o de outros marcadores de negação não-neutra no português brasileiro (PB) e no português europeu (PE): os que podem ser classificados como anafóricos, enfáticos ou metalinguísticos. Mostraremos que o capaz tem mais afinidade com um subconjunto dos marcadores do tipo enfático. 3.1 Marcadores negativos anafóricos A propriedade de negação (ou afirmação) anafórica consiste em o marcador estabelecer uma relação com uma informação (geralmente proposicional) previamente disponível (explícita ou implicitamente) no contexto. São anafóricas as partículas assertivas usadas em posição pré-sentencial ou absoluta em contextos de réplica, como o no e yes do inglês (por oposição ao not ou n’t) (cf. (33a)), o non, oui e si do francês (por oposição a ne/pas) e no e sì do italiano (por oposição ao non), bem como o não, sim e é português (cf. (33b)) e o no e sí do espanhol8. (33) a. Yes, I did. / No, I didn’t. b. Sim, eu fiz. / É, eu fiz. / Não, eu não fiz. Cavalcante (2007, 2012a) aponta que, no PB, o não que aparece em posição pós-VP nas estruturas [não VP não] e [VP não], como em (34), difere da versão pré-verbal (interna à sentença, por vezes pronunciada num) por expressar uma negação anafórica, de modo semelhante às partículas pré-sentenciais em (33b). Isso faz com que essas estruturas sejam usadas tipicamente em contextos de respostas ou réplicas, de modo semelhante ao capaz negativo gaúcho. Note o leitor que, em algumas línguas, como o português e o espanhol, a partícula negativa pré-sentencial e o marcador interno são homófonos. Em outras, porém, eles apresentam formas distintas, às vezes etimologicamente relacionadas ou etimologicamente independentes. No caso do português, porém, a negação interna à sentença pode ser realizada como não, num ou mesmo como n’ (em né e n’era, por exemplo), mas a pré-sentencial, apenas como não. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 679 (34) A: Você pagou a conta de luz? B: (Não) paguei não. Apesar da propriedade anafórica, o não pós-VP do PB e o capaz gaúcho possuem uma distribuição sintática bem diferente. A primeira diferença é quanto à posição final do não e a posição inicial de capaz, mas isso perde importância na medida em que, como partícula assertiva, o não (bem como o sim) também ocupa uma posição inicial. De fato, Cavalcante (2007, 2012a) defende que o não pré-sentencial e o final são o mesmo item, gerado em uma posição alta no sistema CP como nas representações em (35). Em sentenças como (33b)/(35a), a partícula tem escopo sobre um tópico nulo em posição de especificador, como em (35b), que retoma uma proposição prévia; em dados como (34)/(35c), o tópico é a própria sentença, que é movida para uma posição de especificador, estabelecendo uma relação spec-núcleo, como em (35d). (35) a. Sim, eu fiz. / É, eu fiz. / Não, eu num fiz. b. [AstP Ø [Ast’ sim/não/é [CP [TP eu (num) fiz [VP ] ] ] ] ] c. Eu fiz sim. / Eu num fiz não. d. [AstP [TP eu (num) fiz [VP ] ] [Ast’ sim/não/é [CP [TP eu (num) fiz [VP ] ] ] ] ] O verdadeiro problema quanto à ordem reside no fato de que, quando antecedem a sentença, os itens assertivos não têm escopo sobre ela. A sentença à direita pode ter uma polaridade independente do valor da partícula pré-sentencial, como mostra (36), em que, ao contrário de capaz, o não pré-sentencial não consegue negar a proposição em que se encontra, mas apenas uma proposição contextualmente dada. Apenas em posição final é que o não anafórico possui escopo sobre a sentença. (36) A: Você esqueceu de pagar a conta? B: Não, eu paguei! ( ≠ ‘eu não paguei’) B’: #Capaz que eu paguei! ( = ‘eu não paguei’) B”: Paguei não. (= ‘eu não paguei’) Outra diferença importante é que o não anafórico, quando pós-VP, é perfeitamente aceitável e produtivo em outros tipos sentenciais, como 680 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 as interrogativas polares e as imperativas, como mostram os exemplos em (37) e (38).9 (37) A: João não veio para festa... B: (Você não) convidou ele não? (interrogativa polar) (38) A: Acho que vou convidar João para a festa. B: (Não) convide ele não! (imperativa) O não pós-VP resiste em muitos contextos encaixados, com a estrutura [VP não] sendo marginal ou inaceitável em subordinadas de vários tipos, assim como o capaz gaúcho, mas [não VP não] é perfeitamente aceitável ao menos em sentenças completivas, como em (39). (39) João disse que não vai viajar não. Como vimos na seção 2, o capaz negativo do PBG é inaceitável em interrogativas, imperativas e em declarativas encaixadas, mesmo completivas. Essas diferenças mostram que, apesar do caráter anafórico, o capaz negativo não pode ser adequadamente descrito apenas por essa propriedade. Assumimos que o capaz gaúcho tem um comportamento mais próximo dos marcadores negativos enfáticos, vistos na próxima seção. 3.2 Marcadores negativos enfáticos Nessa seção, comparamos o capaz negativo a dois itens distintos, ao nada não-argumental do PB de sentenças como (40) e ao não pósverbal de [não VP não] do PE. Ambos também possuem a propriedade anafórica básica compartilhada pelos itens da seção anterior, mas diferem A compatibilidade do não pós-verbal com não-declarativas pode parecer contraditório com o seu status de item responsivo, mas mesmo nesses casos permanece o requerimento de que a pergunta ou a ordem aja como uma réplica a algum elemento contextual, como mostram os dados. Como exemplo a mais, note-se que “Não fale com o motorista!” é uma ordem adequada tanto em contexto neutro, de instruções gerais sendo dadas a passageiros, quanto em uma situação em que um passageiro esteja efetivamente tentando conversar com o motorista, mas “Não fale com o motorista não!” só soa adequada no segundo caso. 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 681 destes por também marcarem uma negação forte, entendida como uma rejeição mais expressiva ao conteúdo da sentença.10 (40) A: Você foi na academia hoje? B: Fui nada! 3.2.1 O nada não-argumental enfático do PB Autores como Cunha (1996, 2001) e Roncarati (1996) cogitaram que a estrutura [não VP não] do PB teria um valor enfático ou de “reforço da negação”;11 entretanto, uma análise dos dados anteriores em (34)-(39) mostra que essa estrutura não tem valor enfático obrigatório, intrínseco. A ênfase pode ser acrescentada via prosódia, mas não faz parte da interpretação básica dessas sentenças. Por outro lado, Cavalcante (2012a, 2012b) propõe que o nada usado em posição não-argumental como em Schwenter (2005) aponta como o termo “ênfase” costuma ser usado de modo impreciso e ser deixado sem definição explícita nos trabalhos descritivos, especialmente naqueles que relacionam alguma forma de negação à ênfase. Diante desse quadro, Cavalcante (2012b) aponta que “ênfase” nos estudos linguísticos pode ser usada nos seguintes sentidos: (i) processos sintáticos que destacam ou focalizam constituintes da sentença como na topicalização ou focalização por movimento ou por morfologia de foco. (ii) processos prosódicos que destacam constituintes, palavras ou partes de palavras por meio de focalização in situ via acento. (iii) introdução de escalas de intensidade como em sentenças exclamativas como elementos QU não-interrogativos (ex.: que dia lindo!). (iv) adição de elementos maximizadores ou minimizadores (ex: um pingo de). (v) o acréscimo de uma entonação mais intensa, semelhante à das exclamativas (ex.: SAIA DAQUI AGORA!!), que resulta em uma interpretação de maior comprometimento do falante com a afirmação ou negação. Cavalcante (2012b) aponta que nenhum dos sentidos de (i) a (iv) é compatível com o que se chama de “negação enfática” e assume que muitos casos assim chamados, na verdade, não expressam ênfase de forma alguma, mas que, por outro lado, há casos reais de negação enfática, em que ocorre o que é descrito em (v). 11 Mas o conceito de “ênfase” ou de “reforço da negação” nem sempre é muito claro nesses autores. Em alguns casos, parece estar relacionado, não a um comprometimento mais forte do falante com a rejeição/negação, mas simplesmente a uma visibilidade maior da negação para a identificação do valor negativo da cláusula, em função do caráter foneticamente fraco do não pré-verbal. 10 682 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 (40) é que exerce a função de marcador negativo enfático no PB (cf. também Di TULLIO, 2008 sobre o espanhol; e PINTO, 2010 sobre o português europeu). Nesses exemplos, o nada ocorre sem a presença do marcador negativo pré-verbal, como único elemento negativo. Curiosamente, o nada enfático possui uma distribuição sintática diferente do não final anafórico e bastante semelhante à do capaz negativo. O nada enfático só pode ocorrer em sentenças declarativas matrizes, como em (40), sendo inaceitável em interrogativas e em imperativas, como mostram os contrastes em (41) e (42). (41) Interrogativas a. (Não) teve aula hoje não? b. (Você não) convidou João pra festa não? c. *Teve aula hoje nada? d. *Convidou João pra festa nada? (42) Imperativas a. (Não) convide ele não! b. (Não) abra a porta não! c. *Convide ele nada! d. *Abra a porta nada! É interessante que uma sentença como (42d) pode ser aceitável, porém não como imperativo, mas como rejeição a uma ordem imperativa prévia, como em (43); a presença de nada não cria um imperativo negativo ou proibição, que seria incompatível com a continuação em que aparece um imperativo afirmativo contrastivo.12 (43) A: Abra a porta! B: Abra a porta nada!13 Abra você! Sobre imperativos contrastivos, vide Cavalcante e Simioni (2015). Nesse tipo de uso, a sequência “abra a porta” parece estar sendo citada (o que poderia ser representado graficamente por aspas) ao invés de efetivamente usada. Isso pode ser considerado um uso metalinguístico. Confira seção 3.3. 12 13 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 683 O nada enfático do PB também é inaceitável ou marginal em subordinadas, como mostram os dados em (44), em que a interpretação disponível (fortemente dependente da entonação) é a de negação da matriz e não da encaixada. (44) a. João descobriu que é corno nada! (‘É claro que João não descobriu que é corno!’) (≠ ‘É claro que João descobriu que não é corno!’) b. O jornalista provou que o deputado é culpado nada! (‘É claro que o jornalista não provou que o deputado é culpado!’) (≠ ‘É claro que o jornalista provou que o deputado não é culpado!’) Como vimos na seção 2, o capaz negativo também possui essa distribuição restrita a declarativas matrizes, sendo inaceitável em interrogativas, imperativas e em declarativas encaixadas. Isso é uma evidência em favor de nossa análise do capaz como um tipo de marcador de negação enfática. Outra característica importante do nada enfático é o fato de que não realiza concordância negativa. Muito mais do que apenas dispensar a presença de um marcador negativo pré-verbal (cf. (40)), o nada enfático realiza um cancelamento da negação que está presente na sentença, como mostram os exemplos em (45) e (46). Esta é uma característica inusitada, considerando que o PB é uma língua de concordância negativa. O não pós-VP não possui essa característica, como mostram os exemplos da seção anterior. (45) A: Eu não/nunca falo palavrão. B: Não fala palavrão nada! Você fala sim! (‘Não é verdade que você não fala palavrão!’) (46) A: Eu não beijei ninguém na festa. B: Não beijou ninguém nada! Eu vi que você ficou com três pessoas… (‘Não é verdade que você não beijou ninguém!’) Curiosamente, essa propriedade também é compartilhada pelo capaz negativo gaúcho, como se pode ver nos exemplos em (47). Consideramos que o efeito de cancelamento da negação é uma propriedade intrínseca do fenômeno da negação enfática. 684 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 (47) a. Capaz que o Brasil não vai ganhar a Copa! (‘É claro que o Brasil vai ganhar a Copa!’) b. Capaz que o Neymar não vai cair durante a partida! (‘É claro que o Neymar vai cair durante a partida!’) Quanto à estrutura sintática, Cavalcante (2012a, 2012b) assume que o nada enfático também é gerado em uma posição alta da periferia esquerda (possivelmente a mesma do não anafórico, mas contendo um traço enfático adicional) e que a posição final é gerada a partir do movimento da oração para o seu especificador. Assim, ainda que na posição pós-verbal, o nada enfático também estaria relacionado a uma posição pré-sentencial, assim como o capaz negativo. (48) a. Fui (na academia) nada! b. [AstP [TP fui (na academia) ] [Ast’ nada [CP [TP fui (na academia) ] ] ] ] c. Não fala palavrão nada! d. [AstP [TP não fala palavrão ] [Ast’ nada [CP [TP não fala palavrão ] ] ] ] 3.2.2 O não pós-verbal do PE Como vimos em 3.1 e 3.2.1, o não final do PB de estruturas como [não VP não] e [VP não] tem valor apenas anafórico, não enfático. Porém, no PE, segundo Martins (2010, 2012), a estrutura [não VP não], com dois marcadores negativos, possui um valor enfático. O não final de [não VP não] no PE teria, então, um status diferente da sua contraparte do PB e se aproximaria do comportamento do nada não-argumental do PB da seção 3.2.1 (cf. também LAMBERTI, 2014).14 Se essa análise estiver correta, o esperado é que [não VP não] tenha mais restrições sintáticas no PE do que no PB, o que de fato ocorre. Martins (2010, 2012) aponta que [não Na literatura linguística brasileira, por muito tempo se considerou que [não VP não] e [VP não] fossem estruturas exclusivas do PB, possivelmente oriundas do contato linguístico, ausentes no PE. Dados citados por Martins (2010, 2012) mostram que as duas construções existem no PE, mas com valores diferentes das construções equivalentes do PB. Lamberti (2014) também descreve, com base em corpus e em testes de percepção, o comportamento de [não VP não] no PE, mas considera que a estrutura está passando por um processo de perda da propriedade enfática. Ainda assim, a autora não aponta nada sobre a expansão dessa estrutura para contextos não-declarativos e não-matrizes no PE. 14 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 685 VP não] do PE ocorre apenas em contextos matrizes, sendo inaceitável em sentenças encaixadas, como mostram os exemplos em (49). (49) A: O Pedro disse que vendeu o carro. B: a. O Pedro não disse que vendeu o carro não. b. *O Pedro disse que não vendeu o carro não. (MARTINS, 2010, p. 572) Além disso, Martins (2012; e comunicação pessoal) afirma que, no PE, [não VP não] é inaceitável em qualquer sentença não-declarativa. Sentenças do PB como (37), (38), (41a-b), (42a-b) são, portanto, agramaticais no PE. Como vimos antes, esse é o mesmo padrão de comportamento exibido pelo nada não-argumental do PB e pelo capaz negativo gaúcho. Esses dados sobre o nada enfático do PB e sobre o não enfático do PE reforçam a nossa hipótese de que o capaz gaúcho funciona como um marcador negativo de tipo enfático. Duas questões, porém, ainda podem trazer problemas para essa análise. Em primeiro lugar, a posição que capaz ocupa nas sentenças negativas é à esquerda, antecedendo a proposição a ser negada, enquanto o nada e o não enfáticos ocupam uma posição pós-verbal ou final de sentença. Isso sugere que, mesmo sendo enfático, o capaz pertence a um subtipo de marcadores enfáticos diferente daquele a que pertencem o marcador nada do PB e o não final do PE. É o que mostraremos na seção 4, dedicada à proposta de derivação sintática do fenômeno. Em segundo lugar, há ainda outro tipo de marcadores não-neutros em que capaz poderia ser enquadrado, que possuem restrições sintáticas semelhantes. Na seção 3.3, compararemos o capaz gaúcho com os marcadores de negação metalinguística do PE, analisados por Martins (2010, 2012) e por Pinto (2010). 3.3 Os marcadores metalinguísticos do PE Horn (1989) define a negação metalinguística como um mecanismo para negar ou rejeitar quaisquer aspectos de um enunciado, distintos do seu valor de verdade, como uma implicatura, sua forma gramatical ou fonética ou o tipo de registro adotado pelo falante. 686 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 … a device for objecting to a previous utterance on any grounds whatever”, “a speaker’s use of negation to signal his or her unwillingness to assert, or accept another’s assertion of, a given proposition in a given way; metalinguistic negation focuses not on the truth or falsity of a proposition, but on the assertability of an utterance (HORN, 1989, p. 363) No exemplo (50), de Horn (1989, p. 373), o que é negado não é o evento de “encontrar uma mulher naquela noite”, mas a implicatura de que tal mulher seria uma amante do sujeito. O enunciado original, portanto, continua sendo verdadeiro. Semelhantemente, em (51), o interlocutor não nega o fato de que João seria um advogado, mas rejeita a pronúncia adotada pelo falante para a palavra “advogado”. As condições de verdade, portanto, não são o alvo da negação metalinguística. (50) A: X is meeting a woman this evening. B: No, he’s not (meeting a woman this evening) – he’s meeting his wife! (51) A: João é adevogado. B: João não é adevogado; ele é advogado! Segundo Horn (1989), as línguas humanas não possuem marcadores negativos exclusivos para a negação metalinguística, mas utilizam para essa função os mesmos marcadores que realizam a negação neutra. Martins (2010), por outro lado, defende que o PE possui um conjunto de partículas com a função específica de codificar negação metalinguística. Seriam eles o cá, o lá e o agora, em usos não-locativos/ não-temporais, como em (52), em que a continuação das sentenças deixa claro que a negação não afeta a veracidade da proposição original. Tais usos de cá, lá e agora são inexistentes no PB.15 O PB possui, por outro lado, um uso negativo do advérbio lá, restrito a alguns contextos, como nos dados abaixo, em que a função parece ser enfática e não metalinguística. (i) Eu sei lá! (ii) E ele lá gosta de trabalhar!? 15 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 687 (52) A: Tu estás um pouco preocupado, não estás? B: Eu não estou um pouco preocupado. Estou morto de preocupação. B’: Eu estou {lá/cá/agora} um pouco preocupado. Estou morto de preocupação. (MARTINS, 2010, p. 569) Para os objetivos deste artigo, importa o fato de que a negação metalinguística tem restrições sintáticas semelhantes à negação enfática, como aponta a própria autora ao falar do [não VP não] enfático do PE. Os marcadores metalinguísticos do PE são, segundo Martins, aceitáveis apenas em sentenças matrizes, sendo inaceitáveis em subordinadas, como mostra o contraste em (53). (53) A: O Pedro disse que vendeu o carro. B: O Pedro disse {lá/cá/agora} que vendeu o carro. B’: *O Pedro disse que vendeu {lá/cá/agora} o carro. Martins (2012, c.p.) também aponta que esses marcadores só ocorrem em declarativas, nunca em interrogativas ou imperativas, diferindo assim do [não VP não] e do [VP não] do PB. Como vimos antes, essas mesmas restrições ocorrem com o capaz negativo gaúcho e com os marcadores de negação enfática do PB e do PE. Além disso, ao menos o marcador agora pode coocorrer com a negação sentencial, mas realizando leitura de cancelamento da negação e não de concordância negativa, como mostram os exemplos em (54). Os itens cá e lá são incompatíveis com a negação de modo geral, não gerando nem concordância negativa nem dupla negação. (54) A: Ele não pode estar bêbado. Ele não bebe. B: Não bebe agora. B’: *Não bebe {lá/cá}. (MARTINS, 2010, p. 573) (Leitura: ‘Não é verdade que ele não bebe!’) Como vimos na seção anterior, essa leitura de dupla negação também é obrigatória com o nada enfático do PB e o capaz negativo gaúcho, o que levanta a pergunta geral sobre como distinguir negação enfática de negação metalinguística e a questão específica de qual é a melhor análise para o capaz negativo: seria este item uma instância de negação enfática ou metalinguística? 688 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 Consideramos que o critério principal de análise deve ser a negação não afetar as condições de verdade da sentença, agindo apenas sobre a assertabilidade (assertability) de algum outro aspecto da enunciação, como implicaturas, pressuposições (semânticas) ou a forma fonética ou gramatical.16 E o capaz negativo sempre realiza a inversão do valor de verdade da sentença sobre a qual tem escopo, como mostram todos os exemplos apresentados anteriormente. Sentenças com capaz não podem, por exemplo, expressar negação de implicaturas, como mostram os dados em (55)-(56). Uma sentença como “Capaz que eles casaram e tiveram filhos” é interpretada como uma negação dos dois eventos, não de uma implicatura quanto à ordem entre eles. (55) A: Fiquei sabendo que o João e a Maria casaram e tiveram filhos. B: Eles não casaram e tiveram filhos. Eles tiveram filhos e (depois) casaram. B’: Capaz que eles casaram e tiveram filhos! (‘Eu não acredito que eles casaram e que tiveram filhos!’) B”: #Capaz! Eles tiveram filhos e casaram. B”’: #Capaz que eles casaram e tiveram filhos. Eles tiveram filhos e (depois) casaram. (56) A: O Pedro é adevogado. B: Capaz que ele é advogado! (‘Eu não acredito que ele é advogado’) B’: #Capaz que ele é adevogado! Ele é advogado. Consideramos, portanto, que o capaz gaúcho não é especificamente marcado para a codificação de negação metalinguística. Para isso, é importante deixar claro que o ponto principal não é a impossibilidade de se criar contextos de uso metalinguístico com esse item. Assim como os próprios marcadores negativos neutros podem ser usados Com base nisso, inclusive, temos dúvida se os marcadores analisados por Martins (2010, 2012) devem ser considerados como itens especializados para a negação metalinguística. Alguns exemplos dados pela autora parecem indicar também a capacidade de negação descritiva (embora enfática), com a inversão do valor de verdade da sentença. Esse tema, porém, está além do escopo deste artigo. 16 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 689 metalinguisticamente na presença de um foco contrastivo, em princípio não seria impossível, em algum contexto apropriado, gerar sentenças em que o capaz codifique uma função metalinguística. O ponto importante é que o capaz, diferente dos marcadores metalinguísticos lá, cá e agora do PE, não é especializado para essa função, expressando, em seu uso prototípico, prioritariamente uma negação ou rejeição das condições de verdade da proposição. Na próxima seção, apresentamos a proposta de derivação sintática das sentenças com o capaz, assumindo que esse item pertence a um subgrupo de marcadores enfáticos, considerados idiomáticos. 4 Análise Assumimos que o capaz gaúcho é um marcador negativo do tipo enfático, semelhante (i) ao nada não-argumental do PB e (ii) ao não pós-VP que ocorre em [não VP não] no PE. A análise se sustenta nas condições pragmáticas associadas a seus usos e às suas restrições de distribuição sintática. Contudo, estes elementos ainda diferem quanto à posição sentencial em que ocorrem e aos elementos que os acompanham: (i) o capaz negativo aparece superficialmente em posição inicial ou pré-sentencial, enquanto o nada e o não enfáticos, mesmo que sejam gerados na periferia esquerda, necessariamente aparecem, superficialmente, em posição final. (ii) o capaz negativo coocorre opcionalmente com uma cópula (que exibe várias restrições quanto a tempo, número e modo) e obrigatoriamente com um complementador, enquanto o nada e o não enfáticos são incompatíveis com esses elementos. Como dar conta desses fatos? Assumimos que o capaz possui propriedades semelhantes a outro subgrupo de itens negativos com valor enfático, a saber, os elementos que podemos considerar como itens idiomáticos negativos,17 como like hell e my eye em (57) e (58), que Expressões idiomáticas costumam ser definidas ou pela não-composicionalidade ou pela imprevisibilidade do seu significado a partir de suas partes (mesmo quando há alguma composicionalidade). Usamos aqui o termo nesse segundo sentido. Ou seja, essas expressões não são compostas por elementos negativos, apenas assumem um uso negativo em configurações sintáticas específicas. 17 690 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 são aptos para negar a sentença a partir de uma posição pré-sentencial periférica. (57) A: I don’t care what you say. I’m going to that party! B: Like hell you are! (‘Não mesmo, você não vai de jeito nenhum!’) (58) A: I’m going to drop out of college. B: My eye, you are! (‘Não mesmo, você não vai de jeito nenhum!’) O capaz gaúcho ainda tem com tais itens a semelhança quanto ao sabor idiomático, no sentido de ser também um item não-negativo que assumiu um valor negativo18 em uma configuração sintática específica.19 Uma vez que o nada e não possuem traços negativos intrínsecos, isso é evidência para uma subdivisão natural da classe de elementos negativos enfáticos. Expressões como my eye, like hell e outras semelhantes foram tratadas por alguns autores como marcadores metalinguísticos (DROZD, 2001, p. 55; MARTINS, 2010, p. 569), mas o fato é que elas podem perfeitamente realizar a negação não-metalinguística (embora ainda anafórica e contrastiva), como nos parece claro nos exemplos em (57) e (58), em que há alteração do valor de verdade das sentenças. Por isso, Vide Bassi e Gorski (2014) para uma proposta da sequência de gramaticalização do capaz. 19 Quando se fala de itens não-negativos assumindo valores negativos em configurações sintáticas específicas, é impossível deixar de falar sobre o Ciclo de Jespersen, que descreve um processo de tal tipo ocorrendo com itens nominais ou adverbiais, como o pas do francês que, originalmente, correspondia ao nominal com significado de ‘passo’, mas passou a ser um elemento negativo secundário das sentenças francesas e, posteriormente, se tornou o verdadeiro marcador negativo da língua. No entanto, o Ciclo se refere a elementos que desenvolvem um conteúdo negativo em configurações em que aparecem em posição pós-verbal e em que coocorrem com a negação pré-verbal. Não é o caso dos itens tratados aqui, pois estes não desenvolvem uma interpretação negativa a partir de uma posição necessariamente pós-verbal, mas periférica pré-sentencial, e sem a dependência de um outro item negativo. 18 691 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 consideramos que são elementos enfáticos, constituindo, assim, um subgrupo de marcadores enfáticos com status idiomático. Em português, exemplos de itens idiomáticos que exercem uma função semelhante são uma ova e vírgula, como em (59). (59) a. Ele trabalhou muito uma ova! (‘Não é verdade que ele trabalhou muito!’) b. Ela pagou a conta vírgula! conta!’) (‘Não é verdade que ela pagou a Curiosamente, em (59), esses itens idiomáticos aparecem em posição final, semelhantemente ao nada enfático, mas também podem ocorrer em posição inicial, mantendo o valor enfático. Os exemplos em (60) são de Martins (2010) para o PE e trazem um “é que” à direita de “uma ova”, em uma construção semelhante a uma clivada invertida (cf. nota de rodapé 5); e parcialmente semelhante aos dados do capaz negativo, em que a cópula pode ser omitida e, quando presente, ocorre à esquerda do item. (60) a. Uma ova é que canta bem. (PE) b. Uma ova é que ele viveu sempre em Paris. (PE) (MARTINS, 2010 p. 567, 573) Também no PB, uma ova em posição inicial aceita (ou requer) a presença do complementador. Já a presença da cópula após uma ova é dispensável (ou marginal), como mostram os exemplos em (61) e (62). (61) Uma ova que eu vou te perdoar! (PB) (MELLO, 2009, p. 493) (62) A: Fica mais em conta comprar dois chopps de 500ml por 10 reais do que três chopps de 300ml pelo mesmo preço. B: Uma ova que fica mais em conta! Três chopps de 300ml significam três copos para lavar, três atendimentos, três deslocamentos até a mesa... Custa mais para o bar.20 (PB) 20 https://bit.ly/2Naibnd (exemplo adaptado) 692 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 No dialeto baiano, o item aonde também pode ser utilizado como recurso de negação marcada ou rejeição de um enunciado prévio, de modo semelhante ao capaz negativo, como lembram Rodrigues e Lunguinho (2018). Quando ocorre em uma oração, o aonde também ocupa a posição pré-sentencial, seguido por um complementador, como em (63), mas sem a presença de uma cópula.21 (63) A: Você vai votar em Fernando? B: Aonde! ( = ‘De jeito nenhum!’) B’: Aonde que eu vou votar nele! ( = ‘De jeito nenhum eu vou votar nele!’) A presença do complementador pode estar relacionada à possibilidade versus impossibilidade de escopo do marcador enfático sobre a sentença que introduz. Assumimos que esse é o caso, ou seja, que o complementador, de algum modo, proporciona uma maior integração entre o marcador enfático pré-sentencial e oração que este antecede, tornando o escopo negativo possível. Defendemos, então, que o capaz negativo gaúcho se comporta como os marcadores negativos enfáticos do tipo idiomático, como uma ova e aonde, sendo gerado em uma posição alta na periferia esquerda da sentença, de modo semelhante ao não anafórico e ao nada enfático. Outra evidência em favor dessa análise é o caso do item ruim que, como aponta Marcelino (2017, 2018), exibe o mesmo tipo de variação que o capaz registra no dialeto gaúcho, entre um valor adjetival avaliativo (mas que não resulta em negação do predicado) e um valor negativo, como em (64), adaptados de Marcelino (2018, p. 85). (64) a. É ruim que Ana conte o meu segredo. (leitura avaliativa) (‘É desagradável/mau/péssimo que Ana conte o meu segredo’) b. É ruim que Ana conta o meu segredo! (leitura negativa) (‘De jeito nenhum Ana contaria o meu segredo’) Outra expressão em que este uso e esta estrutura com o complementador aparecem é “ah, tá”, em dados como em (i)-(ii), em que é claro o requerimento anafórico de rejeição de uma informação ou proposição presente no discurso prévio. (i) Ah, tá, que eu vou votar nele... (i) Ah, tá, que eu vou perder meu tempo por causa disso... 21 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 693 É interessante que, na leitura adjetival/avaliativa, a sentença modificada por ruim deva aparecer no subjuntivo (ou no infinitivo). No uso de ruim como marcador negativo, a sentença introduzida deve aparecer no indicativo. O subjuntivo bloqueia a leitura negativa de ruim, assim como ocorre com o capaz gaúcho. Marcelino (2017, 2018) aplica ao ruim (ou é ruim22) negativo os testes de Cavalcante (2007, 2012a, 2012b) e de Martins (2010, 2012) com relação ao comportamento da negação anafórica, enfática e metalinguística, encontrando resultados semelhantes aos que apresentamos quanto ao capaz: como marcador negativo, é ruim só é aceitável em sentenças declarativas e matrizes, não realiza concordância negativa, mas cancela outra negação. Marcelino (2017, 2018) interpreta tais resultados como evidência de que é ruim codifica negação metalinguística. Entretanto, como vários dos exemplos apresentados pela autora, como (64b) e (65), envolvem a alteração do valor de verdade das sentenças, consideramos que, assim como capaz, o é ruim também codifica negação enfática, que pode ser ou não usada metalinguisticamente em um contexto apropriado. (65) A: Ana fez toda a atividade de casa. B: É ruim que ela fez (toda a atividade)! Ela não respondeu quatro questões. (MARCELINO, 2018, p. 91) Diante do quadro delineado até aqui sobre o comportamento do capaz negativo, propomos a seguinte estrutura para as sentenças com esse marcador: (66) (É) bem capaz que eu vou na festa de Maria! [ForceP é [YP (bem) capaz (mesmo) [Y’ [FinP [Fin’ que [IP eu vou [VP … na festa de Maria ]]]]]]] Assumimos que, apesar de conter pelo menos dois elementos verbais, a cópula e o verbo do predicado negado, as estruturas com o capaz negativo são mono-oracionais, diferindo, por exemplo, das orações clivadas com as quais apresentam alguma semelhança superficial (cf. nota de rodapé 5). Devido à forma fixa da cópula (cf. seção 2.4), consideramos 22 Diferentemente do dialeto gaúcho, a cópula não é opcional com o ruim negativo. 694 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 que esta não exerce a função de núcleo de um VP, não introduzindo um evento, mas codificando o tipo ilocucionário sentencial, como núcleo de ForceP. O primeiro argumento para essa análise é a exigência de que essas construções introduzam orações finitas, como apontado na seção 2.5. Nessa análise, o requerimento de que o complemento oracional seja finito pode ser visto como marcado em Forceº, seja quando a cópula está realizada ou quando está nula, que exigiria um FinP preenchido pelo complementador. O segundo argumento é o fato de que a cópula não pode ser negada, como mostram os exemplos em (67), em que a negação da cópula faz com que o capaz só possa ser interpretado como um adjetivo de possibilidade. Esse fato contrasta com o caso da cópula presente em sentenças clivadas, em que a negação é permitida, como em (68). (67) a. #Não é capaz que a Maria vai/vá casar. b. #Não é bem capaz que o imposto encarece/encareça o produto. (68) Negação da cópula em clivadas. a. É a Maria que vai casar. b. Não é Maria que vai casar. c. É o imposto que encarece o produto. d. Não é o imposto que encarece o produto. A incompatibilidade do capaz negativo com sentenças nãodeclarativas e não-matrizes pode ser vista como resultado de a cópula ser o núcleo funcional de um ForceP marcado intrinsecamente como declarativo. Por essa análise, na ausência da cópula, ainda haveria um núcleo nulo com o traço declarativo, tanto nas sentenças com capaz quanto naquelas com outros marcadores enfáticos. Ainda quanto à derivação proposta em (66), assumimos também que capaz não tem status de núcleo, diferentemente das partículas anafóricas do tipo yes/no e sim/não e do marcador enfático nada, mas sim de XP, ocupando uma posição de especificador, uma vez que pode ser intensificado pelo advérbio bem à sua esquerda e pelo advérbio mesmo à sua esquerda, como apontado na seção 2.2. É possível que a categoria em que o XP (bem) capaz se aloje seja a mesma projeção funcional que aloja os demais marcadores anafóricos e enfático. Essa análise previne a Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 695 possibilidade de movimento da sentença negada, bloqueando a posição linear pós-VP para o capaz negativo. Quanto ao complementador, assumimos que ele é o núcleo de FinP e funciona como elemento que integra plenamente a estrutura de modo a permitir que capaz tenha escopo sobre a oração introduzida e não apenas sobre uma proposição contextual prévia. Uma evidência em favor dessa análise vem do italiano. Poletto (2009) analisa construções em que as partículas assertivas pré-sentenciais sì e no23 introduzem orações finitas iniciadas pelo complementador che, como em (69). (69) a. No che non ci vado. b. No che non ghe vado. (Italiano regional) (Italiano, dialeto Veneto) ‘I won’t go there’ c. Si che ci vado. (Italiano regional) ‘I will go there indeed’ (POLETTO, 2009, p. 41) Duas características dessas construções nos interessam aqui: (i) a impossibilidade de divergência entre a polaridade da partícula assertiva e da sentença introduzida, o que contrasta claramente com os casos em que o complementador não está presente (cf. seção 3.1): (70) A: Hai dimenticato di pagare il conto? ‘Esqueceu de pagar a conta?’ B: No, l’ho pagato. ‘Não, eu paguei.’ (ii) o valor discursivo de ênfase ou de foco associado com essas construções, que Poletto (2009) descreve como equivalente à soma de really + not.24 São duas características que essas construções do italiano O leitor deve ter em vista que a partícula assertiva negativa do italiano tem uma forma diferente do marcador negativo intra-sentencial: a primeira tem a forma no, e o segundo é non. 24 Poletto (2009) aponta que essas construções do italiano possuem valor modal, codificando algum traço de modalidade associado à evidencialidade. Para um tratamento do capaz negativo em termos de modalidade epistêmica, confira Rodrigues e Lunguinho (2018). 23 696 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 têm em comum com o capaz gaúcho, mas que não ocorrem na ausência do complementador che. Defendemos, portanto, que se trata de construções com estruturas semelhantes, em que um elemento com valor polar (intrínseco ou idiomático) em posição pré-sentencial adquire valor enfático e escopo sentencial em combinação com um complementizador com um traço de foco. 5 Conclusão Neste artigo, descrevemos as propriedades sintáticas e semânticas do item capaz com valor negativo no dialeto gaúcho do português brasileiro, argumentando que se trata de um marcador negativo do tipo enfático, mais especificamente do tipo idiomático, que opera uma rejeição forte de um conteúdo previamente veiculado. Defendemos que o capaz é gerado em uma posição alta no sistema CP, de onde tem escopo sobre a sentença que precede. Subjacente à nossa análise está uma classificação dos marcadores polares das línguas em duas grandes classes, a dos marcadores neutros (ligados a sistema flexional) e dos marcadores não-neutros (ou anafóricos), que dependem de um licenciamento discursivo (ligados ao sistema CP). Estes marcadores não-neutros, por sua vez, subdividemse entre os que possuem apenas um traço anafórico e os que possuem, adicionalmente, algum tipo de valor contrastivo, que pode ser de dois tipos: os com valor enfático e (assumindo a hipótese de MARTINS, 2010, 2012) os com valor metalinguístico. Como elementos contrastivos, os marcadores enfáticos e os metalinguísticos possuem diversas propriedades em comum, mas diferem quanto à capacidade de operar a inversão da polaridade da sentença. Adicionalmente, é preciso admitir que marcadores não-contrastivos podem receber uma leitura enfática a partir de uma prosódica específica ou uma leitura metalinguística a partir de um contexto contrastivo que marque a rejeição de um elemento pragmático (cf. (50)-(51)). A Figura 1 abaixo traz uma representação dessa tipologia. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 697 Figura 1 – Tipologia dos marcadores negativos (e afirmativos) nas línguas Fonte: própria. Contribuição dos autores Rerisson Cavalcante propôs a pesquisa, mas ambos os autores participaram de todas as etapas de realização da investigação, incluindo a elaboração dos testes linguísticos para descrição do fenômeno, a discussão da literatura prévia, a discussão das opções de análise dos dados e a redação do artigo. 698 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 Referências BASSI, A.; GÖRSKI, E. M. A multifuncionalidade do item “capaz” na fala gaúcha: uma abordagem baseada no uso. Alfa, São Paulo, v. 58, n. 3, p. 593-622, 2014. Doi: https://doi.org/10.1590/1981-5794-1409-4 CAVALCANTE, R. Negação pós-verbal no português afro-brasileiro: análise descritiva e teórica de dialetos rurais de afro-descendentes. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007. CAVALCANTE, R. Negação enfática e negação exclamativa. In: ______. Negação anafórica no português brasileiro: negação sentencial, negação enfática e negação de constituinte. 2012. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012a. p. 135-239. CAVALCANTE, R. Qual o marcador negativo enfático do português brasileiro? In: WORKSHOP INTERFACES, 2012, Campinas. Palestra apresentada. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2012b. Disponível em: <https://bit.ly/2L0umj3>. Acesso em: 28 maio 2018. CAVALCANTE, R.; SIMIONI, L. A ordem VS em sentenças imperativas do português brasileiro. Revista Letrônica, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 304-315, jul.-dez. 2015. CUNHA, M. A. F. da. Gramaticalização dos mecanismos de negação em Natal. In: MARTELOTTA, Mário Eduardo; VOTRE, S. J.; CEZARIO, M. M. (Org.). Gramaticalização no português do Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 167-89. CUNHA, M. A. F. da. O modelo das motivações competidoras no domínio funcional da negação. DELTA, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 1-30, 2001. Di TULLIO, Á. L. Palabras negativas en contexto enfático: nada, ningún. In: CONGRESO DE LA SOCIEDAD ARGENTINA DE LINGUÍSTICA, VIII., 2008, Santa Fé. Comunicação apresentada. Santa Fé: Sociedade Argentina de Linguística, 2008. DROZD, K. F. Metalinguistic sentence negation in Child English. In: HOEKSEMA, J.; RULLMANN, H.; SANCHEZ-VALENCIA, V.; van der WOUDEN, T. (Org.). Perspectives on negation and polarity items. Amsterdam: John Benjamins, 2001. p. 49-78. Doi: https://doi. org/10.1075/la.40.04dro Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 699 HORN, L. R. A natural history of negation. Chicago: University of Chicago Press, 1989. LAMBERTI, L. Motivações pragmáticas para o uso da dupla negação: um estudo do fenômeno no português europeu. 2014. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. LEWIS, David. Scorekeeping in a Language Game. Journal of Philosophical Logic, [S.l.], v. 8, p. 339-359, 1979. MARCELINO, N. J. M. C. Sentenças de negação com é ruim, breu, nem a pau e vírgula no português brasileiro: uma análise sintática. 2017. Qualificação (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2017. MARCELINO, N. J. M. C. Sentenças de negação com é ruim e nem a pau no português brasileiro. 2018. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. MARTINS, A. M. Negação metalinguística (lá, cá e agora). In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA, XXV., 2010, Lisboa. Actas... Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, 2010. p. 567-87. MARTINS, A. M. The Portuguese answering system: affirmation, negation and denial. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE LINGUÍSTICA HISTÓRICA, II., 2012, São Paulo. Minicurso ministrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012. MELLO, N. C. Conversando é que a gente se entende. São Paulo: Texto Editores, 2009. PINTO, C. Negação metalinguística e estruturas com nada no português europeu. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2010. POLETTO, C. The syntax of focus negation. University of Venice Working Papers in Linguistics, Venice, v. 18, p. 181-202, 2009. RODRIGUES, P.; LUNGUINHO, M. Pragmaticalization in Brazilian Portuguese: the case of “capaz”. ENCONTRO INTERNACIONAL DE SINTAXE, SEMÂNTICA E INTERFACES, 3., 2018, Florianópolis. Comunicação apresentada. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2018. 700 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 669-700, abr./jun. 2019 RONCARATI, C. A negação no português falado. In: MACEDO, A. T. de; RONCARATI, C.; MOLLICA, M. C. (Org.). Variação e discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 97-112. SCHWENTER, S. The pragmatics of negation in Brazilian Portuguese. Lingua, [s.l.], v. 115, n. 10, p. 1427-1456, 2005. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Coordenação e paralelismo Coordination and parallelism Ana Márcia Martins da Silva Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil ana.silva@pucrs.br Resumo: Este artigo apresenta uma revisão de bibliografia sobre o processo de coordenação e sobre as restrições implicadas no encadeamento de determinadas categorias sintáticas. Tais restrições evitam a construção de sequências coordenadas não paralelas. Com o objetivo de chegar a um princípio de paralelismo que seja eficiente para a identificação de estruturas malformadas, o artigo discute os conceitos de coordenação de alguns autores canônicos, como Chomsky (1957),1 Schachter (1977), Garcia (1986), Radford (1988) e Osborne (2006). A análise de casos extraídos de textos produzidos para disciplinas de língua portuguesa por graduandos dos semestres iniciais e/ou finais de cursos de bacharelado e de licenciatura corrobora o Princípio de Paralelismo – Reformulado (PPR), proposto neste estudo. Palavras-chave: coordenação de estruturas; ausência de paralelismo; Princípio de Paralelismo – Reformulado. Abstract: This paper presents a review of the literature on coordination and on the constraints involved in coordinating certain syntactic categories. Such constraints prevent the construction of non-parallel coordinate sequences. In order to elaborate a principle of parallelism that is efficient for the identification of ill-formed structures, this paper discusses the coordination concepts of some canonical authors, such as Chomsky (1957), Schachter (1977), Garcia (1986), Radford (1988) and Osborne CHOMSKY, N. Syntactic structures. The Hague: Mouton & Co, 1957. Consultado a partir da versão traduzida e comentada por Gabriel de Ávila Othero e Sérgio de Moura Menuzzi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. (Coleção de Linguística) 1 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.701-736 702 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 (2006). The analysis of cases extracted from texts produced for Portuguese language subjects by undergraduates of the initial and / or final semesters of baccalaureate and undergraduate courses corroborates the Principle of Parallelism – Reformulated (PPR), proposed in this study. Keywords: coordination of structures; absence of parallelism; Principle of Parallelism – Reformulated. Recebido em 23 de julho de 2018 Aceito em 07 de janeiro de 2019 Considerações iniciais No presente artigo, fazemos uma revisão de bibliografia sobre o processo de coordenação e sobre as restrições implicadas no encadeamento de determinadas categorias sintáticas, que, se não observadas, geram problemas de paralelismo. O objetivo de tal revisão é chegar a um princípio de paralelismo que seja eficiente para a identificação de estruturas consideradas malformadas na norma padrão da língua portuguesa. Discutem-se os conceitos de coordenação de alguns autores canônicos, como Chomsky (1957), Schachter (1977), Garcia (1986), Radford (1988) e Osborne (2006). Assim, na seção 1, apresentamos os conceitos de coordenação de alguns autores canônicos, como Chomsky (1957), Schachter (1977), Garcia (1986), Radford (1988) e Osborne (2006). Na seção 2, discutimos esses conceitos estabelecendo um paralelo entre eles, buscando semelhanças e diferenças para que possamos chegar a um denominador comum, isto é, a um conceito/ princípio que seja adequado para a análise dos casos mais comuns de ausência de paralelismo. Nosso intuito com este princípio é incorporar as noções desenvolvidas pela teoria linguística na fundamentação das percepções que dão forma ao que se considera a norma padrão da língua portuguesa escrita no Brasil. Na seção 3, à luz do princípio de paralelismo que formulamos, analisaremos alguns casos coletados em textos produzidos para disciplinas de língua portuguesa por graduandos dos semestres iniciais e/ou finais de cursos de bacharelado e de licenciatura. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 703 1 Sobre coordenação e paralelismo 1.1 Chomsky (1957) Em Estruturas Sintáticas (1957), Chomsky apresenta a coordenação como “um dos processos mais produtivos para a formação de novas sentenças” (p. 48) e afirma que apenas constituintes que pertençam à mesma categoria sintática podem ser coordenados. Com os exemplos em (1a,b) e (2), demonstra tais afirmações. (1) a. the scene – of the movie – was in Chicago [a cena – do filme – foi em Chicago] b. the scene – of the play – was in Chicago [a cena – da peça – foi em Chicago] (2) the scene – of the movie and the play – was in Chicago [a cena – do filme e da peça – foi em Chicago] Neste caso, “do filme” e “da peça” são dois SPs, consistindo, portanto, em constituintes pertencentes à mesma categoria sintática. Estruturas como as de (3a,b), porém, não podem ser coordenadas em (4). (3) a. the scene – of the movie – was in Chicago [a cena – do filme – foi em Chicago] b. the scene – that I wrote – was in Chicago [a cena – que eu escrevi – foi em Chicago] (4) * the scene – of the movie and that I wrote – was in Chicago [*a cena – do filme e que eu escrevi – foi em Chicago] Observamos claramente que os constituintes de (3a,b) coordenados em (4) não pertencem à mesma categoria sintática, já que (3a) é um SP e (3b), uma oração relativa. Para que se evitem construções como (4), o autor propõe uma regra simplificada para a coordenação. 704 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 (5) Regra: Se S1 e S2 são sentenças gramaticais, e S1 difere de S2 apenas pelo fato de S1 possuir X onde S2 possui Y (isto é, S1 = ... X ... e S2 = ... Y ...), e X e Y forem constituintes do mesmo tipo em S1 e S2, respectivamente, então S3 é uma sentença, em que S3 é o resultado da substituição de X por X + e + Y em S1 (isto é, S3 = ... X + e + Y ...) A aplicação de tal regra pressupõe, então, que a coordenação de duas sentenças é possível se houver apenas uma posição em que elas diferem, e se os constituintes que preenchem essa posição são da mesma categoria sintática. Mas não basta a mera identidade de categoria sintática: a coordenação, segundo Chomsky (1957), também depende de as duas sequências coordenadas terem a mesma “história derivacional”. Para exemplificar essa propriedade, adaptamos, em (6a,b,c,d,e), os exemplos em português dados por Othero e Menuzzi (2015, p. 52) na tradução comentada de Chomsky (1957). (6) a. Maria abraçou o irmão de Joana. b. Maria abraçou o irmão de Paula. c. Maria abraçou o irmão de manhã. d. Maria abraçou o irmão de Joana e de Paula. e. * Maria abraçou o irmão de Joana e de manhã. A coordenação dos constituintes em (6d) é possível porque são ambos derivados como “irmãos” do núcleo, ou seja, ambos são introduzidos pela regra SN → det N SP; já (6e) é inaceitável porque a “história derivacional” de “de manhã” é diferente, isto é, o SP é introduzido por outra regra, qual seja, SV → V SN SP. Isso confirma que, além de serem do mesmo tipo – de Joana, de Paula e de manhã são todos SPs –, para que a coordenação seja licenciada, os constituintes também têm de ter “a mesma história derivacional” – o que, no modelo de Chomsky (1957) grosseiramente equivale a “pertencer à mesma função sintática”, isto é, ocupar a mesma posição estrutural. Nos casos de (2) e de (4), a possibilidade de coordenação (2) ou não (4) é evidente e comprovável. Segundo o autor, no entanto, há alguns casos que nos causam estranheza, como John enjoyed and my friend liked the play [João adorou e meu amigo gostou (d)a peça], porque a coordenação ultrapassa os limites dos constituintes (o primeiro verbo fica sem seu complemento, que aparece apenas depois do segundo). Sugere, então, a seguinte descrição: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 705 [...] para formar sentenças perfeitamente gramaticais por meio de coordenação, é necessário conectar constituintes simples; se conectamos pares de constituintes, e estes são constituintes importantes (isto é, que estão numa posição mais alta no diagrama), a sentenças serão semigramaticais; quanto mais profundamente a coordenação violar a estrutura de constituintes, menos gramatical será a estrutura resultante. Esta descrição requer que generalizemos a dicotomia gramatical/agramatical, desenvolvendo a noção de graus de gramaticalidade. (CHOMSKY, 1957, nota 2, p. 49 da versão traduzida e comentada por OTHERO e MENUZZI, 2015) Essa noção de “graus de gramaticalidade” é importante para verificarmos a possibilidade de aceitação2 ou não de determinadas estruturas coordenadas, como as de (7a,b), que, embora encontradas na produção escrita de brasileiros de nível superior de escolarização, são geralmente caracterizadas como não recomendadas pela norma padrão (ver, por exemplo, a discussão de Othon Garcia abaixo). (7) a. ?? A melhor maneira para que isso ocorra com grande sucesso seria o educador escolher um bom conteúdo, e que seja bem trabalhado, bem lido. b. ?? Estudavam-se as semelhanças e diferenças entre os sons dos fonemas e como eles se adaptavam para diferenciar palavras com escritas similares. É importante destacar que, em 1957, Chomsky não havia ainda discutido/conceituado “gramaticalidade” e “aceitabilidade”, mas já acenava para a distinção entre elas com a indicação dos “graus de gramaticalidade”. Somente em Chomsky, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge: MIT Press, 1965. (Consultado na versão traduzida por José António Meireles e Eduardo Paiva Raposo. Coimbra: Arménio Amado – Editor, Sucessor, 1978.), tais termos foram conceituados: “A aceitabilidade é um conceito que pertence ao estudo da performance, enquanto que a gramaticalidade pertence ao estudo da competência” (p. 92). Neste artigo, no entanto, é inevitável que acabemos fazendo referência à aceitação ou não pelo falante nativo de determinadas estruturas malformadas, uma vez que pretendemos guiar o estudo pelo viés normativo – isto é, definir as condições que regem o que se tem considerado como as estruturas recomendadas pela norma padrão do português escrito no Brasil. Isso torna necessário que o falante perceba a diferença entre a estrutura que ele “aceita” como “boa” e aquela que é considerada adequada do ponto de vista da norma. 2 706 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Tanto em (7a) quanto em (7b), as estruturas coordenadas pertencem a categorias sintáticas diferentes, respectivamente, SN + relativa e SN + WH. No caso de (7a), na verdade, a relativa não está sendo coordenada com o SN como um todo, já que ela é modificadora de N e está, portanto, dentro do SN. Antes o falante tentou coordená-la com o adjetivo bom – mas é claro que sem muito sucesso porque bom e a relativa não estão lado a lado, e a frase acaba coordenando sequências que não são paralelas em nenhum sentido: [bom conteúdo] e [que seja bem trabalhado]. Embora, para um olhar menos acurado, ambas as sentenças possam não parecer agramaticais, já que não soam como “ruins”, (7b),3 em que a relativa livre pode ser interpretada como um NP (a forma como eles [...]), parece ser melhor que (7a), porque apresenta uma estrutura muito comum na variante culta do PB.4 E sua larga utilização Um dos pareceristas sugere que, por serem SN e WH complementos de “Estudavamse” (na verdade, constituem o sujeito do verbo, o que é corroborado, inclusive, pela concordância) e por terem, portanto, o mesmo status argumental, a coordenação seria permitida. Nosso estudo, porém, destaca que a correspondência de função não é, como os outros casos aqui discutidos deixam claro, a única condição para coordenação: há também identidade de categoria, de função semântica, etc. No caso particular, viola-se a condição de identidade de categoria, a admitir-se a análise superficial das estruturas. (É verdade que uma relativa livre pode, em princípio, ser concebida como SN cujo N núcleo está elíptico, mas essa análise precisa de argumentação para ser sustentada.) Outros exemplos parecem dar suporte à percepção de pouca naturalidade – de má formação – contida no juízo normativo dessas estruturas (por exemplo, “O juiz determinou uma multa de R$ 1.000,00 e quando ela deveria ser paga”). 4 Em rápida pesquisa no Google, com a entrada “* e como”, encontramos 767.000.000 resultados, dos quais filtramos, das cinco primeiras páginas, os que seguem. Insônia? Dificuldade para dormir? Veja efeitos e como conseguir ... https://www.gazetaonline.com.br › bem_estar_e_saude › Bem Estar e Saúde Primeiros passos – Para as famílias – Central de Segurança – Google https://www.google.com.br/intl/pt-BR/safetycenter/families/start/ Como pai ou responsável, você sabe o que é bom para sua família e como seus filhos aprendem melhor. Como funciona?: UNIC Rio – Centro de Informação das Nações ... unicrio.org.br/conheca-a-onu/como-funciona/ ... melhorar as condições de vida das crianças, dos jovens e das mulheres; Discutir assuntos ligados ao desenvolvimento sustentável, meio ambiente e direitos humanos; Decidir as contribuições dos Estados-Membros e como 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 707 na língua é um indício de que esses “graus de gramaticalidade” podem ser corroborados a partir da análise da frequência com que ocorrem e do nível de escolarização em que são produzidos. Schachter (1977), cujo trabalho apresentamos na próxima seção, expande o princípio de que apenas constituintes que pertençam à mesma categoria sintática podem ser coordenados. Acrescenta a ele também a função semântica, como poderemos ver a seguir. 1.2 Schachter (1977) Schachter (1977) acrescenta à restrição para coordenação de constituintes estabelecida por Chomsky (1957) a função semântica, chamando tal reelaboração de Coördinate Constituent Constraint (CCC).5 O CCC, então, indica que “os constituintes de uma construção coordenada devem pertencer à mesma categoria sintática e ter a mesma função semântica” (SCHACHTER, 1977, p. 90). Não faz referência, no entanto, ao fato de que tais constituintes devem pertencer à mesma função sintática. De qualquer forma, essa restrição ajuda-nos a identificar como malformada a coordenação em (8). (8) ??Os poetas do Mal do Século consumiam [álcool, drogas e prostitutas]. estas contribuições devem ser gastas; Eleger os novos Secretários-Gerais da Organização. Já cadastrou a biometria para as eleições? Veja prazos e como fazer ... https://www1.folha.uol.com.br/.../ja-cadastrou-a-biometria-para-as-eleicoesveja-prazo... Grêmio, Inter, Primeira Liga e como será a disputa em 2018 | GaúchaZH https://gauchazh.clicrbs.com.br/.../gremio-inter-primeira-liga-e-como-sera-adisputa-e... Rosely Sayão: “Educar é apresentar a vida e não dizer como viver ... www.cartaeducacao.com.br › Entrevistas 22 de jun de 2016 - CE: No seu livro, a senhora fala em crise da autoridade dos pais e como isso tem dificultado a relação deles com os filhos. 5 Este trabalho manterá a denominação dos processos descritos pelos autores de língua inglesa em inglês. 708 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Em (8), todos os elementos coordenados pertencem à mesma categoria sintática (SN), mas não têm a mesma função semântica, já que “álcool e drogas” são produtos químicos, mas “prostitutas” não. (É importante deixar claro aqui que, no enunciado original, não se tratava de uma tentativa de obter algum efeito de sentido por meio de linguagem figurada, o que poderia tornar tal frase perfeitamente aceitável; isso remete, portanto, aos “graus de gramaticalidade” evidenciados por Chomsky (1957)). É fundamental, então, que se considere também a identidade de função semântica como exigência para a boa formação de uma estrutura coordenada, mas não apenas ela. Segundo o autor, estruturas coordenadas como em (9) e (10) não podem ser consideradas agramaticais por motivos semânticos, e sim pelos sintáticos. Assim, a agramaticalidade depende de fatores tanto sintáticos quanto semânticos. (9) *Running6 and to overeat may be unhealthy. [*corrida e comer demais podem ser pouco saudáveis] (10) To run and to overeat may be unhealthy. [correr e comer demais pode ser pouco saudável] Schachter (1977) considera, no entanto, que nem tudo o que pode ser classificado como uma função semântica é, de fato, relevante para a restrição de coordenação. Assim, aquelas funções que são relevantes têm de ser especificadas, o que ele exemplifica com as estruturas em (11) e (12), indicando que a implementação de CCC exige uma espécie de hierarquia de funções semânticas. Essa é a forma que a gramática inglesa costuma chamar de “gerúndio”. Mas trata-se de uma forma que não tem exatamente a mesma distribuição, e, portanto, interpretação, que o gerúndio em português. Neste trabalho, traduzimos running como “corrida” para que a diferença de categoria sintática ficasse mais evidente ao leitor. No inglês, o gerúndio pode ser usado como indicador de tempo progressivo (i), como equivalente ao nosso infinitivo (ii) e à certa nominalização do português (iii). (i) John was running in the park this morning. [João estava correndo no parque esta manhã] (ii) John wants to start running next season. [João quer começar a correr na próxima estação] (iii) John’s running is weird. [O (modo de) correr de João é estranho] 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 709 (11) *John met Mary on a blind date and in 1968. [*João encontrou Maria em um encontro às escuras e em 1968] (12) How and when did John meet Mary? [como e quando João encontrou Maria?] A agramaticalidade de (11) reside no fato de que não é possível coordenar uma expressão de modo (em um encontro às escuras) com uma de tempo (em 1968), porque não contemplam tal hierarquia. Já em (12) o autor afirma que não há agramaticalidade porque “prevalece a função semântica partilhada pelos pronomes interrogativos, qual seja a obtenção de uma resposta, e não a função que os distingue” (p. 91) – o fato de uma ser expressão de modo e a outra, de tempo. Mas pode-se levantar dúvidas, no entanto, quanto a esta última observação, já que estruturas como a de (13) não nos parecem bem formadas. (13) ?? O que e como João comprou no Natal? Também em (13) temos dois WH, o que licenciaria a coordenação. Para Schachter (1977), o fato de que ambos sejam WH – e que isso conta como uma “mesma função” – é o que permite que sejam coordenados em (12). Mas, se “ser WH” é uma “função” suficiente para satisfazer o “paralelismo de função” exigido pela coordenação, (13) deveria ser “boa” também. Em todo caso, o problema com (13) pode ser simplesmente a ausência de um contexto próprio, mas o fato de a estrutura parecer malformada dá indícios de que a afirmação de Schachter sobre a prevalência da função semântica dos pronomes interrogativos deve ser verificada a partir de um estudo mais aprofundado sobre quais estruturas WH podem ser coordenadas. Schachter acrescenta ainda à sua teoria o fator pragmático, embora não o denomine dessa forma, quando indica que há alguns casos de estruturas coordenadas questionáveis ou agramaticais que o CCC não cobre. Em (14), apresentamos um desses casos. (14) *Mary makes very little money and all her own clothes. [*Mary faz pouco dinheiro e todas as suas roupas] 710 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 “Pouco dinheiro” e “todas as suas roupas” são dois SNs, adequados, portanto, como complementos do verbo “fazer”, o que parece contemplar CCC. No entanto, a frase não parece boa, e isso se dá porque foram coordenados complementos para acepções diferentes de “fazer”, respectivamente “ganhar” e “manufaturar (costurar)”. Assim, também o contexto de uso deve ser levado em consideração. Em Comunicação em prosa moderna, apresentado na seção 1.3 abaixo, Garcia (1986) descreve-nos a coordenação seguindo os pressupostos de Chomsky (1957). Assim como Schachter (1977), ele amplia o princípio de que apenas constituintes que pertençam à mesma categoria sintática podem ser coordenados, acrescentando que a estrutura interna dos constituintes também deve ser paralela. 1.3 Garcia (1986) Sobre coordenação, correlação e paralelismo, Garcia afirma que [...] é justo presumir que quaisquer elementos da frase – sejam orações sejam termos delas –, coordenados entre si, devam – em princípio pelo menos – apresentar estrutura gramatical idêntica, pois – como, aliás, ensina a gramática de Chomsky – não se podem coordenar frases que não comportem constituintes do mesmo tipo. Em outras palavras: a ideias similares deve corresponder forma verbal similar. Isso é o que costuma chamar de paralelismo ou simetria de construção. (p. 28) Quanto ao paralelismo, o autor ressalva que não deve ser considerado como uma norma rígida nem pode ou deve ser levado à risca, pois são as tradições da língua que a moldam. Serve, no entanto, como “uma diretriz, mas diretriz extremamente eficaz”, que auxilia a evitar “construções incorretas, algumas, inadequadas, outras” (p. 28-9). Em (15a,b), trazemos dois dos exemplos de construções incorretas dados por Garcia e sua sugestão para corrigi-las. (15) a. “Estamos ameaçados de um livro terrível e que pode lançar o desespero nas fileiras literárias.” a’. Estamos ameaçados de um livro que é terrível e (que) pode lançar... a’’. Estamos ameaçados de um livro terrível e capaz de lançar... Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 711 b. Não saí de casa por estar chovendo e porque era ponto facultativo. b’. Não saí de casa por estar chovendo e por ser ponto facultativo. b’’. Não saí de casa porque estava chovendo e (porque) era ponto facultativo. Tanto (15a) quanto (15b) coordenam estruturas gramaticais que não são idênticas, respectivamente, os dois adjuntos de livro – terrível e que pode lançar – que correspondem a um adjetivo e a uma oração relativa, e as duas orações subordinadas da principal Não saí de casa – por estar chovendo e porque era ponto facultativo, uma reduzida e a outra desenvolvida. As estruturas de (15a’,a’’) e de (15b’,b’’) são sugeridas pelo autor como preferíveis às anteriores porque parecem, “do ponto de vista estilístico”, mais aceitáveis. Ele considera, no entanto, que (15a) e (15b) são “sintaticamente inatacáveis”, ou seja, assume que, pelo menos em alguns casos, a coordenação de categorias diferentes não é necessariamente malformada do ponto de vista da sintaxe. Corrobora, portanto, a afirmação de Chomsky (1957) sobre os “graus de gramaticalidade”. Garcia sugere ainda que, com a adoção do processo correlativo aditivo (não só... mas também), “o paralelismo seria ainda mais recomendável” (p. 29). É o caso da redação de (16a,b). (16) a. Não saí de casa não só porque estava chovendo mas também porque era ponto facultativo. b. Não saí de casa não só por estar chovendo mas também por ser ponto facultativo. O autor discute mais casos de ausência de paralelismo (ver Garcia 1986, seção 1.4.5 do capítulo 1), chegando à seguinte conclusão: Em suma: o que se deduz dessas observações a respeito de coordenação e paralelismo pode ser consubstanciado neste princípio (que Chomsky subscreveria): não se podem coordenar duas ou mais orações, ou termos delas, que não comportem constituintes do mesmo tipo, que não tenham a mesma estrutura interna e a mesma função gramatical. (p. 34 – grifos nossos) O trecho grifado é a ampliação do princípio de Chomsky (1957), que não contempla a restrição de “mesma estrutura interna” para 712 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 constituintes coordenados. Com base especialmente nas análises que fez em (15b), Garcia afirma que Chomsky “subscreveria” tal restrição. Não sabemos se Chomsky subscreveria ou não, mas concordamos com o fato de que sentenças como (17a) não parecem bem formadas. Nela coordenam-se dois SPs com estruturas internas diferentes: P + oração infinitiva e P + SN. Seguindo o princípio de Garcia, sugerimos que estruturas como (17a) sejam consideradas como “não recomendadas”, e estruturas como (17b) como bem formadas. (17) a. ?? Alguns não gostam de ler por pertencerem a classes sociais inferiores ou por falta de interesse. b. Alguns não gostam de ler por pertencerem a classes sociais inferiores ou por não terem interesse. Assim como Schachter (1977) e Garcia (1986), Radford (1988), em seu Transformational Grammar: a first course (1988), revisado na seção 1.4 a seguir, também nos traz princípios baseados nas indicações de Chomsky (1957): os princípios intitulados Ordinary Coordination (OC) e Shared Constituent Coordination (SCC), sendo que o último autoriza a coordenação de sequências que compartilham um constituinte, e não de constituintes de uma mesma sequência. 1.4 Radford (1988) Como mencionamos, Radford (1988) apresenta os seguintes princípios para a coordenação: (18) Apenas categorias idênticas podem ser coordenadas (Ordinary Coordination). (19) Coordenação de constituinte compartilhado só é possível quando a sequência compartilhada é um possível constituinte de cada uma das sequências coordenadas (Shared Constituent Coordination). Os princípios em (18) e (19) se encontram entre os processos utilizados pelo autor para testar se um conjunto de palavras em uma sentença é um constituinte – o que permite, também, identificar a categoria sintática de um constituinte. Esses dois princípios permitirão analisar estruturas coordenadas em que não haja paralelismo, como as em (20) e (21), utilizadas pelo autor. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 713 (20) *John rang up his mother and up his sister. [João ligou para sua mãe e (para) sua irmã] (21) *John wrote a letter and to Fred. [*João escreveu uma carta e para Fred] Em inglês, a agramaticalidade de (20) consiste no fato de que up his sister não é um constituinte, uma vez que up faz parte do verbo – ring up. A coordenação, portanto, não é permitida, já que só pode se dar entre constituintes. É importante salientar que, em ring up, a partícula up é parte de um Phrasal Verb (combinação de um verbo com uma preposição ou um advérbio) e não recebe tradução direta em português (por exemplo, não poderia ser traduzida literalmente por “para cima” ou expressão semelhante). No entanto, os verbos “telefonar” ou “ligar” – tradução, nesse contexto, para ring up – regem a preposição “para”. Nesse caso, embora similar à estrutura inglesa em (20) com up duplicado, a tradução de (20) com para duplicada não seria agramatical em português – precisamente porque, em português, para forma um SP com o NP que o segue, diferentemente de up em (20). Já quanto a (21), é agramatical tanto em inglês quanto em PB, porque a letter e to Fred, embora sejam dois constituintes, pertencem a categorias sintáticas diferentes. Em (22) a seguir, demonstramos, com frases do português, os princípios de (18) e (19). (22) a. Corruptos e políticos não diferem muito. b. João gosta de sua mãe e de sua esposa. c. Paulo ligou e João cantou para Maria. d. ??O João concordou, mas o Pedro discordou do que Maria disse. Em (22a,b), as frases são gramaticais porque a coordenação se dá entre dois SNs (22a) e entre dois SPs (22b), constituindo o que Radford chama de OC. Em (22c,d), encontramos exemplos para (19), ou seja, para a SCC de Radford: (22c) traz uma pequena violação da exigência de paralelismo semântico, mas as condições sintáticas (paralelismo de categorias e de funções sintáticas) são satisfeitas; (22d), no entanto, não satisfaz as condições de SCC. 714 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Como menciona Radford, o compartilhamento em (22c) é mais conhecido na literatura como Right Node Raising (p. 77). A nosso ver, (22c) é aceitável, embora não seja perfeita – possivelmente por razões semânticas, como sugerimos antes; é uma estrutura para a qual talvez seja preciso considerar os “graus de gramaticalidade” postulados por Chomsky (1957) para acomodar sua boa formação. Já em (22d), “concordar” e “discordar”, embora sejam “verbos paralelos” semanticamente, regem SPs com preposições diferentes: “concordar com” e “discordar de”, impedindo, em tese, que “do que Maria disse”, possa ser um constituinte compartilhado. Por outro lado, podemos dizer que, ainda que não corresponda exatamente à regência esperada pela sequência mais distante, um constituinte pode ser compartilhado entre duas sequências se os termos regentes nas sequências coordenadas forem “semanticamente paralelos”. Dessa forma, a sentença é considerada malformada do ponto de vista da tradição gramatical, ponto de vista que encontra respaldo nas condições formuladas por Radford. Este caso é semelhante ao apresentado por Chomsky (1957) – John enjoyed and my friend liked the play [João adorou e meu amigo gostou (d)a peça] – que, lembramos uma vez mais, ele utiliza para introduzir a ideia de “graus de gramaticalidade”. Radford (p. 155) levanta ainda uma questão que desestabiliza a indicação de que apenas constituintes de mesma categoria sintática podem ser coordenados. Exemplificamos em (23), com frases do PB, essa “desestabilização” da regra. (23) a. Neymar é um jogador profissional e extremamente rico. b. Temer está calado e com medo do impeachment. c. Marcelo é caridoso e de boa paz. A gramaticalidade de tais sentenças, segundo o autor, consiste no fato de que constituintes usados predicativamente (complementos de verbos como “ser”) carregam uma supercategoria, apresentada como [+PRD]. Esse é o caso de (23a,b,c) porque, respectivamente, [SN + SADJ], [SADJ + SP] e [SN + SP] são predicativos de “Neymar”, “Temer” e “Marcelo”, argumentos externos das sentenças. Destacamos também, no estudo de Radford (p.190), a discussão sobre a coordenação entre complementos e adjuntos. Com os exemplos em (24a,b) e (25), o autor demonstra a possibilidade, ou não, de tal coordenação. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 715 (24) a. a student [of Physics] and [of Chemistry] [um estudante de física e de química] b. a student [with a long hair] and [with short arms] [um estudante com cabelo longo e com braços curtos] Em (24a), “de física” e “de química” são complementos, porque há uma relação óbvia entre eles e “estudar” – estudar física e estudar química; já em (24b) “cabelos longos” e “braços curtos” não têm relação direta com “estudar” – “*estudar cabelo longo” e “*estudar braços curtos”. Tanto em (24a) quanto em (24b), as estruturas são representadas por SPs, mas não permitem a construção de (25). (25) *a student [of Physics] and [with long hair] [*um estudante de física e com longo cabelo] Para o autor, tal impedimento ocorre porque complementos e adjuntos estão em níveis diferentes na estrutura: complementos são anexados ao nível de N, isto é, são “irmãos” de N; adjuntos, ao nível de N’, sendo irmãos do N’ inferior e “tios” de N7. É o que podemos ver em (26), na adaptação do exemplo dado por Radford (1988, p. 192). (26) Radford utiliza sisters e aunt, mas modificamos o gênero dos substantivos para concordar com “complemento” e “adjunto”, que são palavras masculinas. 7 716 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Além disso, a diferença entre complementos e adjuntos também se estabelece a partir das “Restrições de Coocorrência” (RADFORD, 1988, p. 192), o que significa dizer que os complementos SP subcategorizam a preposição que os introduzirá, não permitindo a coordenação com um SP introduzido por outra preposição. Assim, em (26), encontramos restrições entre o Nome (student) e seu “irmão”, o complemento SP (of Physics), mas não entre student e seu “tio”, adjunto SP (with a long hair). Por isso, of Physics e with a long hair não podem ser coordenados. Dessa forma, complementos e adjuntos são semelhantes porque são ambos filhos de N-barra, mas diferem entre si porque complementos são “irmãos” de N e adjuntos são “irmãos” de N-barra. Em resumo, para Radford, complementos e adjuntos não podem ser coordenados entre si por razões estruturais (estão em combinações com o núcleo que são de níveis diferentes) e por consequências dessas razões estruturais (em termos de restrições de coocorrência). Outro aspecto trazido pelo autor (ver RADFORD, 1988, capítulo 7, seção 7.10) trata das relações temáticas. Ele argumenta que as funções temáticas nos permitem descobrir, entre alguns tipos de construções, semelhanças e diferenças que não são visíveis em sua estrutura. As restrições temáticas podem, por exemplo, ser utilizadas para evitar construções coordenadas malformadas, como a de (27). (27) ?? John and a hammer broke the window. A malformação de (27) pode ser reconhecida, segundo Radford, a partir da restrição levantada por Fillmore (1968), qual seja, somente constituintes com a mesma função temática podem ser coordenados, o que indica um caso da exigência de paralelismo semântico. No caso de (27), John é agente, e a hammer, instrumento; por isso, a gramaticalidade da sentença é questionável, mesmo que seu sujeito seja composto por dois SNs. Podemos, na verdade, ver a exigência de que os constituintes coordenados compartilhem o mesmo papel temático como uma manifestação particular da condição que exige paralelismo de função semântica, como o já estabelecido por Schachter (1977) em CCC. Osborne (2006), revisado na seção 1.5 abaixo, demonstra que também não constituintes podem ser coordenados. Seus estudos partem Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 717 da Gramática da Dependência (DG),8 e é por meio dela que construirá um princípio de paralelismo, o Parallelism Requirement (PR),9 introduzindo alguns requisitos básicos para a construção de estruturas paralelas. 1.5 Osborne (2006) Osborne discute em “Parallel Conjuncts” (2006) o que ele chama de “aspecto misterioso da coordenação”: quais termos de uma estrutura coordenada devem ser paralelos? Segundo ele, “às vezes parece que as sequências coordenadas devem ser completamente paralelas” (p. 64). Os dados utilizados para estudar esse aspecto vêm do inglês e do alemão, mas nos ateremos apenas aos do inglês. Suas indagações partem de exemplos como o de (28a,b). (28) a. Fred sent [a letter to Sue] and [a package to Jane] yesterday. Fred enviou [uma carta para Sue] e [um pacote para Jane] ontem. b. *Fred sent [a letter to Sue] and [a package] yesterday. *Fred enviou [uma carta para Sue] e [um pacote] ontem. Para tentar resolver o “mistério”, o autor apresenta o que ele chama de Parallelism Requirement, baseando suas explicações na DG, “Dependency Grammar”. A diferença fundamental entre a DG e uma gramática de estrutura de constituintes reside no fato de que a DG mantém uma relação “mãe-filho” estrita entre os nós da estrutura e nós terminais – cada nó na hierarquia corresponde a exatamente a um nó terminal, isto é, a uma palavra. Ou seja: há uma relação de identidade entre constituintes e seus núcleos. Nas estruturas de constituintes usuais, as árvores expressam relações de parte-todo, em que o número de nós da estrutura excede o número de palavras – ou seja, núcleos de constituintes são partes dele, e não identificados com eles. As árvores de (29) abaixo demonstram essa distinção. 8 9 Sigla em inglês para Dependency Grammar. Sigla em inglês para Parallelism Requirement. 718 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 (29) (29a) é a árvore que representa a estrutura da Constituent Grammar (CG), e (29b), a da DG. Fica, assim, visível a diferença entre as duas: em (29a), são cinco nós para três palavras e, em (29b), três nós para três palavras. Na verdade, Osborne demonstra que é possível formular as condições sobre a coordenação também nas gramáticas de estrutura de constituintes, mas defende que as DGs são mais “econômicas” – ponto que não será discutido aqui. Osborne define coordenação como um mecanismo que interrompe a produção de uma sequência para repetir a estrutura dessa sequência recém-produzida; quando a coordenação está terminada, a sequência original é retomada de onde parou. Não há na DG, portanto, os níveis de projeção que caracterizam a descrição de estruturas sintáticas na CG. Em (30), está o esquema com o qual o autor representa essa definição. (30) Fred sent [a letter to Sue] yesterday. and [a package to Jane] Fred enviou [uma carta para Sue] ontem. e [um pacote para Jane] A sequência original é interrompida depois de Sue e a estrutura que corresponde a a letter to Sue é reproduzida com outras palavras, isto é, com a package to Jane; então, a sequência original é restabelecida para que se complete. O que se observa em (30), no entanto, é que não se está coordenando um constituinte único, já que a letter e to Sue, assim como a package e to Jane são, respetivamente, um SN e um SP independentes (isto é o SP não é subordinado ao SN), o que demanda entender como Osborne explica este tipo de estrutura – já que nenhum dos autores anteriores trata desses casos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 719 Segundo o autor, as sequências de uma estrutura coordenada são organizadas hierarquicamente; então, em cada uma há pelo menos um nó (e não um e apenas um) que é supremo, que pode ser chamado de “raiz”. Essa “raiz” é definida, a partir de Hudson (1988, p. 323 apud OSBORNE, 2006, p. 75), como um nó em uma sequência que não é imediatamente dominado por qualquer outro nó nessa sequência e que domina todos os demais nós da sequência. (31) ilustra essa definição em uma árvore da DG com uma estrutura canônica, isto é, em que a sequência em questão corresponde a um único constituinte com outro subordinado. (31) As raízes aparecem em negrito. O nexo and fica em uma posição neutra entre as sequências coordenadas, as quais apresentam estrutura hierárquica. Nesse caso, bagels (X1) e muffins (X2), dois (núcleos de) SNs, são as “raízes” das respectivas sequências. Há casos, entretanto, em que pode haver mais de uma raiz, quando não apenas um nó domina todas as palavras da sequência, o que explica, segundo Osborne, a coordenação em (32). (32) 720 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Nesse caso, letter e to são as raízes da primeira sequência enquanto email e to são as da segunda, e cada raiz é conectada com sua paralela por uma linha pontilhada. A possibilidade de coordenação em (32) indica que, nos termos da DG, é preciso admitir a coordenação de sequências que possuam mais de uma raiz. A partir desses estudos e constatações, Osborne (2006) formula o conjunto de requisitos incorporados ao seu PR: Parallelism Requirement (PR): As sequências de uma coordenação devem ser paralelas em dois aspectos10: 1. Com respeito ao número de raízes em cada conjunto, e 2. Com respeito às funções sintáticas que as raízes suportam em relação ao nó núcleo que compartilham. (p. 77) O primeiro princípio determina que a agramaticalidade acontece se uma raiz aparece em uma sequência e não tem paralelo na outra sequência. Voltando à sentença de (28a,b), reproduzida em (33a,b), o autor demonstra essa ausência de paralelismo. (33) a. Fred sent [a letter to Sue] and [a package to Jane] yesterday. Fred enviou [uma carta para Sue] e [um pacote para Jane] ontem. b. *Fred sent [a letter to Sue] and [a package] yesterday. *Fred enviou [uma carta para Sue] e [um pacote] ontem As palavras em negrito correspondem às raízes dos termos coordenados, o que permite perceber a violação de PR em (33b), já que a segunda sequência não apresenta paralelo com uma das raízes da O PR original de Osborne considera apenas as situações que ele chama de “nongapping” (“sem supressão”) para excluir certas estruturas que, no inglês, não são aceitáveis, como no exemplo a seguir. (i) *Bill [bought] an old car and [fixed]. *Bill [comprou] um carro velho e [consertou]. (ii) Bill [bought] and [fixed] an old car. (i) não é uma sentença gramatical em inglês porque o elemento compartilhado deve aparecer depois das sequências coordenadas. Embora, pela norma padrão, a sentença correspondente também deva ser considerada mal formada, em PB falado tais estruturas são aceitas, em função dos chamados “objetos nulos”. Por razões de espaço, não trataremos dessas situações aqui. 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 721 primeira. Na representação de (34), fica claro que a raiz to da primeira sequência não tem correspondente na segunda. (34) *Frend sent [a letter [to Sue]] and [a package [Ø]] yesterday. Em (35a,b), ilustra-se o que determina o segundo princípio de PR, isto é, que as raízes das sequências coordenadas devem exercer as mesmas funções sintáticas. (35a) traz uma sentença em que os elementos em negrito exercem a mesma função sintática, embora, aparentemente, pareçam não exercer, e (35b), uma sentença que não apresenta funções sintáticas paralelas. (35) a. John is [conservative] and [a good Republican]. b. *John met [conservative] and [a good Republican]. (35a) é aceitável porque tanto conservative quanto a good Republican são predicativos (o verbo é to be), o que não viola o segundo princípio de PR. Já (35b) viola esse princípio porque a forma verbal met rege SN objeto direto, e a primeira sequência não apresenta um SN, mas um SAdj. (35a) é a mesma situação caracterizada por Radford (1988) como a supercategoria [+PRD], que exemplificamos com frases do PB, em (23), e reproduzimos em (36). (36) a. Neymar é um jogador profissional e extremamente rico. b. Temer está calado e com medo do impeachment. c. Marcelo é caridoso e de boa paz. Em resumo, Osborne (2006) reconhece que – contrariamente ao que parece sugerido pelos vários autores discutidos anteriormente – é possível coordenar sequências que não são constituintes, desde que tenham o mesmo número de “raízes” e desde que essas raízes sejam “paralelas” quanto à função gramatical. De qualquer forma, pode-se encontrar uma aproximação entre o PR de Osborne e a SSC do Radford (1988), já que ambos são formulados para dar conta de casos em que o que se coordena não é “um constituinte”. O PR de Osborne parece ter um caráter mais abrangente, porque captura as condições de coordenação em geral, seja de um ou de mais de um constituinte, enquanto a SSC de Radford é uma restrição separada da condição geral de coordenação (OC). Ou seja, Radford explica a coordenação por meio de dois princípios, OC e SSC, e Osborne por meio de um princípio apenas, o PR. 722 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 2 Ponto de (des)encontro Nesta seção, apresentaremos, por meio do Quadro 1, um resumo das ideias defendidas pelos autores discutidos na seção 1. No Quadro 2, traçaremos um paralelo entre os autores para demonstrar a ocorrência, ou não, em seus estudos, dos termos/expressões fundamentais para a compreensão dos processos de coordenação e paralelismo. Nosso objetivo é elaborar um princípio que aproxime as definições e que seja capaz de cobrir todos os casos discutidos acima; esse princípio servirá, então, para analisarmos os casos de problemas de coordenação que coletamos em textos acadêmicos de graduação. 2.1 Resumo das ideias QUADRO 1 – Resumo da revisão de bibliografia Autor Chomsky (1957) Schachter (1977) Garcia (1986) Coordenação & Paralelismo Apenas constituintes do mesmo tipo podem ser coordenados. Os constituintes de uma construção coordenada devem pertencer à mesma categoria sintática e ter a mesma função semântica, obedecendo à hierarquia do paralelismo semântico. Termos coordenados devem estar subordinados a um mesmo núcleo. Não se podem coordenar duas ou mais orações, ou termos delas, que não comportem constituintes do mesmo tipo, que não tenham a mesma estrutura interna e a mesma função gramatical. Radford (1988) 1. Apenas categorias idênticas podem ser coordenadas (Ordinary Coordination). 2. Coordenação de constituinte compartilhado só é possível onde a sequência compartilhada é um possível constituinte de cada um dos termos coordenados (Shared Constituent Coordination). Osborne (2006) 1. Parallelism Requirement (PR): As sequências de coordenação devem ser paralelas em dois aspectos: 1.1 Com respeito ao número de raízes em cada sequência, e 1.2 Com respeito às funções sintáticas que as raízes suportam em relação ao nó núcleo que compartilham. Fonte: A autora 723 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Em uma primeira visão dos conceitos apresentados no Quadro 1, podemos observar que dos cinco autores estudados, apenas Osborne (2006) não leva em consideração a noção de constituinte para descrever a coordenação de estruturas paralelas, o que acontece porque a teoria que sustenta sua tese é a DG. Ainda assim, o seu PR também traz a restrição de mesma função sintática para as sequências coordenadas. Schachter (1977), Garcia (1986) e Radford (1988) utilizam-se da CG, razão pela qual suas definições se assemelham e/ou se complementam. QUADRO 2 – Recorrência de termos/expressões fundamentais para a compreensão dos processos de coordenação e paralelismo na bibliografia utilizada Termos/expressões CHOM SCHA Agramaticalidade/ agramatical / semigramatical X X Constituinte X X RAD OSB X X X X X GAR Constituintes do mesmo tipo X X X Coordenação /estrutura coordenada / sequências coordenadas X X X X X Estruturas de constituintes/ estrutura sintática X X X X X X X Gramaticalidade X Hierarquia X X Mesma categoria sintática / categoria idêntica X X Mesma função sintática Paralelismo/estruturas paralela(s)/ termos paralelo(s) X Questionável/inaceitável/ inadequada X X X X X X X X X X Fonte: A autora O Quadro 2 nos permite perceber que todos os autores da bibliografia revisada contribuem para o estudo de casos de coordenação de estruturas paralelas. Chomsky (1957) é, sem dúvida nenhuma, fundamental para esse estudo porque, a partir dele, foi possível aprimorar a análise de coordenação de constituintes. E o trabalho de Osborne (2006) permite analisar e explicar os casos de coordenação de não constituintes. 724 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 2.2 Princípio de Coordenação e Paralelismo Nosso princípio tomará como base as restrições que apareceram nos autores estudados, reorganizadas de forma a contemplar os casos mais recorrentes coletados pela autora. Chamaremos a redação final desse princípio de Princípio de Paralelismo – Reformulado (PPR). Em (37a,b), trazemos a forma final do princípio a ser utilizado para análise de casos de ausência de paralelismo. (37) Princípio do Paralelismo – Reformulado (PPR) Só poderão ser coordenados a. constituintes que (i) pertençam à mesma categoria sintática; (ii) exerçam a mesma função semântica, obedecendo à hierarquia de paralelismo semântico; (iii) exerçam a mesma função sintática (iv) contemplem a supercategoria [+PRD] se forem de categorias diferentes; (v) tenham a mesma estrutura interna; e/ou (vi) permitam o compartilhamento de uma sequência, que deverá aparecer fora dos termos coordenados; ou b. sequências (i) que obedeçam ao paralelismo em relação ao número de raízes de cada sequência e (ii) em que as raízes que têm correspondência entre si exerçam a mesma função sintática em relação ao nó núcleo. Nas estruturas coordenadas de (38), (40) e (41), podemos pôr em julgamento a validade de (37). (38) ?? Somos obrigados [a um trabalho humilhante] e [a receber salários baixos.] Os termos coordenados a um trabalho humilhante e a receber salários baixos contemplam (37ai, aii), já que pertencem à mesma categoria sintática (SPs) e exercem a mesma função semântica (alvo). Não violam (37aiii) nem (37aiv) porque exercem a mesma função sintática e não constituem um caso de predicação; mas a sua estrutura interna não é paralela, pois coordena um SN e uma oração infinitiva, o que viola (37av). (37avi) também não se aplica a (38), pois não há compartilhamento de constituintes. E, como se trata de coordenação de constituintes, a restrição de (37b) é descartada. Dessa forma, o PPR Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 725 foi violado em pelo menos um dos seus aspectos, o que torna (38) uma construção questionável, ainda que possa ser ocasionalmente aceitável. Melhor seria tornar os constituintes coordenados paralelos, como em (39a,b), em que se coordenam, respectivamente, dois SNs e duas orações infinitivas, não violando, assim, o PPR. (39) a. Somos obrigados [a trabalho humilhante] e [a salários baixos.] b. Somos obrigados [a trabalhar de forma humilhante] e [a receber salários baixos.] (40a) apresenta um caso de compartilhamento de constituinte que não contempla (37avi), restrição que será observada em (40b). (40) a. ?? O João permaneceu, e o Paulo saiu, [da sala] sem trocarem uma palavra. b. O João entrou, e o Paulo saiu, [da sala] sem trocarem uma palavra. c. O João permaneceu na sala, e o Paulo saiu, sem trocarem uma palavra. Em (40a), da sala não pode ser um constituinte compartilhado por permaneceu e saiu porque cada verbo, neste contexto, rege uma preposição diferente: “permanecer em” e “sair de”. Além disso, não são semanticamente paralelos, uma vez que o primeiro não é um verbo de movimento e o segundo é. Já em (40b), apesar de entrar e sair também regerem preposições diferentes (em e de, respectivamente), são verbos semanticamente paralelos, porque ambos indicam movimento. A sentença soa natural para nós e possivelmente para os falantes de PB, mas pelos ditames tradicionais de exigência de paralelismo de regência, expressos pela SSC de Radford (1988), deveria ser considerada malformada na norma padrão escrita – aliás, como (22d) acima. A sentença de (40c), propõe uma redação em que o elemento compartilhado aparece na primeira oração, ficando subentendido na segunda, quando se pode supor que estará acompanhado da preposição adequada, a exigida por “sair”, correspondendo ao que afirmamos sobre (22d). A fim de acomodar os juízos que indicam a aceitabilidade de (22d), (40b) e (40c) na língua falada, poderíamos dizer que um constituinte pode ser compartilhado entre duas sequências se os termos 726 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 regentes nas sequências coordenadas forem “semanticamente paralelos”, no sentido que concordar/discordar, ou entrar/sair são “semanticamente paralelos”. Mas, reiteramos, as estruturas resultantes violam o ditame tradicional de paralelismo de regência. Em (41a,b), aplicamos (37b) a uma sequência coordenada entre elementos que não são constituintes. (41) a. João trouxe [uma fantasia para Maria] e [uma máscara para ele]. b. *João trouxe [uma fantasia para Maria] e [uma máscara]. (41a) não viola (37bi,ii) porque as raízes fantasia e máscara são paralelas e exercem a mesma função sintática (núcleos de SNs), assim como para (Maria), que se repete em para (ele) (núcleo de SPs), em relação à forma verbal trouxe. Já (41b) viola (37bi) porque não há uma estrutura paralela a para Maria na segunda sequência coordenada, ou seja, a raiz para não tem correspondente na segunda sequência. Parece-nos, pela análise de (38), (40a,b,c) e (41a,b), que o PPR pode ser eficiente para a identificação de estruturas coordenadas malformadas. Na seção 3, a seguir, procuraremos analisar as sequências coordenadas extraídas de textos acadêmicos de graduação. 3 Estudo de casos a partir de PPR Como, entre as sequências coletadas, há exemplos de coordenação por meio de conectivos (os mais variados), de correlativas e de enumerações com vírgula, optamos por delimitar os exemplos analisados neste trabalho, utilizando apenas as sequências coordenadas por “e” e “ou”. Iniciemos pelo seguinte caso: (42) ??Com a revolução industrial, [estabeleceu-se a corrida entre as grandes potências mundiais] e [incluindo os países emergentes] pela busca do poderio econômico. A sequência em (42) viola (37ai) porque as orações ligadas por “e” não pertencem à mesma categoria sintática: estabeleceu-se a corrida entre as grandes potências mundiais é uma oração finita e incluindo os países emergentes é uma gerundiva adjunta que exerce a função de SAdj. Isso indica que elas não exercem a mesma função sintática, violando Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 727 também (37aiii). A melhor redação para a sentença seria a eliminação do “e” já que, na verdade, não há coordenação entre as orações, mas subordinação. Observemos as paráfrases em (43a,b). (43) a. Com a revolução industrial, [estabeleceu-se a corrida entre as grandes potências mundiais, [incluindo os países emergentes], pela busca do poderio econômico]. b. Com a revolução industrial, [estabeleceu-se a corrida entre as grandes potências mundiais, [que incluem os países emergentes], pela busca do poderio econômico]. Em (43a), houve a eliminação do “e” e o acréscimo de vírgulas para isolar a gerundiva, que tem valor explicativo. Em (43b), mantiveramse as vírgulas e a gerundiva foi substituída pela relativa. Em ambos os casos, de qualquer forma, para efeitos de paralelismo, não há possibilidade da permanência do “e”. Em (44), temos um caso de coordenação por “ou” que também não obedece ao PPR. (44) ??O aluno de direito procura este curso [porque já tem contato com uma das áreas de atuação], [por ter família no ramo] ou [por iniciativa própria], acreditando ser sua vocação. As sequências destacadas em (44) levam-nos ao seguinte questionamento: a coordenação (I) é composta de uma enumeração concluída pelo “ou”, ou (II) se faz entre duas sequências apenas – entre a primeira e a última (e a segunda é modificadora da primeira) ou entre as duas últimas? Em qualquer das opções, no entanto, a violação do PPR permanece, já que, em (I), estariam coordenadas três sequências que não pertencem à mesma categoria sintática – 1 oração finita + 2 SPs; em (II), duas sequências da mesma categoria, mas com estrutura interna diferente. Em (45a,b), apresentamos as análises para a opção (II), isto é, para a coordenação de duas sequências apenas. (45) a. ??O aluno de direito procura este curso [porque já tem contato com uma das áreas de atuação, por ter família no ramo,] ou [por iniciativa própria], acreditando ser sua vocação. 728 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 b. ??O aluno de direito procura este curso porque já tem contato com uma das áreas de atuação, [por ter família no ramo] ou [por iniciativa própria], acreditando ser sua vocação. Em (45a), por ter família no ramo funciona como uma infinitiva explicativa da oração finita porque já tem contato com uma das áreas de atuação, fazendo parte, portanto, da primeira sequência coordenada (porque já tem contato com uma das áreas de atuação, por ter família no ramo). Neste caso, teríamos a violação de (37ai), porque a coordenação é feita entre uma oração finita e um SP, ou seja, entre constituintes que não pertencem à mesma categoria sintática. Na interpretação de (45b), indicamos que as sequências coordenadas são por ter família no ramo e por iniciativa própria, ambas pertencentes à mesma categoria sintática (SP), mas com estruturas internas diferentes, o que viola (37av): na primeira sequência, temos P + Infinitiva – por ter família no ramo – e, na segunda, P + SN – por iniciativa própria. A partir dessa análise, podemos sugerir as redações em (46a,b) como uma forma para tornar as sequências coordenadas de (44) mais bem estruturadas. Isso não significa, no entanto, que estas sejam as únicas versões possíveis. (46) a. O aluno de direito procura este curso [porque já tem contato com uma das áreas de atuação, por ter família no ramo,] ou [porque escolheu essa profissão], acreditando ser sua vocação. b. O aluno de direito procura este curso porque já tem contato com uma das áreas de atuação, [por ter família no ramo] ou [por querer ser um advogado], acreditando ser sua vocação. Em (47), temos novamente a violação de (37ai), desta vez com a coordenação de um SN com uma oração WH – embora exerçam a mesma função sintática, qual seja a de argumento interno de entender. (47) ??Dessa forma o aluno acaba não conhecendo a essência da sintaxe, que é entender [o funcionamento da língua] e [como utilizar palavras adequadas nas diversas situações da língua em uso]. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 729 É possível restabelecer o PPR se transformarmos o WH em SN. Tal modificação geraria a versão em (48). (48) Dessa forma o aluno acaba não conhecendo a essência da sintaxe, que é entender [o funcionamento da língua] e [a utilização das palavras adequadas nas diversas situações da língua em uso]. Em (49), não temos um caso de malformação, embora a sequência coordenada seja formada por um SP e um SAdj, o que determinaria a violação de (37ai). O que determina a gramaticalidade da sentença é que tanto o SAdj quanto o SP têm valor predicativo, configurando a supercategoria [+PRD] de Radford. Nas paráfrases de (50a,b,c), podemos verificar as estruturas que licenciam essa supercategoria. (49) As pessoas estão indo às ruas, [tensas], [com medo] e [assustadas de não conseguir voltar para casa.] (50) a. As pessoas estão (indo às ruas) tensas. b. As pessoas estão (indo às ruas) com medo. c. As pessoas estão (indo às ruas) assustadas de não conseguir voltar para casa. A sentença em (51) viola (37ai) e (37aii), já que coordena um SAdv e um SP que não obedecem à hierarquia do paralelismo semântico porque expressam, respectivamente, lugar e modo. Para corrigi-la, melhor seria eliminar a coordenação, mantendo o SP de modo como um elemento isolado do SAdv de lugar, conforme (52). (51) ?? [Já lá dentro] e [de coração partido], o moço mostrou as fotografias nos jazigos. (52) [Já lá dentro], [de coração partido], o moço mostrou as fotografias nos jazigos. Em (53), embora tenhamos a coordenação de dois SNs internos ao SP, o que contempla (37av), há a violação de (37aii) porque cada um deles exerce uma função semântica diferente: uma semana (tempo) e exaustivas buscas (modo). Neste caso, a eliminação da coordenação 730 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 permitiria a gramaticalidade da sentença. Assim, os dois SNs seriam transformados em apenas um, gerando a redação em (54). (53) ??Após [uma semana] e [exaustivas buscas], encontraram a vítima morta em um terreno na zona rural da cidade. (54) Após [uma semana de exaustivas buscas], encontraram a vítima morta em um terreno na zona rural da cidade. As sequências coordenadas em (55), apesar de aparentarem estar malformadas, não o estão, pelo PPR. Coordenam-se um SAdv – melhor – com um SN – um bom cidadão, que são categorias diferentes, violando, portanto, (37ai). No entanto, como em (49), essas sequências exercem a função sintática de predicativo, o que contempla (37aiv), ou seja, a supercategoria [+PRD].11 (55) A sociedade dá muito valor à ilusão de que quem tem mais é [melhor] e [um bom cidadão]. As sequências de forma justa e diariamente, em (56), pertencem a categorias sintáticas diferentes – um SP e um SAdv –, não obedecendo, portanto, a (37ai). Mas não apenas essa restrição do PPR é violada, também (37aii) não tem sua exigência atendida: o SAdv e o SP não exercem a mesma função semântica, uma vez que o primeiro indica modo, e o segundo indica tempo. Neste caso, o PPR é duplamente violado. (56) ??Procuro exercer [de forma justa] e [diariamente] o meu papel de cidadão. As paráfrases de (57) apresentam sugestões para a reorganização da sentença, todas com eliminação da coordenação. Embora (55) contemple a supercategoria [+PRD] descrita por Radford (1988) e, de certa forma, corroborada por Osborne (2006), seu grau de aceitabilidade parece-nos muito baixo, sugerindo que esses casos de coordenação de predicativos, para que sejam totalmente aceitos, devem também ser semanticamente paralelos. 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 731 (57) a. Procuro exercer [de forma justa], [diariamente], o meu papel de cidadão. b. Procuro exercer [diariamente], [de forma justa], o meu papel de cidadão. c. [Diariamente] procuro exercer o meu papel de cidadão [de forma justa]. (58) parece ser um caso de hipercorreção, já que, provavelmente, seu autor tentou coordenar adequadamente duas orações iniciadas por “que”. A análise da sentença nos mostra, na verdade, a coordenação de um SN e de uma oração finita, e não de duas orações finitas. O verbo “buscar” subcategoriza um complemento causativo, que pode ser um SN ou uma oração (finita ou infinitiva). Assim, seu complemento é composto por um SN – soluções que não prejudiquem ninguém – e por uma oração finita – que todos sejam felizes, caracterizando a violação de (37ai). A oração relativa que não prejudiquem ninguém, então, faz parte do SN encabeçado por soluções, construção sintática não observada na coordenação das sequências. (58) ??Sempre procuro buscar [soluções que não prejudiquem ninguém] e [que todos sejam felizes]. Apresentamos, em (59a,b), duas possíveis correções para (58), mais uma vez eliminando a coordenação entre as sequências que exercem funções sintáticas diferentes. (59) a. Sempre procuro buscar [soluções que não prejudiquem ninguém], [a fim de que todos sejam felizes]. b. Sempre procuro buscar, [com soluções que não prejudiquem ninguém], [que todos sejam felizes]. (60) traz a coordenação entre dois SNs, portanto entre sequências que pertencem à mesma categoria sintática, mas que, do ponto de vista da restrição semântica (37aii), são aparentemente incompatíveis, já que correto e intragável não são antônimos. São subcategorizados pelo SN discernimento, que pressupõe escolha entre opostos. É fato que intragável tem valor negativo, mas não necessariamente se opõe a correto. Em (61a,b), sugerimos duas formas para restaurar o paralelismo semântico. 732 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 (60) ??É preciso discernimento entre [o correto] e [o intragável]. (61) a. É preciso discernimento entre [o correto] e [o incorreto]. b. É preciso discernimento entre [o tragável] e [o intragável]. Possível e para todos, em (62), respectivamente um SAdj e um SP, modificadores do N felicidade, constituem categorias sintáticas diferentes, exercendo funções semânticas também diferentes – modificador modal e meta, respectivamente. Assim, não contemplam a restrição (37ai) nem a (37aii) do PPR. Em (63a,b), apresentamos sugestões para a reorganização da sentença. (62) ??A teoria do utilitarismo fala sobre a ação que contém a maior quantidade de felicidade [possível] e [para todos]. (63) a. A teoria do utilitarismo fala sobre a ação que contém a maior quantidade de felicidade [para todos]. b. A teoria do utilitarismo fala sobre a ação que contém a maior quantidade de felicidade possível [para todos]. Em (63a), como acreditamos que o SN a maior quantidade de felicidade já implica que essa felicidade seja possível, eliminamos o SAdj. Em (63b), mantivemos possível, mas o separamos do SP para todos. Nos dois casos, eliminamos a coordenação. (64) traz a coordenação de dois SPs, o que contempla (37ai); mas estes SPs não obedecem à hierarquia do paralelismo semântico (37aii). Embora nas escolas infantis e nos adolescentes pertençam à mesma categoria sintática e exerçam a mesma função sintática (Adjuntos adverbiais), o primeiro é um locativo e o segundo, alvo. Em (65a,b), sugerimos formas de resgatar o PPR. (64) ??O conceito de cidadania vem sendo aplicado [nas escolas infantis] e [nos adolescentes]. (65) a. O conceito de cidadania vem sendo aplicado [nas escolas infantis] e [nas de ensino básico]. b. O conceito de cidadania vem sendo aplicado [às crianças] e [aos adolescentes]. 733 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 Considerações finais Os 12 exemplos analisados na seção precedente a partir do PPR permitem-nos chegar a algumas conclusões sobre os casos recorrentes de ausência de paralelismo. No Quadro 3, apresentamos o resumo dessa análise. QUADRO 3 – Resumo do estudo de casos a partir do PPR CASOS PPR Só poderão ser coordenados 42 44 47 X X (ii) exerçam a mesma função semântica, obedecendo à hierarquia de paralelismo semântico; (iii) exerçam a mesma função sintática; (vi) permitam o compartilhamento de uma sequência, que deverá aparecer fora dos termos coordenados; b. sequências que (i) obedeçam ao paralelismo em relação ao número de raízes de cada sequência; (ii) e exerçam a mesma função sintática em relação ao nó núcleo. Fonte: A autora X (X) X X X (iv) contemplem a supercategoria [+PRD] se forem de categorias diferentes; (v) tenham a mesma estrutura interna; e/ou 51 53 55 56 58 60 62 64 ITENS VIOLADOS a. Constituintes que (i) pertençam à mesma categoria sintática; 49 X X X X X X X X X 734 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 O Quadro 3 demonstra que a maior parte dos casos de ausência de paralelismo de nossos exemplos se concentra na coordenação de constituintes que ora não pertencem à mesma categoria sintática, ora não exercem a mesma função semântica, não obedecendo à hierarquia de paralelismo semântico. Além disso, podemos observar que cinco sentenças, (42), (44), (51), (56) e (62), violam mais de um item do PPR: (42) – (ai, aiii); (44) – (ai, av); e (51), (56) e (62) – (ai, aii). Cada um dos demais casos, (47), (53), (58), (60) e (64) não contemplam uma das restrições do PPR apenas, respectivamente, (ai), (aii), (ai), (aii) e (aii), havendo uma predominância de sequências coordenadas não semanticamente paralelas – (53), (60) e (64). Em nossa análise, não apareceram casos de compartilhamento de constituinte por sequências coordenadas nem de coordenação de não constituintes. A supercategoria [+PRD] é contemplada pelas sentenças de (49) e (55), marcadas com (x) porque a violação de (ai) é apenas aparente. No entanto, como ressalvamos na nota 11, as sequências coordenadas de (55) apresentam um menor grau de aceitabilidade por não serem semanticamente paralelas. Por essa razão, optamos por assinalar também as situações de [+PRD] nos itens violados, ainda que não as indiquemos como totalmente inaceitáveis. Esse estudo de caso sugere algumas conclusões a respeito da ausência de paralelismo em sequências coordenadas e da utilização do PPR para detectá-la e para auxiliar na reorganização dos períodos em que elas se encontram. Em (65), apresentamos essas conclusões. (65) i. A maior causa da ausência de paralelismo nas sequências coordenadas analisadas parece ser o não reconhecimento das categorias que compõem a sintaxe da língua bem como da função semântica de cada uma. ii. Os casos analisados apontam para uma predominância da coordenação entre constituintes, e para uma baixa incidência da coordenação entre não constituintes. iii. Os predicativos coordenados devem também ser semanticamente paralelos. iv. O PPR se mostrou adequado para a detecção e resolução da ausência de paralelismo em sequências coordenadas. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 735 Tendo em vista que analisamos apenas algumas situações de coordenação malformada, num conjunto limitado de casos oriundos de um registro escrito formal (o texto escrito por acadêmicos de graduação), não podemos ainda tomar tais conclusões como definitivas. Este estudo serviu, no entanto, como ponto de partida para a descoberta/elaboração de estratégias mais eficazes para o trabalho com a variante culta do PB nas salas de aula de graduação. E, exatamente por ser o “ponto de partida”, não tratamos os nossos exemplos como agramaticais, mas como questionáveis, embora sempre tenhamos sugerido uma forma de reorganizá-los. Agradecimentos Este artigo é resultado dos meus estudos de pós-doutoramento sob a supervisão do Prof. Dr. Sérgio de Moura Menuzzi, cuja cooperação, por meio de precisas observações e sugestões teórico-metodológicas, foi fundamental. Quaisquer imprecisões ou erros ainda remanescentes são de minha inteira responsabilidade. Referências CHOMSKY, N. Aspects of the theory of syntax. Cambridge: MIT Press, 1965. CHOMSKY, N. Syntactic structures. The Hague: Mouton & Co, 1957. CHOMSKY, Noam. Aspectos da teoria da sintaxe. Tradução, introdução, notas e apêndices de José António Meireles e Eduardo Paiva Raposo. Coimbra: Arménio Amado – Editor, Sucessor, 1978. CHOMSKY, Noam. Estruturas sintáticas. Tradução e comentários de Gabriel de Ávila Othero e Sérgio de Moura Menuzzi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. (Coleção de Linguística) FILLMORE, C. J. The case for case. In: BACH, E.; HARMS. R. T. (Ed.). Universals in Linguistic Theory. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1968. p. 1-88. GARCIA, Othon. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. 736 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 701-736, abr./jun. 2019 HUDSON, R. Coordination and grammatical relations. Journal of Linguistics, 24, p. 303-342, 1988. DOI: https://doi.org/10.1017/ S0022226700011816 OSBORNE, Timothy. Parallel conjuncts. Studia Linguistica, [S.l.], v. 60, n. 1, p. 64-96, 2006. RADFORD, Andrew. Transformational grammar: a first course. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. DOI: https://doi. org/10.1017/CBO9780511840425 SCHACHTER, Paul. Constraints on coördination. Language, [S.l.], v. 53, n. 1 p. 86-103, Mar. 1977. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 Da posição do verbo temático em cinco variedades ibéricas On the position of the thematic verb in five Iberian varieties Aquiles Tescari Neto Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil FAPESP tescari@iel.unicamp.br Resumo: O trabalho investiga a subida do verbo em duas línguas ibéricas: o português – em suas variedades brasileira e moçambicana – e o espanhol – em suas variedades colombiana, venezuelana e o peruana. Recorre à proposta cartográfica de Cinque (1999) para determinar, em cada variedade, a posição de quatro formas do verbo temático (o infinitivo, o gerúndio, o particípio passado ativo e o verbo finito) entre os oito advérbios mais baixos da Hierarquia Universal. Os dados foram obtidos por meio de julgamentos de gramaticalidade de sentenças envolvendo quatro padrões de ordenação da forma verbal mencionada relativamente a um dos oito advérbios mais baixos e o objeto do verbo. Há variação intralinguística (relativamente à altura a que cada forma verbal sobe, na hierarquia de Cinque) e interlinguística (se compararmos as diferentes alturas a que cada forma verbal sobe nas diferentes línguas consideradas). O exame dos dados favorece um abandono do movimento nuclear (para a sintaxe da subida do verbo), em proveito tão somente da assunção de movimentos sintagmáticos. Palavras-chave: movimento do verbo; Cartografia Sintática; hierarquia de Cinque; línguas ibéricas. Abstract: This work investigates the issue of verb raising in two Iberian languages (Portuguese and Spanish), by taking into account data from Brazilian and Mozambican Portuguese, and Colombian, Venezuelan and Peruvian Spanish. To achieve that goal, it turns to the cartographic analysis of Cinque (1999) to determine, in those languages, the position of four distinct forms of the thematic verb (the infinitive, the gerund, the active past participle and the finite verb) among the eight lowest adverbs of the Universal Hierarchy. The data were collected on the basis of grammaticality judgment tasks. The eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.737-770 738 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 corpus is composed of sentences involving four order patterns with the combination of one adverb, the object and the verb. There is intralinguistic variation (relative to the height where each verb form goes within the Cinque hierarchy) and interlinguistic (if we compare the different heights where each verb form stops in each language). An examination of the data favors an analysis of Verb raising in terms of phrasal movements, with an abandonment of head movements. Keywords: verb raising; Syntactic Cartography; Cinque hierarchy; Iberian languages. Recebido em 13 de setembro de 2018 Aceito em 26 de janeiro de 2019 1 Introdução Na tradição gerativista pollockiana, os advérbios têm sido considerados como bons diagnósticos para movimentos, sobretudo para o movimento do verbo. Uma vez que são tomados como adjuntos de projeções do verbo (VP, TP, AgrSP, etc.), podem detectar se o verbo deixou ou não o domínio temático e se moveu para alguma posição no domínio da flexão. Os dados em (1) ilustram o comportamento do francês e do inglês em relação a esse fenômeno: o movimento do verbo temático finito é obrigatório somente em francês, língua em que a ausência de movimento do verbo finito para a flexão gera agramaticalidade (cf. 1b’); o verbo (doravante V) deve se mover para a flexão em francês, ultrapassando o advérbio souvent ‘frequentemente’ (um advérbio de VP em POLLOCK, 1989), conforme (1a’). O inglês apresenta o comportamento oposto: o V não pode se mover – compare a agramaticalidade de (1a) com a gramaticalidade de (1b), que sugere que o V não deixou o domínio temático. Os dados de (1) são de Pollock (1989, p. 367). (1) a. *John kisses often Mary John beija frequentemente Mary ‘John beija frequentemente Mary’ embrasse souvent Marie Jean abraça frequentemente Marie ‘Jean abraça frequentemente Marie’ a’. Jean (inglês) (francês) 739 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 b. John John b’. *Jean Jean often kisses Mary frequentemente beija Mary souvent frequentemente embrasse Marie abraça Marie (inglês) (francês) As representações dessas sentenças para as sentenças gramaticais do francês (1a’) e do inglês (1b) são dadas respectivamente nas figuras 1 e 2 a seguir. Repare que o advérbio se adjunge a VP, podendo ser tomado, portanto, como diagnóstico da subida do V: no francês, língua em que há movimento obrigatório do V finito (POLLOCK, 1989), a sentença é gramatical (cf. fig. 1); no inglês, língua em que o V finito não sobe na sintaxe visível (POLLOCK, 1989), o V tem de permanecer na posição em que foi gerado (cf. fig. 2) para que a ocorrência fique gramatical. FIGURA 1 – Da derivação de (1a’) Fonte: Elaboração própria 740 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 FIGURA 2 – Da derivação de (1b) Fonte: Elaboração própria No tocante, portanto, à subida do V temático finito, o inglês tem o comportamento oposto ao do francês: o V não pode se mover. Deve permanecer, portanto, in situ (conforme sugerido pela representação da fig. 2). Se o V não sobe em francês (1b’), diferentemente do inglês (1b), temos agramaticalidade. (1a), sentença agramatical no inglês, seria mal formada justamente pelo fato de ter derivação análoga à de (1a’), com movimento do V por sobre often. Pollock considerou não só a subida da forma finita do V nessas duas variedades. O movimento da forma infinitiva do V também foi considerado para efeito de comparação entre o inglês e o francês. A julgar pelos dados do inglês em (2a,b), o movimento do infinitivo por sobre o advérbio dá lugar à má formação da sentença (cf. (2b)). Em francês, o movimento do verbo lexical no infinitivo não é necessário: em (2a’), o V não subiu por sobre souvent e a sentença mesmo assim é gramatical (diferentemente do que se observou com o V na forma finita (cf. (1)); em (2b’), o movimento de paraître ‘parecer’ sugere que, tendo em vista (2a’), a subida do V temático no infinitivo é opcional nessa língua. As sentenças são de Pollock (1989) – páginas indicadas ao lado delas, entre parênteses: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 (2) a. To often look Por frequente 741 sad during one’s honeymoon is rare. (p. 381) parecer triste durante sua lua-de-mel é raro ‘Frequentemente parecer triste durante a lua de mel é raro’ a’. Souvent paraître triste pendant son voyage de noce, c’est rare Frequentemente parecer triste durante sua viagem de núpcias, é raro ‘Parecer frequentemente triste durante a sua lua de mel é raro’ (p. 377) b. *To look often sad during one’s honeymoon is rare. (p. 382) ‘Parecer frequentemente triste durante sua lua de mel é raro’ b’. Paraître souvent triste pendant son voyage de noce, c’est rare (p. 378) ‘Parecer frequentemente triste durante sua lua de mel é raro’ Do trabalho de Pollock, tiram-se duas conclusões bastante importantes ao estudo da sintaxe da oração: primeiramente, a subida do V revela variação intralinguística, i.e., interna a um mesmo sistema. Assim, diferentes formas verbais sobem a alturas diferentes do domínio flexional: o V lexical finito em francês sobe obrigatoriamente (1a’,b’); o V lexical no infinitivo, não (2a’,b’) – o movimento é apenas opcional, nesse caso. Temos aí um caso de variação na sintaxe do francês. Em segundo lugar, a subida de diferentes formas do V lexical pode também revelar variação interlinguística: enquanto o movimento do V lexical por sobre um advérbio de VP, em inglês, dá lugar sempre à agramaticalidade (1a, 2b), em francês, por outro lado, a ausência do movimento resulta em agramaticalidade apenas no caso do V finito (1a’,b’). No infinitivo, o movimento, em francês, é apenas opcional. Pollock (1989) foi revisitado em muitos trabalhos que também se tornaram clássicos em sintaxe gerativa, dentre os quais pode-se citar, Belletti (1990), Chomsky (1991) e Cinque (1999). Este último, p.ex., acolheu a ideia de Pollock e cindiu o IP ainda mais – dessa vez em cerca de 40 projeções funcionais, cada uma com um importe semântico distintivo, tendo um advérbio de classe semântica distinta por especificador. Esses advérbios estariam rigidamente ordenados na estrutura da oração. Na esteira, então, de Pollock (1989) e Cinque (1999), é possível tomar os advérbios da hierarquia universal para detectar as diferentes alturas a que diferentes formas verbais podem chegar em uma mesma língua e em línguas distintas. Isso foi apresentado em Cinque (1999) para algumas línguas românicas. Em nosso trabalho, o objetivo é estender 742 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 essa investigação – e sua metodologia – a duas línguas, o português e o espanhol, representadas respectivamente pelas seguintes variedades: português brasileiro (PB) e português moçambicano (PM); espanhol colombiano (EC), espanhol peruano (EP) e espanhol venezuelano (EV)). Estudaremos o movimento de quatro formas verbais (V finito, infinitivo, gerúndio e particípio passado ativo) em relação aos oito advérbios mais baixos da hierarquia universal. O trabalho se organiza da seguinte forma: na seção 2, apresentamos as bases teóricas que fundamentam o trabalho; na seção 3, a metodologia de investigação. A seção 4 propõe um mergulho nos dados das cinco línguas ibéricas mencionadas no parágrafo anterior, considerando cada uma das quatro formas verbais aqui estudadas, consideradas em subseções específicas. A seção 5 avança a ideia de que se pode recorrer tão somente a movimentos sintagmáticos na análise do movimento do verbo. As conclusões são sintetizadas na seção 6, à qual se seguem as referências. 2 Fundamentação teórica Cinque (1999) mostrou, com base na ordenação de advérbios das mais diferentes classes semânticas e com base na ordenação de núcleos funcionais, que os advérbios, na verdade, os sintagmas adverbiais (AdvPs) são os especificadores únicos das cerca de quarenta classes de núcleos funcionais do Middlefield (campo do IP). Para chegar à sua hierarquia dos advérbios e núcleos funcionais, Cinque tomou dois advérbios de cada vez (nas duas ordens possíveis), determinando a ordenação das cerca de quarenta classes de AdvPs. Fez o mesmo para os núcleos funcionais. Os exemplos (3) e (4) ilustram os testes de precedência empregados por Cinque, para os advérbios clearly e probably (‘claramente’ e ‘provavelmente’, respectivamente), em inglês, que correspondem às posições de especificador da projeção evidencial (clearly) e epistêmica (probably). Essa metodologia se tornou clássica em Cartografia Sintática, uma vez que permite ao estudioso determinar com precisão a sequência dos núcleos funcionais em determinada língua. (3) Clearly John probably will quickly learn French perfectly Claramente John provavelmente vai rapidamente aprender francês perfeitamente Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 743 (4) *Probably John clearly will quickly learn French perfectly (BOWERS, 1993, p. 607, apud CINQUE, 1999, p. 33) Apenas uma ordem é possível se os advérbios clearly e probably são combinados, i.e., a ordem que, segundo Cinque, é a hierárquica, anterior a qualquer experiência linguística, por ser um construto da Gramática Universal (GU). Com essa metodologia, Cinque combina os dados dos testes de precedência (e transitividade) para os advérbios com os mesmos dados para os núcleos funcionais, chegando à conclusão de que os advérbios são os especificadores únicos de núcleos funcionais distintos de IP, conforme a hierarquia em (5). (5) A hierarquia Universal de IP francamente Modo Ato de fala > [surpreendentemente Modo Mirativo > [felizmente ModoAvaliativo > [evidentemente ModoEvidencial > [provavelmente ModalidadeEpistêmica > [uma vez TPassado > [então TFuturo > [talvez ModoIrrealis > [necessariamente ModalidadeNecessidade > [possivelmente ModalidadePossibilidade > [normalmente AspHabitual > [finalmente AspTardivo > [tendencialmente AspPredisposicional > [novamente AspRepetitivo(I) > [frequentemente AspFrequentativo(I) > [de/com gosto ModalidadeVolitiva > [rapidamente AspAcelerativo(I) > [já TAnterior > [não … mais AspTerminativo > [ainda AspContinuativo > [sempre AspContínuo > [apenas AspRetrospectivo > [(dentro) em breve AspAproximativo > [brevemente AspDurativo > [(?) AspGenérico/Progressivo [quase AspProspectivo > [repentinamente AspIncoativo(I) > [obrigatoriamente ModoObrigação > [à toa AspFrustrativo > [(?) AspConativo > [completamente AspSingCompletivo(I) > [tudo AspPlurCompletivo > [bem Voz > [cedo AspAcelerativo(II) > [do nada AspIncoativo(II) > [de novo AspRepetitivo(II) > [frequentemente AspFrequentativo(II) > … (adaptado, a partir de CINQUE, 1999, p. 106, para o português, com base nos testes de SANTANA, 2005, 2007 e TOSQUI; LONGO, 2003) Uma vez que, segundo Cinque, os advérbios de (5) estão rigidamente ordenados acima de VP, podem ser tomados não só como diagnósticos para a subida do V como também como indicadores da altura aonde diferentes formas verbais chegam em diferentes línguas, no campo do IP. É justamente isso que será investigado neste trabalho. Estudaremos, como já dito na seção anterior, a posição do V finito, do infinitivo, do particípio passado ativo e do gerúndio em relação a oito classes de advérbios (a saber, os oito mais baixos da hierarquia em 744 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 (5)) nas cinco variedades ibéricas já mencionadas. Argumentaremos em favor de uma análise da subida do verbo puramente em termos de movimento sintagmático, não nuclear. Para atender aos objetivos do trabalho, recorremos à vertente Cartográfica da Teoria de Princípios e Parâmetros (RIZZI, 1997; CINQUE, 1999; CINQUE; RIZZI, 2010; RIZZI; CINQUE, 2016). Está na base da epistemologia cartográfica, como diretriz metodológica, o Princípio do ‘One Feature, One Head’ (KAYNE, 2005; CINQUE; RIZZI, 2010), segundo o qual, para cada traço do sistema conceitual, uma categoria é projetada na sintaxe. Esse princípio está intimamente ligado, p.ex., à ideia das hierarquias cartográficas. Tomemos, p.ex., a hierarquia universal de Cinque (1999), apresentada em (5): cada advérbio seria dotado de um traço específico (traço esse compartilhado pelo núcleo à direita, na mesma projeção), o que faz sentido se pensarmos que, em última instância, a hierarquia em (5) nada mais é do que uma organização das categorias (traços), categorias essas rigidamente ordenadas numa estrutura de base. É tarefa de toda investigação cartográfica, ao fazer sintaxe comparativa, chegar a essa estrutura de base que, de acordo com a Cartografia Sintática, seria compartilhada por todas as línguas (CINQUE; RIZZI, 2010; RIZZI; CINQUE, 2016). Em línguas flexionais (como as línguas em estudo aqui), advérbios baixos poderão determinar não só se o V sobe ou não a determinada posição no domínio da flexão como também a altura a que determinada forma verbal deve se mover obrigatoriamente. A assunção de domínios mais articulados pela cartografia (CP (RIZZI, 1997, 2004), IP (CINQUE, 1999, 2006), vP (BELLETTI, 2004)) traz algumas questões bastante interessantes à teoria do movimento do verbo, dentre elas: 1) quais classes de advérbios podem ser tomadas como diagnósticos para a subida do V? 2) quais as diferentes alturas para onde formas diferentes do V lexical vão numa dada língua e em línguas distintas? 3) que movimentos dão lugar às ordens atestadas? Essas questões estão na base da presente investigação. Para além de oferecer explicações a cada uma delas, esperamos, ao final, oferecer explicações a duas importantes questões que se colocam para toda teoria Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 745 do movimento do verbo: (i) haveria ligação entre riqueza de concordância e movimento do verbo?; (ii) o movimento nuclear poderia ser dissolvido em movimento sintagmático? Para responder essas questões, faz-se necessário, antes de apresentar os dados, descrever a metodologia utilizada em nossa investigação. 3 Metodologia Recorrendo à abordagem cartográfica para o estudo do movimento do V nas variedades ibéricas investigadas, o trabalho assume, no tocante à arquitetura da projeção estendida do V, sobretudo as diretrizes dos trabalhos de Cinque (1999, 2006, 2013). Para Cinque (2006, 2013), nada entra na derivação à direita do V. O VP é ‘juntado’ (‘Merged’) com um núcleo em cujo especificador será inserido um dos argumentos do V, seguindo a hierarquia temática apresentada em (6). Desse modo, Cinque (2006, cap. 6) considera que os argumentos do V entram na derivação (naturalmente em posições de especificadores) acima de VP: (6) DPtime > DPlocation > ... > DPinstrument >... > DPmanner > ... > DPagent > DPgoal > DPtheme > V° (Cinque, 2013, p. 10) No espírito da hierarquia em (6), o argumento interno de um V transitivo direto não é juntado/combinado (‘Merged’) diretamente com ele à sua direita (como em LARSON, 1988); o V sozinho projeta o VP (sem especificador ou complemento)1,2 e o VP se combina com um núcleo em cujo especificador, seguindo a hierarquia em (6), teremos o Assim seria nos outros domínios estendidos: na projeção estendida do N, p.ex., o N se juntaria (por ‘Merge’) com um núcleo em cujo especificador entraria a categoria funcional mais baixa da projeção estendida do N (em CINQUE, 2005), o AP, segundo a ordem: Dem > Num > A > N). Categorias lexicais seriam, na abordagem cartográfica de Cinque, a força motriz dos movimentos sintáticos. Faz bastante sentido, então, que a categoria lexical seja o primeiro constituinte a entrar na derivação, projetando camadas de constituintes funcionais (a sequência-f) sempre acima. 2 As hierarquias em (5) e (6) fazem parte, na verdade, de uma única hierarquia de constituintes frásicos. Assim, devem ser lidas da seguinte maneira: à esquerda do V, projetam-se, em posições de especificadores, as categorias da hierarquia em (6). Acima desses, projeta-se a hierarquia dos advérbios (5). 1 746 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 DP-tema (se presente). Para cada elemento dessa hierarquia – categorias sintagmáticas, que entrariam a derivação em posições de especificadores únicos (seguindo a antissimetria de Kayne (1994), que limita um único especificador para cada núcleo) – corresponderia uma posição de núcleo. Cada vez que um argumento é inserido no especificador, novo núcleo é criado, acima, para receber o VP ou porções maiores (resultantes de movimento) (cf. CINQUE, 2006; TESCARI NETO, 2013). Uma vez que o complemento de um V transitivo é, em Cinque, inserido acima de VP, as possibilidades matemáticas/lógicas de ordenação do V não se reduzem apenas a duas (AdvP-V (sem movimento) e V-AdvP (com movimento)). Se considerarmos o objeto, que, a julgar por (6), precede o V na hierarquia – o que deve ser lido, na história derivacional, como devendo entrar na derivação em um Spec acima do VP –, teremos então 3! de possibilidades lógicas de ordenação dessas três categorias, ou seja, seis possíveis combinações dos elementos AdvP, Objeto e V, os quais, tendo em vista a hierarquia em (6), teriam, como “estrutura de base”, (7a). Seguem-se, em (7b-e) as outras cinco possibilidades lógicas de ordenação: (7) a. AdvP – objeto – V b. AdvP – V – objeto c. V – AdvP – objeto d. V – objeto – AdvP e. objeto – V – AdvP f. objeto – AdvP – V Primeiramente, a propósito de (7a-f), é importante lembrar que, no presente estudo, investigamos a posição de quatro formas do V lexical – a saber, a forma finita, o infinitivo, o gerúndio e o particípio passado ativo – relativamente aos AdvPs da hierarquia em (5), apresentada na seção 1. Portanto, conforme veremos mais adiante, V deverá ser substituído, em (7), por cada uma dessas quatro formas verbais. Em segundo lugar, conforme já dito, “AdvP”, no esquema em (7), é para ser entendido como cada um dos oito advérbios mais baixos da hierarquia de Cinque, cujo estrato é reproduzido em (8) – com os representantes de cada classe, respectivamente em português e espanhol. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 747 (8) … > … > obrigatoriamente/obligatoriamente (RootModality) > em vão/en vano(Frustative) > completamente(SgCompletive) > tudo/todo(PlCompletive) > bem/ bien(Manner) > cedo/temprano(CelerativeII) > do nada/de la nada(InceptiveII) > de novo/de nuevo(RepetitiveII) > com frequência/con frecuencia(FrequentativeII) > VP (adaptado de CINQUE, 1999, p. 106, por TOSQUI; LONGO, 2003, SANTANA, 2005, 2007 e TESCARI NETO, 2013 para o PB; para o espanhol, baseia-se em GARCÍA CARABALLO, 2018 e FORERO PATAQUIVA, 2018). A propósito ainda de (7), investigamos, com exceção de (7a) – por ser a ordem que, no modelo de Cinque, se considera como sendo a ordem de base –, apenas a ordem VO, excluindo, portanto, as ordens (7e,f). Desse modo, para cada um dos oito advérbios de (8), testamos as ordens (7a-d). O PB e PM são línguas VO, o que descartaria, já de início, a testagem de (7e,f). Essa exclusão se justificaria também para as variedades hispânicas aqui investigadas, sobretudo se considerarmos que (7f), seguindo o algoritmo de derivação avançado em Cinque (2006) e estendido aqui também aos argumentos de V, não seria derivável: não há como obtê-la por movimento de VP. (7e) poderia ser derivada pelo movimento do VP carregando o objeto no modo pictures-of-whom de pied-piping (i.e., com movimento do bloco [FP [Spec Obj [VP V]]] a um especificador acima do AdvP). Para oferecer, portanto, um tratamento uniforme, ao português e ao espanhol, deixamos a testagem de (7e), em espanhol, para um outro momento – muito embora a agramaticalidade das ocorrências que seguem o padrão (7a), mesmo em espanhol, nos exima da testagem dessas duas ordens: essas línguas não parecem ser OV. (7a) corresponderia a uma ordenação em que o VP não teria se movido sequer por sobre o objeto. Por se tratar, no modelo de Cinque (2006), de ser a “ordem de Merge/de base” dos elementos (V, Objeto e AdvP), essa será a única de ordem OV investigada. (7b) corresponderia uma ordenação segundo a qual o V teria se movido por sobre o objeto mas não por sobre (determinado) AdvP. Já (7c) ilustraria a subida do V(P) por sobre o objeto e por sobre (determinado) AdvP. A derivação de (7d) envolveria movimento do VP por sobre o objeto com pied-piping deste por sobre o AdvP no modo whose-pictures de pied-piping, i.e., com inversão da ordem (cf. fig. 3). 748 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 FIGURA 3 – Movimento do VP+Objeto por sobre o AdvP Fonte: Elaboração própria Para os advérbios baixos e mediais, (7d) representou a ordenação preferida em grande parte das ocorrências testadas, conforme veremos na próxima seção, independentemente da variedade e do tipo de forma verbal. Este quadro parece sugerir que o movimento do V, nas cinco variedades em estudo, é preferivelmente sintagmático, o que, de certo modo, conforme veremos, levaria o analista a de fato abrir mão do movimento nuclear, pelo menos em termos de movimento do V. Para cada variedade estudada, os dados foram coletados por meio da elicitação de julgamentos de gramaticalidade (um falante por variedade). Os dados do EC e do EV sobre o movimento do verbo finito e particípio passado ativo provêm, respectivamente, dos trabalhos de Forero Pataquiva (2018) e García Caraballo (2018). Para o movimento do gerúndio em EV, provêm de Tescari Neto e García Caraballo (2018). Os dados do PM foram obtidos junto a uma quantidade maior de informantes (20 para cada sentença) em trabalho de campo, reportados em Tescari Neto (2018). Para o estudo do movimento do verbo no PM, consideramos uma escala likert de 1 a 5, em que 1 significa “muito mal formada” e 5 “muito bem formada”. Consideramos, então, a média dos julgamentos reportados para cada ocorrência, sendo que os valores entre 1 e 2,3 foram considerados “*”. De 2,3 a 3,3, marginais; de 3,3 a 5, gramaticais. Os dados do PB são do próprio autor do trabalho, salvos os casos onde indicada a fonte diversa. Os dados do EP foram coletados pelo autor, junto a um informante de Lima. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 749 4 O movimento do verbo em línguas ibéricas fora da Ibéria Uma vez que estudamos aqui a subida de quatro formas verbais por entre cada um dos oito advérbios mais baixos da hierarquia de Cinque em variedades de duas línguas ibéricas, teremos de optar pelas ocorrências que serão efetivamente apresentadas, uma vez que não haveria espaço para a apresentação de 640 dados (4 formas verbais x 4 ordenações testadas x 8 advérbios x 5 variedades). Desse modo, apresentaremos apenas alguns exemplos ilustrativos (de sentenças) para cada padrão de ordenação e forma verbal, sintetizando os resultados (os julgamentos de gramaticalidade reportados – que substancialmente são, na verdade, os dados de língua-I que realmente interessam a uma investigação gerativista, por permitirem que o analista chegue, através deles, a um desenho aproximado da GU –) em tabelas. A seção será dividida em quatro subseções: uma para cada forma verbal. Os dados serão apresentados por advérbio tendo em vista os padrões de ordenação em (7a-d), da seção anterior. 4.1 Da subida do verbo temático finito Todas as variedades investigadas apresentam movimento do V, independentemente da forma verbal considerada. Mesmo considerando tão somente os oito advérbios mais baixos da hierarquia de Cinque, é possível já perscrutar um pouco de variação, entre as cinco variedades aqui em estudo, relativamente ao movimento obrigatório do verbo por entre as posições do Middlefield. Antes de apresentarmos o quadro com os julgamentos de gramaticalidade para o movimento do verbo temático finito, apresentamos algumas ocorrências que ilustram esses casos. É importante lembrar que estamos testando as ocorrências que entram no padrão (7a-d), da seção 3. Nos testes, substituímos AdvP em (a-d) de (7) por cada um dos oito advérbios da hierarquia de Cinque, tomados um por vez. Ilustramos, a subida do V finito a seguir, com dados do PB em (9) e (10), que ilustram a posição do V relativamente aos dois advérbios mais baixos da hierarquia, com frequência (9) e de novo (10).3 Conforme apontou um dos pareceristas, os dados de (9) e (10) apresentam tempo verbal distinto, o que poderia interferir nos juízos de gramaticalidade das sentenças em questão. Caroba Lopes (2018), Padula (2018) e Pina (2018) apontam haver uma 3 750 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 (9) a. *O José com frequência a casa limpa b. */?O José com frequência limpa a casa c. O José limpa com frequência a casa d. O José limpa a casa com frequência (10) a. *O José de novo a casa limpou b. */?O José de novo limpou a casa c. O José limpou de novo a casa d. O José limpou a casa de novo De fato, conforme esperado, não sendo OV uma ordem do PB, a ordem advérbio-objeto-V dá lugar à agramaticalidade (cf. (9a, 10a)). (9b,10b) ilustram a subida do V por sobre o objeto, gerado acima de VP – conforme visto na seção anterior –, sem movimento do VP por sobre o advérbio. Essa sentença para alguns falantes é percebida como marginal ou até mesmo agramatical. É importante, contudo, lembrar que o advérbio frequentativo (com frequência/frequentemente) e o advérbio repetitivo (de novo/novamente) têm, cada um, duas posições de Merge na hierarquia de Cinque, uma alta, com escopo sobre a proposição, e uma baixa, com escopo sobre o VP. A aceitabilidade de (b), portanto, pode indicar que se está considerando não a posição baixa de Merge desses advérbios, mas a posição alta, posição essa que não precisa ser ultrapassada pelo V temático finito: os resultados apresentados no quadro 1, a seguir, sugerem que o movimento do V em PB é obrigatório à esquerda de pequena diferença nos julgamentos de gramaticalidade envolvendo a posição do verbo finito no presente e no pretérito perfeito, se considerarmos os advérbios baixos. Assim, a ordem de novo-V-objeto é considerada (por esses autores) agramatical, quando o V está no presente, e marginal, quando o V está no pretérito perfeito. O raciocínio do parecerista é correto se pensarmos na altura do movimento obrigatório do verbo temático finito em seus diferentes tempos: o V deve subir mais, em PB, no presente (necessariamente à esquerda de completamente); no passado, sobe à esquerda de tudo, i.e., a uma posição c-comandada por completamente; no futuro, sobe à esquerda de bem, posição c-comandada por completamente e tudo (TESCARI NETO, CAROBA LOPES; PADULA, 2018). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 751 completamente, advérbio posicionado, na hierarquia de Cinque (1999), entre o frequentativo/repetitivo altos e o repetitivo/frequentativo baixos.4,5 (9c,d) e (10c,d) são gramaticais, muito embora (9d,10d) sejam as ocorrências preferidas pelos informantes. Trata-se de um fato curioso, uma vez que ambas servem como resposta à pergunta “O que aconteceu/ acontece/está acontecendo?”, que induz a um cenário out-of-the-blue. Para alguns casos, como os descritos a seguir, há algumas diferenças de escopo relativamente a essas duas ordenações, mas este não é o caso para a maioria dos dados aqui investigados. O quadro 1 ilustra a posição do V temático finito nas línguas aqui investigadas.6 Repare que dois advérbios frequentativos podem coocorrer, conforme (i), abaixo, em que o advérbio frequentativo mais alto, raramente, tem escopo sobre o que tudo aquilo que o segue na sentença, inclusive sobre o advérbio com frequência, conforme a paráfrase (i.1): (i) Raramente o José limpa a casa com frequência (i.1) São raras as vezes que o José limpa a casa com frequência Por (i), infere-se que a aceitabilidade de (9b, 10b) pode ser devida ao fato de se tomar o advérbio frequentativo e o repetitivo altos, não os mais baixos, que obrigatoriamente devem se posicionar à direita de V, tendo em vista o (que quer que seja que derive do) Head Movement Constraint (TRAVIS, 1984). 5 Repare que, em PB, o V deve obrigatoriamente se mover por sobre completamente (tendo em vista os dados de Galves (1994), reportados em (i), a seguir. (i) a. *O João completamente acabou seu trabalho. b. O João acabou completamente o seu trabalho. (GALVES, 1994, p. 46) De acordo com os dados em (i), o V finito deve obrigatoriamente se mover por sobre completamente. Conforme dito no texto, completamente está posicionado, na hierarquia, abaixo dos frequentativos e repetitivos altos, e acima do frequentativo e do repetitivo baixos. Movimento do V por sobre em vão já não é mais necessário, se o V está na forma finita: (ii) a. O José em vão acabou o seu trabalho. b. O José acabou em vão o seu trabalho. 6 Para esse quadro e para os demais, apresentamos, na coluna mais à esquerda, um representante para cada classe de AdvPs (do conjunto de oito classes tomadas como diagnósticos). Nessa coluna, aparece o advérbio correspondente em português. Para os correspondentes em espanhol, considerar os advérbios apresentados em (8). 4 752 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 QUADRO 1 – A posição do V finito em relação aos oito advérbios baixos e o objeto7 A julgar pela tabela, a ordem AdvP-Objeto-V de fato não é ordem possível em nenhuma das línguas investigadas (ver os símbolos “*” dispostos na coluna relativa a essa ordem, no quadro 1). A ordem AdvPV-Objeto é bastante reveladora aqui, se considerada em comparação com a ordem V-AdvP-Objeto: na segunda coluna de julgamentos da tabela, desconsiderando os advérbios do nada, de novo e com frequência – que, conforme explicado nos parágrafos anteriores, têm duas posições de Merge, o que justifica sua marginalidade (em EP e para alguns falantes de PB) ou mesmo sua gramaticalidade (para falantes do PM) –, a ausência do movimento do V por sobre cedo e bem dá lugar à agramaticalidade em todas as cinco línguas aqui investigadas. O VP deve, portanto, não só deixar o domínio temático como também se mover obrigatoriamente até pelo menos uma posição acima de bem, passando, naturalmente, por posições de especificadores à esquerda de cada um dos advérbios Legenda (para todos os quadros): “*”: indica sentença agramatical; “?”: indica marginalidade; “”: indica gramaticalidade; “”: indica ordem preferencial. A menção, “alto”, em sobrescrito, nas linhas do EV, relativas aos três advérbios mais baixos, indica que o informante aceitava essa ordenação, envolvendo os correspondentes em EV; o advérbio envolvido na ocorrência, no entanto, era o medial-alto. O símbolo “%”, que será utilizado, p.ex., no quadro 4, indica que a referida ordem é aceitável num contexto em que o advérbio envolvido claramente está prosodicamente marcado, o que indica, neste caso, que se moveu para [Spec,ModifierP] de Rizzi (2004), onde atua como advérbio de “cenário”. 7 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 753 c-comandados por esse AdvP, como consequência de uma versão revisitada do Head Movement Constraint (Travis, 1984). São bastante reveladores aqui os julgamentos reportados (ainda em relação a essa segunda coluna de julgamentos) para os advérbios tudo, completamente, em vão e obrigatoriamente, uma vez que agora poderemos vislumbrar uma variação entre as línguas aqui consideradas: em PB, o V deve se mover à esquerda de completamente – fato que já tinha sido observado em trabalhos anteriores (GALVES, 1994; CYRINO, 2013; TESCARI NETO, 2013); movimentos ulteriores serão opcionais; sendo assim, o V não precisa subir à esquerda e em vão e obrigatoriamente; pode fazê-lo, mas tão somente opcionalmente; em PM, o V deve se mover acima de bem (sendo a ausência do movimento para posições acima deste AdvP apenas marginal); das variedades hispânicas consideradas, o EC é a língua em que o V tem de se mover mais: a ausência do movimento do V por sobre obligatoriamente dá lugar à marginalidade; em EP e EV o verbo precisa subir à esquerda de em vão, mas não acima do advérbio que o c-comanda imediatamente, a saber, obligatoriamente. Repare que esses dados reportados para a segunda coluna de julgamentos são complementares aos da terceira e da quarta colunas, o que nos permite chegar ao seguinte cline de variação entre as línguas consideradas: FIGURA 4 – Variação em relação à altura de movimento obrigatório do V finito Fonte: elaboração própria. A próxima seção trata do movimento do particípio passado ativo. 4.2 Da subida do verbo temático no particípio passado ativo Também encontramos variação entre as variedades aqui investigadas no que diz respeito ao movimento do particípio passado ativo. As ocorrências em (11) e (12) ilustram a posição dessa forma 754 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 verbal respectivamente em relação aos advérbios inceptivo (do nada) e acelerativo (cedo) em PM. (11) a. *A Maria tem do nada a casa limpado b. *A Maria tem do nada limpado a casa c. ?/OK A Maria tem limpado do nada a casa d. A Maria tem limpado a casa do nada (12) a. *A Maria tem cedo a casa limpado b. *A Maria tem cedo limpado a casa c. A Maria tem limpado cedo a casa d. A Maria tem limpado a casa cedo Os dados em (11a, 12a) do PM novamente ilustram que o padrão AdvP-Objeto-V não corresponde a uma ordem possível nessa variedade. (De fato, essa não é uma ordem possível em nenhuma das variedades aqui investigadas. Investigamo-la, contudo, simplesmente por se tratar da “ordem de base” ou “ordem de Merge” dos elementos (na esteira de CINQUE, 2006). (11b, 12b) deixam claro que o particípio passado ativo tem de se mover por sobre esses dois advérbios baixos. Conforme veremos na apresentação e discussão do quadro 2, o particípio passado ativo, uma vez que tem de se mover por sobre cedo, tem de se mover por sobre todos os advérbios por ele c-comandados, i.e., do nada, de novo e com frequência. As ordens (11c,d; 12c,d) ilustram ocorrências reportadas como gramaticais: a preferência, contudo, continua sendo pelas ordens em (d), não obstante o fato de as ordens em (c) serem possíveis. O quadro 2 apresenta os julgamentos reportados (tendo em vista cada uma das variedades em estudo) para o posicionamento do V no particípio passado ativo em relação a cada um dos oito advérbios considerados, nas quatro ordens em questão, i.e., AdvP-Obj-V; AdvPV-Obj; V-AdvP-Obj e V-Obj-AdvP: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 755 QUADRO 2 – A posição do particípio passado ativo em relação aos oito advérbios mais baixos e o objeto Como esperado, o V tem de se mover obrigatoriamente também no particípio passado ativo, se considerarmos sobretudo a ordem V-AdvP- Objeto (para os advérbios mais baixos): em todas as variedades, o V deve se mover obrigatoriamente por sobre em vão e todos os advérbios c-comandados por ele, conforme esperado, tendo em vista que, para chegar àquela posição, o VP tem de passar por um especificador à esquerda de cada um dos advérbios mais baixos do que completamente – um remanescente do Head Movement Constraint (Travis, 1984).8 Poderiam colocar em dúvida tal generalização, talvez, os dados do PM que envolvem a ordem AdvP-V-Objeto, para os advérbios completamente e tudo, cujos julgamentos reportados foram respectivamente a marginalidade e a gramaticalidade. Esses dados estão reproduzidos em (13a,b), abaixo. (13) a. ?O Eduardo tinha completamente terminado suas tarefas b. O Eduardo tem tudo colocado em ordem. Para esses casos, é tentador, contudo, tratá-los como meros aparentes contraexemplos: em (13b), o advérbio tudo pode ter sido interpretado, pelos informantes, como topicalizado ou focalizado, o Uma vez que se assume aqui movimento sintagmático (i.e., movimento do VP), é natural que o movimento se dê de especificador em especificador, criados para esse fim, acima de cada um dos advérbios rigidamente ordenados da hierarquia. Uma interpretação em termos de movimento nuclear do V teria o mesmo efeito, dado o Head Movement Constraint, acima mencionado. 8 756 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 que o faria figurar em posição mais alta do que a de pouso do V. Assim, sua derivação envolveria movimento do VP de Spec em Spec até uma posição à esquerda de tudo, seguido por movimento de tudo para uma posição na periferia esquerda – possivelmente [Spec,FocP] e movimento subsequente do remanescente para [Spec,TopP]. Essa sequência de movimentos criaria a impressão de que o V não teria subido por sobre tudo, contrariamente aos fatos. Há indícios claros de que o V tenha de ultrapassar tudo: a marginalidade da ordem completamente-V-Obj e a agramaticalidade de em vão-V-Obj, interpretadas à luz de uma versão revisitada do Head Movement Constraint, nos permitiria inferir que o V, para se mover por sobre em vão (cf. o julgamento reportado para o PM, para a ordem AdvP-V-Obj), teria de se mover por sobre tudo e completamente. O PB é a língua em que o particípio passado tem de se mover menos (em relação às outras variedades aqui consideradas): apenas por sobre em vão – e, em virtude do Head Movement Constraint (TRAVIS, 1984), ou do que quer que seja a restrição subjacente a essa regra, por sobre todos os advérbios c-comandados por em vão. Movimento para projeções acima das que c-comandam em vão não é obrigatório, como no caso das outras variedades aqui consideradas. As variedades do espanhol têm, todas, comportamento similar: o particípio passado ativo tem de se mover por sobre todos os oito advérbios baixos. Esses dados para a segunda coluna de julgamentos vão ao encontro dos reportados na terceira e quarta colunas: o movimento do particípio passado é obrigatório em todas as línguas consideradas, pelo menos à esquerda de em vão. O cline da fig. 5 ilustra as alturas mínimas de pouso obrigatório do particípio passado ativo nas línguas consideradas.9 Dessa vez, em todas as variedades, o V tem de se mover um pouco mais, sobretudo nas variedades hispânicas: Naturalmente, investigação ulterior terá de se voltar para as posições mediais e mediais altas, de modo a precisar as alturas de pouso obrigatório do particípio nas variedades em estudo. 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 757 FIGURA 5 – Variação em relação à altura de movimento obrigatório do particípio passado ativo Há uma preferência, pelos falantes, relativamente à posição de tudo e bem, pela ordem V-AdvP-Obj, conforme ilustrado em (14-15), com dados do espanhol. Em todas as línguas aqui consideradas, essa foi a posição preferencial desses advérbios relativamente ao particípio passado ativo e o objeto. Conforme vimos no quadro 1, essa também foi a ordem preferida para os mesmos advérbios (com uma única exceção), o que destoa do comportamento dos outros advérbios. (14) Eduardo ha colocado todo en orden Eduardo tem colocado tudo em ordem ‘Eduardo colocou tudo em ordem’ (15) María ha limpiado bien la casa Maria tem limpado bem a casa ‘Maria limpou bem a casa’ A diferença entre as variedades aqui consideradas no que diz respeito à altura dos movimentos das duas formas verbais estudadas até o momento é bastante clara: enquanto no PB, o verbo finito deve subir à esquerda de completamente, o particípio passado ativo deve subir uma projeção a mais, i.e., à esquerda de em vão. Em PM, o V finito deve se mover pelo menos por sobre bem. Já o particípio passado ativo se move bem mais: deve ultrapassar em vão. O V finito e o particípio passado ativo sobem às mesmas alturas no EC. No EP e no EV, o V finito obrigatoriamente se move à esquerda de em vão; nessas mesmas variedades, o particípio passado ativo tem que se mover por sobre obrigatoriamente. 758 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 Investigações futuras terão de explicar o porquê de tais preferências. Muito possivelmente estão ligadas a PF. Poderíamos avançar, p.ex., para o caso de bem/bien, a hipótese de que, por ser monossilábico, só pode aparecer em posição final se prosodicamente marcado. Investigações futuras ainda terão de explicar o posicionamento preferencial de tudo/todo. 4.3 Da subida do verbo temático no infinitivo Vimos na seção 1 que, no francês e no inglês, o movimento da forma infinitiva do V temático não era obrigatório, conforme os dados (2), de Pollock (1989), reproduzidos abaixo. (2) a. To often look sad during one’s honeymoon is rare (p. 381) Por frequente parecer triste durante sua lua-de-mel é raro ‘Frequentemente parecer triste durante a lua de mel é raro’ a’. Souvent paraître triste pendant son voyage de noce, c’est rare Frequentemente parecer triste durante sua viagem de núpcias, é raro ‘Parecer frequentemente triste durante a sua lua de mel é raro’ (p. 377) b. *To look often sad during one’s honeymoon is rare. (p. 382) ‘Parecer frequentemente triste durante sua lua de mel é raro’ b’. Paraître souvent triste pendant son voyage de noce, c’est rare (p. 378) ‘Parecer frequentemente triste durante sua lua de mel é raro’ Tanto em francês como em inglês, o V temático na forma infinitiva não precisa se mover por sobre o AdvP souvent/often ‘frequentemente’. Há, portanto, no que diz respeito ao movimento dessa forma do V lexical, um quadro diferente, no francês, relativamente ao que se observa para o V finito, cujo movimento é obrigatório. Já nas cinco variedades ibéricas aqui estudadas, a forma infinitiva do V temático deve deixar o domínio temático, ultrapassando obrigatoriamente o advérbio tudo/todo e, naturalmente, todos os advérbios c-comandados por ele, conforme podemos ver na segunda e terceira colunas de julgamentos (quadro 3): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 759 QUADRO 3 – A posição do infinitivo em relação aos oito advérbios mais baixos e o objeto Os dados em (16) e (17), do EC, ilustram a posição do infinitivo relativamente aos advérbios de la nada ‘do nada’ e temprano ‘cedo’. A ordem preferida é aquela em que o advérbio aparece em posição final. Conforme sugerido na seção 3, essa ordem é derivada pelo movimento do VP por sobre o objeto, com ulterior movimento do bloco VP-Objeto por sobre o advérbio, resultando na inversão da ordem de Merge desses elementos. (16) a. *De la nada la casa limpiar, Eduardo odia!10 Do nada a casa limpar, Eduardo odeia! ‘Limpar a casa do nada, o Eduardo odeia!’ b. *De la nada limpiar la casa, Eduardo odia! c. Limpiar de la nada la casa, Eduardo odia! d. Limpiar la casa de la nada, Eduardo odia! Um dos pareceristas chamou a atenção para o fato de estruturas como (16a) envolvem uma topicalização de VP infinitivo, o que poderia tornar tais dados inadequados à análise. Uma vez que estruturas de topicalização de VP respeitam a hierarquia universal (cf. a gramaticalidade de (i), que respeita a hierarquia de Cinque, com a agramaticalidade de (ii), que apresenta os advérbios completamente e bem na ordem inversa à hierárquica), podem ser utilizadas no estudo da posição do V-infinitivo. Limpar completamente bem a casa, o Eduardo adora! (PB) *Limpar bem completamente a casa, o Eduardo adora! (PB) O ponto levantado pelo parecerista é interessante para levantamento em investigação futura: haverá diferenças no que diz respeito à altura a que as formas verbais sobem em sentenças em que o VP infinitivo ocupa a posição canônica de complemento? 10 760 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 (17) a.  *Temprano la casa limpiar, Eduardo odia! Cedo a casa limpar, Eduardo odeia! ‘Limpar a casa cedo, o Eduardo odeia!’ b. *Temprano limpiar la casa, Eduardo odia! c. Limpiar temprano la casa, Eduardo odia! d. Limpiar la casa temprano, Eduardo odia! Das línguas investigadas, conforme vemos na segunda coluna de julgamentos do quadro 3, o EP é aquela em que o V deve subir mais, ultrapassando obligatoriamente ‘obrigatoriamente’. Em EV e em PM e PB, deve ultrapassar em vão/en vano. Já no EC, o verbo no infinitivo deve subir um pouco menos, ultrapassando obrigatoriamente tudo. A fig. 6 abaixo apresenta o cline de variação entre essas línguas no que diz respeito ao movimento do infinitivo, sem pied-piping do objeto. FIGURA 6 – Variação em relação à altura de movimento obrigatório do infinitivo A subseção 4.4, a seguir, finaliza a apresentação dos dados, com a posição do gerúndio relativamente aos advérbios aqui investigados. 4.4 Da subida do verbo temático no gerúndio A posição do V no gerúndio apresentou ligeiríssima variação no conjunto das línguas aqui estudadas: em todas as variedades, com exceção do EV – em que o V não precisa ultrapassar obligatoriamente ‘obrigatoriamente’ (um ponto a ser discutido logo em seguida) –, o V deve ultrapassar, quando não carrega consigo o objeto, todos os oito advérbios considerados (cf. quadro 4): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 761 QUADRO 4 – A posição do gerúndio em relação aos oito advérbios mais baixos e o objeto As ocorrências a seguir, ilustram o posicionamento de bien ‘bem’ e todo ‘tudo’ relativamente ao V e o objeto, em EP: (18) a. *Bien la casa limpiando, Eduardo agrada a su madre. Bem a casa limpando, Eduardo agrada a sua mãe ‘Limpando bem a casa, o Eduardo agrada a sua mãe’ b. *Bien limpiando la casa, Eduardo... c. Limpiando bien la casa, Eduardo... d. Limpiando la casa bien, Eduardo agrada a su madre (19) a. *Todo en orden colocando, Eduardo agrada a su madre Tudo em ordem colocando, Eduardo agrada a sua mãe ‘Colocando tudo em ordem, o Eduardo agrada a sua mãe’ b. *Todo colocando en orden, Eduardo agrada su madre c. Colocando todo en orden, Eduardo agrada a su madre d. Colocando en orden todo, Eduardo agrada a su madre Sobre as ordens envolvendo movimento do V, i.e., V-AdvPObjeto e V-Objeto-AdvP, novamente a preferencial é a última, com as exceções envolvendo os advérbios tudo/todo e bem/bien e pouquíssima variação em relação a outros poucos advérbios. O cline a seguir sintetiza os achados principais do quadro 4 (relativamente ao movimento obrigatório do V): 762 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 FIGURA 7 – Variação em relação à altura de movimento obrigatório do gerúndio Descrito o comportamento das variedades aqui investigadas, relativamente à posição das quatro formas verbais, temos de colher implicações para a teoria do movimento do verbo. Essa é a tarefa da próxima seção. 5 Implicações para a teoria do movimento do V Os dados apresentados na seção 4 levam a uma conclusão importante para a teoria do movimento do verbo: em primeiro lugar, pode-se abandonar o movimento nuclear, em proveito de um tratamento uniforme, para o movimento do V, em termos de movimento sintagmático; em segundo lugar, parece não haver ligação necessária entre pobreza/ riqueza de flexão e movimento do V. Sobre o primeiro ponto, os dados do EV, apresentados no quadro 4 da seção anterior, sobre as ordens V-AdvP-Objeto e V-Objeto-AdvP (envolvendo os advérbios temprano ‘cedo’, de la nada ‘do nada’ e de nuevo ‘do novo’), apontam na direção de um abandono do movimento nuclear como uma operação da Narrow Syntax (como já sugerido em CHOMSKY, 2001), no estudo do movimento do verbo, em proveito de uma análise que envolva tão somente movimento sintagmático. Os dados do quadro 4 que aqui nos interessam estão sintetizados no quadro 5: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 763 QUADRO 5 – A posição do gerúndio em EV A ordem AdvP-V-Objeto (primeira coluna de julgamentos do quadro 5) evidencia a necessidade de o gerúndio se mover na zona mais baixa da oração em EV. A segunda coluna de julgamentos, se desconsiderarmos o posicionamento V-com frecuencia-Objeto, reporta dados interessantes para a teoria do movimento do V: o V(P) não pode subir sozinho, i.e., sem pied-piping, por sobre de nuevo ‘de novo’ (20b), de la nada ‘do nada’ (21b) e temprano ‘cedo’ (22b); apenas a ordem V-Objeto-AdvP é possível nesses casos (dados de TESCARI NETO; GARCÍA CARABALLO, 2018): (20) a. *Otra vez haciendo cachapa, Clara se manchó la ropa Outra vez fazendo cachapas, Clara se manchou a roupa ‘Fazendo cachapas de novo, a Clara sujou a roupa’ b. ?Haciendo otra vez cachapa, Clara se manchó la ropa. c. Haciendo cachapa otra vez, Clara se manchó la ropa. (21) a. *De la nada haciendo cachapa, Clara se manchó la ropa Do nada fazendo cachapas, Clara se sujou a roupa ‘Fazendo cachapas do nada, a Clara sujou a roupa’ b. *Haciendo de la nada cachapa, Clara se manchó … c. Haciendo cachapa de la nada, Clara … (22) a. *Temprano w haciendo cachapas, Clara se manchó la ropa Cedo fazendo cachapas, Clara se sujou a roupa ‘Fazendo cachapas cedo, a Clara sujou a roupa’ b. *Haciendo temprano cachapas, … c. Haciendo cachapas temprano 764 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 Se assumíssemos movimento nuclear do V para derivar a ordem V-AdvP-Objeto (a segunda coluna de julgamentos da tabela), esperaríamos a gramaticalidade de (20b, 21b e 22b),11 o que não é corroborado pelos dados, conforme observado. A boa formação de (20c, 21c e 22c) sugere que a subida do V à flexão em EC deve, pelo menos para esses advérbios em EV, obrigatoriamente envolver movimento sintagmático. Recorrer a movimento nuclear do V para derivar as ocorrências gramaticais da ordem V-AdvP-Objeto (para os advérbios acima de temprano ‘cedo’ (i.e., bien ‘bem’, todo ‘tudo’, completamente ‘completamente’, en vano ‘em vão’, obligatoriamente ‘obrigatoriamente’) teria pelo menos dois entraves: primeiramente, seria pouco econômica a assunção de dois tipos de movimento do V: nuclear e sintagmático; uma teoria restritiva da GU que lida tão somente com movimentos sintagmáticos com ou sem piedpiping é, com certeza, muito mais econômica, na explanação dos fatos, do que uma abordagem concorrente que recorre a esses dois expedientes de movimento. Em segundo lugar, a assunção de movimento nuclear para a derivação da ordem V-AdvP-Objeto para esses casos violaria a restrição sobre o movimento nuclear (Head Movement Constraint) (TRAVIS, 1984), uma vez que, se o V se move nuclearmente por sobre bien, todo, completamente, etc., deve necessariamente passar pelos núcleos das projeções em cujos especificadores encontramos os advérbios c-comandados por bien, contrariamente ao que observamos em (20b, 21b e 22b). A fig. 8 ilustra essa impossibilidade de o V se mover por sobre bien (nuclearmente) tendo em vista a agramaticalidade de (20b, 21b e 22b): para se mover nuclearmente por sobre bien teria de poder se mover nuclearmente por sobre os advérbios c-comandados por bien, contrariamente aos fatos: A ordem V-con frecuencia-Objeto foi reportada, pelo informante, como gramatical em EV, provavelmente por ter ele considerado a posição alta de Merge do advérbio frequentativo, com escopo sob o evento, o que, naturalmente, não invalida a generalização importante (e crucial para a teoria do movimento do V) de que, para a zona mais baixa da oração, o V(P) não pode se mover sozinho (por movimento nuclear ou mesmo sintagmático somente de VP). 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 765 FIGURA 8 – Do movimento do gerúndio em EV Fonte: Elaboração própria À guisa de conclusão, portanto, tendo em vista os dois argumentos apresentados, pode-se propor que as instâncias remanescentes de movimento nuclear sejam tratadas como movimentos sintagmáticos.12 Seguindo esse raciocínio, sentenças na ordem V-AdvP-Objeto (como ocorrências envolvendo o advérbio bien) seriam derivadas pelo movimento (sintagmático) do VP por sobre o Objeto – soldado acima do VP (numa estrutura não-larsoniana à la CINQUE, 2006) – e, na sequência, por sobre o advérbio (de especificador em especificador) sem inversão de ordem. Para mais detalhes, cf. Cinque (2006, cap. 6) e Tescari Neto (2013, cap. 1 e 2). Tendo em vista o quadro 4, os casos do movimento do infinitivo, em que parece haver alguma ligeiríssima variação no que diz respeito à preferência pela ordem V-Objeto-AdvPX, numa língua, e pela ordem V-AdvPX-Objeto numa outra (mesmo envolvendo o mesmo AdvPX), merecem estudos detalhados e futuros, possivelmente envolvendo mais falantes, no intuito de verificar se, de fato, há mesmo essa variação. Tais casos parecem diferir daqueles envolvendo o movimento do particípio por sobre tudo/todo e bem/bien, em que há preferência sistemática, tanto nas variedades do português, como nas do espanhol, pela ordem V-AdvP-Objeto (diferentemente do que se observa com os outros advérbios baixos, cuja preferência é pela ordem V-ObjetoAdvP). Entendo que esse ponto deverá ser mais bem explorado em investigação futura. 12 766 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 6 Considerações finais Nosso objetivo no trabalho foi o de apresentar a posição de quatro formas verbais (finito, infinitivo, gerúndio e particípio passado ativo) do V temático em variedades do português e do espanhol: o PB e o PM, e o EC, o EP e o EV. Conforme vimos na seção 4, há movimento dessas quatro formas verbais nas cinco línguas investigadas. O movimento do V é, portanto, a regra nesses sistemas. Foi detectada variação relativamente à altura a que cada forma específica subia (dentro de uma mesma língua). Para além dessa variação intralinguística, notou-se variação entre as cinco variedades estudadas. Fato curioso foi o movimento do V no infinitivo (nas línguas aqui consideradas): o V obrigatoriamente se move, no infinitivo, em todas as cinco variedades: em EC, deve ultrapassar o advérbio tudo/todo; em PB e EV, em vão/en vano; em PM e EP, obrigatoriamente/obligatoriamente. Conforme mencionado na seção 1, esse comportamento se diferencia do comportamento do francês, em que, a julgar por Pollock (1989), o V temático no infinitivo sequer precisa subir, muito embora o V finito obrigatoriamente se move. O V finito subiu menos do que o infinitivo em PB, PM e EP; em EV, o V finito e o infinitivo subiram às mesmas alturas e, em EC, foi o V finito que subiu mais. Esse ponto merece atenção em investigação futura. Dados do EV para a posição do V relativamente a advérbios muito baixos foram úteis à argumentação de que se pode lançar mão, de fato, do movimento nuclear, em proveito de uma análise por movimento sintagmático (para todas as instâncias de movimento do V). O exame aqui feito deverá, naturalmente, em trabalhos futuros, se estender aos advérbios mediais e aos altos. Igualmente, o mesmo expediente diagnóstico – os advérbios da hierarquia universal – poderá ser utilizado para o estudo da subida de Vs auxiliares, de verbos modais, aspectuais e outros V funcionais. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 767 Agradecimentos Agradeço à FAPESP pelo apoio financeiro (processo 2016/20853-6). Agradeço também às audiências do I CITAM (Rio de Janeiro) – maio de 2018 –, do 3rd Eissi (Florianópolis), do GT-TG da Anpoll (Florianópolis) e do VIII Encuentro de Gramatica Generativa (Buenos Aires), por todas as contribuições. Agradecimento especial aos companheiros de meu laboratório, o LaCaSa, por todas as sugestões feitas a versões anteriores deste trabalho, apresentadas em nossas reuniões, e a Luigi Rizzi por comentários tão bem-vindos nos eventos de Florianópolis. Um agradecimento carinhoso a Francisco Forero-Pataquiva e a Andrés García Caraballo, que ofereceram alguns dados adicionais, para além dos dados reportados em seus trabalhos aqui citados. Tive a possibilidade de realizar a coleta dos dados do PM em Maputo, Moçambique. Agradeço aos professores do setor de Língua Portuguesa e do departamento de Linguística, por todo o apoio na coleta dos dados. O prof. Francisco Vicente facilitou tudo para que a coleta se desse de forma muito efetiva. Agradeço também ao prof. Óscar Fumo (UEM, Maputo; PPGLA/ UNICAMP) por toda a ajuda com os dados. Um agradecimento muito especial aos dois pareceristas anônimos da RELIN que, com seus questionamentos, correções, inquietações e sugestões fizeram o artigo ganhar em qualidade. Responsabilizo-me pelos problemas que insistiram em permanecer. Referências BELLETTI, A. Generalized Verb Movement. Turin: Rosenberg & Sellier, 1990. BELLETTI, A. Aspects of the low IP area. In: RIZZI, L. (Ed.) The Structure of CP and IP. New York; Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 16-51. CAROBA LOPES, J. Relatório final de Iniciação Científica. Campinas: PRP, UNICAMP, 2018. BOWERS, J. The Syntax of Predication. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 24, p. 591-656, 1993. 768 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 CHOMSKY, N. Some Notes on Economy of Derivation and Representation. In: FREIDIN, R. (Ed.). Principles and Parameters in Comparative Grammar. Cambridge, MA: MIT Press, 1991. p. 417-454. CHOMSKY, N. Derivation by Phase. In: KENSTOWICZ, M. J. (Ed.). Ken Hale: A Life in Language. Cambridge, MA: MIT Press, 2001. p. 1-52. CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads: A Cross-Linguistic Perspective. Oxford: Oxford University Press, 1999. CINQUE, G. Deriving Greenberg’s Universal 20 and Its Exceptions. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 36, n. 3, p. 315-332, 2005. CINQUE, G. Restructuring and Functional Heads: the Cartography of Syntactic Structures. New York: Oxford University Press, 2006. CINQUE, G. Word Order Typology. A Change of Perspective. In: BIBERAUER, T.; SHEEHAN, M. (Ed.). Theoretical Approaches to Disharmonic Word Orders. Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 4773. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199684359.003.0002 CINQUE, G.; RIZZI, L. The Cartography of Syntactic Structures. In: HEINE, B.; NARROG, H. (Ed.). The Oxford Handbook of Linguistic Analysis. New York: Oxford University Press, 2010. p. 51-65. CYRINO, S. On Richness of Tense and Verb Movement in Brazilian Portuguese. In: CAMACHO-TABOADA, V. et al. (Ed.). Information Structure and Agreement. Amsterdam: John Benjamins, 2013. p. 297-318. DOI: https://doi.org/10.1075/la.197.11cyr FORERO PATAQUIVA, F. P. O movimento do verbo temático finito no espanhol de Bogotá. Projeto de pesquisa. Campinas: UNICAMP/PIBIC, 2018. GALVES, C. V-movement, levels of representation and the Structure of S. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 96, p. 35-58, 1994. GARCÍA CARABALLO, A. D. G. O movimento do verbo temático finito no espanhol venezuelano. Relatório final de IC apresentado ao FAEPEX, PRP/UNICAMP. Campinas: Unicamp, 2018. KAYNE, R. The Antisymmetry of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press, 1994. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 769 KAYNE, R. S. Movement and Silence. New York: Oxford University Press, 2005. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780195179163.001.0001 LARSON, R. K. On the Double Object Construction. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 19, n. 3, p. 335-391, 1988. PADULA, P. C. Relatório final de Iniciação Científica. Campinas: PRP, UNICAMP, 2018. PINA, I. M. Relatório final de Iniciação Científica. Campinas: PRP, UNICAMP, 2018. POLLOCK, J.-Y. Verb Movement, Universal Grammar, and the Structure of IP. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 20, n. 3, p. 365-474, 1989. RIZZI, L. The Fine Structure of Left Periphery. In: HAEGMAN, L. (Ed.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer Academic Publisher, 1997. p. 282-337. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8_7 RIZZI, L. Locality and left periphery. In: BELLETTI, A. (Ed.) Structures and Beyond. The Cartography of Syntactic Structures. New York: Oxford University Press, 2004. v. 3, p. 223-251. RIZZI, L.; CINQUE, G. Functional categories and syntactic theory. Annual Review of Linguistics, Palo Alto, CA, v. 2, p. 139-163, 2016. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-linguistics-011415-040827 SANTANA, M. S. A Sintaxe do Advérbio. 2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. SANTANA, M. S. Sintagmas adverbiais como especificadores de projeções funcionais. Linguística, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 189-202, 2007. TESCARI NETO, A. On Verb Movement in Brazilian Portuguese: a Cartographic Approach. Tesi (Dottorato di Ricerca in Scienze del Linguaggio) – Università Ca’Foscari di Venezia, Venezia, 2013. TESCARI NETO, A. Movimento do verbo e arquitetura da oração no português de Angola e no de Moçambique: uma abordagem cartográfica. Relatório de projeto de pesquisa encaminhado à FAPESP. Campinas: FAPESP, 2018. 770 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 737-770, abr./jun. 2019 TESCARI NETO, A.; CAROBA LOPES, J.; PADULA, P. A interferência do “tempo” na subida do verbo em português brasileiro. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2018. Manuscrito. TESCARI NETO, A.; GARCÍA CARABALLO, A. D. Movimento do verbo em espanhol: algumas questões. Campinas: Unicamp, 2018. TOSQUI, P.; LONGO, B. A distribuição dos advérbios modalizadores na sentença: uma análise de base gerativa. Alfa, Araraquara, v. 47, n. 1, p. 85-97, 2003. TRAVIS, L. Parameters and Effects of Word Order Variation. 1984. Dissertation (Ph.D.) – MIT, Cambridge, 1984. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 Deslocamento de tópico contrastivo no português brasileiro: uma proposta semântico-pragmática Contrastive topic dislocation in Brazilian Portuguese: a semantic-pragmatic proposal Fernanda Rosa da Silva Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro / Brasil fernandarosa2006@yahoo.com.br Resumo: O presente artigo investiga as características semânticas e pragmáticas de sentenças do português brasileiro, PB, que apresentam uma estrutura sintática na qual sintagmas com função informacional de tópico contrastivo (cf. BÜRING, 1999, 2003) são deslocados para a periferia esquerda da sentença. Mais especificamente, esta pesquisa investiga se as características a seguir influenciam ou não na aceitabilidade ou na gramaticalidade de sentenças com deslocamento em PB: i) a posição sintática original do sintagma deslocado: sujeito, objeto, entre outras; ii) o tipo de pergunta do contexto: pergunta sim / não ou pergunta QU; iii) retomada de pronome ou não; iv) o tipo de relação de contraste: explícita ou implícita, oposição ou correção. Após análise dos contextos de deslocamento de tópico contrastivo em PB, pôde-se concluir que enquanto a marcação prosódica do tópico contrastivo indica contraste, o deslocamento tem a função de direcionar a atenção do ouvinte para um elemento disponível no contexto, para depois atribuir uma propriedade a esse elemento (cf. REINHART, 1981). Além disso, essa estrutura indica que o falante esteja fazendo uso de uma estratégia de responder parcialmente a uma pergunta mais ampla do que a dada no discurso. Por fim, sentenças com deslocamento de tópico contrastivo ocorrem apenas em contexto cuja relação de contraste seja de oposição, em que duas alternativas são opostas, mas verdadeiras. Não há relação de contraste de correção, em que quando uma alternativa é verdadeira, a outra é falsa. Palavras-chave: tópico; estrutura informacional; contraste; deslocamento; implicatura conversacional. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.771-809 772 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 Abstract: This paper investigates the semantic and pragmatics characteristics of Brazilian Portuguese sentences with contrastive topic phrases (BÜRING, 1999, 2003). These phrases are dislocated to the left periphery. More specifically, this research inquires if the following characteristics influence or not in the acceptability or the grammaticality of the sentences with dislocation in BP. The characteristics are: i) the original syntactic position of the dislocated phrase; ii) the kind of question in the context yes/no question or WH question; iii) filling or not of pronoun; iv) the kind of contrast relation – explicit or implicit, opposition or correction. After analyzing the contexts of contrastive dislocation in PB, we could conclude that the prosodic marking of the contrastive topic indicates contrast and the dislocation directs the attention of the hearer to an element available in the context. Only then, a property is assigned to this element. Moreover, this structure indicates that the speaker is using a strategy to answering partially to a broader question than that given in the discourse. Lastly, the sentences with contrastive topic dislocation occur only in oppositional contrast relation contexts, in which two alternatives are opposite, but both are true. No correction contrast relation, through which when one alternative is true, the other necessarily is false, was found. Keywords: topic; information structure; contrast; dislocation; conversational implicature. Recebido em 10 de setembro de 2018 Aceito em 14 de dezembro de 2018 1 Introdução O presente artigo tem como objetivo investigar as peculiaridades semânticas e pragmáticas de sentenças com deslocamento no português brasileiro, cujo sintagma deslocado tenha a função discursiva de tópico contrastivo. Considere, abaixo, os seguintes diálogos que apresentam exemplos de dados a serem investigados nesta pesquisa: (1) A: O João comprou os livros do curso? B: Ele comprou o livro de linguística. (2) A: O João comprou os livros do curso? B: O livro de linguística1, ele comprou t1. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 (3) 773 A: O João comprou os livros do curso? B: ?O livro de linguística1, ele comprou ele1. Na primeira, resposta, em (1)B, o falante traz as informações sobre o ‘livro de linguística’, que faz parte do conjunto de livros, inserido pela pergunta em A, sem fazer uso de deslocamento. Por outro lado, nos contextos em (2) e (3), há deslocamento do sintagma que recebe a função de tópico. A função de tópico é identificada pela entoação própria, de curvatura ascendente e é destacada no presente texto em itálico. Além disso, ambas respostas apresentam contraste, visto que o elemento ‘o livro de linguística’ é contrastado com os demais livros do conjunto inserido pela pergunta: ‘os livros do curso’. Deslocamento é considerado nesta pesquisa como um fenômeno sintático em que um sintagma é deslocado para a periferia esquerda da sentença (cf. RIZZI, 1997). Ele pode ocorrer de duas maneiras: pode haver uma lacuna no local de origem do sintagma deslocado ou; o local de origem pode ser preenchido com um pronome. É importante destacar que a literatura em geral faz distinção entre esses dois tipos de deslocamento, (PRINCE, 1998; WARD; PRINCE, 1991; PONTES, 1987, entre outros), denominando o primeiro de topicalização e o segundo de deslocamento à esquerda. Neste artigo, optamos por denominar os dois casos genericamente por deslocamento, sendo que o primeiro ocorre sem o preenchimento de pronome e o segundo com preenchimento de pronome. Destacamos que os fenômenos de deslocamento de sintagmas da estrutura informacional em PB, como tópico, já foram amplamente investigados a partir de diversas perspectivas. Indicamos, aqui, alguns trabalhos clássicos no português brasileiro, sem a pretensão de esgotar as múltiplas pesquisas existentes na área. Teorias funcionalistas já debruçaram sobre o assunto (PONTES, 1987; ILARI, 1992). Além disso, há diversos trabalhos que investigaram as questões sintáticas em uma perspectiva mais formalista, como a teoria gerativista (KATO, 1989; KATO, 1998; MIOTO, 2003). Ainda, há alguns trabalhos sociolinguísticos que levantaram possíveis contextos de uso de tais sentenças (ORSINI; VASCO, 2007; ORSINI 2011). A proposta, entretanto, é trazer mais uma contribuição para os estudos no campo da semântica formal em interface com a pragmática formal. Nosso desafio, portanto, é investigar tal fenômeno dentro desta 774 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 perspectiva, destacando o papel do tópico nestes contextos e utilizandose de teorias formais como as de Rooth (1995) e Roberts (1996) para explicar tal fenômeno. Defendemos, ainda, que o deslocamento de tópico contrastivo não altera as condições de verdade da sentença. Nossa proposta é que o deslocamento interfere nas condições de felicidade ou de uso (LOPEZ, 2009; ROSA-SILVA, 2017). As respostas acima apresentam as mesmas condições de verdade. Tanto a sentença sem deslocamento, em (1) B quanto as com deslocamento, em (2)B e (3)B possuem a seguinte condição de verdade: (4) [[(1)B/(2)B (3)B]] = É verdadeiro sse o João comprou o livro de linguística. Nossa proposta é comparar contextos de sentenças canônicas, como em (1)B, em que o sintagma com função de tópico contrastivo mantém-se em sua posição original, com sentenças com deslocamento, como em (2)B, em que há uma lacuna no local de origem do sintagma deslocado, ou em (3)B, na qual o sintagma deslocado é retomado por um pronome resumptivo. Note que a última sentença está marcada com um ponto de interrogação, indicando dúvida de aceitabilidade. Isso porque, no decorrer do artigo, procuraremos investigar se tais respostas são adequadas ao contexto ou não. Ainda, observaremos se há contextos nos quais o deslocamento é agramatical. Se ambas são adequadas ou gramaticais, buscaremos responder se há uma preferência por uma ou outra, e se o contexto pode influenciar na opção do falante entre as duas. Também, será investigado se, tanto em uma quanto em outra construção, há a presença de noções semântico-pragmáticas como contraste e exaustividade. Nas seções a seguir, serão exploradas as peculiaridades do deslocamento de tópico contrastivo, suas propriedades semânticas e pragmáticas. Para isso, o artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, serão apresentados os conceitos de tópico, contraste e tópico contrastivo adotados. Na seção 3 serão analisados os contextos que apresentam sentenças com deslocamento de tópico contrastivo no português brasileiro. Por fim, na seção 4, serão destacadas as conclusões em relação presente pesquisa. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 775 2 Conceitos de tópico Tópico é considerado no presente estudo como o elemento da sentença sobre o qual se traz informações e ao qual são atribuídas propriedades. Segundo Reinhart (1981), tópico envolve a noção pragmática de aboutness. Aboutness, de acordo com a autora, indica o elemento sobre o que se fala na sentença. Estabelece uma relação entre um argumento, que é o elemento sobre o que se fala, e uma propriedade. No contexto abaixo, por exemplo, o tópico da sentença é ‘o João’, porque é sobre ele que a sentença traz informações. (5) A: E o João? Quem ele tá namorando? B: O JoãoT tá namorando a Maria.1 Na sentença em (5)B, o DP ‘o João’ é o sintagma sobre o qual são dadas informações, isto porque a propriedade de ‘x estar namorando a Maria’ é é atribuída a esse elemento. A literatura indica que o tópico em uma sentença pode ser marcado ou não marcado (PONTES, 1987; ROBERTS, 2010; entre outros). Um tópico marcado é aquele que recebe algum tipo de marcação distinta, seja ela uma estrutura sintática como deslocamento, uma marcação prosódica peculiar ou ainda um morfema que indique tópico. Em sentenças cujo tópico não é marcado, o sintagma com função de sujeito tende a assumir essa função. Apesar de sujeito ser a posição mais recorrente de tópico em PB (cf. PONTES, 1987), o sintagma com função informacional de tópico também pode ocupar a posição de objeto, como apresentado no contexto a seguir: (6) A: E a Maria? Quem tá namorando ela? B: O JOÃOF tá namorando elaT. Na sentença acima, o sintagma de tópico é o referente da ‘Maria’, já que a pergunta busca informações acerca dela e na resposta em B a propriedade ‘O João tá namorando x’ é atribuída à Maria. Nos exemplos apresentados até aqui, o sintagma com função de tópico não estabelece Os sintagmas com função de tópico serão indicados a partir de formatação em itálico, com T subscrito para tópico, sem contraste e TC subscrito para tópico com contraste. Por outro lado, os sintagmas com função de foco serão destacados em caixa alta, com F subscrito. 1 776 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 relação de contraste com outros sintagmas ou elementos disponíveis no discurso. Esse tipo de tópico é chamado por Rosa-Silva (2017) de tópico não contrastivo. Entretanto, para o presente artigo, interessa-nos apenas os contextos de deslocamento em que o tópico indique contraste. Para isso, apresentaremos, a seguir, os conceitos de contraste e tópico contrastivo adotados. 2.1 Contraste A noção de contraste é essencial para a presente pesquisa. Isso porque serão analisadas sentenças que apresentam deslocamento de tópico contrastivo. Dessa maneira, dada a importância que tal conceito representa na análise do fenômeno aqui investigado, esta seção busca apresentar a proposta adotada. Buscando identificar as diversas relações semânticas que as sentenças com contraste apresentam, Repp (2016) destaca que há três tipos de relações entre elementos de duas sentenças que as tornam contrastivas. São elas: relação com alternativas explícitas, em que são atribuídas propriedades a cada um dos elementos destacados; relação com conjunto de alternativas explícitas, na qual os elementos são declarados e apenas a um é atribuída a propriedade declarada; relação com conjunto de alternativas implícitas, em que um conjunto é inserido no contexto, porém os elementos que o compõem não são declarados explicitamente no discurso. Observe, a seguir, mais detalhadamente cada uma dessas relações, com exemplos similares aos dados pela autora. O primeiro tipo de relação semântica ocorre em contextos nos quais haja uma alternativa explícita a ser contrastada. A noção de contraste, a partir de seleção de alternativas, é definida pela autora com base na noção de semântica de alternativas dada por Rooth (1995).2 O autor defende que toda sentença declarativa, além de seu valor ordinário, também possui seu valor de foco, que é o conjunto de proposições alternativas à marcação de foco. Observe, a seguir, o exemplo dado, adaptado de Repp para o português brasileiro. (7) O João colocou UMA MAÇÃ na tigela nova e ele colocou UMA BANANA em outra tigela. Na seção seguinte, apresentaremos brevemente a proposta de Rooth (1995) para o valor de foco e a semântica de alternativas. 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 777 No contexto acima, há dois elementos disponíveis que foram explicitados: ‘uma maçã’ e ‘uma banana’. Ao elemento ‘uma maçã’ é atribuída a propriedade ‘O João colocou x na tigela nova’, enquanto ao elemento ‘uma banana’ é atribuída a propriedade ‘O João colocou x em outra tigela’. Essa relação é de alternativas explícitas, pois para cada um dos dois elementos inseridos no contexto foram atribuídas propriedades distintas. A outra relação de contraste dada por Repp (2016) é aquela na qual nem todas as alternativas são declaradas explicitamente, como mostra o exemplo a seguir, adaptado da autora. (8) O João comprou uma banana e uma maçã. Ele colocou A BANANA na sua tigela nova. A relação de contraste acima envolve um conjunto explícito. Tal conjunto é formado pelos elementos: ‘uma banana’ e ‘uma maçã’. Ao afirmar que o João colocou a banana na tigela nova, o falante declara que a propriedade de ‘o João colocar x na tigela nova’ é aplicada à ‘banana’, mas deixa em aberto que essa mesma propriedade seja aplicada à maçã. Entretanto, fica implícito que tal propriedade não é atribuída à essa última. Por último, apresentamos um exemplo dado pela autora para a relação semântica que ocorre a partir de um conjunto disponível no contexto, cujos elementos não são dados explicitamente no discurso. (9) O João estava escolhendo as frutas para colocar em sua tigela nova. Ele colocou A BANANA na tigela nova. No contexto acima, o constituinte ‘as frutas’ representa um conjunto de elementos. Ao trazer informações sobre ‘a banana’, o falante contrasta esse elemento com as demais frutas que compõem o conjunto inserido no discurso. O contraste se dá implicitamente, visto que nem os elementos do conjunto nem as alternativas são apresentados no contexto. Dessa maneira, supõe-se que a propriedade ‘O João colocou x na tigela nova’ seja aplicada somente à ‘banana’. Nesse caso, além do contraste entre ‘a banana’ e as demais frutas, ainda há uma inferência de exaustividade, já que a propriedade descrita acima não é aplicada a mais nenhum dos elementos do conjunto, com exceção à ‘banana’. Repp (2016), ainda, no que diz respeito à relação de contraste com o discurso, apresenta dois tipos de contraste: o de oposição e o de correção. No contraste por oposição, duas asserções podem ser 778 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 verdadeiras e fazem contribuições opostas à questão em discussão.3 No contraste por correção, por outro lado, uma proposição rejeita a outra, sendo que se uma for verdadeira, a outra necessariamente é falsa. Abaixo, apresentamos um exemplo de contraste por oposição, em (10), e um exemplo de contraste por correção em (11). (10) O João foi pra festa. O Pedro não foi. (11) A: O João foi pra festa. B: Não, o Pedro foi pra festa. Nesta pesquisa assumimos com Repp (2016) que contraste está relacionado com a semântica de alternativas, de Rooth (1995). Ainda, consideramos que o contraste só ocorrerá se houver uma relação de oposição ou correção entre os elementos disponíveis no discurso. Um elemento contrastivo evoca um conjunto de proposições alternativas no qual se afirma uma das proposições e nega-se pelo menos uma no discurso. 2.2 Tópico contrastivo Büring (1999) apresenta alguns tipos de tópico que envolvem contrastividade. Destacamos dois deles a seguir. Um é denomimado pelo autor de tópico parcial e outro de tópico contrastivo. Seguem abaixo um exemplo de tópico parcial e outro de tópico contrastivo, respectivamente. (12) A: Que livro os alunos compraram? B: O JoãoTC comprou O DE LINGUÍSTICAF (13) A: Que livro o João comprou? B: Bom, o PedroTC comprou O DE LINGUÍSTICAF. Assumimos no presente artigo que questão em discussão, ou Question under Discussion (QUD), segundo Roberts (1996) representa um conjunto de questões ainda não respondidas, mas que estão disponíveis no discurso e são passíveis de resposta. Essas são responsáveis por direcionar o discurso. A questão mais imediata em discussão é aquela que os participantes buscam respondê-la. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 779 Em (12), o falante B não responde totalmente à pergunta feita por A, mas apenas à informação que corresponde ao ‘João’, um elemento do conjunto de alunos. Neste caso, deixa em aberto informações sobre os demais alunos. Já no contexto em (13), em vez de trazer informações sobre ‘o João’, informação requisitada pela pergunta em A, ele introduz um novo indivíduo no contexto, ‘Pedro’, e traz informações sobre esse indivíduo. Com isso, faz uso de uma estratégia do discurso de dar informações sobre um elemento, deixando em aberto as informações correspondentes ao conjunto de indivíduos inserido pela pergunta. O autor também identificou que, em inglês, para a resposta ser apropriada nos contextos acima, foram necessários dois acentos prosódicos distintos: o acento de foco, que tem como característica um pico de acento descendente. Também um acento típico de tópico, que tem seu pico com curva ascendente. Sem estes, as construções seriam inadequadas. Ilari (1992) apresenta algumas características fonológicas da articulação informacional no português brasileiro. Segundo o autor, com base em Halliday (1967a) e Cagliari (1980), as características entoacionais de tema e rema são próximas da língua inglesa. Enquanto constituintes que representam tema ou tópico contrastivo apresentam pico de entonação ascendente, constituintes de rema ou foco possuem curvatura descendente. Baseando-se na classificação de Ilari (1992), Menuzzi e Roisenberg (2010) apresentam as seguintes estruturas entoacionais para o PB. (MENUZZI; ROISENBERG, 2010, p. 04) (14) A: Quem encontrou a Maria? B: a) O PAULO (encontrou a MARIA). b) # O Paulo (encontrou a MARIA). (15) A: Quem o Paulo encontrou? B: a) # O PAULO encontrou a MARIA. b) O Paulo encontrou a MARIA. 780 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 Nos exemplos acima dados por Menuzzi e Roisenberg, inspirados em Ilari, é possível identificar que enquanto o padrão entoacional de curvatura descendente é adequado para constituintes de foco, destacados em caixa alta (14)a, o padrão entoacional ascendente é adequado para constituintes de tópico, destacados em itálico (15)b. O padrão entoacional de (14)b e (15)b representa o padrão de constituintes de tópico, em que há uma ascendência, na qual a entonação inicia baixa e termina em tom alto. Tanto a resposta (14)b quanto (15)b são inapropriadas para as perguntas. A marcação ‘#’ indica o uso inadequado nesses contextos. Neste artigo, assumimos com Cagliari (1980), Ilari (1992) e Menuzzi e Roisenberg (2010) que o português brasileiro apresenta características prosódicas similares ao inglês no que diz respeito aos elementos de tópico contrastivo e foco da sentença, em que o primeiro apresenta curvatura ascendente e o último descendente. Assim como Büring (1999, 2003), ainda consideramos que os contextos dados anteriormente, (12) e (13), apresentam sintagmas com função de tópico contrastivo, primeiro porque possuem marcação prosódica semelhante e segundo porque veiculam contrastividade. Ao responder (12)B, o falante contrasta ‘o João’ com os demais indivíduos do conjunto inserido pela pergunta. E em (13)B, o falante contrasta explicitamente ‘O João’ com o indivíduo ‘Pedro’, dado pela pergunta. Büring (1999, 2003), ainda, afirma que o valor de foco¸ proposta dada por Rooth (1995), para sentenças com marcação de foco, não é suficiente para representar sentenças que apresentem tópico contrastivo. Para Rooth (1995), a marcação prosódica de foco evoca um conjunto de alternativas contextualmente relevantes. Com isso, o falante tem à disposição um conjunto de asserções e entre elas escolhe uma para a resposta. Dessa maneira, cada um dos diálogos acima desencadeará um conjunto de alternativas distinto. Para calcular as alternativas de foco, o autor define o valor de foco. Segundo Rooth, as sentenças apresentam seu valor ordinário e valor de foco. Considere os seguintes contextos: (16) A: Quem o João tá namorando? B: O João tá namorando A MARIA. (17) A: Quem tá namorando a Maria? B: O JOÃO tá namorando a Maria. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 781 O valor de foco da sentença (16)B corresponde ao conjunto de alternativas contextualmente relevantes para a resposta de (16)A. Veja a representação do valor do valor ordinário e de foco de (16)B abaixo, considerando que os indivíduos disponíveis no discurso sejam: Maria, Ana, Marta, João, Pedro, Marcos. Em seguida, apresentamos os valores ordinário e de foco para (17)B, a fim de comparação com o anterior. (18) [[(16)B]]0 = namorar(m,j) (19) [[(16)B]]f = {O João tá namorando a Maria, O João tá namorando a Ana, O João tá namorando a Marta} (20) [[(17)B]]0 = namorar(m,j) (21) [[(17)B]]f = {O João tá namorando a Maria, O Pedro tá namorando a Maria, O Marcos tá namorando a Maria} Como podemos observar acima, os valores ordinários tanto da sentença (16)B quanto de (17)B são idênticos e possuem a mesma forma lógica, representada em (18) e (20). A estrutura informacional das sentenças não altera as suas condições de verdade. Entretanto, os valores de foco das sentenças comparadas são distintos. Como os conjuntos de proposições são evocados a partir da marcação de foco, as alternativas são diferentes para cada contexto. Para o diálogo em (16), o conjunto de alternativas, representado por (19), apresenta proposições com o mesmo sujeito e objetos diferentes. Por outro lado, o conjunto de alternativas evocado por (17) e representado em (21) possui proposições com o mesmo objeto e sujeitos diferentes. Tal comparação demonstra que sentenças com valores semânticos ordinários idênticos podem apresentar valores de foco distintos. Essa distinção se dará a partir da pergunta dada explícita ou implicitamente pelo contexto e, consequentemente, pela marcação prosódica atribuída à sentença. Observemos, a seguir, os valores de foco para (12)B e (13)B, dadas no início da seção, respectivamente, considerando os seguintes elementos no domínio: João e Pedro para o conjunto de alunos; livro de linguística e livro de literatura para o conjunto de livros. 782 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 (22) [[(12)B]]f = {Os alunos compraram o livro de linguística, Os alunos compraram o livro de literatura} (23) [[(13)B]]f= {O João comprou o livro de linguística; O João comprou o livro de literatura} Note que em (22) não há uma proposição do tipo ‘O João comprou o livro de linguística’, resposta dada em (12)B. As proposições possíveis são apenas de respostas completas, sem apresentar uma proposição de resposta parcial, como ocorre no exemplo acima. O valor de foco de (13)B, apresentado em (22) também não apresenta a proposição obtida como resposta “O Pedro comprou o livro de linguística”, mas somente respostas relacionadas ao indivíduo “João”. Para ser possível identificar o valor semântico de sentenças como as apresentadas acima, Büring definiu o valor de tópico, que representa um subconjunto do conjunto de proposições possíveis para determinado contexto, ou simplesmente um conjunto de perguntas. Para cada elemento disponível, há um conjunto de proposições. A união desses conjuntos consiste no valor de tópico da sentença. Para (12)B, por exemplo, suponhamos que o conjunto de alunos seja formado pelos indivíduos: João e Pedro. Para cada indivíduo há um conjunto de proposições. Para João: {O João comprou o livro de linguística, O João comprou o livro de literatura}. Para Pedro: {O Pedro comprou o livro de linguística, O Pedro comprou o livro de literatura}. O valor de tópico de (12)B, portanto é a junção desses conjuntos, como segue: (24) [[(12)B]]t= {{O João comprou o livro de linguística, O João comprou o livro de literatura}, {O Pedro comprou o livro de linguística, O Pedro comprou o livro de literatura}} Como cada conjunto representa o valor ordinário de uma questão, a denotação do valor de tópico de (12)B pode ser representada por um conjunto de questões. (25) [[(12)B]] t={Que livro o João comprou?, Que livro o Pedro comprou? Que livro o João e o Pedro compraram?} Com isso, Büring modifica a definição de congruência defendida por autores como Roberts (1996) e Rooth (1995), que estaria relacionada Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 783 ao valor de foco. Congruência foi considerada pelos autores como a relação entre a semântica da pergunta e o valor de foco da resposta. Se o valor de foco corresponde ao valor ordinário da pergunta, a resposta é considerada congruente. Büring, entretanto afirma que congruência está relacionada ao valor de tópico e não de foco. Para ser congruente, o valor ordinário da pergunta deve pertencer ao valor de tópico da resposta. Com a formalização do valor de tópico, o autor define a condição do par questão/resposta: (26) O valor ordinário de uma questão deve pertencer a um elemento do valor de tópico da resposta ([[Q]]0∈[[A]]T). Dessa forma, a resposta em (12)B é congruente com a pergunta em A, pois essa pertence ao valor de tópico de (12)B, a partir da ‘Que livro o João e o Pedro compraram?’, uma vez que a soma dos indivíduos Pedro e João corresponde ao conjunto de alunos neste contexto. (27) ([[Que livro os alunos compraram?]]0∈[[Que livro o João comprou?, Que livro o Pedro comprou? Que livro o João e o Pedro compraram?}]]T Notemos que o valor ordinário de (12)A pertence ao valor de tópico de (12)B. O valor semântico da questão ‘Que livro os alunos (João e Pedro) compraram?’, que faz parte do valor de tópico, é um conjunto de alternativas que contém ‘O João comprou o livro de linguística’. A resposta é adequada e satisfaz a condição do par questão/resposta. Outro tipo de tópico, também com marcação de tópico contrastivo, que Büring denomina de tópico puramente implicacional, é apresentado a seguir. (28) A: A sua esposa foi pra festa? B: A minhaTC esposa NÃOF foi pra festa. A sentença (28), a não ser pelo acento de tópico, responde exatamente ao requerido pela questão em A, pois o valor de foco de (28) B é o seguinte: 784 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 (29) [[(28)B]] f = {A minha esposa foi pra festa; A minha esposa não foi pra festa}4 Como pudemos observar, a resposta dada em (28)B pertence ao seu valor de foco. No entanto, o acento no constituinte de tópico em B indica que o falante deseja trazer ao contexto questões alternativas. Responde ao que A pergunta, mas deixa no ar questões como: A esposa de Pedro foi pra festa?; A esposa de Marcos foi pra festa?; A esposa de Paulo foi pra festa?. Estas questões podem determinar a continuidade da conversação. Tais questões fazem parte do valor de tópico de (28)B, como podemos observar a seguir. (30) [[(28)B]]t = {A minha esposa foi pra festa?; A esposa do Pedro foi pra festa?; A esposa do Marcos foi pra festa?} Uma diferença essencial de sentenças como (28) para as anteriores é que, enquanto para identificar a implicatura de sentenças com tópico parcial ou contrastivo era necessário olhar para o contexto anterior, implicaturas de sentenças puramente implicacionais determinam o rumo da conversação após a pronúncia da sentença. Ainda, em relação à análise de tópico contrastivo, Menuzzi e Roisenberg (2010), investigaram sentenças do PB que apresentam tópico contrastivo, com o objetivo de determinar o impacto da articulação informacional da sentença na estruturação do discurso. Os autores destacam que a proposta de Büring para tópicos contrastivos, que relaciona a articulação informacional a “perguntas-tópicas” implícitas é mais adequada para explicar determinadas propriedades desse tipo de tópico. Neste artigo assumimos com Büring (1999, 2003) que tópico contrastivo, apresenta uma marcação prosódica peculiar e evoca um conjunto de perguntas relevantes. Como a pergunta em (28)B apresenta um exemplo de pergunta polar, em que há duas possibilidades de resposta: sim ou não, o valor de foco é constituído por uma proposição positiva e outra negativa. Ainda, nestes casos, no PB, o acento prosódico que indica o elemento de foco recai sobre o elemento negativo, se a resposta for negativa, ou no verbo da sentença, se a resposta for positiva. 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 785 3 Deslocamento de tópico contrastivo em PB No estudo do português brasileiro, há várias pesquisas que investigaram a posição de tópico na sentença, a partir de diversas perspectivas. Um dos trabalhos seminais sobre tópico no PB é o de Pontes (1987). Sua pesquisa é de extrema importância para a investigação linguística do português brasileiro, dado que foi um dos primeiros a destacar e levantar particularidades do tópico em nossa língua. Os dados coletados por ela já serviram de ponto de partida para muitas análises do PB. Para a presente pesquisa não é diferente, servirão de base para análise e discussão semântico-pragmática do fenômeno de deslocamento que essa pesquisa se propõe a realizar. A autora destaca que no português coloquial, o tópico exerce um papel essencial. Investiga as construções de tópico marcado que apresentam uma estrutura sintática na qual o constituinte com essa função encontra-se na posição inicial da sentença. Segundo Pontes, qualquer sintagma nominal pode se deslocar para a posição de tópico e esse fenômeno pode ocorrer em orações de todos os tipos, inclusive encaixadas. Ainda, o elemento que assume a função de tópico na sentença pode estar em qualquer posição sintática: sujeito, objeto, adjunto, complemento, etc. A seguir, alguns exemplos dados pela autora (PONTES, 1987, p. 12): (31) Os livros1, eles1 estão em cima da mesa. (32) A Maria1, essa1 não quer nada com o serviço. (33) Quanto a mim1, estou me1 lixando. (34) Dessa cerveja1, eu não bebo t1. Enquanto os sintagmas deslocados com função de tópico nas sentenças (31), (32) possuem a função de direcionar o ouvinte para o tema da conversa e não apresentam contraste, nas sentenças (33) e (34) o sintagma na função de tópico, segundo a autora, possui uma noção de contraste. São exemplos de sentenças como as últimas que investigaremos nesta pesquisa. Além de Pontes, outros autores como Ilari (1992) e Kato (1989, 1998) investigaram a estrutura informacional das sentenças do PB. O 786 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 primeiro, a partir de uma proposta mais funcionalista e a última, dentro de uma perspectiva gerativista, da teoria de princípios e parâmetros. Orsini e Vasco (2007) e Orsini (2011), por sua vez, investigam as estruturas com deslocamento em PB sob o viés da sociolinguística. A partir dos dados levantados, esses últimos os autores concluem que estruturas de deslocamento, tanto com pronome preenchido quanto sem, são muito produtivas no português brasileiro. Ocorrem em sua maioria com sintagmas definidos e esses sintagmas podem ter qualquer função sintática. Nossa tarefa, então, é identificar os fatores semânticos e pragmáticos que estão em torno de tal fenômeno. Dessa maneira, analisaremos sentenças com deslocamento para a periferia esquerda, em que o sintagma deslocado seja definido e tenha a função discursiva de tópico contrastivo. Mais precisamente, investigaremos se: i) a posição sintática original do sintagma deslocado: sujeito, objeto entre outras, influenciam na aceitabilidade da sentença; ii) o tipo de pergunta: sim / não ou pergunta QU são fatores predominantes para a aceitabilidade de sentenças com deslocamento; iii) se há diferenças entre sentenças com deslocamento com retomada de pronome e sentenças sem; iv) se o tipo de relação de contraste: de correção ou de oposição, implícito ou explícito, influencia na aceitabilidade. Iniciaremos por observar um contexto de pergunta sim/não, em que o falante poderia responder simplesmente “sim” ou “não” à pergunta dada. Compare os dois diálogos a seguir, um de resposta canônica e o outro com deslocamento e retomada de pronome. (35) A: Os alunos vão pra festa? B: (Sim, eles) VÃOF.5 (36) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. A forma canônica de responder à pergunta sim / não no PB é omitindo o TP e pronunciando apenas o verbo “vão”, por isso a afirmação, juntamente com o sujeito, informação dada pela pergunta, estão grafados entre parênteses. Também, em pergunta sim/não o foco recai sobre o verbo, que indica a resposta afirmativa à pergunta, por isso a marcação de foco no verbo em todos os diálogos com esse tipo de pergunta. 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 787 Na resposta em (35)B, o falante responde completamente à pergunta dada por A, ou seja, responde afirmativamente a todos os indivíduos do conjunto de alunos. Em (36)B, por sua vez, ao ser perguntado sobre todos os alunos, o falante traz informações apenas sobre um indivíduo do conjunto, ‘o João’. Faz uso do deslocamento acompanhado da entonação peculiar de tópico contrastivo. É importante destacar que a resposta também seria aceitável com uma entonação de foco, de curvatura descendente. Entretanto, a marcação TC, de tópico contrastivo indica que a resposta apresenta uma marcação entonacional de tópico, de curvatura ascendente. A partir de tal marcação, o falante faz uso da estratégia de responder parcialmente a uma pergunta implícita do tipo: “Quais alunos vão pra festa?”. Essa resposta parcial indica que a noção de contraste está presente, visto que ao dar informações sobre ‘o João’, o falante estabelece uma relação de contraste por oposição entre o elemento destacado e os demais indivíduos do conjunto. Atribui a propriedade ‘x vai pra festa’ ao ‘João’ e deixa em aberto que tal propriedade seja aplicada aos demais participantes do conjunto. O valor de foco e de tópico para (36)B, respectivamente, são os seguintes (considerando que o conjunto de alunos seja formado por: João, Pedro, Marcos, Maria): (37) [[(36)B]]f = {Os alunos vão pra festa, Os alunos não vão pra festa}6 (38) [[(36)B]]t = {O João vai pra festa?, O Pedro vai pra festa?, O Marcos vai pra festa? A Maria vai pra festa?} Como em pergunta sim / não o valor de foco recai sobre o verbo, as alternativas de foco são apenas duas: a afirmação e a negação em relação à propriedade dada pelo verbo da sentença. Desta maneira, podemos identificar que o valor de foco em (37) não é suficiente para explicitar a proposição dada na resposta em (36)B. Entretanto, no valor de tópico, dado em (38), podemos observar que a resposta dada acima responde completamente à pergunta “O João vai pra festa?”, deixando em aberto as demais. O deslocamento, então, indica que o falante primeiramente seleciona um indivíduo do conjunto dado pela pergunta, ‘o conjunto de alunos’, para posteriormente lhe atribuir uma O valor de foco para uma pergunta sim/não possui apenas duas alternativas: uma que afirma o perguntado ‘sim’ e outra que nega ‘não’. 6 788 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 propriedade (cf. REINHART, 1981). Como o elemento faz parte de um conjunto disponível no contexto e esse elemento é contrastado com os demais, possui a função discursiva de tópico contrastivo (cf. BÜRING, 1999, 2003). Ainda, se não houver deslocamento, mas o sintagma na posição de sujeito receber a marcação de tópico contrastivo, a resposta da mesma forma é adequada, como podemos observar no diálogo a seguir. (39) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC VAIF. (40) A: Os alunos vão pra festa? B: #O João VAIF. Comparando a sentença sem deslocamento em (39)B, com a sentença que apresenta deslocamento, em (36)B, podemos observar que as duas são aceitáveis se o sintagma na posição de sujeito apresentar uma marcação de tópico. A marcação indica que o indivíduo ‘o João’ estabelece uma relação de contraste por oposição, na qual o indivíduo ‘o João’ é contrastado com os demais integrantes do conjunto de alunos inserido pela pergunta. Por outro lado, sem a marcação específica de tópico contrastivo, a resposta é inadequada para o contexto ((40)B). Desta maneira, a contribuição do deslocamento de sujeito não é necessariamente em relação ao contraste, mas para indicar que ao fazer uso desse tipo de estrutura, o falante primeiramente aponta para o tópico da sentença, para posteriormente lhe atribuir a propriedade “x vai pra festa”, noção de aboutness, proposta por Reinhart (1981). Tanto a sentença com deslocamento quanto a sem não apresentam inferência de exaustividade, já que a marcação de tópico contrastivo indica que o falante esteja respondendo parcialmente à pergunta mais ampla dada no contexto, trazendo informações sobre um indivíduo do conjunto de alunos, e deixando os demais sem informações. Fica implícito que há outros alunos no contexto que irão à festa, porém o falante não tem informações sobre isso. Entretanto, há uma implicatura epistêmica, que diz respeito ao conhecimento do falante. Tal implicatura é de que o falante não sabe se os demais alunos, além do ‘João’ possuem a propriedade de ‘x ir à festa’. Como podemos ver a seguir, por ser uma implicatura e poder ser cancelada, a propriedade “x ir pra festa” também pode ser aplicada a outros indivíduos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 789 (41) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, VAIF. A Maria também. (42) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. A Maria também. Apesar do cancelamento da implicatura poder ocorrer nos dois casos, a sentença com deslocamento parece apresentar um nível menor de cancelamento do que a sentença sem. Esse tipo de implicatura também parece apresentar níveis diferentes de cancelamento.7 Observemos, a seguir, se em vez do sintagma ser retomado por pronome, houver uma estrutura que apresente uma lacuna no local de origem do sintagma deslocado. (43) A: Os alunos vão pra festa? B: ?O JoãoTC, [] VAIF. Apesar de ser possível, o deslocamento do sintagma sujeito com lacuna não parece ser o mais natural para o contexto acima. A resposta mais adequada para um contexto em que o falante faça uso da estratégia de responder parcialmente a uma pergunta dada em dois momentos subsequentes, o primeiro em que apresenta um elemento no contexto e o outro em que atribui uma propriedade a esse elemento, é a apresentada anteriormente em (36)B. Nos diálogos acima, o contraste foi dado implicitamente, em que, ao atribuir uma propriedade a determinado indivíduo, o falante deixa implícito que tal propriedade não é atribuída aos demais indivíduos do conjunto. Observemos, a seguir, se ocorrem mudanças quando o contraste é dado explicitamente no contexto (cf. REPP, 2016). (44) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. A MariaTC, ela NÃO VAIF. No diálogo acima, o falante contrasta explicitamente os indivíduos ‘João’ e ‘Maria’, estabelecendo, assim, uma relação de Essas diferenças e níveis de aceitabilidade estão sendo investigadas em projetos de pesquisa em andamento que incluem experimentos psicolinguísticos (Projeto de pósdoutorado PNPD /CAPES na UFF). 7 790 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 contraste por oposição entre os dois indivíduos. Atribui a propriedade “x vai pra festa” ao ‘João’ e nega que essa mesma propriedade seja atribuída à ‘Maria’. Observe, respectivamente, os valores de foco e de tópico para a resposta (44)B. (45) [[(44)B]]f {Os alunos vão pra festa, Os alunos não vão pra festa} (46) [[(44)B]]t {O João vai pra festa?, A Maria vai pra festa?} Como vimos, o valor de foco não é suficiente para explicar a sentença acima, em (44)B. Considerando, o valor de tópico, então, podemos observar que, ao fazer uso do deslocamento, juntamente com a entonação peculiar de tópico contrastivo, o falante responde afirmativamente à primeira pergunta, relacionada a ‘João’, e negativamente à segunda pergunta, sobre ‘Maria’. Observemos, a seguir, se o contexto de contraste explícito, em que todos os elementos a serem contrastados são dados, admite a estrutura de deslocamento com lacuna no local de origem do sintagma deslocado. (47) A: Os alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, [] VAIF. A MariaTC NÃOF. Se o falante afirmar ou negar explicitamente a propriedade em questão, a resposta com deslocamento acompanhada de pausa é possível e mais natural, diferentemente do contexto com contraste implícito, visto anteriormente, em (43). Fica explícito que há uma relação de contraste por oposição entre os dois elementos dados pelo contexto: ‘o João’ e ‘a Maria’. Ainda, observemos um diálogo no qual a pergunta, ao invés de inserir um conjunto de alunos no contexto, indique explicitamente os elementos que fazem parte desse conjunto. O primeiro diálogo, em (48), apresenta uma resposta canônica e o segundo, em (49), apresenta uma sentença com deslocamento. (48) A: O João e a Maria vão pra festa? B: O JoãoTC VAIF. (49) A: O João e a Maria vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 791 Da mesma maneira que os diálogos que apresentam um conjunto de indivíduos na pergunta, nos contextos acima, podemos observar que tanto a sentença canônica quanto a com deslocamento são adequadas para responder parcialmente ou contrastivamente à pergunta dada pelo contexto. Neste caso, ao trazer informações sobre ‘o João’, o falante deixa em aberto as informações relacionadas à ‘Maria’. A diferença entre um e outro é que na sentença com deslocamento há uma estratégia de primeiramente indicar o tópico da sentença para posteriormente lhe atribuir uma propriedade. Na sentença com deslocamento, por sua vez, om tópico é dado simultaneamente com sua propriedade. Tanto em uma como em outra resposta, há uma implicatura de nível epistêmico, relacionada ao conhecimento do falante. Nesse caso, ele não tem informações sobre a Maria, se a propriedade “x ir pra festa” é aplicada ao indivíduo ‘Maria’ ou não. Entretanto, por ser uma implicatura, essa pode ser cancelada, tanto na sentença canônica quanto na sentença com deslocamento. (50) A: O João e a Maria vão pra festa? B: O JoãoTC VAIF. A Maria também. (51) A: O João e a Maria vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. A Maria também. Apesar do cancelamento da implicatura poder ocorrer nos dois casos, a sentença com deslocamento parece apresentar menor possibilidade de cancelamento do que a sentença sem. Esse tipo de implicatura também parece apresentar níveis diferentes de cancelamento, o que deve ser confirmado com experimentos em pesquisas futuras.8 Até o momento, analisamos sentenças com deslocamento de tópico contrastivo na posição de sujeito apenas em contextos de pergunta sim / não. Observemos, a seguir, o que ocorre com deslocamento na posição de sujeito para contextos que apresentem pergunta QU.9 O nível de possibilidade de deslocamento deve ser analisado a partir de um experimento psicolinguístico que teste o nível de aceitabilidade de sentenças com deslocamento, em comparação com sentenças com deslocamento. Tal pesquisa está em andamento em um projeto de pós-doutorado financiado pela CAPES – PNPD, na Universidade Federal Fluminense. 9 WH question, em inglês. 8 792 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 (52) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: O JoãoTC VAIF. (53) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. Assim como em contextos de pergunta sim / não, em contextos de pergunta QU, a resposta pode tanto ser canônica como com deslocamento. Ao comparar os diálogos acima, podemos observar que, para ser tópico contrastivo, a resposta vai depender da entonação (cf. BÜRING, 1999, 2003), tanto na sentença canônica, em (52)B, quanto na com deslocamento, em (53)B. Essas somente serão adequadas e apresentarão a estratégia de resposta parcial à pergunta explicitamente dada, se apresentarem a entonação típica de tópico contrastivo. Se não houver tal entonação, tanto uma quanto outra apresentam respostas completas para a pergunta. A estratégia de resposta parcial, então, é dada não pelo deslocamento e sim pela entonação de tópico. A diferença entre uma sentença e outra é que a resposta com deslocamento indica que o falante primeiramente seleciona um indivíduo do conjunto de alunos, para posteriormente atribuir-lhe uma propriedade, o que caracteriza uma sentença de juízo categórico em PB.10 É importante ressaltar que A noção de juízo categórico é discutida na literatura por autores como Ladusaw (1994) e Kuroda (2003). Segundo os autores, as sentenças podem apresentar dois tipos de julgamentos: o julgamento categórico e o julgamento tético. O julgamento tético representa apenas uma descrição de uma situação abstrata ou concreta, enquanto o julgamento categórico representa uma predicação. Esse último é reconhecido por consistir de dois atos separados: um ato de reconhecimento do sujeito e outro ato de afirmação ou negação de uma propriedade relacionada ao sujeito. Nesse caso, o sujeito é conhecido do falante. A mente do ouvinte é direcionada primeiramente ao indivíduo, para depois ser apresentada a propriedade relacionada a ele. Compare os contextos abaixo, em japonês, dados pelo por Ladusaw (1994, p. 222): (a) Neko ga asoko de nemutte iru. O/um suj gato dormindo está. (b) Neko wa asoko de nemutte iru. O top gato dormindo está. Em japonês, o marcador wa identifica o tópico da sentença. Segundo Ladusaw, tal marcador também indica que a sentença apresenta juízo categórico. Na sentença (a), 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 793 sem a marcação de tópico a pergunta é respondida completamente, sem deixar em aberto informações sobre os demais alunos do contexto. Sem marcação de tópico, a interpretação é de que o ‘João’ tem a propriedade de ‘x ir à festa’ e os demais alunos não. A resposta com pausa e lacuna (54)B, por sua vez, não é mais natural. (54) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: #O JoãoTC, [ ] VAIF. Por fim, observemos um contexto de pergunta QU, cujos indivíduos contrastados sejam dados explicitamente. (55) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: O JoãoTC VAIF. A MariaTC não VAIF. (56) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, ele VAIF. A MariaTC não VAIF. (57) A: Quais dos alunos vão pra festa? B: O JoãoTC, [ ] VAIF. A MariaTC não VAIF. Comparando as sentenças acima, a diferença entre a sentença canônica, em (55), e a sentença com deslocamento e retomada de pronome, em (56), não é a estratégia de resposta parcial, já que essa é dada pela entonação de tópico contrastivo. A diferença entre uma e outra é que, enquanto a resposta canônica atribui a propriedade de ‘x ir pra festa’ diretamente a ‘João’, a sentença com deslocamento primeiramente direciona a atenção do ouvinte para um indivíduo, ‘o João’, para depois lhe atribuir a propriedade (REINHART, 1981). A propriedade ‘x ir pra festa’ é explicitamente negada à ‘Maria’ nas duas respostas. A resposta com pausa, em (57), é aceitável no contexto que apresenta explicitamente em que o determinante neko é acompanhado por ga, marcador de sujeito em japonês, a sentença apenas descreve um evento, do gato estar dormindo em algum lugar. Em (b), em que o marcador wa identifica o tópico da sentença, há uma sentença de juízo categórico, em que a atenção do ouvinte é direcionada primeiramente ao gato e depois para a propriedade atribuída a ele. 794 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 os indivíduos contrastados, diferentemente do contexto em que apenas um indivíduo é explicitado. Até então, todos os contextos de deslocamento de tópico contrastivo apresentam relação de contraste por oposição, seguindo Repp (2016). Observemos se é possível haver uma sentença com deslocamento de tópico contrastivo, cuja relação de contraste estabelecida seja de correção, em que a verdade de uma asserção implica na falsidade de outra, também proposta de Repp. (58) A: O João foi pra festa ontem. B: ?O PauloTC. foi. (59) A: O João foi pra festa ontem. B: ?O PauloTC. ele foi. Tanto a sentença canônica em (58)B, quanto a com deslocamento (59)B não indicam uma relação de contraste por correção. A marcação de tópico contrastivo indica que o falante esteja respondendo parcialmente a uma pergunta implícita do tipo: “Quem foi pra festa?”. Ao responder parcialmente a tal pergunta, o falante não necessariamente nega a asserção em A. Dessa maneira, não há relação de contraste por correção, visto que nesse tipo de relação de contraste, a verdade de uma asserção implica necessariamente na falsidade da outra. Nos diálogos acima, mesmo afirmando que a propriedade “x foi pra festa” seja atribuída ao ‘Paulo’, o falante não nega que tal propriedade seja atribuída ao ‘João’. As sentenças seriam mais bem empregadas se houvesse uma marcação de foco no sintagma ‘O Paulo’.11 Até o presente momento, os contextos analisados apresentaram apenas sentenças com deslocamento de sintagmas na posição de sujeito. A distinção de foco corretivo ou contrastivo para tópico contrastivo se dá em dois níveis: prosódico e pragmático. No nível prosódico há a distinção do acento, enquanto o primeiro apresenta pico descendente, o último possui pico descendente. Já no nível pragmático, enquanto o elemento de foco representa uma informação nova, o elemento de tópico representa uma informação dada, já disponível no contexto. Daí a explicação para a resposta em contexto de correção como o acima somente ser adequada com marcação de foco, visto que o elemento inserido pela resposta ‘o Paulo’, representa uma informação nova, não presente no contexto prévio. 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 795 Relembrando que Pontes, 1987 afirma que tópico marcado em PB pode ocorrer nas diversas posições sintática, observemos, a seguir, sentenças com deslocamento de tópico contrastivo a partir da posição de objeto. Iniciemos com um contexto em que haja uma pergunta sim/não, na qual a resposta consiste em afirmar ou negar a propriedade contida na pergunta. Primeiramente, a fim de comparação, observemos um diálogo com uma resposta sem deslocamento, e completa para a pergunta sim/não, em que a resposta mais natural seja “sim” ou “não”. (60) A: O João comprou os livros do curso? B: Sim, (ele COMPROUF os livros do curso). A resposta acima, que caracteriza uma resposta completa para a pergunta dada, é adequada para o contexto. No entanto, se o falante optar por responder parcialmente ou contrastivamente à pergunta dada (cf. BÜRING, 1999, 2003), poderia ter duas opções, uma sem deslocamento, no qual o sintagma na posição de objeto recebe a marcação de tópico contrastivo e se mantém em sua posição canônica, (61)B, e outra com deslocamento, no qual o sintagma com marcação de tópico contrastivo é deslocado para a periferia esquerda da sentença, (62)B. (61) A: O João comprou os livros do curso? B: Ele COMPROUF o livro de linguísticaTC, (62) A: O João comprou os livros do curso? B: O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF t1. Apesar de as duas respostas serem aceitáveis, a resposta com deslocamento parece ser a mais adequada para o contexto, o que indica que deslocamento de tópico contrastivo na posição de objeto também contribui para a noção de contraste, além da marcação peculiar. Ressaltamos que a estrutura sintática tem um papel essencial para estabelecer a relação semântico-pragmática de contraste. Como já apontado por Rizzi (1997), o contraste está relacionado à periferia esquerda da sentença. A relação de contraste, que é enfatizada a partir da estrutura sintática, se dá a partir do contraste por oposição entre o elemento com marcação de tópico contrastivo e os demais elementos do conjunto dos livros do curso, dado pela pergunta. Tanto a sentença 796 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 canônica, em (61)B, quanto a com deslocamento, em (62)B, apresentam respectivamente os seguintes valores de foco e de tópico. (63) [[(61) / (62)B]]f ={O João comprou os livros do curso, O João não comprou os livros do curso} (64) [[(61) / (62)B]]t ={O João comprou o livro de linguística?, O João comprou o livro de literatura?} Como apresentado acima, o valor de foco apresenta apenas as alternativas de afirmação e negação em relação ao João comprar os livros do curso, o que não é suficiente para explicar as sentenças acima. O valor de tópico, por sua vez, apresenta um conjunto de perguntas, em que uma delas, ‘O João comprou o livro de linguística?’, é respondida completamente tanto pela sentença canônica quanto pela sentença com deslocamento. Observemos, a seguir, se o contraste for dado explicitamente. (65) A: O João comprou os livros do curso? B: Ele COMPROUF o livro de linguísticaTC. Não comprou o de literatura. (66) A: O João comprou os livros do curso? B: O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF t1. O de literatura, NÃOF comprou. Da mesma maneira que, com contraste implícito, com contraste explícito, as duas possibilidades de respostas são aceitas, entretanto a resposta com deslocamento, em que o elemento com função informacional de tópico aparece na periferia esquerda da sentença, é mais natural e indica a estratégia de primeiramente indicar o tópico da sentença para posteriormente lhe atribuir uma propriedade. A relação de contraste se dá a partir da relação de oposição. Observemos, a seguir, se a implicatura de natureza epistêmica, relacionada ao conhecimento do falante, na qual o falante tem informações apenas sobre ‘o livro de linguística’, se mantém, ou pode ser cancelada pelo contexto que segue. (67) A: O João comprou os livros do curso? B: Ele COMPROUF o livro de linguísticaTC. E o de literatura também. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 797 (68) A: O João comprou os livros do curso? B: O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF t1. E o de literatura também. Como a pergunta insere no discurso um conjunto de indivíduos, que pode ser composto por mais membros, além do ‘livro de linguística’ e do ‘livro de literatura’, as respostas deixam implícito que haja outros livros, os quais não possuem a propriedade “O João comprar x”. Porém, mesmo assim a implicatura se mantém. Se a estrutura da sentença apresentar um pronome no local de origem do sintagma deslocado, a sentença não é adequada, como podemos observar no diálogo a seguir. (69) A: O João comprou os livros do curso? B: #O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF ele1. Observemos, a seguir o que ocorre se os elementos disponíveis no discurso forem dados explicitamente na pergunta, se é possível haver deslocamento do sintagma na posição de objeto para a periferia esquerda da sentença. (70) A: O João comprou os livros de linguística e de literatura? B: Ele COMPROUF o livro de linguísticaTC, (71) A: O João comprou os livros de linguística e de literatura? B: O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF t1. Tanto a resposta com deslocamento quanto a resposta sem são adequadas para a pergunta que apresenta explicitamente os indivíduos a serem contrastados. Com isso, o sintagma ‘o livro de linguística’ estabelece uma relação de contraste por oposição com o sintagma ‘o livro de literatura’, em que a propriedade ‘O João comprou x’ é aplicada ao ‘livro de linguística’, mas não ao ‘livro de literatura’. Como essa relação de contraste se estabelece explicitamente, ela não pode ser cancelada pelo contexto, como podemos observar a seguir. (72) A: O João comprou os livros de linguística e de literatura? B: ?Ele COMPROUF o livro de linguísticaTC, E o de literatura também. (73) A: O João comprou os livros de linguística e de literatura? B: #O livro de linguísticaTC, ele COMPROUF t1. E o de literatura também. 798 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 As duas respostas são estranhas e não parecem ser naturais para a pergunta em A. Entretanto, enquanto a resposta em (72)B pode até ser utilizada em algum contexto, a resposta em (73)B, com deslocamento é inadequada. Outro contexto em que é possível deslocar um sintagma com função de tópico contrastivo na posição de objeto é o apresentado a seguir, com pergunta QU. Observemos se há diferenças de uso em relação ao contexto de pergunta sim / não. (74) A: Onde o João comprou o livro de linguística? B: ?O João comprou o livro de linguísticaTC na FNACF. (75) A: Onde o João comprou o livro de linguística? B: O livro de linguísticaTC, o João comprou t1 na FNACF. Comparando as duas sentenças, a primeira sem deslocamento e a segunda com, podemos observar que a sentença com deslocamento é mais adequada nesse caso em que o sintagma na posição de objeto recebe a marcação de tópico contrastivo. Isso porque o deslocamento coloca em evidência o elemento a ser contrastado, para depois atribuir a ele a propriedade “o João comprou x na FNAC”. Mais uma vez fica claro o importante papel da estrutura sintática para o desencadeamento da noção de contraste. O deslocamento para a periferia esquerda da sentença reforça a noção semântica de contraste estabelecida entre os elementos destacados no contexto. A marcação indica que o falante responde parcialmente a uma pergunta implícita do tipo “Onde o João comprou os livros do curso?”, trazendo informações sobre o livro de linguística e deixando em aberto informações sobre os demais livros do conjunto. O sintagma ‘o livro de linguística’ da resposta canônica, por outro lado, até pode receber o acento de tópico contrastivo, entretanto a resposta não é natural. Os valores de tópico e foco do enunciado em (75)B é dado a seguir. (76) [[(75)B]]f ={O João comprou o livro de linguística na FNAC, O João comprou o livro de linguística na Saraiva} (77) [[(75)B]]t ={Onde o João comprou os livros?, Onde o João comprou os cadernos?} Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 799 Observe que o falante responde à pergunta explicitada no contexto, entretanto, também responde parcialmente a uma pergunta maior como. ‘Onde o João comprou os livros?’. A resposta acima, se não fosse pela marcação de tópico contrastivo, corresponde exatamente à informação requisitada. A marcação de tópico contrastivo indica que o falante esteja fazendo uso de uma estratégia de responder parcialmente a uma pergunta mais ampla do que a dada no diálogo. Com isso, lança no contexto outras perguntas e as deixa sem resposta. Se em vez de um único elemento, a pergunta inserir um conjunto de elementos, a marcação de tópico contrastivo é adequada tanto na sentença canônica quanto na com deslocamento. (78) A: Onde o João comprou os livros do curso? B: O João COMPROUF o de linguísticaTC na FNAC. (79) A: Onde o João comprou os livros do curso? B: O de linguísticaTC1, o João COMPROUF t1 na FNAC. Apesar das duas respostas serem adequadas, ainda assim, a resposta com deslocamento é mais natural. Isto porque uma das estratégias de deslocamento é primeiramente indicar o tópico da sentença para posteriormente atribuir uma propriedade a esse tópico contribui com a relação de contraste que o referente desse tópico passa a estabelecer com os demais elementos disponíveis no discurso. Tal estratégia está intimamente relacionada com a estrutura sintática, na qual o sintagma com função de tópico contrastivo é deslocado para a periferia esquerda da sentença. Ainda, a estrutura de deslocamento pode apresentar retomada de pronome, entretanto não é tão natural quanto a estrutura com lacuna. (80) A: Onde o João comprou os livros do curso? B: O de linguísticaTC1, o João COMPROUF ele1 na FNAC. A seguir, apresentamos um contexto em que não há necessariamente uma relação estabelecida por um conjunto dado, como nos exemplos apresentados anteriormente, mas sim uma relação convencional entre o elemento deslocado e o tópico em discussão. 800 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 (81) A Maria vai se casar. Ela alugou o vestido na boutique das noivas. (82) A Maria vai se casar. O vestido TC1, ela alugou t1 na boutique das noivas. É perfeitamente possível deslocar o sintagma ‘o vestido’ pelo fato de que convencionalmente, em um casamento há elementos como: vestido, decoração, aliança. O falante, ao deslocar esse sintagma, resolve destacar o elemento ‘vestido’ e direcionar a atenção do falante para esse. Com isso, indica que esse elemento estabelece uma relação de contraste por oposição com os outros elementos disponíveis implicitamente e convencionalmente, por exemplo, os destacados acima. Ainda, responde parcialmente a uma pergunta do tipo: ‘Onde a Maria providenciou os objetos do casamento?’. Ao responder com o sintagma ‘o vestido’ deslocado, o falante indica que está trazendo informações parciais de uma questão mais ampla que representa o conjunto de elementos que devem ser providenciados em um casamento. No entanto, se o elemento deslocado é ‘o marido’, a estrutura parece não ser adequada. (83) A Maria se casou. Ela conheceu o marido no trabalho. (84)#A Maria se casou. O marido TC, ela CONHECEU t1 NO TRABALHOF. Como o sintagma ‘o marido’ recebe a marcação de tópico contrastivo, é necessário que haja mais de um elemento para ser contrastado. Nesse caso, não é possível contrastar ‘o marido’, já que convencionalmente, as pessoas em nossa cultura possuem apenas um cônjuge. Entretanto, assim como em um casamento há apenas um marido, também, convencionalmente há apenas um vestido de noiva. Identificamos, porém, que ‘o vestido de noiva’ pode ser deslocado. A explicação para ‘o vestido de noiva’ ser licenciado para o deslocamento e ‘o marido’ não é que ‘o vestido de noiva’ faz parte de um conjunto de objetos da cerimônia de casamento, como buquê, alianças. Dessa maneira, ele é contrastado com os demais elementos desse conjunto. A resposta acima, em (84), responde parcialmente a uma pergunta do tipo ‘Onde a Maria providenciou os objetos do casamento?’. O ‘marido’, por sua vez, não faz parte desse conjunto que é saliente no contexto acima. No entanto, podemos imaginar um contexto em que o conjunto saliente contenha o indivíduo “o marido”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 801 (85) A: Onde a Maria conheceu estas pessoas? B: O maridoTC1, ela conheceu t1 NA FACULDADEF, o padrinho do lado dele TC2, ela conheceu t2 NO TRABALHOF, o padrinho do lado dela TC3, ela conheceu NA IGREJA QUE FREQUENTAF. Ainda, se houver um contexto em que a noiva já tenha sido casada anteriormente, também é possível haver deslocamento. (86) A Maria casou de novo. Ela conheceu esse marido no trabalho. (87) A Maria casou de novo. Esse marido TC1, ela CONHECEU t1 NO TRABALHOF. Com a inserção do sintagma ‘de novo’, as duas estruturas são adequadas. Aliás, a sentença com deslocamento para a periferia esquerda parece ser mais natural. Isto porque com o modificador ‘de novo’, há uma pressuposição de que a Maria já tenha sido casada. Além disso, o sintagma deslocado, por uma questão de adequação textual, inicia-se com um pronome demonstrativo, ‘esse marido’, e não com um artigo definido, como no exemplo anterior. O uso do pronome também favorece o deslocamento e a relação de contraste. O elemento inserido pelo sintagma ‘Esse marido’, então, estabelece uma relação de contraste com o marido anterior e responde parcialmente a uma pergunta implícita do tipo ‘Onde a Maria conheceu o marido atual e o ex-marido?’. Observe abaixo, um contexto de contraste explícito’. (88) A Maria casou de novo. Esse marido TC1, ela CONHECEU t1 NO TRABALHOF, o ex-marido TC2 ela CONHECEU t2 NA FACULDADEF. Nas estruturas acima, há a estratégia de responder a perguntas múltiplas que estão relacionadas com uma pergunta mais ampla, que direciona o discurso. Essa pergunta mais ampla representa o conjunto de elementos disponível no discurso, com o qual o elemento deslocado estabelece uma relação de conjunto. No contexto em (88), por exemplo, a pergunta em discussão respondida é ‘Onde a Maria conheceu seu marido e o seu ex-marido?’. Um último tipo de sentença com sintagma deslocado a ser investigado é a sentença com deslocamento de PP. Compare as três sentenças a seguir, a primeira de resposta completa, a segunda que 802 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 apresenta o PP em sua posição canônica e a última com tal sintagma deslocado. (89) A: O João precisa do livro de linguística? B: SIMF, (ele PRECISAF do livro de linguística.) (90) A: O João precisa do livro de linguística? B: #O João PRECISAF do livro de linguísticaTC. (91) A: O João precisa do livro de linguística? B: Do livro de linguísticaTC1, o João PRECISAF t1. Como podemos observar nos diálogos acima, na resposta sim / não, o PP não pode receber acento de tópico contrastivo e se manter em seu local de origem. Para receber a marcação de tópico contrastivo, o sintagma deve ser deslocado para a periferia esquerda da sentença. A resposta mais natural para a pergunta acima seria sim ou não. Entretanto se o falante quiser destacar que faz uso de uma estratégia de responder a uma pergunta implícita, mais ampla do que a dada no contexto, ele responde com uma sentença como (91)B, com deslocamento. Com isso, indica que o elemento estabelece uma relação de contraste por oposição a outros elementos do discurso. Tais constituem o conjunto de livros que é disponibilizado a partir da introdução implícita de uma pergunta do tipo ‘De quais livros o João precisa?’. Essa pergunta é inserida no discurso a partir da marcação de tópico contrastivo, que indica que o falante responde parcialmente a essa pergunta mais ampla, deixando em aberto uma possível continuidade do discurso. Podemos afirmar que a estrutura sintática de deslocamento está contribuindo com o contraste, já que essa estrutura indica que o elemento deslocado estabelece uma relação de contraste por oposição com outros elementos no discurso, diferentemente da sentença canônica. No diálogo com a sentença deslocada, é evocada uma pergunta em discussão mais ampla, o que não ocorre no diálogo com pergunta canônica. Observe os valores de tópico e foco para a sentença em (91)B. (92) [[(91)B]]f ={O João precisa do livro de linguística, O João não precisa do livro de linguística } Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 803 (93) [[(91)B]]t ={O João precisa do livro de linguística?, O João precisa do livro de literatura?} O valor de foco acima não é compatível com a resposta em (91) B, já que o conjunto de alternativas deveria constar alternativas com outros elementos, além de o ‘livro de linguística’. Já o valor de tópico é adequado para explicar a sentença com deslocamento, já que indica que o falante responde completamente à pergunta ‘O João precisa do livro de linguística?’ e responde parcialmente a uma pergunta implícita como ‘De quais livros o João precisa?’. Ainda, se a resposta apresentar uma estrutura de deslocamento com retomada de pronome, a sentença é agramatical. (94) A: O João precisa do livro de linguística? B: *Do livro de linguisticaTC1, o João PRECISAF dele1. Se a pergunta sim/não inserir um conjunto de elementos, em vez de apenas um elemento, entretanto, tanto a resposta de sentença canônica quanto a resposta com deslocamento de PP para a periferia esquerda da sentença são adequadas para receber a marcação de tópico contrastivo. (95) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: Ele PRECISAF do livro de linguísticaTC. (96) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: Do livro de linguísticaTC1, ele PRECISAF t1. Apesar de as duas sentenças serem adequadas, a sentença com deslocamento é mais natural, visto que uma das funções do deslocamento é primeiramente direcionar a atenção do ouvinte para o elemento ‘o livro de linguística’, para posteriormente atribuir a propriedade “o João precisa de x”. Tal função contribui para a relação de contraste por oposição estabelecida entre o elemento deslocado ‘o livro de linguística’ com os outros membros do conjunto de elementos inseridos pela pergunta “os livros do curso de letras”, já que coloca o elemento deslocado em uma posição de evidência. A marcação de tópico contrastivo indica que o falante responde parcialmente à pergunta explícita no discurso, uma vez que afirma que 804 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 a propriedade ‘o João precisa de x’ é atribuída ao elemento ‘o livro de linguística’, mas deixa em aberto informações relacionadas aos demais elementos. A implicatura de que o falante não sabe que tal propriedade pode ser atribuída aos demais elementos do conjunto pode ser cancelada, como podemos observar no diálogo que segue. (97) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: Ele PRECISAF do livro de linguísticaTC. E do de literatura também. (98) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: Do livro de linguísticaTC1, ele PRECISAF t1. E do de literatura também. Tanto no contexto com sentença canônica quanto no contexto que apresenta a sentença com deslocamento, a implicatura pode ser cancelada, embora o nível de cancelamento seja mais alto no contexto da sentença canônica. Entretanto, como os membros do conjunto não foram delimitados pelo contexto, fica implícito, ainda, que haja outros elementos, além do livro de linguística e de literatura, e estes não possuam a propriedade, ‘O João precisa de x’. A resposta poderia continuar como segue. (99) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: Do livro de linguísticaTC1, ele PRECISAF t1. E do de literatura também. O de gramática, ele já tem. Os contextos que apresentam sentença com deslocamento de PP analisados até agora, cujo sintagma deslocado apresente a função discursiva de tópico contrastivo, são de pergunta sim / não. Observemos, a seguir, se contextos de pergunta QU apresentam particularidades. (100) A: Quem precisa do livro de linguística? B: #O JOÃOF precisa do livro de linguística TC1. (101) A: Quem precisa do livro de linguística? B: Do livro de linguísticaTC1, O JOÃOF precisa t1. Assim, como no contexto de pergunta sim / não, a sentença canônica com marcação de tópico contrastivo é inadequada, se a pergunta Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 805 inserir apenas um elemento e não houver outros elementos disponíveis a serem contrastados com o sintagma que recebe tal marcação. Por outro lado, se houver deslocamento, a marcação de tópico contrastivo é possível e tal estrutura indica que há uma relação de contraste por oposição entre o elemento deslocado, que pelo deslocamento ocupa uma posição de evidência, e os demais elementos do conjunto evocado pela marcação de tópico contrastivo. A seguir, apresentamos os valores de foco e tópico de (101)B, respectivamente. (102) [[(101)B]]f ={O João precisa do livro de linguística, O Paulo precisa do livro de linguística, O Marcos precisa do livro de linguística} (103) [[(102)B]]t ={Quem precisa do livro de linguística?, Quem precisa do livro de literatura?} Apesar do valor de foco apresentar uma alternativa equivalente à resposta, não há alternativas referentes aos demais elementos do conjunto de livros que são evocados a partir da marcação de tópico contrastivo. O valor de tópico, por sua vez, apresenta perguntas relacionadas a outros livros, além do de linguística. O falante responde completamente à pergunta ‘Quem precisa do livro de linguística?’, do valor de tópico, que coincide com a dada no contexto. Responde, ainda, parcialmente a uma pergunta do tipo ‘Quem precisa de quais livros?’. Se na pergunta, por outro lado, for inserido um conjunto de elementos e não apenas um elemento específico, como ‘o livro de linguística, tanto a resposta canônica quanto a resposta com deslocamento podem apresentar marcação de tópico contrastivo no PP. (104) A: Quem precisa dos livros do curso de letras? B: O JOÃOF precisa do livro de linguísticaTC1. (105) A: Quem precisa dos livros do curso de letras? B: Do livro de linguísticaTC1, O JOÃOF precisa t1. Por se tratar de um conjunto explícito, em que o conjunto de livros é dado abertamente na pergunta, fica claro que o elemento com marcação de tópico estabelece uma relação de contraste de oposição com os demais livros. Dessa maneira, a estrutura com deslocamento, apesar de ser possível, não é condição necessária para estabelecer uma 806 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 relação de contraste por oposição. Essa relação de contraste ocorre porque os elementos a serem contrastados já são dados pela pergunta e não é necessária uma estratégia de resposta como deslocamento para marcar o contraste. Nesse caso, a sentença canônica também pode receber marcação de tópico contrastivo. Por fim, analisemos sentenças que apresentem DPs sem a preposição, se esses podem receber a marcação de tópico contrastivo e serem deslocados para a periferia esquerda da sentença. (106) A: O João precisa do livro de linguística?12 B: O livro de linguísticaTC1, ele PRECISAF t1. (107) A: O João precisa dos livros do curso de letras? B: O livro de linguísticaTC1, ele PRECISAF t1. (108) A: Quem precisa do livro de linguística? B: O livro de linguísticaTC1, O JOÃOF precisa t1. (109) A: Quem precisa dos livros do curso de letras? B: O livro de linguísticaTC1, O JOÃOF precisa t1. Em todos os contextos acima, é possível o DP sem preposição ser deslocado para a periferia esquerda da sentença e receber a marcação de tópico contrastivo, tanto os de pergunta sim / não, (106) e (107), quanto de pergunta QU, (108) e (109). Ainda, em todos os casos, há relação de contraste por oposição e o deslocamento indica a estratégia de primeiramente afirmar o tópico da sentença para posteriormente lhe atribuir uma propriedade. 4 Conclusões Após análise dos diálogos apresentados, pudemos identificar que sintagmas deslocados para a periferia esquerda da sentença em PB Há uma questão sintática, destacada por um dos pareceristas, em que esses DPs provavelmente tenham nascido nessa posição original e recebido caso default. Entretanto, por não estar no escopo desse artigo, deixaremos esse tipo de análise para pesquisas futuras. 12 807 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 podem apresentar a função discursiva de tópico contrastivo, além de outras funções como tópico não contrastivo ou foco. Essa constatação já foi feita por autores como Pontes, 1987; Kato, 1989, 1998; Ilari 1992, entre outros. A marcação prosódica de tópico contrastivo indica contraste, enquanto o deslocamento tem a função de direcionar a atenção do ouvinte para um elemento disponível no contexto, a partir de um conjunto dado, para depois atribuir uma propriedade a esse elemento. Além disso, deslocamento de tópico contrastivo indica que o falante esteja fazendo uso de uma estratégia de responder parcialmente a uma pergunta mais ampla do que a dada no discurso. Ainda, em determinados contextos, o deslocamento contribui para a relação de contraste estabelecida, como em sentenças com deslocamento de DP objeto ou PP objeto. Em relação à posição sintática original do sintagma deslocado, o sintagma na posição de sujeito pode ser deslocado tanto em contextos de pergunta sim / não quanto de pergunta QU, sendo que a estrutura mais aceitável é com retomada de pronome. Uma das contribuições do deslocamento diz respeito à estratégia de primeiramente afirmar o tópico para posteriormente lhe atribuir uma propriedade. Com objeto, em alguns contextos, além da marcação de tópico contrastivo, o deslocamento também contribui para a noção de contraste, diferentemente do deslocamento de sujeito. Para haver contraste, deve ser estabelecida uma relação entre o elemento deslocado com algum conjunto disponível no contexto, seja implícita ou explicitamente. Em relação a PP deslocado, o contraste é presente tanto em contextos de pergunta QU quanto em pergunta sim /não. Com PPs, assim como com objetos, a estrutura sintática de deslocamento contribui com a noção de contraste no contexto, diferentemente das sentenças com deslocamento de sujeito. No que diz respeito ao tipo de pergunta, se for uma pergunta sim/não, a marcação de tópico contrastivo indica a estratégia por parte do falante em responder a uma pergunta mais ampla do que a dada no discurso. Se for uma pergunta QU, o deslocamento reforça o contraste, o que torna a resposta mais natural do que a resposta sem deslocamento. Por fim, sentenças com deslocamento de tópico contrastivo ocorrem apenas em contextos cuja relação seja de oposição. Não há relação de contraste de correção em sentenças que apresentem marcação de tópico contrastivo. 808 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 Referências BÜRING, D. Topic. In: BOSCH, P.; VAN DER SANDT, R. (Ed.). Focus – Linguistic, Cognitive, and Computation Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 142-165. BÜRING, D. On D-trees, beans, and B-accents. Linguistics & Philosophy, [S.l.], v. 26, n. 5, p. 511-545, 2003. CAGLIARI, L. Entoação do Português Brasileiro. Estudos Linguísticos, Araraquara, v. 3, p. 308-329, 1980. HALLIDAY, M. A. K. Notes on Transitivity and Theme in English: Part 2. Journal of Linguistics, London, v. 3, n. 2, p. 199-244, 1967. ILARI, R. A perspectiva funcional da frase portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. KATO, M. Tópico e sujeito: duas categorias na sintaxe? Cadernos de Estudos Linguísticos Campinas, SP, v. 17, p. 109-131, 1989. KATO, M. Tópicos como alçamento de predicados secundários, Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, SP, v. 34, p. 67-76, 1998. KURODA, S. Milsark’s Generalization and Categorical Judgments. In: SALT, XIII., Ithaca. Proceedings SALT XII I 204-22 1, Ithaca, NY: Cornell University, 2003. v. I, p. 204-222. DOI: https://doi.org/10.3765/ salt.v13i0.2886 LADUSAW, W. Thetic and categorical, stage and individual, weak and Strong. In: SALT, IV., 1994, Ithaca. Proceedings… Ithaca, NY: Cornell University, 1994. p. 220-229. DOI: https://doi.org/10.3765/salt.v4i0.2463 LOPEZ, L. A derivational syntax for information structure. Oxford: Oxford University Press, 2009. (Oxford Studies in Theoretical Linguistics, v. 23). DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199557400.001.0001 MENUZZI, S.; ROISENBERG, G. R. Tópicos contrastivos e contraste temático: um estudo do papel discursivo da articulação informacional. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, SP, v. 52, n. 2, p. 233-253, 2010. MIOTO, C. Focalização e Quantificação. Revista Letras, Curitiba, v. 61, p. 169-189, 2003. 809 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 771-809, abr./jun. 2019 ORSINI, M. As construções de deslocamento à esquerda de sujeito nas falas culta e popular: um estudo de tendência. Revista Investigações, Recife, v. 24, n. 2, p. 237-258, 2011. ORSINI, M.; VASCO, S. Português do Brasil: língua de tópico e de sujeito. Diadorim – Revista de Estudos Linguísticos e Literários, Rio de Janeiro, n. 2, p. 83-98, 2007. PONTES, E. O tópico no português do Brasil. Campinas: Pontes, 1987. PRINCE, E. On the Limits of Syntax, with reference to Left-Dislocation and Topicalization. In: CULICOVER, P. W.; McNALLY, L. (Ed.). Syntax and Semantics: The Limits of Syntax. San Diego: Academic Press, 1998. p. 281-302. REINHART, T. Pragmatics and Linguistics: An Analysis of Sentence Topics. Philosophica, [S.l.], v. 27, p. 53-94, 1981. REPP, S. Contrast: Dissecting an elusive information-structural notion and its role in grammar. In: FÉRY, Caroline; ISHIHARA, Shinichiro (Ed.). The Oxford Handbook of Information Structure. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 270-289. RIZZI, L. The fine structures of left periphery. In: HAEGEMAN, L. (Ed.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1997. p. 281-337. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8_7 ROBERTS, C. Information Structure in Discourse: Towards an Integrated Formal Theory of Pragmatics. In: YOON, J. H.; KATHOL, A. (Ed.). Working Papers in Linguistics: Papers in Semantics. Ohio: Ohio State University, 1996. v. 49, p. 91-136. ROBERTS, C. Topic, Focus, and Exhaustive Interpretation. In: CIL, 18., Seoul. Proceedings… Seoul: [S.n.], 2010. ROOTH, M. Focus. In: LAPPIN, S. (Ed.). Handbook of Contemporary Semantic Theory. London: Blackwell, 1995. p. 271-298 ROSA-SILVA, F. Deslocamento de tópico e foco no português brasileiro: uma análise semântico-pragmática. 2017. 149f. Tese (Doutorado em Letras / Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2017. WARD, G.; PRINCE, E. On the topicalization of indefinite NPs. Journal of Pragmatics, [S.l.], v. 16, n. 8, p. 167-178, 1991. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 Fonologia autônoma, Sintaxe mais Simples: explorando as interfaces na Arquitetura em Paralelo Autonomous phonology, simpler syntax: exploring the interfaces in the Parallel Architecture Giuseppe Varaschin Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina / Brasil giuseppe.varaschin@gmail.com Resumo: O objetivo deste artigo de cunho teórico é explorar a visão particular sobre a interface entre sintaxe e fonologia na teoria da Arquitetura em Paralelo (AP) formulada por Jackendoff (1997, 2002, 2007). Embora não disponha de um componente fonológico próprio, essa teoria tomou os desenvolvimentos da fonologia não-linear na década de 1970 como ponto de partida (GOLDSMITH, 1976; LIBERMAN; PRINCE, 1977; MCCARTHY, 1982). A ideia central da AP é distribuir a complexidade da gramática em diferentes “camadas” relativamente independentes, a fim de desonerar a sintaxe, que teria assumido um papel explanatório exagerado nas teorias gerativas mainstream (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005). Segundo Culicover e Jackendoff (2005), ao livrarmos esse componente da responsabilidade de explicar todos os fenômenos linguísticos relevantes, seria possível formular uma Sintaxe mais Simples. Após esclarecer algumas características gerais da AP e sua relação com as teorias fonológicas não-lineares, o artigo focará no que este modelo tem a dizer sobre a interface entre sintaxe e prosódia. O artigo ilustrará a visão da AP sobre essa interface a partir de uma discussão específica acerca da regra do acento nuclear (CHOMSKY; HALLE, 1968; HALLE; VERGNAUD, 1987). A ideia principal é que as conclusões de Menuzzi e Mioto (2006), que vão de encontro à teoria de Cinque (1993), podem ser compreendidas como uma evidência positiva em prol da concepção da interface fonologia e sintaxe sugerida na AP, a qual confere mais autonomia ao componente fonológico. Palavras-chave: interface sintaxe-fonologia; Sintaxe mais Simples; Arquitetura em Paralelo; regra do acento nuclear. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.811-838 812 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 Abstract: The main goal of this theoretically oriented paper is to lay out the particular view of the interface between syntax and phonology in the theory of the Parallel Architecture (PA) as formulated by Jackendoff (1997, 2002, 2007). Even though it doesn’t have its own phonological component, this theory took the developments of nonlinear phonology in the 1970s as a starting point (GOLDSMITH, 1976; LIBERMAN; PRINCE, 1977; MCCARTHY, 1982). The central idea in the PA is to distribute the complexity of the grammar among relatively independent tiers, in order to unburden syntax, which took an exaggerated explanatory role in mainstream generative theories (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005). According to Culicover and Jackendoff (2005), in liberating this component from the responsibility of explaining all relevant linguistic phenomena, it may be possible to envision a Simpler Syntax. After clarifying some general characteristics of the PA and its relationship to non-linear phonological theories, the paper will focus on what this model has to say about the interface between syntax and prosody. The paper will illustrate the PA view on this interface through a specific discussion about the nuclear stress rule (CHOMSKY; HALLE, 1968; HALLE; VERGNAUD, 1987). The main idea here is that the conclusions reached by Menuzzi and Mioto (2006), which go against Cinque’s (1993) theory, can be understood as positive evidence for the conception of the syntax-phonology interface suggested in the PA, which grants more autonomy to the phonological component. Keywords: syntax-phonology interface; Simpler Syntax; Parallel Architecture; nuclear stress rule. Recebido em 17 de abril de 2018 Aceito em 17 de junho de 2018 1. A centralidade das interfaces As várias interfaces da linguagem sempre protagonizam debates acirrados e produtivos. Em larga medida, isso se dá porque a questão das interfaces se confunde com a própria questão a respeito da natureza e delimitação do objeto da linguística. Desde Aristóteles (2006), várias correntes têm compreendido a língua, de uma forma ou de outra, como “um sistema de signos que exprimem ideias” (SAUSSURE, 1995, p. 33). Ora, um signo nada mais é do que um tipo particular de interface: um pareamento entre forma e sentido. A língua seria, segundo esse entendimento, feita de interfaces. Essas considerações fundamentalmente vagas – o que é forma, sentido e pareamento não é nada óbvio de antemão – encontraram um modo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 813 de expressão teórica razoavelmente claro a partir do final da década de 1950 (CHOMSKY, 1955, 1957). Essa maior clareza, todavia, levou o campo para muito além das concepções tradicionais, suscitando a formulação de uma série de mediações altamente complexas para dar conta da ligação nada trivial entre sons e significados. Foi nesse espaço que floresceu boa parte da pesquisa em sintaxe gerativa até meados da década de 1990. Mais recentemente, como o Programa Minimalista sugeriu razões para reduzir ao máximo essas mediações internamente motivadas (CHOMSKY, 1995, cap.4, 2005), a investigação das interfaces irrompeu com uma força sem precedentes. A questão de ordem passou a ser descobrir se (ou quais) propriedades da Faculdade da Linguagem (FL) são determinadas pelos sistemas de interface; ou, nas palavras de Chomsky (2000, p. 9), se “a linguagem é uma ‘boa solução’ para as condições de legibilidade impostas pelos sistemas com os quais ela interage”. Não cabe entrar aqui nas razões de adequação biológica e evolutiva que impulsionaram esse enfoque (cf. HORNSTEIN, 2009, cap. 1). O ponto fundamental é que, mais do que nunca, o estudo das interfaces passou a ser visto como um passo essencial para compreender a linguagem. Uma peculiaridade desse debate, contudo, é a ênfase na interface com a semântica, em detrimento da fonologia. De fato, as referências à fonologia nos escritos minimalistas de Chomsky são escassas.1 Essa prioridade à semântica é questionável, visto que a fonologia tem um alcance empírico e experimental mais amplo e é, discutivelmente, um alvo menos frequente de polêmicas teóricas e filosóficas intricadas que retardam a formação de consensos na área (cf. CHOMSKY, 1995, p. 21; JACKENDOFF, 2007, p. 43, 2014, p. 28). Por isso, se quisermos investigar a natureza das interfaces, talvez seja mais prudente começar com a interface com a fonologia. Uma vez que a tenhamos compreendido razoavelmente, podemos tomá-la como modelo para entender o funcionamento de outras interfaces mais incertas, como a da semântica. Na medida em que uma compreensão das interfaces define nossa concepção de gramática, teremos uma teoria da FL fundamentalmente informada pelos avanços da fonologia. É isso o que buscam algumas teorias contemporâneas importantes, como a Teoria da Otimidade (PRINCE; SMOLENSKY, 2004; KAGER, 2004; MCCARTHY, 2008). Harris (1995, p. 79) relata que, em virtude do tempo dedicado à sua militância política, Chomsky se viu praticamente obrigado a abandonar suas pesquisas em fonologia. 1 814 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 Neste artigo, contudo, vou explorar a visão particular sobre a interface entre fonologia e sintaxe em uma outra teoria: a Arquitetura em Paralelo (AP) (JACKENDOFF, 1997, 2002, 2007), que, embora não disponha de um componente fonológico próprio, tomou a fonologia nãolinear da década de 1970 como ponto de partida. A ideia da AP é justamente distribuir a complexidade da gramática em diferentes “camadas” (tiers) relativamente independentes, a fim de desonerar a sintaxe, que teria assumido um papel explanatório exagerado nas teorias gerativas mainstream (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005). Na seção 2, vou expor algumas características gerais da AP. Na seção 3, vou sublinhar algumas características da fonologia não-linear que foram apropriadas por essa teoria (GOLDSMITH, 1976; LIBERMAN; PRINCE, 1977). Na seção 4, vou focar especificamente na interface entre sintaxe e prosódia, para, na seção 5, voltar-me a uma discussão mais específica acerca da regra do acento nuclear (CHOMSKY; HALLE, 1968; HALLE; VERGNAUD, 1987). Vou argumentar que as conclusões de Menuzzi e Mioto (2006), que vão de encontro à teoria de Cinque (1993), podem ser compreendidas como uma evidência positiva em prol da concepção da interface fonologia e sintaxe sugerida na AP. Essa concepção confere mais autonomia ao componente fonológico. Concluirei com algumas observações gerais sobre os rumos que esse tipo de investigação pode tomar. 2. A Arquitetura em Paralelo (AP) A teoria da AP (JACKENDOFF, 1997, 2002, 2007), cujo módulo sintático é detalhado em Culicover e Jackendoff (2005), apresenta-se como uma teoria gerativa alternativa à longa linhagem de modelos chomskianos – desde Chomsky (1955) até o Programa Minimalista (CHOMSKY, 1995). A principal diferença em relação a esses modelos gerativos mainstream (e dessa diferença decorrem muitas consequências conceituais e técnicas) é o abandono do sintatocentrismo, definido como: [A ideia de que] toda riqueza combinatória da linguagem deriva das regras do componente sintático; as propriedades combinatórias da fonologia e da semântica são caracterizadas inteiramente em termos do modo como elas derivam da estrutura sintática (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 17) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 815 Tirando do módulo sintático o “privilégio” de ser o monopólio da geração e explicação em linguística, os autores propõem a arquitetura abaixo: DIAGRAMA 1 – A arquitetura em paralelo (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 18) No diagrama são apresentados três eixos não-triviais de combinatorialidade linguística: fonológico, sintático e semântico. A proposta, portanto, é a de uma estrutura fundamentalmente modular, em que as regras de formação de cada um dos três eixos licenciam suas estruturas correspondentes, independentemente dos outros dois módulos, e os níveis de interface atuam como restrições adicionais, estabelecendo correspondências admissíveis entre pares de componentes. O léxico – cujas unidades são concebidas de maneira bastante liberal, num continuum entre palavras, construções idiossincráticas e estruturas frasais abstratas – é considerado como um componente das interfaces. Um item lexical nada mais é do que conjunto memorizado de associações entre os três níveis (fonologia, sintaxe e semântica). A palavra “gato” é, então, grosso modo, uma regra que estabelece uma correspondência estável entre a forma fonológica /gato/, os traços sintáticos N, [sing] e [masc] e o conceito semântico de gato (um objeto físico, um tipo de animal, etc.).2 Uma característica interessante dessa teoria é o abandono das regras de inserção lexical, que eram “transformações que inseriam o item em questão (i.e., o conjunto de traços que o constituem) em marcadores sintagmáticos” (CHOMSKY, 1972, p. 64). Teorias que assumem inserção lexical fazem com que a sintaxe “carregue” informações fonológicas e semânticas que só são efetivamente legíveis nos níveis de interface. Jackendoff (1997) rejeita a inserção lexical pois vê nela uma negação da autonomia dos componentes gramaticais. Ele propõe substituí-la pela noção de licenciamento lexical. 2 816 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 A gramática é, como na Teoria da Otimidade, baseada em restrições que definem a boa-formação das estruturas no nível de um output previamente dado (i.e. cuja “montagem” não é strictu sensu responsabilidade da gramática). Na AP, uma estrutura é considerada perfeitamente bem formada quando é licenciada em cada um dos níveis linguísticos individualmente, bem como nos níveis de interface. Não há qualquer ordem ou sequência inerente para a aplicação das restrições. Semelhantemente ao que ocorre em Teoria da Otimidade, tais restrições são tidas como violáveis (JACKENDOFF, 1997). Disso se segue a possibilidade de considerar a boa-formação ou gramaticalidade como um fenômeno gradiente. Ao contrário das teorias que seguiram as ideias iniciais de Chomsky (1955), a AP não é um modelo derivacional, pois não postula “etapas” (potencialmente infinitas) para a geração das estruturas a partir de átomos computacionais, e.g. morfemas. O modo como as estruturas são produzidas, de um ponto de vista procedural, é delegado exclusivamente a uma teoria do desempenho. O que uma teoria da competência, no espírito da AP, deve oferecer é um conjunto de condições declarativas que permita definir se (e o quanto) um dado arranjo fonológico, sintático, semântico (ou uma ligação entre essas estruturas) é bem formado.3 Segundo Jackendoff (2002, cap. 7), essa concepção facilita a integração de teorias como a AP a modelos psicolinguísticos de processamento. Como mostra McCarthy (2008), essa concepção de gramática foi popularizada na sintaxe pelo modelo de filtros de Chomsky e Lasnik (1977) e, na fonologia, pela descoberta de restrições de output por Kisseberth (1970). É importante notar, nesse sentido, que as regras de formação e de interface na AP não são regras de reescritura, segundo a definição de Chomsky (1957), i.e., regras para converter um input em um output (cf. JACKENDOFF, 1997, p. 34) e Culicover e Jackendoff (2005, p. 143)). O abandono de regras de reescritura e da concepção derivacional de gramática que elas pressupõem é mais uma das características que distinguiriam uma fonologia baseada na AP da teoria de Chomsky e Halle (1968), que se baseava inteiramente nesse formalismo (mais sobre isso na seção 3). Como todas as teorias baseadas em restrições, um dos principais desafios para a AP é oferecer um tratamento satisfatório a fenômenos de opacidade (cf. Kager (2004, cap. 9)). O termo “opacidade” é usado na fonologia para casos em que um output está sujeito a generalizações que não podem ser deduzidas da sua forma de superfície. Há correlatos desses fenômenos na sintaxe, em especial em dados de elipse e dependências de longa distância. São justamente esses fenômenos que são tratados nos modelos chomskianos por meio de regras transformacionais (que são também abandonadas na AP). 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 817 A teoria é chamada de Arquitetura em paralelo pois as condições que definem a boa-formação linguística são formuladas paralelamente nos três níveis, cada qual com sua própria complexidade combinatória e com suas unidades mínimas específicas. Preserva-se, claramente, a autonomia da sintaxe, tão cara ao gerativismo chomskiano (cf. CHOMSKY, 1979), mas descarta-se sua centralidade. Isso significa, como veremos nas próximas seções, que a fonologia pode ser subdeterminada pelas informações disponíveis na interface com o módulo sintático. Certas propriedades de uma representação fonológica podem “ser caracterizadas por princípios fonológicos autônomos, que não fazem nenhuma referência à sintaxe” (JACKENDOFF, 1997, p. 27). Como a sintaxe deixa de ser o centro, ela não precisa mais fornecer instruções transparentes para fonologia ou “atribuir para cada sentença uma ‘estrutura superficial’ que determine completamente a forma fonética da sentença” (CHOMSKY; HALLE, 1968, p. 6, ênfase minha). Na verdade, Culicover e Jackendoff (2005) afirmam que uma ênfase excessiva na centralidade da sintaxe pode comprometer sua autonomia, na medida em que enseja a proliferação de estruturas e operações sintáticas ocultas exclusivamente para atender necessidades fonológicas ou semânticas. Um exemplo dessa tendência, no lado da fonologia, será dado na seção 5 quando discutirei a proposta de Cinque (1993). A motivação para a criação da AP é a de distribuir o peso da representação da informação linguística nos três níveis, retirando a sobrecarga da sintaxe. Segundo Culicover e Jackendoff (2005), essa “divisão de trabalho” permite dar a cada fenômeno um tratamento apropriado e simples, condizente com a sua natureza. Dessa forma, o nível sintático não precisa comportar a explicação de todos os fenômenos linguísticos relevantes; ele sofre uma importante redução, quando passa a abarcar somente os fenômenos estritamente sintáticos. Boa parte do aparato das teorias gerativas tradicionais torna-se potencialmente dispensável nessa perspectiva: projeções funcionais, categorias vazias e operações de movimento passam a ter que ser justificadas apenas por evidências patentemente sintáticas. Essa linha de raciocínio conduziu Culicover e Jackendoff a formularem a Hipótese da Sintaxe mais Simples, que é a ideia de que “[a] teoria sintática mais explicativa é aquela que atribui a estrutura mínima necessária para fazer a mediação entre a fonologia e o significado” (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 5). 818 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 Os pontos fundamentais da AP para os meus propósitos neste artigo são: (i) o caráter não-derivacional das regras gramaticais; (ii) a independência do módulo fonológico – que não é mais o resultado de derivações operadas na estrutura sintática, convergindo no nível de interface PF (como no modelo de Chomsky (1995)) –; (iii) e a perspectiva de simplificação da sintaxe. 3. A fonologia não-linear como motivação para a AP Podemos compreender a AP como a convergência de duas linhas independentes de investigação sobre a FL e suas interfaces: de um lado, os trabalhos de Jackendoff (1990) em semântica e, de outro, os desenvolvimentos em fonologia métrica e autossegmental (GOLDSMITH, 1976; LIBERMAN; PRINCE, 1977). O grande mérito de Jackendoff (1997) foi ter percebido as implicações dessas pesquisas para o formato da gramática e para as ciências cognitivas como um todo. O que essas vertentes têm em comum é o reconhecimento de que a complexidade combinatória da linguagem deve ser repartida em diferentes camadas – cada uma sujeita a restrições específicas formuladas em termos dos seus próprios primitivos – conectadas entre si por princípios de correspondência. O sintatocentrismo é rejeitado – pelo menos implicitamente – tanto na semântica de Jackendoff quanto nas fonologias não-lineares. Nesta seção, vou revisar alguns pontos desta última tradição que dão respaldo à imagem da FL franqueada pela AP. A fonologia gerativa, até meados da década de 1970, operava com o modelo de representação linear do Sound Pattern of English de Chomsky e Halle (1968). Esse modelo era uma implementação quase perfeita do sintatocentrismo. Com exceção dos casos que motivavam as “regras de reajuste” – responsáveis por “converter as estruturas geradas pelo componente sintático em um formato apropriado para o componente fonológico” (CHOMSKY; HALLE, 1968, p. 9) –, às quais era delegado um estatuto marginal, o input das regras fonológicas era tido como equivalente ao output da sintaxe. A rigor, uma forma fonética era derivada “como uma continuação da derivação sintática” (JACKENDOFF, 1997, p. 26). Ou seja, dado um conjunto ordenado de regras fonológicas, a forma fonética de superfície seria completamente determinada pela forma subjacente dada pela sintaxe, a partir da matriz de traços lexicalmente especificada. Era isso Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 819 que Chomsky tinha em mente quando afirmou que a fonologia deveria ser “puramente interpretativa” (CHOMSKY, 1965, p. 141). Segundo McCarthy (1982), o modelo de Chomsky e Halle (1968) era linear por supor uma visão planificada (não-hierárquica) das representações, na qual: (i) todas as propriedades fonéticas e fonológicas (incluindo aquelas que são obviamente prosódicas, como tom e acento) são inerentes aos segmentos; e (ii) as representações dos segmentos são feixes desordenados de traços distintivos. As teorias não-lineares rejeitam todas essas suposições, geralmente destacando casos em que não há correspondência biunívoca entre um segmento e uma matriz de traços. Goldsmith (1976), em seu estudo pioneiro em fonologia autossegmental, propõe uma análise dos tons de contorno nesses termos. 4 O autor começa sua argumentação com um exercício especulativo: imaginemos que os tons de contorno sejam, em uma dada língua, descritos como uma sequência de tons de nível contíguos (por exemplo, H seguido de L). Suponhamos, ademais, que essa mesma língua apresenta tons de contorno não somente em vogais longas – que poderiam ser analisadas como sequências de segmentos vocálicos repetidos [VV] – mas também em vogais curtas (que são necessariamente segmentos unitários [V]). Segundo o autor, não seria possível conciliar os modelos lineares com esse cenário, i.e., com a existência de segmentos únicos que se associam simultaneamente a mais de um valor tonal (e.g. H e L). Ou teríamos duas matrizes de traços associadas ao mesmo segmento (o que contradiz o princípio de correspondência biunívoca entre segmento e matriz), ou teríamos um único segmento com uma matriz de traços especificada de maneira contraditória (e.g. um mesmo segmento com +H e –H). Goldsmith (1976, p. 42-47) mostra que isso não é uma mera possibilidade conceitual. Existem línguas que de fato apresentam esse tipo de configuração tonal, e as teorias têm de lidar com isso. É o caso do Igbo, língua nigero-congolesa falada na Nigéria que foi o principal objeto de estudo do autor. É também, celebremente, o caso do Mandarim, conforme se pode ver na Figura 1 abaixo, já na notação autossegmental: Foneticamente, o tom caracteriza a altura de um som a partir de sua frequência. Fonologicamente, o tom de um enunciado pode ser representado como uma sequência digitalizada de valores H (alto), M (médio) e L (baixo). Quando distingue significado dentro da palavra, o tom é chamado de tom de nível. 4 820 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 FIGURA 1 – Representação de tons em Mandarim (DOBROVOLSKY; KATAMBA, 2011, p. 44) As linhas verticais que se erguem acima do segmento [a] são chamadas de linhas de associação. No caso correspondente à palavra cavalo (horse), há três valores tonais distintos associados ao mesmo segmento. Em Mende, uma língua falada em Serra Leoa, também é possível constatar um fenômeno oposto, mas igualmente problemático para o modelo linear: vários segmentos vinculados a um mesmo tom, como na Figura 2 abaixo. FIGURA 2 – Representação de tons em Mende (DOBROVOLSKY; KATAMBA, 2011, p. 44) Goldsmith (1976) reporta um caso ainda mais curioso que só pode ser capturado por uma teoria que abandone a correspondência estrita entre tons e segmentos: o fenômeno de tons flutuantes. Um tom flutuante é “um segmento especificado apenas por seu tom que, em algum momento da derivação, se conecta a alguma vogal, transmitindo sua especificação tonal a ela” (GOLDSMITH, 1976, p. 78). Não cabe entrar nos detalhes do caso complexo estudado pelo autor, que diz respeito ao apagamento opcional do complementizador /na/ em Igbo. A ideia geral da análise que ele oferece é que, quando um complementizador que carrega um tom H é apagado, seu tom permanece “flutuando” na estrutura, “aguardando” uma vogal para incorporá-lo. Ou seja, seria possível apagar um segmento Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 821 (o complementizador /na/) sem que o tom associado a esse segmento seja necessariamente apagado. O que todos esses fenômenos sugerem é que tons e segmentos são unidades de tipos e de níveis distintos. A relação entre ambos não é derivacional: dada uma determinada configuração de segmentos, a organização tonal superveniente não é totalmente previsível. Mas isso não significa que a correspondência entre esses componentes é totalmente arbitrária e caótica. Goldsmith (1976) argumenta que a interface entre a camada segmental e a camada tonal é regida pela seguinte Condição de Boa-Formação: (1) Condição de Boa-Formação (GOLDSMITH, 1976, p. 48): (a) Todas as vogais são associadas a pelo menos um tom. (b) Todos os tons são associados a pelo menos uma vogal. (c) Não pode haver cruzamentos entre linhas de associação. Todos os casos de correspondência “imperfeita” que mencionei acima – tons de contorno, tons compartilhados por vários segmentos e tons flutuantes – satisfazem as cláusulas de (1). Em especial, parece que a vinculação obrigatória dos tons flutuantes a uma vogal é uma “conspiração” – no sentido de McCarthy (2008) – para satisfazer (1b). É importante notar, em conexão com o espírito da AP, que (1) é um princípio autônomo da fonologia, que nada tem a ver com boa-formação sintática. Se supusermos, adicionalmente, que o que está lexicalmente codificado é, em geral, apenas a informação segmental, esses casos constituem, a fortiori, objeções contra o sintatocentrismo. Parece mais plausível considerar que os princípios de correspondência entre tons e segmentos, como (1), e os princípios de organização tonal, como o Princípio do Contorno Obrigatório5 (ODDEN, 1986), são restrições internas ao componente fonológico, que não podem ser derivadas da sintaxe. Generalizando o tipo de organização sugerida por esses exemplos para outros componentes fonológicos autossegmentais (como estrutura silábica e grade métrica), a representação fonológica do sintagma “the big apple” seria algo como a seguinte: O que o Princípio do Contorno Obrigatório prediz é que certos traços fonológicos (em especial, traços tonais) idênticos não podem ocorrer em posições adjacentes em um dado nível de representação fonológica. Uma sequência de tons HH, por exemplo, seria uma violação desse princípio. 5 822 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 FIGURA 3 – Estrutura fonológica de “the big apple” (JACKENDOFF, 2007, p. 38) Na camada mais baixa figura a estrutura segmental, representada no alfabeto fonético. Cada segmento individual pode, por sua vez, ser decomposto em uma matriz de traços distintivos (cf. JAKOBSON et al., 1952). Logo acima da estrutura segmental, aparece a estrutura silábica. A maioria das teorias considera que a sílaba tem uma estrutura de ramificação binária, podendo repartir-se, inicialmente, em onset (O) e rima (R), com a rima, por sua vez, podendo ramificar-se em núcleo (N) e coda (C). As evidências em favor da sílaba e de seus constituintes internos são várias: eles parecem ser o domínio relevante para aplicação de alguns processos fonológicos e a “estrutura alvo” em muitos jogos de linguagem (cf. BLEVINS, 1995; BOSCH, 2011). A estrutura silábica e sua interface com a estrutura segmental estão sujeitas a restrições próprias como aquelas que pesam sobre a organização tonal. Cada constituinte silábico terminal deve estar associado a um segmento e cada segmento deve estar vinculado a pelo menos um constituinte terminal por meio de linhas de associação. (É possível, contudo, que um segmento único seja associado a duas sílabas distintas.) Embora não haja nada inerente ao segmento que permita prever sua função, a distribuição dos segmentos na sílaba tende a obedecer à generalização da sequenciação sonora (BLEVINS, 1995), segundo a qual, entre um membro da sílaba e o núcleo silábico, deve ocorrer uma queda ou elevação de sonoridade (essa é uma possível explicação para a predominância de vogais na posição de núcleo). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 823 As sílabas, por sua vez, são agrupadas em constituintes prosódicos como palavras e sintagmas fonológicos, conforme indicado pela notação de colchetes rotulados na Figura 3. Cada sílaba também recebe um determinado valor relativo de acento (“stress”), o que é representado na grade métrica. Quanto mais “alta” a linha de x acima de uma sílaba, mais acentuada ela é. Na próxima seção vou apresentar algumas restrições que, segundo a literatura, se aplicam nesse nível de organização fonológica. A notação que empregarei para representar constituintes prosódicos e grades métricas será levemente diferente da empregada por Jackendoff (2007). O que Jackendoff (2002, 2007) tenta mostrar é que as correspondências imperfeitas entre as camadas independentes da fonologia (estrutura segmental, tonal, silábica, etc.) são sugestivas em relação a possíveis incorrespondências entre os macrocomponentes da linguagem (fonologia, sintaxe e semântica). As representações fonológicas não-lineares sinalizam uma visão sobre a arquitetura geral da gramática profundamente subversiva ao sintatocentrismo: vários eixos de combinatorialidade autônomos, alinhados uns aos outros por meio de princípios (violáveis) de correspondência, e não por derivações algorítmicas a partir da geração sintática. Jackendoff (1997) observa que os princípios de correspondência só “veem” alguns aspectos das estruturas que relacionam. Eles apresentam algumas propriedades de módulos, no sentido de Fodor (1983), pois são: (i) de domínio específico, visto que só mencionam pares de estruturas (a correspondência entre sintaxe e semântica, por exemplo, só “sabe” de sintaxe e de semântica); e (ii) informacionalmente encapsulados (dado que só têm acesso a um conjunto restrito de informações). Se a fonologia estiver associada à sintaxe por correspondência e não por derivação, espera-se que a interface entre esses dois componentes apresente essas propriedades, o que parece ser o caso. A interface entre sintaxe e fonologia, do lado da fonologia, desconsidera totalmente categorias sintáticas (um processo fonológico, em geral, não discrimina entre nomes, verbos ou adjetivos). Do lado da sintaxe, a interface ignora quase que completamente a estrutura segmental. Como Jackendoff (2007, p. 42) diz, “não existe nenhuma regra sintática que se aplique apenas a palavras que comecem com /b/”. Isto é, “muitos aspectos da estrutura fonológica são invisíveis à sintaxe, e vice-versa” (JACKENDOFF, 1997, p. 29). Mas nem todos, obviamente. Parece haver, em particular, uma correspondência especial entre sintaxe e prosódia. Muitos autores, como 824 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 Cinque (1993), têm proposto que a organização hierárquica de sintagmas e a geração de constituintes prosódicos e seus acentos guardam uma relação muito próxima entre si. Investigarei essa hipótese na seção 5. 4. A interface entre a prosódia e sintaxe na AP Nesta seção, vou examinar algumas propriedades gerais da interface entre prosódia e sintaxe na AP para, na seção seguinte, contrastar essa visão com a teoria do acento nuclear proposta por Cinque (1993). Para Jackendoff (2002, 2007), mesmo no nível dos constituintes prosódicos, os quais realmente guardam uma relação próxima com as unidades sintáticas, os mapeamentos nem sempre são perfeitos. De início, é importante observar que, embora parcialmente sobrepostas, as unidades mínimas de cada nível são diferentes. Na Figura 3, por exemplo, a primeira palavra fonológica é a sequência (ðə.bɪɡ), que corresponde a duas unidades sintáticas: um determinante singular definido e um adjetivo. Simplesmente não faz sentido perguntar a que categoria sintática (ðə.bɪɡ) pertence, ou postular uma operação de movimento para explicar esse agrupamento inusitado de elementos. Essa sequência não é sequer um constituinte: trata-se de uma unidade puramente fonológica. Um princípio default de correspondência entre unidades prosódicas e sintáticas, que pode ser enunciado como (2), é violado aí por alguma razão interna à fonologia (possivelmente uma restrição prosódica a palavras monossilábicas átonas), desencadeando a “cliticização” do determinante. O mesmo processo ocorre no PB, como podemos ver na cliticização do “o” em (3): (2) Princípio de correspondência prosódia-sintaxe: Uma palavra fonológica corresponde preferencialmente a um núcleo sintático X0 (uma projeção mínima). (3) [NP [Det o][Adj velho][N amigo]] ↔ (ʊ.vɛʎʊ)( a.mi.gʊ) (violação de (2)) Note-se que o determinante o na sintaxe viola (2) porque, na segmentação prosódica em (3), ele não corresponde a uma palavra fonológica plena – ele é “amalgamado” (i.e. cliticizado) a uma mesma palavra fonológica junto com /vɛʎʊ/. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 825 Nos níveis superiores da hierarquia prosódica, os desajustes entre sintaxe e fonologia persistem. Jackendoff (2002, p. 119) cita um exemplo em que uma única forma sintática é capaz de se associar a duas estruturações de sintagmas fonológicos possíveis, sem qualquer diferença de significado perceptível entre elas. Note-se, entretanto, que não é qualquer organização prosódica que é possível, dada a anomalia de (4d): (4) a. Estrutura sintática: [Sesame St.] [is [a production [of [the Children’s Television Workshop]]]] b. Estrutura prosódica (uma possibilidade): (Sesame St. is a production of) (the Children’s Television Workshop) c. Estrutura prosódica (outra possibilidade): (Sesame St.) (is a production) (of the Children’s Television Workshop) d. Estrutura prosódica (impossível): * (Sesame) (Street is a) (production of the Children’s Television) (Workshop) Jackendoff (2002, p. 119) menciona ainda um caso citado pela primeira vez por Chomsky (1965, p. 13), no qual o agrupamento de constituintes sintáticos é radicalmente diferente da segmentação prosódica dos sintagmas fonológicos (cf. SELKIRK, 1984). A sintaxe em (5) apresenta uma estrutura recursiva de encaixamentos, enquanto a prosódia parece projetar apenas uma estrutura flat: (5) a. Agrupamentos sintáticos: [Este] [é [o gato [que pegou [o rato [que roubou [o queijo]]]]]] b. Agrupamentos prosódicos: (Este é o gato)(que pegou o rato)(que roubou o queijo) Esse exemplo é, aliás, uma das razões pelas quais Chomsky e Halle (1968) se viam obrigados a postular, com certa relutância, “regras de reajuste” que convertessem o output da sintaxe em uma estrutura “legível” pelo componente fonológico. A relutância vinha da percepção – hoje superada por uma teoria prosódica plenamente integrada ao core 826 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 da linguística – de que o contraste entre (5a) e (5b) pudesse ser tributário de um “fator de desempenho” externo à gramática: É plausível argumentar que esse “achatamento” da estrutura superficial seja simplesmente um fator de desempenho[...]. Portanto, certamente poderíamos argumentar que esses problemas não pertencem à gramática – e à teoria da competência – de modo algum. (CHOMSKY; HALLE, 1968, p. 372) Transferir a explicação a uma teoria (não formulada) do desempenho foi um gesto metodologicamente compreensível a essa altura, dado que não havia uma teoria linguística que explicasse esse fenômeno. Hoje em dia essa teoria já existe. A fonologia prosódica foi criada justamente para ser capaz de lidar com fatos desse tipo (SELKIRK, 1984; NESPOR; VOGEL, 1986; HALLE; VERGNAUD, 1987). Uma abordagem para casos como (4) e (5) mais afinada com esses desenvolvimentos reconheceria uma hierarquia de agrupamentos prosódicos possíveis (palavras fonológicas, sintagmas fonológicos, grupos entoacionais, etc.), cada um dos quais sujeito a condições de boa-formação próprias e ligado a estruturas sintáticas por princípios de correspondência relativamente tolerantes. Segue abaixo uma formulação preliminar de algumas regras de formação de sintagmas fonológicos e de outro princípio de correspondência entre prosódia e sintaxe (NESPOR; VOGEL, 1986, p. 168; JACKENDOFF, 2002, p. 119; MENUZZI; MIOTO, 2006, p. 227): (6) Regras de formação de sintagmas fonológicos (φs): a. Um grupo entoacional (I) consiste em uma série de fs concatenados em uma estrutura flat. Cada φ é uma sequência de palavras fonológicas (ωs). b. Preferencialmente, os fs devem ter tamanhos semelhantes. c. Preferencialmente, o φ mais longo deve figurar no final do I. d. Os fs devem ser minimamente ramificados do ponto de vista silábico (i.e. devem consistir em mais de uma sílaba). (7) Princípio de correspondência prosódia-sintaxe: Um sintagma fonológico φ corresponde a (i) um núcleo lexical X (= V, N, Adj ou Adv) e (ii) todo dependente semântico (argumento, modificador, predicador, etc.) de X à sua esquerda, até a fronteira de outro sintagma fonológico φ’. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 827 O que transcorre em (4) e (5) é que o princípio de correspondência em (7) é suficientemente “liberal” para tolerar que as representações prosódicas estejam em desacordo radical com a estrutura sintática. O desacordo, entretanto, não é aleatório (como se vê pela má-formação de (4d)): ele ocorre como uma maneira de garantir um output compatível com as regas autônomas de formação de φs em (6). (4d) é simplesmente um caso em que quase todas as condições em (6) são violadas. Uma transposição total das fronteiras sintáticas de (4a) de (5a) para a prosódia resultaria em uma estruturação de φs totalmente anômala. Primeiramente, tanto (4a) quanto (5a) exibem predicados com múltiplos níveis de encaixamento, o que contradiz a condição (6a). Em segundo lugar, ambos os exemplos também configurariam uma violação de (6b), dado que os tamanhos dos φs “sintaticamente transparentes” seriam totalmente desproporcionais: o φ correspondente ao sujeito – “Sesame St.” em (4) e “Este” em (5) – seria muito menor do que o do predicado. Já os agrupamentos (4b-c) e (5b) estão, concomitantemente, em conformidade com (7) e (6). É importante perceber, todavia, que o princípio de correspondência (7) – que é o que determina quanto da segmentação prosódica é sintaticamente motivado –, por si só, não seria suficiente para prever a boa-formação desses agrupamentos. Isso equivale a dizer, contra o sintatocentrismo, que a prosódia é subdeterminada pela sintaxe, pois depende essencialmente de regras autônomas, que fazem referência apenas às suas unidades mínimas, como as regras em (6). De um modo geral, os princípios de correspondência entre os módulos da FL não permitem deduzir totalmente as propriedades dos níveis que eles relacionam: quase sempre é necessária uma caracterização independente de cada nível. Essa concepção é exatamente a inovação proposta na AP. Na próxima seção, vou contrapor uma regra do acento nuclear que se enquadra nessa visão com a formulação de Cinque (1993). 5. Duas teorias sobre o acento nuclear “Acento” (stress) é o nome dado ao conjunto de parâmetros suprassegmentais que sinalizam proeminência vocálica.6 Mas proeminência O conjunto exato de parâmetros que definem o acento varia translinguisticamente. No inglês, por exemplo, as vogais acentuadas são sinalizadas por meio de sua maior duração, intensidade e tom mais elevado. Já no grego moderno, como todas as vogais 6 828 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 vocálica é uma noção relativa ao tipo de constituinte prosódico em questão: para qualquer elemento na hierarquia prosódica, haverá sempre uma vogal mais proeminente (o seu núcleo). Palavras têm acento, mas também sintagmas fonológicos e grupos entoacionais. Cada nível de agrupamento prosódico recebe seu acento (i.e., seu núcleo) determinado segundo uma regra específica, embora as regras de cada nível tenham uma relação entre si. O acento atribuído ao sintagma fonológico (φ) é chamado de acento frasal. O acento atribuído ao grupo entoacional (I) é chamado de acento nuclear. Desde Chomsky e Halle (1968, p. 89-91), várias teorias foram propostas para explicar a atribuição de acento em várias línguas. Uma das mais bem aceitas é a teoria métrica de Halle e Vergnaud (1987). As regras de acento frasal e nuclear que eles propõem para línguas como o PB, adaptadas aos termos da hierarquia prosódica de Nespor e Vogel (1986), são as seguintes (MENUZZI; MIOTO, 2006, p. 218): (8) Regra do acento frasal: Interprete as fronteiras de um sintagma fonológico φ como um constituinte métrico ilimitado com núcleo terminal à direita. (9) Regra do acento nuclear: Interprete as fronteiras de um grupo entoacional I como um constituinte métrico ilimitado com núcleo terminal à direita. O acento frasal é atribuído por (8) a cada φ formado segundo as condições (6) e (7), e, com base nisso, (9) define um acento nuclear para o grupo entoacional como um todo. O efeito é semelhante à regra de Chomsky e Halle (1968), que localizava o acento nuclear do inglês na unidade prosódica acentuada mais à direita.7 Vejamos abaixo em detalhes o resultado da operação dessas regras sobre a sentença (10a): tendem a ter duração idêntica, o acento é indicado apenas por meio do tom mais elevado e da maior intensidade (DOBROVOLSKY; KATAMBA, 2011, p. 47). 7 O alcance tipológico da teoria de Halle e Vergnaud (1987) é mais amplo, pois as regras (8) e (9) são definidas com base em parâmetros específicos ([+/- limitado],[+/- núcleo terminal], núcleo à direita ou esquerda) que buscam esgotar as dimensões de variação entre as línguas. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 (10) 829 a. Paulo já conhecia uma das irmãs de Maria. b. (Paulo)φ (já conhecia)φ (uma das irmãs)φ (de Maria)φ. Esse exemplo, retirado de Menuzzi e Mioto (2006, p. 219), ilustra, em (10b), a operação das regras (6) e (7) para a construção de sintagmas fonológicos. Já (10c) mostra, propriamente, a atuação das regras de acentuação (8) e (9). De início, um acento frasal é atribuído a cada φ localizando o elemento acentuado mais à direita no nível inferior (o da palavra fonológica). Em seguida, é aplicada a regra do acento nuclear propriamente, que projeta o acento frasal mais à direita (o acento da palavra “Maria”) na camada superior, a camada do grupo entoacional. Na representação resultante, quanto maior a linha vertical de asteriscos, maior é o acento relativo. Temos aí uma teoria do acento nuclear plenamente integrada aos princípios de construção de unidades prosódicas que esbocei na seção anterior. Como as regras (8) e (9) são formuladas em termos de parâmetros específicos à fonologia (pois referem-se apenas a fronteiras de constituintes métricos e à ordem linear), o sucesso dessa abordagem corrobora com o abandono do sintatocentrismo encarnado na AP. Não há, em (8) e (9), qualquer menção a categorias sintáticas – a não ser indiretamente, na medida em que essas regras pressupõem o princípio de correspondência (7) (que vimos ser insuficiente, sem o amparo de (6), para determinar a estrutura prosódica). Além disso, embora o modo de exposição adotado tenha ressonâncias derivacionais (fala-se da “atribuição” do acento e de uma “sequência” na qual (8) se aplica “antes” de (9)), o formalismo das grades métricas vem da teoria não-linear de Liberman e Prince (1977), que foi uma das principais inspirações para a criação da AP. A teoria de Cinque (1993) busca, precisamente, remediar essa subversão ao sintatocentrismo, tornando a regra do acento nuclear mais palatável aos pressupostos dos modelos chomskianos. Sua hipótese ousada é de que regras fonológicas específicas não seriam necessárias para capturar os vários padrões de acento nuclear encontrados nas línguas naturais. Não haveria uma “regra do acento nuclear” strictu sensu: o acento nuclear seria derivado diretamente da estrutura sintagmática 830 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 das sentenças por um procedimento genérico de construção de grades métricas. A maneira como ele formula esse procedimento é a seguinte (CINQUE, 1993, p. 244): (11) a. Interprete as fronteiras dos constituintes sintáticos como fronteiras de constituintes prosódicos. b. Localize os núcleos dos constituintes da linha N em uma linha N+1. c. Cada regra se aplica a uma cadeia sem segmentação interna. d. Um asterisco em uma linha N deve corresponder a um asterisco, na mesma posição, em uma linha N-1. Cinque (1993) ilustra a operação do algoritmo (11) em uma estrutura de constituintes sintáticos abstrata como (12). A grade métrica resultante seria (13): (12) [A * [B * [C *]]] (13) ( . . *) linha 3 ( . ( . *)) linha 2 ( * ( * ( * ))) linha 1 Não convém entrar aqui nos detalhes de como (13) é derivada da aplicação de (11) a (12) ou nas (várias) estipulações adicionais que seriam necessárias para adequar essa teoria a exemplos concretos. Também não vou repisar os argumentos dados na seção anterior contra a identificação entre constituintes prosódicos e sintáticos presumida pelo princípio (11a). O mais importante é perceber que os procedimentos em (11) tem o efeito prático de tornar “a proeminência acentual um mero reflexo do grau de encaixamento [sintático]” (CINQUE, 1993, p. 245). 8 Ou seja, segundo o procedimento em (11), quanto mais encaixado um constituinte, mais acento ele receberá, e o acento nuclear é atribuído ao constituinte mais encaixado. (11) faz previsões mais ou menos equivalentes às das regras (8) e (9) para (10), onde o constituinte mais à direita (identificado por (9) Consequentemente, como Cinque (1993) reconhece, qualquer variação tipológica no padrão acentual também teria que ser explicada por parâmetros sintáticos. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 831 como o locus do acento nuclear) é, de fato, o mais encaixado. Mas essa coincidência entre ordem linear e hierarquia sintática não é universal. Como Menuzzi e Mioto (2006) observam, existe pelo menos um caso para o qual a teoria sintática mais bem aceita postula que o constituinte mais à direita não corresponde ao mais encaixado: o caso de advérbios na periferia direita. Esse é potencialmente um caso para o qual a teoria de Halle e Vergnaud (1987) e a de Cinque (1993) fazem previsões conflitantes. Vejamos: (14) a. Carla canta p’ra vó constantemente. b. (15) Carla canta p’ra vó constantemente Na sentença (14a), como se pode deduzir da representação sintática à lá Simpler Syntax (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005) em (14b), o constituinte mais encaixado é [NP a vó]. De acordo com a teoria de Cinque (1993), seria esse o sintagma (mais especificamente, a sílaba /vɔ/) que deveria receber o acento nuclear. Já para a teoria prosódica autônoma de Halle e Vergnaud (1987), quem recebe o acento nuclear é o sufixo “-mente”, que é o núcleo portador de acento frasal mais à direita na linearidade, conforme se vê em (15). Nesse e em outros casos semelhantes, a teoria que faz a previsão correta é a de Halle e Vergnaud (1987). Uma pronúncia de (14a) com acento mais proeminente na palavra “vó” (algo como “Carla canta pra VÓ constantemente”) seria uma estrutura marcada, de foco contrastivo, e não a prosódia regular para (14a). Esse exemplo mostra que o acento nuclear no PB nem sempre cai no constituinte mais encaixado. Menuzzi 832 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 e Mioto (2006) mostram que a teoria de Cinque (1993) faz previsões errôneas para todas essas estruturas em que advérbios aparecem na periferia direita. A única maneira de salvaguardar o procedimento (11) diante desses casos seria consentir a uma complicação da estrutura sintática. Isto é, teríamos que manipular a estrutura (14b) de alguma maneira para que o advérbio resultasse na posição mais encaixada, a fim de poder receber o acento nuclear em conformidade com a teoria de Cinque (1993). É essa a estratégia adotada por Costa (1998), que propõe que estruturas [V PP Adv] são derivadas por scrambling do PP, como ilustro abaixo: (16) O scrambling do PP é o deslocamento desse constituinte para uma posição de adjunção a VP acima da posição do advérbio.9 Vale ressaltar o quanto a estrutura resultante em (16) é mais complexa do que a estrutura em (14b). (14b) não assume nenhuma operação de movimento ou categorias vazias, ao passo que (16) assume três. (16) contém, fora Culicover e Jackendoff (2005, cap. 9) argumentam que o embasamento formal da noção de scrambling está longe de ser claro. Além disso, parece haver pouca relação entre as operações que, em análises de várias línguas, são chamadas de scrambling: e.g., no sérvio, o ordenamento variável de argumentos adjuntos parece ser motivado por restrições informacionais, já no japonês não parece haver uma relação tão clara entre esses fenômenos. No entanto, a despeito disso, em ambas as línguas o ordenamento livre é explicado por meio da operação de scrambling. 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 833 isso, quatro projeções de VP, enquanto (14b) contém apenas duas (e, se admitíssemos ramificação ternária para o VP, poderia haver apenas uma). Toda essa maquinaria sintática adicional é postulada com o único e exclusivo objetivo de preservar uma relação mais próxima da prosódia com a sintaxe, alimentando a suposição sintatocêntrica. Já a posição de adjunção à direita de (14b), além de sua maior simplicidade, é motivada por argumentos exclusivamente sintáticos, como os argumentos de Pollock (1997) contra a teoria do movimento do verbo no inglês. Na verdade, Costa (1998) se apropria da teoria de Cinque (1993) pois ela concede uma motivação adicional para estruturas como (16), que ele acredita serem mais desejáveis do que a estrutura “pollockiana” de (14b) por razões independentes. Essas razões independentes – boa parte das quais dizem respeito a propriedades associadas ao scrambling – são também contestadas por Menuzzi e Mioto (2006). Outro motivo pelo qual Costa (1998) considera a ordem [V Adv Compl/PP] como “básica” e a ordem [V Compl/PP Adv] como derivada envolve a distribuição restrita de advérbios monossilábicos (como “mal”, “bem” e “já”). Esses advérbios se acomodariam mais naturalmente entre o verbo e o PP, resistindo à posição final: (17) a. João argumentou mal contra tua posição. b. ? João argumentou contra tua posição mal. (18) a. Ela olhou bem para o retrato. b. ? Ela olhou para o retrato bem. Costa (1998) argumenta que se a posição “natural” dos advérbios fosse a de adjunção à direita, como sugerido por (14b), não teríamos como explicar a anomalia de (17b) e (18b). Menuzzi e Mioto (2006) retrucam esse argumento apontando para o fato de que a anomalia desses exemplos tem origem na violação de uma condição de boa-formação puramente prosódica: a condição de complexidade rítmica mínima enunciada em (6d) na seção anterior. O que dá origem ao contraste em (17) e (18) é o fato de que, quando o advérbio ocupa a posição final, ele não consegue ser integrado a um sintagma fonológico minimamente ramificado. Sintaticamente, no entanto, (17b) e (18b) seriam perfeitamente bemformadas. Essa é uma explicação natural, de acordo com Menuzzi e Mioto (2006, p. 230), pois envolve dizer que “uma propriedade prosódica dessa 834 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 classe de advérbios – a de serem monossilábicos – faz com que tenham distribuição limitada em função da estrutura prosódica da frase”.10 Este último ponto da discussão reitera um raciocínio que é, conforme venho argumentando, central na AP. Não é conceitualmente necessário (para usar os termos de Chomsky (1995)) alocar a explicação última para todos os fenômenos linguísticos na estrutura sintática. Alguns fenômenos podem ser explicados de maneira mais simples e natural conferindo uma maior autonomia aos demais componentes da FL. A atribuição de acento nuclear, por exemplo, se acomoda mais prontamente a uma teoria interna ao componente fonológico, como a teoria de Halle e Vergnaud (1987). O mesmo pode ser dito em relação à restrição na distribuição de advérbios monossilábicos – o que está de acordo com as conclusões de Menuzzi e Mioto (2006). Vimos, a partir dessa breve discussão sobre as teorias do acento nuclear, que só é possível manter a suposição sintatocêntrica de que a prosódia é derivada diretamente da sintaxe – como na teoria de Cinque (1993) – a custo de complicação indevida da sintaxe. Por isso, longe de ameaçar sua autonomia, o abandono do sintatocentrismo permite efetuar uma simplificação da sintaxe, purgando-a de elementos inseridos com o propósito único de oferecer instruções “transparentes” para as interfaces. Nesse sentido, uma teoria que reconhece mais autonomia para a fonologia poderia contribuir com uma sintaxe mais “minimalista”. 6. Considerações finais Neste artigo, procurei apresentar alguns resultados de correntes consagradas em fonologia – especialmente a fonologia autossegmental e prosódica – que, a meu ver, sugerem a necessidade de reavaliar o caráter da interface entre sintaxe e fonologia e da FL em geral. Argumentei que a Arquitetura em Paralelo é um tipo de modelo de gramática que acomoda muito bem essas vertentes e que, nesse sentido, também se “fortalece” Os autores citam ainda outras evidências em prol dessa análise, como o fato de que se os advérbios em (17b) e (18b) forem modificados, as sentenças resultantes são mais aceitáveis com uma prosódia não-marcada: p.ex. “Ela olhou para o retrato muito bem” soaria mais natural do que (18b). Quando modificado, o advérbio passa a integrar a um sintagma fonológico que inclui seu modificador, cumprindo assim o requisito de ser “minimamente ramificado”. 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 835 diante do sucesso delas. A discussão foi, em parte, inspirada na maneira como o próprio Jackendoff (2002, 2007) apresenta sua teoria: A visão sobre a estrutura fonológica, desenvolvida nos fins dos anos 1970 e quase imediatamente adotada pelos fonólogos como o padrão, é profundamente subversiva à suposição sintatocêntrica de que toda a combinatorialidade linguística tem origem na sintaxe. Descobriu-se que a estrutura fonológica é muito mais do que um mero remendo passivo aos produtos da sintaxe superficial: ela tem seu próprio papel na determinação da totalidade da estrutura linguística. (JACKENDOFF, 2007, p. 42) Antes mesmo dos trabalhos de Jackendoff (1990) em semântica, abandono do sintatocentrismo foi, então, prenunciado pelos estudos em fonologia, embora os próprios fonólogos não tenham percebido as consequências radicais de suas ideias. Tentei também mostrar que a rejeição do sintatocentrismo possibilita outorgar mais autonomia ao componente fonológico, o que, por sua vez, permite vislumbrar uma simplificação radical da sintaxe. Na seção 5, em particular, tentei mostrar como uma teoria que impõe uma exigência sintatocêntrica muito pesada (como a de Cinque (1993)) acaba levando a complicações desnecessárias da estrutura sintática. O ideal de simplificar a sintaxe – i.e., para retomar os termos da introdução, de reduzir as mediações entre “forma” e “sentido” – é partilhado pela AP e pelo Programa Minimalista (CHOMKSY, 1995). O que a AP acrescenta ao debate é uma coleção de argumentos (como o que desenvolvi na seção 5) para mostrar que essa redução só é verdadeiramente possível se abrandarmos as pretensões explanatórias da sintaxe. Do contrário, uma simplificação acaba incorrendo – como ocorre muitas vezes no minimalismo – em uma simples redução do alcance descritivo da teoria. É importante frisar que a AP é, essencialmente, uma teoria sobre o funcionamento das interfaces e sobre o formato abstrato da FL. A AP não é uma teoria de representação fonológica: ela apenas acomoda bem, e encontra inspiração, em modelos não-lineares de representação. Por outro lado, embora seja um modelo baseado em restrições, a AP também não se compromete com uma teoria explícita sobre como restrições são interpretadas, tal qual a Teoria da Otimidade. Acredito, todavia, que é justamente pela distinção e complementariedade dos seus objetos que a AP, as fonologias não-lineares e a Teoria da Otimidade são modelos 836 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 compatíveis. Fica como um exercício para trabalhos futuros ver em mais detalhes como essa integração poderia se dar para além das sugestões superficiais que ofereci aqui. Agradecimentos Gostaria de agradecer ao Prof. Sergio Menuzzi por ter me dado a ideia e à Profa. Ana Lívia Agostinho por ter me mostrado como executá-la. Dedico este trabalho a Morris Halle, pois foram em diálogos imaginários com ele que compus boa parte deste artigo, escrito quando ele ainda estava entre nós. Referências ARISTÓTELES. De Anima. São Paulo: Editora 34, 2006. BLEVINS, J. The syllable in phonological theory. In: GOLDSMITH, John (Ed.). The handbook of phonological theory. Cambridge: Blackwell, 1995. BOSCH, A. Syllable-internal structure. In: OOSTENDROP, Colin et al. (Org.). The Blackwell companion to phonology. Malden: Wiley-Blackwell, 2011. CHOMSKY, N. The logical structure of linguistic theory. Cambridge: MIT Library, 1955. Documento mimeografado, manuscrito não publicado. CHOMSKY, N. Syntactic structures. The Hague: Mouton, 1957. CHOMSKY, N. Aspects of a theory of syntax. MIT Press, 1965. CHOMSKY, N. Studies on semantics in generative grammar. The Hague: Mouton, 1972. CHOMSKY, N. Language and responsibility. New York: Pantheon Books, 1979. CHOMSKY, N. The minimalist program. Cambridge: MIT Press, 1995. CHOMSKY, N. New horizons in the study of language and mind. Cambridge: CUP, 2000. CHOMSKY, N. Three factors in language design. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 36, n. 1, p. 1-22, 2005. CHOMSKY, N.; HALLE, M. The sound pattern of English. New York: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 837 Harper & Row, 1968. CHOMSKY, N.; LASNIK, H. Filters and control. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 8, n. 3, 1977. CINQUE, G. A Null Theory of Phrase and Compound Stress. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 24, n. 2, p. 239-298, 1993. COSTA, J. Word order variation: a constraint based approach. Haia: Holland Academic Graphics, 1998. CULICOVER, P.; JACKENDOFF. R. Simpler syntax. Oxford: OUP, 2005. DOBROVOLSKY, M.; KATAMBA, F. Phonetics: the sounds of language. In: O’GRADY, W.; DOBROVOLSKY, M.; KATAMBA, F. (Org.). Contemporary Linguistics: an introduction. Harlow: Addison Wesley Longman, 2011. FODOR, J. The modularity of mind. Cambridge: MIT Press, 1983. GOLDSMITH, J. Autosegmental phonology. 1976. Dissertation (Doctoral) – MIT, Cambridge, 1976. HALLE, M.; VERGNAUD, J-R. An Essay on Stress. Cambridge: MIT Press, 1987. HARRIS, R. A. The linguistics wars. New York: Oxford University Press, 1995. HORNSTEIN, N. Theory of syntax: minimal operations and universal grammar. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. JACKENDOFF, R. Semantic structures. Cambridge: MIT Press, 1990. JACKENDOFF, R. The architecture of the language faculty. Cambridge: MIT Press, 1997. JACKENDOFF, R. Foundations of language. Oxford: OUP, 2002. JACKENDOFF, R. Genesis of a theory of language: from thematic roles (source) to the Parallel Architecture (goal), 2014. Arquivo digital. Disponível em: <https://ase.tufts.edu/cogstud/jackendoff/papers/ GenesisofPA.pdf>. Acesso em: 19 set. 2016. JACKENDOFF, R. Language, consciousness, culture: essays on mental structure. Cambridge: MIT Press, 2007. 838 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 811-838, abr./jun. 2019 JAKOBSON, R.; FANT, G.; HALLE, M. Preliminaries to speech analysis: distinctive features and their correlates. Cambridge: MIT Press, 1952. KAGER, R. Optimality theory. Cambridge: CUP, 2004. KISSEBERTH, C. W. On the functional unity of phonological rules. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 1, n. 3, p. 291-306, 1970. LIBERMAN, M.; PRINCE, A. On stress and linguistic rhythm. Linguistic inquiry, Cambridge, v. 8, n. 2, 249-336, 1977. MCCARTHY, J. Nonlinear phonology: an overview. GLOW Newsletter, Amsterdam, v. 1, n. 8, p. 63-77, 1982. MCCARTHY, J. Doing Optimality Theory: applying theory to data. Malden: Blackwell, 2008. DOI: https://doi.org/10.1002/9781444301182 MENUZZI, S.; MIOTO, C. Advérbios monossilábicos pós-verbais no PB: sobre a relação entre sintaxe e prosódia. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 211-243, 2006. NESPOR, M.; VOGEL, I. Prosodic phonology. Dordrecht: Foris, 1986. ODDEN, D. On the role of the Obligatory Contour Principle in phonological theory. Language, Baltimore, v. 2, n. 62, 1986. POLLOCK, J-Y. Notes on clause structure. In: HAEGEMAN, Liliane (Org.). Elements of grammar: handbook in generative syntax. Dordrecth: Kluwer, 1997. PRINCE, A.; SMOLENSKY, P. Optimality theory: constraint interaction in generative grammar. Malden: Blackwell, 2004. DOI: https://doi. org/10.1002/9780470759400 SELKIRK, E. Phonology and syntax: the relationship between sound and structure. Cambridge: MIT Press, 1984. SAUSSURE, F. Cours de linguistique générale. Paris: Payot & Rivages, 1995. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 O constituinte-QU in situ e os efeitos de Common Ground no português brasileiro infantil The WH-Constituent in situ and the effects of Common Ground in Child Brazilian Portuguese Clariana Vieira Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo / Brasil clariana.vieira@usp.br Elaine Grolla Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo / Brasil egrolla@usp.br Resumo: O presente trabalho concentra-se nos efeitos do Common Ground na produção de perguntas com constituinte-QU in situ no português brasileiro, tendo em vista esta ser uma língua de movimento-QU aparentemente opcional. Neste artigo, procura-se discutir, com base em investigação empírica, como o conceito pragmático de fundo comum influencia na realização de tais perguntas, levando em consideração o comportamento de outras línguas que permitem tanto o QU-movido quanto o in situ, como o francês, o espanhol e o português europeu. Para tanto, ao fim deste artigo, será apresentado um novo experimento de aquisição que eliciou perguntas-QU em um contexto de pressuposição enriquecida. Os resultados sugerem que há, de fato, uma associação entre o QU-in situ e o contexto pragmático, tanto nos dados adultos (grupo controle) quanto nos dados infantis. Palavras-chave: qu-in situ; interrogativas-qu; common ground; português brasileiro. Abstract: The present paper focuses on the Common Ground effects on the production of wh-in situ in Brazilian Portuguese, bearing in mind that this is a language with apparently optional wh-movement. In this study, we aim to discuss, based on empirical research, how the pragmatic concept of Common Ground play a role on the production eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.839-884 840 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 of such questions, taking into account the behavior of other languages that allow whmoved and wh-in situ, such as French, Spanish and European Portuguese. For this purpose, at the end of this paper, we present a new acquisition experiment that elicits wh-questions in a context with enriched presupposition. The results suggest that there is, in fact, an association between wh-in situ and the pragmatic context, both in adult (control group) data and in child’s data. Keywords: wh-in situ; wh-questions; common ground; Brazilian Portuguese. Recebido em 30 de setembro de 2018 Aceito em 07 de dezembro de 2018 1 Introdução Este estudo investiga o comportamento de crianças adquirindo português brasileiro (doravante PB) com relação às perguntas-QU com elementos interrogativos in situ. As línguas naturais apresentam variação quanto à possibilidade de movimento dos elementos interrogativos, havendo.1 (i) línguas em que o elemento-QU se move, como o inglês2 (1); (ii) línguas em que o elemento-QU permanece obrigatoriamente in situ, como o chinês (2) e (iii) línguas em que o movimento é aparentemente opcional, como o português (3), francês (4) e espanhol (5):3 (1) a. Who did you see? (inglês) quem AUX-você ver “Quem você viu?” Esta classificação não inclui perguntas-eco, uma vez que elas são permitidas na forma in situ mesmo em línguas como o inglês, em que o elemento-QU se move obrigatoriamente, como no exemplo abaixo: (i) A: I bought a plane. B: You bought WHAT? 2 Segundo Pires e Taylor (2007), embora o inglês seja uma língua de movimentoQU obrigatório, há casos específicos em que o elemento-QU pode ficar in situ. Resumidamente, o QU-in situ é possível, nesta língua, em contextos com Common Ground preestabelecido, ver Pires e Taylor (2007) para discussão. 3 As traduções feitas a partir do espanhol, inglês e francês são de nossa autoria e, em casos de citação, não serão apresentados os trechos na língua original. 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 (2) a. Hufei mai-le shenme? (CHENG, 2003, p. 1) Hufei comprou 841 (chinês) o quê “Hufei comprou o quê?” (3) a. O que o Pedro viu? (português) b. O Pedro viu o quê? (4) a. Qu’a-t-il vu? (francês) o que AUX-3 pess ver a “O que ele viu?” b. Il a vu quoi? ele AUX-ver o quê “Ele viu o quê?” (5) a. Qué Juan miró t? (espanhol) o que João viu “O que João viu?” b. Juan miró lo qué? João viu o quê “João viu o quê?” As crianças adquirindo inglês ou chinês, línguas de movimentoQU obrigatório e proibido, respectivamente, não parecem ter dificuldade em reconhecer a possibilidade ou impossibilidade de movimento em suas línguas-alvo. Isto quer dizer que, por exemplo, as crianças adquirindo inglês não produzem QU-in situ e as crianças adquirindo chinês não produzem perguntas com movimento-QU. Isso é o que nos relata estudos como de Stromswold (1995)4 para o inglês e de Chang Stromswold (1995), em um estudo naturalístico do inglês conduzido com 12 crianças, não encontrou nenhum claro exemplo de pergunta com elemento-QU in situ, enquanto as perguntas de QU-movido, com sujeito e objeto, tiveram emergência já ao 1;8.5 e 1;9.8 ano de idade, respectivamente. Em outras palavras, as crianças falantes de inglês parecem não apresentar problemas quanto ao movimento do elemento-QU e logo cedo elas já demonstram saber o que é possível nessa língua. 4 842 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 (1992)5 para o chinês. A questão, todavia, torna-se problemática ao nos depararmos com línguas de movimento-QU aparentemente opcional, como o português brasileiro, o francês e o espanhol, como veremos a seguir. O português brasileiro, objeto do presente estudo, é uma das línguas que permitem tanto o movimento do elemento-QU para a periferia esquerda quanto sua permanência in situ, como vemos nos exemplos em (6).6 (6) a. O que o Pedro comeu? b. O Pedro comeu o quê? 7 (QU-movido) (QU-in situ) De acordo com Chang (1992), que observou sete crianças falantes de chinês, as perguntas com uma palavra interrogativa (como “schenme”, correspondente a “o que”) surgem no segundo estágio de aquisição (MLU entre 1.75 e 2.25). Parece não haver dificuldade por parte da criança, que nunca produz o QU-movido, em reconhecer que sua língua exige a permanência do elemento-QU in situ. 6 Vale lembrar que há outras estratégias de QU-movido em Português Brasileiro, como (i), com o acréscimo do complementizador “que”; (ii) com o acréscimo da cópula “é-que”; (iii) com a duplicação do complementizador “que” + cópula “é que” e; por fim, (iv) com o uso de uma estrutura clivada. (i) O que que o Pedro comeu? (ii) O que é que o Pedro comeu? (iii) O que que é que o Pedro comeu? (iv) Foi quem que fez isso? 7 No português brasileiro, o elemento-QU permanece in situ em dois casos distintos: (i) na pergunta-eco, que é realizada para indicar surpresa ou para pedir uma confirmação do que foi dito anteriormente e que, no PB, vem acompanhada de uma entonação ascendente, como em (a); (ii) na pergunta-real, que é realizada para pedir novas informações, como (b) e que vem acompanhada de entonação descendente. Em outras palavras, na pergunta-eco, o falante já tem a informação de que necessita e usa a pergunta para expressar surpresa, indignação ou pedir uma confirmação. Já na pergunta-real, o falante não tem essa informação e daí segue a necessidade da pergunta, chamada de pergunta com pedido de informação (‘information-seeking question’, em inglês). Neste artigo, nosso foco será apenas a pergunta que de fato pede informação. a. A: Eu comprei um avião. B: Você comprou O QUÊ? b. A: Eu já almocei. B: Você comeu o quê? 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 843 Assim, no PB, há dois modos de realizar uma pergunta-QU que pede por informações reais: com o QU-movido e com o QU-in situ. Entre essas construções, parece haver uma opcionalidade, posto que, à primeira vista, elas parecem intercambiáveis. No entanto, a literatura sobre QU-in situ (ver, por exemplo, Chang (1997); Ambar (2002); Pires e Taylor (2007); dentre outros) sugere que, nas línguas que permitem tanto o movimento do elemento-QU quanto sua permanência em posição argumental, as perguntas com QU-in situ estão associadas a condições pragmáticas específicas, o que não procede no caso do QU-movido, que é produzido em contextos neutros. Por exemplo, em contextos em que o QU-in situ é aceito, como em (7), há um contexto de pressuposição, introduzida pela situação em que um dos participantes lê um livro; e em contextos em que ele não é aceito, como a pergunta de supetão (‘outof-the-blue contexts’, em inglês) em (8), não há uma pressuposição compartilhada entre os interlocutores: (7) a. A chega em B que está lendo um livro e pergunta: A: Você está lendo o quê? A’: O que você está lendo? (8) a. A chega em B de supetão e pergunta: A: # Você mora onde? B: Onde você mora? As construções parecem, então, não ser aceitas exatamente nos mesmos contextos, o que sugere que elas não são, de fato, intercambiáveis. Além disso, uma observação ainda mais intrigante é que as crianças falantes do PB parecem ter dificuldade na aquisição de QU-in situ. Lopes-Rossi (1996), que coletou dados adultos do corpus da TV brasileira, encontrou 32,4% de QU-in situ e 30% de QU-movido. Esta produtividade encontrada na fala adulta, entretanto, não é observada na fala infantil: Grolla (2000), por exemplo, observou os dados espontâneos de uma criança e relatou, de um total de 500 perguntas-QU, apenas 2% de QU-in situ; Sikansi (1999b) não encontrou nenhuma pergunta desse tipo em um corpus de 839 perguntas de 3 crianças adquirindo PB. Ou seja, a construção aparentemente mais econômica, por supostamente não envolver movimentos sintáticos, é bem menos frequente nos dados de produção espontânea de crianças adquirindo a língua. 844 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Além de pouco frequente, a construção é também a última a emergir nos dados espontâneos infantis, surgindo apenas aos 3;9, segundo dados de Grolla (2009). Isso é bastante curioso, visto que, no francês, outra língua de movimento-QU aparentemente opcional, o QU-in situ é o primeiro a emergir na fala das crianças e o preferido nos primeiros estágios de aquisição, como veremos mais adiante. Levando esses fatos do PB em consideração, vemos algumas pesquisas procurando estabelecer diferenças, mesmo que sutis, entre os dois modos de realizar pergunta. Para Kato (2004, 2013), por exemplo, o QU-in situ que pede por novas informações seria, na verdade, um falso in situ, envolvendo dois movimentos: movimento curto do elemento-QU para uma posição baixa de FocusP, onde ele tem o traço-QU checado (9a), e outro residual, em que o IP remanescente se move para Spec,CP, como em (9b). Segundo esta análise, não haveria opcionalidade entre as duas construções, visto que cada uma apresentaria numerações diferentes (contendo traços distintos), inclusive no que diz respeito à entonação. Seguindo a hipótese da autora, a questão crucial que separa as duas estratégias seria a sintaxe e prosódia. (9) a. [CP [C Q +wh] [IP O Joãoj comprouk [FP o quei [VP tj tk ti]]]] (GROLLA, 2009, p. 4) b. [CP [IPm O João comprou o que] [C Q +wh] [IP tm]] Já para Pires e Taylor (2007), a diferença crucial entre as variantes está associada à pragmática. Segundo os teóricos, no inglês e no PB, é possível que o elemento-QU fique em sua posição argumental quando se espera que a informação requisitada faça parte do Common Ground (‘informação previamente compartilhada pelos participantes da conversa’), como veremos mais adiante em detalhes. Partindo desta análise, as estruturas não seriam livremente opcionais, posto que a aceitabilidade do QU-in situ dependeria de determinadas condições pragmáticas. Tendo em vista os pressupostos colocados nesta introdução, apresentamos dados de um estudo experimental em que procuramos testar a proposta de Pires e Taylor (2007) sobre a necessidade de um contexto de pressuposição forte para licenciamento de perguntas com QU-in situ tanto em PB adulto quanto infantil. Além disso, dada a ausência de dados experimentais para o PB infantil, essa pesquisa também visa investigar o 845 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 comportamento das crianças a fim de detectar a existência de perguntas com QU-in situ para essa população. O artigo está organizado como segue: a seção 2 descreve línguas de movimento-QU aparentemente opcional, como francês, espanhol e português europeu; a seção 3 descreve o PB e análises que sugerem uma influência do Common Ground na produção do QU-in situ; a seção 4 apresenta o experimento que realizamos e os dados obtidos que corroboram essa análise; a seção 5 é a conclusão. 2 QU-in situ em línguas de movimento-QU opcional Como vimos na introdução, há diferentes pontos de vista acerca da opcionalidade do constituinte QU-in situ, dentre eles, aqueles que se dedicaram a descrever o aspecto pragmático, objeto deste artigo. Nesta seção trataremos de algumas línguas de movimento-QU aparentemente opcional, como o francês, espanhol e português europeu, destacando trabalhos que se debruçaram sobre a construção e sua relação com o contexto discursivo. 2.1 Francês O francês, assim como o PB, é uma língua que permite tanto o movimento do elemento-QU como sua permanência in situ, como podemos notar pelos exemplos abaixo: (10) a. Comment tu as fait ça? como “Como você fez isso?” b. Tu (QU-movido) você tem feito isso as fait ça comment? você tem feito isso como “Você fez isso como?” (QU-in situ) Chang (1997), partindo de um ponto de vista pragmático, propõe que perguntas com QU-in situ estão associadas a um contexto marcado por pressuposição, análogo às perguntas clivadas (11), que possuem uma interpretação obrigatória de foco. Por isso, na conversa em (12a) abaixo, a resposta negativa é aceita, pois uma pergunta com QU-movido não parece pressupor que algo foi comprado. Entretanto, parece estranho fornecer respostas negativas a perguntas de QU-in situ (12b) ou clivadas (12c), 846 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 uma vez que ambas pressupõem que Marie comprou algo – exemplos retirados de Chang (1997, p. 41-42). (11) It is John that left. EXPL é João que saiu “É o João que saiu.” (12) a. P: Qu’est-ce que Marie a KESK 8 acheté? Maria tem comprado “O que Maria comprou?” R: Rien. “Nada.” b. P: Marie a acheté quoi? Maria tem comprado o que “Maria comprou o quê?” R: ?? Rien. “Nada.” c. P: C’est quoi que Marie a acheté? EXPL o que que Maria tem comprado “Foi o que que Maria comprou?” R: ?? Rien. “Nada.” Além da aproximação do QU-in situ e das perguntas clivadas, Chang (1997) também desenvolveu uma classificação das perguntasQU. Segundo ela, há três modos de distingui-las: “há as perguntas neutras (perguntas que buscam informações), de precisão (perguntas que buscam detalhamento) e de repetição (pergunta eco)” (CHANG, 1997, p. 45). Ainda que o QU-in situ busque informações novas, para ela, ele as busca em um contexto já estabelecido, ou seja, ele procura por maior detalhamento. Por isso, Chang classifica o QU-in situ como uma pergunta de precisão. Segundo Zuckerman e Hulk (2001), Qu’est-ce que (KESK) é considerada uma estrutura formulaica, não analisável do francês que sofre movimento para Spec,CP. 8 847 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Tendo em vista esse estudo do francês, é possível imaginar que o QU-in situ, nesta língua, é mais restrito que sua contraparte movida, por estar sujeito a um contexto pragmático específico. Mas, mesmo sendo aceito apenas em contextos restritos, de acordo com os dados espontâneos encontrados no francês, a maior parte das crianças observadas produz em altas taxas a construção com QU-in situ nos primeiros estágios da aquisição, como podemos ver nas tabelas de 1 a 3 esquematizadas em Hamann (2006, p. 162). Nelas, há o nome da criança investigada, Louis, Augustin e Marie, respectivamente, além dos intervalos de idades observados (em anos;meses.dias), o MLU (‘mean length of utterance’)9 e as taxas de produção de QU-in situ e de QU-movido. Diferentemente das crianças, na fala dos adultos, a frequência da construção é baixa, por volta de 5% de acordo com Zuckerman (2001). TABELA 1 – Ocorrência de QU-in situ e QU-movido no corpus de Louis Louis %Wh-in-situ % fronted Wh age mean MLU 1;9.26-3;0.8 1.51 62.5 (5) 37.5 (3) 2;1.4-2;2.4 2.69 84.2 (16) 15.8 (3) 2;2.17-2;3.29 3.47 88.6 (31) 11.4 (4) TABELA 2 – Ocorrência de QU-in situ e QU-movido no corpus de Augustin Augustin %Wh-in-situ % fronted Wh age mean MLU 2;0.2-2;3.10 2.57 66.7 (2) 33.3 (1) 2;4.1-2;6.16 2.74 94.4 (67) 5.6 (4) 2;9.2-2;9.30 4.0 85.0 (17) 15.0 (3) O MLU (‘mean length of utterance’) traz as médias de extensão dos enunciados das crianças num dado estágio de seu desenvolvimento. Essa média é alcançada somandose todos os morfemas de todos os enunciados do período e dividindo esse número pelo número de enunciados. Assim, por exemplo, um MLU de valor 2,0 quer dizer que, em média, cada enunciado da criança possui 2,0 morfemas. 9 848 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 TABELA 3 – Ocorrência de QU-in situ e QU-movido no corpus de Marie Marie %Wh-in-situ % fronted Wh age mean MLU 1;8.26-2;1.7 2.08 90.9 (10) 9.1 (1) 2;1.18-2;3.3 2.48 81.2 (26) 18.8 (6) 2;3.13-2;6.10 2.93 80.6 (25) 19.4 (6) Para explicar esta assimetria entre os dados infantis e adultos do francês, Zuckerman (2001) propõe que as crianças, tendo em conta os princípios de economia, selecionam, dentre as alternativas disponíveis na língua alvo, a menos custosa. Em outras palavras, as crianças começariam produzindo a opção mais econômica, o QU-in situ e, assim que percebessem que sua língua licencia as duas variantes e que há entre elas uma diferença mínima de significado, passariam a produzir as duas alternativas, aproximando-se da gramática adulta. Para o autor, as crianças utilizam os princípios de economia, nos primeiros estágios de aquisição, pois ainda não são sensíveis às diferenças pragmáticas e estilísticas entre as estratégias de pergunta. Esta análise, entretanto, não poderia ser estendida ao PB, pois, diferentemente do francês, as crianças adquirindo PB não produzem o QU-in situ a altas taxas, como veremos mais detalhadamente na seção 3. Por ora, abordaremos outra língua de movimento-QU aparentemente opcional, o espanhol. 2.2 Espanhol Assim como no francês, o espanhol também é uma língua que permite tanto o movimento do elemento-QU quanto sua permanência in situ, conforme exemplos abaixo: (13) a. Qué Maria compró? (QU-movido) o que Maria comprou “O que Maria comprou?” b. Maria compró lo qué? Maria comprou o quê “Maria comprou o quê?” (QU-in situ) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 849 E, do mesmo modo que o francês, o QU-in situ no espanhol também recebe análises do ponto de vista pragmático. Jiménez (1997), por exemplo, propõe que o QU-in situ no espanhol é aceitável apenas quando busca por nova informação dentro de um conjunto preestabelecido. Segundo a autora, o QU-in situ é possível na fala de B em (14) pois, tendo estabelecido o que foi comprado, a pergunta apenas busca pela informação dentro do conjunto “ovos, leite e café” e a resposta somente poderia ser um dos itens da lista – exemplo retirado de Jiménez (1997, p. 42). (14) A: Fuimos a la tienda a comprar huevos, leche y café. Mi Fomos a a feira a comprar ovos madre leite e café. Minha mãe compró los huevos. comprou os ovos “Fomos à feira comprar ovos, leite e café. Minha mãe comprou os ovos.” B: ¿Y tu padre compró qué? E teu pai comprou o que “E teu pai comprou o quê?” Para a autora, em contextos em que a “lista” não é previamente estabelecida, o uso do QU-in situ é infeliz. Esta análise difere consideravelmente do trabalho de Chang (1997) para o francês, uma vez que, diferentemente de Jiménez, Chang associa a construção a um contexto pressuposicionalmente forte, mas não a um conjunto de respostas pressupostas. Em um trabalho mais recente do espanhol, Biezma (2018) discorda da análise de Jiménez (1997) argumentando que o QU-in situ nesta língua não precisa de uma “lista” de valores possíveis preestabelecida, mas pressupõe a existência de um enunciado imediatamente anterior no discurso ao qual a pergunta fará referência, como no exemplo em (15), retirado de Biezma (2018, p. 7). 850 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 (15) A: Ana y Susana fueron ayer de compras. Ana se compró una falda! Ana e Susana foram ontem às compras. Ana se comprou uma saia preciosa bonita “Ana e Susana foram às compras ontem. Ana comprou para si uma saia bonita!” B: ¿Y Susana se compró qué? E Susana se comprou o que “E Susana comprou o quê para si?” Quanto aos estudos de aquisição do espanhol, devemos destacar que o QU-in situ não parece produtivo nem nos dados adultos, nem nos infantis, diferentemente do francês. López (2006), por exemplo, analisou os dados espontâneos de 20 crianças falantes de espanhol com idades entre 1;11 e 3;0 anos e encontrou a produção de interrogativas a partir de 1;11. Segundo a autora, “antes de alcançar os dois anos e meio, a criança já utiliza os enunciados interrogativos com distintas funções e em contextos diversos” (LÓPEZ, 2006, p. 574). E, de fato, as crianças falantes de espanhol parecem não ter problemas com o movimento do elemento-QU: logo cedo, aos 2;5 anos, elas já produzem perguntas com QU-movido em diversos contextos. Não se observa, contudo, uma única ocorrência de QU-in situ nos resultados apresentados pela autora. Além disso, também não foi possível encontrar dados da construção nas produções adultas. Esta ausência pode ser explicada pelo fato de que a leitura não eco do QU-in situ é considerada por muitos falantes de espanhol pouco natural. Dada a ausência de evidências da construção no input, não é de se surpreender que a criança não as produza. A seguir, apresentaremos dados e análises para perguntas com QU-in situ em português europeu, outra língua de movimento-QU opcional. 2.3 Português europeu O português europeu (doravante PE) permite, assim como o brasileiro, tanto o QU-in situ quanto o movido. Além disso, há também nesta língua trabalhos que versam sobre a importância de um contexto pragmático na produção da estrutura. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 851 Para Ambar (2002), por exemplo, o QU-in situ difere do movido, pois no primeiro, há algum conhecimento prévio do que está sendo discutido. Por exemplo, em (16) “o falante sabe que João comprou algo e ele quer saber o quê” (AMBAR, 2002, p. 22). Neste caso, a resposta negativa seria pouco natural para alguns falantes, embora “nada” seja uma resposta bem aceita para o QU-movido (17). Segundo Ambar, apesar de o QU-in situ não ser licenciado apenas em perguntas eco, também em perguntas reais ele possui um “sabor de eco” (‘echo-flavor’), pois há alguma informação conhecida a priori pelo interlocutor. (16) A: João comprou o quê? B: ?? Nada. (17) A: Que comprou João? B: Nada. Passando agora aos dados infantis, Soares (2004) investigou as perguntas-QU na fala espontânea de três crianças adquirindo PE com idades entre 1;2.0 e 4;5.19. A partir dos resultados, a autora observou que o QU-movido foi a primeira estratégia de pergunta a emergir, a partir de 1;2.0. Mas, apesar de o PE autorizar o QU-in situ, é interessante notar que, nos dados das três crianças de Soares com idade até 4;5.19, não se observou a produção da construção. Soares não fornece explicação para esta ausência, mas podemos especular, por um lado, que ela se deva apenas ao acaso, visto que, por se tratar de dados naturalísticos espontâneos, as gravações nem sempre conseguem capturar todas as estruturas presentes na gramática do sujeito. Por outro lado, é possível que a baixa frequência do QU-in situ esteja associada ao contexto de produção. Seguindo a hipótese de Ambar (2002): se o QU-in situ, diferente do movido, estiver realmente associado a um contexto de pressuposição forte, neste caso, ele estará fadado a ser menos frequente em relação a sua contraparte movida, uma vez que o primeiro carrega consigo restrições pragmáticas quanto às suas condições de felicidade que o segundo não traz. É importante notar que os dados espontâneos não nos trazem muitas pistas para explicar este fenômeno no PE e, como veremos, também no PB, e por isso é essencial contar com dados experimentais para investigar essa questão de forma apropriada. 852 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Como vimos nesta seção, em todas as três línguas discutidas, há estudos que defendem a necessidade de um contexto de pressuposição forte para que o QU-in situ seja licenciado. Destacamos aqui os trabalhos de Chang (1997) para o francês; Jiménez (1997) e Biezma (2018) para o espanhol; e Ambar (2002) para o PE. Vimos também que, no francês, as crianças preferem o QU-in situ desde os primeiros estágios de aquisição, a despeito do que se observa na fala adulta, em que a construção é pouco produtiva. Já no espanhol e no PE infantis, a construção não foi encontrada em nenhum dos estudos analisados. É possível, no entanto, que o QU-in situ já seja dominado pelas crianças adquirindo essas línguas, mas não tenha sido possível capturá-lo em sessões de dados espontâneos. Também no PB parece ser este o problema. Segue daí a necessidade de estudos experimentais que forneçam um contexto ideal para surgimento da construção. Passaremos, agora, para uma discussão mais aprofundada do português brasileiro. 3 QU-in situ no português brasileiro Nesta seção, trataremos do constituinte-QU in situ falado no português brasileiro adulto e infantil. Para tanto, vamos tratar da literatura que procurou associar a construção a um contexto pragmático específico e também de trabalhos que trouxeram dados importantes acerca da estrutura na fala infantil do PB. 3.1 QU-in situ no português brasileiro adulto Como vimos na seção 1 deste artigo, o PB é uma língua que permite perguntas com o movimento do elemento-QU para a periferia esquerda, mas também aceita que este elemento permaneça in situ em determinados contextos pragmáticos, seguindo a análise de Pires e Taylor (2007). Esses contextos, segundo os autores, são definidos a partir do estabelecimento de um Common Ground (‘informação previamente compartilhada entre os participantes da conversa’). Para eles, assim como no inglês, no PB é possível a produção de perguntas reais com QU-in situ em condições pragmáticas específicas, conforme os exemplos abaixo (retirados de PIRES; TAYLOR, 2007, p. 3-4). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 (a) 853 [+specific] Qs: “pede informações mais específicas sobre algo dito imediatamente antes” (p. 3): A: Eu fiz sobremesas. B: Você fez que tipo de sobremesas? (b) Expect Qs: “ocorre quando maiores questionamentos por novas informações são esperados” (p. 4): A: Eu estava dirigindo na Avenida dos Andradas. (c) B: E você estava dirigindo em que direção? Reference Qs: “pede por uma paráfrase ou repetição de um imediato antecedente” (p. 4): A: Eu não vendi aquelas pinturas estranhas B: Você não vendeu que pinturas estranhas? (d) Além dessas condições, o QU-in situ também pode ser realizado quando o contexto extra-linguístico em que ele ocorre o torna possível (o uso de QU-in situ neste contexto não é aceito no inglês, apenas no PB, segundo os autores) (p. 4): B vê amigo lendo alguma coisa (common ground extra-linguístico) B: Você está lendo o quê? Partindo destas observações, as perguntas-QU em PB não seriam livremente opcionais como é tacitamente assumido por muitos teóricos nesta língua, pois o QU-in situ seria aceito apenas nesses determinados contextos, que, segundo Pires e Taylor, estabelecem um fundo comum entre os participantes da conversa. Por isso, uma pergunta como (18) abaixo é infeliz em um contexto “de supetão”, embora, segundo os autores, em PB aceitemos perguntas como “Ana, você está assistindo qual programa na TV essa semana?”10 nos mesmos contextos, já que Segundo Pires e Taylor (2007), em PB, aceitamos perguntas como “Ana, você está assistindo qual programa na TV essa semana?” em contextos out-of-the-blue, visto que, para os autores, a própria pergunta é suficiente para estabelecer o Common Ground (exemplo retirado de PIRES; TAYLOR, 2007, p. 6). Contudo, ainda que esta pergunta forneça mais informações ao background conversacional, ela parece estranha se o interlocutor não pressupor que Ana assiste programas na TV toda semana. Em outras palavras, mesmo em perguntas desse tipo o QU-in situ parece não ser aceito se não acompanhado por um Common Ground. 10 854 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 a própria pergunta é suficiente para estabelecer o Common Ground (exemplo retirado de PIRES; TAYLOR, 2007, p. 6). Por outro lado, o QU-movido é considerado uma estrutura neutra, podendo ser utilizada em quaisquer contextos, com ou sem pressuposição prévia. (18) Você aborda um colega de trabalho e pergunta, de supetão: A: #Você conhece quem em São Paulo? Oushiro (2009), procurando testar a hipótese de Pires e Taylor (2007) em um estudo de cunho sociolinguístico, analisa um corpus de língua oral com informantes paulistanos adultos, gravados entre 2003 e 2004. A análise do corpus leva a autora a concluir que parece, de fato, haver uma tendência ao emprego de QU-in situ quando o pressuposto faz parte do conjunto de informações compartilhadas pelos participantes da conversa. Em (19), por exemplo, a pressuposição compartilhada “a violência tá aumentando” se torna parte do Common Ground, o que fornece o contexto ideal para a produção da pergunta “tá aumentando em proporção a quê?”. (19) Então quando a gente fala assim “ai puxa, a violência tá aumentando” ele diz que isso é um pouco...né? tá aume/ aumentando em proporção a quê?... né? (OUSHIRO, 2009, p. 2451) Já em (20), a informação compartilhada é que “não tem jeito de dar errado”. A pergunta “quando pode dar errado?” sugere o oposto da pressuposição no Common Ground, ou seja, algo pode dar errado. Neste caso, torna-se mais aceitável a pergunta com QU-movido. (20) não tem jeito de dar errado mesmo que seja um número ímpar...agora quando pode dar errado?....quando um grupo não entregar...que daí um grupo que entregou e não recebeu...entendeu? (OUSHIRO, 2009, p. 2451) Para a autora, estes dados reforçam a hipótese de Pires e Taylor (2007) de que o QU-in situ está associado a um contexto com Common Ground previamente estabelecido. A utilização desse tipo de pergunta seria justificada, então, quando fizesse referência a alguma pressuposição presente no background conversacional. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 855 Em outro estudo com enfoque variacionista, Oushiro (2011) analisa as interrogativas-QU no dialeto paulista do PB. O corpus investigado consiste em amostras de língua oral (53 entrevistas sociolinguísticas) e amostras de língua escrita (5 edições de revista Veja, jornal Folha de São Paulo online e 1470 redações escolares). A autora procurou, novamente, testar a hipótese de Pires e Taylor (2007) e, para tanto, analisou três fatores que, segundo ela, poderiam contribuir para a produção de QU-in situ: (a) Grau de relação entre falante e interlocutor: este grupo busca verificar se o grau de relação entre os interlocutores influencia na produção de QU-in situ. A ideia é que, quanto “mais próximo o grau de relação entre os interlocutores, é de se esperar que o conjunto de informações e crenças compartilhadas entre eles também seja maior” (p.70). Encontrou-se, todavia, uma relação inversa: houve um desfavorecimento no emprego da construção diante de maior proximidade e pequeno favorecimento diante de menor proximidade. Para explicar este resultado, a autora argumenta que o QU-in situ está associado a um fluxo de informações do aqui-e-agora da conversa, ou seja, ele depende do Common Ground estabelecido na interação em que os interlocutores se encontram. (b) Conjunto de respostas previstas: este grupo busca testar se, dada uma maior previsibilidade da resposta, podemos pressupor um maior grau de informações compartilhadas. Os resultados indicaram que um conjunto menor de respostas “previstas”, i. e., um grupo mais “fechado”, favorece fortemente o emprego de QU-in situ. Em outras palavras, “quanto mais previsível a resposta, maior a tendência de emprego dessa forma interrogativa” (p. 106). (c) Grau de ativação do fundo comum: este grupo busca investigar se “pressuposições e referentes recentemente ativados no discurso, de acordo com a última sentença em que foram mencionados, influenciam no emprego de interrogativas QU-in situ” (p. 106). Os resultados indicam um favorecimento do QU-in situ quando a pressuposição ou um dos referentes estão mais ativos no fundo comum. No exemplo - A: “assim...eles tão falando muito da saúde...”; B: “é né?”; A: “mas tão falando da saúde por quê?” (p. 82) – vemos que a ativação do referente no fundo comum na primeira fala de A favoreceu o emprego de QU-in situ em sua segunda fala. Aqui notamos, novamente, a importância do aqui-e-agora da conversa para a produção do QU-in situ. 856 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Com isso, a autora expande a noção de Common Ground segundo os termos de Pires e Taylor (2007) e sugere que, para que o QU-in situ seja, de fato, facilitado, o fundo comum deve estar estabelecido na interação entre os interlocutores do aqui-e-agora e, quanto mais previsível for a resposta que a pergunta-QU procura, maior a tendência ao emprego de QU-in situ pelos participantes da conversa. Outro estudo que também explora o viés pragmático da estrutura é o de DeRoma (2011) que procura reformular a hipótese de Pires e Taylor (2007), com base no que observa em algumas produções espontâneas do PB. A autora concorda que o Common Ground seja condição favorável ao surgimento do QU-in situ. No entanto, para ela, exemplos como os de (21) sinalizam que “o que precisa fazer parte do Common Ground não são as possíveis respostas, mas a pressuposição da porção não QU da própria pergunta” (p. 118). De acordo com a autora, no diálogo em (21) a pergunta com QU-in situ só é possível, pois há no Common Ground a pressuposição da pergunta de que a filha não vai ao lugar. (21) Filha: Ah, mãe, não vou lá não! Mãe: Mas não vai por quê? Filha: Que mico! Como percebemos a partir do exemplo acima, o uso do QU-in situ foi feliz, pois a parte não QU, “não vai”, já constava no Common Ground compartilhado entre falante e interlocutor. Do contrário, em uma pergunta como (22A), o uso de QU-in situ é pouco aceitável, pois não foi compartilhada previamente entre os participantes da conversa a pressuposição de que há uma eleição. Em outras palavras, a pergunta de A causa estranhamento pois, como vemos no diálogo, B sequer sabe que haverá uma eleição. O cenário muda com uma pergunta de QU-movido, como em (23A), em que A não toma como certa a pressuposição “há uma eleição e B votará” e, por isso, a indagação de B não é estranha. (22) A: Você vai votar em quem? (DeROMA, 2011, p. 120) B: # Tem eleição? (23) A: Em quem você vai votar? B: Tem eleição? (DeROMA, 2011, p. 120) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 857 Como pudemos ver, o Common Ground parece fundamental para o licenciamento de perguntas com QU-in situ e, por isso, essa construção não é aceita em contextos “de supetão”. Além disso, segundo a autora, os participantes da conversa, para que ela seja bem-sucedida, devem compartilhar uma pressuposição específica: a parte não QU da própria pergunta. Assim, para uma pergunta como “O gatinho está usando o quê?”, a parte não QU “o gatinho está usando” deve ser compartilhada entre os participantes da conversa. Consideremos, agora, a produtividade da construção na fala adulta. Segundo os dados (quadro 1) de Lopes-Rossi (1996), o constituinte-QU in situ na fala do adulto em PB é bastante produtivo, representando 32,4% das perguntas-QU no corpus coletado de falas na TV, enquanto o QU-deslocado representa 30%. QUADRO 1 – Dados de Lopes-Rossi (1996, p. 117, adaptado) coletados em Programas de TV (situações de fala espontânea, como entrevistas e debates ao vivo) Tipo de Pergunta-QU TV* QU-movido 30% QU-é-que 18,60% QU-que 19% QU-in situ 32,40% Total 100% Como podemos ver no quadro acima, os resultados de LopesRossi sugerem uma produtividade do QU-in situ na fala do adulto. Entretanto, como veremos mais adiante em estudos sobre a aquisição do constituinte-QU-in situ em PB, os dados espontâneos encontrados no corpus infantil (SIKANSI, 1999a, 1999b; GROLLA, 2000, 2009) não são compatíveis com a frequência de QU-in situ produzida pelos adultos investigados por Lopes-Rossi. A criança produz muito pouco ou quase nada da construção. Em outras palavras, considerando os resultados de Lopes-Rossi e os de aquisição mencionados acima, detectamos uma discrepância entre os dados adultos e infantis: enquanto os adultos produzem taxas equivalentes de QU-in situ e QU-movido, as crianças favorecem o emprego de QU-movido. 858 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 3.2 QU-in situ no português brasileiro infantil Como pudemos observar com os achados de Lopes-Rossi (1996), o QU-in situ é produtivo na fala adulta, contudo o mesmo cenário não pode ser verificado nos dados infantis. Sikansi (1999a), em um estudo longitudinal, observou a produção de perguntas-QU de uma criança no período entre 2;4 e 3;10 anos de idade adquirindo o dialeto paulista do PB. A autora notou que, em um primeiro momento (2;4.14 a 2;6.09), a criança (G.) produziu apenas interrogativas com a expressão “cadê” (como em (24)), que se mostrou também bastante frequente em seu input, já que era utilizada no contexto de brincadeira. No entanto, G. também parece compreender perguntas estruturalmente mais complexas, como em (25) – exemplos retirados de Sikansi (1999a, p. 95-96). (24) (c)adê (pr)atinho? (2;4.14) (25) MAE: quem que rabiscou esse livro aqui? GAB: eu. (2;4.14) A partir da seção de gravação de 2;8.16 de idade, notou-se um enriquecimento na produção de interrogativas, posto que G. começou a lexicalizar os elementos-QU, produzindo “como”, “por que”, “o que”, entre outros, como nos exemplos em (26) – exemplos retirados de Sikansi (1999a, p. 97-99). (26) a. G: mamãe, essa, como chama esse? (2;8.16) b. G: por que esse chama Zezé? (2;8.16) c. G: que que (vo)cê (es)tá fazendo aqui, o(lha)? (3;0.10) Interessante notar que, em todo o corpus, não foi possível encontrar nenhuma pergunta com QU-in situ, embora a construção tenha surgido no input (formado pela fala do adulto e da irmã mais velha de G. que interagiam com a criança nas entrevistas), ainda que em baixa quantidade, totalizando 3,75% dos casos (24 perguntas). Em outro estudo, Sikansi (1999b) investiga a produção espontânea de três crianças: Gabriela, Raquel e André também falantes do dialeto paulista do PB. Em seus resultados, a autora encontrou apenas duas perguntas com QU-in situ (0,1%), enquanto o QU-movido foi produzido majoritariamente pelas três crianças em 207 perguntas (99,9%). Em outras Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 859 palavras, as interrogativas com QU-in situ são praticamente inexistentes nos dados espontâneos analisados por Sikansi. Além disso, segundo a autora, o QU-deslocado possui uma interpretação mais neutra, pois o valor da variável que substitui o elemento-QU não é conhecido pelo interlocutor. Diferentemente, nas perguntas de QU-in situ, o conjunto de valores a que o elemento-QU faz referência é conhecido pelo falante, ou seja, ele sabe quais são as possíveis respostas a seu questionamento. Na pergunta de Raquel em (27), a criança parece ter acesso às possíveis respostas e, por isso, reformula a pergunta fornecendo um valor para o sintagma interrogativo. (27) DAN: Depois eu vô lavá outro. (SIKANSI, 1999b, p. 46) RAQ: Lavá quem? Lavá o meu? (3;0.7) Esta análise é similar à de Jiménez (1997) para o espanhol. Parece-nos, todavia, que o PB também aceita o QU-in situ em contextos como (28), nos quais não foi estabelecido previamente um conjunto de respostas potenciais. Em (28a), por exemplo, é improvável que A tenha alguma ideia de qual possa ser o livro que B está lendo. Em (28b) também não temos quaisquer evidências de que B tenha algum conhecimento prévio sobre o que a mãe de A comprou. (28) a. A se aproxima de B que está lendo um livro e pergunta. A: Você está lendo o quê? b. A: Eu e minha mãe fomos ao shopping ontem. Eu comprei um tênis. B: E tua mãe comprou o quê? Assim, estas possibilidades do PB indicam que nessa língua o QU-in situ não precisa de um conjunto de valores estabelecido anteriormente no qual o elemento-QU procurará seu valor. De qualquer modo, Sikansi parece estar no caminho certo quando postula a diferença pragmática entre as duas estratégias de pergunta no PB, mas sua hipótese não consegue dar conta de outros contextos em que o QU-in situ é possível na língua. Outro estudo sobre a aquisição do QU-in situ é o de Grolla (2000), que observa a fala espontânea de uma criança, N., adquirindo o PB falado em São Paulo como língua materna entre 2;0 e 4;0 anos de idade. Ao todo, foram coletadas 520 perguntas-QU no corpus da criança. Aos 860 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 2;1, há a primeira ocorrência de pergunta que, até os 2;9, só é produzida na forma de QU-movido, como no exemplo em (29a). A partir dos 2;9 anos, a criança passa a produzir perguntas com complementizador aberto (29b) e aos 3;2, o complementizador seguido de cópula, “é-que”, emerge pela primeira vez (29c). Somente mais tarde, aos 3;9 de idade, N. produz alguns poucos casos de QU-in situ (apenas oito ocorrências) exemplificado em (29d) – exemplos retirados de Grolla (2000, p. 40-56). (29) a. Cadê o nome dele? (2;1) b. Pra quem que o papai tá telefonando? (3;1) c. Como que é que eu faço isso? (3;2) d. Pá í aondi? (3;9) Fora do escopo das perguntas-QU, a autora também observa a aquisição de outros tipos de estrutura: a primeira estrutura de tópicocomentário emerge aos 2;5 anos (30a); a clivagem aparece nos dados a partir de 2;6 (30b); a oração relativa começa a ser produzida aos 2;10 (30c) e pode também ser associada a resumptivos, que começam a surgir a partir de 3;1 (30d). Todo esse panorama evidencia como o QU-in situ surge tardiamente nos dados de N., uma vez que, antes dos 3;9, ela já produz sentenças bem mais complexas, como os exemplos retirados de (GROLLA, 2000, p. 51-55). (30) a. Tudo você tem. (2;5) b. O papai que jogou fora...no lixo...aqui. (2;6) c. Come a pedrinha que ‘tá aqui (2;10) d. Eu vô no seu colo, porque lá tem aquela cobrinha que as muler dança nela. (3;1) Além disso, analisando as perguntas-QU produzidas pela criança, vemos que há uma grande diferença na frequência de uso dos diferentes tipos de interrogativas. Nos dados da criança, Grolla observou que 66% das perguntas foram realizadas com QU-movido e menos de 2% com QU-in situ, conforme podemos notar na tabela abaixo: 861 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 TABELA 4 – Distribuição das perguntas-QU encontradas no corpus espontâneo infantil de Natália – Grolla (2000, p. 41) Tipo de Pergunta Ocorrências Porcentagem QU-movido 344 66% QU-que 153 29,4% QU-é-que 15 2,9% QU-in situ 8 1,7% Total 520 100% Destoando dos dados observados por Grolla (2000) e Sikansi (1999a, 1999b), Lessa-de-Oliveira (2003) encontrou um cenário bem diferente na fala de duas crianças com idades entre 18 e 30 meses adquirindo o dialeto de Vitória da Conquista, Bahia. De acordo com a autora, nesse dialeto, as crianças começam a produzir perguntas com QUin situ a partir de 1;7.9 ano de idade, contrariando o que se vê no dialeto paulista, no qual o QU-in situ é a última estratégia a emergir. Estes dados, se comparados aos de Sikansi (1999a, 1999b) e Grolla (2000), sugerem que as crianças brasileiras não seguem sempre o mesmo itinerário no processo de aquisição de perguntas e que a variação dialetal interfere diretamente na ordem de emergência das estratégias. Para Lessa-de-Oliveira (2003), a frequência de uso de uma dada construção no input determina a ordem de emergência das estruturas e sua frequência na fala infantil. Na tabela abaixo, podemos perceber que a estratégia com QU-in situ é a primeira a surgir na fala de L. visto que é a mais frequente em seu input, sendo produzida em 81,7% das perguntas-QU. 862 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 TABELA 5 – Frequência no input da criança L., observada dos 18 aos 30 meses de idade, e ordem de emergência das estratégias de pergunta na fala infantil (LESSADE-OLIVEIRA, 2003, p. 409) Ordem Por frequência no input de L Por surgimento nos dados da fala de L 1ª QU-in situ 81,7% QU-in situ 1;7.9 2ª QU-que 6,0% QU-que 1;7.27 3ª QU deslocado 5,7% QU-deslocado 1;8.6 4ª QU-é-que 4,3% QU-é-que 2;2.15 5ª é-QU-que 2,3% é-QU-que 2;3.6 A frequência no input, entretanto, não pode ser a explicação definitiva para a aquisição dessas perguntas. Neste caso, houve uma coincidência entre a frequência no input e a ordem de surgimento das estratégias, mas nem sempre isso acontece. Os dados do francês apresentados na seção 2.1, por exemplo, indicam uma assimetria entre a preferência adulta (input) e a ordem de emergência na fala da criança: embora apenas 5% das construções adultas sejam de QU-in situ, conforme reportado por Zuckerman (2001), as três crianças observadas por Hamann (2006) parecem preferir o QU-in situ em detrimento ao movido logo nos primeiros estágios (90,9% na fala de Marie), surgindo também bem cedo em sua fala (a partir de 1;8.26 ano de idade, nos dados de Marie). Logo, não é possível concluir, a partir dos dados espontâneos apresentados por Lessa-de-Oliveira, que há sempre uma associação direta entre frequência no input e produção infantil. Em outro estudo de Grolla (2009), a pesquisadora expande seu corpus e, dessa vez, analisa as produções espontâneas de duas crianças adquirindo o dialeto paulista do PB (Luiza, observada entre 1;10 a 5;6 anos e Natália, observada dos 2;0 aos 4;0 anos de idade) e também o input recebido por Luiza, cujos resultados podem ser vistos na tabela 6: 863 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 TABELA 6 – Perguntas-QU no input de Luiza e nos dados de Luiza e Natália – Grolla (2009, p. 93) Tipo de Pergunta Input da Luiza Luiza Natália QU-movido 31,1% (224) 73,5% (303) 66,0% (344) QU-que 38,2% (274) 20,9% (86) 29,4% (153) QU-é-que 21,4% (154) 3,9% (16) 2,9% (15) QU-in situ 9,3% (67) 1,7% (7) 1,7% (8) Total 100,0% (719) 100,0% (412) 100,0% (520) Como podemos observar na tabela acima, os dados infantis são bem diversos dos encontrados no adulto: enquanto o QU-movido é produzido em 31,1% no input de Luiza, a criança produz mais que o dobro, 73,5% e, apesar de o adulto produzir 9,3% de QU-in situ, Luiza produz apenas 1,7%. Ainda que a autora tenha observado uma quantidade maior de sujeitos em relação a Grolla (2000) e o input recebido que não pôde ser coletado no primeiro trabalho, ela chega ao mesmo resultado: pouquíssimo QU-in situ é utilizado pelas duas crianças. Além disso, a estratégia com QU-in situ é a última a emergir na fala das crianças: surgindo apenas aos 3;9 na fala de Natália e 3;11 na fala Luiza. Comparando seus resultados aos achados de Lessa-de-Oliveira (2003), Grolla aponta diferenças entre os dialetos da Bahia e de São Paulo: (i) no dialeto baiano, é possível encontrar perguntas que utilizam a forma é-QU-que, padrão que não encontramos no paulista (31); (ii) na Bahia, encontramos a construção non-D-linked “que diabo” também in situ, formação considerada degenerada em São Paulo (32); (iii) por fim, é possível notar também uma assimetria entre as frequências da construção no input recebido pelas crianças – enquanto Lessa-de-Oliveira reporta o uso de QU-in situ em 81,7% do total de perguntas-QU, Grolla observa apenas 9,3% no input de Luiza. (31) a. É o que que ele quer? (LESSA-DE-OLIVEIRA, 2005, p. 414) (32) a. Aceitável em São Paulo e Bahia: (GROLLA, 2009, p. 3) Que diabo você comeu? b. Aceitável na Bahia, mas degenerado em São Paulo: Você comeu que diabo? 864 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Com base nessas observações, Grolla propõe que, mesmo havendo semelhanças entre o dialeto paulista e o baiano, as construções com QU-in situ dentro de cada dialeto constituem dois fenômenos distintos, o que torna a análise de Lessa-de-Oliveira inadequada para dar conta da questão do QU-in situ falado em São Paulo. Para complementar os dados do PB, vale também citar o trabalho de Silveira (2011), que analisou amostras transversais da fala espontânea de 17 crianças e dados longitudinais de seis crianças, com faixa etária entre 1;10 e 5;0 anos de idade falantes de PB, coletadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. A partir dos dados observados, o autor notou a produção de QU-in situ a partir dos 2;4 anos de idade e, mesmo que seja uma idade inferior a que Grolla (2009) encontrou (3;9 anos na fala de uma das crianças) por ter observado uma quantidade maior de crianças, ainda assim os pesquisadores chegam à mesma conclusão: o QU-in situ emerge tardiamente nos dados infantis em relação às outras estratégias de pergunta-QU. Contudo, não é possível saber se a construção é, de fato, produtiva nos dados de Silveira, uma vez que o autor não relata a frequência com que ela apareceu nos dados das crianças observadas. Vimos até agora seis estudos principais que investigaram a fala de crianças em gravações espontâneas. Em todos eles, houve pouca ou nenhuma produtividade do QU-in situ, embora, como vimos no estudo de Lopes-Rossi (1996) e no input de Luiza coletado por Grolla (2009), a construção pareça ser produtiva na fala adulta. Saindo da esfera dos dados naturalísticos, discutiremos, agora, um estudo experimental que procurou eliciar perguntas-QU em um contexto de Common Ground, seguindo a hipótese de Pires e Taylor (2007). Alvarez (2009) conduziu um experimento com 18 crianças adquirindo o PB falado em São Paulo (com faixa etária entre 3;8 a 6;5 anos de idade) que, a partir de uma narrativa, estabelecia um fundo comum entre os participantes da conversa. Seu experimento foi composto por duas partes, uma não controlada, em que o entrevistador fazia perguntas à criança, como “Você mora onde?”, e pedia que esta retribuísse com outras; e outra controlada, em que o entrevistador introduzia os fantoches, Shrek e Fiona, e pedia que o sujeito intermediasse a conversa entre os dois, uma vez que Fiona se declara brigada com o marido. As falas de Shrek forneciam um Common Ground, que servia como base para as perguntas das crianças, como podemos ver no modelo em (33): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 865 (33) Shrek: Você pode me ajudar? Eu quero muito saber o lugar em que a Fiona foi. Ela foi pra algum lugar e agora voltou. Você não quer perguntar pra ela? O esperado era que as perguntas fossem majoritariamente de QU-in situ, posto que, de acordo com Pires e Taylor (2007), o Common Ground facilita o surgimento desta construção. No entanto, nenhuma produção de QU-in situ foi observada na parte controlada do estudo, embora, em contextos em que o Common Ground não tenha sido linguisticamente estabelecido, como em (34), o pesquisador tenha obtido 5,45% desta construção na fala dos adultos e 7,2% na das crianças. (34) a. Adulto: “Torce pra que time?” Contexto: Depois de responder “o futebol” à pergunta “O que você gosta de ver na TV?”. (ALVAREZ, 2009, p. 7) b. Criança: “Aqui tá escrito o quê?” Contexto: A criança havia pegado um papel com nomes de alguns colegas e tentava lê-los. (ALVAREZ, 2009, p. 8) Segundo Alvarez (2009), o QU-in situ parece ser mais produtivo quando o Common Ground deixa de ser apenas construído pelo discurso linguístico e passa a abarcar outros itens contextuais. Esses resultados levam Figueiredo Silva e Grolla (2016) a sugerirem uma modificação na hipótese de DeRoma (2011), propondo que “o QU-in situ é mais provável de ocorrer quando a porção não QU da pergunta é codificada no Common Ground não linguístico” (p.12), como em (34b), em que a pressuposição “alguma coisa está escrita aqui” está codificada no background não linguístico, o que, para as autoras, é um contexto facilitador de produção do QU-in situ. Nesta seção, vimos alguns trabalhos do PB que consideram o contexto de pressuposição enriquecida crucial para a produção de QU-in situ, como Pires e Taylor (2007), DeRoma (2011) e Oushiro (2009, 2011). Também discutimos alguns trabalhos de aquisição que sugerem, a partir de dados espontâneos, que o QU-in situ é pouquíssimo utilizado por crianças adquirindo o dialeto paulista do PB, embora ele seja produtivo na fala adulta, conforme vimos em Lopes-Rossi (1996) e no input da criança Luiza, apresentado em Grolla (2009). É possível que esta baixa frequência na fala espontânea das crianças tenha sido ao 866 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 acaso, uma vez que os estudos espontâneos não conseguem capturar todo o comportamento de uma criança em relação a uma dada construção em poucas sessões de gravação por mês. Outra explicação plausível pode ser creditada ao estudo de Kato (2004, 2013) apresentado na introdução. Seguindo sua análise, o QU-in situ envolveria dois movimentos e, por isso, seria menos econômico que o movido, que envolveria apenas um movimento, e, consequentemente, seria o menos preferido pelas crianças. Esta explicação baseada na economia, em princípio, parece razoável, mas um questionamento é inevitável: que evidências a criança possuiria para postular a existência de dois movimentos na pergunta com QU-in situ? Além disso, os resultados de Grolla (2000) sugerem que as crianças produzem construções bastante sofisticadas bem antes dos 3;9 (idade de emergência do QU-in situ encontrada por GROLLA, 2009), o que nos leva à seguinte indagação: por que a criança produziria construções bem mais sofisticadas, envolvendo foco, tópico, orações relativas, etc e, ainda assim, evitaria o QU-in situ só por este apresentar um movimento a mais em relação ao QU-movido? Os estudos feitos até agora deixam em aberto duas possibilidades: Grolla (2000, 2009) e Sikansi (1999a, 1999b) não encontraram o QUin situ de forma produtiva apenas porque os contextos apropriados não surgiram nas interações com os entrevistadores ou as crianças adquirindo PB demoram um longo período para adquirir essa estrutura. Assim, tendo como base os estudos de Pires e Taylor (2007), DeRoma (2011) e Oushiro (2009, 2011), propomos um novo experimento, que procurou estabelecer linguisticamente o contexto ideal para o surgimento da construção na fala infantil. 4 Estudo experimental Nosso estudo experimental teve como objetivo investigar o comportamento de crianças em fase de aquisição do PB falado em São Paulo, em relação ao QU-in situ e comparar seus resultados ao grupo controle adulto. Além disso, verificamos também a influência dos efeitos de Common Ground na produção de perguntas-QU. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 867 4.1 Materiais e método O experimento foi elaborado a partir do método de tarefa de produção eliciada em dois tipos de contextos: com Common Ground e sem Common Ground, que constituem as duas condições do experimento. O método, desenvolvido por nós para esse estudo especificamente, é inédito não tendo sido utilizado em nenhum outro trabalho sobre aquisição de perguntas-QU. Na primeira condição, com Common Ground, utilizamos sentenças que estabeleciam um Common Ground discursivo. Nesta condição, o fantoche recebia um baralho de cartas completas (figura 1) e a criança, um baralho de figuras incompletas (figura 2) e uma cartela de adesivos para compor o cenário (figura 3). O objetivo do jogo era que a criança montasse uma carta igual à do fantoche, que ficava escondido da criança atrás de um aparato. FIGURA 1 – Carta do fantoche FIGURA 2 – Carta da criança FIGURA 3 – Tabela de adesivos para compor cenário Para montar a carta, a criança recebia uma dica do fantoche e era instruída a realizar uma pergunta para pedir por informações mais específicas. O fantoche, então, respondia à pergunta da criança informando o que havia em seu cartão para que esta, por sua vez, pudesse montar uma carta igual a dele. Para dar estas dicas, o fantoche descrevia alguma parte da figura, como “Meu gato está usando alguma coisa na cabeça” e a criança pedia por outras informações (“Ele está usando o que na cabeça?”). Este tipo de diálogo, de acordo com Pires e Taylor (2007), consiste em um dos casos em que a produção de QU-in situ é facilitada. Segue abaixo um exemplo: 868 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 (35) O fantoche escolhe a carta em que o gato está usando um coroa, mas não dá essa informação à criança: Dica do Fantoche: O gatinho está usando alguma coisa na cabeça.11 Criança: Ele está usando o quê? / O que ele está usando? Fantoche: Ele está usando uma coroa. (A partir desta resposta do fantoche, a criança procurava o adesivo da coroa e o colava em sua carta. O jogo continuava, com o fantoche descrevendo mais uma parte de sua carta, para que a criança fizesse outra pergunta). O entrevistador jogava as duas primeiras rodadas com o fantoche para que a criança entendesse o jogo. Para explicar a brincadeira para as crianças, o entrevistador tinha, necessariamente, que fazer algumas perguntas ao fantoche, para que o sujeito tivesse uma ideia de como o jogo progredia. Tanto a pergunta com movimento quanto a sem movimento do elemento-QU tinham que ser usadas, para equilibrar as estruturas ouvidas. Optou-se por proferir a construção com QU-in situ na primeira vez em que se fizesse uma pergunta e a com QU-movido na segunda. Isso garantia que a estrutura esperada de acordo com a hipótese, o QUin situ, não fosse a última ouvida pela criança quando ela ia fazer as suas perguntas. Aos poucos, o entrevistador tentava inserir a criança no jogo, ajudando-a a fazer as perguntas até que ela conseguisse realizálas sozinha. Caso a criança montasse uma carta igual à do fantoche, ela ganhava um ponto; caso contrário, o ponto era do fantoche. A este tipo de Common Ground, ligado a uma única troca com interlocutor familiar ou não, Clark (2015) dá o nome de “Common Ground local”. Ele tem o poder de capturar a informação compartilhada no momento da troca e não precisa se fiar em proposições feitas em conversas prévias ou mesmo informações universais e culturais. Essa escolha Como podemos observar, o elemento-QU na pergunta da criança “ele está usando o quê?” parece substituir o DP “alguma coisa” na instrução do fantoche “ele está usando alguma coisa na cabeça”. Em outras palavras, é possível haver um priming entre a primeira construção (do fantoche) e a pergunta subsequente (da criança) e, consequentemente, haveria um favorecimento do QU-in situ, por conta da fala imediatamente anterior do fantoche. No entanto, não trabalharemos este aspecto no presente artigo. Para um aprofundamento do assunto e resultados experimentais, ver Vieira (2018). 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 869 também está em linha com os achados de Oushiro (2011), para quem o QU-in situ é facilitado nas interações do aqui-e-agora. É importante notar também que, para que o uso do QU-in situ seja justificado na pergunta em (35), a parte não QU da sentença deve fazer parte do Common Ground, de acordo com DeRoma (2011). Em outras palavras, no exemplo acima, o falante deve assumir que o gatinho está usando alguma coisa. Daí a importância da asserção feita pelo fantoche. No entanto, é importante observar que também o QU-movido pode ser utilizado no mesmo contexto, por ser uma estrutura mais neutra da língua. Além disso, na elaboração desta condição, o Common Ground foi estabelecido por meio da observação conjunta da carta, ou seja, enquanto a criança observava um gato, o fantoche, seu interlocutor direto, também observava o mesmo objeto. Para Clark (1996), a percepção compartilhada de um objeto é uma excelente evidência para o estabelecimento de Common Ground. Já na elaboração da condição sem Common Ground, procuramos deixar a criança mais livre para realizar as perguntas, sem fornecer sentenças que introduzissem uma pressuposição ao contexto. Nesta condição, a criança recebia uma série de cartas com cenários incompletos (figura 4), uma cartela de adesivos com diferentes animais (figura 5) e uma cartela com objetos (figura 6). FIGURA 4 – Carta FIGURA 5 – Adesivos da criança de animais FIGURA 6 – Adesivos de objetos O objetivo era que a criança montasse uma carta qualquer e o fantoche tentasse adivinhar os itens escolhidos. O jogo seguia da seguinte forma: primeiro, a criança era instruída a montar uma carta contendo um cenário, um animal e um objeto e, assim que ela terminasse de adicionar os adesivos à carta, era instruída a realizar uma pergunta ao fantoche, que tentava acertar o que foi montado. O entrevistador que acompanhava a criança apontava para o objeto adicionado e dizia: “vamos perguntar sobre isso aqui” e a criança, então, perguntava algo como “o que o gatinho 870 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 está comendo?”. Como o fantoche não sabia a resposta de antemão, ele podia acertar ou errar, o que configurou um jogo entre ele e a criança, diante dos acertos (ponto para o fantoche) e erros (ponto para a criança). Segue abaixo um exemplo: (36) A criança escolheu os adesivos e montou um gato dentro de um trem: Entrevistador: Vamos perguntar sobre isso aqui (aponta para o trem). Criança: O gato está dentro do quê? Fantoche: De uma caixa. Criança: Errou! Ele está dentro de um trem. Assim como na primeira condição, foi necessário jogar uma rodada teste para explicar bem o funcionamento do jogo. Para tanto, optou-se por utilizar duas estruturas de exemplo, uma com QU-in situ e outra com movido, para que os falantes tivessem contato com ambas e para mostrar ao sujeito que há mais de uma maneira de realizar a pergunta, sem dar preferência para a estrutura alvo. Ademais, tomou-se cuidado para que o exemplo que fosse proferido por último não fosse o esperado de acordo com a hipótese. Em outras palavras, na condição sem Common Ground, em que esperávamos uma frequência maior de perguntas com QU-movido, o exemplo fornecido era o movido e, na sequência, o in situ. Dessa forma, a estrutura mais recente no background da conversa seria, nesse caso, o QU-in situ (que não é a forma esperada nesse contexto). A ideia desta condição era que pouca informação prévia fosse compartilhada, diferente do que acontece na primeira condição: não havia percepção compartilhada da carta montada entre a criança e o fantoche. Em outras palavras, nesta condição, excluímos a observação conjunta da carta – a criança escolhia qual carta montar e o fantoche, escondido atrás de uma barreira, não tinha embasamento algum para adivinhar o que foi montado. Logo, a criança não compartilhava as informações da carta montada com seu interlocutor, que não sabia de antemão nem o animal, nem o cenário ou objeto escolhidos. Além disso, não havia uma sentença-instrução que estabelecesse um fundo comum direto entre os interlocutores. Com isso, os efeitos de Common Ground foram significativamente mitigados. Vale lembrar, no entanto, que esta condição não está livre de conhecimento mútuo estabelecido linguisticamente. As dificuldades Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 871 envolvidas em um experimento realizado com crianças, como a possível desconcentração no momento do jogo ou a não compreensão imediata das instruções, além da necessidade de uma rodada teste no início para que ela compreendesse o que deveria fazer, levou-nos a elaborar a condição de forma a produzir um Common Ground pouco saliente, em oposição à primeira condição, com Common Ground mais saliente, em que o fundo comum entre os participantes era reativado a cada rodada com a instrução do fantoche. Portanto, a segunda condição não é totalmente livre de Common Ground, não obstante, este é consideravelmente menos saliente do que na primeira. A nossa hipótese de trabalho é que o QU-in situ precisa de um contexto de pressuposição enriquecida, ou seja, é necessário um fundo comum entre falante e ouvinte para que a construção seja produzida. Assim, testamos se a variável ‘tipo de pergunta produzida’ está associada às condições com e sem Common Ground. Dada essa hipótese, a previsão é que os participantes produzirão mais QU-in situ na condição com Common Ground do que na sem Common Ground. 4.2 Participantes Foram entrevistadas, ao todo, 52 crianças com idade entre 4;6 e 5;6 anos, além de 60 adultos acima de 18 anos de idade. Todos os participantes são falantes nativos do dialeto paulista do PB, sem distúrbios de linguagem. Para a aplicação dos testes e posterior análise dos dados, foi escolhido o desenho experimental Between Subjects “entre sujeitos”, em que o sujeito que via a condição 1 não tinha acesso à condição 2. Para tanto, na condição 1, com Common Ground, foram entrevistados 40 adultos e 34 crianças. Na condição 2, sem Common Ground, foram entrevistados 20 adultos e 18 crianças. 4.3 Resultados Ao todo, os sujeitos produziram 3.114 perguntas nas duas condições testadas. Dessas, 1.683 se referem ao grupo controle dos adultos; 1.431 ao grupo das crianças. No que se segue, descrevemos os tipos de produções que obtivemos. Classificamos as produções em sete tipos: QU-in situ, QU movido, QU-que, QU-é-que, elipse, N/A e formulaicas. 872 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Na categoria ‘QU-in situ’ foram incluídas todas as produções em que o elemento-QU permaneceu em seu local de base; na ‘QU-movido’, foram incluídas as perguntas-QU com o elemento-QU fronteado; a ‘QUque’ é reservada para a estratégia de pergunta com QU-movido seguido do complementizador “que”; a ‘QU-é-que’ engloba as produções de pergunta com QU-movido seguida da cópula “é” e o complementizador “que”; na ‘Elipse’, foram incluídas perguntas com um elemento-QU com elisão do verbo, como “O quê?”; a ‘N/A’ ficou reservada para sentenças que não podem ser caracterizadas como pergunta-QU, como “É uma bolinha!” ou “Em um poleiro?”; a categoria ‘Formulaicas’ inclui dados frutos de uma repetição que não trazem nada de substantivo para a análise, ou seja, o sujeito começava perguntando “o que é?” e continuava por várias rodadas produzindo a mesma estrutura. As categorias ‘QU-que’ e ‘QU-é-que’, como vimos, envolvem movimento, assim como o QU-movido, mas foram separadas neste primeiro momento para melhor visualização. Posteriormente, quando compararmos o contexto pragmático ao tipo de pergunta realizado, uniremos as três construções em apenas uma categoria: ‘QU-movido’. A seguir, em (37), apresentamos alguns exemplos de perguntas-QU produzidas pelas crianças entrevistadas: (37) QU-in situ: a. Tá voando em cima do quê? (4;6) b. Ele tá sentado comendo o quê? (5;4) c. Ela tá segurando o quê? (4;9) QU-movido: a. O que ela tá segurando? (4;8) b. Aonde o porquinho ele está? (5;6) c. Que coisa é essa? (3;2) QU-que: a. O que que a gente faz? (3;2) b. O que que a menina tá em pé? (5;0) c. Que que tem muito atrás dele? (5;1) QU-é-que: a. O que é que o macaco tá segurando? (4;6) b. O que que é que ele tá tocando? (4;8) c. O que é que ele tá comendo? (4;6) 873 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Como podemos ver na tabela abaixo, foram 821 perguntas realizadas com QU-in situ (26,36% do total de perguntas). TABELA 7 – Número absoluto e porcentagem da produção geral por categoria (dados de adultos e crianças, N=112) Tipo de pergunta Números absolutos Porcentagem QU-in situ 821 26,36% QU-movido 750 24,08% QU-que 695 22,32% QU-é-que 50 1,6% Elipse 476 15,3% N/A 140 4,5% Formulaicas 182 5,84% Total 3114 100% Na tabela 8, a seguir, podemos ver uma divisão por grupos etários, houve produção de QU-in situ nos dois grupos, com maior frequência no dos adultos. Devemos ressaltar, antes de passar para uma análise dos resultados, que esta é a primeira vez que temos tantos dados de QU-in situ em um estudo experimental em PB. O método inédito, produzido especialmente para este estudo, foi bem-sucedido em eliciar perguntas, em especial as de QU-in situ. As estratégias com QU-movido e QU-que se mantiveram equilibradas nas duas faixas. O QU-é-que, além disso, teve uma frequência muito baixa tanto na fala do adulto, quanto na fala da criança. A elipse foi mais produtiva na fala da criança, pois algumas não entendiam quando o experimentador pedia que elas formassem perguntas mais completas. Houve também maior dificuldade na compreensão da tarefa por parte da criança, o que resultou em maior frequência de produções N/A e de perguntas formulaicas. 874 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 TABELA 8 – Número absoluto e porcentagem da produção geral distribuída por grupo e categoria (dados de crianças e adultos, N=112) Adultos (N = 60) Crianças (N = 52) QU-in situ 648 38,5% 173 12,09% QU-movido 377 22,4% 373 26,06% QU-que 429 25,49% 266 18,59% QU-é-que 23 1,37% 27 1,89% Elipse 170 10,1% 306 21,38% N/A 36 2,14% 104 7,27% Formulaicas 0 0% 182 12,72% 1683 100% 1431 100% Total Passemos, agora, a uma comparação entre as duas condições para checar a influência do Common Ground na produção de QU-in situ. Para tanto, foi proposto o modelo de regressão binomial com função de ligação identidade, que permite a comparação entre as proporções médias em cada grupo de interesse. Com essa metodologia estatística, testamos se a variável ‘tipo de pergunta produzida’ está associada às condições com e sem Common Ground, mais especificamente, queremos checar se haverá mais QU-in situ na condição com Common Ground do que na condição sem Common Ground. Nos dados adultos, obtivemos 474 ocorrências de QU-in situ e 484 de QU-movido (incluindo aqui, além de QU-movido, o QU-que e QU-é que12) na condição com Common Ground; já na condição sem Common Existem dois modos de analisar os dados e a escolha entre eles não é trivial. As opções são: (i) comparar as perguntas com QU-in situ somente com as perguntas com QU-movido, deixando de lado as perguntas com QU-que e QU-é-que; (ii) comparar as perguntas com QU-in situ com todas as perguntas envolvendo movimento do elementoQU: QU-movido, QU-que e QU-é-que. Optamos por somar as três estratégias que envolvem movimento (QU-movido simples, QU-que e QU-é-que) para comparar ao QU-in situ. Fizemos essa escolha considerando aspectos relacionados aos processos envolvidos na produção de enunciados. Num contexto que favoreça a produção de QU-movido, o parser iniciaria a geração de um enunciado já tendo a estrutura com movimento escolhida. A seleção dos itens lexicais para compor a numeração, 12 875 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Ground obtivemos 174 ocorrências de QU-in situ e 345 das versões do QU-movido. Podemos visualizar a comparação entre as duas condições na tabela 9, a seguir: no que se segue, as células sombreadas apontam a estrutura preferida pelos grupos etários em ambas as condições. TABELA 9 – Comparação entre o QU-in situ e QU-movido (QU-movido simples, QU-que e QU-é-que) na condição com Common Ground e na condição sem Common Ground (adultos, N=60) Com Common Ground Sem Common Ground QU-in situ 474 (49,5%) 174 (33,5%) QU-movido 484 (50,5%) 345 (66,5%) Total 958 (100%) 519 (100%) Tipo de Estrutura Os resultados indicam que o contexto sem Common Ground desfavoreceu a produção de QU-in situ e favoreceu a produção de movido; ainda que as construções tenham se mantido equilibradas no contexto com Common Ground. Ao aplicar o teste a esses valores, obtivemos um incluindo aí os itens ‘que’ ou ‘é’ e ‘que’ seria então realizada. Em outras palavras, se considerarmos que a produção das sentenças envolveria um parser que primeiro escolhe a estratégia e depois seleciona os itens na numeração, as contrapartes com QU-que e QU-é-que poderiam ser consideradas junto com o QU-movido, como uma classe. Na outra visão, compararíamos o QU-in situ apenas ao QU-movido, opção que se justifica por ambas as estratégias possuírem a mesma correspondência lexical e por que a permanência do elemento-QU in situ em sentenças com QU-que e QU-é-que resultaria em construções agramaticais do tipo “*Que o gatinho está usando o quê?” ou “*É que o gatinho está usando o quê?”. A justificativa mais direta para essa escolha seria o fato de as numerações da pergunta com QU-movido e da pergunta com QU-in situ serem idênticas e só podemos comparar estratégias que possuem a mesma numeração. No entanto, a numeração não é mesma nas duas estratégias: é geralmente assumido que perguntas com QU-movido possuem um traço [+WH] que obriga a palavra-QU a se mover abertamente. Tal traço não está presente nas perguntas com QU-in situ, o que faz com que a palavra-QU permaneça em posição argumental. Ou seja, mesmo nesses casos, as numerações da pergunta com QU-movido e QU-in situ são distintas. Esta análise não será explorada neste trabalho, mas é feita em Vieira (2018), onde há a comparação entre perguntas com QU-movido e com QU-in situ, excluindo-se as perguntas com QU-que e QU-é-que. 876 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 resultado significativo estatisticamente, p-valor <0,01. Isso indica que os adultos foram sensíveis ao contexto pressuposicional na produção de suas perguntas. Além disso, eles mantiveram um equilíbrio na escolha das perguntas-QU na primeira condição (49,5% de QU-in situ contra 50,5% de QU-movido), ou seja, eles não demonstraram preferência por nenhuma estratégia na condição com Common Ground. Nos dados do grupo infantil, obtivemos na condição com Common Ground 104 ocorrências de QU-in situ e 296 de QU-movido (juntamente ao QU-que e QU-é-que); já a condição sem Common Ground obteve 69 ocorrências de QU-in situ e 370 de movido. Podemos visualizar melhor os resultados na tabela 10, a seguir: TABELA 10 – Comparação entre o QU-in situ e QU-movido (QU-movido simples, QU-que e QU-é-que) na condição com Common Ground e na condição sem Common Ground (crianças, N=52) Com Common Ground Sem Common Ground QU-in situ 104 (26%) 69 (15,7%) QU-movido 296 (74%) 370 (84,3%) 400 (100%) 439 (100%) Tipo de Estrutura Total Os resultados indicam que, embora as crianças tenham, no geral, desfavorecido o emprego de QU-in situ em detrimento do movido, houve um maior desfavorecimento do QU-in situ no contexto sem Common Ground, em consonância com nossa hipótese. Aplicando o teste de regressão binomial a esses valores, obtivemos um p-valor <0,01 (um valor abaixo do nível de significância de 5%). Isso sugere que as crianças também foram sensíveis ao contexto pragmático, e que existe uma associação entre as variáveis. Ou seja, embora as crianças produzam QU-in situ de forma menos frequente que QU-movido, essa baixa frequência é maior ainda na condição sem Common Ground e essa diferença é estatisticamente significativa. Tais resultados estatísticos indicam uma dependência entre o tipo de pergunta e o contexto, tanto na fala do adulto quanto da criança. O QU-in situ foi, de fato, mais produzido nos contextos com Common Ground do que nos sem Common Ground, conforme nossa hipótese de trabalho. Em outras palavras, o Common Ground, que, segundo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 877 autores como Pires e Taylor (2007), facilitaria a produção de QU-in situ, foi realmente relevante na produção dos dois grupos etários. Isso quer dizer que os sujeitos foram sensíveis ao contexto pragmático e este desempenha um papel em guiá-los em suas escolhas de pergunta. Assim, nossa hipótese, que sugere que o constituinte-QU in situ precisa de um contexto de pressuposição enriquecida, parece se confirmar nos dados adultos e infantis. Vale também ressaltar um ponto importante que pode ser depreendido da análise dos resultados de ambos os grupos. Primeiramente, mesmo na condição sem Common Ground, em que o QU-in situ seria menos preferido, por não haver um fundo comum entre os participantes do jogo, ele foi produtivo (174 ocorrências nos dados adultos e 69 nos dados infantis). No entanto, é importante lembrar que o contexto oferecido neste experimento não foi totalmente desprovido de Common Ground, uma vez que foi necessário explicar a brincadeira aos sujeitos e realizar rodadas testes para que eles entendessem o jogo. É possível que em um contexto totalmente desprovido de background conversacional (o que nos parece impossível em uma metodologia experimental) os sujeitos produzissem nenhuma ou quase nenhuma ocorrência de QU-in situ. O interessante dos dados é notar a diferença entre as duas condições: na primeira, em que os efeitos de Common Ground foram realçados, o QU-in situ é mais produtivo; já na segunda, em que os efeitos foram consideravelmente mitigados, a construção foi menos produzida pelos sujeitos. Por fim, devemos também comparar os dois grupos etários, de crianças e adultos. Chegamos, então, aos seguintes resultados: os adultos produziram 648 ocorrências de QU-in situ e 829 de QU-movido (englobando QU-que e QU-é-que) de um total de 1.477 perguntas-QU; as crianças produziram 173 ocorrências de QU-in situ e 666 de QU-movido de um total de 839 perguntas-QU. Para uma melhor visualização dos dados, recorra ao gráfico 1, a seguir: 878 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 GRÁFICO 1 – Comparação entre o QU-in situ e o QU-movido (QU-movido, QU-que e QU-é-que), nos dois grupos entrevistados nas duas condições (adulto, N=60 e criança, N=52) A partir do gráfico 1 acima, é possível perceber que houve uma preferência, por parte dos dois grupos etários, pelo QU-movido, embora os resultados dos adultos tenham mostrado maior equilíbrio entre as construções. Além disso, embora as taxas ainda sejam bem diferentes, é possível aferir que as crianças parecem estar se aproximando da gramática adulta, no que pauta à produção de perguntas-QU, uma vez que a estratégia preferida por elas é também a preferida pelos adultos, o QU-movido. A maior incidência de QU-movido nas produções infantis, se comparada à dos adultos, sugere que, mesmo perto dos 5 anos de idade ou acima disso, elas ainda não chegaram no estágio estável em relação a essa estrutura. Dados interessantes sobre isso podem ser vistos em algumas produções em que o elemento-QU está inserido em uma locução adverbial do tipo ‘em cima do quê’. Ao eliciar perguntas como: “o gatinho está em cima do quê?”, percebemos dois padrões de resposta dos sujeitos. Os adultos ou produziam a pergunta com toda a locução movida para a frente, como em (a) abaixo, ou deixavam toda a expressão in situ como em (b). Já as crianças preferiam uma estratégia com movimento, como Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 879 ilustrado em (c), mas não moviam todo o PP, resultando em uma pergunta gramatical na língua, mas que não foi produtiva para os adultos: (a) Em cima do que que o gatinho está? (b) O gatinho está em cima do quê? (c) O que que o gatinho está em cima? Parece-nos que a estrutura em (a) pode trazer um custo alto de processamento, ao envolver pied-pipping de um PP bastante longo. As crianças tendiam, então, a mover apenas a parte-QU do advérbio, deixando o restante da locução in situ. Observe que a preposição exigida por ‘cima’ desaparece e o elemento-QU na periferia esquerda da sentença é ‘o que’ e não ‘do que’. Interpretamos esse tipo de produção como uma tentativa persistente da criança de realizar a operação de movimento. Estruturas desse tipo justificam em parte as altas taxas de QU-movido produzidas pelas crianças. Por fim, podemos perceber, também, que as crianças produziram taxas significativas de QU-in situ, se comparadas aos resultados de dados espontâneos, que, conforme os achados de Sikansi (1999a) e Grolla (2000) não passam de 2%. É importante lembrar, todavia, que os achados das autoras se estendem até 4;0 e 3;10 anos, respectivamente. Ou seja, as crianças desses estudos são mais novas que as crianças testadas no presente trabalho e a ausência da construção nos dados naturalísticos pode se dever à idade. Crianças mais novas teriam de ser testadas para resolver esta questão.13 Tendo em vista os resultados apresentados, podemos perceber que a taxa de QU-in situ nos dois grupos etários é significativa nas duas condições e tanto adultos como crianças preferiram o QU-in situ mais A ideia inicial era entrevistar também crianças mais novas de 2;6 a 3;6. No entanto, isso não foi possível devido ao conhecido problema Ask/Tell, enfrentado por pesquisadores investigando crianças mais novas produzindo estruturas de pergunta. O que acontece é que a criança, quando solicitada a perguntar, tende a fornecer uma resposta, ao invés de fazer a pergunta (para mais detalhes, veja CRAIN; THORNTON, 1998). Em nosso estudo, quando as crianças mais novas eram solicitadas a fazer uma pergunta para o fantoche do tipo “o que o gatinho está comendo?”, muitas delas tentavam adivinhar a resposta correta, dizendo, por exemplo, “um bolo”. Esse é o motivo pelo qual não conseguimos testar crianças com menos de 4 anos. 13 880 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 na condição com Common Ground do que na condição sem Common Ground, conforme nossa previsão. Em outras palavras, o método não só foi bem-sucedido na coleta de dados, como os sujeitos foram sensíveis à condição específica que previa o favorecimento de QU-in situ. 5 Considerações finais Neste trabalho, delineamos um panorama entre as diferentes análises de QU-in situ em algumas línguas de movimento-QU aparentemente opcional: francês, espanhol, PE e PB. Como vimos, as crianças francesas iniciam o processo de aquisição preferindo o QUin situ (90,9% no corpus de Marie, observada por Hamann (2006)), mesmo essa não sendo a estratégia preferida dos adultos (5% de acordo com Zuckerman (2001)). Inversamente, no PB as crianças preferem o QU-movido nos primeiros estágios e o QU-in situ surge como última estratégia de pergunta-QU, apenas aos 3;9 segundo os dados espontâneos de Grolla (2009). Já os adultos falantes de PB produzem a construção a taxas relativamente altas: 32,4%, segundo Lopes-Rossi (1996). Diante desta assimetria entre os dados adultos e infantis e entre o PB e outras línguas, passamos a considerar a possibilidade de as construções não serem, de fato, opcionais. Muitos trabalhos da literatura sobre QU-in situ, conforme vimos neste artigo, propõem que a construção está associada a contextos pragmáticos específicos, diferente de sua contraparte movida. Isso explicaria sua baixa frequência na fala da criança, uma vez que a construção seria facilitada apenas em contextos mais restritivos. Também explicaria porque os dados espontâneos não conseguiram capturar o QU-in situ de forma produtiva, posto que esse tipo de observação naturalística conta com o acaso e, por isso, os contextos ideais para surgimento da estratégia podem não ter sido capturados no momento de gravação. Segue daí a importância de um estudo experimental que dê conta de manipular as condições necessárias para produção de QU-in situ. Neste artigo, apresentamos uma nova metodologia que foi bem-sucedida na elicitação de perguntas-QU e conseguimos observar crianças realizando altas taxas de QU-in situ, o que é ainda inédito na literatura do PB. Por fim, os resultados apresentados aqui corroboram de forma geral as hipóteses de autores como Pires e Taylor (2007), DeRoma (2011), Oushiro (2009, 2011) e Figueiredo Silva e Grolla (2016) na Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 881 medida em que o QU-in situ foi mais produzido em contextos em que o Common Ground era saliente do que nos contextos em que ele era menos saliente. Em outras palavras, os adultos e as crianças parecem ser sensíveis ao contexto pragmático em que estão inseridos e ele guia a escolha da estratégia de pergunta. Além disso, observamos, pela primeira vez, crianças produzindo altas taxas de QU-in situ no PB. Entretanto, mesmo que a construção tenha sido produtiva na fala das crianças, elas ainda não chegaram à gramática adulta, pois a frequência de produção é menor em sua fala do que na do adulto (20,6% contra 43,9%). Ou seja, nesse aspecto os dados obtidos indicam que as crianças por volta dos 5 anos ainda não estão no estágio estável. Agradecimentos Gostaríamos de agradecer às crianças, professores e coordenadores da Creche Central da USP e da EMEI Monte Castelo (ambas localizadas no bairro Butantã, São Paulo, capital) pela hospitalidade com que nos receberam. Sem a participação deles, a presente pesquisa não teria sido possível. Também agradecemos aos dois pareceristas anônimos da revista pelas sugestões e críticas, à pesquisadora Lyn Shan Tieu (Western Sydney University), pelo auxílio indispensável à formulação da metodologia empregada e às professoras doutoras Esmeralda Vailati Negrão (USP), Raquel Santana Santos (USP), Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR) e Ruth Elisabeth Vasconcellos Lopes (UNICAMP) pelas sugestões e críticas que nos auxiliaram no desenvolvimento da pesquisa reportada neste artigo. Esta pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – processo 130275/2016-6 (atribuído à primeira autora) e processo 308397/2017-7 (atribuído à segunda autora). Contribuição das autoras Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado de Clariana Vieira, realizada sob orientação de Elaine Grolla, que é coordenadora do Laboratório de Estudos em Aquisição de Linguagem (LEAL) da Universidade de São Paulo, onde a pesquisa foi realizada. A metodologia experimental utilizada foi elaborada pelas duas autoras. Os dados foram coletados e transcritos por C.V. e discutidos e interpretados em conjunto com E.G. A redação inicial do artigo foi realizada por C.V., contendo revisões e incorporações feitas por E.G. 882 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 Referências ALVAREZ, B. L. de P. A aquisição de constituintes-qu in situ em português brasileiro. 2009. Relatório Final (Projeto de Iniciação Científica) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. AMBAR, M. WH-Questions and Wh-Exclamatives. In: BEYSSADE, C.; BOK-BENNEMA, R.; DRIJKONINGEN, F.; MONACHESI, P. (Ed.). Romance Languages and Linguistic Theory 2000: Selected Papers from” Going Romance” 2000. Utrecht: John Benjamins, 2002. p. 15-40. Doi: https://doi.org/10.1075/cilt.232 BIEZMA, M. Givenness and the Difference Between Wh-Fronted and Wh-In-Situ Questions in Spanish. In: BERNS, J.; JACOBS, H.; NOUVEAU, D. (Ed.). Romance Languages and Linguistic Theory: Selected papers for Going Romance 29. Nijmegen: John Benjamins, 2018. p. 21-39. Doi: https://doi.org/10.1075/rllt.13 CHANG, H. The Acquisition of Chinese syntax. Advances in Psychology, North-Holland, v. 90, p. 277-311, 1992. Doi: https://doi.org/10.1016/ S0166-4115(08)61895-6 CHANG, L. Wh-In-Situ Phenomena in French. 1997. Tese (Doutorado) – University of British Columbia, Vancouver, 1997. CLARK, E. Common Ground. In: MacWHINNEY, B.; O’GRADY, W. (Ed.). The Handbook of Language Emergence. Hoboken, NJ: John Wiley & Sons, 2015. p. 328-353. (Blackwell Handbooks in Linguistics). Doi: https://doi.org/10.1002/9781118346136.ch15 CLARK, H. H. Using language. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 274-296, Doi: 10.1017/S002222679821736 CRAIN, S.; THORNTON, R. Asking questions: The ask/tell problem. In: ______. Investigations in Universal Grammar: A Guide to Experiments on the Acquisition of Syntax and Semantics. Cambridge: MIT Press, 1998. (Language, Speech, and Communication) DeROMA, C. L. Divide et Impera: Separating Operators from their Variables. 2011. Tese (Doutorado) - University of Connecticut, Connecticut, 2011. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 883 FIGUEIREDO SILVA, M. C.; GROLLA, E. Some syntactic and pragmatic aspects of WH-in-situ in Brazilian Portuguese. In: KATO, M.; ORDÓÑEZ, F. (Ed.). The Morphosyntax of Portuguese and Spanish in Latin America. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 259-285. Doi: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780190465889.003.0011 GROLLA, E. Aquisição da periferia esquerda da sentença em português brasileiro. 2000. Dissertação (Mestrado) – UNICAMP, Campinas, 2000. GROLLA, E. Speculations about the Acquisition of Wh-Questions in Brazilian Portuguese. In: PIRES, A.; ROTHMAN, J. (Ed.). Minimalist Inquiries into Child and Adult Language Acquisition: Case Studies across Portuguese. Berlin: Mouton deGruyter, 2009. (Studies on Language Acquisition – SOLA). Doi: https://doi.org/10.1515/9783110215359.1.85 HAMANN, C. Speculations about early syntax: The production of whquestions by normally developing French children and French children with SLI. Catalan Journal of Linguistics, Barcelona, v. 5, n. 1, p. 143-189, 2006. Doi: https://doi.org/10.5565/rev/catjl.82 JIMÉNEZ, M. L. Semantics and pragmatics conditions on word order in Spanish. 1997. Thesis (Ph.D.) – Georgetown University. Washington D.C, 1997. KATO, M. A. Dislocated and in-situ wh-questions in Brazilian Portuguese. In: SYMPOSIUM ON SPANISH AND PORTUGUESE, 2005, Santa Barbara. Trabalho apresentado. Santa Barbara: UC Santa Barbara, 2004. KATO, M. A. Deriving Wh-In-Situ Through Movement in Brazilian Portuguese. In: CAMACHO-TABOADA, V. et al. (Org.). Information Structure and Agreement. Amsterdam: John Benjamins, 2013. p. 175-192. Doi: https://doi.org/10.1075/la.197.06kat LESSA-DE-OLIVEIRA, A. S. C. Aquisição de constituintes-QU em dois dialetos do português brasileiro. 2003. Dissertação (Mestrado) – Unicamp, Campinas, 2003. LOPES-ROSSI, M. A sintaxe diacrônica das interrogativas-Q do Português. 1996. Tese (Doutorado) – Departamento de Linguística, UNICAMP, Campinas, 1996. LÓPEZ, I. F. Los enunciados interrogativos en las primeras etapas del lenguaje infantil. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL DE LA SOCIEDAD ESPAÑOLA DE LINGÜÍSTICA, XXXV., 2005, León. Actas... León: Sociedad Española de Lingüística, 2006. p. 562-585. 884 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 839-884, abr./jun. 2019 OUSHIRO, L. As Interrogativas Q-in situ têm restrições pragmáticas? In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, VI, 2009, João Pessoa. Anais... João Pessoa: Ideia, 2009. v. 1, p. 2445-2452. OUSHIRO, L. Uma análise variacionista para as Interrogativas-Q. 2011. Dissertação (Mestrado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. PIRES, A.; TAYLOR, H. The Syntax of Wh-In-Situ and Common Ground. In: ANNUAL MEETING OF THE CHICAGO LINGUISTIC SOCIETY, 43., 2007, Chicago. Proceedings… Chicago: Chicago Linguistic Society, 2007. n. 2, p. 201-215. SIKANSI, N. As interrogativas-Q na gramática infantil do PB. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 36, p. 85-103, 1999a. SIKANSI, N. A aquisição das interrogativas-Q do Português do Brasil. 1999b. Memorial (Qualificação de Tese de Doutorado) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 1999b. SILVEIRA, V. L. A emergência de estruturas A-Barra no contexto da aquisição do português brasileiro como língua materna. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. SOARES, C. Computational complexity and the acquisition of the CP field in European Portuguese. In: CONSOLE, XII., 2003, Patras, Greece. Proceedings… Patras: Universidade de Leiden, 2004. v. 12, p. 125-140. Disponível em: <https://www.universiteitleiden.nl/binaries/ content/ assets/geesteswetenschappen/lucl/sole/console-xii.pdf>. Acesso em: dez. 2018. STROMSWOLD, K. The acquisition of subject and object wh-questions. Language Acquisition, [s.l.], v. 4, n. 1-2, p. 5-48, 1995. VIEIRA, C. O constituinte-QU in situ no português brasileiro infantil. 2018. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. ZUCKERMAN, S. The Acquisition of “Optional” Movement. 2001. Tese (Doutorado) – University of Groningen, Groningen, Netherland, 2001. ZUCKERMAN, S.; HULK, A. Acquiring optionality in French whquestions: an experimental study. Revue Québéquoise de Linguistique, Québec, v.30, p. 71-97, 2001. Doi: https://doi.org/10.7202/000520ar Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 O modelo do Léxico-Gramática no Brasil The Lexicon-Grammar Model in Brazil Roana Rodrigues Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, Sergipe / Brasil Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo / Brasil r.roanarodrigues@gmail.com Larissa Picoli Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo / Brasil larissa_picoli@hotmail.com Resumo: Este artigo visa a apresentar um panorama das pesquisas realizadas no Brasil a partir dos anos 2000 que utilizam como base teórico-metodológica o modelo do LéxicoGramática (LG). Surgindo com os trabalhos de Gross (1968) sobre o francês, o LG é um modelo que descreve os fenômenos linguísticos conjugando léxico e gramática, com a análise de propriedades sintáticas, semânticas, estruturais e transformacionais distribuídas formalmente em tábuas binárias. Compilamos e descrevemos 38 trabalhos, entre teses, dissertações e artigos, sob o arcabouço do LG no Brasil. Além disso, os classificamos em três principais eixos temáticos: verbos-suporte, expressões cristalizadas, e análise, descrição e classificação de construções verbais. Espera-se com este artigo contribuir para a exposição dos trabalhos realizados, sobretudo, na Universidade Federal de São Carlos e na Universidade Federal do Espírito Santo, servindo como material de referência para os pesquisadores da área de LG do país e fortalecendo, assim, os estudos descritivos do português do Brasil. Palavras-chave: léxico-gramática; modelo teórico-metodológico; metapesquisa. Abstract: The aim of this paper is to offer an overview of research developed in Brazil since the beginning of the 2000s that have the Lexicon-Grammar (LG) model as a theoretical-methodological basis. Starting with Gross’s investigations (1968) on the French language, LG describes linguistic phenomena by conjugating lexicon and eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.885-910 886 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 grammar and analyzing syntactic, semantic, structural and transformational properties that are distributed into binary tables. We have compiled and described 38 publications, including theses, dissertations, and articles, concerning LG studies in Brazil. In addition, we have classified those publications into three main themes: support verbs; fixed expressions; and analysis, description and classification of verbal constructions. This paper is expected to contribute to the diffusion of research developed both at the Federal University of São Carlos and the Federal University of Espírito Santo, serving as a reference material for LG researchers, thus further strengthening descriptive studies of Brazilian Portuguese. Keywords: lexicon-grammar; theoretical-methodological model; meta-research. Recebido em 10 de setembro de 2018 Aceito em 01 de novembro de 2018 1 Introdução Neste artigo apresentamos as principais pesquisas acadêmicas realizadas sob o arcabouço teórico-metodológico do LéxicoGramática, doravante LG, no Brasil desde os anos 2000. Para tanto, nos fundamentamos principalmente nas investigações feitas nos dois principais centros léxico-gramaticais do país: Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com trabalhos sob orientação dos professores doutores Oto Araújo Vale e Aucione Smarsaro, além de parcerias com investigadores estrangeiros, como o professor doutor Éric Laporte, da Université Paris-Est Marnela-Vallée (França) e o professor doutor Jorge Baptista, da Universidade do Algarve (Portugal). Segundo Lamiroy (1991, p. 17), “o léxico-gramática de um idioma é a descrição mais completa possível das propriedades combinatórias das palavras do léxico no interior de uma frase simples”. Como o próprio nome sugere, trata-se da análise conjunta do léxico e da gramática: partese do léxico (verbos, adjetivos ou nomes predicativos) para descrever as propriedades sintáticas, semânticas, transformacionais e distribucionais no interior de uma frase simples. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 887 O modelo do Léxico-Gramática surgiu com os trabalhos de Gross (1968, 1981, 1986) sobre o francês, tendo como precursor o distribucionalismo e a gramática transformacional de Harris (1961). A análise transformacional propõe, a partir de uma frase simples, a construção de outras frases mantendo relações de equivalência semântica. São exemplos de transformações a pronominalização, a apassivação e a nominalização. Por sua parte, a análise distribucional consiste na individualização dos traços de seleção de coocorrência presentes nas diversas entradas lexicais. De acordo com Harris (1961), as palavras carregam em si alguma informação semântica, mas apenas o contexto permite definir com mais precisão o seu significado e comportamento. Por isso, a unidade mínima de análise é a frase elementar, também denominada frase de base, que se constitui pelos elementos necessários: operadores e argumentos. Os operadores (verbos, adjetivos ou nomes predicativos) entram na frase independente de outros elementos e são os responsáveis pela seleção dos argumentos (nomes, pronomes, alguns quantificadores, etc.). Na frase (1), o operador morrer pode selecionar tanto um nome humano quanto um nome não humano para ocupar a posição de sujeito; já na frase (2), o operador falecer admite apenas um nome humano nessa posição. Estes exemplos ilustram a existência de uma ordem parcial de entrada das palavras na frase e de uma probabilidade de coocorrência dessas palavras:1 (1) (A planta+O Pedro) morreu. (2) (*A planta+O Pedro) faleceu. Essa relação de dependência entre operadores e argumentos rompe com a tradicional noção de sujeito e predicado, imprimindo um novo modelo (BATISTA, 2008, p. 39). Para Gross (2002, p. 60-61), “Harris demonstrou excepcional coragem intelectual em abandonar a noção [de sujeito e predicado] e adotar para a descrição de frases o esquema geral: N0 V W, em que N0 é o sujeito gramatical, V o verbo e W a sequência dos complementos”.2 O asterisco (*) sugere a inaceitabilidade da construção. Original: “...Harris demonstrated exceptional intellectual courage in abandoning the notion and adopting for the description of sentences the general schema: N0 V W, where N0 is the grammatical subject, V the verb and W the sequence of the complements.” 1 2 888 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 Segundo Rassi (2008), são três os princípios teóricos que regem o método experimental do LG, a saber: (i) cada unidade lexical tem sua gramática própria; (ii) a unidade mínima de análise é a frase elementar; e (iii) os testes de aceitabilidade são feitos com base na introspecção. De acordo com Gross (1975, p. 23), “a aceitabilidade é de fato uma noção muito complexa, que abrange as intuições de forma e de sentido, e que depende de inúmeros fatores culturais”,3 por isso é importante que o pesquisador e seus informantes dominem a língua descrita para recorrer à introspecção no intuito de avaliar a aceitabilidade de determinada propriedade. Além da introspecção, é possível ter acesso ao uso real da língua a partir da observação de corpora. Segundo Laporte (2015, s/n), “corpora são importantes para a identificação de formas que de outra maneira podem passar despercebidas, enquanto a introspecção é necessária para distinguir formas raras daquelas que de fato não se usam”.4 Além dos pressupostos teóricos, o modelo do LG apresenta uma metodologia consistente, com a descrição e formalização dos dados de maneira clara e legível, distribuídos em matrizes binárias (tábuas), nas quais as linhas apresentam as entradas lexicais e as colunas, as propriedades sintáticas, semânticas, estruturais, distribucionais e transformacionais. Quando uma entrada possui determinada propriedade, é assinalado o símbolo ‘+’ e quando a entrada não possui essa propriedade, é utilizado o símbolo ‘-’. As propriedades analisadas nas colunas variam, dependendo dos objetivos e do objeto de estudo de cada investigação. A Tabela 1 apresenta um exemplo de representação em matriz binária dos nomes predicativos com o verbo-suporte dar, retirado do trabalho de Rassi (2015). Original: “L’acceptabilité est em effet une notion très complexe qui comporte de intuitions de forme et de sens, et qui dépend de nombreux facteurs culturels”. 4 Original: “Corpora are important for forms that might otherwise go unnoticed, while introspection is needed to distinguish rare forms from those that are not in use”. 3 889 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 TABELA 1 – Exemplo de matriz/tábua do Léxico-Gramática Npred N0= :Hum N0= :N-Hum DET=:E DET=:Def DET=:Indef Prep PB Npred=V-n N1=Hum N1= :N-Hum N1= :Npc Verbo pleno açoite + - + - + em + + - - açoitar O Zé deu um açoite na Ana. agulhada + - - - + em + + + + agulhar O Zé deu uma agulhada no dedo. aperto + - - - + em + + + + apertar O Zé deu um aperto no parafuso. beijo + - + + + em + + - - beijar O Zé deu um beijo na Ana Exemplo Fonte: Adaptado de Rassi (2015, p. 52). Apesar das particularidades próprias de cada lexema da língua, é possível criar generalizações cautelosas e agrupar as construções analisadas em classes que compartilham propriedades em comum, considerando a (re)produtividade e a representatividade dos exemplos analisados, tendo em vista que as tabelas permitem informar a gramática de cada elemento do léxico. A descrição exaustiva e a organização dos dados em tábuas binárias constituem um recurso linguístico que pode ser utilizado em outras áreas do saber, como o ensino da língua (materna ou estrangeira) e o Processamento Automático de Língua Natural (PLN), como recursos para a constituição de parsers e a sumarização e a tradução automáticas. Neste artigo, foram compilados e analisados 4 teses, 10 dissertações e 24 artigos que têm como arcabouço teórico-metodológico o modelo do LG. Essas pesquisas foram selecionadas por terem sido desenvolvidas por pesquisadores, membros dos grupos de pesquisa léxico-gramaticais da UFSCar e da UFES, no período dos anos de 2000 a 2017. Com base em seus objetos de estudo, foi possível ainda identificar as principais temáticas relacionadas aos trabalhos. Desse modo, as pesquisas foram classificadas em três eixos-temáticos principais: (i) verbos-suporte e nomes predicativos; (ii) expressões cristalizadas; e (iii) descrição do funcionamento de verbos plenos. Nas seções seguintes descreveremos os principais trabalhos5 e suas contribuições para os estudos descritivos da língua portuguesa. 5 Os exemplos apresentados são retirados e/ou adaptados dos trabalhos mencionados. 890 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 Na seção 2, descreveremos os trabalhos relacionados aos nomes predicativos e verbos-suporte; na seção 3, apresentaremos os dados sobre os estudos léxico-gramaticais das expressões cristalizadas; e na seção 4, são apresentados os trabalhos que propõem uma análise, descrição e classificação de construções verbais da língua portuguesa. 2 Léxico-Gramática e os verbos-suporte De acordo com Ranchhod (1990, p. 52), os verbos-suporte (Vsup) são aqueles que apoiam flexionalmente o elemento núcleo da predicação – o nome predicativo –, fornecendo-lhe as marcas de tempo-aspectopessoa-número, pois o substantivo, por sua morfologia, não é capaz de apresentá-las. Segundo Barros (2014, p. 32), os nomes predicativos (Npred), por sua vez, são aqueles que apresentam argumentos, ou seja, selecionam o tipo e o número de seus argumentos e impõem restrições de preenchimento lexical das posições argumentais. As frases de (3a) a (3c) ilustram algumas construções com Vsup e Npred. (3) a. O Zé fez uma resenha completa do livro. b. Os empresários têm chiliques homéricos. c. O jogador deu um autógrafo para a criança. O modelo do LG propõe a descrição formal, sistemática e exaustiva dos fenômenos linguísticos abordados. Os verbos-suporte ter, fazer e dar são os de maior representação e descrição do português brasileiro. Pode-se citar, sobretudo, os trabalhos de Barros (2014), Santos (2015) e Rassi (2015), pesquisadoras membros do grupo de pesquisa Léxico, Gramática, Opinião, Sentimento/Subjetividade (LeGOS), da Universidade Federal de São Carlos, cujos trabalhos tiveram orientação e coorientação dos professores Oto Araújo Vale e Jorge Baptista. Barros (2012) realiza um estudo inicial sobre os Npred de esporte precedidos pelo Vsup fazer. A autora extrai do corpus PLN.Br FULL 815 Npred dos quais 26 se relacionam ao âmbito do esporte (4). (4) Os meninos fazem atletismo. A principal contribuição de Barros sobre os verbos-suporte constitui-se na tese intitulada Descrição e classificação de predicados Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 891 nominais com o verbo-suporte fazer no português do Brasil. Nela, a autora analisa 29 propriedades de 1.815 predicados nominais com o verbo fazer, classificando-os em 17 classes distintas.6 As frases de (5a) a (5c) representam algumas das construções. (5) a. O segundo protótipo fez uma decolagem vertical. (PB-F1) b. Ana faz hidroginástica. (PB-F1H) c. O gato faz miau. (PB-F1NH) Em (5a) tem-se uma construção com a seguinte fórmula sintática:7 N0 fazer Npred, em que N0 é o argumento que ocupa a posição de sujeito, podendo ser preenchido tanto por um nome humano como por um nome não-humano, e Npred é o nome predicativo precedido pelo verbo fazer. A segunda construção, (5b), classificada em PB-F1H, admite apenas nomes humanos na posição de sujeito. Já em (5c), apenas nomes não-humanos preenchem a posição de sujeito. Santos (2015) descreve e sistematiza os Npred com o verbosuporte ter. São analisados os 500 Npred mais recorrentes. Em seguida, os dados são replicados ao restante da lista de Npred, totalizando uma análise de 2.784 nomes predicativos, distribuídos por 10 classes. As frases de (6a) a (6c) exemplificam algumas construções: (6) a. Eva teve um acidente horrível. (PB-TH1) b. (O carro + o presidente) tem um belo modelo. (PB-TR1) c. Eva tem um acordo com Ivo. (PB-TS2) Em (6a), verifica-se uma construção com um nome humano na posição de sujeito; em (6b), a posição de sujeito é preenchida tanto por um nome humano, como por um nome não-humano; já (6c) representa uma construção simétrica entre o nome que ocupa a posição de sujeito e o nome que está na posição de complemento preposicionado (Eva e Ivo têm um acordo). Assim como Santos (2015), Malacoski (2017), em sua dissertação intitulada Descrição sintático-semântica de construções com o verboOs códigos entre parêntesis identificam a classe à qual determinado Npred pertence. De acordo com Smarsaro (2013, p. 216), as fórmulas sintáticas “indicam a diferença de sentido e uso de cada construção”. 6 7 892 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 suporte ter e nomes humanos de relação para o processamento automático de linguagem natural, descreve o comportamento de 142 Npred relacionais com o Vsup ter. Segundo a autora, os nomes humanos relacionais denotam relações de parentesco, de categorias profissionais, de vínculos conjugais, entre outras, como se verifica nas frases (7a) e (7b): (7) a. Ana tem uma mãe amorosa. b. Ana tem um dentista excelente. Sobre o Vsup dar, mencionam-se os trabalhos de Davel (2009) e Rassi (2015). Davel (2009) propõe um estudo das construções com o verbo-suporte dar+SN, classificando as estruturas observadas em: (i) SN com ou sem determinante e suas implicações (8a); (ii) SN= uma X-ada denominal, em que a categoria que serve para a nominalização é um nome (8b); e (iii) SN= uma X-(a)da deverbal, em que a categoria que serve para a nominalização é um verbo, (8c). (8) a. O patrão deu (um) abrigo a Pedro. b. Ana deu uma garrafada no ladrão. c. Ana deu uma penteada no cabelo. A tese de Rassi (2015), que será retomada na quarta seção deste artigo, além de propor uma tipologia do verbo dar, ainda recenseia cerca de 600 nomes predicativos com o verbo-suporte dar, distribuídos em 7 classes, como se verifica nos exemplos de (9a) a (9c). (9) a. (Ana+ A tinta) deu um realce no quarto. b. Ana deu uma coçada na mão. c. Ana deu o apelido de gênio ao João. (DH2) (DPC2) (D3) Em (9a), tem-se uma construção com um nome humano ou não humano ocupando as posições de sujeito e há complemento preposicionado. Na frase (9b), é um nome parte do corpo (Npc) que ocupa a posição de complemento preposicionado. Já as construções da classe D3, como em (9c), apresentam três argumentos: N0 dar Npred Prep N1 Prep N2. Rassi et al. (2013a; 2013b; 2013c) contribuem com os estudos sobre Vsup e Npred com a publicação de trabalhos que investigam as Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 893 relações estabelecidas entre diferentes Vsup e um mesmo Npred, como se verifica na frase (10). (10) As crianças (têm+fazem+dão) chiliques. Para a criação de um corpus anotado de referência das construções com verbo-suporte do português brasileiro, Rassi et al. (2015) realizam um processo de extração e anotação manual das construções com verbos-suporte. Para tanto, os autores se baseiam em uma lista de 4.668 construções com verbo-suporte (sendo 45 variantes de Vsup e cerca de 3.200 Npred). Em seguida, extraem 121.198 frases do corpus PLN.Br Full com o auxílio do software Unitex.8 Por fim, anotam manualmente uma mostra de 2.646 frases. O corpus anotado está disponível e pode ser utilizado em outras investigações da área, assim como em aplicações computacionais. Complementando os estudos das construções com verbo-suporte, é importante mencionar os trabalhos sobre as construções conversas. Segundo Gross (1989), a operação de conversão se caracteriza pela permutação dos argumentos, sem que haja alteração do predicado e dos papéis semânticos. As construções standard são aquelas construídas com os verbos-suporte tidos como elementares (fazer, ter, dar). As construções conversas, por sua vez, são as construídas com os verbos-suporte conversos (receber, levar, ter). As frases (11a) e (11b) representam, respectivamente, uma construção standard e uma construção conversa. (11) a. Ana deu um castigo para o filho. b. O filho recebeu/levou um castigo da Ana. Smarsaro e Rodrigues (2015) discutem sobre o processo de gramaticalização de uma construção com verbo pleno a uma construção com verbo-suporte. Para tanto, os autores analisam exemplos criados com os verbos-suporte dar e receber, em construções nas quais são estabelecidos os seguintes parâmetros: N0 dar Npred em N1 = N1 levar Npred de N0, como nos exemplos anteriormente citados em (11a) e (11b). Uma plataforma open-source de desenvolvimento de recursos linguísticos e processamento automático de texto, baseada em tecnologia de máquinas de estados finitos. Disponível em <https://unitexgramlab.org/> (RASSI et al, 2015, p. 212). 8 894 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 Na dissertação intitulada Descrição e classificação das construções conversas do português do Brasil, Calcia (2016) organiza as relações entre os Vsup standard e os Vsup conversos em 4 grandes classes, a saber: DR (dar-receber), DL (dar-levar), FR (fazer-receber) e TT (ter-ter), como mostram as frases abaixo. (12) a. O médico deu a notícia à Ana. A Ana recebeu a notícia do médico. b. O pai deu uma bronca no filho. O filho levou uma bronca do pai. c. O zagueiro fez uma falta no atacante. O atacante recebeu uma falta do zagueiro. d. O campeonato tem o recorde do atleta. O atleta tem o recorde do campeonato. (DR) (DL) (FR) (TT) Como se verifica nos exemplos em (12), a autora se baseia nos verbos-suporte estudados pelas pesquisadoras do grupo LeGOS, que são: dar, fazer e ter. Schneider (2017) propõe a análise das correspondências sintáticosemânticas estabelecidas entre o verbo apagar (13a) e os verbos ter (13b), perder (13c) e tirar (13d), sobretudo em suas atuações como verbo-suporte. (13) a. O psicólogo apagou o vício de João. b. O psicólogo tirou o vício de João. c. João tem um vício. d. João perdeu o vício Rassi et al. (2016) propõem uma análise contrastiva e sistemática entre as construções conversas com dar-levar nas variantes do português do Brasil e do português europeu. Os resultados demonstram que há mais diferenças que semelhanças entre as duas variantes da língua, daí a necessidade de estudos específicos para o português brasileiro. Barros et al. (2016) analisam os verbos-suporte conversos do verbo fazer, constatando que as construções com o maior número de ocorrência são com o verbo receber, seguido do verbo sofrer, esse último Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 895 ocorrendo predominantemente em construções que apresentam uma carga semântica negativa, como se vê no exemplo (14b). (14) a. Maria fez uma injustiça com Ana. b. Ana sofreu uma injustiça da parte de Maria. Seguindo os parâmetros do LG, as pesquisas mencionadas não só descrevem minuciosamente o fenômeno das construções com verbo-suporte, como o sistematizam em exaustão, organizando os dados em tábuas binárias, que podem ser reproduzidos em outras pesquisas científicas. 3 Léxico-Gramática e as expressões cristalizadas As expressões cristalizadas (ou expressões fixas) verbais9 podem ser definidas como as construções nas quais o verbo e pelo menos outro constituinte da frase são interpretados como uma entrada lexical. A perspectiva adotada pelo LG (GROSS, 1982) aponta que as expressões cristalizadas (EC) apresentam algumas propriedades, dentre as quais podemos citar a não composicionalidade, a não produtividade e a necessidade de argumentos. Sobre o português do Brasil, pode-se afirmar que o trabalho de maior impacto descritivo de tais expressões é o de Vale (2001) que, tendo como arcabouço teórico-metodológico o LG, descreve e classifica, em 10 classes diferentes, 3.400 expressões cristalizadas verbais, formalizando os dados em tábuas binárias. As frases de (15a) a (15c) exemplificam algumas das construções analisadas.10 (15) a. Pedro suou a camisa para subir de cargo. (PB-C1) b. O cantor levou o público à loucura. (PB-CNP2) c. Os empresários botaram as cartas na mesa. (PB-C1P2) O termo expressão fixa também é utilizado por alguns pesquisadores. No entanto, como afirma Vale (2001, p. 1), parece levar a uma concepção de um estado de fixidez ou rigidez que não está necessariamente presente na maioria das expressões. Por isso, muitos autores optam pelo termo expressão cristalizada. 10 Os códigos entre parêntesis representam a classe em que tais expressões se instauram. 9 896 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 Na dissertação de Santos (2011) são descritas e formalizadas expressões fixas com nomes de partes do corpo (Npc). Para isso, o autor constrói um corpus com 558 expressões fixas, sendo 351 com estrutura argumental verbal (16a) e 207 com estrutura argumental substantiva (16b). As expressões desse corpus são analisadas a partir de critérios formais. Como resultado desse trabalho, Santos (2012) enfatizou a descrição das expressões fixas constituídas de Npc com estrutura argumental verbal (abrir mão, bater perna, etc.). (16) a. Foi necessário que eles abrissem mão de tudo para viver um grande amor. b. Eder é um dedo duro. No artigo intitulado Uma descrição das expressões cristalizadas e o processamento automático, Davel (2013) apresenta um estudo do processo de construção das expressões cristalizadas com estrutura verbo + nome, como na frase (17), com o intuito de observar a extensão do sentido metafórico. A autora apresenta critérios formais para identificar as propriedades sintático-semânticas das expressões cristalizadas. (17) A vizinha soltou os cachorros para cima do marido. Com o objetivo de analisar se um verbo faz parte de uma construção verbal livre (18a) ou de uma construção verbal fixa (18b), Smarsaro (2013) apresenta uma descrição verbal, na qual analisa o uso de um mesmo verbo em diferentes frases de base. A autora codificou as propriedades e com isso pôde verificar o comportamento dos verbos e suas diferentes atuações. (18) a. Maria deu um abraço em João na festa. b. Maria dá as costas para as fofocas de João. Vale (2013) traz para a discussão o uso de expressões fixas na estruturação e expressão de opiniões. O autor destaca que grande número de expressões tem polaridade negativa. Isso pôde ser notado na medida em que das 157 expressões selecionadas que exprimem avaliação: (i) 112 podem ser classificadas como de polaridade negativa, (19a); (ii) 33 com polaridade positiva, (19b); e 12 expressões não recebem classificação Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 897 quanto à polaridade, por poder ser utilizadas tanto positiva quanto negativamente, (19c). (19) a. O filme encheu o saco de Ana. b. O filme arrancou lágrimas da plateia. c. (A vitória de goleada + o terremoto) selou a sorte dos atletas. Sobre as expressões do português do Brasil, destaca-se ainda a dissertação de Carneiro (2016), que apresenta a descrição de expressões cristalizadas com ser e estar, como se verifica nas frases (20a) e (20b). Nessa pesquisa, a autora analisa as propriedades sintático-semânticas de 530 expressões organizadas em 8 classes de acordo com as regularidades distribucionais. Essas classes foram formalizadas em tábuas, seguindo o modelo proposto pelo LG. (20) a. Leo é um chato de galocha. b. Bia está rindo à toa. Verifica-se um número representativo de expressões cristalizadas descritas para a língua portuguesa, segundo os princípios teóricometodológicos do LG. As ECs são tratadas no interior de frases simples que possibilitam sua contextualização. Além disso, alguns trabalhos descrevem o comportamento dos verbos em construções livres e fixas, visando a sistematização de tais ocorrências para evitar casos de ambiguidade. Com a organização dos dados distribuídos em tábuas binárias, facilita-se o acesso às informações analisadas e classificadas, seja qual for a ênfase e os objetivos de cada trabalho. 4 Léxico-Gramática e a análise, descrição e classificação de verbos Nesta seção serão descritas as pesquisas que focam diferentes abordagens sobre os verbos do português do Brasil: seja com a apresentação de uma proposta de tipologia dos comportamentos desempenhados por determinado verbo, seja com o estudo descritivo de verbos plenos, que, segundo Rassi (2015, p. 70), “são também chamados de verbos distribucionais, pois são eles os responsáveis pela distribuição dos argumentos, ou seja, são eles que selecionam seus argumentos”. 898 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 No recenseamento feito neste artigo, foram encontradas 16 pesquisas realizadas na UFSCar e na UFES com a análise, descrição e classificação dos seguintes verbos: fazer; verbos de ação-processo; passar; pegar; cortar; levar; verbos de base adjetiva com os sufixos -ecer e -izar; dar e verbos locativos. A seguir apresentaremos, brevemente, as contribuições de tais pesquisas. O verbo fazer foi objeto de pesquisa de dois trabalhos: uma dissertação (RASSI, 2008) e um artigo (MARETO et al., 2013) que contempla além do fazer, os verbos ter e perder. A dissertação de Rassi (2008) intitulada Estatuto sintático-semântico do verbo fazer no português escrito do Brasil apresenta uma descrição verbal fundamentada no LG e na Teoria de Valências (BORBA, 1996). A autora analisa o verbo fazer em suas ocorrências como verbo pleno, verbo-suporte, operadorcausativo, constituinte de expressão cristalizada, vicário11 e hiperverbo,12 como se verifica nas frases de (21a) a (21f), respectivamente. Além disso, a autora formaliza as propriedades das expressões cristalizadas formadas com fazer em tábuas do LG. (21) a. A construtora M&C fez esses apartamentos. b. Pedro fez o teste rápido do HIV. c. Pedro fez com que Ana saísse de casa. d. Pedro precisava fazer das tripas coração para sustentar seus filhos. e. Pedro não canta mais como fazia antigamente. f. Pedro fez um quadro. O trabalho de Mareto et al. (2013) traz uma descrição morfossintática-semântica dos verbos fazer, ter e perder em suas ocorrências como: (i) verbo pleno, exemplos nas frases em (22); (ii) verbo-suporte, exemplos nas frases em (23); e (iii) elemento de expressão cristalizada, exemplos nas frases em (24). Verbo vicário é aquele que assume o lugar de outro, ou seja, que substitui um verbo para não o repetir. (RASSI, 2008, p. 90). 12 Hiperverbo substitui ora um verbo-suporte, ora um verbo pleno, porém não é nem esvaziado de sentido, nem associado a nenhum nome predicativo. (RASSI, 2008, p. 74). 11 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 899 (22) a. Maria fez um bolo maravilhoso. b. O menino tem um livro. c. Carlos perdeu as chaves. (23) a. João fez uma caminhada na praia. b. Maria teve gripe. c. João perdeu a fome. (24) a. Maria fez das tripas coração para terminar a faculdade. b. João teve cabeça para enfrentar o problema. c. José perdeu a cabeça com o amigo. Como resultado, foram elaboradas uma tábua com propriedades do verbo-suporte fazer, em que as autoras descrevem 24 estruturas, e duas tábuas com a descrição do verbo-suporte ter: uma com estruturas sem complemento essencial (N1), como na frase (25), e outra em que são descritas as estruturas com complemento, como em (26). (25) O vestido tem um defeito. (26) Maria teve amor pelo namorado. A Descrição e formalização de estruturas com verbos de açãoprocesso para elaboração de um parser é o título da dissertação de Rodrigues (2009). A pesquisa tem como objetivo identificar as valências verbais da subcategoria dos verbos de ação-processo, como em (27). Para isso, o autor utiliza como aparato teórico, além do LG, a Teoria de Valência Verbal e a Teoria de Papéis Semânticos. Rodrigues (2009), além disso, apresenta 10 subgrupos que constituem a subcategoria de verbos de ação-processo. (27) O fazendeiro marcou com ferro quente um trabalhador. Smarsaro et al. (2012) apresentam a descrição do verbo passar, classificando-o em 12 grupos distintos, segundo sua fórmula sintáticosemântica. Algumas construções estão exemplificadas nas frases de (28a) a (28c). Desse modo, os autores formalizam as propriedades desse verbo, constituindo um recurso linguístico. 900 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 (28) a. Maria passou os documentos para João. b. Maria passou a manteiga no pão. c. João passou por cima do chefe. Em (28a), tem-se a seguinte fórmula sintática: N0hum passar N1(=: Nconc + Nabs) para N2hum, em que N0 é ocupado por um sujeito humano; N1, por um nome concreto ou abstrato; e N2 é um nome humano na posição de complemento introduzido pela preposição para. Na frase (28b), a fórmula sintática é a seguinte: N0hum passar N1conc Loc N2conc, em que N0 é ocupado por um sujeito humano; N1, por um nome concreto; e N2 também por um nome concreto introduzido por uma preposição locativa. Por fim, em (28c), descreve-se a expressão passar por cima de: N0hum passar por cima de N1(=: Nabs + Nhum), em que N0 é preenchido por um nome humano, e N1, por um nome abstrato ou por um nome humano. A sistematização das construções demonstra a polissemia dos operadores e enfatiza a necessidade de estudá-los em meio a uma contextualização, ou seja, dentro de uma frase de base. Além da descrição do verbo passar, os autores esclarecem conceitos fundamentais dentro do LG e do PLN, como entradas lexicais, descrição sintático-semântica e exemplos construídos. O verbo pegar, por sua vez, foi objeto de descrição na dissertação de Cruz (2013). Nessa pesquisa, a autora analisa as propriedades sintático-semânticas de 64 construções com o verbo pegar no intuito de classificá-lo como verbo pleno (29a), verbo-suporte (29b) ou constituinte de expressão fixa (29c). (29) a. Pedro pegou o livro sobre a mesa. b. Pedro pegou uma gripe muito forte. c. Maria pegou seu marido com a boca na botija. No artigo Descrição do verbo cortar para o processamento automático de linguagem natural, Pacheco e Laporte (2013) descrevem o comportamento do verbo cortar enquanto pleno (30a), verbo-suporte (30b) e suas ocorrências em expressões fixas (30c). Os autores analisam as restrições distribucionais de 33 exemplos subdivididos em 11 grupos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 901 (30) a. O médico cortou o braço de João. b. João cortou os investimentos nessa área. c. João cortou o coração de Ana. O verbo levar foi objeto de análise do artigo de Smarsaro e Pacheco (2014). Os autores descrevem formalmente o comportamento desse verbo nas categorias de verbo pleno (31a) e de verbo-suporte (31b). Além disso, destacam-se as construções com levar + Npred, que podem ser substituídas por variantes verbais (31c), e o verbo levar como operador causativo (31d): (31) a. Maria leva um livro para seu aluno. b. O banco leva lucro na venda dos títulos. c. Maria (leva+tem+está com+sente) saudades de Pedro. d. A pneumonia levou Pedro a uma enfermidade permanente. Na dissertação de Picoli (2015) são descritas as propriedades sintático-semânticas de verbos de base adjetiva derivados com o sufixo -ecer e -izar. A autora analisa a correspondência semântica entre a frase de base formada com o verbo derivado com os sufixos (V-ecer / V-izar), como em (32a), e a frase transformada constituída com o verbo tornar+adjetivo, como em (32b): (32) a. A herança enriqueceu Pedro. b. A herança tornou Pedro rico. O processo de descrição e formalização das propriedades resultou em duas tábuas: uma composta por 88 verbos de base adjetiva com o sufixo -ecer e outra com 84 verbos de base adjetiva com o sufixo -izar. Além disso, os resultados da pesquisa foram publicados em forma de capítulo em dois livros: um tendo como foco os verbos de base adjetiva com o sufixo -izar (SMARSARO; PICOLI, 2016a), e o outro com destaque para as propriedades dos verbos de base adjetiva com o sufixo -ecer (SMARSARO; PICOLI, 2016b). Em relação ao verbo dar, destacamos quatro trabalhos, sendo uma tese (RASSI, 2015) e três artigos publicados em revistas (RASSI; VALE, 2013), (SMARSARO; ROCHA, 2011) e (PICOLI; SMARSARO, 2014). 902 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 Rassi (2015) em sua tese intitulada Descrição, classificação e processamento automático das construções com o verbo dar em português Brasileiro apresenta uma análise e classificação das construções em que o verbo dar pode ser verbo pleno (33a), verbo-operador causativo (33b), verbo constituinte de uma frase fixa (33c) e verbo-suporte (33d). A autora ainda descreve a construção de maneira sistemática, identificando as propriedades formais, distribucionais e transformacionais. Essas propriedades são descritas em matrizes binárias do LG. (33) a. Lourdes deu um computador às sobrinhas. b. A escuridão do quarto me deu medo. c. O funcionário ameaça dar com a língua nos dentes. d. Ana deu um beijo no Rui. O artigo de Rassi e Vale (2013) apresenta uma pesquisa quantitativa e qualitativa de classificação sintático-semântica do verbo dar. Com a observação e análise das ocorrências no corpus PLN.Br Full, os autores propõem a distinção de seis categorias do verbo dar, a saber: verbo pleno, verbo-suporte, verbo causativo, construção gramatical, constituinte de expressão fixa e constituinte de provérbio. Os dados descritos constituem recursos linguísticos que podem ter aplicações em ferramentas e sistemas de PLN. Smarsaro e Rocha (2011), na pesquisa O uso do verbo dar no jogo da linguagem, descrevem o verbo dar na estrutura sem sujeito: dar X em Y, como se vê na frase (34). Tendo como suporte teórico o LG, a Gramática de Valências e o Funcionalismo, o trabalho relaciona as três teorias com o objetivo de diferenciar o verbo dar quando atua como verbo pleno, verbo-suporte ou parte de expressão cristalizada. (34) Deu febre em Pedro. No artigo Descrição das propriedades sintático-semânticas da estrutura Dar N em N para o Processamento Automático de Linguagem Natural (PLN), Picoli e Smarsaro (2014) analisam e descrevem as propriedades sintático-semânticas da construção Dar N em N em frases simples com sujeito abstrato, como em (35). O objetivo da pesquisa é, por meio de testes formais, identificar se o N é complemento essencial ou circunstancial. As autoras formalizam as propriedades em uma tabela, no formato do LG, com 25 substantivos abstratos. 1 2 1 2 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 903 (35) Deu confusão na festa. Nos trabalhos de Rodrigues et al. (2015) e Rodrigues (2016) é proposto um estudo contrastivo dos verbos locativos do português brasileiro e do português europeu. Para tanto, são analisados, descritos e sistematizados os verbos que estabelecem uma relação de localização entre os elementos que constituem a frase de base, como se observa nas frases (36a) e (36b) com os verbos morar e colocar, que exemplificam construções verbais locativas estáticas e dinâmicas, respectivamente. Ao todo, Rodrigues (2016) analisou 1.074 construções verbais locativas do português do europeu, da base de dados verbais ViPEr (BAPTISTA, 2013), e os contrastou com as 862 construções do catálogo de verbos de mudança do português brasileiro (CANÇADO et al., 2013). (36) a. Pedro mora em São Paulo. b. Pedro colocou o livro na mesa. Como afirmam Rassi e Vale (2013, p. 128), as tipologias apresentadas nas pesquisas podem abarcar outras categorias e servir de base para a classificação de outros verbos. Resguardando as particularidades e objetivos de cada investigação, nota-se um elevado número de entradas lexicais verbais analisadas para a língua portuguesa, sob os princípios do LG. Esses dados descritos formalmente podem ser utilizados para aplicações a outras áreas do saber, assim como ferramentas de busca e tipologias de referência para outras pesquisas. 5 Considerações finais Neste artigo, foram descritos 38 trabalhos sobre o português do Brasil realizados a partir dos anos 2000 sob o arcabouço teóricometodológico do Léxico-Gramática, um método sintático-semântico que permite uma descrição refinada e formalizada de fenômenos linguísticos em várias línguas. Considerando-se os objetos de estudo de tais trabalhos, os classificamos, para fins didáticos, em 3 eixos-temáticos gerais, a saber: (i) verbos-suporte e nomes predicativos, com 15 trabalhos; (ii) expressões cristalizadas, com 7 trabalhos; e (iii) descrição, análise e classificação de construções verbais, com 16 trabalhos. Ressalta-se, no entanto, que há 904 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 outras pesquisas com base no LG que não se enquadram totalmente nos eixos aqui representados. São os casos, por exemplo, da tese de Smarsaro (2004) sobre os nomes compostos por justaposição, e a dissertação de Odorissio (2011) que utiliza o conceito léxico-gramatical de classes de objetos para a descrição dos verbos de cozinha do francês e do português. Rompendo com a tradicional dicotomia de sujeito e predicado, as pesquisas em Léxico-Gramática trazem uma abordagem dos fenômenos linguísticos mais aprofundada e complexa, com a análise exaustiva de frases de base e a elaboração de tábuas binárias, que facilitam a organização das propriedades analisadas e sua aplicação a outras áreas do saber. Apresentando-se sobretudo como um rico recurso computacional, os dados descritos nessas pesquisas podem ser úteis para a constituição de processamento de linguagem natural, como a criação de parsers, sumarização e tradução automáticas. Como se trata de uma base teóricometodológica utilizada para a descrição de diversas línguas naturais, os fenômenos ainda podem ser descritos e relacionados à luz da análise contrastiva de maneira facilitada, dado suas disposições nas tábuas binárias. Os dois principais polos léxico-gramaticais do Brasil (UFSCar e UFES) continuam desenvolvendo pesquisas anualmente em níveis de iniciação científica e monografias, dissertações e teses, com docentes e discentes que participam ativamente em eventos anuais (regionais, nacionais e internacionais), nas áreas de língua portuguesa, análise contrastiva entre o português do Brasil e outras línguas naturais e congressos computacionais, além de publicações em periódicos e capítulos de livros. Com este artigo, houve o intento de apresentar as bases do modelo do Léxico-Gramática, assim como um panorama descritivo das principais pesquisas léxico-gramaticais do Brasil. Portanto, espera-se que este trabalho sirva como uma leitura introdutória sobre as descrições de fenômenos linguísticos sob este arcabouço teórico-metodológico e incentivo para a realização de novos trabalhos na área. Agradecimentos Roana Rodrigues agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela Bolsa de Pesquisa no país (Processo: 2016/20545-0), nível Doutorado. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 905 Contribuição das autoras Roana Rodrigues e Larissa Picoli, em parceria, selecionaram os trabalhos desenvolvidos sob o arcabouço teórico-metodológico do LéxicoGramática na Universidade Federal de São Carlos e na Universidade Federal do Espírito Santo. Em seguida, discutiram e analisaram os textos, organizando-os em três principais eixos temáticos. Por fim, redigiram este artigo. As autoras são membros do grupo de pesquisa LeGOS (Léxico, Gramática, Opinião e Sentimento/Subjetividade), coordenado pelo Prof. Dr. Oto Araújo Vale. Referências BAPTISTA, J. ViPEr: uma base de dados de construções léxico-sintáticas de verbos do Português Europeu. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA, XXVIII., 2013, Coimbra. Textos Selecionados... Coimbra: APL, 2013. p. 111-129. BARROS, C. D. Descrição de classificação de predicados nominais com verbo-suporte fazer: especificidades do Português do Brasil. 2014. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014. BARROS, C. D.; VALE, O. A. Brazilian Portuguese Nominal Predicates with fazer (make/do): sports. In: COLLOQUE INTERNATIONAL SUR LE LEXIQUE ET LA GRAMMAIRE, 31., Nové Hrady. Actes... Nové Hrady, République Tchèque: Université de Bohême de Sud, 2012. p. 17-21. BARROS, C. D.; VALE, O. A.; BAPTISTA, J. Fazer um exame: análise de predicados nominais com o verbo-suporte ‘fazer’ no português do Brasil. In: NADIN, O. L.; FERREIRA, A. de A. G. d’O.; FARGETTI, C. M. (Org.). Léxico e suas interfaces: descrição, reflexão e ensino. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2016. p. 149-160. BATISTA, Z. N. Estrutura linguística e informação: uma introdução à abordagem de Zellig S. Harris sobre os fenômenos da língua. 2008. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008. BORBA, F. Uma teoria de valências para o português. São Paulo: Ática, 1996. 906 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 CALCIA, N. P. Descrição e classificação das construções conversas. 2016. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016. CANÇADO, M., GODOY, L.; AMARAL, L. Catálogo de verbos do português brasileiro: classificação segundo a decomposição de predicados: verbos de mudança. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. CARNEIRO, A. S. Descrição e classificação das expressões cristalizadas com ser e estar do português do Brasil. 2016. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016. CRUZ, L. Descrição do verbo pegar para processamento automático de linguagem natural. 2013. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2013. DAVEL, A. P. C. Um estudo sobre o verbo-suporte na construção dar + SN. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009. DAVEL, A. P. C. Uma descrição das expressões cristalizadas e o processamento automático. Revista Percursos Linguísticos, Vitória, v. 3, n. 7, p. 92-111, 2013. GROSS, G. Les construction converses du français. Genève: Droz, 1989. GROSS, M. Grammaire transformationelle du français: 1 - Syntaxe du verbe. Paris: Cantilène, 1968. GROSS, M. Méthodes en syntaxe. Paris: Hermann, 1975. GROSS, M. Les bases empiriques de la notion de prédicat sémantique. Langages, [s.l.], n. 63, p. 7-52, 1981. GROSS, M. Grammaire transformationnelle du français: 3 - Syntaxe de l’adverbe. Paris: Asstril, 1986. GROSS, M. Une classification des phrases “figées” du français. Revue Québécoise de Linguistique, Québec, v. 11, n. 2, p. 151-185, 1982. Doi: https://doi.org/10.7202/602492ar Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 907 GROSS, M. Consequences of the metalanguage being included in the language. In: BRUCE, E. N.; JOHNSON, S B. (Ed.). The Legacy of Zellig Harris. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2002. p. 57-67. Doi: https://doi.org/10.1075/cilt.228.07gro HARRIS, Z. S. Strings and transformations in language description. Papers on Formal Linguistics, 1961. LAMIROY, B. Léxico y gramática del español: estructuras verbales de espacio y de tiempo. Barcelona: Anthropos, 1991. LAPORTE, E. The Science of Linguistics. Inference: International Review of Science, 2015. Disponível em: <https://inference-review.com/ article/the-science-of-linguistics>. Acesso em: jun. 2018. MALACOSKI, L. A. Descrição sintático-semântica de construções com o verbo-suporte ter e nomes humanos de relação para o Processamento Automático de Linguagem Natural. 2017. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017. MARETO, M. S.; SANTANA, L. A.; SCHNEIDER, K. M.; SMARSARO, A. Descrição sintático-semântica de estruturas sintáticas com os verbos fazer, ter e perder, para processamento automático de linguagem natural. In: LAPORTE, E. et al. (Org.). Dialogar é preciso: linguística para o processamento de línguas. Vitória: PPGEL/UFES, 2013. p. 145-154. ODORISSIO, R. M. As classes de objeto e a linguística de corpus na construção de equivalências para glossário francês-português: o verbo na cozinha. 2011. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011. PACHECO, W. L.; LAPORTE, E. Descrição do verbo cortar para o processamento automático de linguagem natural. In: LAPORTE, E. et al. (Org.). Dialogar é preciso: linguística para o processamento de línguas. Vitória: PPGEL/UFES, 2013. p. 165-175. PICOLI, L. Descrição de verbos de base adjetiva derivados com os sufixos -ecer e -izar, para o Processamento Automático de Linguagem Natural. 2015. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2015. 908 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 PICOLI, L.; SMARSARO, A. Descrição das propriedades sintáticosemânticas da estrutura dar N 1 em N 2 para o processamento automático de linguagem natural (PLN). In: CONGRESO INTERNACIONAL ASOCIACIÓN DE LINGÜÍSTICA Y FILOLOGÍA DE AMÉRICA LATINA (ALFAL), XVII., 2014, João Pessoa. João Pessoa: Alfal, 2014. RANCHHOD, E. M. Sintaxe dos predicados nominais com ESTAR. Lisboa: INIC - Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. RASSI, A. P. Estatuto sintático-semântico do verbo “fazer” no português escrito do Brasil. 2008. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008. RASSI, A. P. Descrição, classificação e processamento automático das construções com o verbo dar em Português do Brasil. 2015. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015. RASSI, A. P.; VALE, O. A. Tipologia das construções verbais em português do Brasil: uma proposta de classificação do verbo dar. Revista Caligrama, Belo Horizonte, v. 18, n. 2, p. 105-130, 2013. RASSI, A. P.; BARROS, C. D.; SANTOS, M. C. A. Correlações sintáticosemânticas entre as construções com os verbos-suporte ‘dar’, ‘ter’ e ‘fazer’. In: LAPORTE, E.; SMARSARO, A.; VALE, O. A. Dialogar é preciso: Linguística para processamento de línguas. Vitória: PPGELUFES, 2013a. RASSI, A. P.; BARROS, C. D.; SANTOS, M. C. A. Tipologia Sintática das Construções com os Verbos-Suporte Dar, Fazer e Ter. In: JORNADA DE DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS, III., 2013, Fortaleza. Anais... Fortaleza: UFCE, 2013b. p. 36-43. RASSI, A. P.; BARROS, C. D.; SANTOS, M. C. A. Relações semânticas entre construções com verbos-suporte. In: SIMPÓSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA, IV, 2013, Goiânia. Caderno de Resumos... Goiânia, UFG, 2013c. p. 1586-1595. RASSI, A. P.; BAPTISTA, J.; VALE, O. A. Um corpus anotado de construções com verbo-suporte em Português. Revista Gragoatá, Niterói, v. 20, n. 38, p. 207-230, 2015. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 909 RASSI, A. P.; CALCIA, N. P.; VALE, O. A.; BAPTISTA, J. Estudo contrastivo sobre as construções conversas em PB e PE. In: NADIN, O. L.; FERREIRA, A. de A. G. d’O.; FARGETTI, C. M. (Org.). Léxico e suas interfaces: descrição, reflexão e ensino. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2016. p. 199-218. RODRIGUES, C. R. S. Descrição e formalização de estruturas com verbos de ação-processo para elaboração de um parser. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009. RODRIGUES, R. Análise contrastiva dos verbos locativos do português do Brasil e do português europeu. 2016. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016. RODRIGUES, R.; BAPTISTA, J.; VALE, O. Contrastive analysis of the syntactic-semantic classification of locative verbs in Brazilian and European Portuguese. In: BRAZILIAN SYMPOSIUM IN INFORMATION AND HUMAN LANGUAGE TECHNOLOGY AND COLLOCATED EVENTS, X., JORNADA DE DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS, IV., 2015, Natal. Proceedings… Natal: UFRN, 2015. p. 233-240. SANTOS, V. C. Descrição de expressões fixas do português brasileiro para processamento automático de linguagem natural. 2011. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011. SANTOS, V. C. Descrição de expressões fixas com nomes de partes do corpo do português brasileiro para fins computacionais. Revista Percursos Linguísticos, Vitória, v. 2, n. 5, p. 109-121, 2012. SANTOS, M. C. A. Descrição dos predicados nominais com o verbosuporte ter. 2015. Tese (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015. SCHNEIDER. K. M. A correspondência sintático-semântica do verbo apagar com os verbos ter, perder, tirar: uma descrição para processamento automático de linguagem natural. 2017. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017. 910 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 885-910, abr./jun. 2019 SMARSARO, A. Descrição e formalização de palavras compostas do português do Brasil para elaboração de um dicionário eletrônico. 2004. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. SMARSARO, A. Construção verbal livre ou fixa: proposta de descrição sintático-semântica. In: LAPORTE, E. et al. (Org.). Dialogar é preciso: linguística para o processamento de línguas. Vitória: PPGEL/UFES, 2013. p. 207-217. SMARSARO, A.; ROCHA, L. H. P. O uso do verbo dar no jogo da linguagem. Revista (Con)textos Linguísticos, Vitória, v. 5, n. 5, p. 45-56, 2011. SMARSARO, A.; LAPORTE, E.; ROCHA, L. H. P. Um recurso linguístico para o processamento automático de linguagem natural: descrição do verbo passar. In: CARMELINO, A. C. et al. (Org.). Questões linguísticas diferentes abordagens. Vitória: PPGEL/UFES, 2012. p.141-156. SMARSARO, A.; PACHECO, W. L. Descrição sintático-semântica do verbo levar para o processamento automático de linguagem natural (PLN). Revista (Con)textos Linguísticos, Vitória, v. 8, n. 10.1, p. 42-52, 2014. SMARSARO, A.; RODRIGUES, V. V. Verbos-suporte dar/levar: um caso de gramaticalização? Letrônica, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 359-375, 2015. https://doi.org/10.15448/1984-4301.2015.2.20398 SMARSARO, A.; PICOLI, L. Descrição de verbos de base adjetiva derivados com sufixo -izar para o PLN. In: PICOLI, L.; SIMÕES NETO, N. A. (Org.). Redes lexicais: descrições, análises e histórias. Rio de Janeiro: Mares, 2016a. SMARSARO, A. D.; PICOLI, L. Verbos de base adjetiva com sufixo -ecer: uma descrição sintático-semântica para Processamento Automático de Linguagem Natural. In: TOMAZI, M. M. et al. (Org.). Estudos Linguísticos: descrição, texto, discurso e ensino. Vitória: UFES/PPGEL, 2016b. VALE, Oto A. Expressões cristalizadas do português do Brasil: uma proposta de tipologia. 2001. Tese (Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Julio Mesquita Filho, Araraquara, 2001. VALE, Oto A. As opiniões nas expressões e a expressão da opinião. In: LAPORTE, E. et al. (Org.). Dialogar é preciso: linguística para o processamento de línguas. Vitória PPGEL/UFES, 2013. p. 259-267. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 O papel da sintaxe na aquisição de adjetivos no português brasileiro The role of syntax in the acquisition of adjectives in Brazilian Portuguese Cristina de Souza Prim Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Paraná / Brasil cristinaprim@utfpr.edu.br Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir como a criança adquire a sintaxe de adjetivos qualificativos. Por se tratar de uma categoria flexível, o desafio da aquisição de suas possibilidades sintáticas já é de fato esperado. Através de análise de transcrição de fala espontânea e de retomada de estudos já publicados sobre o assunto, discutiremos a hipótese de que a criança marca inicialmente um parâmetro de ordem, que permite a produção de adjetivos pós-nominais, mas que posteriormente ela precisa rever a aplicação desta regra à sua língua motivada por pistas encontradas em seu input. A ordem adjetivo-nome só surgirá quando houver uma remarcação paramétrica de sua língua de traços que são apenas fracos, com o adjetivo in situ, para uma marcação mais consistente, que pode ser tanto forte quanto fraca. Apresentamos argumentos favoráveis à análise que classifica o português brasileiro como uma língua de traços fortes opcionais, que se aplicam para adjetivos, mas também para WHs e para possessivos. Palavras-chave: aquisição de adjetivos; sintaxe de adjetivos; marcação paramétrica. Abstract: The objective of the present study is to discuss the acquisition of the syntax of qualifying adjectives by children. Due to its flexible category, the challenge to acquiring these syntactic possibilities is expected. Based on the analysis of spontaneous speech transcription, and the contributions of published studies on the subject, we raise the hypothesis that although children initially mark a parameter of order, which allows the production of postnominal adjectives, they will need to review the use of this rule in language induced by some clues in their input. The adjective name order will only emerge when a parameter remarking in their language has only weak traits, with an in situ adjective for a consistent marking, which may be either strong or weak. Therefore, eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.911-933 912 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 we present arguments in favor of an analysis, which classifies Brazilian Portuguese as an optional strong trait language that apply to adjectives, as well as to WHs and to possessives. Keywords: adjectives acquisition, syntax of adjectives, parameter remarking. Recebido em 10 de setembro de 2018 Aceito em 17 de dezembro de 2018 1 Primeiras palavras O estudo do posicionamento variável dos adjetivos nos DPs das línguas românicas é um tema bastante recorrente na literatura, mas não nos estudos aquisicionistas. O domínio nominal se faz presente na fala da criança desde os seus primeiros enunciados linguísticos, e é por volta dos dois anos de idade que a criança começa a combinar palavras, incluindo a combinação nomes seguidos de adjetivos. Na fala do adulto, temos, do ponto de vista sintático, três grupos de adjetivos: adjetivos que só podem ser pós-nominais (cf exemplo (1)), adjetivos que só podem ser pré-nominais (cf exemplo (2)), e adjetivos que podem ser pré e pósnominais (cf exemplo (3)), além dos adjetivos que podem aparecer em posição predicativa, que não é foco deste trabalho: (1) a. Análise sintática b. *Sintática análise (2) a. Suposto problema b. *Problema suposto (3) a. O livro famoso b. O famoso livro Sobre os adjetivos que são apenas pós-nominais, não encontramos problemas na aquisição destes adjetivos, pois a criança, desde as suas primeiras construções, já produz adjetivos pospostos ao nome, e não temos exemplos destes adjetivos ocorrendo antepostos ao nome na fala infantil nos nossos dados transcritos ou nos da literatura estudada neste trabalho, como veremos nas seções 2 e 3. No caso dos exclusivamente pré-nominais, temos uma classe bastante restrita de adjetivos que, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 913 quando possuem um homônimo pós-nominal, possui uma interpretação bastante diferente da posição pré-nominal.1 Se considerarmos que duas interpretações tão diferentes de adjetivos resultam em casos de homonímia, não seria este um problema puramente sintático de aquisição. Por conta disso, vamos nos focar no problema da aquisição da ordem de adjetivos qualificativos, que podem ser tanto pré quanto pós-nominais, como por exemplo o adjetivo em (3). O que é importante observar no exemplo (3) é que há uma interpretação específica tanto com o adjetivo anteposto quanto posposto ao nome (que quer dizer que se trata de um livro definido e eu sei qual livro é esse), mas que na posição posposta há ainda uma interpretação não-específica (que quer dizer que se trata de um livro mas não necessariamente sei qual, só sei que é famoso). Por se tratar de uma categoria com ordem aparentemente flexível,2 o desafio da aquisição destas possibilidades já é de fato esperado. Mas como a criança adquire esta variabilidade de ordem? Através de análise de transcrição de fala espontânea e de retomada de estudos já publicados sobre o assunto, buscaremos refletir sobre a aquisição da posição dos adjetivos adjuntos ao nome. Discutiremos neste trabalho a seguinte hipótese: a criança precisa rever seus parâmetros marcados para produzir adjetivos pré-nominais. Para esta discussão, nos basearemos em especial nos trabalhos de Grolla (2000), Lopes (2006) e Ihsane e Puskás (2001). Este estudo está organizado da seguinte maneira: apresentaremos dados de uma pesquisa qualitativa realizada em um corpus transcrito de fala espontânea de quatro crianças de até quatro anos. Em seguida, retomaremos os estudos já realizados sobre a tarefa da criança na aquisição e os estudos em aquisição do posicionamento dos adjetivos. É o caso do adjetivo certo, por exemplo: Em um certo dia Em um dia certo Para saber mais sobre isso, ver Prim (2015). 2 Cabe uma explicação do porquê estamos chamando os adjetivos qualificativos de “flexíveis”. Estes adjetivos podem ocorrer tanto antepostos ao nome quanto pospostos. De acordo com Cinque (2010), na posição pós-nominal há, a princípio, mais de uma leitura disponível para o adjetivo, e na pré-nominal há apenas uma, e esta coincide com uma das possibilidades das leituras existente na posição pós-nominal. Isso faz com que as duas posições tenham ao menos uma possibilidade de leitura em comum. Exemplos podem ser encontrados em (3), já explicado, e em (9) e (10). 1 914 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 Discutiremos logo após nossa hipótese. Por fim, retomarei os dados trazidos e os analisaremos à luz da proposta apresentada. 2 Dados de aquisição da linguagem Examinamos qualitativamente dados de produção espontânea de quatro crianças adquirindo o português brasileiro. Chamaremos estas quatro crianças de AC, L, G e T; todas com menos de quatro anos de idade. O corpora é constituído de quarenta e quatro entrevistas orais transcritas3 em arquivos digitalizados pertencente ao CEAAL/PUC-RS e ao Banco de Dados do Projeto de Aquisição da Unicamp. Foram analisados sete arquivos de gravação da criança AC, quando em idade entre um ano e oito meses e três anos e sete meses. Desde os primeiros arquivos transcritos já se percebe o uso de adjetivos pós-nominais, como em estrela muito grande (AC, 1;08), tomate pequeninho (AC, 1;10), pintinho amarelinho (AC, 1;10). Até os três anos e sete meses de idade, não se encontram em seus dados adjetivos pré-nominalizados, mas aos dois anos e três meses nota-se que aparece é grande esse (AC, 2;03), que poderia estar sinalizando o aparecimento dos primeiros adjetivos movidos / pré-nominais.4 Nos dados de L, também se podem encontrar dados de adjetivos pós-nominais desde o primeiro arquivo, gravado quando a criança estava com um ano e quatro meses de idade, em que já produzia coisa feia (L, 2;02), e nos dois meses seguintes, papaizinho bonito (L, 2;03), a boca grande (L, 2;04). Os dados de L foram transcritos até que a criança completasse dois anos e quatro meses, totalizando dezenove arquivos. Em nenhum deles encontramos adjetivos antepostos ao nome. Os arquivos de cada uma das quatro crianças foram nomeados da seguinte forma: ano; meses, dias. Seguem as idades das crianças em cada gravação. • AC: 1;08/ 1;10/ 2;01/ 2;03/ 2;08/ 3;00/ 3;07 • L: 1;04,18/ 1;04,25/ 1;05,16/1;05,23/ 1;06,01/ 1;06,22/ 1;07,05/ 1;08,16/ 1;09,00/ 1;09,21/ 1;09,28/ 1;10,28/ 1;11,09/ 2;01,25/ 2;02,28/ 2;03,11/ 2;04,09/ 2;04,16/ 2;04,23 • G: 1;10/ 2;01/ 2;03/ 2;08/ 3;00/ 3;06 • T: 2;02,28/ 2;03,11/ 2;04,11/ 2;04,26/ 2;05,08/ 2;05,16/ 2;06,12/ 2;07,19/ 2;08,17/ 2;09,00/ 2;09,27/ 3;00,15 4 Essa é apenas uma possibilidade de análise. Como ressaltou um dos pareceristas, pode ser o caso de grande ter uma leitura predicativa e esse ter se movido. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 915 O terceiro conjunto de arquivo de dados, da criança G, é composto de seis arquivos gravados no período em que a criança estava com idade entre um ano e dez meses e três anos e seis meses. Novamente pudemos encontrar adjetivos pospostos ao nome desde os dois anos e três meses, como em lápis amarelo (G, 2;03), uma escada bem comprida (G, 2;03), fita amarela (G, 2;03). Novamente é percebida a ausência de adjetivos antepostos ao nome em todos os arquivos. A única exceção é ontem eu comi meio bolo, produzido por G 3;00. Não se trata de um adjetivo qualificativo, mas um adjetivo exclusivamente pré-nominal. Por fim, buscaram-se nos doze arquivos transcritos da fala de T, gravados entre dois anos e dois meses e três anos, dados de adjetivos pré e pós-nominais. Desde o primeiro arquivo encontramos nesta data ´ida (T, 2;02), que sinaliza um particípio pós-nominal. Mas os dados de T são mais surpreendentes: encontramos no arquivo em que T estava com dois anos e sete meses bonito carro (T, 2;07), sem que ninguém houvesse produzido este mesmo adjetivo anteposto ao nome nesta gravação. Nos arquivos subsequentes, não se encontram novos dados de adjetivos pré-nominais. Esses dados deixam bastante claro que os adjetivos pósnominais aparecem na fala da criança meses antes de um pré-nominal. Sabemos que os dados de produção espontânea, como os utilizados aqui, são de uso limitado por não determinar se a ausência de uma certa estrutura é devida à falta de conhecimento linguístico, à falta de exposição à construção ou à falta de contextos discursivos apropriados nas sessões de gravação, como nos alerta Demuth (1996, p. 20). De fato, a exposição a adjetivos ocupando a posição pré-nominal é mesmo baixa. Verificamos, por exemplo, que nos dados da criança AC, mencionada anteriormente, em sete gravações realizadas, foram encontrados apenas três dados apresentados pelo falante adulto contendo um adjetivo prénominal, sendo um deles uma forma pronta, como “a pequena sereia”, e os outros dois “o bonito barco” e “a grande baleia”. Não podemos, portanto, contar com a exposição a este item para a criança adquiri-lo e apresentá-lo como dado aos dois anos e três meses. Apostar que se trata de falta de contexto discursivo apropriado também não seria o caso.5 Se tivéssemos alguma gravação de um momento de contação de histórias, poderiam surgir mais exemplos de adjetivos pré-nominais, mas também não podemos dizer que esta experiência é comum a todas as crianças que vão adquirir o PB e que seria isso que garantiria a exposição mais intensa a adjetivos pré-nominais. 5 916 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 Cinque (2010) e outros, ao estudar a sintaxe dos adjetivos, descreveram os adjetivos pré-nominais nas línguas românicas com leitura específica, e esta referência específica não é incomum em DPs do português (na seção 3.2 deste trabalho discutiremos a relação entre um DP específico e um adjetivo específico), ou seja, não seria por falta de contextos discursivos. Se seguirmos as razões expostas por Demuth (1996), teremos de dizer que se trata de falta de conhecimento linguístico, mas precisamos ver em que sentido isso poderia ser defendido. Esta mesma ausência de adjetivos pré-nominais no início da aquisição também foi descrita em outros trabalhos, como veremos na próxima seção. 3 A aquisição de adjetivos A maior parte dos trabalhos que tratam da aquisição de adjetivos no português são trabalhos que tem por objetivo discutir a delimitação das classes de palavras adjetivo e substantivo para a criança. Uma dessas pesquisa é a de Teixeira (2009, p. 38), que retoma os estudos de Waxman (1999), conduzidos com crianças adquirindo o inglês e os repensa para o português. Os resultados de Waxman sugerem que, aos 13 meses, a criança é capaz de relacionar uma nova palavra a uma determinada categoria (Nome, Adjetivo) em função do modo como esta palavra lhe é apresentada (com propriedades morfofonológicas distintas). As pesquisas de Teixeira (2009) e Teixeira e Corrêa (2008) nos sugerem que a criança já é capaz de reconhecer a categoria adjetivo mesmo em palavras novas, em especial por conta de marcas morfológicas. Contudo, adjetivos em português em geral não possuem marcas morfológicas específicas, e os que possuem, como é o caso dos adjetivos terminados em -al e -oso, não são os primeiros a aparecem nos dados de aquisição. Portanto, é possível que a criança não possa se pautar nos traços morfofonológicos para a aquisição da sintaxe dos adjetivos no PB. Por conta da ausência de marcas morfofonológicas dos adjetivos, Almeida (2007), Teixeira e Corrêa (2008) e Name (2005) defendem igualmente que a criança6 se utiliza da ordem canônica do PB para distinguir nomes e adjetivos. Em Almeida (2007), foram realizados três experimentos com onze ou quatorze crianças entre 2.1 e 3.9 anos. Em Teixeira e Corrêa (2008), chegou-se a esta conclusão a partir da análise de fala de dezesseis crianças com idade média de vinte meses. Em Name (2005), por fim, o experimento foi realizado com uma criança do sexo feminino de 3,6 anos. 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 917 De fato, a ordem canônica nome-adjetivo é a primeira a ser adquirida, sendo observada desde os primeiros dados transcritos das quatro crianças mencionadas; mesmo da criança que começou a ser gravada mais nova, AC, que estava com 1;08 ano na primeira gravação, e é esta a única ordem observável durante alguns meses tanto em AC quanto nos dados das outras três crianças. O problema reside na aquisição dos adjetivos na posição pré-nominal, como já mencionado. Cardinaletti e Giusti (2010) trazem dados de adjetivos prénominais do italiano, falados por crianças de dois anos e dois meses e dois anos e três meses, respectivamente, mostrando que, em italiano, por volta dos dois anos e dois meses, a criança já produz adjetivos prénominais,7 um dado anterior ao único adjetivo qualificativo pré-nominal que temos nos dados das crianças, falado por T, que produziu um adjetivo qualificativo pré-nominal durante as gravações aos 2;07. Ainda assim, há um delay em relação à aquisição de adjetivos pós-nominais. As autoras apontam como possíveis fatores para este delay: estatística menor no input, maturação de princípios pragmáticos, restrições prosódicas. Mas ressaltam que quando a criança começa a utilizá-los, o faz dentro das restrições impostas pela língua. Dada a baixa quantidade de referência a respeito do processo de aquisição da sintaxe de adjetivos, pretendemos contribuir com a formação de uma literatura sobre este assunto discutindo a hipótese de que a criança deve marcar o parâmetro de direcionalidade de núcleo para conseguir produzir adjetivos pós-nominais inicialmente e deve rever a extensão desta regra posteriormente. Para isto, vejamos como nossos dados e a literatura sobre adjetivos, possessivos e periferia esquerda da sentença podem nos ajudar a entender o que ocorre nos campos pós-nominal (subseção 3.1) e pré-nominal (subseção 3.2). 3.1 A aquisição de adjetivos pós-nominais Teixeira (2009) nos lembra sobre uma das tarefas da criança na aquisição: é preciso descobrir como propriedades ou atributos são Os exemplos das autoras: CHI: che occhi, che b(r)utti occhi! (CHI 2;2,1) “what eyes, what ugly eyes!” CHI: arrivo, ecco qua un bel grissinetto. (CHI 2;3,0) “I’m coming, here is a nice little breadstick.” 7 918 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 apresentados lexicalmente na língua.8 Após a descoberta de que o português as marca através de uma categoria lexical, para Teixeira, a criança ainda deverá fixar o valor de parâmetros de ordem que determinam a posição do adjetivo no DP. O processo pelo qual a criança passará compreende, segundo Teixeira (2009, p. 37): (i) a necessidade de segmentar o input linguístico que lhe é oferecido; (ii) o estabelecimento de uma relação entre os dados do input e a informação acessível ao sistema computacional. (iii) a capacidade de depreender de uma estrutura linear, oferecida pela interface fônica, uma estrutura mais complexa, sintática, que está em interface com a semântica/ intencional. Claro que estas mesmas tarefas se colocam em relação a substantivos e verbos, por exemplo; mas com adjetivos, há um problema adicional: muitos dos adjetivos (é o caso dos qualificativos) são avaliações do falante, e não referências fixas no mundo, o que poderia ser mais um dificultador do processo de aquisição. Corrêa e Augusto (2017, p.127) assumem a hipótese chomskyana de que há uma faculdade de linguagem que restringe as possibilidades de análise dos dados à apenas aquilo que é específico da língua a ser adquirida pela criança, de modo que ela não precisará descobrir o que é um sintagma ou o que são relações hierárquicas entre os elementos, pois isto está relacionado ao aparato cognitivo do ser humano. A criança precisará aprender, sob esta perspectiva, como os dados podem ser combinados e ordenados linearmente, como dito também por Teixeira (2009), e faz esta identificação através de padrões recorrentes. Também assumimos esta asserção neste trabalho. Nas primeiras combinações de palavras, a ordem canônica das palavras já é observada. Se retomarmos nossos dados de AC, do corpus analisado neste trabalho, vemos mesmo o domínio nominal presente. Uma possibilidade de apresentação é por elementos de uma categoria lexical (como a dos adjetivos), como na maior parte das línguas conhecidas; outra possibilidade é por meio de morfemas de posse livres ou presos, como em Haússa (língua afro-asiática falada na Nigéria), ou em Chinês (cf. ROSA, 2000). 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 919 (4) AC 1;08 o passa(r)inho [*]. (5) AC 1;08 est(r)ela [*] (mui)to [*] g(r)a(n)de [*]. (6) AC 1;08 meu chapéu de paiaço [*]. (7) AC 1;08 esse (ver)mel(h)o [*]. (8) AC 1;08 +< esse aqui é de p(r)aia [*]. Tem-se nos exemplos acima DP pleno, nome modificado por adjetivo com advérbio, DP com pronome possessivo e complemento preposicionado, DP com nome nu; ou seja, desde os primeiros dados encontramos uma diversidade na construção do DP. Sobre a variação paramétrica que pode ser relevante para o posicionamento dos adjetivos em geral, Guasti (2002) esclarece que se trata do Parâmetro de direcionamento do núcleo ou Parâmetro de ordem de palavras. A tarefa da criança seria marcar se a língua tem núcleo inicial ou núcleo final. Trata-se de um parâmetro mais amplo que afetaria o posicionamento do adjetivo. Children’s early multiword utterances hardly deviate from their target language with respect to the order of heads and complements (see Bloom 1970; Brown 1973): complements follow the head in head-initial languages (English, French, Italian) and precede it in head-final languages (Japanese, Turkish). Moreover, even before children start combining words, they can detect and use the order of words in comprehending multiword utterances. (GUASTI, 2002, p. 102) O fato de a criança detectar a ordem de palavras da sua língua e utilizá-la na identificação de novas ocorrências está de acordo com o que foi defendido por Almeida (2007), Teixeira e Corrêa (2008) e Name (2005), citados anteriormente. A explicação para o uso de adjetivos pós-nominais é coerente com a marcação paramétrica do português, que marca núcleo iniciais tanto na ordem verbo-objeto, quanto na ordem nome-adjetivo. Esta ideia surge com Greenberg (1966), que defende que há certos padrões na língua que devem estar em harmonia entre si; por exemplo, o posicionamento núcleo/modificador sempre na mesma ordem, independente de ser o 920 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 domínio verbal ou o nominal. Para o autor, idealmente cada língua deveria pertencer a um tipo harmônico; nas línguas românicas o padrão seria ordem SVO, preposições (em oposição a posposições), genitivo após o nome, adjetivo também seguindo o nome, etc.; em outras palavras, harmonicamente a língua ordenaria o modificador após o modificado. Como Santos e Lopes (2017, p.156-157) nos esclarecem, desde o trabalho de Greenberg tem-se sistematizado que há certa regularidade na ordem de palavras nas línguas humanas, que pode ser relacionado com uma diferença paramétrica reguladora da direcionalidade na língua. Este estudo de Greenberg recebeu diversas críticas porque estes universais foram listados com base no estudo de apenas trinta línguas. Cohen (1988) se posiciona sobre isto dizendo que neste sentido o português estaria cheio de inconsistências, pois permite a ordem adjetivo-nome, pronomes objetos proclíticos e alguns prefixos. Mas podemos ver estes universais por outro ângulo: estas inconsistências são pistas para que a ordem dos adjetivos não-descritivos, ou seja, os exclusivamente pré-nominais ou os que podem ser pré ou pós-nominais, precise passar por remarcação/ especificação de parâmetros para adequá-los. A hipótese da qual partimos então é de que a marcação de parâmetros relevante para este estudo ocorre quando a criança já começa a juntar duas palavras. Apoiando-nos na harmonia proposta por Greenberg (1966), vemos que o parâmetro de posicionamento de núcleo já deve ser considerado estabelecido a partir do momento em que a criança começa a juntar nomes e verbos, por exemplo, pois fazem parte do mesmo parâmetro – de direcionalidade de núcleo. Neste primeiro momento, os adjetivos seriam todos pós-nominais, o que condiz com os dados encontrados e mencionados anteriormente. Assim, podemos afirmar que a criança já tem um parâmetro para se apoiar nas primeiras construções de formas com adjetivos pospostos, como (1) e (3a), corroborado pelos exemplos das quatro crianças mencionadas, apresentados na seção 2. Contudo, a extensão deste parâmetro a todos os adjetivos deverá ser revista, o parâmetro deverá ser remarcado após alguns meses, para que a criança atinja a gramática da língua alvo e consiga produzir DPs como os apresentados em (2a) e (3b). Mas como a criança não entraria em um looping de remarcação infinita ao observar adjetivos pré-nominais no português? Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 921 3.2 A aquisição de adjetivos pré-nominais Um grande problema para a aquisição de adjetivos pré-nominais é que este não se constitui como um padrão recorrente, mas algo com baixa percentagem de uso na língua. Lightfoot (1999) defende que para que a criança possa adquirir determinadas estruturas é necessário que haja entre 17% e 30% de exposição a ela. Mas este percentual não se estabelece na fala do adulto do corpora pesquisado, e assim a criança poderia julgar este adjetivo pré-nominal como um dado descartável. Como mencionamos, nas sete transcrições da conversa tida com a criança AC, foram encontrados apenas três dados apresentados pelo falante adulto contendo um adjetivo pré-nominal, um número seguramente muito abaixo dos 17% mencionados por Lightfoot. Pela nossa amostra, a depender de padrões recorrentes nas conversas espontâneas tidas com adultos, portanto, a criança jamais adquiriria este conhecimento linguístico. Para buscarmos uma resposta ao problema da aquisição de adjetivos pré-nominais, nos basearemos nos trabalhos de Grolla (2000) e Lopes (2006) em seus trabalhos sobre a aquisição da periferia esquerda da sentença e sobre aquisição de traços semânticos, respectivamente, e no trabalho de Ihsane e Puskás (2001) sobre definitude e especificidade do DP do falante adulto. Grolla (2000) analisa nas produções de uma criança em fase de aquisição da linguagem dados relacionados à periferia esquerda da sentença, sob a hipótese continuísta de Aquisição de Linguagem na perspectiva da gramática gerativa, teoria de princípios e parâmetros. Utilizou-se de dados longitudinais de produção espontânea da criança N,9 gravada entre 2 e 4 anos de idade, e investigou o curso tomado na aquisição da periferia esquerda da sentença em PB. A estrutura da periferia esquerda da sentença assumida é a de Rizzi (1997), um sistema mais refinado incluindo várias projeções resultantes da expansão do CP. Grolla nos mostra que a aquisição dos fenômenos relacionados à periferia esquerda (tópico-comentário, perguntas QU, clivagem e relativização) ocorre de forma gradual: A metodologia proposta por Grolla (2000, p. 3) envolve 53 sessões de gravação, com 45 minutos cada, em áudiotape da criança N, que foi gravada em sua casa, em média uma vez por semana, entre os 2;0 e os 4;0 de idade, por pesquisadores da UNICAMP. Na maioria das sessões, a mãe estava presente, interagindo informalmente com a criança. 9 922 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 [...] a cada sessão de gravação explorada, novas estruturas surgiam, até a criança atingir a idade de 4;0. Ou seja, constatei que há a emergência de construções inéditas até as últimas sessões de gravação. Embora todas essas estruturas relacionadas a CP tenham surgido gradualmente, aos 2;6 de idade todas as projeções postuladas em Rizzi (1997) [...] já haviam sido manifestadas nos enunciados da criança. (GROLLA, 2000, p. 32) Em um dos capítulos da dissertação, Grolla trata das WHs in situ. Nota-se que a criança tem um delay na produção das perguntas com o elemento interrogativo in situ, que foi observado em seus dados um ano após a produção das primeiras WHs na periferia esquerda da sentença. A autora argumenta que deve ocorrer remarcação de parâmetro a fim de fazê-la produzir elementos in situ, de forma semelhante ao que ocorre na gramática de sua língua alvo. A autora postula a remarcação de parâmetro possível de ocorrer uma única vez, de forma a evitar um círculo vicioso de remarcações. A fixação depende de dados positivos e evidentes para a criança. De forma mais detalhada, a autora assume a ‘teoria baseada em pistas’ (ingl. ‘Cue-based theory’) explorada em Dresher (1999) e outros, que propõe que a Gramática Universal especifica também uma pista para cada parâmetro que deve ser marcado. “Esta pista seria um tipo de estrutura, um elemento da gramática, que seria derivada do input e que seria encontrada nas representações mentais que resultam da escuta, entendimento e decodificação dos enunciados.” (GROLLA, 2000, p.76). No caso das WHs, Grolla propõe que “é a partir desta mudança que a criança notará a possibilidade de gerar estruturas em dependências-A’ sem lançar mão de movimento para a periferia esquerda da sentença.” (GROLLA, 2000, p.87) e complementa dizendo que “Tal mudança de percepção é responsável pela a mudança do parâmetro de [+movimento QU] para [±movimento QU], configurando assim a gramática do PB adulto.” (GROLLA, 2000, p. 89). As pistas devem ser estruturas não ambíguas que só poderiam receber uma análise; por conta disso, os dados precisariam ser robustos, salientes no input da criança. No caso dos adjetivos, é preciso que a criança perceba que no input a sua volta, adjetivos pré-nominais são produzidos, ou seja, certamente é necessário que haja uma percepção da criança sobre seu input, mas não bastaria a frequência de dados, mas a coerência deste dado em sua gramática. Este tipo de dado faz com que a criança questione a Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 923 marcação de parâmetro feita (segundo Grolla, seria a inserção da categoria vazia que levaria a criança a isto) e a classifique como incompleta, e possa analisá-la como possível de estar in situ ou movida, ou seja, [+/-movimento], que seria a marcação correspondente na gramática alvo. Importante apontar que não há necessidade de se postular evidência negativa para que a criança chegue a isto. Lopes (2006, p.161-162) esclarece que no programa minimalista entende-se o acionamento paramétrico como a seleção de traços interpretáveis (semânticos) e não-interpretáveis (formais) no léxico, sendo que apenas os traços não-interpretáveis têm papel no sistema computacional. São estes os traços então que têm papel na derivação sintática. Estes traços “devem ser checados/apagados antes de a derivação atingir a forma lógica; por se tratar de um traço não-interpretável, não estabelece interface com o componente semântico.” Lopes (2006) esclarece ainda que há traços que são intrínsecos aos itens lexicais, como é o caso da animacidade, mas também há interpretações semânticas que são computadas composicionalmente. Este é o caso dos adjetivos, que recebem interpretação específica ou não específica a depender da posição que ocupam na sentença, e por isso não podemos considerar como um traço intrínseco. A especificidade, então, seria um traço computado composicionalmente. Por conta disso, a dificuldade da aquisição destes traços é previsível, dadas as informações a serem calculadas para a interpretação. Segundo Lopes (2006), os traços semânticos são dependentes de contextos sintáticos restritos, e por isso este traço de especificidade pode apresentar diferentes padrões na aquisição e não ser adquirido de uma única vez – dependerá da interrelação com outros traços, em especial os traços formais. Na pesquisa realizada por Lopes (2006), as crianças já produziam inicialmente DPs definidos, indefinidos e nus (com alguns casos agramaticais para adultos) já com possibilidade de leitura específica desde a primeira faixa etária examinada – 76.5% dos DPs produzidos tinham interpretação específica. Isto é relevante para este trabalho porque a leitura específica dos adjetivos qualificativos está relacionada à leitura específica do DP. Nos exemplos a seguir, vemos que quando o DP tem uma leitura que pode ser específica ou não, como é o caso de (9), o adjetivo pode ser pré-nominal ou pós-nominal. O adjetivo qualificativo só pode ser pré-nominal quando tem a leitura específica do DP, ou seja, quando estamos falando de uma 924 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 proposta em específico, e não uma qualquer que seja interessante. Essa intuição se confirma em (10), pois o falante não sabe qual seria a proposta em específico, e sim pede por uma. Neste caso, o adjetivo qualificativo não pode ser pré-nominal. Em outras palavras, adjetivos pré-nominais têm interpretação específica; adjetivos pós-nominal podem ter leitura específica ou não-específica. A mesma interpretação coocorrendo nas duas posições pressupõe que seja o mesmo adjetivo movido. (9) a. Surgiu uma proposta interessantíssima b. Surgiu uma interessantíssima proposta (10) a. Me sugira uma proposta interessantíssima b. #Me sugira uma interessantíssima proposta Se a criança, desde suas primeiras produções, já tem conhecimento da leitura específica do DP, porque produz adjetivos pós-nominais com esta interpretação e porque produz DP formado por determinante e nome com esta leitura, o problema não estaria na aquisição deste traço, mas na relação entre a possibilidade do movimento do adjetivo e a leitura específica do DP. Grolla (2000), em uma parte de seu trabalho, discute sobre a aquisição de WH in situ na fala da criança. Mostra que esta é uma aquisição extremamente tardia, como mencionado, que só ocorreu aos 3;09 anos da criança N, mais de um ano depois da ocorrência das primeiras perguntas WH. A autora mostra que mesmo sendo uma estrutura bastante presente no input da criança, ela não ocorre simultaneamente a outras produções com WH na fala infantil. Grolla postula então que há uma primeira marcação de parâmetro para os elementos WH, que em português seriam marcados como contendo WH com traços fortes.10 Esta marcação se evidencia pelo fato de a criança só produzir perguntas com WH movido. Posteriormente, ao observar seu input com mais cuidado, percebe que este parâmetro não pode ser tão rígido em português e que este traço pode ser tanto forte, que pressupõe movimento, quanto fraco, que não o pressupõe. Como o input que a criança recebe tem Grolla se baseia na proposta de Cheng, que postula que o traço forte estaria presente nas línguas que efetuam movimento WH, e o traço fraco estaria presente nas línguas que não permitem este movimento. 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 925 uma quantidade razoável de WHs in situ, podemos dizer que a criança reanalisa este parâmetro motivada pela frequência de uso do WH in situ na fala adulta. No caso dos adjetivos, defendo que primeiro surgem adjetivos in situ e depois adjetivos movidos, ou seja, o oposto do que ocorre com WHs. Postulo que adjetivos sejam gerados à direita do nome, na posição pós-nominal, seguindo ainda a hipótese de direção parametrizável, e os trabalhos de Ernst (2004). Ernst (2004) defende a adjunção à direita, e mostra que a diferença entre postular que adjetivos (no caso de Ernst, os advérbios) ocupam a posição de especificador (como o faz Cinque, 2010), ou de adjunto (esta é a proposta defendida por Ernst, 2004) vai além de mera distinção estrutural. Se o elemento está em Spec, ele ocupa uma posição funcional; o que define Spec é alguma função gramatical especial. Elementos funcionais tendem a ser leves. Os adjetivos, por sua vez, possuem conteúdo semântico e são por si pesados, o que parece depor contra o estabelecimento de Spec como posição de origem para adjetivos. Seguimos pelo mesmo caminho de reflexão proposto por Ernst e defendemos assim que os adjetivos qualificativos são gerados à direita, em adjunção ao nome. Assim, a observação de que a criança começa pelos adjetivos pós-nominais é esperada. Há então uma marcação de parâmetro que precisa ser revisitada pela criança. Vamos refletir sobre isto trazendo também o caso dos pronomes possessivos. Se estamos defendendo o parâmetro da direcionalidade para adjetivos, a mesma previsibilidade se faz para os pronomes possessivos. Segundo Castro (2006), os pronomes possessivos podem ser separados em a) possessivos funcionais simples, como o que temos no exemplo (11), e b) possessivos funcionais preposicionados, como o do exemplo (12). Apenas os possessivos funcionais simples nos interessam, pois são os que podem ocorrer antepostos ou pospostos ao nome. (11) a. O Pedro vendeu meu livro. b. O Pedro vendeu livro meu. (12) a. O Pedro vendeu o livro dela. b. *O Pedro vendeu o dela livro. 926 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 Segundo Castro, os possessivos pré-nominais veiculam interpretação [+definida], e os pós-nominais a leitura [-definida]. Acreditamos que esta descrição precisa ser revista, pois os pós-nominais também poderiam ter uma interpretação [+ definida] na posição pósnominal na gramática adulta. No exemplo (13) temos um possessivo pré-nominal com leitura [+definida] pois a referência está definida. Em (14), o possessivo posposto tem uma leitura [-definida], que não se mantém em (15), que tem uma leitura [+definida], mesmo sendo um possessivo pós-nominal. (13) A sua casa (14) Uma casa sua (15) Aquela/ ?a casa sua (16) *Uma sua casa Vou então assumir que os possessivos pré-nominais têm interpretação [+definida] e os pós-nominais [+ ou – definida]. A impossibilidade de um DP como (16) ratifica esta assunção. De acordo com Cerqueira (1999), a criança começa produzindo apenas possessivos pós-nominais. (17) M- não sei o que você tá falando, minha filha. Eu sinto muito, mas não entendo. Olha... R- Tila papti meu? (18) M- Boi, boi, não. Boi é o nome dele. R- Boi um [=nome] deli? (R, 1;10) Um cenário semelhante ao que se desenha para os adjetivos. Adjetivos pré-nominais têm interpretação [+específica] e os pós-nominais [+ ou – específica], como mencionamos nos exemplos (9) e (10) e como se verifica nos exemplos abaixo: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 927 (19) Esta brilhante palestra (20) Esta palestra brilhante (21) Uma palestra brilhante (22) Uma brilhante palestra Não é apenas aparente a relação que parece se estabelecer entre o adjetivo e o determinante, e o possessivo e o determinante. Determinantes definidos possibilitam a subida do possessivo (Cerqueira postula que os possessivos são originados dentro de uma mini-oração, ou seja, também seriam gerados numa posição posposta ao nome), e determinantes específicos possibilitam a subida do adjetivo. Mas vamos explicitar o que entendemos por definitude e especificidade. A definitude, segundo Ihsane e Puskás (2001), seria responsável por selecionar um objeto na classe de possíveis objetos. Visto desta maneira, todos os determinantes possuem uma mesma origem, e o que os diferencia seria o traço [+/- definido]. Já a especificidade é uma noção semântico-pragmática que distingue diferentes interpretações de determinantes nos DPs. Carlson e Pelletier (1995) decidem chamar DPs que se referem a um indivíduo particular de específicos, e DPs que não se referem a um indivíduo particular de não-específicos – e neste caso os determinantes não-específicos contribuem com conteúdo descritivo de sua asserção. O que é decisivo na caracterização de especificidade não é o conhecimento ou a capacidade de identificar objetos, mas a intenção do falante em referir-se a um indivíduo determinado, independentemente de o ouvinte ser capaz de identificar o referente. Ihsane e Puskás (2001, p. 40) esclarecem que definitude é responsável por selecionar um objeto na classe de possíveis objetos; já especificidade é relacionada a elementos pré-estabelecidos no discurso. A definitude expressa uma propriedade pragmática do discurso de familiaridade, já a especificidade indica que o referente está ancorado em outro objeto do discurso. Estas duas propriedades pertencem aos determinantes, mas os traços de [+definitude] e [+especificidade] podem não ocorrer ao mesmo tempo. Nos exemplos em (23), há duas leituras referenciais possíveis, uma em que há um casaco caro e é esse que a Maria vai comprar (leitura definida e específica) e outra em que há casacos caros, e dentre estes, a Maria vai comprar um (leitura definida e não-específica). (23b), com o adjetivo maravilhoso 928 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 pós-nominal, pode ter as leituras definido e específico ou definido e nãoespecífico, diferentemente de (23c), que só pode ser definido e específico. (23) a. A Maria vai comprar um casaco caro. b. A Maria vai comprar um casaco caro maravilhoso. c. A Maria vai comprar um maravilhoso casaco caro. Dada esta dissociabilidade entre definitude e especificidade, o determinante então precisa se abrir em duas categorias em sua projeção. A definitude estaria associada a Def, diretamente. Já a especificidade surge em uma categoria mais baixa na estrutura. (24) Tanto no caso dos adjetivos quanto dos possessivos, as primeiras produções da criança, mesmo sendo pós-nominais, já envolvem possessivos definidos pós-nominais e adjetivos específicos pós-nominais. A criança marca então o mesmo parâmetro de direcionalidade para adjetivos e possessivos, colocando-os pospostos ao nome. Mesmo sendo pós-nominais, já podemos dizer que existem as projeções de definitude e especificidade no DP, pois estas interpretações já ocorrem, como apresentado por Lopes (2006). Pensando na marcação de traços utilizados por Grolla (2000) e o reaplicando para possessivos e adjetivos, em um primeiro momento, haveria uma marcação paramétrica de que esta seria uma língua de traço fraco, sem o movimento do adjetivo ou do possessivo. Ao observar com mais cuidado seu input, a criança redefine sua marcação contendo traços que podem ser fracos ou fortes, da mesma forma que fará também com elementos WH, mas em tempos diferentes de aquisição. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 929 O parâmetro então deve ser revisitado quando a criança faz a relação entre o possessivo e o determinante, e o adjetivo e o determinante.11 Adjetivos específicos podem subir para a posição Spec de EspecificidadeP, e pronomes definidos podem subir para a posição de definitude do determinante. Isto pressupõe sim um amálgama do possessivo com o determinante na posição Spec de DefP, mas os dados Gostaria de falar um pouco mais sobre como isso se manifesta em adultos. Os qualificativos, como dissemos, só podem ocorrer na posição pré-nominal se o determinante que encabeça o DP for específico. Quanto aos traços de definitude, estes adjetivos não apresentam restrições na combinação. Em (i), o indefinido pode ser interpretado como específico ou não-específico. (ii) mostra que as duas interpretações do indefinido seguem válidas com o adjetivo posposto ao nome. (iii) mostra que o movimento do AP para a posição pré-nominal só ocorre quando o determinante tem leitura exclusivamente específica. Com os definidos não-específicos, vemos que também não há ocorrência de adjetivos qualificativos pré-nominais. Se no exemplo (iv) abaixo estivermos considerando que ainda não ocorreu a votação e que ainda não sabemos qual será o professor mais votado, o determinante será não-específico, e a previsão de que neste caso não poderá ocorrer um adjetivo qualificativo pré-nominal é correta. Por sua vez, se imaginarmos que a votação já cessou e o falante sabe quem é especificamente o vencedor, o determinante definido será específico e o adjetivo poderá se mover para a posição pré-nominal. Podemos, assim, fazer previsões sobre outros determinantes. O pronome demonstrativo, por exemplo, deveria sempre funcionar como referencial específico e sempre aceitar, portanto, adjetivos pré-nominais, o que parece verificável (ver (vi)). Sobre os DPs referenciais plurais, a previsão de nossa proposta é de que o adjetivo só poderá ser prenominalizado se o determinante definido plural não for partitivo, pois partitivos não são específicos (ver (vii), o que também parece se verificar. (i) Um professor foi premiado. – leitura específica ou não-específica (ii) Um professor maravilhoso foi premiado. – específica ou não-específica (iii) Um maravilhoso professor foi premiado. – leitura específica (iv) a. O professor mais votado ganhará um prêmio. – leitura não-específica b. *O maravilhoso professor mais votado ganhará um prêmio. c. O professor maravilhoso mais votado ganhará um prêmio. (v) a. O professor mais votado ganhou um prêmio. – leitura específica b. O maravilhoso professor mais votado ganhou um prêmio. (vi) Este inteligente professor receberá um prêmio. – leitura específica (vii) #As bonitas camisas que eu comprei são amarelas, mas eu comprei camisas de várias cores. Precisamos testar como crianças lidam com estes dados para entendermos melhor como ocorre o processo de aquisição da sintaxe de adjetivos. Deixo isto como sugestão para pesquisas futuras. 11 930 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 de concordância nominal em português parecem evidenciar que isto pode ocorrer mesmo apenas com os possessivos e não com os adjetivos: (25) a. *A lindas boneca b. As linda boneca (26) a. *Os meu filho b. O meus filho. Seguramente, uma ampliação das faixas etárias estudadas poderia trazer maior respaldo para esta proposta. Isto ficará para pesquisas futuras. Respaldando-nos em Kato (1995), defendemos, sobre a aquisição da estrutura sequencial, que a gramática inicial já disporia de todos os elementos funcionais presentes na gramática do adulto, ou seja, a definitude e a especificidade do DP, e que a não realização imediata dos possessivos e dos adjetivos na posição anteposta ao nome não se deve pela falta da projeção destas categorias, como postulado por Grolla (2000) para a periferia esquerda, e sim pelo fato de a criança não ter aprendido que essa categoria também pode ter um traço forte que atrai possessivos ou adjetivos para os especificadores do determinante, projetado em duas categorias, a definitude e a especificidade. 4 Concluindo Buscamos com este trabalho discutir a sintaxe da aquisição dos adjetivos, que mesmo apresentando uma variabilidade na ordem adjetivo-nome e nome-adjetivo na gramática adulta, não se manifesta da mesma forma na gramática infantil. Argumentamos que há uma primeira marcação paramétrica, relacionada à ordem dos núcleos, que faz com que a criança desde cedo produza nomes + adjetivos, de forma semelhante ao que faz sintaticamente em relação a outros núcleos na língua. A ordem adjetivo+nome só surgirá quando houver uma remarcação paramétrica de sua língua de traços que ora são apenas fortes (no caso dos WHs), ora são apenas fracos (no caso dos possessivos e adjetivos) para uma marcação mais consistente, que pode ser tanto forte quanto fraca. Assim, teríamos argumentos favoráveis à análise que classifica o PB como uma língua de traços fortes opcionais, que se aplicam para WH, para possessivos e para adjetivos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 931 Referências ALMEIDA, Cristiano. A identificação de nomes e adjetivos por crianças adquirindo o PB. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2007. CARDINALETTI A; G. GIUSTI. The acquisition of adjectival ordering in Italian. In: ANDERSSEN M.; BENTZEN K.; WESTERGAARD M. (Ed.). Variation in the input. Studies in the Acquisition of Word Order. Dordrecht; Heidelberg; London; New York: Springer, 2010. v. 39, p. 65-93. CARLSON, G; PELLETIER, F. (Ed.). The generic book. Chicago: University of Chicago Press, 1995. CASTRO, A. On Possessives in Portuguese. 2006. Tese (Doutorado) – Universidade Nova de Lisboa; Université Paris 8 – Vincennes SaintDenis, Lisboa; Paris, 2006. CERQUEIRA, Vicente C. Aquisição de possessivos. Cad. Est. Ling., Campinas, v. 36, p. 47-69, jan./jun. 1999. CINQUE, Guglielmo. The syntax of adjectives: a comparative study. Cambridge, MA: MIT Press, 2010. (Linguistic Inquiry Monograph, 57). DOI: https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262014168.001.0001 COHEN, M. A. O posicionamento do adjetivo no sintagma nominal português: um estudo diacrônico. Boletim do Centro de Estudos Portugueses, Belo Horizonte, v. 9/10, n. 12, p. 58-62, 1988. CORRÊA, Leticia M. S.; AUGUSTO, Marina R. A. Primeiros passos na aquisição da sintaxe: o sintagma nominal. In: FREITAS, Maria João; SANTOS, Ana Lúcia (Ed.). Aquisição de língua materna e não materna: questões gerais e dados do português. Berlin: Language Science Press, 2017. p. 121-154. DEMUTH, K. Collecting Spontaneous Production Data. In: MCDANIEL, D.; MCKEE, C.; CAIRNS, H. (Ed.). Methods for Assessing Children’s Syntax. Cambridge, Massachussets: MIT Press, 1996. DRESHER, B.E. Charting the Learning Path: Cues to Parameter Setting. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 30, n. 1, p. 27-67, 1999. 932 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 ERNST, Thomas. The Syntax of Adjuncts. Cambridge University Press: Cambridge, 2004. (Cambridge Studies in Linguistics, 96) GREENBERG, J. Universals of Language. Cambridge, Mass: MIT Press, 1966. GROLLA, Elaine B. A aquisição da periferia esquerda da sentença em português brasileiro. 2000. 95f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Unicamp, Campinas, 2000. GUASTI, Maria Teresa. Language Acquisition: the Growth of Gramar. Cambridge, MA: MIT Press, 2002. IHSANE, T.; PUSKÁS, G. Specific is not definite. Generative Grammar in Geneva, Geneva, v. 2, p. 39-54, 2001. KATO, Mary. Gramática infantil: competência plena ou uma gramática sem categorias Funcionais? In: REUNIÃO ANUAL DA SBPC, 47., 1995. São Luis, MA. Anais... São Luís: SBPC, 1995. v. 1. LIGHTFOOT, D. The Development of Language: Acquisition, Change and Evolution. Massachussets: Blackwell Publishers, 1999. LOPES, Ruth Vasconcellos. Traços semânticos na aquisição da linguagem. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 161-178, mar. 2006. NAME, Maria Cristina. Aquisição de nomes e adjetivos por crianças brasileiras: uma abordagem psicolingüística. Revista Estudos Linguísticos, Campinas, v. XXXIV, p. 415-420, 2005. PRIM, Cristina de Souza. Os adjetivos exclusivamente pré-nominais do português. Signum: Estud Ling, Londrina, v. 18, n. 2, p. 377-403, dez. 2015. RIZZI, Luigi. The fine structure of the left periphery. In: HAEGEMAN, L. (Ed.). Elements of Grammar. Dordrecht: Kluwer, 1997. p. 281-337. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-011-5420-8 ROSA, M. C. Introdução à morfologia. São Paulo: Contexto, 2000. SANTOS, Ana Lucia; LOPES, Ruth. Primeiros passos na aquisição da sintaxe: direcionalidade, movimento do verbo e flexão. In: FREITAS, Maria João; SANTOS, Ana Lúcia (Ed.). Aquisição de língua materna e não materna: questões gerais e dados do português. Berlin: Language Science Press, 2017. p. 121-154. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 911-933, abr./jun. 2019 933 TEIXEIRA, Luciana. A delimitação do adjetivo como categoria lexical na aquisição da linguagem: um estudo experimental no Português Brasileiro. Veredas, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 36-56, 2009. TEIXEIRA, Luciana; CORRÊA, Letícia. Pistas morfológicas e sintáticas na delimitação de adjetivos em relações predicativas e de adjunção na aquisição do PB. Revista da Abralin, v. 7, n. 2, p. 43-63, jul./dez. 2008. WAXMAN, S.R. Specifying the scope of 13-month-olds’ expectations for novel words. Cognition, [S.l.], v. 70, n. 3, B35-B50. 1999 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 Os verbos ir, dever e poder e seus infinitivos: sintaxe interna e externa The verbs ir (‘go’), dever (‘must’) and poder (‘can/may’) and their infinitives: internal and external syntax Maurício Resende Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo / Brasil mauri_cio_resende@hotmail.com Paulo Ângelo de Araújo-Adriano Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo / Brasil pauloangeloaa@gmail.com Resumo: Este trabalho investiga as propriedades sintáticas internas (isto é, a constituição morfofonológica) e externas (ou seja, a relação com outros constituintes da sentença) dos infinitivos que ocorrem com os verbos ir, dever e poder. Mais especificamente, este artigo mostra que o comportamento sintático e semântico desses infinitivos é capturado pela depreensão de três propriedades principais, a saber, (i) formação de uma única unidade sintática com ir, dever e poder, (ii) dependência morfossintática com o verbo auxiliar/modal que lhe subcategoriza, (iii) interpretação de evento em potencial. Assim, partindo desse recorte, o presente estudo propõe uma análise à luz do quadro da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993) e, alternativamente, uma análise que assume os pressupostos do Programa Minimalista (CHOMSKY, 1993), com o objetivo de mostrar que, independentemente da teoria que se assume, com base no mesmo conjunto de traços, os fenômenos empíricos que subjazem à relação entre ir, dever e poder e seus infinitivos pode ser capturada. Palavras-chave: infinitivos; verbo auxiliar; verbo modal. Abstract: This paper investigates both internal (i.e. the morphophonological structures) and external (i.e. the relation with the other constituents of the sentence) syntactic properties of infinitives occurring with the verbs ir (‘go’) dever (‘must’) and poder (‘can/ may’). More specifically, this paper shows that the syntactic and semantic behavior of eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.935-966 936 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 those infinitives is captured by three major properties, namely, (i) the constituency of a single syntactic unit with ir, dever and poder, (ii) the morphosyntactic dependency on the auxiliary/modal that is selected, (iii) the reading of potential event. Thus, departing from those properties, the present study proposes a Distributed Morphology-based approach (HALLE; MARANTZ, 1993) analysis and, alternatively, a Minimalist-based approach (CHOMSKY, 1993) analysis, in order to show that, regardless the theory assumed, by considering the same group of features, the empirical phenomena underlying the relation between ir, dever and poder and their infinitives can be captured. Keywords: infinitives; auxiliary verb; modal verb. Recebido em 06 de setembro de 2018 Aceito em 20 de novembro de 2018 Introdução Os infinitivos, tradicionalmente tratados como uma das formas nominais do verbo, têm sido alvo de especial interesse de linguistas – mas também de gramáticos – tanto pelo fato de exibirem propriedades verbais e nominais quanto pelo de ocorrerem em ambientes sintáticos substancialmente diferentes. De qualquer forma, o fato de os infinitivos serem, em português, a forma verbal mais recorrente (inclusive sendo a sua forma de citação) e apresentarem a mesma realização morfofonológica (aparecendo sempre grafados com “-r” na escrita) leva, muitas vezes, à tentação de considerá-los uma classe homogênea, pelo menos, do ponto de vista de sua constituição interna. No entanto, além da distinção (pouco clara) entre infinitivos verbais e infinitivos nominais, a própria possiblidade de esses itens desempenharem funções sintáticas distintas serviria como evidência para o reconhecimento de diferentes tipos de infinitivo. Nesse sentido, uma hipótese razoável para o comportamento não homogêneo dos membros dessa classe é a de que eles são morfossintaticamente distintos e apenas superficialmente se apresentam de maneira uniforme.1 Ainda que, como mostra Resende (2016), parece haver uma restrição categorial quanto ao apagamento do segmento -r em alguns dialetos do português brasileiro, qual seja, apenas os infinitivos verbais permitem a elisão do /r/ ao passo que, nos infinitivos nominais, esse apagamento não é permitido. 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 937 Ancorados nessa perspectiva, alguns trabalhos já esboçaram uma espécie de tipologia dos infinitivos, quer partindo de suas propriedades sintáticas externas – tais como Stowell (1982), Bošcović (1996), Wurmbrand (2014) – quer partindo de suas propriedades sintáticas internas – como, Sleeman (2010), Alexiadou, Iordăchioaia e Schäfer (2011), Brito (2012) – ainda que esses trabalhos compartilhem, em alguma medida, a intuição de que a constituição interna de todos os membros da classe de infinitivos não é a mesma, fazendo com que as suas condições de licenciamento difiram a depender do contexto sintático em que ocorrem. Não é objetivo deste trabalho discutir, avaliar ou cotejar essas propostas, mas é importante deixar claro que a relação entre a constituição interna de uma forma infinitiva e o ambiente sintático em que ela ocorre não é de um para um, ou seja, infinitivos que ocupam a mesma posição sintática podem apresentar estruturas internas distintas da mesma sorte que infinitivos com a mesma estrutura interna podem ocorrer em ambientes sintáticos diferentes, inclusive exercendo funções sintáticas distintas. Dadas essas considerações, o objetivo deste artigo é investigar a natureza sintática (interna e externa) dos infinitivos que ocorrem com os verbos ir, dever e poder. A escolha por esses verbos especificamente vale-se da ideia de que, seguindo Lunguinho (2006), esses três verbos compartilham um mesmo conjunto de características sintáticas e semânticas, a saber, ocorrem com verbos no infinitivo2 e disparam uma interpretação sempre voltada para o futuro, ou seja, este estudo defende que os infinitivos que ocorrem com esses três verbos têm a mesma constituição interna, o que faz com que eles apresentem uma sintaxe e uma semântica semelhante. A necessidade por uma separação metodológica das construções que envolvem infinitivos se dá porque tanto a sua constituição interna quanto os ambientes sintáticos em que eles ocorrem são, em alguns casos, fundamentalmente distintos. Para citar um exemplo, Resende (2018) sugere que a classe de infinitivos pode ser subdivida em três grupos, de acordo com propriedades fonológicas, morfológicas, sintáticas e semânticas. Alguns exemplos dessa subdivisão aparecem em (1). Vale a pena lembrar que o verbo ir não seleciona somente verbos no infinitivo, podendo também ocorrer com verbos no gerúndio, como em a gente vai se falando. Uma vez que o objetivo deste trabalho é investigar a natureza sintática dos infinitivos, a seleção do gerúndio pelo verbo ir não aparece discutida no presente artigo. 2 938 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (1) (a) Com o passar do tempo... (leitura imperfectiva). (b) Ao assinar o contrato, você… (leitura proposicional). (c) O Pedro vai correr amanhã (leitura irrealis). Por motivos de espaço, o objetivo deste artigo não é discutir todos esses casos nem questionar ou corroborar essa classificação. Ao contrário, o interesse deste estudo, como já mencionado, reside apenas nas propriedades internas (ou seja, na constituição morfológica) e externas (isto é, propriedades sintáticas) dos infinitivos que ocorrem com os verbos ir, dever e poder, grupo ilustrado por (1c). Contudo, deve ficar claro que o recorte desse ambiente sintático não equivale à afirmação de que apenas os infinitivos que co-ocorrem com esses três verbos possuem as propriedades dos infinitivos com leitura irrealis – como ilustrado por (1c). Além disso, do ponto de vista estritamente teórico, o presente trabalho visa mostrar que, independentemente da filiação teórica que se assume, o mesmo conjunto de propriedades para esses infinitivos pode ser capturada. Para tanto, este artigo está dividido da seguinte maneira: a seção 1 apresenta algumas propriedades dos verbos auxiliares, discutidas na literatura, e mostra que os infinitivos que ocorrem com ir, dever e poder são diferentes daqueles que co-ocorrem com verbos plenos. A seção 2, com base nos pressupostos teóricos da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1993), contém uma proposta de análise para a estrutura interna desse tipo de infinitivo. Finalmente a seção 3, com base nas assunções do Programa Minimalista (CHOMSKY, 1993), discute as consequências da estrutura interna proposta na seção 2 para a relação desse infinitivo com os outros constituintes na sintaxe e mostra que o mesmo conjunto de propriedades pode ser capturado também nesse modelo. 1 Verbos ir, dever e poder e seus infinitivos O interesse pelos verbos ir, dever e poder do português brasileiro (PB) é de longa data e, dentre os trabalhos pioneiros que se dedicaram à verificação de suas propriedades (visto que muitos gramáticos apresentavam divergências no que diz respeito a elas) destacam-se o de Pontes (1973) e o de Lobato (1975). Mais especificamente, esses Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 939 trabalhos tinham em vista a delimitação de uma classe de auxiliares e, por consequência, se ir, dever e poder pertenciam a ela. Para Pontes (1973), um verbo auxiliar é um verbo semanticamente secundário, cujo papel é auxiliar o verbo principal, carregando as informações de pessoa, número e tempo. Diferentemente, para Lobato (1975), a noção de auxiliaridade vale-se de dois níveis, a saber, mais estrito e mais amplo. Na assunção mais estrita, um verbo é auxiliar se passar em todos os critérios de auxiliaridade e, na mais ampla, somente um subconjunto dos critérios é aplicado e, portanto, tal verbo é considerado auxiliante. Uma consequência direta da divergência de análise está na lista de auxiliares considerada pelas autoras. Enquanto Pontes conclui que os auxiliares no PB são os verbos ter, haver, estar, ficar, ir, ser e vir, Lobato entende que a lista dos auxiliares é composta somente por estar, ser, ter e haver, sendo começar a, continuar a, poder, dever, crer e querer verbos auxiliantes. Cumpre notar que considerar (ou não) ir, dever e poder como auxiliares traz consequências importantes para a delimitação de suas propriedades e, por consequência, para a presente análise. Mais recentemente, Lunguinho (2006, 2011) e Ferreira (2009) mostram que os verbos auxiliares apresentam uma certa dependência morfossintática com o seu complemento. Mais especificamente, segundo Lunguinho (2006), estar seleciona gerúndio; ir3 e os modais poder e dever selecionam infinitivo; ter seleciona particípio passado não flexionado; ser seleciona particípio passado flexionado, como ilustram os dados em (2). (2) (a) Ana está comendo/*comida/*comido/*comer uma maçã. (b) Ana tinha comido/ *comida/ *comendo/ *comer uma maçã. (c) Ana vai/pode/deve comer/*comido/*comida/*comendo uma maçã. (d) Uma maçã foi comida/*comido/*comer/*comendo pela Ana. Como o objetivo é analisar a sintaxe interna e externa de um certo subgrupo de infinitivos, este artigo se debruça somente sobre os domínios verbais encabeçados pelos verbos ir, dever e poder – conforme (2c). Dadas essas considerações, com base em trabalhos como Pontes (1973), Lobato (1975), Gonçalves (1996), Gonçalves e Costa (2002), a seguir apresentam-se algumas propriedades dos auxiliares com o intuito 3 Cf. nota 2. 940 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 de mostrar que os infinitivos que ocorrem com ir, dever e poder não se comportam da mesma maneira que os infinitivos que co-ocorrem com verbos plenos. Talvez a propriedade mais relevante para o presente estudo seja o fato de que os auxiliares ocorrem necessariamente com um constituinte de natureza verbal. Assim, por exemplo, o verbo querer em (3a) apresenta um comportamento distinto do de um auxiliar, já que permite que um DP seja subcategorizado, diferentemente dos verbos ir, dever e poder em (4b), que só se concatenam com uma projeção verbal.4 (3) (a) A criança começou [VP a discutir]. (b) A criança começou [DP a discussão]. (4) (a) A criança vai/pode/deve [VP comer o bolo]. (b) *A criança vai/pode/deve [DP o bolo]. Outra particularidade que distingue os auxiliares dos outros verbos é a impossibilidade de os primeiros selecionarem um CP. O exemplo (5) mostra que o verbo mandar pode subcategorizar um constituinte encabeçado pelo complementizador que, ao contrário dos verbos ir, dever e poder em (6): (5) (a) A rainha mandou [CP que plantassem 10 rosas no jardim]. (b) A rainha mandou [VP plantar 10 rosas no jardim]. (6) (a) *Políticos vão/podem/devem [CP que considerar isso]. (b) Políticos vão/podem/devem [VP considerar isso]. À primeira vista, uma sentença como Deus pode tudo poderia ser um contraexemplo para a generalização de que o verbo poder só se concatena com uma projeção verbal. Porém, Ferreira (2009) argumenta que, na verdade, há um VP elíptico como argumento de poder, isto é, Deus pode [VP fazer tudo], uma vez que é impossível transformar em uma passiva, como se observa em *Tudo é podido por Deus. Além disso, um parecerista anônimo apontou que a mesma análise parece valer para o verbo querer, em a criança quer o bolo, cuja passiva também não é possível *o bolo é querido pela criança. Na verdade, assim como Ferreira (2009), há propostas que consideram que há um VP não pronunciado como argumento de querer, precisar, esperar, requerer etc., isto é, a criança quer [VP ter o bolo] – cf. Larson; Den Dikken; Ludlow (1997) e Schwarz (2006). 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 941 Adicionalmente, também relacionada à co-ocorrência dos auxiliares com os outros constituintes é a incompatibilidade com um infinitivo flexionado, isto é, [+finito], como mostram (7) e (8), em que deixar se comporta diferentemente de ir e os modais, sob esse critério. (7) (a) Deixei [VP[+fin] entrarem as crianças]. (8) (a)*Eles vão/podem/devem [VP[+fin] comerem a feijoada rapidamente] (b) Eles vão/podem/devem [VP[–fin] comer a feijoada rapidamente] Além disso, sentenças encabeçadas por auxiliares devem ter somente um valor temporal. Disso, segue o contraste de gramaticalidade entre o verbo tentar e os verbos ir, dever e poder: em (9), o primeiro advérbio modifica toda a sentença, situando o momento em que a sentença sobre a qual ele faz escopo direto aconteceu. Já o segundo advérbio modifica toda a unidade sintática da sentença encaixada, ou seja, cada advérbio modifica um domínio. Porém, em (10), uma única modificação temporal é possível. Em (10c), mesmo havendo dois advérbios, o advérbio ontem modifica a oração matriz, enquanto o advérbio amanhã modifica somente a oração encaixada, o que serve como evidência para considerar que os auxiliares têm somente um valor temporal. (9) (a) Ontem, o professor quis furar a greve amanhã. (10) (a) *Ontem, o professor vai/pode/deve furar a greve amanhã (b) O professor vai/pode/deve furar a greve amanhã (c) Ontem, o professor disse que vai/pode/deve furar a greve amanhã Sob a mesma perspectiva, a não atribuição de papel temático do argumento externo dos auxiliares é consequência da propriedade de eles não apresentarem restrição quanto ao DP sujeito. Dessa maneira, se o DP sujeito for licenciado pelo verbo pleno, os auxiliares também se combinam com esse DP. Do contrário, a sentença é agramatical. Em (11c), a agramaticalidade da sentença é explicada, porque o verbo cantar não seleciona um DP [–humano]. Como é o verbo pleno que licencia o DP sujeito, não havendo interferência do verbo auxiliar e de poder e dever, (11d) também é agramatical. 942 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (11) (a) O queijo apodrece. (b) O queijo vai/pode/deve apodrecer. (c) *O queijo canta. (d) *O queijo vai/pode/deve cantar. Finalmente, quando se está diante de uma transformação da voz ativa para a voz passiva, não se espera que haja mudança de significado no contexto de um verbo auxiliar. Isso porque o DP sujeito, que é selecionado pelo verbo pleno na voz ativa, continua recebendo o mesmo papel temático na voz passiva, já que o auxiliar não tem essa propriedade de seleção. Assim, em (12), o DP os alunos de sintaxe têm um papel temático de agente tanto na sentença ativa (12a) quanto na passiva em (12b). Por outro lado, no exemplo (13), o DP a Maria na voz ativa tem um papel de agente, enquanto na construção passiva, esse DP recebe um papel de tema. (12) (a) Os alunos de sintaxe vão/podem/devem ler [DP o livro]. (b) [DP O livro] vai/pode/deve ser lido pelos alunos de sintaxe. (13) (a) A Maria quer arrumar [DP um emprego] com 18 anos. (b) *[DP Um emprego] quer ser arrumado pela Maria com 18 anos. Em última análise, muitos das propriedades mencionadas são consequência do fato de que ir, dever e poder formam uma única unidade sintática com o infinitivo com que co-ocorrem, e essa constatação reverbera diretamente na delimitação das propriedades desses infinitivos. Especificamente a respeito disso, Gonçalves e Costa (2002) usam dois testes sintáticos para definir se existe uma ou mais de uma unidade sintática, a saber, o teste da retomada anafórica e o teste da clivagem. Segundo o primeiro teste, se os dois verbos não formarem uma única unidade sintática, (i) a pergunta, em um par perguntaresposta, integra o primeiro verbo da sequência e (ii) a resposta contém exclusivamente o verbo não finito e seus complementos. Já de acordo com o segundo teste, o da clivagem, se os dois verbos não formarem uma única unidade sintática, é possível clivar o domínio não finito e seus complementos. Essas propriedades aparecem ilustradas em (14) e (15). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 943 (14) (a) P: O que é que a Mario Alberto quer? / R: Viajar para a Europa. (b) *P: O que é que a Maria vai/pode/deve / R: Viajar para a Europa. (15) (a) É tentar Doutorado que o Fernando quer. (b) *É tentar Doutorado que o Fernando vai/pode/deve. O exemplo (14a) mostra que quer viajar não é uma única unidade sintática, visto que, quando do par pergunta-resposta, a resposta é formada pelo verbo não finito. Ao contrário, (14b) é agramatical, justamente por essa unidade sintática formada por vai viajar ser, de certa forma, inseparável. No teste da clivagem, o mesmo se aplica: em (15a), a forma infinitiva pode ficar isolada do verbo auxiliar, já que ambos não formam uma unidade. Porém, em (15b), a impossibilidade de separação explica a agramaticalidade da sentença. Em síntese, o que esta seção tentou mostrar é que os verbos ir, dever e poder e seus infinitivos formam uma única unidade sintática, diferentemente do que ocorre com outros verbos. A partir dessa constatação, Ferreira (2009), por exemplo, argumenta que estes formam predicados de reestruturação, nos quais uma forma verbal finita e uma não finita são reanalisados como um único complexo verbal. Como já mencionado, não é objetivo deste trabalho discutir critérios de auxiliaridade; no entanto, alguns desses critérios sinalizam que a relação do infinitivo com ir, dever e poder deve ser diferente daquela com verbos plenos e que, logo, sua constituição interna deve espelhar essas propriedades, as quais sugerem uma “atomicidade sintática”. 2 A sintaxe interna dos infinitivos que ocorrem com ir, dever e poder Como mostrado na seção anterior, os infinitivos que ocorrem com os verbos ir, dever e poder não têm o mesmo comportamento que os infinitivos que aparecem com verbos plenos, principalmente no que concerne à formação de uma única unidade sintática, o que serve de motivação para sugerir, pelo menos à primeira vista, que não se tratam do mesmo infinitivo.5 Naturalmente, o estatuto de verbo auxiliar e/ou Um parecerista anônimo sinalizou que há uma outra hipótese para esse comportamento que não envolve a postulação de estruturas distintas para os diferentes infinitivos, mas sim, a da atribuição dessas diferenças à estrutura subordinada. Essa hipótese não aparece explorada neste artigo, mas merece ser retomada em trabalhos futuros. 5 944 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 de verbo modal em oposição ao de verbo pleno desempenha igualmente um papel determinante nesse comportamento contrastivo. Isso porque, como mostrado a seguir, esta seção assume que os auxiliares/modais são verbos puramente morfológicos – nos termos de Medeiros (2008) – e, dessa forma, a própria relação entre eles e os infinitivos deve ser diferente daquela com verbos plenos. Como referido na introdução, a presente análise assume os pressupostos da Morfologia Distribuída (MD) com vistas a propor uma estrutura interna para os infinitivos que co-ocorrem com ir, dever e poder, conforme ilustrado em (16), e mostrar como as suas propriedades internas se relacionam com as dos outros constituintes da sentença – cf. § 3. (16) (a) O João vai dormir. (b) O João deve dormir. (c) O João pode dormir. Na arquitetura da gramática proposta pela MD, as informações fonológicas, sintáticas e semânticas dos então chamados “itens lexicais” estão distribuídas em três listas, que são acessadas em diferentes momentos da derivação. Segundo Marantz (2015), o Léxico estrito (a lista 1) alimenta a sintaxe com raízes e feixes de traços morfossintáticos/ semânticos abstratos desprovidos de conteúdo fonológico e de conteúdo semântico não composicional; essa primeira lista fornece ao sistema computacional (a sintaxe) as peças para a formação das estruturas, e este gera palavras, sintagmas e sentenças. Posteriormente, as estruturas geradas pela sintaxe são simultaneamente enviadas para as interfaces. Em PF, a estrutura morfológica (MS) realiza operações adicionais de modo a atender aos requerimentos de boa formação morfológica específicos a cada língua e, em seguida, uma operação denominada inserção de Vocabulário atribui às estruturas geradas pelo sistema computacional a sua informação fonológica, a qual aparece listada no Vocabulário (a lista 2) juntamente com a informação contextual para a sua inserção. Simultaneamente, na ramificação em LF, a Enciclopédia (a lista 3) fornece às estruturas o seu conteúdo semântico não composicional, extralinguístico, por meio de instruções contextuais para a sua interpretação. Portanto, diferentemente de modelos lexicalistas nos quais as palavras são os átomos da derivação sintática, na MD, os primitivos Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 945 sintáticos são as raízes (morfemas lexicais), desprovidas de categoria, e os feixes de traços gramaticais abstratos (morfemas funcionais). Desse modo, nos termos de Halle e Marantz (1994), há estrutura sintática hierárquica por toda derivação, ou seja, o sistema computacional articula desde morfemas até sentenças. Adicionalmente, conforme Embick (1997), os morfemas dissociados são nós sintáticos inseridos em MS apenas para dar conta das condições de boa formação morfológica específicas às línguas, sem qualquer relevância sintática ou semântica, tais como os morfemas de concordância e as vogais temáticas, entre outros. Com relação aos auxiliares como ir em (16a), eles são verbos puramente morfológicos, inseridos apenas em MS e, como tais, não estão presentes na sintaxe e, portanto, nem na computação em LF. Mais especificamente, na esteira de Medeiros (2008) e Rodrigues (2011), os verbos auxiliares são a realização fonológica de um Vaux inserido no componente morfológico para evitar que um núcleo funcional I ocorra separado de um verbo, fazendo com que a derivação imploda, já que as flexões verbais, em português, não ocorrem isoladamente. Quanto aos modais em (16b) e (16c), esta análise propõe que eles sejam igualmente tratados como verbos puramente morfológicos e que, da mesma forma que para ir, em MS seja projetado um Vaux para licenciar a sua boa formação. A ideia de que o verbo auxiliar é puramente morfológico valese de uma reformulação do princípio da dispersão de traços proposta por Ippolito (1999), segundo o qual cada traço de I pode nuclear uma projeção, isto é, para cada núcleo verbal presente na numeração, há um núcleo I. Porém, o contrário não é verdadeiro, ou seja, para Ippolito, não é o caso de que se um núcleo I estiver presente na numeração, então, um núcleo verbal deve aparecer. Nessa análise, cada traço flexional (tempo, aspecto, voz etc.) pode nuclear uma projeção, nomeada I1, I2, In. Segundo Ippolito, o movimento visível do verbo para I diz respeito somente ao primeiro núcleo I que o c-comanda. Quanto às demais projeções funcionais I, elas vão se distinguir configuracionalmente de acordo com a maneira como cada língua enfeixa os traços envolvidos na derivação das formas verbais, as quais podem sofrer variação inclusive a depender do tempo verbal. Essa configuração aparece ilustrada em (17) – cf. também Cinque (1999). 946 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (17) I1P I1[tempo] I2P I2[modo] I 3P I3[aspecto] I4P I4[voz] vo vP √ Na proposta de Ippolito, não é uma exigência sintática que cada núcleo I seja irmão de um núcleo verbal, é uma exigência morfológica; ou seja, é uma condição de boa formação morfológica específica a cada língua que I requeira uma projeção verbal. Portanto, a inserção de um verbo auxiliar (Vaux) ocorre em MS exatamente como a inserção de um nó de concordância (Agr). Assim, em última análise, verbos puramente morfológicos, como os auxiliares, são instâncias de morfemas dissociados. Dessa forma, como defendem Medeiros (2008) e Rodrigues (2011) para o português, a “coincidência fonológica” entre verbos auxiliares e verbos plenos – como ter e ir – é resultado da subespecificação desses itens de Vocabulário.6 Dadas essas considerações, a relação que se estabelece entre um infinitivo e o verbo auxiliar ir é, de imediato, diferente daquela que ocorre entre um infinitivo e um verbo pleno, como tentar, uma vez que os verbos auxiliares não estão presentes na sintaxe, apenas os traços que eles realizam. Diferentemente do que ocorre com os verbos plenos, cujas raízes estão presentes na sintaxe e são computadas como morfemas lexicais em oposição aos traços (que “se tornarão” verbos auxiliares em MS), que são morfemas funcionais. A respeito disso, tradicionalmente nas análises da estrutura verbal do PB,7 as informações de tempo, modo e aspecto aparecem enfeixadas em um único núcleo funcional na sintaxe – por exemplo, o núcleo T – e Uma análise alternativa pode ser encontrada em Moia (2018). Cf. Bassani e Lunguinho (2011) e Santana (2016) para a análise de algumas formas verbais sintéticas do português dentro do quadro da Morfologia Distribuída. 6 7 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 947 as informações de número e pessoa ocupam outro núcleo funcional – como Agr. Na proposta de Ippolito, o traço de tempo é o mais alto e, logo, está albergado no núcleo I imediatamente abaixo de CP. Contudo, como defende Medeiros (2008), o português não obedece à versão mais radical do princípio da dispersão de traços (como o italiano), e alguns tempos verbais, tais como o pretérito perfeito (simples), enfeixam os traços de tempo e aspecto sob o mesmo nó. Assim, no que concerne aos traços relevantes para o presente estudo, esta análise propõe que o núcleo I mais alto da derivação alberga o traço de tempo e de aspecto, e o núcleo I intermediário aloca o traço de modo; mais abaixo, há o núcleo verbalizador vo e, então, a raiz, conforme ilustrado em (18). (18) I 1P I1[futuro] I2P I2[modo] vo vP √ No que concerne aos traços presentes nesses núcleos, em uma sentença como (16a), a interpretação temporal de futuridade é resultado da presença de um traço de tempo [futuro] enfeixado juntamente com o aspecto. Com relação ao modo, muitos trabalhos, tais como Abusch (2004), Lunguinho (2006, 2011) e Wurmbrand (2007, 2014), defendem que construções que indicam futuridade albergam um traço de modo [irrealis], que é responsável pela interpretação de “não realizado”. Para Elliott (2000), uma proposição irrealis implica prototipicamente que um evento pertence ao domínio do imaginário e do hipotético e, como tal, constitui um evento possível ou em potencial, embora não seja um fato observável da realidade. No que tange especificamente à derivação, como alegam Ippolito (1999) para o italiano e Medeiros (2008) para o português, antes de spellout, o núcleo verbal se move para o núcleo I que o c-comanda (no caso, I2), o qual alberga o traço de modo [irrealis]. Sendo assim, a estrutura sintática básica para uma construção que indica futuridade, depois do movimento, aparece em (19). 948 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (19) I1P I1[futuro] I2P √ + vo + I2[irrealis] Adicionalmente em MS, quando a derivação sofre spell-out, são inseridos os morfemas dissociados responsáveis pelas condições de boa formação morfológica do português, a saber, conforme Ippolito (1999) a cada núcleo I é adjungido um morfema de concordância (um núcleo Agr) e segundo Harris (1999) a cada vo é adjungido uma posição temática que aloca a vogal temática verbal (τ). Adicionalmente, a condição de boa formação morfológica de que para cada I há um núcleo verbal é satisfeita ao ser projetado um Vaux para o nó I1. Assim sendo, a derivação em MS de (19) para uma sentença como vamos dormir aparece ilustrada em (20). I1P (20) I2P I1[futuro] Vaux v- I1 I1 √ Agr -amos vo dor- Ø + vo + τ I2 -i- -r I2[irrealis] Agr Ø Na derivação em (19)-(20), primeiramente a raiz do verbo pleno √dorm se move para o núcleo vo, formando um nó vP; em seguida, esse vP se move para o núcleo I que o c-comanda: I2, que alberga o traço de modo irrealis, deixando I1 sem nenhum verbo na sintaxe. Na ramificação em PF, em MS, uma posição temática τ é adjungida a vo e projeta a vogal temática -i- da 3ª conjugação;8 adicionalmente, um morfema Vaux é adjungido a I1 para que a flexão de tempo não ocorra isoladamente. Além disso, com relação aos morfemas Agr adjungidos aos núcleos I, Ippolito (1999) e Medeiros (2008) defendem que os núcleos A melhor maneira de implementar teoricamente a relação entre uma dada raiz e a sua vogal temática ainda é motivo de debate na literatura e não é contemplada neste trabalho, cf. Resende e Santana (no prelo) para discussão e referências. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 949 I mais baixos (isto é, qualquer núcleo I abaixo de I1) têm uma realização default e, conforme a nossa proposta, o núcleo I2 alberga o traço de modo [irrealis]. Segundo Elliott (2000), nem todas as línguas em que a oposição realis e irrealis existe marca-a gramaticalmente, por isso, dado que não há nenhum item de Vocabulário que realize o traço de modo – e, em especial, o modo irrealis – em português, este trabalho defende que /r/ é a realização default do nó I e, portanto, é a realização do modo irrealis nessas construções. Assim, na inserção de Vocabulário, o Vaux que realiza o traço de futuro é /ir/, e o item de Vocabulário que realiza o traço irrealis é o item default /r/. Cumpre notar que, seguindo Rodrigues (2011), um item de Vocabulário como /ir/ é subespecificado, podendo ocorrer tanto em um contexto em que funciona como um auxiliar (realizando Vaux) quanto em um contexto em que figura como verbo pleno (nesse caso, a realização de uma raiz). Isso quer dizer que a mesma forma morfofonológica não é sinônimo de um compartilhamento de (todos) traços sintáticos e semânticos. Além disso, ao considerar /r/ como a realização default do núcleo I, é possível explicar a alta produtividade do morfema de infinitivo. Em síntese, a estrutura dos infinitivos que ocorrem com o auxiliar de futuro ir é √ + vo + τ + I + Agr, em que √ é o morfema lexical, vo é o núcleo verbalizador (responsável pela verbalização da raiz), τ é a vogal temática verbal (que indica a conjugação à qual o verbo pertence), I é o núcleo que alberga o traço de modo irrealis, realizado por /r/ – o item de Vocabulário default – e Agr é o morfema de concordância, com realização fonológica Ø. Portanto, na presente análise, os infinitivos que ocorrem com verbos auxiliares de futuro são, de fato, atemporais, na esteira de Wurmbrand (2007, 2014), isto é, não contêm nenhum traço de tempo. O traço de futuro é realizado pelo Vaux, e o núcleo I ao qual a projeção verbal vP (ou seja, √ + vo + τ) aloca o traço de modo irrealis (realizado por /r/). Adicionalmente, por meio do tratamento proposto é possível recuperar a ideia de atomicidade sintática do complexo “ir + infinitivo”, já que, nessa análise, há, de, fato, apenas um verbo na sintaxe. Pondo de lado esses casos, no que toca aos auxiliares modais dever e poder, não é consenso que eles sejam, de fato, puramente gramaticais ou que elas tenham o mesmo “grau de auxiliaridade” que ir e ter, por exemplo. Seja como for, o interesse principal deste artigo é mostrar que os infinitivos que ocorrem com ir e os que ocorrem com dever 950 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 e poder têm as mesmas propriedades e, em última análise, acionam o modo irrealis. Por essa razão, este trabalho assume que dever e poder são verbos auxiliares e, como tais, no quadro da MD, são verbos puramente morfológicos, inseridos somente em MS.9 A ideia de que os itens modais são núcleos funcionais sintáticos, dentro da MD, não é nova. Oltra-Massuet (2014), por exemplo, defende que as diferentes leituras modais presentes nas estruturas vêm da presença de um núcleo ModP. Na esteira de Oltra-Massuet (2014), Resende, Rech (no prelo) argumentam que a força modal dos modalizadores (qual seja, possibilidade ou necessidade) resulta de uma especificação de traço do núcleo Modo. Nessa perspectiva, então, os auxiliares modais não seriam morfemas lexicais (raízes), mas sim, a realização de um núcleo Modo, em que /dev/ realizaria o traço (isto é, a força modal) de necessidade (□) e /pod/ realizaria o traço de possibilidade (◊), da mesma sorte que / ir/ realiza o traço [futuro], como mostrado. Assim sendo, se o princípio de dispersão de traços de Ippolito (1999) for estendido para abranger traços modais quanto traços de I, (21) aponta para uma configuração sintática semelhante àquela subjacente à construção de futuridade com ir. (21) I1P I1[modal] I2P vP I2[modo] vo √ Seguindo o mesmo raciocínio daquele para o verbo ir e considerando somente os núcleos relevantes, o que a estrutura em (21) mostra é que há a mesma configuração sintática entre o I mais baixo (que vai se concatenar com vo + √, formando o complexo que vai albergar o Como lembrou um dos pareceristas anônimos, é verdade que nem todas as leituras modais (sobretudo epistêmica versus deôntica) têm as mesmas propriedades sintáticas. Todavia, por motivos de espaço e escopo, o presente trabalho trata os modais indistintamente, mas entende a importância de verificar, em maior detalhe, as consequências da presente análise para os diferentes tipos de leitura modal – o que deve ser feito em trabalhos futuros. 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 951 traço de modo irrealis) e o I mais alto (que vai receber um Vaux em MS, sendo o responsável por realizar o item funcional como um verbo auxiliar, dever ou poder, a depender da especificação do traço. Em síntese, a proposta defendida nesta seção tem três vantagens, a saber, (i) captura a intuição de que ir, dever e poder formam uma única unidade sintática com seus infinitivos, já que eles são realizações de um conjunto de traços de uma mesma projeção (ou seja, I); (ii) motiva a semelhança semântica entre ir, dever e poder, uma vez que esses três verbos realizam traços imediatamente relacionáveis ao traço de modo [irrealis]; (iii) explica por que é a forma de infinitivo que aparece nesses casos, dado que /r/ é a realização default do traço I, uma vez que o português é uma língua que não marca morfologicamente a distinção entre modo realis e irrealis. Assim, a análise proposta nesta seção tentou mostrar que a única propriedade presente, de fato, na forma do infinitivo que ocorre com ir, dever e poder é a de modo irrealis, a qual é realizada pelo item de Vocabulário (default) /r/. Além disso, é possível capturar tanto a “dependência morfossintática” desses verbos com a classe de infinitivos quanto a interpretação de futuridade presente nas construções de futuro e nas modais. 3 A sintaxe externa dos infinitivos que ocorrem com ir, dever e poder Na introdução, foi afirmado que o objetivo principal deste estudo era mostrar que, independentemente da implementação teórica que se desse à relação dos verbos ir, dever e poder com seus infinitivos, as propriedades desse subgrupo de infinitivos (isto é, a dependência morfossintática e leitura de modo irrealis) seriam capturadas. Além disso, na seção anterior, foi apresentada uma proposta de qual é a constituição interna desses infinitivos e de como implementá-la teoricamente à luz dos pressupostos teóricos da Morfologia Distribuída. Assim, de modo complementar, o objetivo desta seção é mostrar como é a relação sintática do auxiliar ir e dos modais dever e poder sob a ótica de sua sintaxe externa, ou seja, na relação com os outros elementos da sentença. Para tanto, esta seção assume os pressupostos da versão lexicalista do Programa Minimalista (PM) (CHOMSKY, 1993, 1995, 2000). Cumpre notar que, ainda que se trate de um modelo lexicalista, o mesmo conjunto de propriedades pode ser capturado. Dessa forma, não 952 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 é o caso de que uma proposta lexicalista e uma não lexicalista sejam necessariamente excludentes, mas sim, complementares na medida em que ambas sinalizam a existência do mesmo conjunto de fenômenos empíricos. Além da assunção do léxico como um componente gerativo, a característica que mais diverge entre a MD e o PM é a de que, diferentemente da MD, de acordo com a análise defendia na seção anterior, o verbo auxiliar é requerido na sintaxe para licenciar uma forma nominal adequada. Assim, partindo da ideia de que uma expressão linguística é resultado de um par (π, λ) que interage entre si, a partir da interface de uma representação em PF (som) com uma representação em LF (significado), no PM, o sistema computacional mapeia um conjunto de itens lexicais para esses dois componentes. Esse conjunto de itens lexicais é denominado numeração (N), definido por Chomsky (1995) como um conjunto de pares (IL, i), em que “IL” é um item lexical e “i” é o seu índice, de tal forma que o índice representa o número de vez em que IL é selecionado. Quando o IL é selecionado para compor o espaço de trabalho da derivação, esse índice é reduzido até que todos os índices sejam zero, isto é, até que todos os itens da numeração sejam inseridos na derivação. Disso se segue que não pode haver nada em PF nem tampouco em LF que não esteja em N – o que Chomsky (1995) denominou condição de inclusividade.10 A derivação começa quando o item é inserido no espaço de trabalho da sintaxe, a partir da operação de seleção. Como a sintaxe não trabalha com um único item lexical, essa seleção é, de certa forma, recursiva, na medida em que vários itens lexicais são introduzidos no campo de trabalho, sendo concatenados. Cada vez que uma operação é aplicada, um passo da derivação é estabelecido. Considerando N em (22a), o primeiro passo da derivação é a seleção de come e jiló. Em seguida, a operação de concatenação é aplicada, e come jiló é formado. Como o núcleo dessa estrutura é come, cujos traços são um V, é essa etiqueta que será projetada na estrutura sintática – cf. (22). Assim, a projeção depende exclusivamente dos traços do núcleo. A condição de inclusividade prevê que um objeto λ em LF seja construído somente a partir de traços dos itens lexicais de N (CHOMSKY, 1995, p. 228-229). 10 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 953 (22) (a) N = {come0, v1, Pedro1, jiló0} (b) VP V DP come jiló Uma vez que, nesse modelo, a sintaxe é derivada a partir de traços formais de IL, além do item lexical ter o seu traço categorial, como a categoria DP em jiló, os ILs têm traços relacionados a Caso, papel temático, traços temporais (quando verbos) etc. Intuitivamente, o falante de PB reconhece que jiló tem um traço [masculino] e um traço [singular]. Assim, o que explica a agramaticalidade de *Pedro come jiló estragadas é a evidência de que os traços de estragadas não são os mesmos traços de jiló, uma vez que se trata de [feminino] e [plural], isto é, aparentemente, os traços dos itens lexicais precisam concordar (agree) entre si. Esse tipo de relação pode ocorrer com traços-φ (traços de pessoa, número, gênero), traços de Caso (nominativo, acusativo etc.), traços categoriais (N, V, Aux, D) e traços TAM (tempo, modo, aspecto). Para Chomsky (2000), essa regra de concordância chamase Agree, que é formalmente definida11 por uma operação sintática que ocorre entre uma sonda P e um alvo G, havendo uma relação de combinação de traços. Em outras palavras, Agree ocorre entre α e β, se α possuir traços interpretáveis e β traços não interpretáveis, os quais são apagados nessa operação. Entretanto, esta seção assume a proposta de Pesetsky e Torrego (2007) para o sistema de valoração de traços de Chomsky (2000, 2001). Nela, um traço F pode ter ou não um valor B qualquer (quando valorado, [B], e quando não valorado, vazio [ ]) e pode ser interpretável (i) ou não interpretável (u). Dessa combinação, chega-se ao arranjo em (23). Na verdade, a regra é definida como exposto, a seguir (CHOMSKY, 2000, 2001): Agree: (i) um traço não valorado F (uma sonda) em um núcleo H sonda o seu domínio de c-comando por outra instância de F (um alvo) com quem concorda; (ii) se o alvo tem um valor, seu valor é atribuído ao valor da sonda. 11 954 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (23) (a) F interpretável e valorado: iF[B]. (b) F interpretável e não valorado: iF[ ]. (c) F não interpretável e valorado: uF[B]. (d) F não interpretável e não valorado: uF[ ]. Assim, em uma relação entre XP e YP, tal que X c-comanda Y, o núcleo Y tem um traço uX não interpretável que participa de uma relação de agree com o traço X de XP. Como X c-comanda Y, seu traço X deve ser uma sonda. Dessa maneira, X em XP deve ser um traço iX interpretável, não valorado, agindo como uma sonda. Igualmente, X em Y é um traço não interpretável que é valorado, agindo como um alvo. Pelo princípio de interpretabilidade plena, o traço não valorado deve ser apagado o mais rápido possível (esse apagamento é indicado por uX), para que a estrutura convirja em LF. (24) Agree ... X iX[ ] ... [Y Y] ... uX[B] ⇒ .. X ... [Y Y] iX[B] uX[B] Especificamente no que diz respeito aos auxiliares, segundo Lunguinho (2011), eles devem ter um traço uV para garantir que o seu complemento seja um verbo lexical: uma vez que uV precisa ser checado, de acordo com o princípio da interpretabilidade plena, a única maneira de esse traço ser apagado é por meio da concatenação de um item lexical que porte um traço iV. Assim, o auxiliar entra na derivação com um traço uV que age como uma sonda à procura de um alvo ativo e, quando o encontra – o qual porta traços iV[F] – a operação de Agree é estabelecida. Sendo assim, em relação ao verbo ir, este trabalho assume que ele vem da numeração portando um traço uV[ ] que é valorado a partir da relação de agree com um verbo lexical, que porta traços iV[irrealis]. Dessa maneira, o auxiliar licencia a forma não finita do XP complemento e valora um traço [irrealis], realizado pelo infinitivo no componente morfológico. 955 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 No presente trabalho, o traço [irrealis] está sendo entendido como um traço que veicula uma leitura de evento em potência para acontecer em algum momento futuro, nos moldes de Roberts (1990) e Elliott (2000). Assim, a diferença entre está chovendo e vai chover é a de que o primeiro apresenta um evento observável no tempo presente, enquanto o segundo evento ainda não ocorreu, muito embora seja um evento em potência. Portanto, assumindo que o infinitivo carrega um traço [irrealis], é possível, por exemplo, explicar contextos em que a associação a um evento potencial é mantida, porém, a leitura tempo-aspecto-modal (TAM) não é a de futuridade, mas a de prospecção,12 Pondo de lado esses casos, a derivação de uma sentença no futuro13 (25a), até a inserção do auxiliar aparece representada em (25c), a partir da sua numeração em (25b). (25) (a) João vai ganhar as eleições. (b) N = {{ganhar1(+V; iV[irrealis]), João1(P:3; N:SG), v1(FORTE-V)}, {vai1(Aux, uV[ ], uI[Futuro])}, as1(P:3, :PL), eleições1(P:3; N:PL), C, I} (c) AuxP Aux vP vai uV[irrealis] DP v’ uI[futuro] João v0 VP ganhar iV[irrealis] V DP Agree <ganhar> iV[irrealis] as eleições Cf. Araújo-Adriano (no prelo-a) para uma análise do aspecto prospectivo no português brasileiro e Cinque (1999) para uma descrição mais abrangente. 13 Para uma análise alternativa, cf. Lunguinho (2011) e Araújo-Adriano (no prelo-b). 12 956 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 Após a formação do DP as eleições, o infinitivo ganhar com traços iV[irrealis] é selecionado da numeração e concatenado com o DP. Por ser um núcleo, ganhar projeta V. Em seguida, v é selecionado de N e inserido na derivação, projetando v. Após a inserção do DP João, V se move para o núcleo de v (esse movimento está sinalizado por <ganhar>), já que v tem um traço-V forte. Além disso, esse movimento é requerido para que ganhar fique visível para as futuras operações sintáticas. Posteriormente, o auxiliar ir é inserido com seus traços uV[ ], agindo como uma sonda à procura de um alvo ativo, e ir encontra iV[irrealis] e a relação de Agree é estabelecida, em uma relação local, licenciando um VP infinitivo. Como apontado anteriormente, o infinitivo precisa se mover de V para v não só para atuar na seleção semântica do seu argumento externo, uma vez que o auxiliar não o faz – cf. (11) – mas também pela condição de impenetrabilidade da fase, ou seja, para que ocorra Agree entre o auxiliar e o infinitivo, é necessário que este saia do domínio da Fase (VP) e se mova para o núcleo da Fase (v), ficando visível para a operação Agree. Esquematicamente, a condição de impenetrabilidade da fase aplicada a (25c) está representada em (26). (26) Condição de Impenetrabilidade de Fase: HP = vP α = DP H’ = v’ H=v β = VP Em (25), HP é uma Fase com núcleo H, β é o domínio de H, e α é a borda da Fase. Sendo H o núcleo de uma Fase, o seu domínio não é acessível a operações fora dessa Fase. Apenas H e sua fronteira são acessíveis a essas operações. A condição de impenetrabilidade de fase também resvala no fato de que os auxiliares não conseguem ter como complemento um CP, como observado em (5), repetido em (27) por conveniência. Uma vez que CP é considerado uma Fase, o verbo lexical não estaria disponível para estabelecer uma relação de agree com o auxiliar. Sendo assim, não haveria licenciamento da forma não finita, além de que Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 957 o traço não interpretável uV[ ] do auxiliar não seria checado, levando a derivação à implosão. (27) a. *Políticos vão [CP que considerar os requerimentos do povo]. b. AuxP Aux CP vão uV C TP que v0 Agree considerar ... iV Nesse sentido, pode-se dizer que os infinitivos selecionados pelos auxiliares são atemporais, nos moldes de Wurmbrand (2007, 2014). Para que uma estrutura seja temporal, é necessário que um CP seja concatenado, uma vez que Chomsky (2000) assume que os traços pertencentes a I são, na verdade, herdados de CP. Mais especificamente, I14 manifesta os traços de tempo se e somente se ele for selecionado por C, caso contrário, está-se diante de um verbo de alçamento, que carece de traços-φ e de tempo (CHOMSKY, 2008). Dessa forma, pela condição de impenetrabilidade de fase de Chomsky (2000, 2001), I, dentro da Fase de CP, é inacessível para operações. Portanto, o auxiliar, que porta um traço verbal não interpretável, uV, não consegue sondar um alvo capaz de checar seus traços, já que a operação de Agree não penetra uma Fase CP, como mostrado em (30). Por questão de uniformização notacional, I está sendo empregado, nesta seção, para representar o núcleo que alberga traços de Tempo, Aspecto e Modo, comumente rotulado como T. 14 958 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 (28) Condição de impenetrabilidade de fase violada AuxP Aux vai uV C Agree CP TP vP V ganhar iV Como o infinitivo não possui traços de tempo, a leitura de futuridade expressa por (25a) seria licenciada a partir do traço temporal [futuro] no auxiliar. Assim, este trabalho assume, como na seção anterior, que ir tem traços uI[futuro], e sua contraparte em I tem traços iI[ ] não valorados. A derivação de (25c) teria os seus próximos passos demonstrados em (29), a partir da inserção do auxiliar. (29) I DP I João I AuxP Aux I Aux vP iI[futuro] vai <vai> uV[irrealis] DP v’ uV[irrealis] uI[futuro] uI[futuro] <João> VP v0 ganhar iV[irrealis] V DP <ganhar> iV[irrealis] as eleições Adicionalmente, a interpretação de evento em potencial seria consequência da operação de Agree estabelecida entre Aux e I. Quando Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 959 I é inserido, seu núcleo carrega um traço iI[ ] não valorado. A valoração deve ocorrer por meio de Agree: o traço iI[ ] atua como uma sonda e encontra o traço uI[futuro] do auxiliar. Por ele ser não interpretável, esse traço está ativo para a computação sintática. Agree é estabelecida e iI em I é valorado como [futuro], e o traço uI de Aux é checado. Após essa operação, ocorre movimento de Aux para I (esse movimento está sinalizado por <vai>), satisfazendo o traço EPP de I. Quando enviada para spell-out, a estrutura é associada a um evento futuro. À vista disso, na presente análise, os infinitivos que ocorrem com o auxiliar ir são, de fato, atemporais – na esteira de Wurmbrand (2007, 2014) – isto é, não contêm nenhum traço temporal, uma vez que I bloquearia a operação de Agree que licencia a forma não finita. O traço de futuro (no caso de ir) é realizado pela interação dos traços uI[futuro] de Aux e dos traços iI do núcleo I, por meio de agree. Assim, Aux valora os traços de I, traços esses que vão ser relacionados com uma leitura de futuridade. Diferentemente de Lunguinho (2011), a presente análise consegue derivar as estruturas de futuro de uma forma mais econômica, o que já tinha sido apontado como uma vantagem por Roberts e Roussou (2003), quando os autores argumentam que uma estrutura com menor ocorrência de traços é mais simples. Desse modo, um item lexical que realiza os traços X e Y é mais complexo que um item que realiza somente X, sendo sua derivação, portanto, mais custosa. Lunguinho (2011) propõe que uma sentença no futuro é derivada a partir de três traços: um traço com força modal [posterioridade], um traço temporal [presente], ambos referentes à relação Aux-I, e um traço [irrealis] que subcategoriza o seu complemento verbal como infinitivo, pela relação Aux-v. Assim, a presente proposta torna-se mais econômica, na medida em que somente dois traços são necessários para derivar (25a): um traço de subcategorização [irrealis], pela relação Aux-v, e um traço [futuro] associado a um evento posterior ao momento da fala, pela relação Aux-I. Quanto aos modais, Pontes (1973), Lobato (1975) e Lunguinho (2011) defendem que dever e poder não são verbos auxiliares, sendo até mesmo considerados por Lobato como verbos auxiliantes. Diferentemente desses autores, esta seção assume Ferreira (2009) para quem os dois verbos modais possuem as mesmas características sintáticas, e, a partir disso, esta seção defende que os modais, diferentemente de outros 960 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 auxiliares, nucleiam uma projeção ModP15 (como na seção anterior), que c-comanda imediatamente vP. No mesmo molde da derivação de (25a), os modais entram na numeração portando um traço uV[ ], que seleciona necessariamente uma projeção verbal e um traço iI[futuro], associado à leitura de futuridade,16 como mostrado em (30). I (30) DP I O João I Mod pode ModP I Mod vP <pode> uV[irrealis] uV[irrealis] DP v’ uI[futuro] uI[futuro] <João> VP v0 ganhar Agree iV[irrealis] V DP <ganhar> iV[irrealis] as eleições iI[futuro] Dessa maneira, os infinitivos que ocorrem com os verbos ir e os modais dever e poder possuem uma sintaxe externa semelhante, uma vez que (i) possuem um traço categorial [+V], (ii) se movem do domínio da Fase (Vo) para o núcleo da Fase (vo), ficando acessíveis para operações sintáticas, (iii) devem ser atemporais, na medida em que sua estrutura não comporta um I, uma vez que, nos moldes de Chomsky (1995), se há I, consequentemente também, há C (uma Fase). Neste artigo, os modais estão sendo tratados como uma classe unitária, nucleando ModP. Porém, como já mencionado na nota 9, por motivos de espaço e escopo, as consequências da presente análise para os diferentes tipos de leitura modal, como as diferenças entre os modais de raiz (que são orientados para o futuro) e os epistêmicos, não estão sendo exploradas neste trabalho, mas merecem ser retomados em trabalhos futuros. 16 Para uma análise em que os modais disparam uma leitura de futuro, cf. Lunguinho (2006). 15 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 961 4 Considerações finais O objetivo central deste artigo foi o mapeamento das propriedades da subclasse de infinitivos que co-ocorrem com os verbos ir, dever e poder, dentre as quais se destacam (i) a constituição de uma única unidade sintática, (ii) a dependência morfossintática entre um verbo funcional e uma forma infinitiva, (iii) a interpretação de evento em potencial. E este trabalho tentou capturar essas três propriedades à luz de duas propostas teóricas, com vistas a mostrar que, independentemente da teoria que se assume, é possível capturar as mesmas generalizações empíricas. Assumindo a visão lexicalista do PM, a possibilidade de constituir a mesma unidade sintática entre o auxiliar/modais e a forma não finita é capturada pela análise em que Aux/Mod e v fazem parte da mesma Fase CP, possibilitando, pois, que operações fora da Fase v sejam aplicáveis à sua borda e ao seu núcleo. Dentro desse quadro teórico, a c-seleção do auxiliar/modal, ou seja, a sua dependência morfossintática é mediada a partir do traço uV desses verbos que só é eliminada a partir da concatenação de um item com uma natureza verbal. A leitura de futuridade é estabelecida a partir da combinação do traço [irrealis], realizado pela forma infinitiva, e o traço de [futuro], carregado pelos verbos ir, poder e dever. Dessa maneira, quando enviada para LF, a estrutura é interpretada como um evento que tem potência para acontecer em um momento após o momento da fala, como em João vai cantar. Assim, assumindo que o infinitivo carrega um traço [irrealis], é possível, por exemplo, empregá-lo em contextos em que a associação a um evento potencial é mantida, porém, a leitura que se obtém não é a de futuridade, mas a de prospecção. Por outro lado, assumindo a MD, a unicidade sintática é capturada por meio da postulação de um único complexo √ + vo + I, em que cada traço de I pode nuclear uma projeção, e os verbos ir, dever e poder são, na verdade, a realização dos traços de futuro, de necessidade e possibilidade respectivamente que só assumem uma forma verbal, em MS. Nessa proposta, a dispersão dos traços de tempo e de modalidade para um núcleo I diferente do núcleo de modo captura a dependência morfossintática, no sentido de que os traços funcionais mais altos vão ser realizados por verbos auxiliares ao passo que os mais baixos vão aparecer como núcleos justapostos ao morfema lexical. 962 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 Finalmente, a interpretação de evento em potencial é capturada pela presença do traço [irrealis], o qual é realizado pelo item de Vocabulário default /r/. Adicionalmente, ao assumir que /r/ é a realização default do núcleo I, é possível explicar a multiplicidade de ocorrências da forma infinitiva em diferentes contextos (ainda que a exploração de cada um dos outros empregos dos infinitivos, sob essa perspectiva, é deixada para trabalhos futuros. Agradecimentos Agradeço ao CNPq pelo financiamento da minha pesquisa de Doutorado, Maurício Resende, processo No 141644/2016-8. Agradeço à CAPES pelo financiamento da minha pesquisa de Mestrado, Paulo Ângelo, código de financiamento 001. Agradecemos aos dois pareceristas anônimos pelas observações e sugestões ao nosso trabalho. Ainda que nem todas puderam ser contempladas neste artigo, elas serão levadas em consideração em trabalhos futuros. Contribuição dos autores Nós declaramos que a redação do texto bem como a elaboração dos diagramas arbóreos foi integralmente feita pelos dois autores. Como se trata de um trabalho de interface, o primeiro autor ficou mais responsável pela implementação teórica à luz da Morfologia Distribuída (na seção 2) e o segundo, pelo tratamento teórico ancorado nos pressupostos lexicalistas do Programa Minimalista (na seção 3). As demais seções foram produto de discussões dos dois autores e redigidas em conjunto. Referências ABUSCH, D. On the Temporal Composition of Infinitives. In: GUÉRON, J.; LACARME, J. (Ed.). The syntax of time. Cambridge: MIT, 2004. p. 27-53. ALEXIADOU, A.; IORDӐCHIOAIA, G.; SCHÄFER, F. Scaling the Variation in Romance and Germanic Nominalizations. In: SLEEMAN, A. P.; PERIDON, H. (Ed.). The Noun Phrase in Romance and Germanic. Amsterdam: John Benjamins, 2011. p. 25-40. Doi: https://doi.org/10.1075/ la.171.04ale Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 963 ARAÚJO-ADRIANO, P. Â. De lexical a verbo funcional: uma análise formal para as três fases do verbo ir na diacronia do PB. [No prelo-a]. ARAÚJO-ADRIANO, P. Â. On the Partial Loss of Verb Movement in Brazilian Portuguese: the Analyticization of Future Tense. [No prelo-b]. BASSANI, I. de S.; LUNGUINHO, M. V. Revisitando a flexão verbal do português à luz da Morfologia Distribuída: um estudo do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. ReVEL, Porto Alegre, edição especial, n. 5, p. 1-29, 2011. BOŠKOVIĆ, Ž. Selectional and the Categorial Status of Infinitival Complements. Natural Language and Linguistic Theory, Dordrecht, v. 14, n. 2, p. 269-304, 1996. Doi: https://doi.org/10.1007/BF00133685 BRITO, A. M. A nominalização do infinitivo em português europeu. Aspectos sintáticos e semânticos. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LINGUÍSTICA, 27., 2012, Lisboa. Textos selecionados... Lisboa: APL, 2012. p. 98-120. CHOMSKY, N. A Minimalist Program for Linguistic Theory. In: HALE, K.; KEYSER, S. J. (Org.). The view from Building 20. Cambridge: MIT, 1993. p.1-52. CHOMSKY, N. Derivation by phase. In: KENSTOWICZ, M. (Org.). Ken Hale: A Life in Language. Cambridge: MIT, 2001. p. 1-52. CHOMSKY, N. Minimalist Inquiries: the Framework. In: MARTIN, R.; MICHAELS, D.; URIAGEREKA, J. (Org.). Step by Step: Essays on Minimalist Syntax. Cambridge: MIT, 2000. p. 89-155. CHOMSKY, N. On phases. In: FREIDIN, R.; OTERO, C.; ZUBIZARRETA, M. L. (Org.). Foundational Issues in Linguistic Theory: Essays in Honor of Jean-Roger Vergnaud. Cambridge: MIT, 2008. p. 133166. Doi: https://doi.org/10.7551/mitpress/9780262062787.003.0007 CHOMSKY, N. The Minimalist Program. Cambridge: MIT, 1995. CINQUE, G. Adverbs and Functional Heads: A Cross-Linguistic Perspective. New York: Oxford University, 1999. ELLIOTT, J. R. Realis and Irrealis: Forms and Concepts of the Grammaticalization of Reality. Linguistic Typology, Berlin, v. 4, n. 1, p. 55-90, 2000. Doi: https://doi.org/10.1515/lity.2000.4.1.55 964 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 EMBICK, David. Voice Asymmetries and the Syntax/Morphology Interface. MIT Working Papers in Linguistics, Cambridge, v. 32, 1997. FERREIRA, N. Auxiliares: uma subclasse dos verbos de reestruturação. 2009. 193 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. GONÇALVES, A. Aspectos da sintaxe dos verbos auxiliares do português europeu. In: GONÇALVES, A.; COLAÇO, M.; MIGUEL, M.; MÓIA, T. (Org.). Quatro estudos em sintaxe do português. Lisboa: Colibri, 1996. p. 7-51. GONÇALVES, A.; COSTA, T. (Auxiliar a) compreender os verbos auxiliares. Lisboa: Edições Colibri, 2002. HALLE, M.; MARANTZ, A. Distributed Morphology and the Pieces of Inflection. In: HALE, K.; KEYSER, J. (Ed.). View From the Word Building 20. Cambridge: MIT, 1993. p. 111-176. HALLE, M.; MARANTZ, A. Some key features of Distributed Morphology. MIT Working Papers in Linguistics: Papers in Phonology and Morphology, Cambridge, v. 21, p. 275-288, 1994. HARRIS, James. Nasal Depalatalization ‘No’, Morphological WellFormedness ‘Si’: The Structure of Spanish Word Classes. MIT Working Papers in Linguistics. Cambridge, v. 33, p. 47-82, 1999. IPPOLITO, M. On the Past Participle Morphology in Italian. MIT Working Papers in Linguistics. Cambridge, v. 33, p. 111-137, 1999. LARSON, R. S., DEN DIKKEN, M.; LUDLOW, P. Intensional Transitive Verbs and Abstract Clausal Complementation. 1997. [Manuscrito] LOBATO, L. M. P. Os verbos auxiliares em português contemporâneo: critérios de auxiliaridade. In: LOBATO, L. M. P. et al. Análises linguísticas. Petrópolis: Vozes, 1975. LUNGUINHO, M. V. da S. Dependências morfossintáticas: a relação verbo-auxiliar-forma nominal. Revista de Estudos Linguísticos, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 457-489, 2006. LUNGUINHO, M. V. da S. Verbos auxiliares e a sintaxe dos domínios não finitos. 2011. 225 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 965 MARANTZ, A. Sem escapatória da sintaxe: não tente fazer análise morfológica na privacidade do seu próprio léxico. ReVEL, Porto Alegre, v. 13, n. 24, p. 8-33, [1997], 2015. MEDEIROS, A. B. de. Traços morfossintáticos e subespecificação morfológica na gramática do português: um estudo sobre as formas participiais. 2008. 315f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. MOIA, T. On the Semantics of the Temporal Auxiliary Verb ‘Ir’ (‘Go’) in Portuguese. Syntaxe & Sémantique, Caen, n. 19, p. 147-177, 2018. Doi: https://doi.org/10.3917/ss.019.0147 OLTRA-MASSUET, I. Deverbal Adjectives at the Interface: A CrossLinguistic Investigation into the Morphology, Syntax and Semantics of ‘-Ble’. Mouton: De Gruyter, 2014. PESETSKY, D.; TORREGO, E. The Syntax of Valuation and the Interpretability of Features. In: KARIMI, S.; SAMIIAN, V.; WILKINS, W. (Ed.). Phrasal and Clausal Architecture: Syntactic Derivation and Interpretation. Amsterdam: John Benjamins, 2007. p. 262-294. Doi: https://doi.org/10.1075/la.101.14pes PONTES, E. Verbos auxiliares em português. Petrópolis: Vozes, 1973. RESENDE, M. S. Por uma releitura das nominalizações em infinitivo do português. Caderno de Squibs, Brasília, v. 2, n. 2, p. 26-37, 2016. RESENDE, M. S. Por uma tipologia dos infinitivos em português. Trabalho apresentado no evento Teses em Andamento, n. 24., 22-23 out. 2018. Unicamp, Campinas, 2018. [Não publicado] RESENDE, M. S.; RECH, N. Uma análise para os adjetivos em ‘-vel’ do português à luz da Morfologia Distribuída. [No prelo]. RESENDE, M. S.; SANTANA, B. P. A relação entre raízes, gênero, classe e significado. [No prelo]. ROBERTS, I.; ROUSSOU, A. Syntactic Change: A Minimalist Approach to Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University, 2003. Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9780511486326 966 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 935-966, abr./jun. 2019 ROBERTS, J. Modality in Amele and Other Papuan Languages. Journal of Linguistics. Cambridge, v. 26, n. 2, p. 363-401, 1990. Doi: https://doi. org/10.1017/S0022226700014717 RODRIGUES, A. de B. Traços de tempo e aspecto e subespecificação morfológica do auxiliar ‘ir’ em construções no futuro do presente e no futuro do pretérito. Revista de Estudos Linguísticos, Belo Horizonte, v. 19, n. 2, p. 215-239, 2011. Doi: https://doi.org/10.17851/22372083.19.2.215-239 SANTANA, B. P. Os futuros do indicativo: por uma análise sintática para a flexão verbal do português brasileiro. Caderno de Squibs, Brasília, v. 2, n. 1, p. 43-53, 2016. SCHWARZ, F. On Needing Propositions and Looking for Properties. In: GIBSON, M; HOWELL, J. (Ed.). Proceedings of Semantics and Linguistic Theory XVI. Ithaca: Cornell University, CLC Publications, 2006. p. 259-276. Doi: https://doi.org/10.3765/salt.v16i0.2946 SLEEMAN, P. The Nominalized Infinitive in French: Structure and Change. Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto. Porto, v. 5, p. 145-173, 2010. STOWELL, T. The Tense of Infinitives. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 13, n. 3, p.561-570, 1982. WURMBRAND, S. Infinitives Are Tenseless. UPenn Working Papers in Linguistics, Filadelfia, v. 13, n. 1, p. 407-420, 2007. WURMBRAND, S. Tense and Aspect in English Infinitives. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 45, n. 3, p. 403-447, 2014. Doi: https://doi. org/10.1162/LING_a_00161 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 Prefix allomorphy in complex verbs of Brazilian Portuguese Alomorfia prefixal em verbos complexos do português brasileiro Indaiá de Santana Bassani Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, São Paulo / Brasil indaia.bassani@unifesp.br Abstract: This paper investigates the empirical properties of morphologically complex verbs of change in Brazilian Portuguese. Its main goal is to find out whether there are (not) correlations between prefix morphophonological form, root semantics and verb argument structure. All verbs analyzed denote events in which the internal argument is the undergoer of a change, and a classification in four semantic subclasses according to their root meaning is proposed: state, place, transfer of possession (either abstract or concrete) and reconfiguration. Contrary to what previous literature has suggested, finegrained investigation within each of these classes has shown that it is not possible to exclusively associate morphological forms to specific root semantics or morphosyntactic behavior, although it is possible to observe general tendencies. To provide an analysis to account for the robust homogenous structural properties and general semantics behavior across the class, in face of the morphological variation in what regards prefix choice among the forms a-, en- and es-, it is proposed that prefixes are the phonological realizations of a functional head in the lower domain of the verb (labeled R, Relational) whose choice is given in terms of contextual allomorphy. It is shown that vocabulary insertion at R is guided by locality with the root. The theory of allomorphy proposed in Embick (2010), which is based on locality and linearity, was efficient in accounting for the selection of allomorphs of R, v and Th (Theme Vowel) heads. Keywords: complex verbs; prefixes; allomorphy; Brazilian Portuguese; Distributed Morphology. Resumo: Esse artigo investiga as propriedades empíricas de verbos de mudança morfologicamente complexos do português brasileiro. Seu objetivo principal é descobrir se há ou não correlações entre a forma morfofonológica do prefixo, a semântica da raiz e a estrutura argumental do verbo. Todos verbos analisados denotam eventos em que o argumento interno é o objeto afetado de uma mudança, e uma classificação eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.26.2.967-1014 968 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 em quatro subclasses semânticas de acordo com o significado atribuído à raiz é proposta: estado, lugar, transferência de posse (abstrata ou concreta), e reconfiguração. Contrariamente ao que foi sugerido pela literatura anterior, a investigação detalhada dentro de cada uma dessas classes mostrou que não é possível associar exclusivamente as formas morfológicas prefixais à semântica específica da raiz ou ao comportamento morfossintático do verbo, embora seja possível observar tendências gerais. Para fornecer uma análise para explicar as robustas e homogêneas propriedades estruturais e o comportamento semântico geral em toda a classe em face da variação morfológica em relação à escolha do prefixo entre as formas a-, en- e es-, propõe-se que os prefixos sejam realizações fonológicas de um núcleo funcional no domínio baixo do verbo (rotulado como R, de Relacional) cuja escolha é dada em termos de alomorfia contextual. Mostra-se que a inserção de vocabulário em R é orientada por localidade com a raiz. A teoria de alomorfia prospota em Embick (2010), baseada em localidade e linearidade, se mostra efetiva para analisar a escolha dos alomorfes dos núcleos R (relacionador), v e Th (Vogal temática). Palavras-chave: verbos complexos; prefixos; alomorfia; português brasileiro; Morfologia Distribuída. Submitted on September 9th, 2018 Accepted on November 26th, 2018 1 Introduction Verb formation in Brazilian Portuguese (hereafter, BP) is a process that may involve phonologically realized morphemes: in its morphological form it is possible to recognize a prefix, a base (root, noun or adjective), and an optionally overt suffix, to a lesser degree, and a theme vowel, besides of the person/number and tense/mood affixes in the inflectional domain. In what regards argument structure, verbs containing these prefixes always require a complement, being: i) unaccusative verbs, that can possibly be provided with external arguments,1 or ii) transitive verbs, but they will never behave as unergative verbs: It is not critical for the scope of the present paper to discuss external argument realization. Bassani (2013, 2018) proposes an empirical classification and analysis of 136 change of state verbs into six event types (Inchoative, Causative, Causative underspecified for the type of external argument - agent or cause-, Totally underspecified, 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 969 (1) a. a-madur-ec-e-r pref-ripe-suf-tv-inf ‘to ripen’ b. A fruta amadureceu. ‘The fruit ripened’. c. O calor amadureceu a fruta. ‘The heat ripened the fruit’. d. *O calor amadureceu.2 ‘The heat ripened’. (2) a. en-garraf-ø-a-r pref-bottle-suf-tv-inf ‘to bottle’ b. Eu engarrafei o vinho. ‘I bottled the wine’. c. *O vinho engarrafou. ‘The wine bottled’. d. *Eu engarrafei. ‘I bottled’. (3) a. es-vazi-a-r pref-empty-tv-inf ‘to empty’ b. O tanque esvaziou. ‘The tank emptied’. Strictly Agentive Causative, and Strictly Causative with voice) based on their behavior, in face of the following tests: formation of transitive sentences with agents, transitives with cause arguments, intransitives and passives. We also refer the reader to Cançado et al. (2013) for a systematic classification. 2 Data in c. can only be grammatical on a null object interpretation. 970 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 c. Eu esvaziei o tanque. ‘I emptied the tank’. d. *Eu esvaziei. ‘I emptied’. (4) a. es-trip-ø-a-r pref-bowel-suf-tv-inf ‘to disembowel’. b. O chefe estripou o peixe. ‘The chef disembowed the fish’. c. *O peixe estripou. ‘The fish disembowed’. d. *O chefe estripou. ‘The chef disembowed’. According to the literature, direction in time and space and ingressive semantics can be seen in data like (2), inchoative aspect in data like (1) and (3), external direction, egressive aspect and end of or repeated action in data like (4). Table 1 below summarizes the main semantic descriptions assigned to the most frequent prefixes present in this kind of formation: a-, en- and es-3 (SAID ALI, 1966; BOSSIER, 1998; RIO-TORTO, 2004; PEREIRA, 2007). These prefixes are diachronically related to Latin directional prefixes in the following way: a- is historically related to prefix ad-, which denoted approximation; en- is related to prefix in-, which denoted inward movement; es- is related to prefix ex-, which denoted outward movement or removal. Prefix en- may present phonological allomorphs (/en/, /em/ and /e/) and prefix es- can also be ortographically represented as “ex”. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 971 TABLE 1 – Traditional descriptions Prefix Semantic description(s) a- Direction in time and space; approximation Inchoative aspect en- Direction in time and space; locative Ingressive aspect es- External direction Egressive aspect End of action or repeated action However, the assumption that the verb general behavior can be derived solely from intrinsic properties of these prefixes does not hold upon closer inspection. Detailed investigation will make clear that the behavior of these affixes is quite complex, challenging superficial classifications, especially the ones that assume they carry specific semantic properties, such as directionality. We hope to make clear the fact that the final behavior of the verb must be derived structurally. Thus, the descriptive questions to be answered in this paper are the following: i. What is the contribution (if any) of these prefixes to the final verb? ii. What is the base contribution to the final verb? iii. When (and if) prefixes are allomorphs, what guides the choice of their phonological form? iv. Is there any morphophonological dependency between prefix and suffix forms when they co-occur in a verb? The paper is organized as follows: in the remaining of section 1 we briefly present the methodology of data selection. In section 2, there is a general proposal for the treatment of the lower structure of all verbs of change and the empirical evidences for the suggested analysis. In section 3, verb classes are fully investigated in what regards their root semantics and in special the morphophonology of prefixes. Section 4 provides a morphophonological analysis for the distribution of prefixes based on locality conditions. Section 5 concludes the paper. 972 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1.1. Methods The descriptive results of this research are based on an initial corpus of 380 verbs. The methodology for collecting these data followed several steps, summarized below: a. Initial Selection of verbs started by a-, ad-, en-, e-, em-, in-, es-, ex- from the 2007 edition of the digital database of Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS; VILLAR, 2007), resulting in 5.173 occurrences; b. Frequency extraction: verbs were ranked according to their Google frequency (in 2010) and only those with more than 10.000 hits were conducted to the next step. The frequency was automatically extracted and the Language filter for Brazilian Portuguese was used. This lead to 1.471 occurrences; c. Data cleaning: was composed of the following substeps, and lead to a total of 380 verbs: • Exclusion of verbs for which these sound sequences were mere initial parts of roots or prefixes denoting negation (in-) (e.g. amar ‘to love’, alterar ‘to alter’, entrar ‘enter’, invalidar ‘to invalidate’); • Exclusion of adjectives ending in -ar (e.g. escolar ‘academic’); • Exclusion of verbs that, even with a number of frequency greater than 10.000, seemed extremely old fashioned or were completely unfamiliar4 (e.g. aquinhoar ‘to distribute’, arregimentar ‘to regiment’). A first major classification was proposed in order to separate one group of semantically compositional and morphologically transparent verbs from two other groups: morphologically opaque and semantically non-compositional verbs,5 leading to 276 verbs from which 259 are verbs The exclusion of the following verbs was based on my intuition as a researcher and native speaker of BP: amuar, amontar, anuviar, apainelar, apiedar, apoucar, aprovisionar, aquinhoar, arregimentar, arregalar, acantoar, embeiçar, encabar, abancar, encarniçar, atucanar, emparceirar, encapelar, abaratar, arruar, avultar, atraiçoar, arrimar, entroncar, encordoar, abaciar, encampar, aventar, acautelar, arruar, enjeitar. 5 We refer the reader to Bassani (2015) for this first classification. 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 973 of change and result. In this paper, we will explore these 259 data. A list of these verbs organized by frequency is available in the appendix. 2 General description and proposal The major class of semantically compositional and morphologically transparent verbs treated in this paper can be classified as Change or Result verbs (RAPPAPORT-HOVAV; LEVIN, 1998, 2010; ALEXIADOU, 2014). These verbs denote an event in which the internal argument is the undergoer of a change, and the result of this change is somehow related to the root semantics. Although all these verbs can ultimately be classified as verbs of change, the idiosyncratic meaning of the root specifies the kind of change affecting the internal argument: some roots denote/are related to states, places, entities and by-products of the event. Then, structurally, the unifying characteristic of these verb subclasses is the obligatoriness of an internal argument, which is interpreted as the affected object of the change expressed by the event (theme or experiencer, to a lesser degree). In relation to the morphophonological properties of the data, it is evident that most of the verbs present overt prefixes (a-, en-, es-) but most do not present overt suffixes (when they appear, the forms are -iz and -ec). There are also verbs of change and result that do not present affixes. Below we propose a general syntactic lower structure for this class and the empirical evidences for it, and in the next section we describe four (root) semantic subclasses to be examined in detail in what regards their argument structure, lexical semantics and the morphophonological form of affixes. We propose that morphologically complex verbs of change present morphological evidence for a syntactic decomposition of the event (along the lines of Marantz (1997); Alexiadou et al. (2006)). In broad terms, prefixes can be analyzed as the realization of a functional head in the result state clause and suffixes are the realization of v, which take that result phrase as complement. We propose that there is a formal requirement in Portuguese in order for the internal argument to enter the derivation in a position where it is able to be interpreted as the affected argument of the change: for the argument to relate to the root semantics there must be the mediation of a functional head that is prepositional/ relational in nature. Then, we assume that the prefix is the phonological realization of a head that introduces the internal argument in the structure 974 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 and relates it to the root, as in the representation in (5) below. Our analysis go against approaches in which the root can directly take a complement, such as Marantz (1997), Embick (2004), Harley (2014), since the evidence to be presented shows that the root fails to take a complement without the mediation of a functional category.6 We assign the label R for Relational head, and IA stands for Internal Argument. (5) Syntactic structure In the structure in (5), prefixes are the phonological realization of an inner and active functional head attaching outside the Root domain, but not above the first Categorizer/Cyclic Head (EMBICK; MARANTZ, 2008; EMBICK, 2010), which is v. In what regards R status, we assume, based on empirical evidence to be presented below, that it is a kind of predicational head, which is part of the verbal domain, however it is a non-cyclic head and is therefore a subword level morpheme. It can be phonologically realized as a-, en- or es-. It is in fact the category v that is responsible for the categorization of the Root and the formation of a M-word (EMBICK; NOYER, 2006). The head v in these verbs can be phonologically realized by -e-, -ec- [es] and -iz- or can be null. 2.1 Empirical evidences for the proposed structure Following several empirical evidences presented in Bassani (2012), we assume that R is a functional head in the verbal domain As we will not be able to fully explore the contributions of these data to the fruitful debate on whether roots can or cannot take complements (cf. HARLEY, 2014; ALEXIADOU, 2014), we refer the reader to Bassani and Minussi (2015). 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 975 attached to the root and complement of v. First, if we compare the bases to which these prefixes attach to the verbs they form, we find that they seem to be interfering with, or, in fact, being responsible for, the introduction of an extra argument. For example, a noun like garrafa ‘bottle’ in (6), an adjective like vazio ‘empty’ (7) cannot take arguments by themselves. Although it is clear that an adjective like vazio is predicative and needs an entity to be composed with, it cannot do this by itself in all languages, as Hale and Keyser (2002) have already observed. In addition, the examples in b. below show that it is impossible to derive a verbal structure for these Roots without the phonological realization of a prefix. (6) a. *Garrafa(n) o vinho. ‘bottle(n) the wine’. b. *Garrafar(v) o vinho. ‘to bottle the wine’. c. Engarrafar(v) o vinho. ‘to bottle the wine’. (7) a. *Vazia(a) a caixa. ‘empty(a) the box’. b. *Vaziar(v) a caixa. ‘to empty the box’. c. Esvaziar(v) a caixa. ‘to empty the box’ Finally, their presence is restricted to verbs: they only occur with nouns and adjectives in case they are derived from verbs, like in derived eventive nominalizations with suffixes -ção and -mento (i), to a lesser degree in back derivations (ii), and widely in resultative participles (iii): i. Eventive Nominalizations (8) a. Proveito (n) ‘advantage’ b. Aproveitar (v) ‘to take advantage’ c. *Aproveito (n) ‘advantage’ d. Aproveitamento (n) ‘utilization’ 976 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (9) a. Caderno (n) b. Encadernar (v) c. *Encaderno (n) ‘notebook’ ‘to bind’ ‘binding (of materials)’ d. Encadernação (n) ‘binding (of materials)’ (10) a. claro (a) ‘clear’ b. esclarecer (v) ‘clarify’ c. *esclaro (n) ‘clarification’ d. esclarecimento (n) ‘clarification’ ii. Back derivations (11) a. Laço (n) ‘loop’ b. Enlaçar (v) ‘to enlace’ c. *Enlaço (n) ‘loop’ d. Enlace (n) ‘union’ (12) a. Caixa (n) b. Encaixar (v) c. *Encaixa (n) d. Encaixe (n) ‘box’ ‘to fit’ ‘box’ ‘fit’ iii. Resultative Participles (13) a. vermelho (a) b. Camisa vermelha (a) c. Camisa *avermelha (a) d. Camisa avermelhada (a-prt) ‘red’ ‘red shirt’ ‘red/reddish shirt’ ‘reddish shirt’ (result state) (14) a. manhã (n) ‘morning’ b. amanhecer (v) ‘to dawn’ c. pão *amanhal/*amatinal/matinal (a) ‘morning bread’ d. pão amanhecido (a-prt) ‘stale bread’ Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (15) a. quente (a) b. esquentar (v) c. pão quente/*esquente (a) d. pão esquentado (a-prt) 977 ‘warm’ ‘to warm (up)’ ‘warm bread’ ‘warmed/heated up bread’ The ungrammaticality of the data in c. from (8) through (15) above and the exclusive occurrence within verb domains is also evidence that the prefixes are not able to categorize a structure alone, and this is due to the fact that they are non-cyclic heads depending on v. In addition, these prefixes can co-occur with (open) verbal categorizers ((16) to (18)), which shows that they cannot be the phonological realization of v, as was suggested by Oltra-Massuet (2000) for similar Catalan verbs like enrikir and aprofundir: (16) a-terror-iz-a-r pref-√terror-suf-tv-inf ‘to terrorize’ (17) en-riqu-ec-e-r pref-√weak-suf-tv-inf ‘to enrich’ (18) es-faqu-e-a-r pref-√knife-suf-tv-inf ‘to stab’ Having presented evidence for the structure of the lower part of this general verb class, we turn now to specific details of subclasses according to the root semantics and the morphophonological form of the affixes. Our challenge is to account for its consistency in relation to the general structural properties and semantics of change but its variety when it comes to the choice of morphemes. 3 Verb Classes and root types In what follows we investigate possible correlations between the pieces of morphology, root semantics and argument structure. 978 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 3.1 Change of State Verbs 3.1.1 Root Semantics and argument structure These verbs denote a change of state undergone by the internal argument, which can be a physical state (alisar X ‘to smoothen X’) or a psychological state (as in acalmar X ‘calm down X’). From (19) to (21), there are typical examples of change of state verbs: (19) a-vermelh-a-r pref-√red-tv-inf ‘to redden’ (20) en-fraqu-ec-e-r pref-√weak-suf-tv-inf ‘to weaken’ (21) es-vazi-a-r pref-√empty-tv-inf ‘to empty’ Closely observing this class, it is clear that the (supposed) categorical status of the base is not relevant to the formation of a change of state verb: both nouns and adjectives could be part of these verbs, provided that they or their root can denote state properties/characteristics acquired by the internal argument as a result of the event of change. Thus, the split into deadjectival and denominal verbs in this class is totally unnecessary. Formally, there are two kinds of bases to derive the verbs: bare roots and derived adjectives and nouns denoting states. A simple entailment test can split the two kinds of bases: while the result state from verbs formed from bare roots can be expressed by simple adjectives (often scale adjectives) (22), the result state from verbs with derived nouns can only be expressed by adjectival participles or prepositional phrases (23): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 979 (22) Result entailments with verbs from bare roots: a. Adoçar > ficar (mais) doce ‘to sweeten > to get (more) sweet’ b. Enfraquecer ‘to weaken > > ficar (mais) fraco to get (more) weak’ c. Esfriar > ficar (mais) frio ‘to cool down > to get (more) cool’ (23) Result entailments with verbs from nouns: a. Abrasileirar > ficar brasileirado / como brasileiro / *brasil ‘to brazilianize > to get brazilianized / like (a) Brazilian / *brazil b. Envergonhar > ficar envergonhado / com vergonha / *vergonha ‘to embarass > to get embarrassed / with shame / *shame Although adjectival participles can be also used as entailments in change of state verbs with stative bare roots (ficar adoçado / enfraquecido / esfriado ‘to get sweetened/weakened/cooled down’), it reveals, in this case, the outcome of the event (resulting state) as a whole and not the result of the change in the innermost layer of the inchoate subevent (one in the RP projection). Moreover, the interpretation of the auxiliary ficar (‘to get’) is closer to the meaning of changing and remaining in the state, more than just denoting the punctual change of state. So the most natural paraphrase for this type is indeed the one made with the simple adjective. Derived state data leads to an important theoretical discussion, the one of structural licensing. It seems clear that it is not the state root that projects a change of state verb (or adjectives, as in many lexicalist proposals, including Hale and Keyser (2002) and even in Distributed Morphology approaches (such as Harley, 2014)), but this type of root is licensed in the event structure if it is compatible with it (cf. MARANTZ, 2013). An extra piece of evidence that corroborates this fact was found among the data: roots that prototypically denote entities, with no possibility of lexical projection, or “assignment of thematic roles” can nevertheless form change of state verbs as long as it has some specific property that can be highlighted as a proper licensing. For example, for 980 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 the root that forms pedra (‘stone’) to become part of the verb empedrar (‘to pave’), what is relevant is its property of being solid, hard, and not any other characteristics of the noun pedra (‘stone’). (24) O que fazer quando o leite empedra? What to do when the milk pref-√stone-prs.3sg ‘what to do when the milk becomes like stone’?7 So whenever a root or an XP (X Phrase) denoting a state is licensed, (by intrinsic properties or coercion, as in the example above), as the complement of an R that introduces an internal argument, the whole structure will be interpreted as a change of state structure. As an illustration, we present in (25) the analysis for the lower part of a change of state monoargumental structure resulting in the formation of the verb amadurecer (‘to ripen’): (25) Amadurecer a fruta (to ripen the fruit). In this structure, the head R allows the introduction of an internal argument and relates it to the Root. Then a small clause denoting a result state is formed, which in combination with a v head generates the interpretation of an event of change and result. 3.1.2 Morphology The first question to be answered regarding the morphologysemantics relation is whether there is any correlation between the form 7 This context regards breast engorgement in breastfeeding. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 981 of the prefix and this subclass. Acedo-Matellán (p.c.) points out that, in Catalan, the prefix en-/em- conveys the meaning of change of place while the prefix a- conveys change of state.8 For BP such a division of labor between a- and en- is not empirically attested. In BP, the prefix en- has wide occurrence within the class of change of state verbs: 53 out of 136, co-occurring or not with suffixes. The prefix a- is still the most numerous, with 75 occurrences. The prefix es- shows up in 8 verbs only. TABLE 2 – Change of State verbs and its prefix forms Prefix Examples a- 75 en- 53 es- 8 Total 136 agravar, apodrecer, atemorizar, alisar, amadurecer to worsen, to rot, to make afraid, to smooth, to ripen encurtar, enfraquecer, encolerizar, empobrecer, engordar to shorten, to weaken, to make angry, to impoverish, to fatten esvaziar, esclarecer, esverdear, esquentar To empty, to clarify, to turn green, to warm-up Regarding the morphology of suffixes, the most evident general characteristic in this subclass is the exclusive presence of the suffix -ec (cf. (17)). The suffix -iz is also present: of the three occurrences in the whole corpus, two belong to this class. However, the suffix -iz occurs very rarely concomitantly with the presence of prefixes, a defining feature of our corpus. So, the most certain conclusion is that the presence of -ec suffix is correlated with this subclass. However, two observations are in order. First, -ec must be the phonological realization of a verbal categorizer since it is in complementary distribution with other verb suffixes. Second, such a correlation is not two-way: it is not true that in order to derive a change of state verb the suffix -ec must be present. Thus, we must conclude that -ec could be one of the phonological realizations In Acedo-Matellán (2006), the author presents the verb enriquir (‘enrich’) and aclarir (‘clear’) as change of state verbs (canvi d’estat), which points out that en- may occur in this class even in Catalan. 8 982 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 of v. Within this class, the suffixes are distributed as follows (table 3): 136 verbs, 39 with -ec, two with -iz, two with -e and most of the verbs do not have overt suffixes (93 verbs).9 TABLE 3 – Change of State verbs and its suffixes Suffix Examples -e 2 -ec 39 -iz 2 Ø 93 Total 136 esverdear, assenhorear to turn green, to become a (old) lady amanhecer, empobrecer, esclarecer to dawn, to impoverish, to clarify atemorizar, encolerizar To make afraid, to make angry adoçar, engrossar, esvaziar to sweeten, to thicken, to empty The next question to be answered is whether there is such a strong correlation between suffixes and prefixes in these verbs that makes them circumfixes rather than individual affixes, as assumed by Rio-Torto (2004) and Pereira (2007). According to this analysis, the realization of the prefix en- in a change of state verb would be the result of its dependence on the suffix -ec. Again, our data show that this is not empirically attested: -ec suffix co-occurs with the three prefix forms, as shown in table 4 below. Although it does co-occur more frequently with en-, we must address this fact as a numerical trend and not as empirical evidence for the postulation of a circumfix. Moreover, this would be the only case of circumfixation in the whole language system. Bassani (2013) discusses possible correlations between specific suffixes (phonological exponents of v) and subtypes of change of state verbs identified by different types of possible external arguments. As these correlations are irrelevant to the discussion made in this paper, which focus on prefix realization, we leave it aside for the moment. 9 983 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 TABLE 4 – Co-occurrence of prefixes and suffixes in Change of State verbs Suffix Prefix -e -ec -iz Ø Total a- 1 10 1 63 75 en- 0 27 1 25 53 es- 1 2 0 5 8 Total 2 39 2 93 136 A critical fact in this subclass refers to the total lack of semantics of directionality that is supposedly related to the presence of a-, en- and es- prefixes. More importantly, as this is the numerically larger class among the verb classes with the presence of prefixes, the classification of such morphemes as directional elements (see table 1) seems highly problematic. By observing the behavior of the next (minor) classes of verbs, we can return to this topic and draw more robust conclusions based on the data. In order to do this, we turn now to the description of general patterns of Change of Location verbs. 3.2 Change of Location Verbs 3.2.1 Root Semantics and argument structure Another pattern found among the general class of verbs of change is what we call verbs of change of location. In sum, they result from structures where there is a change of the internal argument for the place denoted by the root. Some examples are provided below: (26) a-prision-a-r pref-√prison-tv-inf ‘to imprison’ (27) en-garraf-a-r pref-√bottle-tv-inf ‘to bottle’ 984 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (28) ex-patri-a-r pref-√country-tv-inf ‘to send out of country’ Three facts discriminate this subclass from the previous: the root denotes a place rather than a state, there is an apparent directional semantic contribution of the prefix, and they present distinct behavior in face of syntactic tests that reveal inchoative events: they are transitive and do not present alternation patterns. This happens because such verbs denote a complex event in which the external argument must cause the transfer of what is denoted by the internal argument towards what is denoted by the root. In other words, they cannot configure spontaneous internally caused events like some change of state verbs can (e.g. amadurecer ‘to ripen’). 3.2.2 Morphology As just said, one important factor that potentially contrasts change of state and change of place verbs is a possible directional contribution of the prefixes in the latter class. Pereira (2007) states that in European Portuguese, depending on the denotation of the base, the change of location may be of the type i) ‘get close to Noun’ and is realized by a- (as in aterrar ‘land’, alunar ‘land on the moon’); ii) ‘get in(side) Noun’ and is realized by en- (as in engarrafar ‘to bottle’, ensacar ‘to bag’) or iii) ‘take of Noun’ and is realized by es-/ex-(as in espipar ‘extract’, expatriar ‘expatriate’). Looking closely at the BP data, the situation seems more complex, especially when we consider a- and en-. In order to situate the discussion, we present the following summarizing tables, showing that the most numerous form in this class is the prefix en-, being present in 25 out of 36 verbs, followed by awith 9 occurrences. The fact that the form es- in only present in 2 verbs with some directional meaning, added to the fact that this piece has no independent status as preposition in the language (different from the other two) and that it is present in most verbs considered as reanalyzed as simple forms by Bassani (2015), lead us to concluded that its status as a vocabulary item in the BP Vocabulary inventory is not stable. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 985 TABLE 5 – Change of location verbs and its prefix forms Prefix a- Examples 09 aprisionar, acampar to imprison, to camp en- 25 engarrafar, enjaular to bottle, to cage es- 2 expatriar, exorbitar to expatriate, to exorbitate Total 36 First, in descriptive terms, there is a semantic correlation between the root and the prefix. In general, a- combines with roots that denote places of the type space and en- combines with places of the type container. We observed that the prefix en- has a more homogeneous and specific behavior; its occurrence is associated with roots that denote container places, and its often interpreted as a directional piece meaning inside. What seems is that a- is associated with an underspecified semantics of directionality, negotiating with the roots its final interpretation. In this sense, formations with a- seem to have semantically lighter directionality than en-. A key question that arises now is whether, in fact, the prefixes originally carry specific directional semantic features (we can hypothesize [‘inside’] for en-, [‘outside’] for es-, [‘near’] for a-) and are licensed in compatibility with the roots or have their directional features completely underspecified and its interpretation is contextually given when they are concatenated with the roots. As we saw in the previous subsection, directional meanings are completely absent when the roots / XPs complements of R denote states, indicating that the locality of attachment and the denotation of the root play a fundamental role in the interpretation of (non)directionality in the result phrase. Before deciding on what is the best analysis for the features of R and its vocabulary insertion process, we shall examine two other semantic classes found in the data. 986 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 3.3 Change of Possession Verbs 3.3.1 Root semantics and argument structure The third type does not express neither a change of state or a change of the location of the internal argument. In this verb class there is a change of possession or localization of an entity denoted by the root that targets the object denoted by the internal argument. Some examples of prefix verbs from BP belonging to this class are provided below. It can be seen that the entity denoted by the root can be a concrete, as in (29) and (31), or an abstract one, as in (30) and (32). (29) a-carpet-a-r pref-√carpet-tv-inf ‘to carpet’ (30) a-conselh-a-r pref-√advice-tv-inf ‘to advice’ (31) e-moldur-a-r pref-√frame-tv-inf ‘to frame’ (32) en-feitiç-a-r pref-√spell-tv-inf ‘to bewitch’ Cançado and Godoy (2012) classify these verbs as verbs of change of possession and divide them into two types, according to the denotation of the root: when there are roots that denote concrete objects, such as manteiga and carpete (‘butter’ and ‘carpet’) verbs are called Locatum verbs, and for roots that denote abstract entities to be transferred, such as benção e conselho (‘blessing’ and ‘advice’), verbs are called Benefactive verbs. However, as verbs like amaldiçoar (‘to curse’), enfeitiçar (‘to bewitch’), castigar (‘to punish’), with malefactive internal arguments rather than benefactives, fit in the classification of this last subclass, we prefer the terms change of concrete and abstract possession verbs. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 987 Comparing change of concrete possession and change of place verbs, we observe that the transfer of the entity denoted by the root to the internal argument does not imply the expression of a specific directionality (inside, near, out). In change of concrete possession structures, the head R appears to mediate a directional abstract relation between the root and the internal argument since there is a physical transfer. It seems incorrect to assume that directional features of the type [‘inside’] or [‘out’] are marked for some distinction within this class. Going further, if we compare change of place verbs and change of possession verbs on one hand and change of state verbs in another hand, we see that in the latter case, not even an unmarked directionality is found. Again, in this last class, the idea of transfer and direction is completely absent. 3.3.2 Morphology Below we can see the tables regarding prefixes in change of concrete and abstract possession. As happens with verbs of change of place, in the first subgroup there is a predominance of occurrence of en- prefix, followed by a-. TABLE 6 – Change of concrete possession verbs and its prefix forms Prefix a- Examples 11 amordaçar, acorrentar, afivelar to muzzle, to chain, to buckle en- 25 enlaçar, emborrachar, engessar to lace up, to rubber, to plaster es- 1 Estripar to disembowel Total 37 What we have observed so far with respect to morphology is that the lower the expression of directionality (what implies that there is no physical transfer and movement), the greater the occurrence of a-. In change of state verbs, for example, a- occurs more frequently (76 out of 139 cases). Change of possession data seems to support this idea. In 988 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 cases of concrete change, where the entities denoted by the root have physical nature, the transfer implies some directionality (but a not specific one), but when the entity to be transferred has no physical nature, there is no need for expression of directionality and most of them contain the prefix a-, as we see in the following table: TABLE 7 – Change of abstract possession verbs and its prefix forms Prefix a- Examples 14 aconselhar, acompanhar, apoderar to advice, to accompany, to take possession en- 9 encorajar, empossar, enfeitiçar to encourage, to induct, to bewitch es- 0 Total 23 - We now turn to the last subgroup identified among the data. 3.4 Change of Configuration Verbs 3.4.1 Root semantics and argument structure We name Change of Configuration Verbs the last subclass proposed in our study. A verb belongs to this class if its root denotes an entity that is created in the event. Additionally, these entities must be created from the reorganization or reconfiguration of the material denoted by the internal argument. In (34), for example, the entity denoted by the root √pile is a product of the reconfiguration of the material in the internal argument, the books. (33) a-grup-a-r pref-√group-tv-inf ‘to group the students’ (os alunos) (the students) Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (34) em-pilh-a-r pref-√pile-tv-inf ‘to pile the books’ (os livros) (the books) (35) es-farel-a-r pref-√crumble-tv-inf ‘to crumble the cookie’ (a bolacha) (the cookie) 989 As in change of state and possession verbs, there is no directionality expressed in the change undergone by the internal argument for the new configuration expressed by the root.10 3.4.2 Morphology In this subclass, 15 verbs have prefix en-, 6 verbs have prefix aand 6 verbs are formed by prefix -es. We first notice that the presence of -es more representative here than in the other three previous subclasses. TABLE 8 – Change of configuration verbs and its prefixes Prefix a- Examples 6 Agrupar, alistar To group, to (en)list en- 15 Empilhar, encadear To pile, to chain es- 6 Esfarelar, esmigalhar To crumble, to shatter Total 27 The presence of the prefix es- appears to be related to a semantic compatibility with the type of entity denoted by the root. Everytime es- is present in this type of verb, the reconfiguration of the internal argument implies a division in parts of an entity (36) or multiple entities (37), 10 See Levinson (2014) for a treatment of root creation verbs. 990 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 which is not expressed by verbs with en- and a-, where only one entity (whole, of concrete or abstract nature) is created (ex. list, group, pile). (36) esmigalhar (a bolacha) > criação de migalhas de bolacha ‘crumble (the cookie)’ > creation of cookie crumbs (37) esburacar (o solo) > criação de buracos no solo ‘to make holes in the ground’ > creation of holes in the ground Some studies consider -es as an aspectual prefix of iterative value in these verbs. Again, we believe that the idea of producing parts may be correlated to the presence of this piece, but it is not exclusive or inherent in it, since there are verbs which behave exactly like the verbs above, such as fatiar (‘to slice’), and do not have affixes. On the other hand and in the same line of arguments, there are verbs with -es without the expression of iterative semantics (e.g. esverdear ‘to turn green’ and estripar ‘to disembowel’). Once more we argue for the final semantics as a result of the root semantics and the locality of attachment of the prefix with it and not as a property of the morphological piece by itself. 4 Deriving the morphophonological form In the previous section, we have offered a description of prefixes occurrence in transparent and compositional complex verbs, and we also have suggested a general analysis of its lower structure. In Distributed Morphology, each affix is potentially the phonological realization of a head. In technical terms, an affix form is potentially a vocabulary item inserted in a terminal node, which is composed of (a set of) features. In this section, we will investigate the principles that guide the specification and manipulation of features and the insertion of vocabulary items at the terminal node R mainly. As this paper focuses on the prefix realization, we will not discuss in detail vocabulary insertion at v and Th (theme vowel) heads, we leave it aside for future work. The analysis to be outlined below relies on the localist theory of allomorphy outlined in Embick (2010), which presents a version of Distributed Morphology theory called C1-LIN. This theory proposes that contextual allomorphy patterns are constrained by notions of locality based on the ideas of linearity (linear adjacency) and phase-cyclicality. It is a serialist view of morphological Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 991 and syntactic derivation, where each “step” of the derivation serves as input to the next and therefore can influence it, since they are in the same domain. Contextual allomorphy (or lexically conditioned allomorphy) for Distributed Morphology is determined during the process of vocabulary insertion, i.e., when terminal nodes receive phonological content. Compatible vocabulary items compete for insertion at a terminal node and the most specific is inserted. The allomorphy determined by this type of operation is always a form of suppletion, since it is not possible to derive one form from the other only by phonological operations, for example. Furthermore, the theory assumes a syntactic derivation by phases (CHOMSKY, 2001) with cyclic spell-outs, which restrict the amount of information that is available in a given cycle of the derivation and the possible allomorphic interactions. Objects can interact only if they are active in the same computational cycle. The heads that trigger spell out are phase heads within the word, i.e., categorizers, always represented by lowercase letters. The notion that categorizers define cyclic phases is very important for the analysis we will outline to the verbs in study. As pointed out in Marantz (2008), and also in Embick and Marantz (2008), there is a difference in the expected results in terms of semantic and phonological terms depending on the place of attachment of the affix and the head type. The first syntactic (categorial) heads that merge with bare roots define categories of words. The first categorizer head is in the inner domain of word formation, domain that seems to allow a special relation in terms of sound and meaning. The main generalizations that follow from the cyclic part of the theory are: Considering that categorizers (a,n,v) are cyclic heads: a. Allomorphy: For Root-attached x, special allomorphy for x may be determined by properties of the Root. A head x in the outer domain is not in a local relationship with the Root and thus cannot have its allomorphy determined by the Root. b. Interpretation: The combination of Root-attached x and the Root might yield a special interpretation. When attached in the outer domain, the x heads yield predictable interpretations. However, there is evidence to show that such a combination is very restrictive because elements in the external domain can suffer 992 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 root-conditioned allomorphy, provided that they are in certain structural configurations outlined below. i. Allomorphic interactions occur based on locality factors defined by cyclic and linear domains (EMBICK, 2010, p.16-17): a. . . . a] x] Z] are concatenated, Z being a non-cyclic head, Generalization: Non-cyclic Z may show contextual allomorphy determined by a (and by x), as long as x is not overt. b. . . . a] x] y] are concatenated, y being a cyclic head, Generalization: Cyclic y may not show contextual allomorphy determined by a, even if x is not overt. These two generalizations are based on two main hypotheses: (H1) Contextual allomorphy is possible only with elements that are concatenated. (H2) Cyclic Spell-Out domains define which nodes are present in a given cycle of PF computation and thus potentially ‘‘active’’ (capable of being referred to) for the purposes of contextual allomorphy. In some cases, superficially adjacent nodes cannot influence each other allomorphically because in terms of cyclic Spell-Out, they are not active in the same PF cycle. Returning to the analysis of BP data, we suggest that the lower syntactic structure associated with a complex prefix verb necessarily consists of four elements: the root, functional head R, v and Th. These structures may be provided latter in the derivation with Voice and other inflectional heads, which are not under investigation at this point (BASSANI, 2013, 2015). The following structure, which is central to all verbs of change, represents a complex head which proceeds to linearization / morphological reorganization after the syntax output. The head R is specified to precede the root, taking place superficially as a prefix, and Th is inserted after syntax (OLTRA-MASSUET, 2000).11 At this point, we will not investigate the role of the DP (Determiner Phrase) internal argument in the interaction of terminal nodes. It is possible that the formation of the zero level v head occurs in some parallel way such that the phrasal phrase DP does not interfere with the linearization of inner heads of this projection. 11 993 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (38) Syntactic structure (39) Complex head v v v v RP DP R R R √ROOT R /en/ Th v √ROOT MAGR /es/ /e/ Complex verb emagrecer ‘to lose weight’ The relevant predictions of C1-LIN theory to the interaction of morphemes in the structure (39) are as follows: a. The root can contextually determine the form of R and v; b. R cannot have its form determined by v and Th since the insertion occurs from the inner to the outer node; c. v cannot have its form contextually determined by R because the root will never be phonologically null. If proved that R insertion is contextually determined by the root, we will be contributing to an important theoretical discussion of Distributed Morphology theory about the nature of roots. Insertion at R occurs before a possible vocabulary insertion at the root node, since linearization is a morphological operation that must apply before vocabulary insertion, and which, in this case, places R linearly before the root. If it is proved that the insertion of R depends on the root, we must assume that the root has to be provided with phonological material before the first vocabulary insertion of the whole structure, at R. If there were late insertion for roots, there would be no material to determine the insertion of R. In the following sections we test and discuss the relevant predictions. 994 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 4.1 Vocabulary insertion at R: one or many prefixes? We propose that the prefixes a-, en- and es- are vocabulary items that realize the functional head R, which minimally contains a purely functional relational feature [+ r]. We have seen that change of state, abstract possession and configuration verbs do not imply any physical transfer (PT below) and there is no directionality encoded in the formation (DIR), we have also seen that in change of concrete possession verbs there is some notion of physical transfer without specification of directionality and that in change of place verbs, there is apparently a directionally specified by the nature of the root (source of directionality - SDIR). The table below shows that in every subclass of verbs of change there is variation in the phonological form that realizes R, with some numerical trends: TABLE 9 – Semantic class vs. prefix form vs. directionality expression Prefix Semantic type a- Directionality en- es- PT DIR SDIR Change of place 9 8% 25 20% 2 12%   ROOT Change of concrete possession 11 10% 25 20% 1 6%   - Change of state 75 65% 53 42% 8 47%   - Change of abstract possession 14 12% 9 7% 0 0%   - Change of configuration 6 5% 15 12% 6 35%   - 115 100% 127 100% 17 100% Total Being attested that the same prefix form can occur in classes where there is no expression of physical transfer or directionality and that it can also occur on a smaller scale correlated to these interpretations, the questions that arise are: how are the features of R specified? Does R carry directional features? There are two logical possibilities, that we will call analysis by total specification (A1) and analysis by underspecification (A2). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 995 (A1) Total specification: for every node R there is a specific set of syntacticsemantic features that are realized by specific vocabulary items. (A2) Underspecification: for every node R there are multiple syntacticsemantic features configurations depending on the element to which it attaches and there are multiple vocabulary items may be inserted in R. The analysis by total specification is that in which R has a specific and predetermined set of features since List 1, and there are specific vocabulary items matching these nodes. The implication of this analysis is the assumption that there are three types of Rs, different but similar, and each set of features in each terminal node must have a corresponding vocabulary item in perfect compatibility as represented in sequence: (A1) Analysis by total specification TABLE 10 – Vocabulary items in A1 Node label Node Features Compatible Vocabulary Items R1 [+r, +dir {near}] /a/ ↔ [+r, +dir {near}] R2 [+r, +dir {inside}] /en/ ↔ [+r, +dir {inside}] R3 [+r, +dir {out}] /es/ ↔ [+r, +dir {out}] This alternative is not empirically supported. The observation of the data shows us that the feature [+ dir], which represents general directionality, and its possible specifications {near}, {inside} and {out}, are rarely interpreted and depend crucially on the semantic type of the root. Moreover, in such an analysis, the fact that we have the presence of prefixes a-, en- and es- in all semantic classes (except for es- in change of abstract possession) ends up as a simple case of homophony and, more generally, the analysis resembles a classic lexicalist one, resulting in a list of several homophonous prefixes organized by representativity, as exemplified below: 996 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (40) For a-: a-1 = prefix of change of state; a-2 = prefix of change of abstract possession; a-3 = prefix of change of concrete possession; a-4 = prefix of change of place; a-5 = prefix of change of configuration; (41) For en-: en-1 = prefix of change of state; en-2 = prefix of change of place; en-3 = prefix of change of concrete possession; en-4 = prefix of change of configuration; en-5 = prefix of change of abstract possession; (42) For es-: es-1 = prefix of change of state; es-2 = prefix of change of configuration; es-3 = prefix of change of place; es-5 = prefix of change of concrete possession; These lists are widely used in traditional grammars, but have no explanatory power. Moreover, they do not capture the semantic, morphological and structural similarities between the “many” homophones prefixes: it becomes a mere coincidence. Such complete homophony analysis applies well to cases such as the phonological form /a/ from Portuguese, for example, which is the phonological realization of a negative prefix (anormal ‘abnormal’), can form verbs of change (amaciar ‘to smooth’) and is a definite feminine determiner (a menina ‘the.FEM girl’). In this case, the set of features, the morphological and categorical environment of each of the forms are completely unrelated. An analysis that works purely by locality of attachment is very attractive and compatible with DM and could also preserve the full specificity of R. However, it must also be discarded for the BP data based on empirical evidence. Svenonius (2004) argues that the division between lexical and superlexical prefixes should be analyzed in terms Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 997 of the different positions of the prefixes in a syntactic decomposition of the clausal structure. More precisely, he proposes that ‘lexical’ prefixes (with resultative, spatial and idiosyncratic meanings) are attached below the VP (Verb Phrase) and superlexical prefixes (with aspectual and quantificational meanings) are attached above VP. Let’s look at the proposed structure for a Serbian word of that contains an inner prefix with resultative meaning (iz-) and an outer prefix with distributive meaning (po-): (43) Po-iz-bac-i-va-ti DSTR-out-throw-v-IMP-INF ‘Throw out one by one’ (SVENONIUS, 2004, p. 239) We cannot pursue this type of analysis for our data because we have no empirical evidence to claim that possible different semantic contributions of prefixes a-, en- and es- are the result of different attachment loci in syntactic structure. As we have seen, evidence shows that they behave identically when it comes to argument structure and distributional properties and must be attached below vP. (A2) Analysis by Underspecification The facts that make us disregard (A1) lead us to conclude that the supposed prefix directionality is residual and structurally defined. It is residual because the heads realized by -a, en- and es- must have been intrinsic directional at some point in time, but it is not true for the majority of the cases now, and when it is present (in a minority of cases) it is structurally defined in the sense that it shows up only in combination with certain root types. For these reasons, we propose here an analysis in which the directional features in the terminal node are deleted (or become opaque) from the syntax when the root is not able to “activate” them, and then it makes competition for vocabulary items possible at the moment of vocabulary insertion, causing contextual allomorphy. We have to assume a deleting operation other than classical Impoverishment, as proposed in Bonet (1991) and Halle and Marantz (1993), since when Impoverishment applies it causes post-syntactic deletion of features and do not prevent its interpretation at LF. As directional features are not interpreted when 998 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 relevant roots are not present, we propose their (non) activation in the syntax before spell-out and hence before vocabulary insertion. In the derivation of a change of state verb, a change of abstract possession verb, or a change of configuration verb the possible directional features of R are irrelevant and are thus not interpreted. (44) Change of state / abstract possession / configuration RP clause We propose the derivation of these subclasses happen in the following way: in the syntax, the R head merges with roots of the type state or entity. As these roots do not make any directional feature of the head R to be relevant, there is only one relational feature in R, represented by [+r]. After the complex head is linearized, the result is a complex verb head like the one below in the structure (45), and in (46) we represent the concatenation patterns derived from the structure: (45) Complex verb after linearization (46) R√ROOTvTh Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 999 During vocabulary insertion, the vocabulary items competing for insertion at R must be underspecified as proposed in (47). (47) Eligible VIs for insertion a. /a-/ ↔ [+r] b. /en-/ ↔ [+r] c. /es-/ ↔ [+r] If they are fully specified as drafted in hypothesis A1, insertion will not be possible since there will be conflicting features between the VI and the terminal node in cases like this, where directional features are not present. Besides, the information that the VI to be inserted has affix nature has to be added so that prepositions, non-affix VIs, are not part of the competition for insertion in R as they possibly also have the feature [+r]. According to the subset principle as defined below (HALLE, 1997, p. 128), and considering the feature present in R and the eligible VIs, all items above have the same chances of insertion at R: Subset principle: The phonological exponent of a vocabulary item is inserted into a morpheme in the terminal string if the item matches all or a subset of the grammatical features specified in the terminal morpheme. Insertion does not take place if the Vocabulary item contains features not present in the morpheme. Where several Vocabulary items meet the conditions for insertion, the item matching the greatest number of features specified in the terminal morpheme must be chosen. The first hypothesis to investigate is whether the insertion of R could be guided by purely phonological conditioning of the root, since they end up directly concatenated after syntax. That is, could the first segment of root or its prosodic form determine the choice among items a, b and c above? In fact there are two general phonological restrictions on prefix attachment: 1) only Roots started by consonants can be prefixed; when the Root is started by a vowel, only suffixation is available (with very few exceptions), as in (48), or the formation of a verb with no affixes, as in (49); 2) there are no cases of attachment of prefix es- to roots started by strident fricatives ([s], [ʒ], [ʃ]). In additional to the discussion made above, in a theoretical level, this phonological sensitivity to the root first 1000 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 segment form is strong evidence that late insertion does not occur for Roots since it proceeds first in the prefix node. (48) a. ameno ‘mild’ b. *a/en/es.amen.ar ‘to ease’ c. amen.iz.ar ‘to ease’ (49) a. azul ‘blue’ b. *a/en/es.azul.ar ‘to turn blue’ c. azular ‘to turn blue’ In other cases, the forms /a/, /en/ and /es/ can be attached before all consonants. Furthermore, although our research on this topic is brief, it does not seem that there are prosodic constraints for prefixation, since it occurs with bases of one, two and three syllables, and the position of the stress on the base also appears to have no influence in this respect. In this sense, we can disregard the hypothesis that phonology guides the choice among a, b and c. However, the phonological rules applying between the prefix and the Root serve as evidence for the proposed structure, with R attaching inside vP. The second hypothesis to be investigated is whether the choice of the form of R may be guided by the form of v. Although this possibility is not predicted by C1-LIN theory, since they are not directly concatenated, it is worth empirical scrutiny, since positive results in this regard would be evidence to prove the existence of circumfixes (as assumed by Pereira (2007) and Rio-Torto (2004)). In the case of the verb emagrecer (“to lose weight”), for example, we would have to assume that the insertion in R and v occurs at the same time and that en-x-ec is a circumfix. There are two empirical arguments to discard this hypothesis, one of them has already have advanced in more general terms, and there is one extra theoretical argument. The first empirical argument is based on the independent occurrence of such prefixes and suffixes. The data in table 11, below, show contexts in which prefixes occur either alone (column 2) or with different suffixes (columns 1 and 3). Furthermore, the same suffix occurs concomitantly with the three prefixes (column 1) and also with no prefixes (column 4) and the same prefix occurs in different contexts (rows 1, 2 1001 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 and 3). Also, consider the data in column 1 in comparison with 2 and 3: the same prefix form co-occurs with different theme vowels.12 TABLE 11 – Evidence against circumfixes 1 1 a-madur-ec-er 2 vs. vs. 2 en-magr-ec-er es-clar-ec-er vs. a-senhor-e-ar vs. vs. vs. 3 a-maci-Ø-ar en-gord-Ø-ar es-vazi-Ø-ar vs. rod-e-ar vs. vs. vs. en-coler-iz-ar vs. vs. 4 3 vs. cristal-iz-ar vs. vs. vs. es-quart-ej-ar vs. plan-ej-ar The second empirical argument is based on the existence of doublets or morphological pairs like the following: (50) Doublets a. en-ric-Ø-ar vs. en-riqu-ec-er b. en-doid-Ø-ar vs. en-doid-ec-er ‘to enrich’ ‘to freak out’ If the prefix choice did in fact influence the suffix choice, or vice versa, these pairs should not have the same meaning, and they do. If the meanings were different, we could think of different (semantic) functional heads R and v and the contexts of insertion could be different, but this is not the case. In addition to the empirical arguments, we believe that the fact that there is no other case of circumfixation in Portuguese is also a valid theoretical argument to rule out this analysis. After discarding phonological conditioning and contextual conditioning by v, the alternative left then is that the choice of the prefix form is purely idiosyncratic and depends on contextual allomorphy determined by the Root. This alternative is covered by C1-LIN theory and attests its predictions in the following way: it partially attests First column shows vowel e for second conjugation verbs and the other cells vowel a for first conjugation class. Third conjugation class vowel i is restricted to non-transparent complex verbs (BASSANI, 2015). We won’t be able to fully explore it in this paper, but theme vowel data shows that insertion at R is not influenced by Th and vice versa, as predicted by C1-LIN. 12 1002 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 prediction a. and fully attests prediction b. reproduced below and, at the same time, presents itself as empirical evidence against the idea of late insertion for roots. a. The root can contextually determine the form of R and v; b. R cannot have its form determined by v and Th since the insertion occurs from the inner to the outer node; The vocabulary items in (47) a, b and c above, which are equally eligible for insertion at R in all the structures below could generate emagrecer, amagrecer, esmagrecer as much as aquartejar, enquartear, esquartejar and afeitiçar, enfeitiçar and esfeitiçar. (51) Rule 1 for insertion in [+r] a. [+r] ↔ /a//__√LIST-A (List-A: amanhecer, amaciar, abençoar…) b. [+r] ↔ /en//__√LIST-B (List-B: emagrecer, empilhar, encolerizar…) c. [+r] ↔ /es//__√LIST-C (List-C: esvaziar, esquartejar, esclarecer…) Therefore, we must assume that there is contextual information specified in vocabulary items in the form of lists of roots, as shown above, in vocabulary insertion rules to be read as follows: a. the feature [+r] is phonologically realized as /a/ when concatenated with Roots from a list of Roots, say List A; the feature [+r] is phonologically realized as /en/ when concatenated with Roots from a list of Roots, say List B; the feature [+r] is realized phonologically as /es/ when concatenated with Roots from a list of Roots, say List C. The multiple realizations of the same feature by different phonological forms is a case of contextual allomorphy. Our analysis of this kind of choice as idiosyncratic leads us to the predictions that this specification must be learned by native speakers and also during second language acquisition. We won’t be able to investigate such predictions now, but it is expected that speakers produce mismatches during the acquisition of complex verbs, so that a different prefix is used instead of the expected one. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1003 At this time, we can clearly distinguish two types of allomorphy defined by the components in which they are derived. In the case of contextual root conditioning, the allomorphy occurs at the moment of vocabulary insertion, different from phonologically conditioned allomorphy that is given in PF. Therefore, the allomorphy present in change of state verbs amaciar (to smooth), emagrecer (to lose weight) and esvaziar (to empty) is contextual while the allomorphy in engordar (to fatten) and emagrecer is phonological, since it is the alternation between /en/~/em/~/e/ caused by application of assimilation followed by deletion (dissimilation): (52) en√magra. /n/ → [m] / __ [+ bilabial] b. /m/ → Ø / __ [m] emmagremagr- The derivation of change of place and change of concrete possession have to be different from change of state, possession and configuration verbs since the former shows directionality influenced by the nature of the root, which is a place, and the latter have non-specified directionality also influenced by the specific concrete nature of the root. In the second case, there is only one physical transfer without specification of directionality of movement. In other words, the feature [+dir] needs to be interpreted at LF in these structures. We propose the next two structures to be derived for these cases along with examples resumed for clarity: (53) Change of place verbs c. a-prision-a-r pref-√prison-tv-inf ‘to imprison’ d. en-garraf-a-r pref-√bottle-tv-inf ‘to bottle’ e. ex-√patri-a-r pref-country-tv-inf ‘to send out of country’ 1004 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (54) Change of place verbs RP clause Data suggests that in change of place verbs the piece en- is correlated to the feature [+dir {in}] while a- is less specified and es- is very residual. It seems like that en- is the only piece that still carries some kind of compatibility to be written in its insertion rule. However, it is a fact that this compatibility is not relevant when roots are properties of states, for example, and en- is still widely inserted (as in enfraquecer ‘to weaken’, empobrecer ‘to impoverish’, and encurtar ‘to shorten’). For this reason, we are going to propose that there are two homophonous vocabulary items: the one described in (47)b and resumed in a. below is inserted in change of state, change of abstract possession and change of configuration verbs and the one in b. below is inserted in change of places verbs: (55) Homophonous vocabulary items for -en: a. /en-/ ↔ [+r] b. /en-/ ↔ [+r, +dir{in}] As es- is very residual, we don’t have enough consistent evidence to propose a vocabulary item related to [+dir {out}]. Evidence for this comes from the fact that es- is not able to form new words. The feature out is only productively encoded in roots that form verbs like tirar (‘take out’), remover (‘take away, remove’) and in fora (‘out’). As the directionality encoded in verbs with a- is light and seems to be inserted in the general case, we can still use the same vocabulary item inserted in change of state, change of abstract possession and change of configuration verbs. For verbs of change of concrete possession, we assume that the nature of the root makes possible for the directional interpretation to remain visible, but do not further specify the directional feature. Then, we propose the following structure to be derived. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1005 (56) Change of concrete possession verbs a. a-carpet-a-r pref-√carpet-tv-inf ‘to carpet’ b. e-moldur-a-r pref-√frame-tv-inf ‘to frame’ (57) Change of concrete possession RP clause In relation to insertion rules, we have seen that there are no requirements of compatibilities between the types of root and the pieces inserted. For this reason, we can use the same vocabulary items proposed in (47) for change of concrete and change of abstract possession verbs, and we will assume that the choice of the allomorph is idiosyncratic. The fact that en- is numerically greater than in this subclass a- remains as a coincidence. We conclude that this lack of directional information encoded in the vocabulary items is due to the fact that encoded directionality in the verb in BP has decreased, and is perhaps fossilized information in the data analyzed. Evidence for this come from data like the ones from (58) through (63), which are apparent cases of redundancy in which the directionality previously encoded in the prefix within the verb happens to be encoded out of it, in a PP element. Bassani (2015, p. 124) presents data that shows that speakers do not interpret directionality in the fossilized prefixes ((58) to (61)): (58) Extrair p(a)ra fora Extract to out 1006 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 (59) Inserir p(a)ra dentro Insert to inside (60) Atrair p(a)ra perto Attract to near (61) Expelir p(a)ra fora Expel to out (62) Subir p(a)ra cima Move up to up (63) Descer p(a)ra baixo Come down to down As this paper focuses on the study of prefixes it is not our primary concern to detail the analysis for the vocabulary insertion at v. However, we have evidence to conclude that the insertion at v can be contextually determined by the root or by a categorizer merged before v (n or a), so it is also defined by locality conditions. Within this scenario, the alleged prefix-suffix dependence in change verbs is an epiphenomenon derived from the fact that both vocabularies insertions at R and v occur in a context in which both are directly concatenated with the root, as in the representation in (46) resumed in (64). (64) R√ROOTvTh 5 Concluding remarks The main contributions of this paper are situated within the search of a better understanding about the internal structure associated with complex verbal heads, as part of the ongoing research program of Distributed Morphology, but which has been theme of discussion of many approaches, such as Lexical Semantics and Nanosyntax. For this, we have focused on prefixes in Brazilian Portuguese verbs of change. We have proposed that these prefixes are the phonological realization of an inner and active functional head labeled R attaching outside the Root domain, but not above the first Categorizer/Cyclic Head v, which Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1007 minimally contain the feature [+r]. We have also offered a detailed description of four semantic subclasses regarding the root meaning in order to investigate the correlations between the pieces of morphology, root semantics and argument structure. We came to the conclusion that the feature [+dir], which represents general directionality, and the possible specifications {near}, {inside} and {out} as dependent and specific features of [+dir], is rarely interpreted and depend crucially on the semantic type of the root. With this, we hope to have made clear the relevance of the root semantics in locality with the head R to derive the interpretation of the structures. Concerning the prefix form, we have not found strong evidence associating a unique type of prefix to a particular Root or structure. We have evaluated two working hypothesis for the vocabulary insertion at R: total specification and underspecification. We have argued for an analysis by underspecification of the vocabulary items and made use of contextual conditioning of the root to explain the prefix choice, what characterizes a case of contextual allomorphy. We also have called attention to the fact that the apparent prefix-suffix dependence in change verbs is an epiphenomenon derived from the fact that both vocabularies insertions at R and v occur in a context in which both are directly concatenated with the root. It may seem that our analysis for insertion at v and R is too idiosyncratic. However, it confirms in BP data the known fact that the choice of prefixes in Romance languages is widely idiosyncratic. This fact alone leads us to confirm that the choice of prefix and suffixes forms is, in fact, guided by idiosyncrasy and therefore is specific to each language. Observe the differences in the table below where we compare a small amount of verbs in Portuguese, Catalan, Spanish, French, Italian and Galician13. Even in Latin, in inchoative verbs, there are big prefix differences. Take for example the difference between duresco and vesparesco corresponding to endurecer (to harden) and entardecer (to become evening) respectively. An anonymous reviewer has pointed out that some translations and uses among the Romance verbs are not completely comparable and that English translations are not always exact. The comment is relevant and could lead to a fine-grained inspection, but the main objective of this table is to show in general terms that the realization of the prefixes may vary in form and sometimes are non-existent in somehow related verbs. 13 1008 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 TABLE 12 – Comparison of (prefix) verbs in some Romance languages Portuguese Catalan Spanish French Galician Italian English 1 adoçar endolcir endolçar endulzar endulzar sucrer adoucir adoçar addolcire to sweeten 2 amolecer Ablanir ablandar ablandar amollir amolecer mollificare to soften 3 anoitecer - anochecer Faire nuite anoitecer anochecer Fare notte to become night 4 entardecer - atardecer - atardecer entardecer - to become noon 5 endurecer endurir endurecer durcir endurecer indurire to harden 6 enganchar enganxar enganchar accrocher enganchar agganciare to hook 7 ensaboar - enjabonar savoner ensaboar Insaponare to soap 8 ensacar - ensacher ensacar insaccare to bag 9 esclarecer aclarir esclarecer éclaicir aclarar schiarare to clarify 10 esfriar Refredar enfredorir enfriar refroidir arrefriar esfriar freddare to cool down 11 esquartejar - écarteler esquartejar macellare to quarter 12 esquentar escalfar calentar échauffer quentar scaldáre to heat 13 esvaziar buidar vaciar vider esvaziar svuotare to empty We conclude then that despite the fact that the prefix phonological form is defined in idiosyncratic ways, its presence is deeply related to a certain syntactic configuration, giving support to constructionist approaches to word formation. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1009 References ACEDO-MATELLÁN, V. Una Aproximació Sintàctica als Verbs Prefixats en Català [A syntatic approach to prefix verbs in Catalan]. Estudios Catalanes Revista Internacional de Lengua, Literatura y Cultura Catalanas, v. 4, p. 41-78, 2006. ALEXIADOU, A. The Problem with internally caused change of state verbs. Linguistics, v. 52, n. 4, p. 879-909, 2014. ALEXIADOU, A., ANAGNOSTOPOULOU, E., and SCHÄFER, F. The Properties of Anticausatives Crosslinguistically. In: FRASCARELLI, M. (Ed.). Phases of Interpretation. Berlin: Mouton, 2006. p. 187-211. Doi: 10.1515/9783110197723.4.187 BASSANI, I. S. (Des)construindo relações entre agentividade, causa e morfologia em verbos de mudança de estado do português brasileiro. D.E.L.T.A., v. 34, n. 2, p. 577-609, 2018. BASSANI, I. S. Transparência morfológica, composicionalidade semântica e reanálise estrutural em verbos do português. Revista Letras, Curitiba, v. 91, p. 109-130, 2015. BASSANI, I. S. Uma abordagem localista para morfologia e estrutura argumental dos verbos complexos (parassintéticos) do português brasileiro. 2013. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BASSANI, I. S. Morphology-Syntax Interface: The Relation Between Prefixes of Brazilian Portuguese and Argument Structure. In: ANNUAL PENN LINGUISTICS COLLOQUIUM, 35th., 2012, Philadelphia. Proceedings… Philadelphia: University of Pennsylvania, 2012. (Working Papers in Linguistics, v. 18, n.1, p. 11-20.) BASSANI, I. S.; MINUSSI, R. D. Contra a seleção de argumentos pelas raízes: nominalizações e verbos complexos. ReVEL, v. 13/24, p. 139173, 2015. BONET, E. Morphology after Syntax: Pronominal Clitics in Romance. 1991 Dissertation (Doctoral) – MIT, Cambridge, 1991. BOSSIER, W. Os sufixos verbalizadores complexos no léxico português moderno. Antuérpia: Universidade de Antuérpia, 1998. (Linguistica Antverpinsia Series Maior, n. 3) 1010 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 CANÇADO, M.; GODOY, L. Representação Lexical de Classes Verbais do PB [Lexical representation of verb classes in Brazilian Portuguese]. Alfa, Revista de Linguística, São José do Rio Preto, v. 56, n. 1, p. 109-135, 2012. CANÇADO, M.; GODOY, L.; AMARAL, L. Catálogo de verbos do português brasileiro: classificação verbal segundo a decomposição de predicados. Parte I: verbos de mudança. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013. CHOMSKY, N. Derivation by Phase. In: KENSTOWICZ, M. (Ed). Ken Hale: A Life In Language. Cambridge: MIT Press, 1-52, 2001. EMBICK, D. Localism versus Globalism in Morphology and Phonology. Cambridge: MIT Press, 2010. EMBICK, D. On the Structure of Resultative Participles in English. Linguistic Inquiry, [s.l.], v. 35, n. 3, p. 355-392, 2004. Doi: 10.1162/0024389041402634 EMBICK, D.; MARANTZ, A. Architecture and Blocking. Linguistic Inquiry, [s.l.], v. 39, n. 1, p. 1-52, 2008. Doi: 10.1162/ling.2008.39.1.1 EMBICK, D.; NOYER, R. Distributed Morphology and the Syntax/ Morphology Interface. In: RAMCHAND, G.; REISS, C. (Ed.). The Oxford Handbook of Linguistics Interfaces. New York: Oxford University Press, 2006. p. 298-324. Doi: 10.1093/oxfordhb/9780199247455.013.0010 HALE, K., KEYSER, J. Prolegomenon to a Theory of Argument Structure. Cambridge: MIT Press, 2002. HALLE, M. Distributed Morphology: Impoverishment and Fission. In: BRUENING, B.; KANG, Y.; MCGINNIS, M. (Ed.). MIT Working Papers in Linguistics 30: Papers at The Interface. Cambridge: MA, 1997. p. 425449. Doi: 10.1075/cilt.202.07hal HALLE, M.; MARANTZ, A. Distributed Morphology and the pieces of inflection. In: HALE, K.; KEYSER, J. The View from Building 20. Cambrigde: MIT Press, 1993. p. 111-176. HARLEY, H. On The Identity of Roots. Theoretical Linguistic, v. 40, n. 3-4, p. 225-276, 2014. Doi: 10.1515/tl-2014-0010. HOUAISS, A.; VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva (CD-ROM), 2007. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 1011 LEVINSON, L. The Ontology of Roots and Verbs. In: ALEXIADOU, A.; HAGIT, B.; SCHÄFER, F. (Ed.). The Syntax of Roots and the Roots of Syntax. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 208-229. Doi: http:// dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199665266.003.0010 MARANTZ, A. Verbal argument structure: events and participants. Lingua, v. 130, p. 152-168, 2013. Doi: http://dx.doi.org/10.1016/j. lingua.2012.10.012 MARANTZ, A. Phases and Words. In: SOOK-HEE, C. (Ed.). Phases in the theory of grammar. Seoul: Dong In, 2008. p. 191-222. MARANTZ, A. No Escape from Syntax: Don’t try Morphological Analysis in the Privacy of your own Lexicon. In: PENN LINGUISTICS COLLOQUIUM – WORKING PAPERS IN LINGUISTICS, 21st., 1997, Philadelphia. Proceedings… Philadelphia: University of Pennsylvania, 1997. p. 201-115. OLTRA-MASSUET, I. On the notion of theme vowel: a new approach to Catalan verbal Morphology. 2000. Thesis (Master) – MIT, Cambridge, 2000. PEREIRA, R. A. Formação de Verbos em Português: Afixação Heterocategorial [Verb formation in Portuguese: heterocategorial affixation]. Muenchen: Lincom Europa Academic Publications, 2007. RAPPAPORT HOVAV, M.; LEVIN, B. Morphology and Lexical Semantics. In: SPENCER, A.; ZWICKY, A. (Ed.). Handbook of Morphology. Oxford: Blackwell, 1998. p. 248-271. RAPPAPORT HOVAV, M., LEVIN, B. Reflections on Manner/ Result Complementarity. In: DORON, E.; RAPPAPORT HOVAV, M.; SICHEL, I. (Ed.). Syntax, Lexical Semantics and Event Structure. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 21-38. Doi:10.1093/ acprof:oso/9780199544325.003.0002 RIO-TORTO, G. M. Morfologia, Sintaxe e Semântica dos Verbos Heterocategoriais [Morphology, Syntax and Semantics of heterocategorial verbs]. In: ______. (Ed.). Verbos e nomes em português. Coimbra: Almedina, 2004. p. 17-89. SAID ALI, M. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1966. SVENONIUS, P. Slavic Prefixes Inside and outside VP. Nordlyd, v. 32, n. 2, p. 205-253, 2004. Doi: http://dx.doi.org/10.7557/12.68. 1012 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 Appendix 1. 4. 7. 10. 13. 16. 19. 22. 25. 28. 31. 34. 37. 40. 43. 46. 49. 52. 55. 58. 61. 64. 67. 70. 73. 76. 79. 82. 85. acompanhar apontar acreditar apurar encher encobertar associar aquecer esquentar enterrar abaixar acostumar enquadrar engordar esvaziar afundar adentrar aconselhar emplacar encorajar apropriar apimentar alargar emoldurar arruinar arrolar engomar apodrecer engrandecer 2. 5. 8. 11. 14. 17. 20. 23. 26. 29. 32. 35. 38. 41. 44. 47. 50. 53. 56. 59. 62. 65. 68. 71. 74. 77. 80. 83. 86. aproveitar aprimorar esclarecer acertar ajustar emagrecer engravidar anular enlouquecer acomodar abastecer assustar envelhecer agravar abençoar alisar ajuizar acampar engrossar atenuar embasar enfraquecer ajeitar embelezar envergonhar aportar atormentar afixar amaciar 3. 6. 9. 12. 15. 18. 21. 24. 27. 30. 33. 36. 39. 42. 45. 48. 51. 54. 57. 60. 63. 66. 69. 72. 75. 78. 81. 84. 87. assegurar amanhecer aproximar alinhar aperfeiçoar arriscar apaixonar incorporar acalmar esfriar embarcar enriquecer endurecer agrupar anoitecer encurtar alongar apressar aprontar amadurecer afinar envenenar empacotar adormecer alagar alistar adoecer empilhar amolecer Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 88. estremecer 91. apoderar 94. amansar 97. adoçar 100. afrouxar 103. ajuntar 106. endividar 109. assemelhar 112. amortecer 115. apossar 118. entristecer 121. enamorar 124. engraxar 127. expropriar 130. embebedar 133. acorrentar 136. enturmar 139. esquartejar 142. apadrinhar 145. enraizar 148. enrijecer 151. enredar 154. envasar 157. intoxicar 160. engavetar 163. ensaboar 166. adensar 169. endeusar 172. encaixotar 175. enfileirar 89. abrandar 92. acondicionar 95. evaporar 98. abreviar 101. encenar 104. aterriz(ss)ar 107. abrasar 110. acasalar 113. embolsar 116. encapar 119. encerar 122. alumiar 125. ensacar 128. apavorar 131. amornar 134. aquietar 137. engessar 140. agraciar 143. encadernar 146. aplainar/aplanar 149. engarrafar 152. enfurecer 155. amordaçar 158. entorpecer 161. encapsular 164. acovardar 167. envernizar 170. atemorizar 173. esfarelar 176. enrugar 90. enfocar 93. abrilhantar 96. acobertar 99. encarecer 102. aterrar 105. aprisionar 108. endireitar 111. empossar 114. arredondar 117. amaldiçoar 120. afamar 123. acalentar 126. entortar 129. avivar 132. intitular 135. empobrecer 138. encarcerar 141. enfeitiçar 144. enlaçar 147. encurralar 150. enferrujar 153. aninhar 156. abacalhoar 159. apenar 162. incandescer 165. entalhar 168. encadear 171. empenar 174. aparafusar 177. enovelar 1013 1014 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 967-1014, abr./jun. 2019 178. emudecer 181. endoidecer 184. enobrecer 187. avolumar 190. emburrecer 193. enternecer 196. inseminar 199. enfaixar 202. esmigalhar 205. enlamear 208. enrubescer 211. enodoar 214. encurvar 217. empalhar 220. embranquecer 223. afofar 226. entrincheirar 229. aleitar 232. embrutecer 235. enlutar 238. extenuar 241. emborrachar 244. afervorar 247. encucar 250. espedaçar 253. estripar 256. abarrancar 259. enviesar 179. enformar 182. embandeirar 185. encolerizar 188. empalidecer 191. enfeixar 194. emparedar 197. encaçapar 200. enfitar 203. enlatar 206. avermelhar 209. esverdear 212. amesquinhar 215. entubar 218. empapar 221. enjaular 224. incrustar 227. enricar 230. ensurdecer 233. aferventar 236. encaroçar 239. empoleirar 242. assalariar 245. esfarrapar 248. encestar 251. aculturar 254. expatriar 257. engaiolar 180. endoidar 183. enegrecer 186. agigantar 189. exorbitar 192. enervar 195. enojar 198. acamar 201. assenhorear 204. enfarinhar 207. enfurnar 210. encapotar 213. abalizar 216. acolchoar 219. encrespar 222. empedrar 225. emprenhar 228. enraivecer 231. afivelar 234. aligeirar 237. empoeirar 240. aquartelar 243. envidraçar 246. avassalar 249. enevoar 252. esburacar 255. atarraxar 258. embravecer Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 Sobre o licenciamento de “sequer” em interrogativas do português brasileiro On the licencing of “sequer” in Brazilian Portuguese interrogatives Thayse Letícia Ferreira Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo / Brasil tleticiaf@gmail.com Resumo: Neste texto, investigamos o comportamento do Item de Polaridade Negativa “sequer” em contexto de interrogação no português brasileiro (PB). Nosso objetivo com esta pesquisa é descrever a distribuição de “sequer” em tal ambiente e propor uma semântica para esse item, buscando explicar, sobretudo, o contraste existente entre sentenças como “ela sequer ligou?” e “*ela sequer ligou ou não?”. Para tanto, apresentamos algumas das principais propostas para lidar com IPNs encontradas na literatura, bem como alguns dos problemas que elas enfrentam, para, então, nos concentrarmos no licenciamento de IPNs em estruturas interrogativas e também no funcionamento de “sequer” nesse tipo de contexto. Concluímos, com a análise desse item, que interrogativas polares, de alternativa e de constituinte (wh) são ambientes propícios para o aparecimento de “sequer”, ao passo que questões de alternativa polar (A-não-A) bloqueiam sistematicamente a presença desse item. Como explicação para o comportamento observado, defendemos a hipótese da exaustividade forte elaborada por Guerzoni e Sharvit (2007) e demonstramos que “sequer” é bloqueado em interrogativas de alternativa polar como consequência de uma incompatibilidade entre propriedades do IPN e da estrutura inquisitiva. Palavras-chave: itens de polaridade negativa; sentenças interrogativas; semântica. Abstract: In this paper, we investigate the behavior of the negative polarity item (NPI) “sequer” in interrogative contexts in Brazilian Portuguese (BrP). Our aim with this inquiry is to describe the distribution of “sequer” in such contexts and to propose a semantic denotation for this item, searching mainly to explain the contrast between sentences like “ela sequer ligou?” and “*ela sequer ligou ou não?”. In order to do that, we first present some of the main proposals found in the literature to deal with NPIs, then we focus on the licensing of NPIs in interrogative sentences and also on how eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.1015-1049 1016 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 “sequer” works in this kind of context. We conclude with the “sequer” analysis that polar questions, alternative questions and constituent questions are a suitable environment for the emergence of “sequer”, while polar alternative questions (A-not-A) systematically block the presence of this item. As an explanation for the observed behavior, we defend the strong exhaustiveness requirement elaborated by Guerzoni and Sharvit (2007) and show that “sequer” is blocked in alternative polar questions as a consequence of an incompatibility between the properties of “sequer” and the inquisitive structure. Keywords: negative polarity items; questions; semantics. Recebido em 05 de setembro de 2019 Aceito em 16 de janeiro de 2019 1 Introdução Itens de Polaridade Negativa (IPNs) e Expressões de Polaridade Negativa (EPNs)1 são caracterizados, grosso modo, por serem elementos licenciados em ambientes negativos; ou seja, IPNs e EPNs configuram um grupo de elementos presentes nas línguas naturais que não podem ser licenciados em uma sentença afirmativa episódica. Além disso, apenas uma leitura idiomática está disponível para esses elementos nos contextos em que podem ocorrer. De acordo com Guerzoni (2004), apesar de muitos trabalhos considerarem que é um ambiente negativo que prototipicamente licencia esses itens e expressões, há outros contextos que também podem habilitar o uso desses elementos, dentre os quais destacam-se as estruturas interrogativas. As sentenças abaixo, do português brasileiro (PB), exemplificam essa afirmação. (1) a. Pedro sequer ligou? b. Maria levantou um dedo pra ajudar o Pedro? c. Ela deu a mínima para o que o Pedro falou ou não? A distinção entre IPNs e EPNs diz respeito à sua estrutura: IPNs são elementos singulares como “sequer”, ao passo que EPNs são estruturas compostas por mais de um item, sendo formadas, em geral, por um verbo mais um sintagma nominal, que pode ser indefinido, como em “beber uma gota de álcool”, “ver uma alma viva” e “levantar um dedo”, ou definido, como em “abrir a boca” e “dar a mínima”. 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1017 Na literatura sobre o tema, assume-se que sentenças interrogativas com um IPN ou uma EPN permitem três tipos de leitura: (a) uma pergunta retórica (HAN, 2002); (b) uma pergunta ordinária (GIANNAKIDOU, 2011); e (c) uma pergunta ordinária enviesada (ECKARDT, 2005). Uma pergunta retórica é entendida, segundo Han (2002), como sendo uma asserção com polaridade oposta ao que aparentemente está sendo questionado. Em (1b) temos uma sentença que apresenta essa propriedade, pois a pergunta não elicia uma informação legítima. Nesse caso, o falante parece já ter conhecimento de que “Maria não ajudou o Pedro”, assim, como essa é a proposição relevante contida na pergunta, temos uma asserção negativa e não uma estrutura interrogativa que demanda alguma informação. A sentença em (1c) exemplifica uma pergunta ordinária com uma EPN, posto que o falante solicita a confirmação de uma informação relacionada à proposição “Maria deu importância para o que o Pedro falou”. A sentença (1a), por sua vez, pode ser entendida como uma pergunta ordinária enviesada, uma vez que o falante solicita uma informação legítima, a respeito de “Pedro ter ligado”, que está relacionada à pressuposição de que ele não fez algo esperado pelo falante. O significado dessa sentença pode ser melhor capturado considerando-se o seguinte cenário: Pedro deveria ajudar o interlocutor do falante a organizar sua biblioteca, porém, no dia combinado, Pedro não apareceu. Quando o interlocutor informa que “Pedro não veio para ajudar a organizar a biblioteca”, o falante pode proferir (1a), questionando, com alguma surpresa, se “Pedro nem ao menos ligou, para explicar sua ausência”. Com base nos exemplos oferecidos, em uma primeira análise, interrogativas parecem licenciar IPNs e EPNs sem maiores restrições, com diferentes possibilidades de leitura, mantendo sua interpretação idiomática. Retomando (1b) como exemplo, sabemos que o falante não está interessado em questionar o fato de Maria ter literalmente levantado apenas um dedo para ajudar Pedro, nesse caso, a expressão “levantar um dedo” é interpretada como “ter feito algo para ajudar” e a estrutura interrogativa sugere uma asserção negativa e não uma pergunta. Embora o comportamento de itens e expressões de polaridade negativa em interrogativas seja bastante sistemático entre as línguas (cf. GIANNAKIDOU, 2002), quando inserimos esse tipo de elemento em outros ambientes interrogativos, distintos daquele apresentado nos exemplos em (1), observamos um comportamento um tanto diferente, 1018 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 que impõe ou uma agramaticalidade à sentença ou um estranhamento pragmático, que leva a uma leitura composicional e não idiomática da estrutura, conforme seria esperado. (2) a. *Pedro sequer ligou ou não? b. #Quem bebeu uma gota de álcool na festa? c. #Quem viu uma alma penada na rua? Tendo em vista o contraste observado entre as sentenças apresentadas em (1) e (2) e a escassez de trabalhos que tratem da arquitetura e do funcionamento de IPNs e EPNs no português brasileiro,2 nos propomos, neste artigo, a investigar a distribuição do item de polaridade negativa “sequer” em interrogativas do PB. Especificamente, pretendemos elaborar o quadro de distribuição de “sequer” em diferentes tipos de interrogativas e propor uma semântica que capture o significado básico desse item, buscando, assim, explicar seu licenciamento nos contextos em que é legitimado. Deve-se destacar que optamos por tratar exclusivamente do “sequer” pelo fato de esse item já ter sido legitimado enquanto um IPN pelos testes de Mendes de Souza et al. (2008). Apesar de tal lexema parecer ser pouco utilizado na fala e estar caindo em desuso até mesmo no português escrito, provavelmente por corresponder às formas “pelo menos” e “nem mesmo”, acreditamos que uma investigação a seu respeito possa oferecer um primeiro quadro de funcionamento de IPNs em interrogativas que poderá, em trabalhos futuros, ser estendido a outros itens e expressões de polaridade negativa. Como o funcionamento dos IPNs e das EPNs parece ser bastante caótico e de difícil apreensão teórica, conforme aponta Negri (2006), é prudente que uma primeira investigação sobre IPNs em interrogativas do PB tenha como base um item já analisado em outros trabalhos. Assim, para elaborarmos um quadro de funcionamento do IPN “sequer” em sentenças interrogativas, analisaremos alguns dos tratamentos clássicos dados aos itens de polaridade negativa na literatura. Especificamente, abordaremos seis propostas, buscando averiguar sua adequação aos dados do PB e investigar o alcance de seu poder explicativo. Trataremos, notadamente, (a) da abordagem de licenciamento Ilari (1984), Negri (2006), Mendes de Souza et al. (2008) são algumas das poucas exceções. 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1019 de um IPN sob o escopo de uma negação (LINEBARGER, 1980; RIZZI, 1982); (b) da hipótese da monotonicidade decrescente (LADUSAW, 1979); (c) da hipótese da não veridicidade (GIANNAKIDOU, 1995, 2011); (d) da hipótese da ampliação de domínio (ECKARDT, 2005); (e) do licenciamento de IPNs na presença de um operador oculto (HEIM, 1984; NICOLAE, 2015); e, por fim, (f) da hipótese da exaustividade (GUERZONI; SHARVIT, 2007). Visando atingir os objetivos aqui delineados, organizamos o presente artigo do seguinte modo: na seção 2 tratamos do licenciamento de IPNs nos mais diversos contextos, indicando as principais abordagens que tratam do tema e os problemas que interrogativas parecem impor para essas propostas. Na seção 3, discutimos um segundo conjunto de propostas que analisa especificamente a legitimação de IPNs em interrogativas, também apontando algumas inconsistências existentes nessas abordagens. Na seção 4, investigamos o funcionamento de “sequer” em interrogativas do PB, a fim de observar a distribuição desse IPN em um ambiente inquisitivo e aventar uma denotação para esse item que possa, talvez, explicar seu licenciamento nesse tipo de estrutura. Por fim, na seção 5 elaboramos algumas considerações finais a respeito das ideias discutidas. 2 O licenciamento de itens de polaridade negativa Os Itens de Polaridade Negativa são muito explorados na literatura linguística, pois sua investigação mobiliza uma série de questões semânticas, sintáticas e pragmáticas. A polaridade é definida por Giannakidou (1995, 2011) como uma anomalia semântica de certos itens e expressões, cuja ocorrência está sujeita a algum tipo de informação contextual que possa justamente preencher essa defectividade. Nesse sentido, IPNs recebem tal denominação pelo fato de serem sensíveis a contextos negativos; ou seja, é a presença de um ambiente negativo que normalmente condiciona seu licenciamento na frase. Conforme os exemplos abaixo ilustram, tanto IPNs quanto EPNs não podem, em princípio, aparecer em uma sentença afirmativa episódica. (3) a. Joana não comprou sequer um bolo na padaria. b. *Joana comprou sequer um bolo na padaria. 1020 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 (4) a. Pedro não deu um pio na aula. b. #Pedro deu um pio na aula. O significado da sentença (3) pode ser parafraseado, grosso modo, por “Joana não comprou nem ao menos um bolo na padaria” ou, ainda, por “Joana não comprou nada na padaria (nem mesmo um bolo)”. O contraste entre (3a) e (3b) mostra a clara preferência do IPN “sequer” pela estrutura negativa; nas sentenças em (4), também se observa que a EPN “dar um pio” ocorre preferencialmente sob o escopo de uma negação, no entanto, nesse caso, a estrutura sem negação não gera uma sentença agramatical – a sentença (4b) é apenas pragmaticamente estranha, dado que é possível interpretar a expressão “dar um pio” composicionalmente, mas não idiomaticamente, como deveria ser o caso, uma vez que se trata de uma EPN. Ou seja, enquanto entendemos que em (4a) “Pedro não falou nada/não teceu nenhum comentário na aula”, sobre (4b) podemos unicamente dizer que Pedro, literalmente, piou na aula. Embora a literatura tenha assumido inicialmente que itens e expressões de polaridade negativa devam estar sob o escopo de um elemento negativo para serem licenciados, é notável a aparição de tais itens em outros ambientes. (5) Se a Maria sequer mandou recado, Pedro deve ter ficado triste. (6) Poucas pessoas deram a mínima pro trabalho. (7) Você sabe se a Maria deu um pio sobre o assunto? As sentenças apresentadas de (5) a (7) evidenciam que IPNs e EPNs são legitimados também em construções condicionais (5), sob o escopo de quantificadores como “pouco” (6) e em interrogativas indiretas (7). O licenciamento de itens e expressões de polaridade negativa, portanto, não necessariamente está conectado à presença de um elemento negativo na frase. Essa importante observação tem guiado as pesquisas em polaridade nos últimos 30 anos, de tal modo que a principal questão de investigação do campo diz respeito justamente a quais elementos ou contextos podem atuar como potenciais licenciadores de IPNs e EPNs (GIANNAKIDOU, 2011). Embora a questão do licenciamento (the licensing question) seja fundamental, o desafio maior da área, de acordo com Chierchia (2013, p. 146), não é delimitar e descrever os contextos nos quais esses itens e expressões podem ocorrer, mas sim encontrar Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1021 quais são os tipos de significado que podem gerar seu comportamento. Na literatura sobre o tema, é possível identificar duas grandes linhas de trabalho que buscam compreender o funcionamento desses itens e explicar sua necessidade por certas propriedades lógicas presentes em determinados contextos: a primeira reúne diversas teorias sob o rótulo de “abordagem monolítica” e a segunda é denominada “abordagem conspiratória” (ECKARDT; SAILER, 2013). A abordagem monolítica reconhece a existência de um único módulo da gramática como sendo responsável pela distribuição dos itens de polaridade negativa, ao passo que a abordagem conspiratória assume que IPNs são licenciados como consequência de fatores advindos de diversos níveis linguísticos em interação. As propostas que buscam explicar a distribuição e o funcionamento de itens e expressões de polaridade negativa integram, em sua maioria, o primeiro conjunto. A seguir tratamos com maiores detalhes de quatro dessas propostas, destacando a hipótese defendida por cada uma delas: (a) hipótese do escopo de uma negação (LINEBARGER, 1980; RIZZI, 1982); (b) hipótese da monotonicidade decrescente (LADUSAW, 1979); (c) hipótese da não veridicidade (GIANNAKIDOU, 1995, 2011); e (d) hipótese da ampliação de domínio (ECKARDT, 2005). A hipótese do operador oculto (HEIM, 1984; NICOLAE, 2015) e da exaustividade (GUERZONI; SHARVIT, 2007), mencionadas na introdução, serão abordadas apenas na seção 3, por estarem ligadas mais diretamente ao licenciamento de IPNs em contextos de interrogação. 2.1 A hipótese do escopo de uma negação As primeiras propostas dentro da abordagem monolítica são de caráter sintático. Para autores como Linebarger (1980)3 e Rizzi (1982), por exemplo, se um IPN pode aparecer em uma dada estrutura, isso se deve ao fato de o item estar necessariamente sob o escopo de um núcleo sintático de negação no nível da Forma Lógica (logical form, ou LF), seja esse núcleo fonologicamente realizado ou não. Essa relação de escopo é entendida, mais especificamente, como uma relação de c-comando, de tal modo que o escopo amplo do IPN sobre a negação (IPN > NegP) O trabalho de Linebarger traz também uma abordagem pragmática. Para a autora, quando não há uma negação explícita na estrutura, o IPN só é licenciado por haver uma implicatura negativa disparada por algum item da sentença (LINEBARGER, 1987). 3 1022 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 resulta em uma estrutura agramatical, conforme é possível observar nas sentenças em (8). (8) a. *Sequer um bolo Joana não comprou na padaria. b. *Uma alma viva Pedro não viu na praça. Por mais que a questão do escopo da negação sobre o IPN pareça explicar a distribuição desses itens em um primeiro olhar, essa hipótese não se conforma aos dados, pois, como os exemplos entre (5) e (7) revelaram, é possível que IPNs sejam licenciados mesmo na ausência de uma negação. De acordo com Ilari (1984), a implausibilidade de tal hipótese se mostra ainda mais evidente se considerarmos o fato de que não é possível encontrar nem ao menos uma paráfrase que explicite a negação que deveria existir em sentenças como as exemplificadas. 2.2 Hipótese da monotonicidade descrescente Para solucionar o enigma dos IPNs sem fazer menção à relação de escopo negativo, Ladusaw (1979) propõe uma abordagem também monolítica, mas que mobiliza noções lógico-semânticas. De acordo com o autor, todos os contextos nos quais itens e expressões de polaridade negativa podem aparecer exibem uma característica em comum: a monotonicidade decrescente, definida como uma relação de inferência que parte de conjuntos para subconjuntos. Para entendermos essa relação e a proposta de Ladusaw (1979), tomemos as sentenças abaixo. (9) a. Joana não gosta de jogos de tabuleiro. b. Joana não gosta de gamão. (10) a. Poucos alunos saíram. b. Poucos alunos saíram atrasados. Em contextos de monotonicidade decrescente (MD),4 é esperado que expressões que denotam um dado conjunto possam ser substituídas por expressões que denotam um subconjunto sem qualquer interferência no valor de verdade da sentença (cf. GIANNAKIDOU, 2011). Desse Formalmente, uma função f é monotonicamente decrescente sse ∀(X,Y)[X ⊆ Y ⇒ f(Y) ⊆ f(X)]. É importante destacar que em contextos de MD, pode-se substituir uma dada expressão por outra mais forte (ou mais informativa/exclusiva) salva veritate. 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1023 modo, se “gamão” é um subconjunto de “jogos de tabuleiro” e podemos afirmar que “Joana não gosta de jogos de tabuleiro”, então também podemos dizer que ela não gosta de gamão; analogamente, considerando que “sair atrasado” é um subconjunto de “sair”, então se é verdade que poucos alunos saíram, também o é “poucos alunos saíram atrasados”. Quando a relação se mantém do conjunto para o subconjunto e a inferência é verificada, temos uma relação de acarretamento para baixo, posto que a direção natural do raciocínio inferencial é invertida. Para Ladusaw (1980 apud GIANNAKIDOU, 2011, p. 1668), portanto, a aparente restrição sintática para o licenciamento de IPNs é, na verdade, resultado de uma propriedade semântica subjacente. Consequentemente, apenas ambientes monotonicamente decrescentes podem atuar como gatilho para a presença de tais itens. Essa condição explica o porquê de se ter pensado inicialmente na negação como o licenciador de itens de polaridade negativa: um operador negativo cria um contexto de acarretamento para baixo. Embora amplamente explorada, a hipótese de Ladusaw (1979) não dá conta de explicar uniformemente qual é o tipo de significado que rege o comportamento dos itens de polaridade negativa. Para Rothschild (2006), há outros contextos que não exibem a propriedade da monotonicidade decrescente, mas mesmo assim licenciam IPNs, tais como sentenças com certos sintagmas quantificacionais e alguns advérbios como “normalmente” e “sempre”, que podem ter escopo sobre o aspecto habitual, um ambiente não monotônico (cf. GIANNAKIDOU, 1995, 2011). No PB, é possível encontrar inclusive IPNs e EPNs em contextos monotonicamente crescentes (MC), em que a inferência se dá do conjunto para um superconjunto – justamente o oposto de uma função MD. Considerando as relações entre sentenças como “quem tem um animal de estimação?” e “quem tem um gato?”, Han e Siegel (1997) afirmam que interrogativas wh são ambientes de monotonicidade crescente, posto que a verdade de “alguém ter um gato” implica a verdade de “alguém ter um animal de estimação”. Ou seja, se “Joana tem um gato”, então necessariamente ela tem um animal de estimação, o que mantém a inferência do conjunto de gatos para o superconjunto dos animais de estimação. Tendo isso em vista, sentenças do PB como “qual aluno ainda lê artigo em papel?” e “quem tem um pingo de dignidade?” demonstram que IPNs e EPNs podem ser licenciados em contextos monotonicamente não decrescentes. Além disso, conforme sugere Heim (1984), ambientes caracterizados pela MD, como o antecedente de 1024 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 um condicional, podem não exibir estritamente essa propriedade sob certas circunstâncias pragmáticas. Tal fato pode ser comprovado pela relação entre as sentenças abaixo, adaptadas de Giannakidou (2002), em que há um reforço do antecedente5 sem a verificação da inferência. (11) a. Se você for para a Espanha, vai se divertir. b. Se você for para a Espanha e quebrar a perna, vai se divertir. Conforme é possível observar, a discussão feita até o momento, embora limitada, demonstra que lançar mão da noção de monotonicidade decrescente não é suficiente para explicar o funcionamento dos IPNs. Além disso, para autores como Giannakidou (2011) e Mendes de Souza et al. (2008), averiguar a hipótese de Ladusaw (1979) é uma tarefa ainda mais complicada quando pensamos no licenciamento desses itens em sentenças interrogativas, um ambiente tido na literatura como propício para a presença IPNs. O problema aqui pode ser formulado do seguinte modo: como é possível identificar se uma pergunta exibe a propriedade da monotonicidade decrescente? De acordo com Dayal (2016), a noção de MD é, na verdade, muito difícil de ser aplicada às interrogativas. Para a autora, seria possível dizer que uma dada sentença A acarreta uma sentença B se a resposta de A responder também completamente a pergunta B. Para entendermos esse raciocínio, tomemos as sentenças abaixo. (12) a. Joana comprou um carro? b. Joana comprou um carro vermelho? Ao relacionarmos as sentenças em (12), percebemos que a inferência do conjunto para o subconjunto, tal como sugeriu Dayal (2016), não pode ser verificada, pois uma resposta como “sim, Joana comprou um carro” é insuficiente para responder se o carro comprado é vermelho. No entanto, o raciocínio inverso, ou seja, aquele relacionado à monotonicidade crescente, que parte do conjunto para um superconjunto, Em lógica clássica, a ideia é que se (A → B) é verdadeiro, então (A & C → B) também deve ser verdadeiro. Ou seja, se uma determinada proposição antecedente implica uma proposição consequente, a relação de implicação deve ser mantida mesmo quando outras proposições são adicionadas ao antecedente. 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1025 pode ser verificado: de uma resposta como “sim, Joana comprou um carro vermelho” infere-se que ela comprou um carro. Disso depreende-se que a hipótese da monotonicidade decrescente não pode ser confirmada frente aos dados de sentenças interrogativas. Desse modo, a abordagem que trata do licenciamento de IPNs e EPNs com base nessa propriedade lógicosemântica é insuficiente para explicar a distribuição e o funcionamento desses itens. 2.3 Hipótese da não veridicidade Gianakkidou (1998) apresenta, com base no trabalho de Zwarts (1995), uma tentativa de solucionar o impasse da hipótese da MD e busca oferecer uma teoria mais geral para o funcionamento dos itens de polaridade. Em seu trabalho, a autora propõe que IPNs sejam restritos a contextos não verídicos. A veridicidade pode ser entendida, grosso modo, como uma função que diz respeito à verdade da proposição. De acordo com Giannakidou (2011, p. 1674), uma função F é verídica sse F(p) pressupõe ou acarreta a verdade de p. Ou seja, se “Joana sabe que Pedro comprou um carro”, então é verdade que “Pedro comprou um carro”; porém, se “Joana espera que Pedro tenha comprado um carro”, não necessariamente ele de fato comprou um carro, isto é, não é possível saber se a proposição é verdadeira ou não. Nesse caso, “esperar” atua como um operador não-verídico. É interessante notar que a noção de veridicidade está diretamente relacionada ao comprometimento do falante com a verdade da proposição, e essa relação produz um reflexo imediato na estrutura da sentença: o falante demonstra seu compromisso com a verdade por meio de verbos factivos e, para expressar ausência de compromisso ou incerteza, utiliza verbos intencionais ou volitivos. A noção de (não) veridicidade é definida por Giannakidou (2011) como em (13). (13) i. Um operador proposicional F é verídico sse F(p) pressupõe ou acarreta que p é verdadeiro em algum modelo epistêmico M(x): [[p]] = 1 sse M(x) ⊂ p; ii. Se a cláusula (i) não for o caso, F é não verídico; iii. Um operador não verídico F é antiverídico sse F(p) ⇒ ¬p é logicamente válido em algum modelo M(x). 1026 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 Sentenças cujo operador proposicional é verídico indicam comprometimento do falante e são exemplificadas por estruturas com verbos factivos como “saber” e pela conjunção “e”; sentenças cujo operador é não verídico apontam para a falta de compromisso do falante com a verdade da proposição e são exemplificadas por estruturas formadas por verbos intensionais, advérbios de dúvida, como “talvez”, e pela disjunção “ou”. Por fim, um operador antiverídico prototípico pode ser exemplificado por “jamais” e “não”, “cuja função é inverter o valor de verdade de qualquer proposição dada” (NEGRI, 2006, p. 67). Com base nessa definição de veridicidade, Giannakidou (2011) sugere que o fator comum a todos os ambientes que licenciam IPNs é justamente a presença de um operador não verídico (o que incluiria os operadores antiverídicos) (cf. MENDES DE SOUZA et al., 2008). De acordo com a autora, predicados volitivos, sentenças interrogativas, imperativos, disjunções, verbos modais e verbos no subjuntivo exibem essa propriedade da ausência de verdade e são, portanto, contextos propícios para a legitimação de IPNs. Infelizmente, não é preciso pensar em uma ampla gama de dados para notar que a hipótese da autora também não se sustenta (MENDES DE SOUZA et al., 2008, p. 38). Considerando, por exemplo, as interrogativas, observamos que certos ambientes licenciam IPNs mas outros não e, caso interrogativas exibissem a propriedade da não veridicidade e tal hipótese de licenciamento estivesse correta, o contraste entre as sentenças em (14) não seria esperado. Cabe questionar também se a noção de veridicidade é realmente aplicável a tais estruturas. (14) a. Alguém deu a mínima para as ideias do Pedro? b. *Joana viu uma alma viva na rua? Como nosso objeto de estudo é justamente o funcionamento de um IPN em sentenças interrogativas, na próxima seção nos dedicaremos a discorrer brevemente sobre algumas teorias que abordam especificamente o licenciamento de IPNs nesse ambiente. Porém, antes de tratarmos desse assunto, cremos ser necessário explicitar um último tratamento dado aos itens e expressões de polaridade negativa que se enquadra no que Eckardt e Sailer (2013) denominam “abordagem conspiratória”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1027 2.4 Hipótese da ampliação de domínio Para alguns autores, dentre os quais destacamos Krifka (1995), Eckardt (2005) e Chierchia (2013), o licenciamento de IPNs é o resultado de um conjunto de fatores semânticos, sintáticos e, sobretudo, pragmáticos. Utilizando a noção de ampliação de domínio instaurada por Kadmon e Landman (1993), essa abordagem está fundamentada na ideia de que certos elementos podem aumentar o domínio quantificacional de uma sentença, que é delimitado pelo fundo conversacional, criando-se, assim, uma declaração mais forte ou mais informativa. Em linhas gerais, a ampliação de domínio pode ser entendida como uma operação que expande o domínio de quantificação inicial, englobando também casos não esperados na conversação. Desse modo, de acordo com Kadmon e Landman (1993), uma sentença cujo domínio de quantificação foi ampliado deve ser uma asserção mais forte, pois deve acarretar uma sentença com interpretação mais restrita, relacionada ao domínio inicial não estendido. Para compreendermos melhor essa operação, tomemos o seguinte diálogo entre um comprador (C) e um um vendedor (V) de uma loja de eletrodomésticos: (C) Vocês vendem máquina de lavar roupas? (V) Não. (C) Não precisa ser dessas sofisticadas, pode ser até sem a opção de secar... (V) Infelizmente, não vendemos nenhum tipo de máquina de lavar roupas aqui. O domínio inicial de quantificação do diálogo poderia incluir máquinas de lavar roupa com funções sofisticadas, como secagem; no decorrer da conversa, esse domínio é ampliado para incluir até mesmo um tipo de máquina mais simples, acrescentando uma exceção ao domínio inicial (o de máquinas com muitas funções). A resposta final do vendedor acaba, assim, abrangendo também os casos não esperados (as máquinas sem muita tecnologia/muitas funções). Desse modo, dizer que na loja não há “nenhum tipo de máquina de lavar roupas” acarreta a sentença mais restrita do domínio não ampliado; ou seja, o vendedor declara que também não há na loja “máquinas de lavar roupas com funções sofisticadas, como a opção de secagem”. Com esse exemplo, a ampliação de domínio pode 1028 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 ser definida formalmente como uma operação somada a uma restrição semântica: o elemento que induz à ampliação do domínio de interpretação (widening) deve fortalecer o enunciado em que ocorre (strengthening), de tal modo que “o enunciado com interpretação ampla acarreta aquela com interpretação restrita” (NEGRI, 2006, p. 51). Note-se que nessa proposta também se mobiliza a noção de acarretamento para explicar o licenciamento de IPNs; por conta disso, a restrição do reforço só pode ser satisfeita em um contexto de monotonicidade decrescente. Nessa abordagem, a impossibilidade de licenciamento de um IPN é, em geral, explicada pelo fato de haver uma falha no fortalecimento da declaração. Isto é, se a presença de um item de polaridade negativa em uma dada construção pode levar a sentença a ser interpretada como pouco informativa ou até mesmo inconsistente após o processo de enriquecimento (CHIERCHIA, 2006 apud GIANNAKIDOU, 2011, p. 1690), a formação da sentença é bloqueada. Para Giannakidou (2011), essa assunção é problemática, pois o bloqueio de IPNs em certos ambientes parece de fato ser uma restrição gramatical e não pragmática, por mais que o princípio da ampliação de domínio e a ideia de fortalecimento da declaração possam ser uma descrição de como surge tal bloqueio. Além disso, entender como exatamente ocorre a interação entre as operações sintático-semânticas e a restrição pragmática, que leva à má formação das sentenças, é uma tarefa bastante complicada. Em Chierchia (2006), encontra-se uma solução para o modo como a restrição pragmática interage com os outros componentes gramaticais. Com base na ideia de Rooth (1992) de que toda sentença apresenta, além de um valor semântico ordinário ([[α]]o), um valor semântico de foco ([[α]]f), representado por um conjunto de proposições contextualmente determinado, o autor aventa a hipótese de que há um operador σ no nível sentencial (IP) responsável pelo enriquecimento pragmático. No nível semântico, o IPN carrega um traço [+σ] forte e o constituinte que o contém denota um conjunto de alternativas identificado de acordo com o contexto relevante, sendo representado pela função ALT.6 Desse modo, quando o traço [+σ] é checado pelo operador no nível sentencial, σ toma a proposição p contida no constituinte e estabelece uma comparação em termos de informatividade entre ela e todas as outras proposições ALT([[IPN[+σ]]]) = λP.λQ.λw[∃w’ ∃x ∈ Dw [Pw’(x) ∧ Qw(x)] : D’ ⊆ D. Nessa fórmula, D é o domínio mais amplo dos elementos contextualmente relevantes e D’ o mais restrito. 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1029 disponíveis no conjunto, garantindo que p seja a mais forte de todas as alternativas geradas em ALT. Note-se que, ao resolver o impasse composicional entre o cálculo semântico e a restrição pragmática, Chierchia (2006) coloca o IPN sob o escopo de um operador, logo, há uma relação lógico-gramatical que pode estar governando a inserção desses itens em determinados ambientes. Embora esse fato pareça aumentar o poder explicativo da teoria, não fica claro como o operador σ pode ser inserido na computação. Segundo Giannakidou (2011, p. 1693), além de a proposta do operador σ parecer ser uma solução ad hoc, associar o bloqueio de um IPN em uma determinada estrutura ao nível de informatividade ou à inconsistência da sentença é controverso, pois não parece haver qualquer correlação entre informatividade e gramaticalidade, uma vez que uma sentença menos informativa não necessariamente é menos gramatical. Apesar dos problemas elencados, acreditamos que essa abordagem, de viés mais pragmático, evoca uma questão que pode ser muito produtiva na investigação de IPNs, EPNs e, particularmente, no caso do “sequer”, objeto da presente pesquisa. Conforme vimos, itens de polaridade negativa parecem evocar um conjunto de proposições alternativas determinadas pelo contexto, sendo esse o domínio de quantificação que pode ser ampliado. Seria possível, então, que a distribuição de IPNs em sentenças interrogativas esteja relacionada à constituição desse conjunto de alternativas? Na sequência, exploraremos essa questão. 3 IPNs em interrogativas Desde o trabalho pioneiro de Klima (1964), sabe-se que sentenças interrogativas podem atuar como um ambiente que legitima o uso de certos itens e expressões de polaridade negativa. Nesta seção, discutiremos apenas alguns dos trabalhos que tratam do assunto, mas destacamos que há uma literatura bastante consolidada sobre o tema que deve ser melhor explorada, sobretudo para a investigação de IPNs em interrogativas do PB, dada a carência de trabalhos sobre o tópico nessa língua. Podemos começar a discussão tratando de uma das grandes observações sobre o licenciamento de IPNs em interrogativas: o fato de a sentença interrogativa com um IPN não ser interpretada necessariamente como um pedido legítimo por informação. Enunciados como os de 1030 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 (15) e (16), que contêm IPNs conhecidos como “minimizadores”, não requisitam necessariamente uma resposta legítima; nesses casos, a presença de “levantar um dedo” e “ter um pingo de” faz com que a sentença tenha uma interpretação retórica, caracterizada anteriormente como uma asserção negativa (HAN, 2002). (15) Quem levantou um dedo pra te ajudar quando você precisou? (16) A Joana teve um pingo de consideração por você? Grosso modo, ao proferir uma sentença como (15), o falante já sabe que nenhuma das entidades do domínio de quantificação relevante pode saturar a variável “quem”; ou seja, o falante tem conhecimento de que “ninguém ajudou seu interlocutor”. Seguindo os trabalhos de Han (2002) e Guerzoni (2004), podemos dizer que, ao proferir (16), o falante também sabe que “Joana não teve nenhuma consideração por seu interlocutor”. Prova de que perguntas retóricas se assemelham a uma asserção negativa é o fato de que, caso alguém queira responder (15) ou (16), deve haver uma expansão da resposta, não sendo possível apenas dizer algum nome para preencher a variável em (15) ou então “sim/não” para responder completamente (16). Se um falante responder apenas “sim” ou “teve” para “a Joana teve um pingo de consideração por você?”, por exemplo, o interlocutor irá esperar um complemento ou uma retificação da resposta que pelo menos justifique a ação de Joana, provavelmente contrária ao comportamento esperado pelo falante. Nessa situação, é mais provável que se responda algo como “na verdade ela teve um pouco de consideração... não foi tão cruel como todos esperavam”. Note-se que nesses exemplos a interrogativa com IPN parece fazer uma declaração enfática (ECKARDT, 2005; CHIERCHIA, 2013). Em português brasileiro, esse tipo de situação é estruturalmente ainda mais interessante, pois é possível acrescentar o advérbio “lá”, sem um sentido locativo, como um marcador de foco que enfatiza o fato de o falante realmente saber que a proposição contida na pergunta não é verdadeira. (17) Alguém lá levantou um dedo pra te ajudar? (18) A Joana lá teve um pingo de consideração por você? Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1031 Tendo em vista que a denotação de uma questão é um conjunto de proposições que contam como respostas possíveis para a pergunta (HAMBLIN, 1973), interrogativas retóricas parecem ter como denotação um conjunto unário formado pela negação da proposição contida na pergunta (e.g. “Joana não teve um pingo de consideração por você”); afinal, o falante sabe que a proposição inquirida não é verdadeira. Esse fato poderia nos levar a crer que IPNs são licenciados em interrogativas que apresentam uma leitura retórica pelo fato de haver um elemento negativo no contexto em que ocorrem (i.e., no conjunto resposta), o que corroboraria a hipótese do licenciamento sob negação apresentada anteriormente (LINEBARGER, 1980; RIZZI, 1982). Essa constatação, embora plausível, seria um tanto ingênua por uma série de fatores, sendo o principal deles a possibilidade de IPNs serem legitimados em interrogativas que realmente elicitam alguma informação, como nos exemplos abaixo. (19) Com quem sequer a Maria conversou na festa? (20) A Joana abriu a boca no momento certo? Qual fator poderia então explicar a distribuição e o funcionamento de IPNs em interrogativas? Por que certas interrogativas com esses itens apresentam uma leitura retórica? Desde Heim (1984), assume-se que perguntas que licenciam IPNs contêm em sua estrutura um operador “even” oculto, que atua como um focalizador sobre as proposições alternativas evocadas pelo item de polaridade negativa. A ideia é que um falante, ao ouvir um item como “levantar um dedo”, cria um conjunto de proposições alternativas relevantes em relação ao contexto do que se está afirmando, tornando a sentença relevante e informativa (ABELS, 2003); algo semelhante ao que foi proposto por Kadmon e Landman (1993) e Chierchia (2006). Em uma sentença como “Joana não levantou um dedo pra ajudar na mudança”, por exemplo, “levantar um dedo” pode evocar um conjunto formado por proposições como {q1= Joana não fez nenhum movimento pra ajudar, q2 = Joana abriu uma caixa, q3 = Joana encaixotou algumas canecas, q4 = Joana carregou o caminhão sozinha, pn}. Considerando esse conjunto, a sentença afirma que, de todas as ações que Joana poderia ter feito para ajudar na mudança, ela não fez a menor delas. De acordo com Eckardt e Csipak (2013, p. 271-272), o operador 1032 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 “even”, presente em sentenças como a exemplificada, avalia o conjunto de alternativas evocadas e toma a alternativa menos provável do conjunto como sendo verdadeira, o que torna a sentença mais surpreendente. Esse efeito de surpresa é alcançado por uma propriedade semântica de “even”: esse operador não contribui com as condições de verdade da sentença, mas sim com uma pressuposição escalar, cuja definição é dada em (21). (21) ∀ q<s,t> [[q ∈ C & q ≠ p] → q >provável p] Em prosa, (21) nos diz que, para toda proposição q, se q pertence ao conjunto C de proposições construídas pelo contexto e, se q for diferente de p, então a probabilidade de q ser o caso é maior que a de p. Para entendermos melhor qual é o papel do “even” no licenciamento de IPNs, consideremos novamente a sentença exemplificada acima e o conjunto de proposições possíveis evocadas pelo IPN no contexto. (22) Joana não levantou um dedo pra ajudar na mudança. (23) C = {q1= Joana não fez nenhum movimento pra ajudar q2 = Joana abriu uma caixa q3 = Joana encaixotou algumas canecas q4 = Joana carregou o caminhão sozinha ... pn} Dada a situação descrita, quando alguém se propõe a ajudar em uma mudança, é esperado que essa pessoa faça algo, seja montar caixas, desmontar os móveis, fechar caixas ou então carregar toda a mudança no caminhão. A proposição menos provável desse contexto, portanto, é a de que a pessoa não faça nada para ajudar, o que nos leva a dizer que, de todas as proposições q do contexto (C),7 q é mais provável que p, dado que p equivale a “Joana não fez nem o mínimo pra ajudar na mudança”. Essa proposta é explorada, por exemplo, por Guerzoni (2004) para explicar a leitura retórica que surge em certas interrogativas com IPNs. De acordo com a autora, quando “even” tem escopo sobre um item ou expressão que denota o ponto mais baixo de uma escala pragmaticamente saliente O contexto de proposições alternativas é representado pela literatura ora como “C” e ora como “ALT”. Ambas as formas estão sendo empregadas neste trabalho, a variação segue a notação escolhida por cada um dos autores resenhados que mobilizam esse conceito. 7 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1033 no contexto, a leitura retórica está disponível; do contrário, quando o valor focalizado está em um ponto mais alto da escala, a interrogativa com IPN pede uma informação legítima. Em geral, questões com IPNs minimizadores como “um pingo” exibem uma leitura retórica, no entanto, não é impossível que tais itens sejam utilizados em interrogativas que pedem alguma informação (cf. MENDES DE SOUZA et al., 2008). Além disso, provar que o que licencia IPNs em interrogativas é uma relação de escopo de um operador oculto sobre o item é uma tarefa nada trivial; some-se a isso o fato de que a denotação do operador dada em (21) não corresponde exatamente a nossa intuição, uma vez que são as perguntas ordinárias enviesadas que parecem ter um efeito de surpresa e não as interrogativas retóricas. Quando proferimos algo como “sequer a Maria veio?”, por exemplo, por mais que haja um tom de surpresa na pergunta, a proposição indica, na verdade, a situação mais provável: o esperado era que pelo menos Maria viesse, mas não necessariamente o Pedro, o João ou a Alice, por exemplo. Considerando as ideias apresentadas até o momento, não parece ser possível explicar o funcionamento de IPNs em interrogativas utilizando princípios gerais mobilizados para investigar esses itens em outros ambientes, pois o IPN nessas sentenças não parece estar sob o escopo de uma negação ou de qualquer operador oculto; interrogativas também não exibem a propriedade da monotonicidade decrescente e, por mais que possam ser um contexto não-verídico, não são todas as interrogativas que licenciam IPNs. Por conta de fatores como esses, Guerzoni e Sharvit (2007) propõem que o licenciamento de IPNs em perguntas esteja relacionado ao ambiente em que esses itens se encontram, mais especificamente, para as autoras apenas interrogativas que são fortemente exaustivas licenciam IPNs. Na literatura sobre interrogativas, assume-se que saber o significado de uma pergunta equivale a conhecer qual é o conjunto de proposições que podem contar como uma resposta para essa pergunta. Desse modo, é de extrema importância que o falante, ao responder uma questão, tenha em vista as relações adequadas que se mantêm entre o par pergunta-resposta. Algumas interrogativas, por exemplo, exigem apenas que se saiba quais são as possíveis respostas verdadeiras no conjunto, mas outras impõem uma relação de conhecimento mais estreita e demandam que as proposições falsas sejam excluídas do conjunto de possibilidades (DAYAL, 2016, p. 57). Nesse sentido, respostas fortemente exaustivas 1034 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 exigem que o falante declare todas as proposições ótimas para responder à pergunta de um modo completo. Em uma sentença como “João sabe quem dançou”, a variável “quem” só pode ser saturada exaustivamente caso João seja capaz de indicar todas as pessoas que dançaram, bem como aquelas que não dançaram. Considerando essa mesma situação, uma resposta exaustivamente fraca pede apenas que João seja capaz de listar algumas das pessoas que dançaram. Dentre os tipos de pergunta existentes, interrogativas polares notadamente pedem uma resposta de exaustividade forte, posto que sua denotação é uma partição binária do espaço de possibilidades (DAYAL, 2016, p. 87). De acordo com Hamblin (1973), o conjunto resposta de perguntas polares contém apenas duas proposições: uma que traz o conteúdo proposicional da própria questão e outra que estabelece seu oposto polar ([[Qpol]] = ^{p, ¬p}). Ou seja, se um falante sabe o que é uma resposta adequada para uma pergunta polar, necessariamente ele também sabe o que não conta como uma resposta, portanto, se todas as possibilidades são consideradas, elas são exauridas. Guerzoni e Sharvit (2007) argumentam que IPNs são licenciados nesse ambiente e a sentença (24) demonstra que dados do PB, aparentemente, corroboram a hipótese. (24) A Maria sequer te ajudou? Outro tipo de interrogativa que pede uma resposta fortemente exaustiva são as perguntas de alternativa, como “Joana veio ou não?” ou então “Pedro assou o bolo ou a torta?”. Conforme a sentença (25) indica, IPNs também podem ser licenciados nesse ambiente, que exige um conhecimento preciso por parte do falante do que pode ser verdadeiro e do que não pode. Uma última classe de sentenças interrogativas, as wh, pode ter uma leitura de exaustividade forte ou fraca, a depender do predicado em que ocorre. Dayal (2016) sugere que predicados como “ficar surpreso” selecionam exaustividade fraca e, por isso, não licenciam IPNs em interrogativas, ao passo que predicados como “imaginar” exigem exaustividade forte, licenciando, portanto, IPNs. Os dados (26) e (27) do PB não parecem confirmar essas assunções, pois IPNs são legitimados na presença de ambos os predicados. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1035 (25) Joana deu a mínima para o que você estava falando ou não? (26) Pedro ficou surpreso com quais alunos sequer sabiam o que era semântica. (27) Pedro imagina quais alunos sequer sabem o que é semântica. Alguns autores expandem a proposta de Guerzoni e Sharvit (2007) para oferecer uma explicação para o licenciamento de IPNs em interrogativas que seja mais uniforme, estando de acordo também com a possibilidade de esses itens serem licenciados em outros contextos. Nicolae (2015), por exemplo, sugere que a leitura de exaustividade forte que licencia IPNs em interrogativas seja, na verdade, uma noção derivada de um operador de exaustividade oculto do tipo “only”, localizado abaixo do núcleo interrogativo (Cº). Em linhas gerais, o funcionamento desse operador é análogo ao funcionamento de “even”, descrito acima. De acordo com a autora, “only” toma como seu argumento uma proposição p e uma variável contextual que indica o conjunto de alternativas disponíveis no contexto (Alt(p)), algo semelhante ao conjunto de proposições contextualmente dadas (C), apresentado anteriormente. Desse modo, uma interrogativa wh como “quem viu a Joana?”, por exemplo, seria fortemente exaustiva se “only” atuasse sobre o operador wh, mapeando uma resposta como “só o Pedro viu a Joana”, selecionada de um conjunto como {λw.[only Maria viu a Joana]w, λw.[only Antônio viu a Joana]w, λw.[only Pedro viu a Joana]w …}. Esse operador proposto por Nicolae (2015) cria, de acordo com a autora, um contexto local de monotonicidade decrescente e é por esse motivo que IPNs são licenciados em interrogativas que pedem uma resposta exaustiva. A autora, portanto, concorda com a hipótese de Ladusaw (1979) e diz que é o contexto monotônico que permite a presença de IPNs. No caso das interrogativas, a propriedade relevante de MD não pertence ao contexto inquisitivo, mas sim ao operador “only”, assim, interrogativas são vistas por Nicolae (2015) como globalmente não monotônicas, apresentando apenas localmente a propriedade da monotonicidade decrescente. Conforme é possível observar, as abordagens que tratam do licenciamento de IPNs em interrogativas também apresentam uma série de problemas que não sustentam as hipóteses aventadas. Ao menos em uma primeira análise, IPNs em interrogativas não estão sob o escopo de 1036 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 uma negação que possa licenciá-los; não indicam que a proposição contida na pergunta é a menos provável do contexto; não levam unicamente a uma leitura retórica, pois certas perguntas pedem de fato uma informação; e não parecem estar restritos a perguntas que exigem respostas exaustivas. A proposta mais promissora, aparentemente, é a que considera a estrutura da sentença interrogativa enquanto o fator que governa a distribuição de IPNs nesses contextos. Seria necessário investigar melhor, por exemplo, o trabalho de Nicolae (2015), por mais problemática que seja a assunção de que há um operador oculto que cria um contexto de MD local em interrogativas, propiciando o surgimento de IPNs em certas questões. Se virtualmente o operador de exaustividade está sempre disponível, o que explica o bloqueio de IPNs em determinados contextos? Nenhum dos trabalhos discutidos explica realmente o que licencia esses itens nos mais diversos ambientes, mas há alguns apontamentos em comum que podem guiar nossa análise: IPNs evocam um conjunto de alternativas contextualmente determinado e podem levar a sentença a ser interpretada como um fato surpreendente para o falante, o que parece ter relação com algum traço de foco na estrutura. Tendo isso em vista, na próxima seção analisaremos exclusivamente o funcionamento e a distribuição do IPN “sequer” em interrogativas do PB, buscando, com base na relação entre estrutura sintática e interpretação semântica, alguma pista que nos permita, em trabalhos futuros, explicar de um modo mais uniforme o funcionamento de IPNs em um ambiente inquisitivo. 4 A distribuição e o licenciamento de “sequer” em interrogativas do PB Nesta seção, investigaremos a distribuição do IPN “sequer” em sentenças interrogativas do PB, buscando delinear uma denotação para esse item e compreender seu licenciamento. Conforme dissemos na introdução deste trabalho, optamos por verificar o funcionamento apenas do “sequer” e não de outros itens ou expressões de polaridade negativa, tais como os minimizadores, pelo fato de “sequer” já ter sido legitimado enquanto um IPN por Mendes de Souza et al. (2008). Além disso, conforme os dados abaixo demonstram, “sequer” parece ser licenciado em todos os tipos de estrutura inquisitiva (interrogativas polares, perguntas de alternativa e questões de constituintes (wh)), o pode nos oferecer um bom panorama inicial sobre o licenciamento de IPNs nesse ambiente. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1037 (28) Sequer a Maria veio pra festa? (29) Joana sequer comprou ou xerocou o livro? (30) De quem sequer a Joana gosta? Dentre as possíveis leituras para interrogativas com IPN, descritas na introdução deste trabalho, notamos que (28) é uma pergunta ordinária enviesada, posto que elicita uma informação, mas carrega a pressuposição de que ninguém veio para a festa, e isso, de algum modo, surpreende o falante. Os enunciados em (29) e (30) também solicitam uma informação, no entanto, não apresentam necessariamente o mesmo efeito de surpresa gerado por (28). Por conta disso, as sentenças “Joana sequer comprou ou xerocou o livro?” e “de quem sequer a Joana gosta?” podem ser classificadas, inicialmente, enquanto interrogativas ordinárias, semelhantes a uma pergunta-eco. Considerando que o efeito de surpresa é o que diferencia os tipos de interrogativa que solicitam uma informação genuína, ainda que exijam apenas a confirmação de uma informação, é interessante buscar uma explicação para o que gera esse efeito. Para tanto, podemos considerar o domínio de quantificação relevante de (28), supondo uma situação na qual muitas pessoas foram convidadas para uma dada festa, de tal modo que teríamos o seguinte conjunto contextualmente determinado: {“Maria vir para a festa”, “Pedro vir para a festa”, “João vir para a festa”, “Alice vir para a festa”}; desse conjunto de alternativas, o esperado era que pelo menos a primeira proposição fosse verdadeira (digamos que Maria não costuma perder nenhuma festa), daí o fato de a sentença expressar uma espécie de ênfase ou surpresa. Ou seja, quando (28) é proferido, o enunciado carrega a pressuposição de que ninguém veio para a festa e o fato de “vir para a festa” não se aplicar nem ao menos à Maria surpreende o falante, que pede a confirmação dessa informação. A observação de que “sequer” pode ser licenciado nesse ambiente pode corroborar a ideia de que perguntas que pedem respostas exaustivas licenciam IPNs (GUERZONI; SHARVIT, 2007; NICOLAE, 2015), afinal, se o interlocutor sabe que “nem a Maria veio”, então necessariamente ele também sabe que o predicado “vir” não se aplica a nenhuma outra pessoa do conjunto relevante, o que configura o quadro completo de respostas possíveis para a pergunta (28). Grosso modo, o falante sabe que se “sequer 1038 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 a Maria veio”, então necessariamente “Pedro não veio”, “João não veio”, “Alice não veio” e assim por diante. Um ponto curioso que pode ser observado no comportamento de “sequer” em (28) é que sua contribuição semântica para a sentença é bastante semelhante à contribuição do “even”, descrita na seção anterior. O “sequer” também parece disparar uma pressuposição escalar, no entanto, diferentemente de “even”, essa pressuposição indica que a proposição p contida na interrogativa figura como a mais provável do conjunto relevante, o que pode ser formalmente explicitado por (31). (31) ∀ q<s,t> [[q ∈ Calt & q ≠ p] → q provável< p] Ainda considerando o exemplo dado em (28), podemos esboçar uma explicação para por que interrogativas não exibem a propriedade da monotonicidade decrescente. Na seção 2, seguindo Dayal (2016), buscamos demonstrar que a noção de acarretamento relacionada à monotonicidade decrescente não poderia ser verificada em interrogativas. Considerando as proposições alternativas evocadas por uma questão polar com “sequer”, como (28), talvez possamos ao menos oferecer um argumento para o porquê de interrogativas não exibirem MD, algo que não é muito explorado na literatura.8 Quando um falante questiona algo como “sequer a Maria veio?”, a pergunta inclui a pressuposição de que ninguém veio. Ou seja, a relação relevante que a pergunta evoca não é a de subconjunto, exigida pela monotonicidade, mas sim a de intersecção, posto que a interrogação diz respeito ao conjunto de pessoas esperadas para a festa (Pe) e o conjunto de pessoas que realmente veio (Pv). Em (28), portanto, a interrogação sobre nem ao menos Maria ter vindo à festa carrega o pressuposto de que a intersecção entre os conjuntos contextualmente relevantes é vazia [{Pe} ∩ {Pv} = Ø].Logo, a propriedade da monotonicidade decrescente não pode ser aplicada a esse ambiente. O enunciado exibido em (29), “Joana sequer comprou ou xerocou o livro?”, caso apresente uma curva entoacional mais específica, pode também ter uma leitura de surpresa, gerada pela pressuposição de que “Joana não comprou e não xerocou o livro”. Ou seja, a relação semântica Note-se que o raciocínio proposto por Dayal (2016) serve como teste para demonstrar que interrogativas não criam contextos de monotonicidade decrescente, no entanto, a autora não explica por que isso acontece. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1039 relevante que gera a surpresa do falante também pode ser descrita tendo-se em vista a intersecção vazia entre conjuntos contextualmente relevantes: aquilo que Joana poderia ter feito para obter o livro {“x comprar o livro”, “x xerocar o livro”, “x emprestar o livro”...} e aquilo que ela realmente fez (não tomou nenhuma atitude). O fato de Joana não ter feito nada para conseguir o livro surpreende o falante, o que o faz solicitar ao seu interlocutor a confirmação dessa informação; nesse caso, a sentença se assemelha a uma interrogativa polar, e não a uma interrogativa de alternativa, que visa a confirmação de uma informação contida no conjunto-resposta, formado, nessa situação, por pelo menos duas proposições {^Joana não comprou o livro, ^Joana não xerocou o livro… pn}. Para que (29) seja interpretado enquanto uma pergunta ordinária, pode-se considerar o seguinte cenário, em que o falante pede a confirmação de uma informação, sem o efeito de surpresa: os falantes A e B estão conversando sobre um livro que será muito importante para o semestre, e o falante A comenta que uma colega não se incomodou em obter um exemplar, de tal modo que nem ao menos tirou uma cópia do conteúdo que seria mais urgente. Como o falante B estava desatento, não percebeu se A comentou que a colega não havia comprado o livro ou feito uma cópia, por isso profere (29), visando saber qual das duas situações é verdadeira. Ou seja, apenas uma das proposições do conjunto-resposta satisfaz a interrogativa. Em (29), portanto, podemos ter tanto uma pergunta-eco, relacionada à pergunta ordinária, quanto uma pergunta com efeito de surpresa, relacionada à pergunta ordinária enviesada. Em ambos os casos, o ambiente inquisitivo é exaustivo, o que parece corroborar, portanto, a hipótese de Guerzoni e Sharvit (2007). Embora o exemplo analisado mostre que “sequer” pode funcionar em interrogativas de alternativa do tipo “x ou y”, deve-se destacar que em interrogativas de alternativa polar, cuja estrutura pode ser dada por “A-não-A”, esse IPN é bloqueado, conforme observamos abaixo: (32) *Maria sequer assou o bolo ou não? (33) *Maria sequer ligou ou não? A agramaticalidade dessas sentenças é um contraexemplo para diversas abordagens sobre o licenciamento de IPNs apresentadas anteriormente e impõe um problema mais sério para a hipótese da exaustividade forte que parecia ser sustentada pelos exemplos em (28) 1040 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 e (29). Caso a hipótese de Guerzoni e Sharvit (2007) e Nicolae (2015) estivesse correta, esse tipo de comportamento do item “sequer” não seria esperado, pois questões de alternativa polar são também fortemente exaustivas, dado que ao responder uma inquisição como “Maria veio ou não?”, o falante sabe exatamente quais proposições do conjunto resposta são verdadeiras e quais são falsas. Além disso, deve-se notar que “ou” cria um contexto não verídico, logo, a hipótese de Giannakidou (2011) também não pode explicar o comportamento observado, pois, para a autora, é esse tipo de contexto que propicia o licenciamento de itens e expressões de polaridade negativa. Seria possível, ainda, cogitar a hipótese de que a agramaticalidade de uma sentença como (32) é decorrente de um efeito de escopo, uma vez que o IPN encontra-se em uma relação de escopo amplo sobre o VP; no entanto, os dados abaixo demonstram que “sequer” em interrogativas de alternativa polar também não pode ser licenciado tendo como escopo o sintagma nominal na posição de objeto. (34) a. *Maria assou sequer o bolo ou não? b. *Pedro leu sequer um livro ou não? c. *João sabe sequer matemática ou não? O que poderia, então, explicar a agramaticalidade de “sequer” em sentenças interrogativas “A-não-A”? Na seção 2, observamos que IPNs e EPNs podem ser licenciados na ausência de uma negação, no entanto, quando uma estrutura NegP está presente, o IPN não pode ter escopo amplo sobre o elemento negativo, de tal modo que essa interação mapearia uma sentença agramatical [*IPN > NegP]. Interrogativas de alternativa polar apresentam em sua estrutura um elemento negativo morfologicamente realizado na posição mais baixa da sentença, o que faz com que o IPN necessariamente tenha escopo sobre a negação [*sequer > não(p)]. Em um primeiro olhar, portanto, a hipótese de Linerbarger (1980) e Rizzi (1982) poderia explicar a restrição imposta ao aparecimento de “sequer” em interrogativas de alternativa polar, mas deve-se notar que podemos encontrar outros elementos de polaridade negativa nesse ambiente, tal como apresentamos na sentença (1c), replicada abaixo. (35) Ela deu a mínima para o que o Pedro falou ou não? Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1041 Se o minimizador “dar a mínima” pode aparecer em uma posição mais alta do que a negação, em uma interrogativa que solicita realmente a confirmação de uma informação, talvez a hipótese do escopo de uma negação não seja uma boa explicação para a agramaticalidade de interrogativas “A-não-A” com “sequer”. Uma saída possível para buscar uma explicação para o bloqueio de “sequer” em perguntas de alternativa polar reside, assim, em observar a interação entre propriedades do IPN e do ambiente “A-não-A”. Primeiramente, devemos ter em vista o fato de que o IPN cria um conjunto de alternativas relevantes em relação ao contexto e estabelece que a proposição p, contida na interrogativa, é a mais provável. Nas interrogativas polar e de alternativa, discutidas anteriormente, notamos que em (28) o IPN atuava sobre o conjunto de pessoas esperadas para a festa, sendo, assim, “Maria vir para a festa” a proposição mais provável; e, em (29), “sequer” aventava o conjunto de coisas que Joana poderia ter feito para obter o livro, sendo que a questão incidia sobre ela ter ou “não comprado” ou “não xerocado” o livro, de tal modo que as duas proposições seriam as mais prováveis do contexto. Note-se, ainda, que uma interrogativa com “sequer” sempre questiona se a proposição (mais provável) não é o caso, isto é, interrogar “sequer a Maria veio?” equivale a perguntar se “Maria não veio” e, analogamente, interrogar “Joana sequer comprou ou xerocou o livro?” equivale a perguntar se “Joana não comprou o livro” ou “Joana não xerocou o livro”. Em uma pergunta de alternativa polar, como (32), o conjunto contextual relevante não contém mais informação do que a proposição nuclear presente na interrogativa. Desse modo, “sequer” não pode ranquear as alternativas relevantes localizando a mais provável do contexto, uma vez que o domínio de quantificação não recai sobre indivíduos ou eventos, trata-se, na verdade, de um mesmo evento desempenhado por um mesmo indivíduo. Além disso, se considerarmos que “sequer” incide sobre a proposição contida na interrogativa, questionando se ela não é o caso, em (32) obteríamos algo como “*Maria não assou o bolo ou não?”, uma sentença redundante e, portanto, pouco informativa. Parece, então, que são propriedades lógicas do “sequer” que impedem seu licenciamento em estruturas interrogativas “A-não-A”. Uma última estrutura interrogativa a ser analisada diz respeito às perguntas de constituinte ou wh. Assim como no caso das interrogativas polares e de alternativa (não polar), sentenças wh também licenciam o IPN “sequer”. Nesse caso, a interpretação é a de que há um pedido de 1042 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 informação genuíno que possa atualizar o estado epistêmico do falante, ou seja, interrogativas de constituinte com “sequer” são interpretadas enquanto perguntas ordinárias, sem o efeito de surpresa. A sentença (30), “de quem sequer a Joana gosta?”, por exemplo, pede que o interlocutor selecione do conjunto relevante um único indivíduo que possa saturar a estrutura “nem Joana gosta de y”. Esse fato traz dois pontos interessantes: (i) a resposta acaba sendo fortemente exaustiva, posto que se o falante sabe quem é o indivíduo de quem nem a Joana gosta, então necessariamente ele também sabe que o predicado “nem Joana gostar de y” não se aplica a nenhum outro indivíduo do domínio de quantificação relevante; e (ii) a pergunta carrega a pressuposição de que ninguém gosta de um determinado indivíduo, logo, esse tipo de interrogativa pode também ser interpretada com um efeito de surpresa, além de solicitar uma informação que preencha a variável “quem”. Nesse caso, seria esperado que pelo menos Joana gostasse do indivíduo y, mas, como nem ao menos Joana gosta de y, pode haver uma espécie de espanto por parte do falante ao proferir esse tipo de pergunta. Além da questão interpretativa, outro fato interessante sobre a estrutura das interrogativas wh e sua interação com “sequer” é a relação de escopo que deve ser respeitada para que a sentença seja licenciada: o IPN precisa ter escopo amplo sobre o elemento interrogativo, caso essa ordem seja violada, as seguintes sentenças são mapeadas enquanto agramaticais. (36) a. *Sequer quem ligou? b. *Sequer quando Maria disse que vem? c. *Sequer de quem a Maria gosta? O fato de o IPN não poder incidir diretamente sobre o CP interrogativo poderia ser um argumento para abordagens que postulam um operador oculto abaixo do núcleo de CP como sendo o responsável pelo licenciamento de itens de polaridade negativa (NICOLAE, 2015). No entanto, esse tipo de abordagem não poderia explicar o bloqueio de “sequer” em uma interrogativa “A-não-A”, por exemplo, dado que o operador deveria estar virtualmente disponível nesse tipo de estrutura também. Assim, com base nos dados e na discussão apresentados, a distribuição e o licenciamento de “sequer” em interrogativas do PB parece favorecer a hipótese da exaustividade (GUERZONI; SHARVIT, 2007), 1043 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 pois todos os ambientes nos quais “sequer” é licenciado exigem respostas exaustivas. O bloqueio de “sequer” em estruturas de alternativa polar não parece estar relacionado à propriedade da exaustividade, mas sim a uma incompatibilidade lógica entre a propriedade de escalaridade do IPN e as proposições alternativas criadas pelo contexto da interrogativa, que não formam um conjunto suficientemente grande para ser avaliado e escalonado. Considerando que outros itens e expressões de polaridade negativa são habilitados a constituir uma interrogativa “A-não-A”, acreditamos que o bloqueio de “sequer” nesse ambiente não seja um contra-argumento para a hipótese de Guerzoni e Sharvit (2007). Notese que, apesar de assumirmos que é a exaustividade que pode estar controlando o licenciamento de “sequer” em estruturas inquisitivas, não associamos essa propriedade à abordagem de Nicolae (2015), que defende a existência de um operador oculto que criaria localmente um ambiente de monotonicidade decrescente. Com isso, podemos formar um primeiro quadro de funcionamento do IPN “sequer” em interrogativas do PB, resumido no quadro abaixo. QUADRO 1 – Ambientes interrogativos que licenciam “sequer” e leituras permitidas Admite pergunta ordinária enviesada? Tipo de interrogativa Licencia “sequer”? Wh √ – √ √ Polar √ – – √ Alternativa √ – √ √ Alternativa polar * – – – Admite pergunta Admite pergunta retórica? ordinária? Fonte: elaborado pela autora. Esse quadro de distribuição do “sequer” demonstra que apenas interrogativas de alternativa polar não licenciam o IPN sob análise e, além disso, a leitura retórica não parece estar disponível para nenhum dos casos. Por mais que uma pergunta com “sequer” possa carregar a pressuposição de que nem o caso mais provável do conjunto de alternativas aconteceu, como ocorre na leitura de surpresa atrelada à pergunta ordinária enviesada, o “sequer” não parece poder se relacionar a uma asserção negativa. Ou seja, esse IPN sempre solicita uma informação 1044 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 legítima, ainda que elicie apenas a confirmação de algo declarado anteriormente na situação discursiva. Na seção 3, discorremos sobre a possibilidade de se inserir o advérbio “lá”, sem um sentido locativo, em estruturas interrogativas com IPNs e EPNs, para enfatizar o fato de o falante realmente saber que a proposição contida na pergunta não é verdadeira. Esse advérbio marcador de foco não é licenciado em estruturas com “sequer”, o que pode comprovar a impossibilidade de se obter uma leitura retórica de interrogativas com esse IPN. (37) a. * Lá sequer a Maria veio pra festa? b. * Joana lá sequer comprou ou xerocou o livro? c. * De quem lá sequer a Joana gosta? Observamos, também, que em todos os ambientes nos quais “sequer” é licenciado, a pergunta obtém uma resposta exaustiva e concluímos que o fato de “sequer” não ser licenciado em uma estrutura “A-não-A” não é um contra-argumento para a hipótese da exaustividade (GUERZONI; SHARVIT, 2007); afinal, parece haver apenas uma incompatibilidade entre a contribuição semântica do “sequer” na sentença e a estrutura da interrogativa. Em sentenças como “*Pedro sequer leu o livro ou não?” não há proposições alternativas suficientes no contexto para que o IPN ranqueie a proposição contida na questão como a mais provável, tal fato bloqueia, assim, o aparecimento de “sequer” nesse tipo de estrutura. Por mais que as explicações sugeridas para o licenciamento de “sequer” sejam ainda bastante incipientes e de caráter especulativo, esperamos que a discussão aqui elaborada tenha sido relevante não apenas para os estudos sobre os itens de polaridade negativa, como também para investigações a respeito da semântica das questões, pois demonstramos, por exemplo, o porquê de interrogativas não poderem exibir a propriedade da monotonicidade decrescente. Além disso, conseguimos aventar uma semântica para o “sequer” (cf. (31)), baseada na hipótese de que esse item dispara uma pressuposição escalar, que parece explicar o bloqueio desse item em estruturas interrogativas “A-não-A”. Esperamos, com isso, ter Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1045 dado apenas o primeiro passo para compreender melhor o funcionamento de IPNs e EPNs em interrogativas. 5 Considerações finais Neste trabalho, discutimos o funcionamento do item de polaridade negativa “sequer” em sentenças interrogativas do PB. Demonstramos, inicialmente, quais são os problemas que o licenciamento de IPNs nesse ambiente impõe para as abordagens mais consolidadas da literatura (LADUSAW, 1979; LINEBARGER, 1980; RIZZI, 1982; HEIM, 1984; GIANNAKIDOU, 1995, 2011; NICOLAE, 2015; GUERZONI; SHARVIT, 2007). Após discutirmos algumas especificidades de cada abordagem apresentada, com destaque para as hipóteses (a) do licenciamento sob o escopo de uma negação (LINEBARGER, 1980; RIZZI, 1982); (b) da monotonicidade decrescente (LADUSAW, 1979); (c) da não veridicidade (GIANNAKIDOU, 1995, 2011); (d) da hipótese da ampliação de domínio; (e) do licenciamento de IPNs na presença de um operador oculto (HEIM, 1984; NICOLAE, 2015); e (f) da hipótese da exaustividade, investigamos a distribuição do “sequer” em interrogativas do PB e demonstramos que as abordagens discutidas têm um poder explicativo bastante estreito sobre o fenômeno, não dando conta da assimetria observada entre sentenças como “sequer a maria veio?” e “*sequer a Maria veio ou não?”. Apesar de tal fato, os dados apontaram para uma maior produtividade da hipótese da exaustividade, defendida por Guerzoni e Sharvit (2007). Por mais que a investigação elaborada tenha sido uma primeira tentativa de sistematização desse tipo de dado em português brasileiro, encontramos alguns fatos interessantes sobre o “sequer” relacionados ao tipo de estrutura interrogativa em que pode ocorrer e ao tipo de interpretação que surge como consequência dessa relação de licenciamento. Notamos, primeiramente, que esse item pode aparecer em interrogativas polares, em perguntas de alternativa (não polar) e em questões wh. O único ambiente que restringe “sequer” de um modo sistemático é o das interrogativas de alternativa polar do tipo A-não-A, provavelmente porque há uma incompatibilidade entre a semântica do “sequer” e a estrutura da interrogativa, que não permite a criação de um conjunto amplo de proposições alternativas sobre o qual “sequer” atuaria. Com a análise, também demonstramos que interrogativas com “sequer” não permitem uma leitura retórica, podendo variar apenas entre uma 1046 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 pergunta que elicita uma informação legítima e uma pergunta que, além de elicitar a informação, demonstra uma espécie de surpresa do falante em relação à proposição contida na questão. Explicamos a origem dessa leitura de surpresa com base na ideia de que o falante pressupõe que a intersecção entre os conjuntos de informação contextualmente relevantes é vazia. Contrariamente ao que foi postulado por autores como Heim (1984) e Abels (2003) para o operador “even”, assumimos que a semântica de “sequer” parece tomar a proposição contida na interrogação como foco e torná-la a proposição mais provável no conjunto disponível e não a menos verossímil. O que a leitura de surpresa evoca, portanto, é que nem o mais provável para a situação aconteceu, daí o efeito de espanto. Nossa investigação demonstrou que o licenciamento de IPNs é um fenômeno complexo e, ao menos até o momento, não parece estar restrito a apenas uma fonte gramatical. Nos parece que o caminho a ser seguido em trabalhos futuros deva se adequar às ideias de Chierchia (2013), pois não basta encontrar quais estruturas bloqueiam a distribuição de itens e expressões de polaridade negativa, é preciso demonstrar quais são os tipos de significado que podem gerar a distribuição e o funcionamento desses elementos. Esperamos que as ideias aqui discutidas se apresentem como um ponto de partida para essa tarefa. Agradecimentos Gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão da bolsa de doutorado que tornou este trabalho possível. Também agradeço ao professor Renato Miguel Basso e aos pareceristas anônimos pela leitura atenta do texto. Qualquer erro que possa ser encontrado é de minha inteira responsabilidade. Referências ABELS, K. Who gives a damn about minimizers in questions? In: SEMANTICS AND LINGUISTIC THEORY, 13., 2003, Washington. Proceedings… Washington: Linguist Society of America, 2003. DOI: https://doi.org/10.3765/salt.v13i0.2895 CHIERCHIA, G. Broaden your views: Implicatures of domain widening and the “logicality” of language your views. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 37, n. 4, p. 535-590, 2006. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1047 CHIERCHIA, G. Logic in grammar: Polarity, Free Choice, and Intervention. Oxford: Oxford University Press, 2013. Doi: https://doi. org/10.1093/acprof:oso/9780199697977.001.0001 DAYAL, V. Questions. Oxford: Oxford University Press, 2016. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199281268.001.0001 ECKARDT, R. Too poor to mention. In: MAIENBORN, Claudia; WÖLLSTEIN-LEISTEN, Angelika (Ed.). Events in Grammar. Tübingen, Niemeyer, 2005. p. 301-330. ECKARDT, R.; SAILER, M. Beyond “any” and “ever”. In: CSIPAK, E.; ECKARDT, R. et al. (Ed.). Beyond ‘any’ and ‘ever’: new Explorations in Negative Polarity Sensitivity. Berlim; Boston: De Gruyter, 2013. DOI: https://doi.org/10.1515/9783110305234.3 ECKARDT, R.; CSIPAK, E. Minimizers – Towards pragmatic licensing. In: CSIPAK, E.; ECKARDT, R. et al. (Ed.). Beyond ‘any’ and ‘ever’: new Explorations in Negative Polarity Sensitivity. Berlim; Boston: De Gruyter, 2013. DOI: https://doi.org/10.1515/9783110305234.267 GIANAKKIDOU, A. Polarity sensitivity as (non)veridical dependency. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1998. DOI: https:// doi.org/10.1075/la.23 GIANNAKIDOU, A. Subjunctive, habituality and negative polarity. In: In: SEMANTICS AND LINGUISTIC THEORY, 5., 1995, Ithaka. Proceedings… Ithaka, NY: Cornell University, 1995. p. 132-150. DOI: https://doi.org/10.3765/salt.v5i0.2703 GIANNAKIDOU, A. Licensing and Sensitivity in Polarity Items: from Downward Entailment to (Non)veridicality. In: CONFERENCE OF CHICAGO LINGUISTIC SOCIETY, 38., Chicago. Proceedings… Chicago: Chicago Linguistic Society, 2002. v. 38, n. 2, p. 29-54 GIANNAKIDOU, A. Negative and Positive Polarity Items: Variation, Licensing, and Compositionality. In: MAIENBORN, C.; von HEUSINGER, C.; PORTNER, P. (Ed.). Semantics: An International Handbook of Natural Language Meaning. Berlin: Mouton de Gruyter, 2011. p. 1660-1712. GUERZONI, E. Even-NPIs in yes-no questions. Natural Language Semantics, [S.l.], v. 12, n. 4, p. 319-343, 2004. 1048 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 GUERZONI, E.; SHARVIT, D. A question of strength: On NPIs in interrogative clauses. Linguistics & Philosophy, [S.l.], v. 30, n. 3, p. 361-391, 2007. HAMBLIN, C. L. Questions in Montague English. Foundations of Language, [S.l.], v. 10, n. 1, p. 41-53, 1973. HAN, C. Interpreting interrogatives as rhetorical questions. Lingua, [S.l.], v. 112, p. 201-229, 2002. HAN, C.; SIEGEL, L. Syntactic and semantic conditions on NPI licensing in questions. In: In: WEST COAST CONFERENCE IN FORMAL LINGUISTICS, v. 15, Irvine, CA. Proceedings… Irvine, CA: University of California, 1997. p. 177-191. HEIM, I. A Note on negative polarity and downward entailingness. In: NORTH EAST LINGUISTIC SOCIETY, 14., Amherst, MA. Proceedings... Amherst, MA: Graduate Linguistics Student Association, 1984. p. 98-107. ILARI, R. Locuções negativas polares: Reflexões sobre um tema de todo mundo. In: Linguística: Questões e Controvérsias. Uberaba: Fac. Integrada de Uberaba, 1984. p. 83-97. (Série estudos 10) KADMON, N.; LANDMAN, F. Any. Linguistics & Philosophy, [S.l.], v. 16, n.4, p. 353-422, 1993. DOI: https://doi.org/10.1007/BF00985272 KLIMA, E. Negation in English. In: FODOR, J.; KATZ, J. (Ed.). The Structure of Language. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1964. p. 246-323. KRIFKA, M. The semantics and pragmatics of polarity items. Linguistic Analysis, [S.l.], v. 25, p. 209-257, 1995. LADUSAW, W. A. Polarity Sensitivity as Inherent Scope Relations. 1979. Dissertation (Ph.D.) – University of Texas at Austin, Austin, 1979. LADUSAW, W. A. Polarity Sensitivity as Inherent Scope Relations: New York: Garland, 1980. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1015-1049, abr./jun. 2019 1049 LINEBARGER, M. The Grammar of Negative Polarity. 1980 Dissertation (Ph.D.) – MIT, Cambridge, MA, 1980. LINEBARGER, M. Negative Polarity and Grammatical Representation. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 10, 3, p. 325-387, 1987. MENDES DE SOUZA, L.; GRITTI, L. L.; PIRES DE OLIVEIRA, R. Um estudo sobre os itens de polaridade negativa no PB e seu licenciamento. Working Papers in Linguística, Florianópolis, v. 9, n. 2, p. 23-40, jul-dez, 2008. NEGRI, L. Zona de fronteira: a delimitação entre a semântica e a pragmática sob a lente das expressões de polaridade negativa. 2006. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006. NICOLAE, A. Questions with NPIs. Nat Lang Semantics, [S.l.], v. 23, n. 1, p. 21-76, 2015. DOI: https://doi.org/10.1007/s11050-014-9110-8 RIZZI, L. Issues in Italian syntax. Dordrecht: Foris, 1982. DOI: https:// doi.org/10.1515/9783110883718 ZWARTS, F. Nonveridical contexts. Linguistic Analysis, [S.l.], v. 25, p. 286-312, 1995. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 The relevance of future vs. non-future languages for the understanding of the role of tense in counterfactuals sentences A relevância de línguas do sistema futuro vs. não-futuro para se entender o papel do tempo gramatical em sentenças contrafactuais Luiz Fernando Ferreira Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo / Brazil luiz.ferreira@usp.br Ana Müller Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo / Brazil anamuler@usp.br Abstract: A sentence is counterfactual when it implicates that the proposition it denotes is false (Iatridou, 2000). It has been noted that the past tense behaves non-canonically in counterfactual constructions in several unrelated languages, since it does not seem to convey pastness. A similar behavior is found in Karitiana, a Tupian language that belongs to the future vs. non-future system. It is the non-future that is used non-canonically in counterfactuals in Karitiana. Some authors posit that the past tense has a modal interpretation in counterfactual environments (JAMES, 1982; FLEISCHMAN, 1989; IATRIDOU, 2000; PALMER, 2001; van LINDEN; VERSTRAETE; 2008). Others posit that tense is just tense in these environments (IPPOLITO, 2002, 2003; ARREGUI, 2005). The goal of this paper is to describe the semantics of counterfactual sentences in Karitiana, and show that the language supports the Tense as Tense approach to counterfactuals. Thus, bringing data from Karitiana becomes relevant because, besides giving a description of counterfactuality in the language, it brings data from a typologically distinct language to bear on the choice between two important theoretical approaches. Keywords: counterfactuality; tense; past; indigenous languages. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.1051-1099 1052 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 Resumo: Uma sentença é contrafactual quando implica que a proposição que ela denota é falsa (Iatridou, 2000). Tem sido observado, em diversas línguas de famílias não relacionadas, que a morfologia de passado usada em sentenças contrafactuais possui um comportamento inesperado. Ela parece não expressar a noção de tempo passado. Observamos um comportamento semelhante em uma língua que não têm morfologia de passado, mas cujo sistema temporal expressa a distinção futuro vs. nãofuturo – o Karitiana, língua Tupi. Nessa língua, a morfologia de não-futuro, quando usada em sentenças contrafactuais, não expressa ausência de futuridade. Alguns autores consideram que em contrafactuais o tempo gramatical tem uma interpretação modal (JAMES, 1982; FLEISCHMAN, 1989; IATRIDOU, 2000; PALMER, 2001; van LINDEN; VERSTRAETE; 2008). Outros consideram que o tempo mantém sua interpretação temporal (IPPOLITO, 2002, 2003; ARREGUI, 2005). O objetivo deste artigo é avaliar essas duas teorias frente ao comportamento das construções contrafactuais em Karitiana. O artigo mostra que os dados de uma língua do sistema temporal futuro vs. não-futuro contribuem para a avaliação de qual das duas abordagens mencionadas acima oferece a proposta mais plausível para o papel da flexão temporal em sentenças contrafactuais. A primeira abordagem funciona exclusivamente para línguas que possuem a morfologia de passado. Por outro lado, a segunda abordagem é capaz de fornecer uma explicação para o comportamento distinto da flexão temporal tanto em línguas do sistema futuro vs. não-futuro, como em línguas do sistema passado vs. presente vs. futuro. Assim, a discussão da língua Karitiana é relevante porque, além de aprofundar a descrição das sentenças contrafactuais nessa língua, traz dados de uma língua tipologicamente distinta das línguas mais discutidas pela literatura para dentro da discussão teórica sobre a contrafactualidade. Esses dados desafiam o poder explanatório das principais abordagens teóricas e apoiam uma delas. Palavras-chave: contrafactualidade; tempo; passado; línguas indígenas. Submitted on October 10th 2018 Accepted on January 26th 2019 1 Introduction This paper focuses on the role of tense in counterfactual sentences. More specifically, it investigates the semantics of tense in counterfactual sentences of a future vs. non-future oriented language – Karitiana (Tupi stock). This language is spoken by around 400 people in Northwestern Amazonia. It is considered an endangered language due to the small number of its speakers. The paper has two goals: (i) understand how Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1053 counterfactuality works in Karitiana; and (ii) show how data from this language contributes to the debate of which is the best approach to the role of tense in counterfactuals. A sentence is considered counterfactual (henceforth CF) when the proposition it expresses goes against actual facts (IATRIDOU, 2000, p. 231). For instance, sentence (1) conveys that the speaker does not have a car, and sentence (2) conveys that the situations of ‘John be smart’ and of ‘he be rich’ don’t hold. This article does not tackle all counterfactual structures in Karitiana, but focuses on counterfactual conditionals such as (2). (1) I wish I had a car. (IATRIDOU, 2000, p. 231) (2) If John were smart, he would be rich. (IATRIDOU, 2000, p. 232) A cross-linguistic investigation by van Linden and Verstraete (2008) shows that few languages have a morpheme that is restricted to counterfactuality. Most languages they investigated (22 out of 32) use the past tense to express counterfactuality. This is observed in languages from distinct language families such as English, French, Modern Greek, Papago (Uto-Aztecan), Proto-Uto-Aztecan, Cree (Algoquian), Tonga and Haya (Bantu), Chipewyan (Athabascan), Garo (Tibeto-Burman), Japanese and Korean, among others. In all such languages, the past tense does not show its usual behavior when in counterfactual environments. English illustrates this fact. Its past tense is canonically used with past oriented adverbials, as illustrated in (3a), but it cannot co-occur with them in counterfactuals (see (3b)). On the other hand, past tense morphology cannot co-occur with future oriented adverbials, as in (4a), but it can in CFs, as in (4b). This unexpected interaction with adverbials shows that the past tense does not seem convey pastness in counterfactual environments. For this reason, Iatridou (2000) calls the occurrence of the past in these environments fake. (3) a. John smoked yesterday. b. *I wish John smoked yesterday. (IATRIDOU, 2000, p. 248) (4) a. *John left tomorrow. b. If he left tomorrow, he would get there next week. (IATRIDOU, 2000, p. 248) 1054 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 Iatridou (2000) also points out that in languages that mark the distinction between perfective vs. imperfective aspect; it is the imperfective aspect that is used in counterfactual constructions, as illustrated by the Portuguese (5) and the Hindi (6) sentences below. We will only deal with imperfective aspect tangentially, since it is not the focus of this paper. (5) Se Maria fosse inteligente, ela seria rica. if intelligent she would.be rich Maria were-impf ‘If John were smart, he would be rich.’ (6) agar Ram phal khaa-taa ho-taa if Ram fruit ate-hab/ipfv be-hab/ipfv ‘If Ram had if been eating fruit habitually,...’ (BHATT, 1999, p. 2) The literature on CFs is based on the study of languages that belong to past vs. non-past or past vs. present vs. future tense systems (JAMES, 1982; FLEISCHMANN, 1989; IATRIDOU, 2000; PALMER, 2001; IPPOLITO, 2002, 2003; ARREGUI, 2005, van LINDEN; VERSTRAETE, 2008). Such languages, make a distinction between the past (7) and the present (8). Depending on the theoretical account, these languages may or may not distinguish between the present (8) and the future (9), since the future may be treated as modality. (7) Brazil played France last year. (8) Brazil plays France every year/tomorrow. (9) Brazil will play France tomorrow. This paper brings data from a future vs. non-future oriented language to contribute to this debate. Karitiana is such language. The inclusion of a future vs. non-future language is relevant, It brings data from a typologically distinct tense oriented language that challenges the explanatory power of the existing theoretical approaches. In future vs. non-future systems, non-future tense may refer to both the present and the past (see (10a)); whereas the future tense refers only to the future (see (10b)). We show that the non-canonical behavior of tense in CFs also occurs in Karitiana. This is illustrated by (10c) below. Notice that 1055 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 the non-future morphology -t co-occurs with the future oriented adverb dibm (‘tomorrow’) in this construction. (10) a. Sara ∅-na-aka-t akan ∅-na-aka-j akan i-aka-t Sara ‘Sara is/was in the village today/yesterday.’3 b. Sara 3-decl-cop-nfut village nmlz-cop-abs today/yesterday2 i-aka-t Sara ‘Sara will be in the village tomorrow.’ 3-decl-cop-fut koot/ka’abm.1 village nmlz-cop-abs c. [dinheiro tyyt y-akiip ] [dibm yjxa-jyt-ahy-t dibm. tomorrow yjxa cerveja-ty] [money have 1sg-cop] [tomorrow 1pl.incl-cf-drink-nfut 1pl.incl beer-obl] ‘[If I had money], [we would drink beer tomorrow]’ There are two main approaches to the non-canonical behavior of tense and its contribution in CF environments. The Past as Modal Approach claims that tense in counterfactuals does not have a temporal interpretation, but a modal one (JAMES, 1982; FLEISCHMAN, 1989; IATRIDOU, 2000; PALMER, 2001; van LINDEN; VERSTRAETE, 2008). The other approach – the Past as Tense Approach – claims that tense does have a temporal interpretation in counterfactual environments (IPPOLITO, 2002, 2003; ARREGUI, 2005). None of the Past as Modal approaches yield a satisfactory analysis of tense in counterfactual environments for future vs. non-future languages. These proposals end up being too narrow and work exclusively for past vs. non-past languages. The Past as Tense proposals, on the other hand, seem capable of also accounting for the distinguished behavior of tense in future vs. non-future languages. We show that this approach works for the non-future tense in Karitiana CFs. Thus, the behavior of tense in Karitiana supports the Past as Tense approach. For simplicity, we will only present sentences in the declarative mood (see STORTO, 2002 and FERREIRA, 2017a, b for mood in Karitiana). 2 Glosses for the Karitiana examples follow The Leipzig Glossing Rules. Other conventions used: ana = anaphoric; cf = countercatual; ev.rep = reportive evidential; hab = habitual; pos = postposition; prosp = prospective and ynq = yes/no question. 3 The translations presented are our translations of the Portuguese ones given to or by the consultant. Other interpretations may very well be available. 1 1056 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 The corpus analyzed for this research contains sixty-six conditional Karitiana sentences. Six of these sentences come from the literature. Forty of them are counterfactual conditionals collected by one of the authors (L. F. Ferreira). The other twenty sentences are non-counterfactual sentences also collected by the same author. The methodology used was contextualized data elicitation.4 This paper is organized as follows. Section 2 describes the basics of Karitiana grammar. Section 3 presents the adopted framework for the analysis of tense (3.1), and applies it to Kartiana (3.2). In section 4, we discuss the semantics of counterfactual conditionals (4.1) and their behavior in Karitiana (4.2). Section 5 deals with the behavior of tense in counterfactuals (5.1) and argues that Karitiana counterfactuals behave in a similarly to other better known languages (5.2). In section 6, we show that Karitiana challenges the Past as Modal approach (6.1) and supports the Past as Tense approach (6.2). Finally, section 7 summarizes our conclusions. 2 The Karitiana language In this section, we lay down the basic facts about Karitiana grammar. They will be relevant for the understanding of the data and of its analysis. Karitiana is a partially described Amazonian language. The Karitiana people have their reservation in Rondônia, western Amazonia, around 100 kilometers from the city of Porto Velho. Research on Karitiana was first pursued by David and Rachel Landin, who worked out the basics of the syntax and of the phonology of the language.5 Luciana Storto has been working on it since 1992.6 Other works on Karitiana worth mentioning are Everett (2006), Coutinho-Silva (2008), Silva (2011) and Vivanco (2014) on aspects of the syntax and semantics of the language. This method developed by Matthewson (2004) especially for fieldwork on semantics of indigenous languages and was developed by Sanchez-Mendes (2014). 5 Landin, D. (1983, 1984, 1988); Landin, R. (1982, 1987, 1989); Landin and Landin (1973). 6 Storto (1994, 1996, 2001, 2002, 2003, 2008, 2010, 2011, 2012a,b, 2013, 2014), Storto and Demolin (2005), Storto and Thomas (2012). 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1057 Work within the framework of Formal Semantics has been pursued by Müller, Sanchez-Mendes, Carvalho, Alexandre and Ferreira.7 Karitiana is a complement-head order language. Complements precede postpositions, as illustrated by the Prepositional Phrase 2020 pip (‘to the hotel’) in (11). Subordinate clauses normally precede main clauses, as illustrated in (12). And, within subordinate clauses, arguments precede the verb (12). (11) [2020 pip] yn [2020 pos] 1sg Ø-naka-m-’a-j ambi. 3-decl-caus-to.do-fut house. ‘In 2020, I will build a house.’ (12) [Ti’y Marcelo ’y tykiri] [food Marcelo eat when] (CARVALHO, 2010, p. 36) Ø-na-pa’ira-t João 3-decl-get.angry-nfut João ‘When Marcelo ate the food, João got angry.’ (STORTO, 2012, p. 4) As we have seen, Karitiana is verb final in subordinate clauses. In matrix clauses the word order is mostly verb second (see Storto, 1999, 2003). This pattern may be observed in sentences (11) and (12) above and (13) below. Matrix clauses are inflected for person agreement, tense and mood, whereas subordinate clauses lack these inflections. Note that in sentence (12) the verb ’y ‘eat’ is bare and occupies the final position of the clause; whereas in sentence (13), the same verb shows up in the second position with the presence of inflectional morphemes. (13) Õwã Ø-naka-’y tyka-t child 3-decl-eat ipfv-nfut kinda’o fruit ‘The child is eating fruit.’ (Carvalho, 2009, p. 15) Karitiana is an ergative language: intransitive verbs agree with their only argument (see (14)); transitive verbs agree with their theme arguments (see (15)). Müller (2009, 2012), Müller and Negrão (2012), Sanchez-Mendes (2006, 2008, 2012a,b, 2014a, b, 2015, 2016), Müller and Sanchez-Mendes (2008, 2010), Sanchez-Mendes and Müller (2007), Carvalho (2009, 2010), Alexandre (2016), Ferreira (2017a, b). 7 1058 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (14) Y-ta-opiso-t yn. 1sg-decl-listen-nfut 1sg ‘I listened.’ (15) An 2sg y-ta-oky-j yn. 1sg-decl-kill-fut 1sg ‘You will kill me.’ (Storto, 1999, p. 157) Intransitive verbs occur in copula constructions in most contexts, as illustrated by sentence (16). (16) i Ø-na-aka-t i-kysep-Ø. 3 3-decl-cop-nfut ‘He is jumps.’ nmlz-jump-abs (EVERETT, 2006, p. 240) Karitiana Noun Phrases (NPs) always occur bare. They have number-neutral denotations, i.e., they denote both singular and plural entities. Singular vs. plural and definite vs. indefinite distinctions are not morphologically marked. Sentence (17) illustrates the inexistence of a singular vs. plural and of a definite vs. indefinite contrast. Because of the absence of (in)definiteness marking and of the absence of number marking in the language, a sentence may be truly uttered in a vast array of situations, as the ones listed below sentence (18). (17) Taso man Ø-naka-’y-t myhin-t/sypom-t 3-decl-eat-nfut one-adv /two-adv boroja. snake ‘A/the man/men ate one/two snake(s).’ (18) Taso Ø-naka-ot-Ø ese. man 3-decl-bring-nfut water ‘Men brought water.’ True in the following situations:  One (definite or indefinite) man brought some (definite or indefinite) quantity of water.  Some (definite or indefinite) men brought some (definite or indefinite) quantity of water.  It is usually the men who carry water. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1059 The most productive sentential types or moods in Karitiana are the following: declarative, assertive, interrogative and negative.8 We only describe the so called declarative mood, which is the one that occurs in conditional sentences, besides occurring in affirmative declarative sentences. It is marked by the morpheme–na(ka)– and its variants, as illustrated in (19). (19) taso Ø-na-oky-t boroja. man 3-decl-to.kill-nfut snake ‘The man killed the snake.’ (STORTO, 1999, p. 153) In this section, we have presented the core grammatical properties of Karitiana. The next section will present the theoretical background on tense and aspect adopted in this paper. 3 Tense and aspect This section presents the concepts of tense and aspect adopted by this article. It also describes how these categories work in Karitiana. The section is organized in two subsections. The first subsection presents the background adopted for dealing with tense and aspect. For the treatment of tense in counterfactuals, we adopt the Tense as Deixis Approach (PARTEE, 1973, KRATZER, 1998). We do not deal formally with aspect in counterfactuals, but only comment on its behavior briefly. Further work is needed in order to make any stronger claims about the behavior of aspect in Karitiana counterfactuals. The second subsection presents the morphology and semantics of tense and aspect in Karitiana. As already mentioned, Karitiana is a future vs. non-future language. We follow Matthewson (2005) and Jóhannsdóttir and Mathewson (2007) and analyze its non-future tense – the tense used in Karitiana counterfactuals - not as being ambiguous, but as having a semantics that is not specified for the distinction between past and present. 8 See Storto (2002) and Ferreira (2017a) for a better picture of the phenomena. 1060 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 3.1 The theoretical approach to tense and aspect According to Klein (1994), time is a notional category. Eventualities are described by human languages as occurring before, after or concomitantly to the Utterance Time. These notions are referred to as past, present and future. Languages may mark them on their verbs through morphological means. Tense, on the other hand, is a linguistic category. It is anchored to the Utterance Time. Klein (1994) defines tense as a relation between two time intervals: the moment the sentence is uttered and the moment or interval referred to by the topic of the conversation (KLEIN, 1994). The first one is called Utterance Time (henceforth UttT) and the latter is called Topic Time (henceforth TopT). Within this framework, the past tense conveys that TopT is located before UT (TopT< UttT). Sentence (20) below illustrates this. Its TopT (in the 90’s) is located before its UttT. The present tense conveys that UttT is included in or equal to TopT (TopTUttT). Sentence (21) is marked for present tense, and has its TopT (now) equal to UttT. English has no future tense inflection. Nevertheless, sentence (22) shows that the modal will combined to the main verb – conveys that its TopT (when she grows up) is located after UttT (TopT>UttT). (20) This actor was handsome in the 90’s. (21) Joan is tired now. (22) This girl will be beautiful when she grows up. The semantics of the future is controversial. Prior (1957, 1967), Dowty (1982) and Klein (1994), among others, analyze it as tense. On the other hand, Partee (1973), Kratzer (1998), and Abusch (1998) claim that English, for instance, has no future tense. For them, the future is conveyed through a combination of the present tense and the modal will. Enç (1987) specifically claims that the future is a modal operator and scopes over possible worlds. Klein’s framework also allows a precise treatment of grammatical aspect. According to it, grammatical aspect expresses a relation between the Topic Time and the Situation Time (SitT). The SitT refers to the internal duration of the eventuality. This way, perfective aspect is defined as expressing that the Topic Time includes the Situation Time (TopTSitT). Sentence (23) is marked for perfective aspect and its Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1061 TopT (this morning) includes the event time of ‘Mary brush her teeth’. Imperfective aspect, on the other hand, is defined as expressing that the Situation Time fully includes the Topic Time SitTTopT. Sentence (24) illustrates imperfectivity – its SitT (Mary brush her teeth) fully includes its TopT (when Joan come in). (23) Mary brushed her teeth this morning9 (24) Mary was brushing her teeth when Joan came in. In this section, we are specifically interested in the semantics of the past, since this is the tense that is related to counterfactuality in many languages. Within Formal Semantics, there are two main proposals that compositionally account for the semantics of tense. The first proposal claims that tense denotes an existential quantifier over time intervals (PRIOR, 1957; 1967). The other proposal claims that tense is referential and behaves like a pronoun (PARTEE, 1973; KRATZER, 1998). We will adopt the latter proposal. The tense as pronoun analysis for the past is traditionally presented as in (25a) below. The formula in (25a) states that the denotation of the past tense operator will only be defined if there is a time interval - g(i)- before a contextually given time – tc. If this condition is met, the operator PAST has the value g(i), which is contextually established. Within Klein’s (1994) framework, g(i) corresponds to the Topic Time and tc corresponds to the Utterance Time. We translate (25a) to Klein’s framework in (25b). In order to illustrate this analysis, we apply it to sentence (20), repeated below as (26). (25) a. [[PAST]]g,c = defined only if g(i) < tc; if defined, then [[PAST]]g,c = g(i).10 b. [[PAST]]g,c = defined only if Topic Time < Utterance Time; if defined, then [[PAST]]g,c = Topic Time. A ⊃ B = A contains B. g: an assignment function, which attributes a salient contextual value to i; c: context. g is applied to different indexes because there may be more than one value to be attributed by g. 9 10 1062 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (26) This actor was handsome in the 90’s. [[PAST]]g,c = defined only if in the 90’s < Utterance Time; if defined, then [[PAST]]g,c = in the 90’s. In words: The operator [[PAST]]g,c is defined only if in the 90’s is located before the Utterance Time; if so, then the operator gets the value in the 90’s This section presented a theoretical framework that assumes tense and aspect express relations between two time intervals (REICHENBACH, 1947; KLEIN, 1994). Within this framework, we have adopted an approach which claims that tense behaves like a pronoun (PARTEE, 1973; KRATZER, 1998). The next section makes use of Klein’s framework to describe the behavior of tense and aspect in Karitiana. 3.2 Tense and aspect in Karitiana 3.2.1 Tense As mentioned before Karitiana is a future vs. non-future language. This language marks only two tenses, which occur as suffixes to the verbal root: future and non-future (STORTO, 1999; 2002). The future tense morphemes are -i and -j. The first occurs when the verbal root ends in a consonant, as in (27a) and the latter when it ends in a vowel, as in (27b). (27) a. Aj-taka-tar-i 2sg-decl-leave-fut ‘You (plural) will leave.’ b. João ajxa 2sg Ø-na-oky-j boroja 3-decl-kill-fut snake João ‘João will kill the snake’ The non-future tense morphemes are - or -t. The first one occurs when the verbal root ends in a consonant, as in (28a), and the second one when it ends in a vowel, as in (28b). When inflected for the non-future tense, the sentence conveys both past and present as in (28a-b). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (28) a. Gokyp Ø-naka-hyrỹj-Ø omenda 3-decl-sing-nfut noon Gokyp ‘Gokyp sang at noon.’ ‘Gokyp sings at noon.’ b. João Ø-na-oky-t boroja 3-decl-kill-nfut snake João ‘João kills snakes.’ ‘João killed the snake.’ 1063 How should the semantic contribution of non-future tense be accounted for? One could posit that the non-future tense is ambiguous. This analysis is stated in (29) below. According to it, there would be two identical non-future morphemes, call them non-future-1 and non-future-2. One of them would carry the semantics of the present tense and the other one would carry the semantics of the past tense. Context would force the selection of one or the other morpheme. (29) NFUT-1 : TopT < UttT NFUT-2 : TopT ⊆ UttT past present Optionally, one could posit that the non-future tense is not ambiguous, but that its meaning encompasses both the present and the past, as stated in (30). Which proposal is more adequate: the ambiguity analysis or the analysis in which the non-future morpheme is vague between the present and the past? (30) NFUT : TopT ≤ UttT past + present Matthewson (2005) analyzes tense in St’át’imcets (Lillooet Salish – a British Columbian native language of the Salish family). According to her, this language has an overt tense morpheme that means future and a covert tense morpheme that means both past and present. Thus, the author faces the same problem we do. Based on data such as that of sentences (31a-b), she concludes that the semantics of the non-future tense is not ambiguous, but covers both the present and the past. The fact that the non-future morpheme is simultaneously compatible with both a past-time and a present-time event supports her claim. If the non- 1064 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 future tense were ambiguous, the event of vomiting described in (31b) should be interpreted either as past or as present. Since they are not, the author concludes that the semantics of the non-future tense is unspecified between past and present. Jóhannsdóttir and Mathewson (2007) analyze the same fact in Gitxsan and come to the same conclusion. (31) a. Wat’k’ ha i snek’wnuk’wa7-lhkálh-a ynq det.pl friend.pl-1pl.poss-det vomit ‘Our friends thow up?’ b. wat’k’ kw vomit det nmlz s-Theresa múta7 s-Charlie -Theresa and nmlz- Charlie ‘Theresa and Charlie threw up/ are throwing up.’ CONTEXT: Your white friends Theresa, Charlie and Marie got drunk at the bar. You are looking after them because you don’t drink. Theresa threw up at 10pm; Marie hasn’t thrown up at all. Just as Charlie is in the process of throwing up, another friend calls and asks you (a). You can answer with (b). (MATTHEWSON, 2005, p. 21) We will follow these authors and assume that the non-future tense in Karitiana is also unspecified and covers both the present and the past.11 Following Partee’s (1973) approach - the ‘Tense as Pronoun’ approach – we propose that the semantics of the non-future tense is the one in (32). The definition in (32a) states that the NFUT-operator will only be defined if there is a time interval g(i) (the Topic Time) before or equal to tc (the Utterance Time). If this condition is met, NFUT is defined and gets the value of g(i). This definition is restated within Klein’s (1994) framework in (32b). (32) a. [[NFUT]]g,c = defined only if g(2) ≤ tc; if defined, then [[NFUT]]g,c =g(2). b. [[NFUT]]TT,context = defined only if Topic Time ≤ Utterance Time; if defined, then [[NFUT]]TT,context = Topic Time. In this section, we have described how tense works in Karitiana. Then, we have argued, following Matthewson (2005) and Mathewson and Jóhannsdóttir (2007), that the non-future tense has a semantics 11 Müller and Bertucci (2012) argue for the indeterminacy of the non-future in Karitiana. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1065 that encompasses both the present and the past. We have formalized its semantics within the tense as pronoun approach. The next section presents the main aspectual categories in Karitiana 3.2.2 Aspect The semantics of the category of aspect in Karitiana is still in need of further investigation. It was first studied by Storto (2002). The basic aspectual distinctions, such as imperfective, perfect and prospective are marked by auxiliaries. Perfective aspect is expressed by the absence of overt marking. The most frequent and better understood aspectual morphemes are listed on the table 1 below, based on Storto (2002), Carvalho (2009), Müller (2018) and Rocha (2018). TABLE 1 – Aspectual morphemes in Karitiana ASPECTUAL MORPHEMES ty-ka/ ty-syp/ ty-so Imperfective (an)dyk perfective prospective pasagng<ã> perfect byyk Karitiana aspectual morphemes. Based on: Storto (2002), Carvalho (2009), Müller (2018) and Rocha (2018) The auxiliares tyka/tysyp/tyso mark imperfective/progressive aspect (Carvalho, 2009). Rocha (2018) claims that the auxiliares byyk e pasagngã are perfect and prospective markers respectively. Examples of imperfective markers are given in (33)-(34); whereas examples of the perfect and of the prospective are given in (35-36). (33) Maria Maria Ø-naka-’y tyka-t kinda’o. 3-decl-comer ipfv-nfut fruta ‘Maria está comendo fruta (em movimento).’ (Carvalho, 2009) 1066 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (34) y-ta-oty 1sg-decl-banhar andyk-i yn. ipfv-fut ‘Estou indo me banhar.’ (35) jonso woman 1sg (Storto, 2002) Ø-na-amang byyk-i 3- decl-plant prf-fut ‘The woman will have planted manioc.’ (36) jonso mulher gok. manioc (Rocha, 2018) Ø-na-amang<a> pasagng<a>-t gok. 3-decl-plant manioc prosp-nfut ‘The woman was going to plant manioc’. (Rocha, 2018) The expression of perfectivity is achieved by the absence of any overt marking, as illustrated in (37) (MÜLLER, 2018). Nevertheless, we still do not know whether the absence of overt marking can also mean imperfectivity. If so, this might be a case of neutral aspect. The aspectual semantics of the bare future marker hasn’t been investigated yet. An example is given in (38). (37) Cláudio Claudio Ø-na-aka-t i-pykyn<a>t ko’ot. 3-decl-cop-nfut nmlz-correr-abs ontem ‘Cláudio correu ontem.’ (38) Cláudio Claudio Ø-na-aka-t i-pykyn<a>j dibm. 3-decl-cop-fut nmlz-correr-abs ontem ‘Cláudio vai correr amanhã.’ In this section, we have summarized the essentials of tense and aspect in Karitiana. As mentioned before, no formal account will be given for aspect. Next, we turn to the discussion of counterfactual conditionals. 4 Counterfactual conditionals The purpose of this section is to describe counterfactual conditionals. According to von Fintel (2011, p. 1515), conditional sentences talk about a possible scenario that may or may not be the case and describe what else is the case in that scenario. Although there are Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1067 many ways to convey conditional meanings, the if… (then)... construction is the canonical one. This construction is made up of two clauses, an ifclause and a (then)-clause. The if-clause sets up the possible scenario; whereas the (then)-clause asserts what is the case in that scenario. For instance, sentence (39) asserts that it is the case that Mary lets the dog out in the scenarios that the dog barks. Sentence (40) exemplifies a non-CF conditional in Karitiana. Similarly, it states that it is the case that I drink in the scenarios that I eat. The if-clause is traditionally called the antecedent, premise or protasis, and the then-clause is called the consequent or apodosis. We will adopt the terms antecedent and consequent to refer to the if-clause and the then-(clause) respectively. (39) If the dog barks, Mary lets him out. (40) Y-ta-ahy-t yn, y-pyt’y tykiri 1sg-decl-drink-nfut 1sg, 1sg-eat if/when ‘I drink, if/when I eat’ There are two main types of conditionals: indicative conditionals and subjunctive or counterfactual conditionals. An indicative conditional, such as (41a), conveys that the truth of the antecedent is an open issue. Therefore, it is not possible to know whether Grijpstra played or not his drums. On the other hand, subjunctive/counterfactual conditionals, such as (41b), convey that the antecedent is false. As a consequence, we understand that Grijpstra has not played his drums when we hear (41b). Example (42) illustrates these two kinds of conditionals in Karitiana. (42a) is an indicative conditional since its antecedent is an open issue. Thus, it is not possible to guess whether the hearer fishes or not. On the other hand, (42b) illustrates a subjunctive/counterfactual conditional since it implies that the antecedent is false. Thus, we understand that the hearer did not arrive. (41) a. If Grijpstra played his drums, de Gier played his flute. indicative b. If Grijpstra had played his drums, de Gier would have played his flute. subjunctive/counterfactual (von FINTEL, 2011, p. 1518) 1068 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (42) a. A-ohit 2sg-fish a-ta-aka-j pongyp if/when, 2-decl-cop-fut quiet ‘If/when you fish, you be quiet’ b. yn 1sg cf tykiri, jy-soko’i-t eremby, a-otam-am -tie-nfut hammock 2sg-arrive-pfv ‘I would tie the hammock if you had arrived.’ (Storto, 2002) The terminology indicative/subjunctive conditional is misleading. Depending on the language, there is no need for a conditional to be in the indicative mood in order to convey that the truth of its antecedent is to be taken as an open issue. Similarly, there may be no need for a conditional to be in the subjunctive mood to convey that its antecedent is to be taken as false. Besides, many languages have no indicative/subjunctive mood distinction. For this reason, we will use the terms ‘non-counterfactual’ (non-CF) to refer to conditionals like (42a) and ‘counterfactual’ (CF) to refer to conditionals like (42b). Note that if…. then… constructions are not the only kind of CF construction. Wishes, for instance, also convey counterfactuality and implicate that the proposition expressed by the subordinate clauses is false, as in (01) repeated below as (43). Sentence (43) implicates that the speaker does not have a car. This paper focuses only on CF conditionals, such as (41b) and (42b). (43) I wish I had a car. (IATRIDOU, 2000, p. 231) Formal Semantics traditionally assumes that counterfactuality is a pragmatic implicature (ANDERSON, 1951; STALNAKER, 1975; JAMES, 1982; IATRIDOU, 2000; van LINDEN; VERSTRAETE, 2008). As shown by Anderson (1951), the counterfactual implication can be cancelled, as in (44) below. If the falsity of the proposition expressed by the antecedent were an entailment or a presupposition, sentence (44) would be contradictory. Since it is not, the literature concludes that counterfactuality is a pragmatic implicature. (44) If Jones had taken arsenic, he would have shown just exactly those symptoms which he does in fact show. So, it is likely that he took arsenic. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1069 A second argument that supports the claim that counterfactuality is a pragmatic implicature comes from Stalnaker (1975). If counterfactuality were a presupposition or an entailment, stating the falsity of p should sound redundant. So the possibility of asserting the falsity of p, as in in (45), without sounding redundant, supports the claim that counterfactuality is an implicature. (45) If the butler had done it, we would have found blood on the kitchen knife. The knife was clean; therefore, the butler did not do it. Up to this point, we have described in general terms what conditionals and counterfactuals are. The remaining of this section has two subsections. The first one discusses how to formalize the semantics of conditionals. The second section explores the behavior of counterfactual conditionals in Karitiana. 4.1 A formal approach to counterfactual conditionals This section focuses on the meaning of counterfactual conditional sentences. Within Formal Semantics, sentences denote propositions, which may be conceived as their meanings (CHIERCHIA, 2000). Within possible worlds semantics, each proposition may be identified with the set of possible worlds in which it is true (KRATZER, 2012). We illustrate these concepts by discussing the meaning of sentence (46a) below. Its meaning can be identified with the set of possible worlds P, which encompasses all possible worlds (w1, w2, w3, ...) in which John be in Rio is true. There are many of such worlds: w1 may be a possible world in which John is in Rio, loves Tess and his mother is Carla; w2 may be a possible world in which John is in Rio, loves Tess, and his mother is Mary; and w3 may be a possible world in which John is in Rio, loves Mark, and his mother is Mary. (46) a. John is in Rio. b. P = {w: John be in Rio in w} In words: P is the set that includes all worlds w such that John is in Rio in w. 1070 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 c. P= The two clauses of a conditional sentence correspond to two propositions that can each be identified with a set of possible worlds. In the CF conditional in (47a) below, the antecedent expresses the proposition John be in Rio and the consequent expresses the proposition John be visiting Copacabana Beach. The first proposition can be identified with the set P, as in (46) above, repeated below in (47b,c). The second proposition can be identified with the set Q that includes all the possible worlds in which John be visiting Copacabana Beach is true (see 47b-c). In (47b-c), the meanings of the antecedent (p) and of its consequent (q) are described separately. How should the meaning of conditionals like If p then q be accounted for? (47) a. [If John were in Rio], [he would be visiting Copacabana Beach]. b. P={w: John be in Rio in w} Q={w: John be visiting Copacabana beach in w} c. P = w1 w5 Q= w1 w6 w2 w4 ... w5 w7 ... Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1071 For Kratzer (2012), a conditional sentence such as (47a) is true if every possible world in which its antecedent - John be in Rio - is true, is also a possible world in which its consequent - John be visiting Copacabana Beach – is true. In other words, every world in set P is also a world in set Q. In set theory, this means that set Q includes or is equal to set P, as stated in (48a-b) and illustrated in (48c) for sentence (47a). (48) a P ⊆ Q b. {w: John be in Rio in w} ⊆ {w: John be visiting Copacabana Beach in w} In words: The set of worlds P, in which John be in Rio, is included in the set of worlds Q, in which John be visiting Copacabana Beach. c. P={w: John be in Rio in w} Q={w: John be visiting Copacabana Beach in w} An interesting question arises of what in CF-sentences is responsible for compositionally combining the meaning of the antecedent with the meaning of the consequent in order to yield the meaning of the whole conditional. The literature on counterfactuals posits the existence of a (covert) modal operator responsible for relating the two propositions (or their corresponding sets of possible set of worlds). This operator is defined in (49). The general semantic structure of the operation that derives CF sentence meanings is represented in (50). (49) [[ModalCF]] = 𝜆p<s,t>.𝜆q<s,t>. {w | p(w) = 1} ⊆ {w | q(w) = 1} In words: The modal counterfactual operator takes both the set P denoted by the antecedent p and the set Q denoted by the consequent q as its arguments and yields the set of worlds such that P is included in Q. 1072 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (50) This analysis is still in need of some adjustments. Take sentence (47a) repeated below as (51). Note that there will be possible worlds in which John is in Rio, but Copacabana Beach does not exist; possible worlds in which John is in Rio, but Copacabana Beach is in another state or country; and so on. Therefore, not all possible worlds are worlds in which John is in Rio are possible worlds in which he is visiting Copacabana Beach. (51) If John were in Rio, he would be visiting Copacabana Beach. What we need then is to take into account is only the subset of the set of worlds in which John is in Rio - the possible worlds that are very similar to the one the speaker is in (so that Copacabana Beach exists, Copacabana Beach is in RJ, etc.). Thus, for a conditional sentence like (51) to be true, the set of possible worlds denoted by the antecedent must be very similar to the world in which the speaker utters the sentence. Besides this, we just want the similar worlds in which John is in Rio. We will label this set A and illustrate it in (52) below. For reasons of simplicity, we will leave this restriction aside in our formalizations. 1073 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (52) Q P A = {w:John be in Rio in w & Copacabana exists in w & Copacabana be in Rio in w & …} This subsection presented how Formal Semantics analyzes counterfactual conditionals. We have seen that the meaning of a conditional sentence in possible worlds semantics is that the set of worlds in which the antecedent is true is a subset of the set of worlds in which the consequent is true. CFs have a modal operator that is responsible for taking the antecedent and the consequent propositions and yielding the meaning of the whole conditional sentence. The next subsection will discuss counterfactuals in Karitiana. 4.2 Counterfactual conditionals in Karitiana Subordinate clauses in Karitiana bear no tense or mood morphology (STORTO, 2012). Since the antecedent of the counterfactual is a subordinate clause, its verb will never bear tense or mood morphology in this language. As a pilot study, we first analyzed a small corpus composed of six counterfactuals conditionals obtained from previous works by other authors. All those counterfactual conditionals had something in common: the verb in the consequent clause always bore the prefix ȷỹ- and non-future tense, as illustrated in (53-55). (53) [yn [1sg Ø-ȷỹ-soko’ĩ-t eremby ] 3-cf-tie-nfut hammock ] [‘I would tie the hammock [a-otam-am ] [2sg-arrive-pfv ] ] [if you had arrived’] (STORTO, 2002, p. 158) 1074 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (54) [João Ø-ȷỹ-so’oot saryt-Ø [João 3-cf-see ev.rep pikom-ty ] [haka i-kokotop ] -nfut monkey-obl] [here 3-pass [‘João would see the monkey ] ] [if it passed through here’] (ALEXANDRE, 2016, p. 57) (55) [João Ø-ȷỹ-pykynỹn saryt-Ø [joão 3-cf-run ev.rep ombaky-ty ] [gopip ta-’akip ] -nfut jaguar-obl] [forest 3.ana-cop [‘João would run from the jaguar ] ] [if it were in the forest’ ] (ALEXANDRE, 2016, p. 58) Through the analysis of these CF conditionals, Ferreira (2017a, b) raised the hypothesis that, for this type of conditional, the use of the prefix ȷỹ- and of non-future tense was mandatory. In order to test this hypothesis, sixty conditionals were collected with native speakers through contextualized data elicitation. From those sixty, twenty were non-CF conditionals and forty were CF conditionals. All twenty nonCF conditionals had their consequent verbs marked for the future tense and did not bear the modal prefix ȷỹ- as illustrated below (56-58). They always bore the declarative mood. (56) [kinda sypo a-namang tykiri ] [Ø-naka-tat-i ’ep ] [thing seed 2sg-plant when ] [3-decl-go-fut tree ] [‘If you plant a seed, (57) [a-ohit [2sg-fish tykiri ] [a-taka-j pongyp ] when ] [2sg-decl-fut quiet [‘When you fish, ] (58) [’e [rain ] [it turns into a tree’ yryt [you remain quiet’ tykiri ] arrive when ] [‘When it rains ] ] ] ] [Ø-naka-kerep-i ese ] [3-decl-grow-fut river] [the river floods.’ ] On the other hand, all forty CF conditionals had the verbs on their consequent clauses marked for the non-future tense, and bore the prefix ȷỹ-, as illustrated below in (59-60). 1075 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (59) [carro [car tyyt y-aki-p have 1sg-cop-all] [‘If I had a car, ] ] [yn a-jỹ -atot-Ø [1sg 2sg-cf-take-nfut ] [I would take you’ ] ] CONTEXT: The speaker does not have a car and will not give the hearer a ride. (60) [a-taktagi-p a-pypyn-p ] [y-jỹ –pyhit-Ø se-pip a-pomã-ty ] [2sg-swim-all 2sg-know-all] [1sg-cf-let-nfut river-pos 2sg-play-obl] [‘If you knew how to swim,] [I would let you play in the river’ ] CONTEXT: The son does not know how to swim, therefore, his father (the speaker) does not let him play in the river. Storto (2002) analyzes ȷỹ- as a conditional mood prefix. Ferreira (2017a, b) argues that it cannot be a conditional prefix because it does not occur in all conditional sentences. The prefix ȷỹ- is restricted to CF conditionals. Thus, one could account for a CF sentence such as (53) in two ways. One way would be to assume that ȷỹ- is an overt realization of the modal operator present in conditional sentences (see section 4.1). Its semantics would then be the one formalized in (61) below. Its semantic structure within this analysis would be the one in (62) below. (61) [[ȷỹ]] = 𝜆p<s,t>.𝜆q<s,t>. for each P, P ⊆ Q Such that: P={w | p(w) = 1}12 Q={w | q(w) = 1} In words: the prefix jy takes the propositions p and q as its arguments and yields a proposition that denotes a set of worlds such that all worlds in P are included in the set Q. 12 The set P includes all worlds w such that the proposition p is true in w. 1076 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (62) A second possible analysis could posit that the modal operator is not ȷỹ-, but some covert operator. The semantic structure of the sentence under this analysis would then be the one in (63). Since ȷỹ- prefixes the verbal root in the same morphological position of other modal operators in this language, Ferreira (2017a, b) analyzes it as a modal operator as well. We follow his work and adopt the first analysis here. (63) Remember that verbs are inflected for non-future tense in all CF consequents. The main focus of this paper is not on the role of ȷỹ-, but on the role of the non-future tense in CF conditionals. To our knowledge, the behavior of the non-future tense and its semantic contribution in CF environments has not been investigated yet. The next section discusses the role of tense in CFs. Then it shows how the Karitiana data contribute to the debate. 1077 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 5 Tense (and aspect) in counterfactual environments The purpose of this section is to show that tense in CFs does not have its ordinary behavior and that the same happens in Karitiana. We also comment on the behavior of aspect in Karitiana CFs. Nevertheless, we do not make definite claim about it. We still need more thorough data in order to get the full picture of the behavior of aspect in Karitiana CFs. This section is divided into two subsections. The first subsection focuses on the non-canonic behavior of the past tense in CF environments, and shows that its usual semantics seems to be missing. The second section discusses the Karitiana data and concludes that something similar occurs in the language. 5.1 The behavior of tense (and aspect) in CF environments This section discusses the relation between the past tense and counterfactuality and tangentially comments on the relation between imperfective aspect and counterfactuality. It presents two different approaches to the analysis of tense in CF environments. In English, and in many other languages, CF sentences occur in the past tense, as illustrated in (64a) below. If some other tense is used, the sentence loses its CF interpretation as in (64b) below. The use of past tense forms calls attention because CF sentences such as (64a) do not seem to convey pastness. The occurrence of the past tense with the adverb now in (65) yields ungrammaticality. This is the reason why Iatridou (2000) calls the use of the past tense in CF environments fake past. (64) a. If John had his car now, he would give us a ride (now). b. If John has his car now, he will give us a ride. cf non-cf (65) ??#John was tired now. As mentioned in the introduction, the use of the past tense in CF sentences does not only occur in English, but in several other languages (JAMES, 1982; van LINDEN; VERSTRAETE, 2008). One could think that the languages that have this in common inherited it from a common ancestor. This is not the case since many of these languages are not related. In their comparative study, van Linden and Verstraete (2008) examine a sample of 43 languages from different families. They find a 1078 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 strong correlation between past tense morphology and counterfactuality (70% of the cases). Iatridou (2000) analyzes counterfactuals in English, French and Modern Greek and concludes that the past tense is its main ingredient. This is true even for languages that have subjunctive mood morphology. French, for example, made use of the past subjunctive in CF environments. However, the language has now lost its past subjunctive, but kept its present subjunctive. According to Iatridou (2000), if the subjunctive were responsible for conveying counterfactual meaning, the present subjunctive should be the tense used in CFs after the disappearance of the past subjunctive. But this was not so, French makes now use of the past indicative, as illustrated in (66). The present subjunctive in these environments is not grammatical (see (67)). According to Iatridou (2000), this shows that the past is more important than the subjunctive for the expression of counterfactuality. (66) Si Marie avait if Marie have.pst.ind un parapluie rouge,... an umbrella red,... ‘If Marie had a red umbrella,...’ (67) *Si if Marie ait un parapluie rouge,... Marie have.prs.sbjv an umbrella red,... ‘If Marie had a red umbrella,...’ Iatridou (2000) also points out that counterfactual constructions are commonly marked for imperfective aspect. Similarly to the use of the past tense, imperfective aspect in CFs behaves non-canonically, and does not get its usual habitual or progressive interpretation. As exemplified in (68) from French and (69) from Hindi, the event denoted by the sentence is interpreted perfectively. Thus, Iatridou (2000) also calls the imperfective marking on CFs fake. Nevertheless, the author claims that imperfective aspect does not contribute to counterfactuality. Other authors, like Arregui (2005) and Ferreira (2016), disagree with this position and think that imperfectivity plays a role in generating counterfactual meaning. We won’t deal with the role of imperfectivity in CFs in this paper and leave it for further work. 1079 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (68) Si l’oeuvre avait If été connue, elle aurait the.work be.pst.ipfv been known, it provoqué … be.cond.ipfv cause ‘If the work had been known, it would have caused…’. (69) An pandrevotan mia prigipisa, if marry.pst.ipfv a θa esoze princess, fut tin save.pst.ipfv the eteria tu. company his. ‘If he married a princess, he would save his company’. (Iatridou 2000, p. 236) Since the relation between the past and the imperfective aspect with counterfactuality is widespread among the languages of the world; there must be something about their semantics that favors the expression of counterfactuality. The next subsection will argue that a parallel phenomenon occurs in Karitiana as far as tense is concerned. 5.2 The behavior of tense (and aspect) in Karitiana CFs The goal of this section is to show that an interaction between tense and CFs similar to the one discussed in the previous section is also found in Karitiana. In order to do that, we will examine the interaction between tense and temporal adverbs in CF environments. As we saw in section 3.2, all counterfactual sentences in Karitiana bear nonfuture tense. In this language, a future-oriented adverb such as dibm (‘tomorrow’) must co-occur with future tense as illustrated in (70). Future oriented adverbs like dibm cannot normally co-occur with non-future tense, as illustrated in (71). (70) Yn a-taka-hit-i 1SG 2SG-DECL-give-FUT celula-ty dibm cell.phone-OBL tomorrow ‘I will give you the cellphone tomorrow’. (71) *Yn 1SG dibm a-taka-hit-Ø celula-ty 2SG-DECL-give-NFUT cell.phone-OBL amanhã ‘I gave you the cell phone tomorrow’ ‘I give you the cell phone tomorrow’. The reason why sentence (71) is not grammatical is that there is a clash between the semantics of the non-future morphology and the 1080 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 semantics of the future-oriented adverb. Note that this does not happen in CFs. In CF sentences, the non-future tense can occur with future oriented adverbs as illustrated in (72). The occurrence of the non-future tense with a future oriented adverb in CFs seems to indicate that we get a fake non-future in these environments just like the fake past described in the previous section. (72) [dinheiro tyyt y-akiip] [dibm yjxa-jyt-ahy-t yjxa cerveja-ty] [money have 1SG-COP] [tomorrow 1PL.INCL-CF-drink-NFUT 1PL.INCL beerOBL] [‘If I had money, ] [we would drink beer tomorrow’ ] As mentioned in section 3.2.2, the absence of overt aspectual marking in Karitiana normally expresses perfectivity. Imperfectivity is usually expressed by the use of overt auxiliaries. None of the CF sentences in our corpora was overtly marked for imperfectivity. Nevertheless, we need more data in order to be sure that the absence of overt marking cannot also mark imperfectivity. But what is the role of fake tense in CFs? What is its semantic contribution? These questions will be investigated in the next section. 6. Analysis The purpose of this section is to explore the two main approaches for the semantics of tense in counterfactuals relative to the Karitiana data. The first approach claims that the past tense has a modal interpretation in CFs (JAMES, 1982; FLEISCHMAN, 1989; IATRIDOU, 2000; PALMER, 2001). The second approach claims that it bears its canonical temporal interpretation (IPPOLITO, 2002, 2003; ARREGUI, 2005). We will show that both approaches are able to explain the phenomenon in past vs. non-past languages. Nevertheless, the Tense as Modal approach cannot account for the phenomenon in languages of the future vs. nonfuture system, such as Karitiana. For these languages, the only approach that offers a plausible account is the one that claims that tense makes a temporal contribution. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1081 6.1 Past as Modal In his typological study, Palmer (2001) notes that it is common for languages to make use of the past tense in CF environments. The author analyzes these instances of the past tense as irrealis markers. Thus, according to Palmer, the past tense in CFs does not have a temporal interpretation, but a modal one. He does not try to give any kind of explanation for why CF environments favor the use of past tense. James (1982) and Fleischman (1989) also claim that the past tense morphology is not really being interpreted as past in CF-environments. They call attention to the fact that the past tense usually conveys distance from the moment the sentence is uttered – the Utterance Time. According to them, this distance in time may be metaphorically used to convey distance from reality. This metaphorical use is their explanation for why past tense semantics may change from temporal to modal. One problem for this approach is that, as far as distance from the Utterance Time goes, both past and future fare alike. So, why would languages only use the past tense as a metaphor? Besides that, this proposal only accounts for past vs. non-past languages that have a fake past in CF-constructions, but not for languages with a fake non-future. Recall that it is the future tense that expresses distance from Utterance Time in Karitiana (see section 3.2). Note that the non-future tense includes the Utterance Time. So, if distance from the Utterance Time were a relevant factor, one would expect the future tense to be employed in counterfactual environments in Karitiana. But this is not so. Thus James (1982) and Fleischmann (1989) proposal faces two problems. The first one is that it fails to explain why the future is not selected in counterfactual constructions. The second one is that it is not able to give a unified account of the phenomenon in both past vs. non-past and future vs. non-future languages. Iatridou (2000) also proposes that the use of the past tense in CF-constructions is modal. She solves the first problem we pointed out by claiming that languages like English, which superficially have a past vs. present vs. future tense system, actually belong to a past vs. non-past tense system. Future markers are not considered tense markers, but are treated as modals. According to this analysis, the past tense means that the Utterance Time is not a part of the Topic Time, as stated in (73b). On the other hand, the non-past (present) tense means that UttT is part of TT as stated in (73a). 1082 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (73) a. Present/NON-PAST: UT ⊆ TT b. Past: UT ⊈ TT Thus, according to Iatridou (2000), what differentiates past from present/non-past is that the first has an exclusion feature, which the latter does not. This exclusion feature will be used in CF environments. In these environments, instead of excluding time intervals, it excludes possible worlds. This is formally presented in (74), which asserts that the contribution of the past tense in CFs is to exclude the possible world in which the sentence is uttered (Uttw) from the set of possible worlds that are the Topic Worlds (Topw). The author posits that the semantics of the past is underspecified and encompasses both time intervals and possible worlds. When used in a non-CF environment, its denotation ranges over time intervals and the interpretation is that of pastness. When used in CF environments, its interpretation that of counterfactuality. (74) past (in CF environments) = Uttw ⊈ Topw Iatridou’s proposal gives a satisfactory account of the first problem - why languages do not use the future in CFs. But it still does not explain the Karitiana data. If one assumes her proposal that some tenses bear an exclusion feature, Karitiana future tense would be the tense to bear this feature; whereas its non-future tense would bear no exclusion feature, as asserted in (75) below. But this is not what happens: it is the non-future tense occurs in CF environments. Therefore, this exclusion feature is probably not the reason why a certain tense is employed when counterfactual meanings are expressed. (75) a. non-future: UttT ⊆ TopT b. future: UttT ⊈ TopT Van Linden and Verstraete (2008) also follow the Past as Modal approach. According to them, in order to hypothesize about what would be the case, one must know what has actually happened. The past is the only tense that refers to what has actually happened, and this is the reason we use it to imagine how things would have been. For them, the past may be either modal or non-modal. The modal past is weaker than the non-modal past. They claim that counterfactuality in CF-constructions 1083 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 is a Gricean scalar implicature. In this type of implicature, there must be at least two elements on a scale: a weaker and a stronger one. The use of the weaker element implicates that the stronger one does not apply. Van Linden and Verstraete (2008) claim that the same thing happens in counterfactual environments. Therefore, if the speaker chooses a modal past, it is because he is not in a position to use the non-modal one. This raises the implicature that the sentence is false. The problem with this proposal is that counterfactual implicatures do not seem to work exactly in the same way as Gricean scalar implicatures. Take the points (a), (b) and (c) on the scale in (76) below. The modal past in (a) is stronger than the modal past in (b) since sentence (a) quantifies over all possible worlds; whereas in sentence (b) only quantifies over some worlds. (a) (b) (c) (76) <---|--------------------------------|-------------------------------------|------‘(I know) it must have happened.’ ‘(I know) it may have happened.’ ‘(I know) it did not happen.’ If modals worked in the same way as regular quantifiers, one would expect that the use of the weaker form (b) implicated that the stronger form (a) does not apply. This is not so. CF-structures raise the implicature that the sentence is false, and that is represented by point (c) in (76), not by point (a). Point (c) is the weakest point on the scale. Thus, the use of the modal past (b) should not implicate (c). In addition, the use of a modal past does not implicate that the situation does not hold as illustrated below in (77). By uttering (77) the author conveys that he does not know whether John smoked or not. The modal sentence does not implicate that John did not smoke. Thus, van Linden and Verstraete’s proposal cannot account for the phenomenon. (77) John may have smoked. IMPLICATURE: *John did smoke; * John did not smoke; This section discussed approaches to CFs that claim that the past tense in CF-environments is modal rather than temporal. James (1982) and Fleischman (1989) posit that the past tense expresses distance from Utterance Time, and that it is used metaphorically to express distance 1084 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 from reality. Nevertheless, we saw that this approach cannot explain the use of the non-future tense in Karitiana. It also does not explain why the future is not used in CFs. Iatridou (2000)’s analysis claims that the difference between the past and the present/non-future tense is that the past has an exclusion feature and present does not. This exclusion feature, in CF-environments, excludes the Utterance World from the Topic Worlds. Her proposal explains why the future is not employed in counterfactuals, but it still does not explain the use of the non-future tense in these constructions. Finally, for van Linden and Verstraete (2008), the use of a modal past is weaker than the use of a temporal past tense. Thus the modal past raises a Gricean implicature that the event denoted by the CF does not hold. We rejected this proposal on the basis that the CF meaning is not the weakest on a scale. We have shown that none of the proposals that claim that the past tense is modal in CFs gives a satisfactory account of the phenomena for both the past vs. non-past languages and Karitiana. The next section discusses approaches that claim that tense has its canonical temporal interpretation in CFs. 6.2 Past as Tense We now turn to the Past as Tense approach as proposed by Ippolito (2002, 2003) and Arregui (2005). For these authors, the past tense in CF environments has its canonical semantics. Their claim raises the following question: If past morphology in those contexts is really a past tense, why doesn’t it have its usual temporal interpretation and can occur with future-oriented adverbs? The answer given by them is that tense in CFs is dislocated from its canonical position. While temporal adverbs are interpreted inside their Tense Phrase (TP), tense in CFs is interpreted in a higher position with scope over the whole counterfactual sentence. In Ippolito’s (2002, 2003) proposal, modals scope over an accessibility relation R. This relation specifies the type of modality that is being used (e.g. epistemic, deontic, buletic, ...). The accessibility relation R in counterfactual sentences is defined in (78). First, it takes as its argument the Utterance World wc. Next, it takes as its arguments the possible worlds w’, which belong to the set P={w’1, w’2, w’3, …}, denoted by the proposition p. As a result, it yields the set of worlds W”={ w”1, w”2, w”3,… } that are accessed from wc and are compatible with P. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 1085 Consider the CF conditional in (79). The proposition p delimits the set of possible worlds in which Charlie be intelligent is true. The accessibility relation R yields the set of worlds in which Charlie be intelligent is compatible with what the speaker knows in the Utterance World (wc). The semantic structure of this sentence is illustrated in (80). Ippolito (2003) proposes that, besides the Utterance World, the accessibility relation is also able to use time intervals as a parameter, as formalized in (81). When one incorporates time as a parameter for R, the semantic structure of a counterfactual sentence becomes as in (82). The time parameter allows the accessibility relation to yield different sets of possible worlds for different time intervals. When the time parameter is not specified, UttT is used as default. But this need not always be the case. When the time parameter is set as past, the set of accessible worlds W will be made of worlds accessed from the past. (78) R = λwc.λw’. w’ is compatible with what the speaker knows in wc. (79) If Charlie were intelligent, he would be rich. (80) Charlie be inteligente (81) R = λwc. λt. λw’. w’ is compatible with what the speaker knows in wc at t. 1086 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (82) Charlie be inteligente Note that, as time goes by, things happen and less possibilities become available. Imagine for instance that yesterday until 6 p.m Maria hadn’t had any ice cream. Since the day was not yet finished, there were possible worlds in which she has had ice cream yesterday (let’s represent them with odd numbers as w1, w3, w5, ...), and possible worlds in which she has not had it (let’s represent them with even numbers as w2, w4, w6, ...). Suppose she had some ice cream yesterday at 7 p.m. The only worlds accessed from this point on are the ones in which she had ice cream (w2, w4, w6, ...). Thus, the set of accessible worlds W got smaller after 7 p.m. This is summarized in (83a-b) below. If the time parameter under the scope of R is the Utterance Time, the set of possible worlds accessed is the one expressed in (83b). (83) a. Accessible possible worlds yesterday before 7pm: W={w1, w2, w3, w4, w5,... } b. Accessible possible worlds yesterday after 7pm: W={w2, w4, w6, ...} Ippolito (2002) argues that the ambiguity of sentences like (84) corroborates her hypothesis. According to her, this sentence has two readings, which stem from the possibility of the past tense being interpreted in different positions. If the past is interpreted in its original TP position, the sentence has an epistemic reading. If the past is interpreted under the scope of the relation R, the sentence has a metaphysical reading. What is important in Ippolito’s proposal is that, not only does it work for the languages she is analyzing, but also for languages of the future vs. non-future system. 1087 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (84) Charlie could have left. Epistemic reading: In view of what the speaker knows now, it is possible that Charlie left. Metaphysical reading: In view of what the speaker knew then, it was possible for Charlie to leave (but he did not). We now turn to the analysis of counterfactual conditionals in Karitiana within Ippolito’s framework. Consider sentence (85) below. We analize jỹ- as the modal that takes both the the antecedent p and the consequent q as its arguments, as in (86). Superficially (see (85)) the non-future morphology –t co-occurs with the future oriented adverb dibm (‘tomorrow’) within the same clause. Nevertheless, what the structure (86) claims is that the non-future marking is actually interpreted under the scope of R. This explains why the past tense may co-occur with present and future oriented adverbs in the languages Ipollito analyzes. It also explains why non-future morphology may co-occur with future oriented adverbs in Karitiana. Within this framework, the obligatory use of the non-future in its CFs is explained. In order to convey a CF meaning, it is necessary to access possible worlds from the past. The only morpheme that can do this is the non-future morpheme. (85) [dinheiro tyyt y-akiip ] [dibm yjxa-jỹt-ahy-t yjxa cerveja-ty] [money have 1SG-COP] [tomorrow 1PL.INCL-CF-drink-NFUT 1PL.INCL beerOBL ] [‘If I had money, ] [we would drink beer tomorrow’ ] 1088 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (86) We now turn to Arregui’s (2005) proposal. She also argues that the past tense has a temporal interpretation and that it is dislocated from its canonical Temporal Phrase position in CFs. According to her, in sentences like (87) below, although both verbs bear past tense forms, only the tense in the main clause contributes to the meaning of the sentence. The author analyzes the past tense on the verb of the antecedent clause as agreement with the past tense of the verb in the main clause. (87) If I were you, I would be nicer. Differently from Ippolito (2002, 2003), the past is not interpreted in R in her proposal, but as an extra argument of the modal operator. In Arregui (2005), the modal takes three arguments: the antecedent, the consequent and tense (see the structure in (88)). Both the antecedent (P) and the consequent (Q) are analyzed as properties of tense, which means they are unsaturated for their time variables. The modal operator in English conditional sentences is covertly realized by the modal woll, which, depending on tense, may occur either as will or would. This operator becomes would, when it scopes over a past tense. It becomes will, when it scopes over a present tense. Its semantic contribution is formalized in (89). 1089 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 (88) (89) [[woll]]g: λP<i, <s, t>>. λQ<i, <s, t>>. λt. w [w similar to wc until t & P(g(ti))(w) → Q(g(ti))(w)], where: i: is the type of times; s is the type of events; t is the type of propositions; g is an assignment function; ti is the Utterance Time; g(ti) is the Topic Time, restricted to non-past times. In words: Woll takes the properties P and Q and a time t as its arguments and yields a proposition that is true if in every world denoted by P(ti) until t is a world denoted by Q(ti) until t. In section 4.1, we have seen that the possible worlds denoted by p need to be similar to the Utterance World. In a CF conditional, the possible worlds being quantified over must be similar to the world in which the sentence is uttered only until some past time. In (89) above, only worlds w that are similar to the Utterance World until some relevant past time t are to be taken into account. In taking the past as its argument, woll restricts the quantification to worlds that were similar to the Utterance World in the past. The most important in Arregui’s proposal is that not only does it work for the languages she is analyzing, but also for languages of the future vs. non-future system. Applying her proposal to Karitiana, we posit that the prefix ȷỹ- is the realization of the modal operator with a semantics similar to that of woll, as defined in (90) below. (90) [[ȷỹ-]]g = λP<i, <s, t>>. λQ<i, <s, t>>. λt w [w similar to wc until t P(g(ti))(w) → Q(g(ti))(w)]. 1090 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 Within Arregui’s (2005) framework, the past tense may co-occur with present and future oriented adverbs because the adverbs and the tense operator are not interpreted inside the same proposition. In future vs. non-future languages, the occurrence of the non-future tense with future oriented adverbs in CFs is possible because the non-future tense (-t) is dislocated from its canonical position and becomes an argument of the modal, as illustrated in (91) below. The non-future tense refers to some salient past time and restricts the possible worlds quantified over to the ones that are similar to the Utterance World until this past time reference. Arregui’s proposal also explains another phenomenon observed in Karitiana. As mentioned in subsection 3.2, antecedent clauses of conditional sentences never bear tense morphology in this language. The lack of tense morphology in the antecedent has also been observed by James (1982) in other languages. Arregui’s proposal that tense in the antecedent does not have any semantics, but is just some sort of agreement with the tense of the consequent clause is corroborated by these data. The fact that the antecedent clauses of Karitiana CFs do not bear tense morphology supports the claim that tense marking in these clauses is vacuous. (91) This section discussed two approaches that posit that tense in counterfactual environments has a temporal interpretation. In the case of Karitiana, this proposal amounts to the claim that its non-future tense in CFs has the same meaning as it does in non-CF environments. In order to explain that the past morphology is not interpreted as having scope 1091 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 over the consequent and that it can occur with future oriented adverbs, the authors posit that it is dislocated to a higher position. In Ippolito (2002, 2003), the past tense is dislocated to the accessibility relation R. This results in that the CF proposition is evaluated in worlds that were accessible in the past, but are not accessible anymore. In Arregui (2005), the past morphology is dislocated to a position above the modal operator, which results in the selection of worlds that were similar to the Utterance World in the past. Both proposals work for Karitiana since the non-future, according to the pronominal analysis of tense, refers to a salient time, which may be in past. The next section presents our final remarks. 7 Final remarks The first conclusion we draw is that a similar interaction between tense and counterfactuality as the one observed in past vs. non past languages occurs in Karitiana, a future vs. non-future language. In this language it is not the past, but the non-future tense that is used in counterfactuals. Further typological work is necessary to determine whether the same pattern is to be found in other future vs. non-future languages. Our second conclusion is that only proposals that consider that tense has a temporal interpretation in CFs is able to describe the phenomenon in languages of the future vs. non-future system, such as Karitiana. When comparing the Past as Modality to the Past as Tense approaches, Arregui (2005) mentions that the second approach, which includes Ippolito’s (2002, 2003) proposal as well, is more appealing since it provides a unified account of the semantics of the past. This approach does not consider that the past inflexion is ambiguous. Within these frameworks, tense can get dislocated to either the accessibility relation R (IPPOLITO, 2002, 2003) or above the modal (ARREGUI, 2005). This explains why both the past and the non-future tenses may co-occur with future oriented adverbs. We have claimed that both the modal prefix ȷỹ- and the non-future suffix contribute to the expression of counterfatuality. According to our analysis, jỹ- is an overt modal operator and the role of the non-future suffix is to allow the access to possibilities that were only available in 1092 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 the past, or else to establish a time parameter that restricts the possible worlds being quantified over to past worlds. Authorship statement This article is the result of joint work of the two authors: Müller and Ferreira. While Müller collected data on tense with native speakers, Ferreira collected the data on countefactual and non-counterfactual conditionals with native speakers. Müller’s main contribution was in the analysis of tense, mainly section 2. Ferreira’s main contributions were in the analysis of conditionals in section 3 and 4. The analysis and conclusions (section 5 and 6) resulted from joint work of the two authors. Both authors revised the article. Acknowledgements For criticisms, comments and discussion we thank our referees, the participants of CITAM-2018 and of ENAPOL-2018. Special thanks to Marcelo Ferreira and Brenda Laca. Luiz Fernando Ferreira acknowledges support from the Conselho Nacional de Pesquisa-CNPq, Grant #142209/2017-1. Ana Müller acknowledges support from CNPq, Grant #312816/2017-0. References ABUSCH, D. Generalizing Tense Semantics for Future Contexts. In: ROTHSTEIN, S. (Ed.). Events and Grammar. Kluwer Academic Publishers, 1998. p. 13-33. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-0113969-4_2 ALEXANDRE, T. Os evidenciais em Karitiana. 2016. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. DOI: 10.11606/D.8.2017. tde-09032017-103918 ANDERSON, A. R. A Note on Subjunctive and Counterfactual Conditionals. Analysis, Oxford, v. 12, n. 2, p. 35-38, 1951. DOI: https:// doi.org/10.1093/analys/12.2.35 1093 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 ARREGUI, A. On the Accessibility of Possible Worlds: The Role of Tense and Aspect. 2005. 174f. Dissertation (Ph.D.) – University of Massachusetts Amherst, Amherst, 2005. BHATT, R. Covert modality in non-finite contexts. 1999. Thesis (PhD) – University of Pennsylvania, Pennsylvania, 1999. CARVALHO, A. M. O auxiliar aspectual tyka do Karitiana. Revista Letras, Curitiba, v. 78, p. 147-163, maio/ago. 2009. CARVALHO, A. M. O auxiliar aspectual tyka do Karitiana. 2010. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. DOI: 10.11606/D.8.2010.tde-25082010-144136 CHIERCHIA, G. Denotation, truth, and meaning. In: CHIERCHIA, G.; MCCONNEL-GINET, S. (Ed.). Meaning and Grammar: An Introduction to Semantics. Cambridge: MIT Press, 2000. p. 53-112. COUTINHO-SILVA, T. Aspectos dos sintagmas nominais em Karitiana: a quantificação universal. 2008. 98f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. DOWTY, D. R. Time Adverbs, and Compositional Semantic Theory. Linguistics and Philosophy, [S.l.], v. 5, n. 1, p. 23-55, 1982. ENÇ, M. Anchoring conditions for tense. Linguistic Inquiry, Massachusetts, v. 18, p. 633-657, 1987. EVERETT, C. Patterns in Karitiana: Articulation, Perception and Grammar. 2006. Dissertation (Ph.D.) –Rice University, Houston, 2006. FERREIRA, L. F. Modo em Karitiana. 2017. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017a. FERREIRA, L. F. Karitiana: Uma língua com dupla marcação de modo. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, X., 2017, Niterói. Anais... Niterói: UFF, 2017b. p. 272-282. FERREIRA, M. The Semantic Ingredients of Imperfectivity in Progressives, Habituals, and Counterfactuals. Natural Language Semantics, [S.l.], v. 24, n. 4, p. 353-397, 2016. 1094 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 von FINTEL, K. Conditionals. In: von HEISINGER, K.; MAIENBORN, C.; PORTNER, P. (Ed.). Semantics: An International Handbook of Meaning. Berlin; Boston: de Gruyter Mouton, 2011. v. 2, p. 1515-1538. FLEISCHMAN, S. Temporal distance: a basic linguistic metaphor. Studies in Language, Amsterdam, v. 13, n. 1, p. 1-50, 1989. DOI: https:// doi.org/10.1075/sl.13.1.02fle IATRIDOU, S. The grammatical ingredients of counterfactuality. Linguistic Inquiry, Massachusetts, v. 31, n. 2, p. 231-270, 2000. DOI: https://doi.org/10.1162/002438900554352 IPPOLITO, M. The Time of Possibilities. Truth and Felicity of Subjunctive Conditionals. 2002. Thesis (Doctor) – Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 2002. IPPOLITO, M. Presuppositions and Implicatures in Counterfactuals. Natural Language Semantics, Netherlands, v. 11, n. 2, p. 145-186, 2003. DOI: https://doi.org/10.1023/A:1024411924818 JAMES, D. Past Tense and the Hypothetical: A Cross Linguistic Study. Studies in Language, [S.l.], v. 6, n. 3, p. 375-403, 1982. DOI: https://doi. org/10.1075/sl.6.3.04jam JÓHANNSDÓTTIR, K.; MATTHEWSON, L. Zero-Marked Tense: The Case of Gitxsan. In: ANNUAL MEETING OF NORTH EAST LINGUISTICS SOCIETY, 37., 2007, Amherst. Proceedings... Amherst, Mass.: GLSA, 2007. p. 299-310. KLEIN, W. Time in Language. London and New York: Routledge, 1994. KRATZER, A. More Structural Analogies Between Pronouns and Tenses. In: SEMANTICS AND LINGUISTIC THEORY CONFERENCE, 8., 1998, New York. Proceedings… New York: CLC Publications, 1998. DOI: https://doi.org/10.3765/salt.v8i0.2808 KRATZER, A. Modals and Conditionals. New York: Oxford University Press, 2012. LANDIN, D. J. Dicionário e Léxico Karitiana/Português. Brasília: SIL, 1983. 1095 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 LANDIN, D. J. An Outline of the Syntactic Structure of Karitiana. In: DOOLEY, R. (Ed.). Estudos sobre línguas do Brasil. Brasília: SIL, 1984. p. 219-254. LANDIN, D. J. As orações Karitiana. Série Linguística, v. 9, n. 2. Brasília: SIL, 1988. LANDIN, D. J.; LANDIN, R. A Preliminary Description of the Karitiana Phonological Structure. Arquivo Linguístico, n. 163. Brasília: SIL, 1973. LANDIN, R. Word Order Variation in Karitiana. Arquivo Linguístico, nº 149. Brasília: SIL, 1982. LANDIN, R. Conjunções Karitiana de Nível Superior. Série Linguística, v. 9, n. 1. Brasília: SIL, 1987. LANDIN, R. Kinship and Naming Among the Karitiana of Northwestern Brazil. 1989. Thesis (Masters) – University of Texas, Arlington, 1989. van LINDEN, A.; VERSTRAETE, J. C. The Nature and Origin of Counterfactuality in Simple Clauses: Cross-Linguistic Evidence. Journal of Pragmatics, [S.l.], v. 40, n. 11, p. 1865-1895, 2008. MATTHEWSON, L. On the Methodology of Semantic Fieldwork. International Journal of American Linguistics, [S.l.], v. 70, n. 4, p. 369415, 2004. MATTHEWSON, L. Temporal Semantics in a Superficially Tenseless Language. Linguistic & Philosophy, [S.l.], v. 29, n. 6, p. 1-58, 2005. MÜLLER, A. Variação semântica: individuação e número na língua Karitiana. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 38, p. 295-308, 2009. MÜLLER, A. Distributividade: o caso dos numerais reduplicados em Karitiana. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 54, n. 2, p. 225-243, 2012. DOI: https://doi.org/10.20396/cel.v54i2.8636603 MÜLLER, A. Projeto Auxílio Pesquisa FAPESP, 2018. MÜLLER, A.; BERTUCCI, R. A. Sintagmas nominais nus expressam a distinção definido vs. indefinido? O caso do karitiana. In: OLIVEIRA, Roberta Pires de; MEZARI, Meiry Peruchi (Org.). Nominais nus: um olhar através das línguas. Campinas: Mercado de Letras, 2012. p. 149184. 1096 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 MÜLLER, A.; NEGRÃO, E. V. On Distributivity in Karitiana. In: CABREDO HOFHERR, Patricia; LACA, Brenda (Org.). Verbal Plurality and Distributivity. Berlin: de Gruyter, 2012. p. 159-184 (Linguistische Arbeiten Series). DOI: https://doi.org/10.1515/9783110293500.159 MÜLLER, A.; SANCHEZ-MENDES, L. Pluractionality in Karitiana In: SINN UND BEDEUTUNG, 12., 2008, Oslo. Proceedings… Oslo: University of Oslo, 2008. v. 1, p. 442-454. MÜLLER, A.; SANCHEZ-MENDES, L. O significado da pluracionalidade em Karitiana. Cadernos de Estudos Lingüísticos, Campinas, v. 52, n. 2, p. 215-231, 2010. DOI: 10.20396/cel.v52i2.8637190 PALMER, F. Mood and Modality. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9781139167178 PARTEE, B. H. Some structural analogies between tenses and pronouns in English. The Journal of Philosophy, New York, v. 70, p. 601-609, 1973. DOI: https://doi.org/10.2307/2025024 PRIOR, A. Time and Modality. Oxford: Clarendon Press, 1957. PRIOR, A. Past, Present and the Future. Oxford: Clarendon Press, 1967. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780198243113.001.0001 REICHENBACH, H. The Tenses of Verbs. In: _____. Elements of Symbolic Logic. New York: The Macmillan Company, 1947. p. 287-298. ROCHA, I. Interpretação temporal em orações não-finitas em Karitiana: a contribuição do aspecto. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA DA AMÉRICA LATINA - ALFAlito, 2018. Apresentação. João Pessoa: UFPB, 2018. DOI: DOI:10.13140/ RG.2.2.35163.41760 SANCHEZ-MENDES, L. A expressão da quantificação em Karitiana. Cadernos de Pesquisa na Graduação em Letras - Revista da Associação Nacional de Pesquisa na Graduação em Letras, [S.l.], Ano III, v. 3, p. 103-110, 2006. SANCHEZ-MENDES, L. A Quantificação Adverbial em Karitiana: os Advérbios. In: X Encontro dos Alunos de Pós-Graduação em Lingüística, 2008, São Paulo-SP. Anais do X Enapol. São Paulo, 2008. 1097 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 SANCHEZ-MENDES, L. Cumulativity and Countability in Karitiana Verbs. In: CONFERENCE ON THE SEMANTICS OF UNDERREPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS AND SULA-Bar, 6., 2012, Manchester. Proceedings... Amherst: GLSA, 2012a. p. 207-220. SANCHEZ-MENDES, L. Scalar Properties of Degree Modification in Karitiana: Evidence for Indeterminate Scales. In: EUROPEAN SUMMER SCHOOL IN LOGIC, LANGUAGE AND INFORMATION, 24th., 2012, Opole. Proceedings... Opole, Poland: Opole University, 2012b. p. 155-163. SANCHEZ-MENDES, L. Trabalho de campo para análise em semântica formal. Revista Letras, Curitiba, v. 90, p. 277-293, 2014a. DOI: http:// dx.doi.org/10.5380/rel.v90i2.36278 SANCHEZ-MENDES, L. A modificação de grau em Karitiana. 2014. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014b. SANCHEZ-MENDES, L. A modificação de grau no domínio verbal em Karitiana: evidência para escalas indeterminadas. Liames, Campinas, v. 15, n. 1, p. 125-147, 2015. DOI: https://doi.org/10.20396/liames. v15i1.8641499 SANCHEZ-MENDES, L. Degree Constructions in Brazilian Portuguese and in Karitiana: A Challenge to Universal Parameters. In: CONFERENCE ON THE SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS AND SULA-Bar, 9., 2016, Santa Cruz. Proceedings… Santa Cruz: University of California, 2016. p. 141-154. SANCHEZ-MENDES, L.; MÜLLER, Ana. The Meaning of Pluractionality in Karitiana. In: CONFERENCE ON THE SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS AND SULA-Bar, 4., 2007, Amherst. Proceedings... Amherst, MA: University of Massachusetts, 2007. v. 35. p. 247-257. SILVA, I. R. A estrutura argumental da língua Karitiana: desafios descritivos e teóricos. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. STALNAKER, R. Indicative Conditionals. Philosophia, Cambridge, v. 5, n. 3, p. 269-286, 1975. DOI: https://doi.org/10.1007/BF02379021 1098 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 STORTO, L. R. Basic Word Order in Karitiana. In: ANNUAL MEETING OR THE SOCIETY FOR THE STUDY OF THE INDIGENOUS LANGUAGES OF THE AMERICAS, 1993, Columbus. Report 8: Survey of California and Other Indian Languages. Columbus: Ohio State University, 1994. p. 138-144. STORTO, L. R. Karitiana Epenthesis and Prosodic Phonology. In: ANNUAL MEETING OF THE AMERICAN ANTHROPOLOGICAL ASSOCIATION, 95 th ., 1996, São Francisco. Proceedings… São Francisco: American Anthropological Association, 1996. STORTO, L. R. Aspects of a Karitiana Grammar. 1999. Dissertation (Doctor) – Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1999. STORTO, L. R. Duas classes de verbos intransitivos em Karitiana (Família Arikém, Tronco Tupi). In: QUEIXALOS, Francisco (Org.). Des noms et des verbes en tupi-guarani. Muenchen: Lincom-Europa, 2001. p. 163-180. STORTO, L. R. Algumas categorias funcionais em Karitiana. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE GRUPOS DE TRABALHO SOBRE LÍNGUAS INDÍGENAS. LÍNGUAS INDÍGENAS BRASILEIRAS: FONOLOGIA, GRAMÁTICA E HISTÓRIA, I., 2002, Brasília. Atas... Brasília: ANPOLL, 2002. Tomo I, p. 151-164. STORTO, L. R. Relativas de Núcleo Interno em Karitiana. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIN, III., 2003, Rio de Janeiro. Caderno de Resumos... Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. STORTO, L. R. Marcação de concordância absolutiva em algumas construções sintáticas em Karitiana. Amérindia, Paris, v. 32, p. 183-203, 2008. STORTO, L. R. Copular Constructions in Karitiana: A Case Against Case Movement. In: LIMA, S. (Org.). University of Massachusetts Occasional Papers 41. Amherst: GLSA, 2010. v. 41, p. 205-226. STORTO, L. R. Ausência de determinantes e complementizadores em Karitiana. In: NAVES, Rozana R.; SALLES, Heloisa Maria M. L. (Org.). Estudos Formais da Gramática das Línguas Naturais: artigos selecionados do Encontro Nacional do Grupo de Trabalho Teoria da Gramática/2009. Goiânia: Cânone Editorial, 2011. p. 556-564. 1099 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1051-1099, abr./jun. 2019 STORTO, L. R. Subordination in Karitiana. Ameríndia: Revue d’Ethnolinguistique Amérindienne, Paris, v. 35, p. 183-203, 2012. STORTO, L. R. Paralelos estruturais entre a quantificação universal e as orações adverbiais em Karitiana. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 42, p. 174-181, 2013. STORTO, L. R. Constituent order and information structure in Karitiana. In: van GIJN, Rik; HAMMOND, Jeremy; MATIC, Dejan; van PUTTEN, Saskia; GALUCIO, Ana Vilacy (Org.). Information Structure and Reference Tracking in Complex Sentences. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 2014. p. 163-192. DOI: https://doi.org/10.1075/ tsl.105.06sto STORTO, L. R.; DEMOLIN, D. Pitch Accent in Karitiana. In: KAJI, Shigueki (Org.). Cross Linguistic Studies of Tonal Phenomena. Tokyo: Tokyo University of Foreign Studies, 2005. p. 329-356. STORTO, L. R.; THOMAS, G. The Clausal Nature of Universally Quantified Phrases in Karitiana. In: CONFERENCE ON THE SEMANTICS OF UNDER-REPRESENTED LANGUAGES IN THE AMERICAS AND SULA-BAR, 6., 2011, Amherst. Proceedings… Amherst: GLSA; University of Massachusetts, 2012. VIVANCO, K. Orações relativas em Karitiana: um estudo experimental. 2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Verbos de movimento do português brasileiro: evidências contra uma tipologia binária Brazilian Portuguese motion verbs: evidence against a two-way typology Letícia Lucinda Meirelles Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil lelumeirelles@hotmail.com Resumo: Neste artigo, analisamos os verbos de movimento do português brasileiro em relação à tipologia linguística binária proposta por Talmy (1985, 2000). Focamos no comportamento sintático dos verbos com o intuito de mostrar que o português brasileiro não se caracteriza como uma língua emoldurada nos verbos (verb-framed language), como proposto pelo autor. Isso ocorre, pois, nessa língua, o sentido de trajetória é representado através de satélites, mesmo em verbos que lexicalizam o sentido de direção em sua raiz. Nós mostramos que o português brasileiro não apresenta um padrão tipológico definido, como tem sido proposto por diferentes autores para várias outras línguas. Concluímos que restrições sintáticas amplas, como a presença de sintagmas preposicionados, de adjuntos adverbiais e de orações subordinadas, determinam como nossa língua expressa as propriedades semânticas trajetória, direção e maneira em sentenças com verbos de movimento. Palavras-chave: português brasileiro; verbos de movimento; tipologia linguística. Abstract: This paper brings an analysis about Brazilian Portuguese motion verbs in relation to the binary linguistic typology proposed by Talmy (1985, 2000). It focuses on the syntactic behavior of those verbs in order to show that Brazilian Portuguese is not a verb-framed language, as proposed by the author. That occurs because in Brazilian Portuguese the meaning of path is expressed by satellites, even in verbs that lexicalize the meaning of direction in their roots. We show that Brazilian Portuguese does not present a definite typological pattern, as has been shown by different authors for several other languages. The conclusion is that broad syntactic constraints, such eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.2.1101-1124 1102 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 as the presence of prepositional phrases, adverbial adjuncts and subordinate clauses, determine how Brazilian Portuguese expresses the semantic properties path, direction and manner in sentences with motion verbs. Keywords: Brazilian Portuguese; motion verbs; linguistic typology. Recebido em 05 de setembro de 2019 Aceito em 13 de janeiro de 2019 Introdução É consensualmente assumido por muitos autores que o termo “verbos de movimento” refere-se a verbos como correr, caminhar, nadar, balançar, girar, sacudir, entrar, sair, chegar, etc. (TALMY, 1985, 2000; JACKENDOFF, 1990; LEVIN; RAPPAPORT HOVAV, 1992; LEVIN, 1993; BEAVERS; LEVIN; THAM, 2010; AMARAL, 2010, 2013; DEMONTE, 2011; ZUBIZARRETA; OH, 2011; MENUZZI; RIBEIRO, 2011; GODOY, 2012; SOUTO, 2014; SILVA JÚNIOR, 2015; MEIRELLES; CANÇADO, 2017). Esses verbos são basicamente divididos em dois tipos, de acordo com o componente semântico que lexicalizam: (i) verbos de trajetória (Talmy, 1985, 2000; Jackendoff, 1990; Beavers; Levin; Tham, 2010), também conhecidos como “verbos com direção do movimento inerente” – verbs of inherently directed motion (Levin; Rappaport Hovav, 1992; Levin, 1993; Demonte, 2011; Zubizarreta; Oh, 2011), os quais lexicalizam a direção do movimento em seu significado, como os verbos do português brasileiro (PB) entrar, que significa ‘ir para dentro’ e sair, que significa ‘ir para fora’; (ii) verbos de modo de movimento, que denotam a maneira como o movimento ocorre, como os verbos correr, caminhar, nadar, balançar, girar e sacudir (Talmy, 1985, 2000; Jackendoff, 1990; Levin; Rappaport Hovav, 1992; Levin, 1993; Beavers, Levin; Tham, 2010). Os estudos feitos por Talmy (1985, 2000) despertaram nos estudiosos grande interesse a respeito da tipologia dos verbos de movimento. Segundo o autor, as línguas são divididas em dois tipos, de acordo com a forma como lexicalizam os componentes semânticos Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1103 movimento, trajetória, maneira e causa: (i) línguas emolduradas nos verbos (verb-framed languages), que lexicalizam, na raiz verbal, os componentes movimento e trajetória e (ii) línguas emolduradas nos satélites (satellite-framed languages), cujos verbos lexicalizam movimento e maneira ou movimento e causa. Línguas do primeiro tipo são as semíticas e polinésias, nez perce, caddo, japonês e as línguas românicas, dentre as quais encontra-se o PB. Línguas emolduradas nos satélites são as indo-européias, exceto as românicas, que pertencem ao primeiro grupo. A proposta de Talmy (1985, 2000) é de que as línguas apresentam comportamentos sintáticos específicos de acordo com o grupo tipológico ao qual pertencem. Embora muitos estudos corroborem a tipologia proposta pelo autor (Carter, 1988; Choi; Bowerman, 1991; Slobin, 1996, 2004; Zlatev; Yangklang, 2004; Folli; Ramchand, 2005; Barbosa, 2008; Amaral, 2010; Demonte, 2011; Zubizarreta; Oh, 2011; Mateu, 2012a, b), vários estudiosos a questionam, argumentando que línguas emolduradas nos verbos frequentemente exibem comportamento de línguas emolduradas nos satélites e viceversa (Amaro, 2005, 2009; Beavers, 2008; Beavers; Levin; Tham, 2010; Croft et al., 2010, Imbert, 2012; Goschler; Stefanowitsch, 2013; Ribeiro, 2014; Beavers; KoontzGarboden, 2017; Levin; Rappaport Hovav, in press). Apesar de Talmy (1985, 2000) não analisar dados do PB, ele argumenta que sua tipologia é universal. Neste artigo, através da análise dos verbos de movimento do PB, nós corroboramos os estudos que questionam a proposta do autor. Seguindo Beavers, Levin e Tham (2010), propomos que as diferentes formas por meio das quais nossa língua expressa os sentidos de trajetória, direção e maneira derivam de restrições sintáticas mais gerais, que são independentes da propriedade semântica movimento. Na próxima seção, apresentamos, de forma um pouco mais detalhada, a proposta tipológica de Talmy (1985, 2000). Na segunda seção, diferenciamos os componentes semânticos trajetória e direção do movimento, de acordo com a proposta de Meirelles e Cançado (2017). Ainda nessa seção, descrevemos o comportamento sintático dos verbos de movimento do PB e mostramos porque eles não se encaixam na tipologia proposta por Talmy. A última seção traz as considerações finais deste artigo. 1104 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1 Verbos de movimento e a tipologia de Talmy (1985, 2000) Talmy (1985, 2000) propõe que existe uma relação entre elementos semânticos e formas sintáticas, de modo que a semântica é expressa através da sintaxe. Elementos semânticos são movimento, trajetória, figura, fundo, maneira e causa, enquanto formas sintáticas são verbos, orações subordinadas e o que o autor chama de satélites, que são constituintes em relação de irmandade com o verbo, como as palavras do inglês que estão em negrito: go down/back/in ‘ir (para) baixo/ trás/ dentro’. Talmy (1985, 2000) escolheu os verbos de movimento como formas sintáticas a serem analisadas. O objetivo do autor é descobrir, com base no fato de que a relação sintaxe-semântica não é de um-para-um, que outros elementos semânticos são lexicalizados por esses verbos juntamente com o sentido de movimento. Talmy (1985) define como evento de movimento qualquer situação que contenha movimento (por exemplo, João correu) ou que informa a localização (stationary location) de uma entidade (por exemplo, o lápis estava sobre a mesa). Os componentes básicos de um evento de movimento são (i) a figura, que é o objeto que se move ou que está localizado em um determinado local; (ii) o fundo, que serve como ponto de referência para a localização ou movimentação da figura; (iii) a trajetória, que é definida tanto como o curso do movimento assim como o lugar ocupado pela figura; (iv) e o próprio movimento, que se refere à presença desse componente semântico no evento ou à localização estacionária da figura. O movimento é representado pela forma move ‘mover’, enquanto a localização estacionária é representada por beL (be located ‘estar localizado’).1 Enquanto move e beL são tratados como componentes internos, os eventos de movimento podem ter componentes externos, como maneira, trajetória e causa. Dessa forma, Talmy (2000) nomeia os eventos de movimento de macroeventos, pois possuem dois tipos de componentes: internos e externos. O macroevento é dividido em duas partes: (i) evento de moldura (framing event), que apresenta os componentes semânticos internos de movimento ou localização, e (ii) coeventos, que são responsáveis pela expressão do sentido de trajetória, maneira e A figura corresponde ao que é chamado de Tema, nas abordagens localistas de Gruber (1965, 1976) e Jackendoff (1976, 1983). 1 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1105 causa, que são componentes externos. Os exemplos abaixo do inglês e do espanhol ilustram todos esses componentes semânticos: (1) Eventos de movimento com fusão (conflation) de maneira e causa:2 a. Locação estacionária – beL + maneira The pencil lay on the table. ‘O lápis estava deitado sobre a mesa.’ b. Locação estaconária – beL + causa The pencil stuck on the table (after I glued it). ‘O lápis ficou grudado na mesa (depois que eu o colei).’ c. Movimento – move + maneira The pencil rolled off the table. ‘O lápis rolou da mesa.’ d. Movimento – move + causa The pencil blew off the table. ‘O lápis foi soprado para fora da mesa.’ (TALMY, 1985, p. 61, ex. (4)) (2) Eventos de movimento com fusão de trajetória: Move + trajetória El globo subió por la chimenea. ‘O balão subiu pela chaminé.’ (TALMY, 1985, p. 69, ex. (15)) No exemplo (1a), the pencil ‘o lápis’ é a figura e the table ‘a mesa’ é o fundo. A preposição on ‘sobre’ representa o lugar (interpretação estacionária) e o verbo lay (traduzido como ‘estava deitado’ nessa sentença) incorpora em seu significado, além da localização da figura em relação ao fundo, a noção de maneira. Em (1b), the pencil ‘o lápis’, the table ‘a mesa’ e a preposição on ‘sobre’ são respectivamente, como O termo “fusão”, do inglês conflation (TALMY, 1972), refere-se à incorporação de elementos semânticos ao significado básico do verbo. É, portanto, parte do processo de lexicalização. 2 1106 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 em (1a), figura, fundo e lugar. No entanto, o verbo incorpora em seu significado a noção de localização estacionária acrescida da noção de causa. A sentença em (1c) representa um evento de movimento dinâmico, em que the pencil ‘o lápis’ é a figura, the table ‘a mesa’ é o fundo, off ‘de’ veicula o sentido de trajetória e o verbo roll ‘rolar’ lexicaliza os componentes semânticos de movimento e maneira. Finalmente, em (1d), o verbo blow ‘soprar’ transmite a ideia de movimento causado, como se alguém ou algo, como o vento, tivesse derrubado o lápis da mesa. Nessa frase, assim como em (1c), the pencil ‘o lápis’ é a figura, the table ‘a mesa’ é o fundo e off ‘de’ expressa a trajetória. No exemplo do espanhol em (2), el globo ‘o balão’ é a figura, enquanto la chimenea ‘a chaminé’ é o fundo. O verbo subir ‘subir’ lexicaliza os componentes semânticos movimento e trajetória, porque expressa um tipo movimento para cima. Talmy (2000) mostra que os padrões de lexicalização mais recorrentes são [movimento + maneira] e [movimento + trajetória]. Assim, ele propõe a divisão das línguas em duas grandes categorias tipológicas: línguas emolduradas nos verbos (verb-framed languages), que lexicalizam, na raiz verbal, movimento e trajetória, e línguas emolduradas nos satélites (satellite-framed languages), cuja os verbos lexicalizam os componentes semânticos movimento e maneira ou movimento e causa. 3 As frases em espanhol e em inglês abaixo ilustram, respectivamente, o padrão de lexicalização das línguas emolduradas nos verbos e das línguas emolduradas nos satélites: (3) a. Meti el barril a la bodega rodándolo. ‘Coloquei o tambor dentro da adega, rolando-o.’ b. Saqué el corcho de la botella retorciéndolo. ‘Tirei a rolha da garrafa torcendo-a.’ (TALMY, 2000, p. 51) Slobin (2004) e Zlatev e Yangklang (2004) ampliaram a tipologia proposta por Talmy (1985, 2000) para três categorias. Os autores propõem a existência de outra classe tipológica, denominada “equipollently-framed languages” ou apenas “E-framed languages”, que agrupa línguas que permitem a presença de um verbo de trajetória e de um verbo de modo de movimento em uma única sentença. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1107 (4) a. I rolled the keg into the storeroom. eu rolei o barril dentro do depósito ‘Eu rolei o barril para dentro o depósito.’ b. I twisted the cork out of the bottle. eu torci a rolha fora de a garrafa ‘Eu tirei a rolha da garrafa, torcendo-a.’ (TALMY, 2000, p. 28) Em (3), a maneira como o movimento ocorre é expressa pela subordinação dos sintagmas verbais rodándolo ‘rolando-o’ e retorciéndolo ‘torcendo-a’, enquanto que, em (4), esse mesmo componente semântico é expresso pelos verbos principais roll ‘rolar’ e twist ‘torcer’. O sentido de trajetória é expresso, em (3), pelos próprios verbos principais meter ‘colocar dentro’ e sacar ‘tirar’, enquanto que, em (4), é expresso pelos satélites into ‘dentro’ e out ‘fora’. Na próxima seção, analisamos o comportamento sintático dos verbos de movimento do PB em comparação a outras línguas emolduradas nos verbos e nos satélites. Mostramos que nossa língua é tipologicamente híbrida, o que corrobora as propostas de autores que argumentam contra uma visão dicotômica entre os dois padrões tipológicos propostos por Talmy (1985, 2000). 2 Verbos de movimento do PB 2.1 Esclarecendo terminologias: trajetória é diferente de direção Segundo Amaral (2011), Menuzzi e Ribeiro (2011), Souto (2014) e Meirelles e Cançado (2017), exemplos de verbos de movimento do BP são: (i) aqueles que veiculam o sentido de direção do movimento e que tomam um sintagma nominal Tema (figura, nos termos de Talmy (1985, 2000)) e um sintagma, que veicula a ideia de trajetória, como argumentos, como chegar, ir, sair, entrar, subir, descer, vir, voltar, etc. (esses verbos são chamados, na literatura linguística, de “verbos de trajetória” ou “verbos com direção do movimento inerente”); e (ii) aqueles que não codificam a direção do movimento, como correr, caminhar, pular, girar, rodopiar, rodar, etc. (esses verbos são chamados de “verbos de modo de movimento”). 1108 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Meirelles e Cançado (2017) propõem que existe uma diferença entre as terminologias “verbos de trajetória” e “verbos com direção do movimento inerente”. Embora ambas refiram-se ao mesmo grupo de verbos, a primeira diz respeito ao fato de os verbos tomarem, como um de seus argumentos, um sintagma que expressa trajetória, como o sintagma preposicionado na sala, na sentença o menino entrou na sala. A segunda terminologia, por outro lado, refere-se ao fato de os próprios verbos denotarem a direção do movimento, uma vez que o verbo entrar, por exemplo, significa “ir para dentro”. As autoras adotam a terminologia “verbos de trajetória” e, em consonância com os trabalhos de Munhoz (2011) e de Munhoz e Naves (2012), propõem que esses verbos lexicalizam o sentido de direção em sua raiz e tomam dois argumentos: um que corresponde à entidade que se move (a figura, na terminologia de Talmy (1985), ou o Tema, de acordo com Gruber (1965, 1976) e Jackendoff (1976, 1983)), e um sintagma que representa um dos pontos (o começo ou o fim) da trajetória percorrida pela figura/Tema.4 Assim, na proposta de Meirelles e Cançado (2017), os verbos do tipo entrar são chamados de verbos de trajetória, já que um de seus argumentos, geralmente um sintagma preposicionado, denota trajetória. No entanto, o sentido lexicalizado pela raiz verbal é o de direção – “ir para dentro”. Verbos que não codificam a direção do movimento não tomam como argumento um sintagma que expressa trajetória, mesmo quando são usados em sentenças transitivas, como em (7b). (5) O menino entrou na sala. (6) O homem correu por horas sem parar.5 Segundo Meirelles (2016), uma evidência de que os verbos de trajetória têm dois argumentos é o fato de seu argumento que expressa trajetória só poder ser omitido quando apresenta leitura dêitica ou anafórica. Assim, uma sentença como o menino entrou é interpretável se entendermos que o menino entrou no mesmo lugar onde o falante se encontra no momento da fala, correspondendo à leitura dêitica. A leitura anafórica ocorre quando o lugar onde o menino entrou já foi mencionado na frase: o menino abriu a porta do quarto e entrou (no quarto). Além disso, como um dos pareceristas anônimos sugeriu, o fato de verbos do tipo entrar lexicalizarem a direção do movimento pode ser uma explicação para a exigência de um argumento que expressa a trajetória. 5 Em frases como o menino correu a maratona, o sintagma nominal a maratona não é um argumento do verbo, mas sim um adjunto (JONES, 1988; SCHER; LEUNG, 2005, 2006; AMARAL, 2013). 4 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1109 (7) a. O pião girou. b. O menino girou o pião. Em (5), o verbo entrar apresenta, na posição do sujeito, a entidade que se move (o menino) e, na posição do objeto, um sintagma preposicionado, que expressa trajetória (na sala). Os exemplos (6) e (7) apresentam os verbos correr e girar, que não precisam de um argumento que veicule a noção de trajetória. Mesmo na forma transitiva de girar (7b), nenhuma trajetória é necessária, uma vez que o sujeito (o menino) é o agente da ação e o objeto verbal (o pião) é a entidade que é movida pelo agente. Com base nos argumentos apresentados nos parágrafos anteriores, Meirelles e Cançado (2017) propõem que é mais apropriado dizer que os verbos de movimento podem lexicalizar o componente semântico direção e não a trajetória, uma vez que esse último é expresso por um argumento verbal. Neste artigo, concordamos com a proposta das autoras e, portanto, adotaremos a terminologia “direção do movimento” para nos referirmos ao componente semântico lexicalizado pelos verbos do tipo entrar, enquanto o termo “trajetória” será utilizado para se referir ao argumento (geralmente um sintagma preposicionado) pedido por esses verbos. Na próxima seção, mostramos que o PB exibe um comportamento sintático híbrido em relação à tipologia de Talmy (1985, 2000). 2.2 O PB como uma língua tipologicamente híbrida Segundo Talmy (1985, 2000), o padrão tipológico é responsável por vários comportamentos sintáticos de uma língua. Línguas emolduradas nos verbos, por exemplo, expressam o componente semântico maneira através de afixos, advérbios ou orações subordinadas nucleadas por um verbo na forma nominal de gerúndio (TALMY, 1985; BEAVERS; LEVIN; THAM, 2010). Vejamos os exemplos do nez perce, espanhol e francês. (8) Prefixos que expressam maneira em nez perce: wilé- ‘correndo’, ʔipsqi- ‘caminhando’, wat- ‘patinando’, qisim- ‘com raiva’ (Talmy, 1985, p. 111, ex. (82)) 1110 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 (9) espanhol Entró corriendo/ volando/nadando a la cueva. ‘Entrou correndo/voando/nadando na caverna.’ (Talmy, 1985, p. 111, ex. (83)) (10) francês Je suis entre dans la Maison em boitant. ‘Eu entrei na mansão mancando.’ (Beavers; Levin; Tham 2010, p. 344, ex (22b)) O exemplo em (8) apresenta alguns prefixos, que denotam maneira, da língua nez perce, enquanto as sentenças em espanhol e em francês, em (9) e (10), exemplificam o componente semântico maneira expressos pelos verbos no gerúndio, que estão em negrito. Sintaticamente, o PB comporta-se como o espanhol e o francês, porque permite expressar o sentido de maneira, em verbos de trajetória, por meio de advérbios e orações subordinadas, com o verbo na forma nominal do gerúndio. (11) a. O menino entrou em casa rapidamente. b. O menino entrou em casa saltitando. c. O menino entrou saltitando em casa. (12) a. Bia saiu da sala lentamente. b. Bia saiu da sala mancando. c. Bia saiu mancando da sala. (13) a. Joana foi para casa apressadamente. b. Joana foi para casa correndo. c. Joana foi correndo para casa. Nos exemplos de (11) a (13), há os verbos de trajetória entrar, sair e ir. Na letra (a) dos exemplos, cada verbo é modificado por um advérbio de maneira, que está em negrito. Nas letras (b) e (c), o componente maneira é expresso por uma oração subordinada composta por um verbo no gerúndio, que também está em negrito. De acordo com Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1111 Talmy (1985), em espanhol, essa oração subordinada deve vir logo após o verbo principal, mas em PB ela pode vir adjacente ao verbo principal (exemplos em (c)) ou ao final da sentença (exemplos em (b)). Por sua vez, as línguas emolduradas nos satélite tendem a expressar o componente semântico maneira nos próprios verbos principais das orações, enquanto a direção do movimento é expressa por satélites (elementos em negrito nos exemplos de (14) a (16)). (14) inglês She tiptoed into the classroom. ela andar na ponta do pé dentro a sala de aula ‘Ela entrou na sala de aula, andando nas pontas dos pés.’ (15) alemão weil da eine Eule plӧtzlich raus-flattert. porque há uma coruja de repente fora bate asas ‘porque uma coruja, de repente, voa para fora.’ (16) russo Tam vy- skočila sova. há fora pulou coruja ‘uma coruja saltou.’ (Slobin, 2004, p. 224, ex. (5)) Nos exemplos de (14) a (16), os verbos indicam a maneira pela qual o movimento é realizado, enquanto a direção do movimento é expressa por into ‘dentro’ e pelos afixos do alemão e do russo, respectivamente raus- ‘fora’ e vy- ‘fora’, que são considerados satélites por Talmy (1985, 2000). O PB tem um comportamento interessante em relação à expressão do componente semântico direção do movimento. Mesmo nos verbos que lexicalizam esse componente (verbos que denominamos de “verbos de trajetória”, seguindo Meirelles e Cançado (2017)), a direção do movimento pode ser expressa por sintagmas preposicionados. Embora as sentenças a seguir pareçam redundantes, elas são bastante recorrentes no PB. 1112 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 (17) Ela levou os tiros e entrou para dentro da sala. (Disponível em: <https://g1.globo.com/ceara/noticia/homemque-atirou-em-aluna-dentro-de-universidade-no-ceara-a-pediuem-casamento-diz-amiga.ghtml>. Acesso em: 25 jan. 2018) (18) Andrew, então, saiu para fora da casa (…) (Disponível em: <http://oelefante.com/ele-saiu-de-casa-paraver-o-que-ameacava-seu-cachorro-e-deu-de-cara-com-tres-ferasprontas-para-ataca-lo/>. Acesso em: 25 jan. 2018) (19) Você sabe que ele não subiu para cima do poste sozinho. (Disponível em: <https://pt.linkedin.com/pulse/h%C3%A1jabuti-em-cima-do-poste-e-agora-regina-ferrari-regina-ferrari>. Acesso em: 25 jan. 2018) (20) Em seguida, ela desceu para baixo para outras ruas (…) (Disponível em: <https://sites.google.com/site/oprofetamundial2/ o-grande-milagre-de-deus-ao-mundo---chaves-para-a-profecia>. Acesso em: 25 jan. 2018) Nas frases de (17) a (20), embora a direção do movimento já esteja contida no sentido dos verbos (entrar significa “ir para dentro”; sair significa “ir para fora”; subir significa “ir para cima” e descer significa “ir para baixo”), ela também é expressa pelos sintagmas preposicionados em negrito, o que é um comportamento atípico das línguas emolduradas nos verbos. No entanto, esse comportamento está de acordo com a proposta de Talmy (1985, 2000) de que a relação sintático-semântica não é um-para-um. O componente semântico direção do movimento pode ser expresso por duas formas sintáticas distintas: pelo verbo principal e por sintagmas preposicionados. Argumentando especificamente sobre satélites, Talmy (1985) propõe um diagnóstico único para se distinguir um satélite de uma preposição: o elemento fundo é opcional com um satélite, mas obrigatório com uma preposição. O autor usa o exemplo abaixo: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1113 (21) a. I ran out of the house. eu corri fora de a casa ‘Eu corri para fora da casa.’ b. *I ran out of. eu corri fora de c. I ran out. eu corri fora ‘Eu corri para fora.’ (Talmy, 1985, p. 103, exs. (62), (63)) Em (21a), out ‘fora’ é o satélite, of ‘de’ é a preposição e the house ‘a casa’ é o fundo. A sentença em (21b) torna-se agramatical, porque apresenta a preposição (of ‘de’) sem o fundo. Por outro lado, (21c) é gramatical, porque traz apenas o verbo (run ‘correr’) e o satélite (out ‘fora’). Assim, segundo Talmy (1985, 2000), o satélite é um constituinte que está em relação de irmandade com o sintagma verbal e que não requer a presença obrigatória do elemento fundo. No entanto, Beavers, Levin e Tham (2010) argumentam que a definição de satélite dada por Talmy não se sustenta, uma vez que nem todos os satélites estão em posição de irmandade com sintagma verbal: (22) a. I ran out of the house. eu corri fora de a casa ‘Eu corri para fora da casa.’ b. It was out of the house that I ran, not into the house. isto foi fora de a casa que eu corri não dentro a casa ‘Foi para fora da casa que eu corri, não para dentro da casa.’ c. *It was out that I ran of the house, not into the house. isto foi fora que eu corri de a casa não dentro a casa (Beavers; Levin; Tham, 2010, p. 338, exs. (6), (7)) Na sentença em (22a), out ‘fora’ é o satélite e, segundo Talmy (1985, 2000), está em posição de irmandade com o verbo run ‘correr’, enquanto of ‘de’ é a preposição que encabeça o sintagma preposicionado of the house ‘da casa’ que, por sua vez, é um adjunto do verbo. Entretanto, 1114 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 analisando a sentença em (22c), podemos perceber que, ao separarmos out ‘fora’ da expressão of the house ‘da casa’, a sentença torna-se agramatical, o que não ocorre em (22b), na qual out of the house ‘fora da casa’ aparece como um só constituinte. Isso evidencia que toda essa expressão é um único constituinte sintático. Portanto, Beavers, Levin e Tham (2010) concluem que the house ‘a casa’ é complemento de out ‘fora’, de modo que out of the house ‘fora da casa’ constitui um único sintagma preposicionado que está em adjunção ao sintagma verbal. Assim, não há diferença entre satélites e preposições. Além disso, Beavers, Levin e Tham (2010) argumentam que a distinção entre a obrigatoriedade do elemento fundo para as preposições e a sua não obrigatoriedade para os satélites não se sustenta do ponto de vista semântico. (23) a. John ran in (the house). ‘John correu em (a casa).’ b. John ran to the store. ‘John correu para a loja.’ (Beavers; Levin; Tham, 2010, p. 338, ex. (9)) De acordo com a proposta de Talmy (1985, 2000), a expressão in the house ‘em a casa’ é formado pelo satélite in ‘em’ seguido pelo elemento de fundo the house ‘a casa’, enquanto a expressão to the store ‘para a loja’ é constituída pela preposição to ‘para’ e pelo elemento de fundo the store ‘ a loja’. No entanto, em (23a), embora o elemento de fundo the house ‘a casa’, possa ser omitido, ele deve estar subentendido, o que mostra que mesmo os satélites precisam de um complemento. Assumindo essa noção mais ampla de satélite, Beavers, Levin e Tham (2010) e Demonte (2011) mostram que as línguas emolduradas nos verbos podem expressar o componente trajetória através de um sintagma preposicionado télico encabeçado pelas preposições jusqu’à (francês) e hasta (espanhol), que significam ‘até’, e pela preposição a, também do espanhol, que é traduzida como ‘para’.6 É importante dizer que, embora para seja uma preposição atélica, a preposição espanhola a é télica, como argumenta Demonte (2011). 6 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1115 (24) La cire coule jusqu’au bord de la table. ‘A cera fluiu até a borda da mesa.’ (French – Cummins, 1996 apud BEAVERS; LEVIN; THAM, 2010, p, 345, ex. (23a, b)) (25) El libro se deslizó hasta el suelo. ‘O livro deslizou até o chão’ (Spanish – Aske, 1989 apud BEAVERS; LEVIN. THAM, 2010 p. 345, ex. (23c)) (26) a. Juan corrió a la panadería. ‘Juan correu para a padaria.’ (DEMONTE, 2011, p. 19, ex (59)) O PB também se comporta como o espanhol, uma vez que possui vários verbos de movimento que não apresentam um argumento que veicula a noção de trajetória, mas possuem esse componente semântico expresso por sintagmas preposicionados télicos que funcionam como adjuntos desses verbos (exemplos em (a)). (27) a. O menino caminhou até a escola. → trajetória b. O menino caminhou para fora da escola. → direção do movimento (28) a. O fazendeiro correu até/ ao galpão. → trajetória b. O fazendeiro correu para dentro do galpão. → direção do movimento (29) a. O pião girou até o centro do salão. → trajetória b. O pião girou para dentro do salão. → direção do movimento (30) a. A bailarina rodopiou até o centro do palco. → trajetória b. A bailarina rodopiou para fora do palco. → direção do movimento (31) a. A bola rolou até o final do morro. → trajetória b. A bola rolou para fora do campo de futebol. → direção do movimento 1116 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Ainda é importante mencionar que esses mesmos verbos, mesmo não lexicalizando o componente semântico direção do movimento, aceitam a expressão desse componente, em adjunção, como podemos ver nos exemplos em (b) acima. Beavers, Levin e Tham (2010) também afirmam que, em línguas emolduradas nos satélites, os elementos que expressam direção podem ser usados em outros contextos, como a preposição do inglês out ‘fora’ nas construções resultativas: (32) John blew the candle out. John soprou a vela fora ‘John apagou a vela, soprando-a.’ Beavers (2008) mostra que o japonês, que é uma língua emoldurada nos verbos, também possui expressões que denotam trajetória, mas que podem estar presentes em outros campos semânticos: (33) Ohiru- made kore- o shite- kudasai. meio-dia até isto ACC faça por favor7 ‘Faça isto até o meio-dia, por favor.’ (Japonês – Kuno, 1973 apud Beavers, 2008, p. 299, ex. (22a)) (34) Hikooki-ga deru- made tomodachi-to hanashite ita. avião NOM patir até amigo com conversando estava8 ‘Até o avião sair, eu estava conversando com meu amigo.’ (Japonês – Makino; Tsutsui, 1986 apud Beavers, 2008, p. 299, ex. (22d)) Os exemplos japoneses em (33) e (34) apresentam a preposição made ‘até’ sendo usada em contextos que não transmitem a idéia de movimento. No PB, como em japonês, essa preposição também pode ser usada em diferentes contextos: 7 8 ACC = caso acusativo NOM = caso nominativo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1117 (35) João colocou açúcar até o café ficar doce. (36) Esse salão de festa acomoda até 500 pessoas. Além disso, Beavers, Levin e Tham (2010) mostram que o sentido de trajetória pode ser expresso por um sintagma nominal em línguas emolduradas nos satélites, como podemos ver no exemplo do finlandês a seguir: (37) Menen parvekkee-lle. ir.PRS.1ST balcão ALL9 ‘Estou indo para o balcão.’ (Finnish – Karlsson, 1983 apud Beavers; Levin; Tham, 2010, p. 341, ex. (15a)) O mesmo comportamento ocorre no PB: (38) O menino subiu o morro. (39) A menina desceu a escada Beavers, Levin e Tham (2010) e Levin e Rappaport Hovav (in press) propõem que as diferentes maneiras pelas quais as línguas expressam os eventos de movimento não estão relacionadas à lexicalização dos componentes semânticos trajetória e maneira pelos verbos. Segundo os autores, a expressão dos eventos de movimento depende principalmente de restrições sintáticas mais amplas, que se referem simplesmente às possibilidades de adjunção e subordinação nas línguas. Neste artigo, endossamos a proposta dos autores. A idéia de maneira pode ser expressa, em qualquer verbo de movimento, por adjuntos adverbiais ou orações subordinadas, como pode ser visto abaixo: (40) a. John foi para casa rapidamente. → verbo de trajetória b. John foi para casa mancando. 9 ALL = caso alativo; PRS = presente; 1ST = primeira pessoa 1118 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 (41) a. João correu rapidamente. → verbo que não veicula o sentido de trajetória b. João correu mancando. c. João correu para casa rapidamente. d. João correu para casa mancando. O componente semântico trajetória, tanto em verbos do tipo ir, quanto em verbos do tipo correr, é sempre expresso por meio de sintagmas preposicionados (que são satélites, como mostrado por Beavers, Levin e Tham, 2010), como em o menino foi para Berlin/ João correu para casa, ou através de sintagmas nominais, como em o menino subiu o morro/ o menino correu a maratona. O sentido de direção também pode ser expresso, em ambos os tipos de verbos, por satélites, como em ela levou os tiros e entrou para dentro da sala/ o fazendeiro correu para dentro do galpão. Para finalizar, vale a pena mencionar que Segundo Meirelles (2016) e Meirelles e Cançado (2017), o PB tem mais verbos de movimento que não lexicalizam o componente semântico direção (22 verbos – andar, correr, nadar, pular, saltar, etc.) do que verbos de movimento que lexicalizam esse sentido (17 verbos – entrar, sair, subir, descer, etc.), o que é mais uma evidência de que nossa língua não se encaixa na tipologia proposta por Talmy (1985, 2000).10 3 Considerações finais Neste artigo, argumentamos, através da análise dos verbos de movimento do PB, contra a existência de um padrão tipológico dicotômico da expressão dos eventos de movimento nas línguas. De acordo com a proposta de Talmy (1985, 2000), o PB pertence ao grupo das línguas emolduradas nos verbos. No entanto, mostramos, com base nas definições dos componentes semânticos trajetória e direção do movimento, fornecidas por Meirelles e Cançado (2017), e também com base na definição de satélite, adotada por Beavers, Levin e Tham (2010), que nossa língua exibe comportamento tanto de línguas emolduradas nos verbos quanto de línguas emolduradas nos satélites. Seguindo a proposta de Beavers, Levin e Tham (2010), argumentamos que, no 10 Esses dados foram coletados através do dicionário de verbos de Borba (1990). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1119 PB, o componente semântico direção do movimento pode ser expresso por sintagmas preposicionados, tanto em verbos que lexicalizam esse componente (verbos do tipo ir), quanto em verbos que não o lexicalizam (verbos do tipo correr). Da mesma forma, o sentido de trajetória pode ser expresso por sintagmas preposicionados, tanto em verbos que tomam esse sintagma como um de seus argumentos (verbos do tipo ir), quanto em verbos que aceitam esse sintagma como um adjunto (verbos do tipo correr). O componente semântico maneira é expresso, nos dois tipos de verbos de movimento, pela adjunção de advérbios ou através de orações subordinadas. Finalizamos dizendo que, embora tenhamos argumentado contra a tipologia binária de Talmy (1985, 2000), a proposta do autor é de extrema importância para os estudos linguísticos. Agradecimentos A autora agradece à FAPEMIG pela bolsa de doutorado. Referências Amaral, L. Os predicados primitivos ACT e DO na representação lexical dos verbos. 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística Teórica e Descritiva) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. Amaral, L. Os verbos de modo de movimento do português brasileiro. 2010. Monografia (Graduação – Bacharel em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. AMARAL, L. Os verbos de modo de movimento no português brasileiro. ReVeLe, Belo Horizonte, v. 3, p. 1-20, Ago. 2011. DOI: https://doi. org/10.17851/2317-4242.3.0.76-95 Amaro, R. Computation of Verbal Predicates in Portuguese: Relational Network, Lexical-Conceptual Structure and Context – the Case of Verbs of Movement. 2009. Tese (Doutorado) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2009. Amaro, R. Semantic Incorporation in a Portuguese WordNet of Verbs of Movement: on Aktionsart shifting. In: INTERNATIONAL WORKSHOP ON GENERATIVE APPROACHES TO THE LEXICON, 3th., 2005, Geneva. Proceedings... Geneva: University of Geneva, 2005. p. 1-9. 1120 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Aske, J. Path Predicates in English and Spanish: A Closer Look. In: ANNUAL MEETING OF THE BERKELEY LINGUISTICS SOCIETY, 15., 1989, Berkeley. Proceedings… Berkeley: Berkeley Linguistics Society, 1989. P. 1-14. DOI: https://doi.org/10.3765/bls.v15i0.1753 Barbosa, J. A estrutura sintática das chamadas “construções resultativas em PB”. 2008. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Beavers, J. On the Nature of Goal Marking and Delimitation: Evidence from Japanese. Journal of Linguistics, Cambridge, v. 44, n. 2, p. 283-316, 2008. DOI: http://10.1017/S0022226708005136 Beavers, J.; Koontz-Garboden, A. Result Verbs, Scalar Change, and the Typology of Motion Verbs. Language, [S.l.], v. 93, p. 842-876, 2017. Beavers, J.; Levin, B.; Tham, S. The Typology of Motion Events Revisited. Journal of Linguistics, Cambridge, v. 46, n. 2, p. 331-377, 2010. DOI: http://10.1017/S0022226709990272 BORBA, F. (Coord). Dicionário gramatical de verbos do português contemporâneo do Brasil. 2. ed. São Paulo: Ed. da UNESP, 1990. Carter, R. On Linking: Papers by Richard Carter. In: Levin, B; Tenny, C. (Ed.). Lexicon Project Working Papers 25. Cambridge: Center for Cognitive Science, MIT, 1988. Choi, S.; Bowerman, M. Learning to Express Motion Events in English and Korean: The Influence of Language-Specific Lexicalization Patterns. Cognition, [S.l.], v. 41, n. 1-3, p. 83-121, 1991. Croft, W.; BarDdal, J.; Hollmann, W.; Sotirova, V.; Taoka, C. Revising Talmy’s Typological Classification of Complex Events. In: Boas, H. C. (Ed.). Contrastive Construction Grammar. Amsterdam: John Benjamins, 2010. p. 201-235. DOI: https://doi. org/10.1075/cal.10.09cro Cummins, S. Movement and Direction in French and English. Toronto Working Papers in Linguistics, Toronto, v. 15, p. 31-54, 1996. Demonte, V. Los eventos de movimiento en español: construcción léxico-syntáctica y microparámetros preposicionales. In: Oltal, J.; Fernández, L.; Sinner, C. Estúdios sobre perífrase y aspecto. Munique: Peniope, 2011. p. 16-42. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1121 Folli, R.; Ramchand, G. Prepositions and Results in Italian and English: An Analysis from Event Decomposition. In: Verkuyl, H.; de Swart, H.; van Hout, A. (Ed.). Perspectives on Aspect, Dordrech: Kluwer: 2005. p. 81-105. DOI: http:// 10.1007/1-4020-3232-3_5 Godoy, L. A reflexivização no português brasileiro e a decomposição semântica de predicados. 2012. Tese (Doutorado em Linguística Teórica e Descritava) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Goschler, J.; Stefanowitsch, A. Introduction: Beyond Typology: The Encoding of Motion Events across Time and Varieties. In: ______. (Ed.). Variation and Change in the Encoding of Motion Events. Amsterdam: John Benjamins, 2013. p. 1-14. DOI: https://doi. org/10.1075/hcp.41.00gos Gruber, J. Lexical Structures in Syntax and Semantics. Amsterdam: North-Holland, 1976. Gruber, J. Studies in Lexical Relations. 1965. Thesis (PhD) – MIT, Cambridge, MA, 1965. Imbert, C. Path: Ways Typology Has Walked Through It. Language and Linguistics Compass, [S.l.], v. 6, n. 4, p. 236-258, 2012. DOI: http://10.1002/lnc3.329 Jackendoff, R. Semantic Structures. Cambridge: MIT Press, 1990. Jackendoff, R. Semantics and Cognition. Cambridge: MIT Press, 1983. Jackendoff, R. Toward an Explanatory Semantic Representation. Linguistic Inquiry, [S.l.], n. 7, p. 89-150, 1976. JONES, M. A. Cognate Objects and the Case-Filter. Journal of Linguistics, [S.l.], v. 24, n. 1, p. 89-110, 1988. Karlsson, F. Finnish Grammar. Helsinki: Arthur Vanous Co., 1983. Kuno, S. The Structure of the Japanese Language. Cambridge, MA: MIT Press, 1973 Levin, B. English Verb Classes and Alternations: A Preliminary Investigation. Chicago: The University of Chicago Press, 1993. 1122 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Levin, B.; Rappaport Hovav, M. Lexicalization Patterns. In: Truswell, R. (Ed.). Oxford Handbook of Event Structure. Oxford: Oxford University Press. In press. Available in: <http://web.stanford. edu/~bclevin/pubs.html>. Acess on: 10 Aug. 2018. Levin, B.; Rappaport Hovav, M. The Lexical Semantics of Verbs of Motion: The Perspective from Unaccusativity. In: Roca, I. Thematic Structure: Its Role in Grammar. Berlin: Foris, 1992. p. 247-269. DOI: https://doi.org/10.1515/9783110872613.247 Makino, S.; Michio, T. A Dictionary of Basic Japanese Grammar. Tokyo: The Japan Times, 1986. Mateu, J. Conflation and Incorporation Processes in Resultative Constructions. In: Demonte, V.; McNally, L. (Ed.). Telicity, Change, and State: A Cross-Categorial View of Event Structure. Oxford: Oxford University Press, 2012a. p. 252-278. DOI: http:// 10.1093/ acprof:oso/9780199693498.003.0010 Mateu, J. Structure of the Verb Phrase. In: Hualde, J. I.; Olarrea, A.; O’Rourke, E. (Ed.). The Handbook of Hispanic Linguistics. Chichester: Wiley, 2012b. p. 333-353. DOI: http:// 10.1002/9781118228098.ch17. MEIRELLES, L. L. Os verbos de movimento no português brasileiro. 2016. Dissertação (Mestrado em Linguística Teórica e Descritiva) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. Meirelles, L. L.; Cançado, M. A propriedade semântica movimento na representação lexical dos verbos do português brasileiro. Alfa, Araraquara, v. 61, n. 2, p. 425-450, 2017. DOI: https://doi. org/10.1590/1981-5794-1709-8 Menuzzi, S.; Ribeiro, P. A representação léxico-semântica de alguns tipos de verbos monoargumentais. Cadernos do IL, Porto Alegre, v. 42, p. 83-94, 2011. MUNHOZ, A. A estrutura argumental das construções de tópicosujeito: o caso dos sujeitos locativos. 2011. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília. 2011. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 1123 MUNHOZ, A.; NAVES, R. Construções de tópico-sujeito: uma proposta em termos de estrutura argumental e de transferências de traços de C. SIGNUM, Londrina, n. 15, p. 245-265, 2012. Ribeiro, P. Revisitando a semântica conceitual de Jackendoff: um estudo sobre a semântica verbal no PB sob a perspectiva da hipótese locacional. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. SCHER, A. P.; LEUNG, R. O filtro do caso e os objetos cognatos com verbos inacusativos. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 34, p. 927-932, 2005. SCHER, A. P.; LEUNG, R. Os objetos cognatos e os modificadores adverbiais. Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 35, p. 1668-1676, 2006. Silva Júnior, I. R. Verbos de movimento e sua representação na sua estrutura léxico conceptual. 2015. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Slobin, D. I. The Many Ways to Search for a Frog: Linguistic Typology and the Expression of Motion Events. In: Stromqvist, S.; Verhoeven, L. (Ed.). Relating Events in Narrative: Typological and Contextual Perspectives. Mahwah, N. J.: Lawrence Erlbaum Associates, 2004. v. 2, p. 219-257. Slobin, D. I. Two Ways to Travel: Verbs of Motion in English and Spanish. In: Shibatani, M.; Thompson, S. A. (Ed.). Grammatical Constructions: Their Form and Meaning. Oxford: Oxford University Press, 1996. p. 195-219. Souto, K. Categorias funcionais e lexicais no licenciamento de verbos de trajetória: o caso do verbo ir. 2014. Tese (Doutorado) – Universidade de Brasília, Brasília, 2014. Talmy, L. Lexicalization Patterns: Semantic Structure in Lexical Forms. In: Shopen, T. (Ed.). Language Typology and Syntactic Description: Grammatical Categories and the Lexicon. New York: Cambridge University Press, 1985. v.3, p. 57-149. Talmy, L. Semantic Structures in English and Atsugewi. 1972. Dissertation (PhD) - Department of Linguistics, University of California, Berkeley, 1972. 1124 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 1101-1124, abr./jun. 2019 Talmy, L. Toward a Cognitive Semantics: Typology and Process in Concept Structuring. Cambridge, MA: MIT Press, 2000. v. 2. Zlatev, J.; Yangklang, P. A Third Way to Travel: The Place of Thai in Motion Event Typology. In: Stromqvist; Verhoeven (Ed.). (Ed.). Relating Events in Narrative: Typological and Contextual Perspectives. Mahwah, N. J.: Lawrence Erlbaum Associates, 2004. p. 159-190. Zubizarreta, M. L.; Oh, E. On the Syntactic Composition of Manner and Motion. Cambridge: MIT Press, 2011.