Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.25 - Nº 2 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 25 n. 2 p.473-937 abr./jun. 2017 REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Universidade Federal de Minas Gerais REITOR: Jaime Arturo Ramirez VICE-REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida Faculdade de Letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETOR: Rui Rothe-Neves Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Adelande Pereira Ferraz (UFMG) Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG Revisão Heliana Ribeiro de Mello Secretária Úrsula Francine Massula Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Capa Elson Rezende de Melo REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM V. 25 - Nº 2- abr.-jun. 2017 Indexadores DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MLA Bibliography [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] Latindex [Mexico] Sindex (Sientiic Indexing Services) [USA] CSA - Linguistics and Language Behavior Abstract Portal CAPES DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Cientíico) [Spain] REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Comissão Editorial Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Comissão Cientíica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Alessandro Panunzi (Univ. degli Studi Firenze, Itália) Alina Maria S. M. Villalva (Univ. de Lisboa) Ana Lúcia de Paula Müller (USP) Augusto Soares da Silva (UCP, Braga) Beth Brait (PUCSP / USP) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL) César Nardelli Cambraia (UFMG) Charlotte C. Galves (UNICAMP) Cristina Name (UFJF) Deise Prina Dutra (UFMG) Diana Luz Pessoa de Barros (USP/Mackenzie-SP) Dylia Lysardo-Dias (UFSJ) Edwiges Morato (UNICAMP) Emília Mendes Lopes (UFMG) Esmeralda V. Negrão (USP) Gabriel de Ávila Othero (UFRGS) Gerardo Augusto Lorenzino (Temple University) Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) Hanna Batoréo (Universidade Aberta, Lisboa) Heliana Ribeiro de Mello (UFMG) Heronides Moura (UFSC) Hilário Bohn (UCPEL) Hugo Mari (PUC Minas) Ida Lúcia Machado (UFMG) Ieda Maria Alves (USP) Ivã Carlos Lopes (USP) Jairo Nunes (USP) João Antônio de Moraes (UFRJ) João Miguel M. da Costa (Univ. Nova, Lisboa) João Queiroz (UFJF) João Saramago (Univ. de Lisboa) John Robert Schmitz (UNICAMP) José Borges Neto (UFPR) Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP) Leo Wetzels (Free University of Amsterdam) Leonel Figueiredo de Alencar (UFC) Lodenir Becker Kamopp (UFRGS) Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG) Luiz Amaral (Univ. of Massachusetts Amherst) Luiz Carlos Cagliari (UNESP-Araraquara) Luiz Carlos Travaglia (UFU) Marcelo Barra Ferreira (USP) Márcia Maria Cançado Lima (UFMG) Márcio Leitão (UFP) Marcus Maia (UFRJ) Maria Antonieta Amarante M. Cohen (UFMG) Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP) Maria Cecília Camargo Magalhães (UFRJ) Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ) Maria Cândida Trindade C. de Seabra (UFMG) Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR) Maria do Carmo Viegas (UFMG) Maria Luíza Braga (PUC-RJ) Maria Marta P. Scherre (UnB) Milton do Nascimento (PUC-Minas) Mônica Santos de Souza Melo (UFV) Philippe Martin (Université Paris 7) Rafael Nonato (Museu Nacional / UFRJ) Raquel Meister Ko. Freitag (UFS) Roberto de Almeida (Concordia University) Ronice Müller de Quadros (UFSC) Ronald Beline (USP) Rove Chishman (UNISINOS) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP) Sérgio de Moura Menuzzi (UFRGS) Seung-Hwa Lee (UFMG) Sírio Possenti (UNICAMP) haïs Cristófaro Alves da Silva (UFMG) Tony Berber Sardinha (PUC-SP) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS) Vander Viana (University of Stirling, UK) Vanice Gomes de Medeiros (UFF) Vera Lúcia Lopes Cristóvão (UEL) Vera Lúcia Menezes de O. e Paiva (UFMG) Vilson J. Lefa (UCPEL) Sumário / Contents Examining L1 Brazilian Portuguese speakers’ sensitivity to English nuclear stress assignment Examinando a sensibilidade dos falantes brasileiros à alocação do acento nuclear do inglês Hanna Kivistö-de Souza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 483 Primeiras considerações sobre medidas aerodinâmicas da consoante nasal palatal do português brasileiro First considerations on aerodynamic measurements of the palatal nasal consonant of Brazilian Portuguese Michele Gindri Vieira Izabel Christine Seara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 515 Motivações semântico-pragmáticas para a ordenação dos argumentos na construção ditransitiva Semantic-pragmatic motivations for argument ordering in the ditransitive construction Maria Angélica Furtado da Cunha . . . . . . . . . . . . . . . . . . 555 O lugar nos estudos toponímicos: relexões Place in toponymic studies: relections Karylleila Santos Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 585 “Tudo bem”, “tudo em paz” e “uma tremenda sorte”: Avaliações positivas no gerenciamento da incerteza na comunicação entre oncologistas e pacientes com câncer de mama ‘You’re all right’, ‘Everything’s ok’ and ‘tremendous luck’: Positive assessments in the managing of uncertainty in the communication between oncologists and breast cancer patients Joseane de Souza Ana Cristina Ostermann . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 609 Interferências linguísticas na interlíngua em alunos hispanofalantes de português como língua estrangeira Linguistic interferences in the interlanguage of native Spanish-speaking learners of Portuguese as a foreign language Nildicéia Aparecida Rocha Ana María del Pilar Altamirano. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 641 Populism and the people in Lula’s political discourse: Bridging linguistic and social theory Populismo e o povo no discurso político de Lula: Uma ponte entre teoria linguística e social Bruno Coutinho Adriana Carvalho Lopes Daniel do Nascimento e Silva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 681 Os registros da experiência da criança na linguagem: o ato enunciativo de transcrição The recording of children’s experience in language: the enunciative act of transcription Marlete Sandra Diedrich . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 711 A representação do homossexual no discurso humorístico: uma análise do canal “Porta dos Fundos” Homossexual representation in humorous speech: an analysis of “Porta dos Fundos” YouTube channel Nilton César Ferreira Alexandre Sebastião Ferrari Soares. . . . . . . . . . . . . . . . . . 739 A posição-sujeito gramático ocupada por Evanildo Bechara na mídia: tradição e/ou modernidade? The grammarian subject-position used by Evanildo Bechara in the media: tradition and/or modernity? Agnaldo Almeida de Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 765 Grupo focal e prática de pesquisa em Análise do Discurso: metodologia em perspectiva dialógica Focus groups and research practices in Discourse Analysis: methodology in perspective Poliana Coeli Costa Arantes Bruno Deusdará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 791 Lapsos de língua e discurso: uma análise do termo nasciturno Language and discourse lapses: an analysis of the word nasciturno Carolina Padilha Fedatto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 815 A semiótica das paixões e a análise da dimensão passional dos enunciados The semiotics of passions and the analysis of the passional dimension of discourse Eliane Soares de Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 841 A compreensão da argumentação linguística: hipótese de interação entre leitura e oralidade Linguistic argumentation comprehension: reading and oral language interaction hypothesis Ana Cláudia de Souza Helena Cristina Weirich Leonilda Procailo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 873 Um estudo das emoções em crônicas jornalísticas A study about emotions in journalistic chronicles Lúcia Helena Martins Gouvêa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 Examining L1 Brazilian Portuguese speakers’ sensitivity to English nuclear stress assignment1 Examinando a sensibilidade dos falantes brasileiros à alocação do acento nuclear do inglês Hanna Kivistö-de Souza Universidade de Barcelona hanna.kivistodesouza@gmail.com Abstract: The aim of this paper was to examine whether Brazilian Portuguese learners of English are aware of English nuclear stress assignment and whether this awareness is affected by the utterance type. To the date, little research has been carried out about the acquisition of English suprasegmentals by Brazilian Portuguese speakers. Previous studies indicate that the acquisition of target-like nuclear stress assignment is dificult for EFL learners (ZUBIZARRETA; NAVA, 2011). However, non-target-like nuclear stress assignment is likely to lead into communication breakdowns, making its mastering a priority for L2 learners. The participants were 69 L1 Brazilian Portuguese learners of English and 16 native English speakers. Sensitivity to L2 prosody was measured in a perception task which presented low-pass iltered utterances differing in nuclear stress assignment. The results showed that the L1 Brazilian Portuguese speakers possessed less awareness about 1 The research reported in this manuscript is based on the doctoral research project of the author in which Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about English phonology was examined in the segmental, phonotactic and suprasegmental domains (KIVISTÖ-DE SOUZA, 2015). The manuscripts reports only on the results of the prosodic domain, whose data was re-analyzed for the purposes of this paper. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.483-514 484 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 English nuclear stress assignment than the native English speakers (F(1, 83) =55.95, p <.001, η2 =.40). Furthermore, awareness was affected by utterance type so that the only test category manifesting above chancelevel performance was deaccented sentences ending in function words (76%). In unaccusative (40%) and deaccented utterances ending in given information (52%), the performance was at or below chance-level. The indings suggest that L1 Brazilian Portuguese learners would beneit from explicit prosodic instruction even at advanced levels of proiciency. Keywords: phonological awareness; prosody; pronunciation. Resumo: O objetivo deste artigo foi examinar se os aprendizes brasileiros de inglês têm consciência sobre a alocação do acento nuclear de inglês, e se esta é afetada pelo tipo de sentença. Atualmente, poucos estudos têm sido conduzidos sobre a aquisição suprassegmental do inglês por falantes brasileiros. Os estudos prévios mostram que a aquisição de acento nuclear é difícil para aprendizes de inglês (ZUBIZARRETA; NAVA, 2011). No entanto, o uso adequado do acento nuclear deve ser uma prioridade para aprendizes de LE porque o seu uso inadequado leva a mal-entendidos. Os participantes foram 69 aprendizes brasileiros de inglês e 16 falantes nativos de inglês. A sensibilidade ao acento nuclear na LE foi medida num teste de percepção que apresentou sentenças com iltro passa-baixa que variavam nos padrões de entoação. Os resultados mostraram que os aprendizes brasileiros de inglês manifestavam uma sensibilidade mais baixa ao acento nuclear de inglês que os falantes nativos de inglês (F(1, 83) =55.95, p <.001, η2 =.40). Além do mais, a sensibilidade variava em função do tipo de sentença, de tal maneira que somente as orações que terminavam em categorias funcionais (76%) mostravam desempenho acima do nível estatisticamente esperado ao acaso. Nas orações inacusativas (40%) e desacentuadas terminadas em informação dada (52%), o desempenho estava abaixo ou no nível estatisticamente esperado ao acaso. Os resultados sugerem que instrução explícita sobre a prosódia de L2 seria benéica inclusive aos aprendizes brasileiros de inglês com um nível avançado de proiciência. Palavras-chave: consciência fonológica; prosódia; pronúncia. Recebido em: 14 de maio de 2016. Aprovado em: 23 de junho de 2016. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 485 Introduction Children show sensitivity to irst language (L1) prosody from 8-months of age onwards (JOHNSON; JUSCZYK, 2001). This sensitivity to prosody is maintained over lifetime, as adult language users are able to distinguish questions and exclamations from statements, as well as to interpret the speaker’s intentionality from the literal meaning of the utterance. Moreover, speakers are able to produce a wide variety of rhythmic and intonation patterns. How this sensitivity to prosody is manifested in second language (L2) learners is the focus in the present study. Whereas native speakers’ phonology is a stable system in which perception and production errors rarely occur, non-native speakers’ interlanguage system is incomplete and unstable. The acquisition of targetlike nuclear stress assignment has been shown to be especially challenging for native speakers of Romance languages learning English (e.g., NAVA, 2008). Romance and Germanic languages differ in the rules governing nuclear stress assignment, which leads to misunderstandings in perception and production when communicating in the L2. These acquisition problems persist even at advanced stages of L2 learning (ZUBIZARRETA; NAVA, 2011), for which the subject is especially relevant. Little research has been carried out about the acquisition of English prosody by L1 Brazilian Portuguese speakers as most studies have focused on the acquisition of the segmental domain (e.g., ALVES; ZIMMER, 2015; CRISTÓFARO SILVA ;CAMARGOS, 2016; KLUGE, 2012; RAUBER, 2006; SILVEIRA, 2012). In L2 prosodic acquisition, the employment of consciousness-raising activities has been shown to be helpful for EFL learners (RAMÍREZ VERDUGO, 2006; SAITO; WU, 2014). Previous studies on L2 prosodic awareness have employed mainly explicit testing methods for language learners undergoing an instructional period in L2 prosody (e.g., KENNEDY, BLANCHET; TROFIMOVICH, 2014; RAMÍREZ VERDUGO, 2006). Nevertheless, most of the language learners have never attended a specialized course in L2 phonetics. For this reason, examining language learners during a phonetic training period might not be representative of L2 learners as a whole. The present study sought to remedy these gaps in literature by examining phonetically naïve language learners’ awareness about L2 nuclear stress assignment with implicit testing methods. Employing implicit tests rather than asking the participants to verbally report on 486 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 their awareness is more suitable as the majority of the language users are unable to verbalize and elaborate on rules about L1 and L2 phonology. The aim of the present paper was to examine to which extent Brazilian Portuguese ELF learners are aware of L2 prosody, more speciically, nuclear stress assignment, and whether this awareness would be affected by the utterance type (unaccusative/deaccented). The paper begins with a short review of relevant L1 and L2 literature and then presents the methodology and results of the study. Finally, the results are contrasted with previous indings from the area and discussed from a pedagogical perspective. 1 Review of literature 1.1 Prosodic awareness research in the irst and the second language The majority of studies within L1 phonological awareness have focused on explicit measures examining children’s ability to segment and manipulate phones, onsets and rimes. Nevertheless, children’s awareness about the prosody of the L1 has also been under investigation in a small number of studies (e.g., DEFIOR, GUTIÉRREZ-PALMA; CANOMARÍN, 2012; GOODMAN; LIBENSON; WADE-WOOLLEY, 2010; HOLLIMAN; WOOD; SHEENY, 2008). L1 prosodic awareness, contrary to L1 phonemic awareness, is not evident in conscious manipulation of speech segments, but in sensitivity to acceptable and unacceptable L1 prosodic patterns (LANCE; SWANSON; PETERSON, 1997), and in the accurate production and perception of these patterns (GOODMAN et al., 2010). Contrary to L1 phonemic awareness which develops through contact with L1 script (TARONE; BIGELOW, 2007), L1 prosodic awareness develops spontaneously through language contact, and infants have been shown to gain sensitivity to L1 prosody from eight months of age onwards (JOHNSON; JUSCZYK, 2001). Several areas within prosody have been examined under L1 prosodic awareness: speech rhythm (WOOD; TERRELL, 1998), nonspeech rhythm (WHALLEY; HANSEN, 2006), phrasal stress assignment (WHALLEY; HANSEN, 2006; WOOD; TERRELL, 1998) and word stress (eg., DEFIOR et al., 2012). The tasks employed in these studies can be characterized as measuring implicit, rather than explicit awareness, as children are not asked to manipulate on speech stimuli or verbalize Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 487 any knowledge, contrary to traditional phonological awareness studies. The tasks have mainly focused on speech perception and have presented unaltered or altered speech (speeded up, low-pass iltered) in which the children’s task has been to identify, discriminate or match the auditory samples. For example, in a rhythmic matching task (WOOD; TERRELL, 1998), children were presented with a low-pass iltered utterance and two normal, unaltered utterances conserving all auditory cues. The children had to select from the unaltered utterances the one that corresponded to the low-pass iltered one. Findings from L1 prosodic awareness research suggest that it is related to word and nonword reading (e.g., DEFIOR et al., 2012; GUTIÉRREZ-PALMA; PALMA-REYES, 2007). Nevertheless, the variance accounted by L1 prosodic awareness seems to be small after explicit L1 phonological awareness has been accounted for (HOLLIMAN et al., 2008). Prosodic awareness might also be related to L1 phonemic and rime-onset awareness (HOLLIMAN et al., 2008), although some studies have not found a relation between the two (DEFIOR et al., 2012). More research on L1 prosodic awareness is required to understand its relation to L1 phonemic awareness and to learner variables such as cognitive resources and contact to foreign languages, for example. In SLA, research on phonological awareness, and more speciically on prosodic awareness, has been scarce. Only a handful of studies have examined language learners’ knowledge about different suprasegmental aspects of the L2. Most of the studies about L2 prosodic awareness have been carried out by Kennedy and her colleagues in Montréal. Kennedy and Troimovich (2010) introduced journal writing as a tool to follow English as a second language learners’ awareness about aspects of L2 prosody during a pronunciation course focusing on suprasegmentals. The journal entries were assessed for quantitative (language seen as a set of items to be memorized) and qualitative (language seen as a means to communicate) comments. The authors found a strong relation between the language learners’ pronunciation and qualitative language awareness. In a reanalysis of the Kennedy and Troimovich data, Kennedy (2012) examined the language learners’ L2 use across different contexts. No relation was observed between prosodic awareness and the amount of L2 use. The same journal writing design was adopted in Kennedy and Blanchet (2014) and Kennedy et al. (2014) with French as a second language learners. In these studies, language learners’ ability to perceive 488 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 and produce connected L2 speech was found to be related to qualitative awareness about L2 prosody. However, quantitative awareness about L2 prosody was not related to speech perception and production. These studies suggest that not only the amount of knowledge the L2 learners possess about the L2 prosody matters, but also the way they view language in general. Ramírez Verdugo (2006) examined L1 Spanish EFL learners’ awareness about English intonation during a 10-week computer-assisted instruction program. Prosodic awareness was measured through a computer-assisted tool and a questionnaire. Learners recorded texts in English and compared them to native speaker recordings. Comparisons were aural as well as visual as participants were shown the pitch displays of the recordings. The participants gained accuracy and comprehensibility in their prosodic performance, and also reported to be more aware of English intonation after the training period. The indings from previous studies on L2 prosodic awareness suggest that prosodic awareness is positively related to an individual’s ability to produce (KENNEDYet al., 2014; KENNEDY; TROFIMOVICH, 2010) and perceive (KENNEDY; BLANCHET, 2014) the L2 accurately. Learners with higher prosodic awareness also improved their pronunciation faster than learners with lower awareness (KENNEDY; BLANCHET, 2014). However, it should be noted that the conceptualization of prosodic awareness in these studies has been different than in the L1 prosodic awareness research. Whereas L1 prosodic awareness research has focused on implicit testing methods, studies about L2 prosodic awareness have relied on participants’ verbalization of the acquired knowledge. Furthermore, all of the L2 studies discussed above employed a training period during which the participants were exposed to explicit phonetics teaching and to activities designed to raise learners’ consciousness about L2 prosody. Consequently, research on L2 prosodic awareness would beneit from employing implicit testing methods and from examining phonetically naïve individuals. 1.2 Tonicity in General American English Tonicity, or the assignment of nuclear stress, has the function of highlighting the lexical item in the utterance the speaker considers the most important and wishes the interlocutor to focus on. This word is Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 489 assigned with an extra prominence by means of a nuclear stress, which is an extra-heavy stress indicating a change in the pitch movement (WELLS, 2006). By default, nuclear stress is placed on the last stressed syllable of the intonation phrase. Nuclear stress assignment is nevertheless languagespeciic and related to the information status of the constituents within the intonation phrase: information considered to be new is highlighted whereas given information is not. Consequently, L2 learners are required to become aware of the differences in nuclear stress assignment between their L1 and their L2 in order to produce target-like speech and avoid misunderstandings. Nuclear stress assignment in broad focus context in General American English is governed by two principles: Germanic Nuclear Stress Rule and Anaphoric Deaccenting Rule (ZUBIZARRETA, 1998). We will shortly cover these rules and provide some examples to illustrate their functioning. Although by default, the nuclear stress is located on the rightmost constituent of the intonation phrase, the Germanic Nuclear Stress Rule allows nuclear movement, as it is sensitive to predicate-argument relations and to the order of the sentence constituents (e.g. NAVA; ZUBIZARRETA, 2008). Consider the following examples (nuclear stress is indicated by underlining): 1. Lisa likes chocolate. (SVO) 2. Lisa’s cat disappeared. (SV) 3. Lisa’s crying/ Lisa’s crying. (SV) The nuclear stress falls on the rightmost constituent, as expected, in utterances ending in constituent other than a verb (Example 1). In intransitive constructions (Examples 2, 3), the nuclear stress is variable and depends on the predicate structure and on the speaker’s perception of the events reported. If the speaker views the information as thetic, i.e., simply states the event without providing a comment on it, the nuclear stress falls on the subject. If the speaker, on the other hand, perceives the event as categorical, i.e., states the event and provides a comment on it, the nuclear stress will fall on the verb. Previous research (NAVA; ZUBIZARRETA, 2010; ZUBIZARRETA; NAVA, 2011) indicates that native English speakers view unaccusative constructions as thetic (Example 2). Whereas unergative constructions can be viewed as thetic or categorical (Example 3), depending on the noteworthiness of the event described, unexpected events tend to be seen as categorical. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 490 It is worth highlighting that the above discussion applies to a broad focus context in which the speaker assumes all the information to be new for the interlocutor. In a narrow focus interpretation, nuclear stress can appear on other constituents to signal contrast or emphasis (focus domain indicated by square brackets): 4. [Lisa’s arm hurts.] 5. Lisa’s arm [hurts]. Whereas Example 4 presents a declarative statement in ‘out of the blue’ context, Example 5 establishes an implicit contrast: Lisa’s arm HURTS, it is not BROKEN, for example. Having discussed the Germanic Nuclear Stress Rule and how it affects on nuclear stress assignment, we will briely discuss the Anaphoric Deaccenting Rule. This rule states that function words and previously mentioned information are deaccented in English, which greatly affects nuclear stress assignment in these contexts. On the one hand, function words (pronouns, prepositions, copulas and auxiliary verbs) are deaccented in English so that they are normally unstressed and show vowel reduction. For this reason, function words cannot receive a nuclear stress in English in a broad focus context, so that if an utterance ends in a function word, the nuclear stress moves to a non-inal position: 6. Tom called me. 7. Who are you talking to? On the other hand, given information is deaccented in English whereas new information is accented, as this is the information the speaker wishes to bring into the listener’s attention. Therefore, if an utterance ends in given information, the nuclear stress cannot appear on the inal position in a broad focus context, but shifts to the left so that the given information will not receive unnecessary prominence: 8. Do you like the Guardian? – I never read newspapers. 9. Could you prepare the dinner? – I hate cooking. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 491 In Example 8, the speaker and the interlocutor share common knowledge about the fact that the Guardian is a newspaper, which is why the interlocutor does not need to bring that into focus and instead highlights the new information (she never reads newspapers). Example 9 shows how synonyms are also considered as given information. Because of this, the interlocutor removes importance from cooking and instead highlights his attitude toward it, which is unknown to the speaker. The lexibility in English nuclear stress assignment needs to be acquired by language learners if they wish to communicate effectively. Nevertheless, it should be stated that nuclear stress assignment is not always a clear-cut matter because it is speaker- and context dependent. The focus domain, and thus nuclear stress assignment, is decided by the speaker based on the information he considers noteworthy to the interlocutor. This might or might not coincide with what the interlocutor considers noteworthy. Furthermore, the concept of given and new information can only be examined within a given context. Depending on the context, the same utterance can have several interpretations. Thus, nuclear stress assignment is never context neutral (ZUBIZARRETA; VERGNAUD, 2005). 1.3 Tonicity in Brazilian Portuguese Brazilian Portuguese nuclear stress assignment is governed by the Romance Nuclear Stress Rule, which is more rigid than the earlier discussed Germanic Nuclear Stress Rule. In a broad focus context, nuclear stress is assigned to the rightmost constituent of the intonation phrase (MORAES, 1998; TENANI, 2002). Bringing constituents into focus, which in English is obtained through lexible nuclear stress assignment, is obtained through syntactic devices (word order, cleft- and pseudo-cleft constructions) in Spanish, European Portuguese, and other Romance languages. Consequently, nuclear stress movement to a non-inal position calls for a contrastive interpretation in these languages. Nevertheless, Brazilian Portuguese differs from the abovediscussed Romance languages in that its word order is more rigid. Brazilian Portuguese only has two unmarked word orders (SVO and SV) in comparison to European Portuguese, which allows for six different word orders (FERNANDES, 2007). From this, it follows that Brazilian Portuguese cannot resort to changes in word order to bring constituents into focus in the same manner as Spanish, for example. Previous research 492 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 indicates that whereas English speakers resort mainly to prosodic devices to focalize constituents and Spanish and European Portuguese speakers resort mainly to syntactic devices, Brazilian Portuguese speakers appear to employ both strategies. Consider the following examples as an answer to the question ‘What do you want?’: 10. Eu quero [o livro]. (‘I want the book.’) 11. [O livro] |, eu quero. (‘The book is what I want.’) 12. O que eu quero é [o livro]. (‘What I want is the book.’) Example 10 presents the unmarked SVO construction in which the nuclear stress falls on the last lexical item as determined by the Romance Nuclear Stress Rule. Example 11 shows the combination of syntactic and prosodic devices to bring the object into focus: the word order is changed by fronting the object and by placing it into a separate intonation phrase through topicalization. As the nuclear stress is required to appear on the last lexical item of the intonation phrase, the speaker’s solution is to chunk up the utterance into two intonation phrases so that both, the object and the verb, receive a nuclear stress. Example 12 illustrates how focalization can be obtained by employing a cleft structure. Apart from the syntactic devices of topicalization and cleft structures, Brazilian Portuguese can resort to at least two prosodic devices in order to bring constituents into focus. The irst of these is chunking, as was seen in Example 11 above. This re-arranging of the speech material into new intonation phrases allows the nuclear stress to appear in the inal position without resorting to awkward changes in the word order. The other prosodic strategy, which differentiates Brazilian Portuguese from European Portuguese and other Romance languages as well as English, is the disassociation of the nuclear stress and the focal stress (MORAES, 2007). In English, the nuclear stress always appears on the focalized constituent as was seen in the previous section. In Brazilian Portuguese, two prosodic prominences can appear in an utterance: a ixed nuclear stress on the inal constituent and a focal stress on the focalized constituent if the focalized constituent is not the last one in the intonation phrase (MORAES, 2007). Acoustically, when the focal stress is present, it is the most prominent stress in the intonational phrase (FERNANDES SVARTMAN, 2008). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 493 The placement of focal stress has been well established on topicalized subjects (FERNANDES, 2007; TRUCKENBRODT; SANDALO; ABAURRE, 2008). However, little research has been carried out about focalizing other sentence constituents, and research on focal stress placement in Brazilian Portuguese is highly required. It has been suggested that the speakers may place a phonetic boundary after the focalized constituent, so that the intonation unit is divided into two and the focused constituent aligns naturally with the intonation boundary where it would receive the nuclear stress (FROTA et al., 2015). Some preliminary research also suggests that Brazilian Portuguese might allow deaccenting of given information similarly to English (footnote 15 in ZUBIZARRETA; NAVA, 2011). In a small-scale study, Kivistö-de Souza (2015) examined the contexts in which Brazilian Portuguese speakers (n=10) employed focal stress. The results revealed that Brazilian Portuguese speakers placed a focal stress in 26% of the cases in utterances presenting given information and in 7.5% of the cases in utterances ending in function words. What is interesting about the indings is that in all the cases in which the focal stress was employed by the Brazilian Portuguese speakers, it was placed on the constituent which in English would receive the nuclear stress (e.g. ‘Você conhece algum mexicano?’ – ‘Eu sou casada com um mexicano’ / I’m married to a Mexican). This preliminary research should be interpreted with caution due to the small sample size. That being said, should Brazilian Portuguese speakers employ a focal stress to deaccent given information in the same manner as English employs a nuclear stress, this could have a positive effect on their acquisition of the Anaphoric Deaccenting Rule. The L1 focal stress assignment strategy could be transferred into English in utterances presenting given information, resulting in target-like prosodic behavior in this context. As utterances ending in function words presented a low rate of focal stress assignment, it is likely that the deaccenting of function words in English would still be challenging for L1 Brazilian Portuguese speakers. In order to acquire target-like English nuclear stress assignment, L1 Brazilian Portuguese speakers are required to develop awareness about the differences between the Germanic Nuclear Stress Rule and the Romance Nuclear Stress Rule, as well as to learn the contexts in which English allows for deaccenting (function words and previously mentioned information). Previous research with L1 Spanish learners of English indicates that the acquisition of the Anaphoric Deaccenting Rule is easier 494 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 than the re-structuring of the Romance Nuclear Stress Rule (NAVA; ZUBIZARRETA, 2008, 2010). No previous studies have been carried out with L1 Brazilian Portuguese speakers, to the best of my knowledge, but it could be expected that the L1 Brazilian Portuguese speakers would behave similarly to the L1 Spanish speakers. The acquisition of targetlike nuclear stress assignment is desirable as the employment of incorrect prominence patterns is likely to lead into misunderstandings, both in perception and production. 2 Research questions With the aim of examining L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about English prosody, the following research questions (RQs) and hypotheses (Hs) were formulated: RQ 1. Are L1 Brazilian Portuguese speakers aware of English nuclear stress assignment? If so, is this awareness affected by sentence structure (unaccusative/deaccented)? H 1: L1 Brazilian Portuguese EFL learners will manifest lower prosodic awareness than native English speakers due to their developing L2 phonology. As previous research suggests that the acquisition of Anaphoric Deaccenting Rule is easier than the restructuring of the Romance Nuclear Stress Rule (NAVA; ZUBIZARRETA, 2008, 2010), the L1 Brazilian Portuguese speakers are expected to show higher awareness about nuclear stress assignment in trials presenting deaccented information than in trials presenting unaccusative verbs. RQ 2: Is L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about L2 nuclear stress assignment in utterances presenting deaccented information affected by the utterance type (functional category/given information)? H 2: Awareness about L2 nuclear stress assignment in deaccented sentences is expected to be higher in trials ending in given information than in trials ending in function words. This is because previous research has suggested that in utterances with given information, Brazilian Portuguese speakers may employ a focal stress, whose placement coincides with the L2 nuclear stress (KIVISTÖ-DE SOUZA, 2015). Consequently, this strategy could be positively transferred into the L2, resulting in higher awareness. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 495 3 Method The present study tested L1 Brazilian Portuguese learners of English about their sensitivity to English nuclear stress assignment with a psycholinguistic perception task. The task consisted of low-pass iltered mini-dialogues which presented adequate and inadequate English intonation patterns. Participants’ accuracy in being able to reject the inadequate intonation patterns was taken to relect their awareness about L2 nuclear stress assignment. 3.1 Participants Two groups of participants were tested: native speakers of Brazilian Portuguese and native speakers of American English. The L1 Brazilian Portuguese speakers were 69 English learners from the Federal University of Santa Catarina (UFSC) with a mean age of 25.78 (SD= 7.60). According to their English vocabulary size (M= 4157, SD= 576, max. = 5,000), which was measured with X_lex vocabulary size test (MEARA, 2005), the L1 Brazilian Portuguese participants were classiied as having an advanced proiciency level (CEFR C1: MILTON, 2010). Sixty-six percent of the L1 Brazilian Portuguese participants were female and 33% were male. All the EFL learners had grown in a monolingual Brazilian Portuguese household and had been exposed to English for the irst time at school (AOL M= 9.28, SD= 2.78).2 Overall, their experience with English was limited. On average, the L1 Brazilian Portuguese EFL learners had been employing English 21% of the time in the ive years preceding the data collection (SD= 14.49). Their mean length of stay in English-speaking countries was 4.3 months (SD= 11.42), and only 13 percent had frequent contact with native English speakers. What is more, 88 percent had never attended a course in English phonetics and phonology. The L1 American English speakers (n=16) functioned as a baseline data against which the EFL learners’ task behavior could be compared. They were recruited among the exchange students attending university- The vast majority (80%) of the L1 Brazilian Portuguese speakers had been born in the South of Brazil, 15 % in Southeast, two participants in the Central-West and one participant in the Northeast. 2 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 496 level classes in Florianópolis.3 Ten of the L1 American English speakers were female and six were male. Their mean age was 24.19 (SD= 7.11) and they all had become exposed to Brazilian Portuguese as adults (AOL M=22.88, SD= 5.67). The native English speakers’ experience with Brazilian Portuguese was predominantly limited: 88 percent had stayed in Brazil for less than six months. On average, they had studied Portuguese for 1.3 years (SD= 2.49). Moreover, only 12% considered themselves luent in Portuguese. None of the L1 Brazilian Portuguese or L1 American English participants had been diagnosed with a hearing problem. 3.2 Stimuli Stimuli created for the task consisted of question-answer pairs in which the answer (the target) was low-pass iltered. Two types of trials were created, those which presented appropriate General American intonation patterns but which were incorrect if transposed into Brazilian Portuguese (‘yes’ trials), and those which presented inappropriate General American intonation patterns, but which were correct if transposed into Brazilian Portuguese (‘no’ trials). Additionally, two sentence structures were tested: unaccusative and deaccented. Within the deaccented category, half of the items ended in function words (‘functional’) and half in given information (‘given’) (Table 1). All of the trials but four of the deaccented ‘given’ had a broad information focus. TABLE 1 Overview of the trial types Intonation pattern N° of trials (n=58) Type 14 Unaccusative 12 Unaccusative 16 Deaccented 16 Deaccented Appropriate in AmE Appropriate in BP √ χ √ χ χ χ √ √ Three of the L1 AmE participants were permanently residing in Florianópolis (mean LOR= 4.08 y, SD= 5.19). Their task performance did not differ from the L1 AmE participants residing in the US, which is why their data was included in the analyses. 3 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 497 The answer targets were created by taking into account memory constraints and vocabulary familiarity. The yes-no trials design was created by having parallel sentences, half of which followed the English tonicity rules and half of which broke them but followed the Brazilian Portuguese tonicity rules: 13. What’s the matter? – I want to see you. (‘yes’ trial) 14 What’s the matter? – I can’t hear you. (‘no’ trial) The questions in the mini-dialogues provided the context against which the listener would judge the correctness of the tonicity pattern in the answer. For this reason, it was crucial that the question prompts would elicit an answer with only one possible tonicity pattern. All the questions were unmarked (genuine questions). The following example illustrates a question prompt with its appropriate answer and two alternative tonicity patterns which would not be possible answers in this context: 15. Why is she sad? – Their friendship ended. –*Their friendship ended. (‘What happened to their friendship?’) –*Their friendship ended. (‘Whose friendship ended?’) The stimuli was recorded by two female native speakers of American English. First, a list of question prompts was created with three randomized repetitions of each question. A 35-year old female from California with no knowledge of Portuguese was recorded at the phonetics laboratory of the University of Barcelona in a sound-proof booth. The informant was instructed to read the question prompts in a natural and clear manner, as if asking a real question. The most natural repetition of each question prompt was selected. A 44-year old female, also born and raised in California, recorded the answer prompts at UFSC in a soundproof booth. In order to ensure that the informant produced the expected intonation patterns, she provided the answers while listening to the previously recorded question prompts. 498 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 A concatenated sound ile was created which presented two repetitions of the question prompts. The questions were randomly inserted in the sound ile and separated by 4-second pauses. Prior to recording, the informant read a list with the question-answer pairs and was instructed to listen to the question and read the answer as if genuinely answering to the question during the pause. The informant was also instructed to employ falling intonation, as is common for statements, and to avoid very expressive answers. In order to elicit the answers to the ‘no’ trials, those presenting inadequate English intonation patterns, the researcher recorded a set of question prompts which elicited a contrastive narrow focus. The questions were inserted into a concatenated sound ile, following the procedure described above, and elicited from the second native female speaker in the same manner as the answers to the ‘yes’, correct, trials. See the following example dialogues for ‘yes’ and ‘no’ trials: 16. And then what happened? (unmarked question) – The ilm started. (‘yes’ trial) 17. Did the game inish? (marked question) – No. The game started. (‘no’ trial) A selection was made with the several repetitions of each target answer. The most natural sounding answers with the clearest pronunciation which matched the speed of the earlier recorded question prompts were selected. The answers were extracted at zero crossing and preprocessed for presentation together with the question prompts. In case of the answers to the ‘no’ trials, in which the target was preceded by negation (see example above), the negation was always followed by a prosodic pause and the negation was thus easily removed before the extraction of the target. The answers were low-pass iltered at 450Hz and smoothed at 20Hz. As a result, most of the segmental information was removed from the signal whereas the suprasegmental information was maintained. Next, the questions and the answers were cleaned from low-frequency noise and their amplitude was adjusted to the same level. As a result, the inal stimuli consisted of 58 question-answer pairs in which the question presented normal sound quality and the answer was low-pass iltered so that the answers sounded mufled as if heard through a wall. The stimuli can be seen in the following Table 2. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 499 TABLE 2 Stimuli for the Low-pass iltered intonation identiication task TEST TRIALS (N=58) UNACCUSATIVE (n=26) ‘yes’ trials (n=14) Trial nº CONTEXT: Question 001 And then what happened? 002 003 008 010 015 016 018 012 014 021 024 009 011 What happened? Why are the kids upset? Why are the kids upset? What was that noise? Why are you happy? What happened in the meeting? What had caused the accident? What happened next? What’s that smell? And then what happened? Why is she sad? What happened next? What’s going on? TARGET: Answer New evidence emerged. The light departed. Their cat disappeared. Their chocolate melted. A window broke. My salary increased. Some problems arose. The brakes had failed. The ceiling collapsed. The cake burned. The ilm started Their friendship ended. ‘no’ trials (n=12) FD Trial nº CONTEXT: Question TARGET: Answer FD B 101 What happened before the party? Many guests arrived. B B 103 What happened next? The train departed. B B 104 Why are you sad? My wallet disappeared. B B 108 Why is the road wet? The snow melted. B B 110 A glass broke. B B 115 What was that noise? Why is your boss upset? The taxes increased. B B 116 What happened last week? The temperature rose. B B 118 What caused the accident? The motor failed. B B 119 Her arm hurts. B B 121 The lawyers settled. B B 123 The game started. B B 125 Their relationship ended. B The lake froze. B The ship’s sinking. B What’s the matter with her? What happened at the court? And then what happened? Why is she crying? 500 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 DEACCENTED (n=32) ‘yes’ trials (n=19) ‘no’ trials (n=19) Deaccented: Functional category (n=16) ‘yes’ trials (n=8) ‘no’ trials (n=8) Trial nº CONTEXT: Question TARGET: Answer FD Trial nº CONTEXT: Question TARGET: Answer FD 026 What’s the matter? I want to see you. B 126 What’s the matter? I can’t hear you. B 027 Why didn’t you answer his calls? I’m very annoyed with him. B 127 Why didn’t Tina answer his calls? She’s very irritated with him. B 028 And then what happened? I received an email from her. B 128 And then what happened? Mark got a gift from her. B 029 What should I do? You should talk to your boss about it. N 132 Did you hear what happened at the interview? I didn’t ask her about it. B 030 What’s the matter with your dress? There’s a stain on it. B 130 What’s the matter with your shirt? There’s a hole in it. B 032 What’s that? It’s a delivery for you. N 133 Did you hear what happened at the party? No one told me. B 033 Have you seen today’s paper? No, give it to me. B 139 Have you seen my keys? I haven’t seen them. N 041 Do you have a computer? I have to buy one. B 134 Where’s the hotel? We should ask someone. B Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 501 Deaccented: Given information (n=16) ‘yes’ trials (n= 8) ‘no’ trials (n=8) Trial n° CONTEXT: Question TARGET: Answer FD Trial n° CONTEXT: Question TARGET: Answer FD 042 What’s that noise? The dog’s barking. B 120 What’s that noise? The doorbell’s ringing. B 056 What happened before the party? The telephone rang. B 141 What’s that noise? The telephone’s ringing. B 044 Will you travel by plane? I’m scared of lying. B 143 Will you go by foot? I’m tired of walking. B 045 Could you do the laundry? I hate washing clothes. B 144 Could you prepare dinner? I hate cooking. B 049 What’s that? That’s the ilm Laura rented. N 148 What’s that? That’s the book John wrote. N 050 What’s that on the stove? That’s the dinner I was making. N 149 What’s that on the plate? That’s the salad I was eating. N 037 What are you having for dinner? We’re having chicken for dinner. N 135 What are you having for lunch? I’m having a sandwich for lunch. N 055 Do you want some chocolate? I also want some other sweets. N 155 Did you buy carrots? I also bought some other vegetables. N Note: Underlining indicates the nuclear stress position. FD= Focus domain; B= Broad, N= Narrow 3.3 Instrument and procedure Participants’ awareness about English nuclear stress assignment was tested with a psycholinguistic perception test, Low-pass iltered intonation identification task. In this task, participants listened to question-answer dialogues and indicated by pressing the corresponding 502 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 keyboard key whether the intonation in the answer was appropriate to the context provided by the question. Low-pass iltering was applied to the answer targets in order to draw the participants’ attention into intonation without intervening segmental information. Previous research indicates that low-pass iltering renders well for listening tasks in which prosodic information is on the focus. In L1 research with children, low-pass iltering has been successfully employed in tasks testing children’s implicit prosodic awareness (e.g. WOOD; TERRELL, 1998). In adult L2 learners, low-pass iltering has been exploited, for example, in foreign accent judgments (TROFIMOVICH; BAKER, 2006), foreign accent recognition (JILKA, 2000) and intonation pattern perception (PASSARELLA DOS REIS, GONÇALVES; SILVEIRA, 2016). Overall, it seems that low-pass iltering encourages the listener to consciously pay attention to prosody, which in normal speech may be left unattended. The task was created and administered with DmDx software (FORSTER; FORSTER, 2012), and consisted of practice trials with feedback (n=5) and randomized test trials. A practice block was included in order to familiarize the participants with low-pass iltered speech. After the practice block, participants were encouraged to voice any questions about the task. Each test trial unfolded as follows (see illustration in Figure 1). First, an image of a loudspeaker appeared on the screen to draw the participant’s focus on the upcoming audio ile. Next, the question prompt was heard in normal sound quality. Following the question, the answer was displayed orthographically on the screen, where it remained for 2500 ms4. The orthographic presentation of the answer was necessary as due to low-pass iltering, no individual words could be deciphered and the meaning of the utterance would have been lost. The orthographic presentation of the answer before its acoustic presentation was also expected to trigger the need to retrieve the prosodic representation of the utterance from the learner’s long-term memory, as readers provide intonation to text when silently reading it. This long-term representation could then be compared to the low-pass iltered speech signal presented 4 Previous piloting of the task suggested that this time limit was enough for the foreign language learners to read and comprehend the sentence. Simultaneously, the limit was short enough to allow the retention of the question-answer sequence in the short-term memory in order to perform the required comparison operation. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 503 immediately after, in order to decide whether a match was found or not. Next, an image of a loudspeaker appeared again in order to prepare the participant for the acoustic presentation of the answer. This was immediately followed by a low-pass iltered audio presentation of the orthographic answer. Finally, the participant was asked to judge whether the intonation in the answer was appropriate to the question. The entire task took around 15-20 minutes to complete. Testing was carried out individually in a quiet room at UFSC. Participants took several phonological awareness tasks, out of which only the one corresponding to the prosodic domain is reported here. Before testing, all participants signed a consent form in which they agreed to participate in the study. FIGURE 1- Illustration of the test trial structure. The gray loudspeakers stand for the presentation of the auditory stimulus. Participants’ awareness about English nuclear stress placement was examined by computing mean identiication accuracy scores for individual trials, and then to trials grouped by sentence type (unaccusative/ deaccented; deaccented ‘given’ – deaccented ‘functional’) and intonation pattern legality (correct/incorrect). Participants’ prosodic awareness was expected to be manifested especially in the response accuracy to the incorrect (‘no’) trials. This is because awareness manifested in the ability to accept correct intonation patterns is likely to be confounded with positive evidence from the L2 input. On the contrary, rejecting incorrect intonation patterns cannot be based on positive evidence from the input, and thus the ability to reject incorrect intonation patterns should manifest the underlying awareness about target language prosody more clearly. 504 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 4 Results As expected, the L1 Brazilian Portuguese EFL learners showed lower response accuracy across sentence types and intonation patterns than the native English speakers (Table 3). Differences as a function of intonation pattern (correct, ‘yes’/ incorrect, ‘no’) can also be observed as the ‘no’ trials tended to present a lower response accuracy than the ‘yes’ trials. TABLE 3 Mean response accuracy (%) across sentence types and intonation patterns for L1 Brazilian Portuguese and L1 American English participants Sentence type Unaccusative Deaccented L1 BP (n=69) L1 AmE (n=16) Intonation pattern M SD M SD ‘yes’ 68.32 20.36 94.64 13.17 ‘no’ 39.73 20.06 70.31 21.72 ‘yes’ 84.78 11.00 91.40 10.91 ‘no’ 63.85 16.87 90.62 8.83 Deaccented ‘functional’ ‘yes’ 90.03 11.85 90.62 10.70 ‘no’ 75.90 17.84 95.31 8.98 Deaccented ‘given’ ‘yes’ 79.52 15.89 92.18 15.05 ‘no’ 51.81 21.78 85.93 17.60 With the aim of examining L1 Brazilian Portuguese speakers’ awareness about English nuclear stress assignment (RQ 1), the mean response accuracy percentages across sentence types and intonation patterns were compared to the native English speakers. A mixed ANOVA was conducted with two within-subjects variables, Sentence Type (Unaccusative/Deaccented) and Intonation Pattern (yes/no), and with one between-subjects variable, L1 (BP/AmE). The dependent measure was Response Accuracy. The ANOVA yielded signiicant main effects of Sentence Type, F(1, 83) =53.05, p <.001, η2 =.39, Intonation Pattern, F(1, 83)=55.44, p <.001, η2 =.40, and L1, F(1, 83) =55.95, p <.001, η2 =.40. The Sentence Type x L1 interaction, F(1, 83) =8.82, p =.004, η2 =.09, and the Intonation Pattern x L1 interaction, F(1, 83)=5.92, p =.017, η2 =.06, were also signiicant. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 505 In order to determine the cause of the interaction effects, posthoc t-test were ran separately for the two participant groups. The Sentence Type x L1 interaction occurred because the L1 Brazilian Portuguese speakers’ response accuracy was signiicantly higher for the deaccented ‘yes’ and ‘no’ trials than for the unaccusative ‘yes’ and ‘no’ trials (p <.001). On the contrary, the native English speakers’ response accuracy was signiicantly higher for the deaccented ‘no’ trials than for the unaccusative ‘no’ trials (p < .001), but not for the deaccented ‘yes’ trials and the unaccusative ‘yes’ trials (p =.302). To put another way, whereas the L1 Brazilian Portuguese EFL learners showed a clear effect of Sentence Type, so that deaccented trials were found overall easier than the unaccusative trials, for the native English speakers, the effect of sentence type only became evident in the ‘no’ trials (Figure 2). The Intonation Pattern x L1 interaction was due to the fact that whereas the L1 Brazilian Portuguese participants’ response accuracy in the ‘yes’ trials was consistently higher than in the ‘no’ trials (p <.001), this did not happen with the native English speakers. The native English speakers did not show a signiicant difference between the response accuracy of the deaccented ‘yes’ and ‘no’ trials (p =.835). In other words, whereas for the L1 Brazilian Portuguese speakers identifying the correct intonation patterns was easier than rejecting the incorrect intonation patterns, for the native English speakers this phenomenon was observed only in the unaccusative sentence type. FIGURE 2- Mean response accuracy across sentence types and intonation patterns (error bars represent ±1 standard error) 506 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 These results revealed three aspects about L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness of English nuclear stress assignment. First, The L1 Brazilian Portuguese speakers manifested a signiicantly lower response accuracy in all test categories than the native English speakers (the differences were signiicant at p <.001 level for all the comparisons, except deaccented ‘yes’ trials, for which the difference was signiicant at p =.033). This conirmed the initial hypothesis that language learners’ awareness is lower than native speakers’ due to the differences in the completeness of the phonological representations. Second, as predicted, identifying correct intonation patterns (‘yes’ trials) was signiicantly easier for the L1 Brazilian Portuguese speakers than rejecting incorrect intonation patterns (‘no’). This seems to conirm that whereas for the correct, ‘yes’ trials, awareness about L2 phonology can be confounded with positive evidence from the L2 input, rejecting the incorrect intonation patterns requires acquired awareness about the target structure. Finally, the deaccented trials were easier for the L1 Brazilian Portuguese participants than the unaccusative trials. For the native English speakers, a difference was only observed in the case of unaccusative ‘no’ trials, which presented a signiicantly lower response accuracy than all the other trial types. This result extends previous research with native Spanish speakers to Brazilian Portuguese speakers: the acquisition of the Anaphoric Deaccenting Rule does appear to be easier for speakers of Romance languages than the restructuring of the Romance Nuclear Stress Rule (NAVA; ZUBIZARRETA, 2008, 2010). In order to further examine L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about English nuclear stress assignment, performance in the deaccented trials was scrutinized. The aim was to investigate whether differences could be observed between deaccented trials ending in given information (‘given’) and those ending in function words (‘functional’) (RQ 2). It was hypothesized that L1 Brazilian Portuguese speakers could transfer L1 focal stress assignment strategies into the L2, which would especially beneit the acquisition of English nuclear stress in utterances presenting given information as this is the context in which L1 focal stress assignment has been shown to be the highest. Examination of the descriptive statistics indicated that response accuracy in the ‘functional’ trials was higher than in the ‘given’ trials, contrary to the predictions (Table 3). As the data was not normally distributed but mostly skewed to the right, Wilcoxon Signed Rank test were employed separately to the ‘yes’ and the ‘no’ trials to investigate Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 507 whether the observed differences were statistically signiicant5. The answers to the ‘yes’ trials differed signiicantly (Z= -4.50, p < .001), as did the answers to the ‘no’ trials (Z= -6.32, p <.001), showing that the L1 Brazilian Portuguese participants had developed higher awareness about English nuclear stress assignment for utterances ending in function words than for utterances ending in given information (Figure 3). This inding did not support the initial hypothesis (H 2) according to which L1 Brazilian Portuguese speakers might ind the trials ending in given information easier due to the positive transfer of L1 focal stress. Utterances ending in function words are not deaccented in Brazilian Portuguese, which seems to indicate that the L1 Brazilian Portuguese participants of the study had developed awareness about English nuclear stress assignment, especially in the context of functional categories. In the case of deaccented trials ending in given information, the response accuracy was nearly at chance level in the trials presenting incorrect intonation patterns (51.8%), which demonstrates that the L1 Brazilian Portuguese EFL learners as a group had not developed awareness about L2 nuclear stress assignment in utterances ending in given information. FIGURE 3- Mean response accuracy in Deaccented subtypes for L1 Brazilian Portuguese participants (error bars represent ±1 standard error) 5 The “given” category included items with broad and narrow information focus. These were analyzed together as no differences were found in their identiication accuracy: L1 BP broad_yes - narrow_yes t(68)= - .1.94, p=.056, broad_no - narrow_no t(68)=1.65, p >.05. 508 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 5 Discussion and conclusions The present study examined L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about English nuclear stress assignment with a psycholinguistic perception task which tapped into non-verbalizable awareness about the L2 prosody. The indings showed that L1 Brazilian Portuguese learners of English had lower awareness about English nuclear stress assignment than native English speakers. Differences were also observed in terms of utterance type. L1 Brazilian Portuguese ELF learners’ awareness about English nuclear stress assignment was higher in utterances presenting deaccented information than in unaccusative sentences. Furthermore, when the deaccented utterances were further divided into those ending in function words and those ending in given information, it was seen that L1 Brazilian Portuguese learners of English manifested higher awareness about nuclear stress assignment in utterances ending in function words. One of the interesting indings of the study was the fact that L1 Brazilian Portuguese speakers manifested higher awareness about English nuclear stress assignment in deaccented utterances than in the unaccusative utterances. This inding parallels Nava and Zubizarreta’s (2008, 2010) previous research conducted with L1 Spanish EFL learners who have been shown to acquire the Anaphoric Deaccenting Rule earlier than the Germanic Nuclear Stress Rule. The authors suggest that it is easier to acquire a new rule than to restructure an existing L1 rule to it the L2 principles. Nevertheless, in the present study, the native English speakers were also found to perform signiicantly better in the deaccented trials than in the unaccusative trials (cf. 90-70%). As native speakers manifested the same behavior as the language learners, the results cannot be attributed solely on differences between restructuring and acquisition of rules. Further studies are required to determine why appropriate nuclear stress assignment appears to be easier in deaccented utterances than in unaccusative ones, but a possible reason lies in the frequency of occurrence of these items. Unaccusative constructions are formed by a small number of verbs and the SV sentence structure occurs in the input with less frequency than the SVO pattern. Contrary to the initial predictions, L1 Brazilian Portuguese speakers were not found to perform better in deaccented trials presenting given information than in deaccented trials ending in function words. It was hypothesized that L1 Brazilian Portuguese speakers might beneit Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 509 from L1 focal stress assignment and transfer this strategy into L2 nuclear stress assignment in utterances presenting given information. However, the L1 Brazilian Portuguese EFL learners were shown to have higher awareness about English nuclear stress in utterances ending in function words than in utterances ending in given information (cf. 76-52%). This inding suggests, on the one hand, that as function words are not deaccented in Brazilian Portuguese, the L1 Brazilian Portuguese participants of the study had acquired real awareness about English nuclear stress movement in this context, which was not traceable to L1 transfer. On the other hand, we might ask why the acquisition of target-like nuclear stress assignment was easier in the case of functional categories. A similar inding was made with L1 Spanish learners of English in a study by Nava and Zubizarreta (2010).The authors suggest that as accenting function words follows strict rules (strong and weak forms) which can be learnt, their acquisition is easier. On the contrary, deaccenting given information is acquired with more dificulty as it is context dependent and thus cannot be memorized. Overall, the indings of the study indicate that L1 Brazilian Portuguese EFL learners’ awareness about English nuclear stress assignment was deicient. Whereas awareness had been acquired about assigning nuclear stress in utterances ending in functional categories, no awareness, or very little awareness, had been acquired about assigning nuclear stress in unaccusative utterances or in utterances ending in given information. These results conirm previous research indicating that acquiring target-like nuclear stress assignment is challenging even for advanced L2 learners (ZUBIZARRETA; NAVA, 2011). As non-target-like nuclear stress assignment is likely to lead into communication breakdowns, fostering language learners’ awareness about L2 nuclear stress rules is crucial. It is likely that regular L2 input is not enough to make the principles governing nuclear stress assignment salient enough to be noticed, as even advanced language learners, who presumably have been extensively exposed to the target language, have not acquired them. Furthermore, previous studies with L2 prosodic awareness suggest that higher prosodic awareness is related to more target-like L2 perception and production, making its fostering a priority in the foreign language classroom (KENNEDY; BLANCHET, 2014; KENNEDY et al., 2014; KENNEDY; TROFIMOVICH, 2010). In order to increase language learners’ awareness, instructors are required to bring the principles governing nuclear stress assignment 510 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 into the learners’ attention through the employment of consciousness raising activities6. It has been shown that explicit prosody training and the employment of activities designed to raise learners’ awareness about L2 prosody beneit learners’ prosodic acquisition and the development of prosodic awareness (MITROFANOVA, 2012; RAMÍREZ VERDUGO, 2006; SAITO; WU, 2014). More studies concerning L2 prosodic awareness, and more speciically language learners’ awareness about L2 nuclear stress assignment, are required in order to understand the complex phenomena governing L2 speech behavior. On the light of the results of the present study, introducing and increasing explicit L2 prosody teaching in the Brazilian EFL classroom is necessary for the achievement of more target-like L2 perception and production. Acknowledgements The author wishes to thank Dr. Joan Carles Mora (University of Barcelona) under whose orientation the research described in this manuscript was conducted. References ALVES, U. K.; ZIMMER, M.C. Percepção e produção dos padrões de vot do inglês por aprendizes brasileiros: O papel de múltiplas pistas acústicas sob uma perspectiva dinâmica. Alfa, São Paulo, v. 59, n.1, p. 157-180, 2015. https://doi.org/10.1590/1981-5794-1502-7. CRISTÓFARO SILVA, T.; CAMARGOS, M.A. Conhecimento fonológico e apropriação de róticos em inglês L2 por falantes nativos de português brasileiro. Ilha do Desterro, Florianópolis, v. 69, n.1, p. 49-60, 2016. https://doi.org/10.5007/2175-8026.2016v69n1p49. DEFIOR, S.; GUTIÉRREZ-PALMA, N.; CANO-MARÍN, M.J. Prosodic awareness skills and literacy acquisition in Spanish. Journal of Psycholinguistic Research, v. 41, n. 4, p. 285-294, 2012. https://doi. org/10.1007/s10936-011-9192-0. FERNANDES, F. R. Ordem, focalização e preenchimento em português: Sintaxe e prosódia. 2007. Dissertation (Doctoral) - Campinas State University, Campinas, 2007. Any activity that would increase the noticing of L2 nuclear stress assignment, such as, explicit prosody teaching or recording and comparing own intonation to native speaker intonation auditorily and visually through waveforms, for example 6 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 511 FERNANDES SVARTMAN, F. R. A distinção foco/tópico em tzotzil, jakaltek, tembé, xavante, português brasileiro e português europeu. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, p. 55-87, 2008. FORSTER, K. I.; FORSTER, J.C. DMDX (Version 4.0.6.0). Computer software. 2012. Retrieved from: <http://www.u.arizona.edu/~jforster/ dmdx.htm>. Accessed: 11th May 2016. FROTA, S.; CRUZ, M.; SVARTMAN, F. R.; COLLISCHONN, G.; FONSECA, A.; SERRA, C.; OLIVEIRA, P.; VIGÁRIO, M. Intonational variation in Portuguese: European and Brazilian varieties. In: FROTA, S.; PRIETO, P. (Ed.). Intonational Variation in Romance. Oxford: Oxford University Press, 2015. p. 235-283. https://doi.org/10.1093/acprof: oso/9780199685332.003.0007. GOODMAN, I.; LIBENSON, A.; WADE-WOOLLEY, L. Sensitivity to linguistic stress, phonological awareness and early reading ability in preschoolers. Journal of Research in Reading, v. 33, n. 2, p. 113-127, 2010. https://doi.org/10.1111/j.1467-9817.2009.01423.x. GUTIÉRREZ-PALMA, N.; PALMA REYES, A. Stress sensitivity and reading performance in Spanish: A study with children. Journal of Research in Reading, v. 30, n. 2, p. 157-168, 2007. https://doi. org/10.1111/j.1467-9817.2007.00339.x. HOLLIMAN, A.; WOOD, C.; SHEEHY, K. Sensitivity to speech rhythm explains individual differences in reading ability independently of phonological awareness. British Journal of Developmental Psychology, v. 26, n. 3, p. 357-367, 2008. https://doi.org/10.1348/026151007X241623. JILKA, M. Testing the contribution of prosody to the perception of foreign accent. In: Proceedings of New Sounds (4th International Symposium on the Acquisition of Second Language Speech), 2000, Amsterdam, p. 199 -207. JOHNSON, E.; JUSCZYK, P. Word segmentation by 8-month-olds: When speech cues count more than statistics. Journal of Memory and Language, v. 44, n. 4, p. 548-567, 2001. https://doi.org/10.1006/ jmla.2000.2755. KENNEDY, S. Exploring the relationship between language awareness and second language use. TESOL Quarterly, v. 46, n. 2, p. 398-408, 2012. https://doi.org/10.1002/tesq.24. 512 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 KENNEDY, S.; BLANCHET, J. Language awareness and perception of connected speech in second language. Language Awareness, v. 23, n. 1-2, p. 92-106, 2014. https://doi.org/10.1080/09658416.2013.863904. KENNEDY, S.; BLANCHET, J.; TROFIMOVICH, P. Learner pronunciation, awareness, and instruction in French as a second language. Foreign Language Annals, v. 47, n. 1, p. 79-96, 2014. https://doi.org/10.1111/lan.12066. KENNEDY, S.; TROFIMOVICH, P. Language awareness and second language pronunciation: a classroom study. Language Awareness, v. 19, n. 3, p. 171-185, 2010. https://doi.org/10.1080/09658416.2010.486439. KIVISTÖ-DE SOUZA, H. Phonological awareness and pronunciation in a second language. 2015. Dissertation (Doctoral) - University of Barcelona, Barcelona, Spain, 2015. KLUGE., D. Effects of preceding vowel in the perception of the English nasal consonants /m,n/ in word-inal position by Brazilian EFL learners. Diadorim, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 167-173, 2012. LANCE, D.; SWANSON, L.; PETERSON, H. A validity study of an implicit phonological awareness paradigm. Journal of Speech, Language & Hearing Research, v. 40, n. 5, p. 1002-1010, 1997. https://doi. org/10.1044/jslhr.4005.1002. MEARA, P. M. X_Lex: The Swansea vocabulary levels test (Version 2.05.) Computer software. Swansea: Lognostics, 2005. MILTON, J. The development of vocabulary breadth across the CEFR levels: A common basis for the elaboration of language syllabuses, curriculum guidelines, examinations, and textbooks across Europe. In: BARTNING, I.; MARTIN, M.; VEDDER, I. (Ed.). Eurosla Monographs Series 1: Communicative Proiciency and Linguistic Development, 2000. p. 211-232). Retrieved from: <http://eurosla.org/monographs/EM01/ EM01tot.pdf.>. Accessed: 11th May, 2016. MITROFANOVA, Y. Raising EFL students’ awareness of English intonation functioning. Language Awareness, v. 21, n. 3, p. 279-291, 2012. MORAES, J. A. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D.; DI CRISTO, A. (Ed.). Intonation systems: A survey of twenty languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 179-194. https://doi. org/10.1080/09658416.2011.609621. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 513 MORAES, J. A. Intonational phonology of Brazilian Portuguese. Poster session presented at the Workshop on Intonational Phonology, 16th International Congress of Phonetic Sciences, 2007, Saarbrücken. NAVA, E. Prosody in L2 acquisition. In: Proceedings of the 9th Generative Approaches to Second Language Acquisition Conference (GASLA) 2007, Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, 2008. p. 155-164. NAVA, E.; ZUBIZARRETA, M. L. Prosodic transfer in L2 speech: Evidence from phrasal prominence and rhythm. In: BARBOSA, P.; MADUREIRA, S.; REIS, C. (Ed.). Proceedings of Speech Prosody 2008, Campinas, Brazil. Retrieved from: <http://sprosig.isle.illinois.edu/ sp2008/papers/id041.pdf>. Accessed: 11th May, 2016. NAVA, E.; ZUBIZARRETA, M. L. Deconstructing the nuclear stress algorithm: Evidence from second language speech. In: ERTESCHIKSHIR, N.; ROCHMAN, L. (Ed.). The Sound Patterns of Syntax. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 291-317. PASSARELLA DOS REIS, L.; GONÇALVES, A.R.; SILVEIRA, R. Perception of intonational patterns and speaker’s intentionality in English yes-no questions produced by Brazilians. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 24, n. 1, p. 65-97, 2016. https://doi. org/10.17851/2237-2083.24.1.65-97. RAMÍREZ VERDUGO, D. A study of intonation awareness and learning in non-native speakers of English. Language Awareness, v. 15, n. 3, p. 141-159, 2006. https://doi.org/10.2167/la404.0. RAUBER, A. Perception and production of English vowels by Brazilian EFL speakers. 2006. Dissertation (Doctoral) - Federal University of Santa Catarina, Florianópolis, 2006. SAITO, K.; WU, X. Communicative focus on form and second language suprasegmental learning: Teaching Cantonese learners to perceive Mandarin tones. Studies in Second Language Acquisition, v. 36, n. 4, p. 647-680, 2014. https://doi.org/10.1017/S0272263114000114. SILVEIRA, R. PL2 production of English word-inal consonants: The role of orthography and learner proile variables. Trabalhos em Linguística Aplicada, São Paulo, v. 51, n. 1, p. 13-34, 2012. https://doi.org/10.1590/ S0103-18132012000100002. 514 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 483-514, 2017 TARONE, E.; BIGELOW, M. Impact of literacy on oral language processing: Implications for second language acquisition research. Annual Review of Applied Linguistics, v. 25, n. 1, p. 77-97, 2005. https://doi.org/10.1017/s0267190505000048. TENANI, L. Domínios prosódicos no português do Brasil: Implicações para a prosódia e para a aplicação de processos fonológicos. 2002. Dissertation (Doctoral) - Campinas State University, Campinas, 2002. TROFIMOVICH, P.; BAKER, W. Learning second language suprasegmentals: Effect of L2 experience on prosody and fluency characteristics of L2 speech. Studies in Second Language Acquisition, v. 28, n. 1, p. 1-30, 2006. https://doi.org/10.1017/S0272263106060013. TRUCKENBRODT, H.; SANDALO, F.; ABAURRE, M. B. Elements of Brazilian Portuguese intonation. Journal of Portuguese Linguistics, v. 8, n. 1, p. 77- 115, 2008. WELLS, J. C. English intonation: An introduction. 5th ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. WHALLEY, K.; HANSEN, J. The role of prosodic sensitivity in children’s reading development. Journal of Research in Reading, v. 29, n. 3, p. 288-303, 2006. https://doi.org/10.1111/j.1467-9817.2006.00309.x. WOOD, C.; TERRELL, C. Poor readers’ ability to detect speech rhythm and perceive rapid speech. British Journal of Developmental Psychology, v. 16, n. 3 p. 397-413, 1998. https://doi.org/10.1111/j.2044-835X.1998. tb00760.x. ZUBIZARRETA, M. L. Prosody, focus, and word order. Linguistic Inquiry Monograph, 33. Cambridge, MA: MIT Press, 1998. ZUBIZARRETA, M. L.; NAVA, E. Encoding discourse-based meaning: Prosody vs. syntax: Implications for second language acquisition. Lingua, v. 121, n. 4, p. 652-669, 2011. https://doi.org/10.1016/j. lingua.2010.06.013. ZUBIZARRETA, M. L.; VERGNAUD, J. R. Phrasal stress, focus and syntax. In: EVERAERT, M.; van RIEMSDIJK, H. (Ed.). The Blackwell companion to syntax. Malden, MA: Blackwell, 2005. p. 522-568. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Primeiras considerações sobre medidas aerodinâmicas da consoante nasal palatal do português brasileiro First considerations on aerodynamic measurements of the palatal nasal consonant of Brazilian Portuguese Michele Gindri Vieira Universidade Federal de Santa Catarina michelegindri@gmail.com Izabel Christine Seara Universidade Federal de Santa Catarina izabels@linse.ufsc.br Resumo: Este estudo tem por objetivo investigar a consoante nasal palatal do português brasileiro (PB), focalizando a análise acústica e as medidas aerodinâmicas obtidas a partir do piezo-elétrico. Os dados aqui discutidos referem-se à produção de três falantes naturais de Florianópolis (Santa Catarina). O piezo-elétrico, equipamento que capta as vibrações do ar nas cavidades nasais, possibilita a observação das conigurações das curvas de luxo aéreo nasal (FAN). Neste artigo, inicialmente, observase o comportamento acústico dos dados para identiicação da gradiência mostrada pela consoante nasal palatal. Os resultados, por meio de análise acústica, indicam a ocorrência de uma gradiência fônica identiicada nas produções que vão da consoante nasal palatal até a vogal nasalizada. Os resultados aerodinâmicos indicam distintas conigurações de curvas de FAN para essas produções. Observa-se que a nasalidade mostrou-se antecipatória, com a curva de FAN iniciando antes da consoante nasal palatal; e, ao mesmo tempo, progressiva, com expansão da curva de FAN após a consoante nasal. A antecipação da curva de FAN pode ocorrer de modo variado: (1) sincronizado com o início da vogal precedente eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.515-553 516 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 (antecipação total) ou (2) logo depois do início da vogal precedente (antecipação parcial). Pode-se dizer que as medidas aerodinâmicas, associadas à análise acústica, são importantes para a busca por maior entendimento da nasalidade no PB. Palavras-chave: nasalidade; português brasileiro; consoante nasal palatal; medidas aerodinâmicas. Abstract: This study aims to investigate the palatal nasal consonant of Brazilian Portuguese (BP), focusing on acoustic analysis and aerodynamic measurements collected with a piezoelectric sensor. The data discussed here were produced by three native speakers of BP from the city of Florianópolis (Santa Catarina). The piezoelectric sensor is a device that measures air vibrations in the nasal cavities and allows the observation of conigurations for nasal air low (NAF) curves. In this paper, the acoustic behavior of the data was initially observed to identify the gradience shown by the nasal palatal consonant. The results, through acoustic analysis, indicate the occurrence of phonic gradience identiied in the productions ranging from the nasal palatal consonant to the nasalized vowel. The aerodynamic results indicate distinct NAF curve conigurations for these productions. Nasality proved to be anticipatory, with the NAF curve starting before the palatal nasal consonant, while also carryover, with an increase of the NAF curve after the nasal consonant. The anticipation of the NAF curve may occur in various ways: (1) synchronized with the beginning of the previous vowel (total anticipatory) or (2) immediately after the start of the preceding vowel (partial anticipatory). It can be said that aerodynamic measures, combined with the acoustic analysis, are crucial to a greater understanding of nasality in BP. Keywords: nasality; Brazilian Portuguese; palatal nasal consonant; aerodynamic measures. Recebido em: 24 de outubro de 2015. Aprovado em: 27 de junho de 2016. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 517 Introdução As consoantes nasais apresentam certa complexidade para a coordenação entre a cavidade oral e nasal e dependem diretamente do funcionamento do esfíncter velofaríngeo. Essa complexidade leva à necessidade de investigações por meio tanto de análises acústicas, quanto de análises aerodinâmicas e articulatórias. No Brasil, a caracterização acústica de consoantes nasais e de vogais nasais e nasalizadas, aliadas algumas vezes à avaliação perceptual, tem sido desenvolvida (SOUSA, 1994; SEARA, 2000; SEARA; BERRI, 2009; GAMBA, 2011; 2014). Contudo, estudos que focalizam as consoantes nasais ainda são menos aprofundados, se compararmos com os estudos realizados, principalmente, com vogais nasais. Assim, nosso objetivo é dar os primeiros passos na direção de um estudo mais completo das consoantes nasais do português brasileiro (doravante PB), iniciando com medidas aerodinâmicas da consoante nasal palatal, som de fala que tem nos instigado devido às variações que apresenta e até mesmo ao questionamento sobre sua presença no PB. Uma avaliação acústica das produções dos sujeitos pesquisados auxiliará a análise de oitiva na identiicação das produções encontradas e de sua gradiência acústica. Análises aerodinâmicas para medir o luxo aéreo em sons nasais do PB podem ser vistas em Medeiros, D’Império e Espesser (2008); Demasi (2009); Mendonça e Seara (2015), entre outras pesquisas. Estudos aerodinâmicos com dados do francês também foram desenvolvidos por Vaissière (1995); Basset et al. (2001); Amelot (2004); Basset, Amelot e Crevier-Buchman, (2007); Brkan, Amelot e Pillot-Loiseau (2012), dentre outros. Importante salientar que, como referido por Crowley e Bowern (2010), por se tratarem de línguas pertencentes à mesma família linguística, originárias do latim, o francês e o PB apresentam similaridades em relação à nasalidade da fala, incluindo a presença de vogais nasais, nasalizadas e de consoantes nasais. Ainda, o português e o francês apresentam nasalidade vocálica distintiva. Tendo por base essas semelhanças linguísticas, muitos estudos do francês, em relação a análises aerodinâmicas e articulatórias, foram aqui considerados. O presente estudo tem então por objetivo introduzir uma análise qualitativa de dados aerodinâmicos referentes à consoante nasal palatal do PB, considerando a produção na região sul do Brasil, mais 518 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 especiicamente no falar lorianopolitano. Partindo-se da análise dos dados acústicos, em conjunto com a descrição do comportamento do luxo aéreo nasal (doravante FAN), obtido por meio do piezo-elétrico, busca-se investigar as seguintes questões de pesquisa: 1) A consoante nasal palatal apresenta as mesmas características acústicas em todas as suas produções? 2) Existem conigurações distintas de curvas de FAN para a consoante nasal palatal advindas do piezo-elétrico? Em caso airmativo, elas estariam relacionadas às diferentes produções acústicas? 3) Que fenômenos de nasalidade, relacionados ao comportamento do véu do palato, ocorrem durante a produção da consoante nasal palatal: antecipação, progressão, sincronização ou atraso? Para responder a estas questões, primeiramente serão expostas algumas considerações sobre a consoante nasal palatal  do PB. Na sequência, serão apresentadas suas características acústicas, articulatórias e aerodinâmicas, encontradas na literatura, enfatizando-se o papel do esfíncter velofaríngeo. Em seguida, será descrita a metodologia utilizada para a obtenção dos resultados acústicos e logo depois os aerodinâmicos. Após, serão exibidos os resultados obtidos, com base em uma análise qualitativa, relacionando os tipos acústicos e as conigurações aerodinâmicas. Ao inal, trataremos dos fenômenos de coarticulação da nasalidade e da conclusão do trabalho. 1. Considerações sobre a consoante nasal palatal do PB O PB possui consoantes nasais, vogais nasais, vogais nasalizadas e ditongos nasais. No que se refere às consoantes nasais, são descritas três produções para o PB: uma consoante nasal bilabial [m], uma alveolar [n] e uma palatal [], sendo todas vozeadas. Conforme estudos realizados por Freitas (2004) sobre o desenvolvimento das nasais, os sons nasais consonantais estão entre os primeiros a serem produzidos na fala das crianças no PB. Dentre essas consoantes, a nasal palatal tem sua aquisição mais tardia, após um ano e sete meses. Entendemos que esse fato pode estar associado à complexidade e variação encontrada na produção da consoante palatal, o que não ocorre com as demais consoantes nasais. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 519 As produções gradientes da consoante [], observadas em análises de oitiva e conirmadas nas análises acústicas com falantes adultos do PB, também podem aparecer, em maior ou menor grau, como estratégias usadas no desenvolvimento da fala das crianças. No presente estudo, será analisada a consoante nasal palatal em ataque silábico. Nessa posição, Moraes (2013) observa que a nasalidade se propaga para a esquerda, regressivamente; para a direita, progressivamente; ou ainda para ambos os lados. Silva (2010) ainda esclarece que a consoante nasal palatal ocorre exclusivamente em posição intervocálica e a vogal precedente geralmente é nasalizada. Para Vaissière (1995), o condicionamento fonético dessa vogal precedente nasalizada, talvez universal, se deve a um fenômeno de nasalização antecipatória, resultando no abaixamento do esfíncter velofaríngeo na produção da vogal antes de uma consoante nasal. Mendonça e Seara (2015) observaram, a partir do índice de nasalização, que, no PB, as consoantes nasais intervocálicas nasalizam as vogais adjacentes tanto regressiva quanto progressivamente, conforme já apontado por Moraes (2013). As pesquisas dessas autoras indicaram também que esse índice de nasalização é dependente da consoante nasal. Na próxima seção, serão apresentados os resultados de estudos acústicos sobre a consoante nasal palatal do PB e suas produções gradientes. 2. Características acústicas da consoante nasal palatal do PB Com o propósito de buscar parâmetros para caracterizar acusticamente as produções referentes à consoante nasal palatal, apresentamos os resultados de algumas pesquisas realizadas com dados do PB. Silva (2010) cita, como produções para essa consoante, a nasal palatal e um segmento vocálico nasalizado. As pesquisas de Sousa (1994) e de Seara (2000) também indicam a ocorrência de um segmento vocálico nasal alto anterior na produção da consoante nasal palatal. Seara (2000) analisou as ressonâncias nasais (FN1, FN2, FN3) nos contextos tônicos e átonos e observou, com certa irregularidade, duas frequências nasais que são próprias de segmentos nasais, conforme pode ser observado na Tabela 1. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 520 Em estudos mais recentes, na variedade lorianopolitana, Gamba (2011, 2014) conirma a produção da consoante nasal palatal [], da variante vocálica nasalizada [j)] e, ainda, da síncope dessa consoante, variantes coexistentes nas produções dos três informantes pesquisados. Gamba (2011) descreve, para a consoante [], quando o contexto vocálico precedente era a vogal baixa, o traçado de F2 como de uma abóboda, movimento de F2 semelhante ao da vogal alta. No entanto, apresentando uma região central com baixa intensidade, o que corresponderia ao bloqueio oral da consoante palatal. Para a produção [j)], o padrão formântico foi caracterizado por F2 não se aproximar de F3, e ainda, por F2 apresentar uma subida mais moderada, ao invés do formato de abóboda descrito para a consoante. De modo qualitativo, Gamba (2014) descreve o traçado dos formantes da consoante nasal palatal. Indicou o F1 entre 250 e 330 Hz, com uma queda da frequência no centro e subida no inal para a vogal seguinte; F2 iniciando-se alto (após subida na vogal precedente), mantendo-se estável ao longo do percurso e aproximando-se de F3; e com queda no inal. Observe também na Tabela 1 a distribuição de valores médios obtidos nos estudos de Gamba (2011, 2014). TABELA 1 Valores frequenciais dos formantes nasais da consoante nasal palatal encontrados em estudos do PB. Formantes nasais Seara (2000) Gamba (2011) Gamba (2014) FN1 252-268 Hz 357 Hz 250-330 Hz FN2 1014-1025 Hz 1992 Hz --- FN3 2182-2248 Hz 2888 Hz --- FONTE: Adaptado de Seara (2000) e de Gamba (2011, 2014). Fant (1960), para sons nasais, se refere a formantes nasais (FN) razoavelmente ixos em 250 Hz (FN1), 1000 Hz (FN2), 2000 Hz (FN3), 3000 Hz (FN4) e 4000 Hz (FN5). Porém, segundo o autor, o formante nasal em 1000 Hz nem sempre está acima do limite de detectabilidade em espectrogramas devido a sua baixa intensidade. Daí a sua irregularidade em diversos estudos, como, por exemplo, nos de Gamba (2011) e Seara (2000). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 521 Dados de consoantes nasais, como os exibidos em Seara (2000), indicam que o FN2 em torno de 1000 Hz pode ser ou não detectado nesses sons consonantais. No estudo de House e Stevens (1957), o FN1 das consoantes nasais apresenta-se em torno de 200 a 300 Hz e o FN2 está presente com valores em torno de 1000 Hz. A indicação de FN2 também foi variada nos dados apontados por Sousa (1994) para as consoantes nasais [m] e [n] do PB. A autora menciona que o FN2 apresentou inúmeras irregularidades e nem sempre era possível ser detectado (ou seja, seu efeito era provavelmente atenuado ou anulado pelo efeito de um antiformante na mesma região de frequência), sendo que os únicos formantes que ocorreram em todas as elocuções foram FN1 e FN3. Esses dados corroboram o exposto por Fant (1960). Na vogal nasal alta anterior, similarmente à consoante nasal, o FN2 também pode estar presente. Isso se deve ao acoplamento das cavidades oral e nasal e a consequente modiicação no espectro acústico, com o aparecimento de formantes nasais em baixas frequências. Ao examinar a distribuição frequencial da vogal nasal alta anterior, Seara (2000) aponta a ocorrência de um formante em torno de 1000 Hz, que foi considerado como um formante nasal (FN2), pois a vogal oral alta anterior exibe tradicionalmente dois formantes orais, o primeiro em torno de 300Hz e o segundo em torno de 2000Hz.1 Na Seção 3, será evidenciada a relação entre a nasalidade e o esfíncter velofaríngeo. 3. O esfíncter velofaríngeo e a nasalidade Altmann (2007) esclarece que o esfíncter velofaríngeo é formado anatomicamente pelo véu do palato e pelas paredes da faringe. Funcionalmente, na fala, o véu do palato passa da posição de repouso, quando está elevado, para o movimento de abertura ou abaixamento. O contraste entre sons orais e nasais é estabelecido pelo movimento do esfíncter velofaríngeo, que controla a presença e o grau de acoplamento entre as cavidades oral e nasal para a produção das vogais e consoantes (VAISSIÈRE, 1995). A autora não referiu em sua pesquisa, se na fala dos participantes havia formante de traqueia, porém não se pode descartar essa possibilidade. 1 522 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Em nível articulatório, um dos pontos para a diferenciação entre vogais nasais e consoantes nasais pode ser entendido a partir da liberação do luxo de ar pulmonar. Enquanto, nas vogais nasais, não há nenhum impedimento à passagem do luxo aéreo no trato vocal (cavidades oral e nasal), para as consoantes nasais, há uma obstrução total e momentânea do luxo de ar na cavidade oral, havendo quase ao mesmo tempo a liberação do ar pela cavidade nasal com o movimento do esfíncter velofaríngeo, que permanece aberto (SEARA; NUNES; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2015). Devido à passagem de ar sem impedimento, a produção da vogal exibe ressonâncias com mais amplitude do que a produção da consoante nasal, que, por apresentar um bloqueio, é emitida com uma atenuação geral da amplitude das ressonâncias (KELLER, 1999). Na produção da vogal nasal [i)]‚ a língua movimenta-se para frente, colocando-se em posição alta, sem contato com o palato duro (SEARA; NUNES; LAZZAROTTO-VOLCÃO, 2015). No caso da consoante nasal palatal [], Silva (2010) explica que há um bloqueio na cavidade oral realizado pelo movimento da língua na região do palato duro. Observa-se similaridade nos movimentos realizados pela língua, tanto para essa vogal nasal quanto para a consoante nasal palatal. Um aspecto sugerido por Bell-Berti (1993) para diferenciar a vogal nasal alta da consoante nasal é o grau de abaixamento do véu do palato em função da altura da língua na produção vocálica. Assim, o véu seria mais abaixado na produção de consoantes nasais e menos abaixado para as vogais altas orais. Segundo a autora, o menor abaixamento do véu do palato deve-se, provavelmente, à posição da língua estar bastante alta na produção dessas vogais. Na seção seguinte, serão apresentadas análises aerodinâmicas utilizadas no estudo do fenômeno coarticulatório da nasalidade. 4. Análises aerodinâmicas da nasalidade a partir do piezo-elétrico As técnicas utilizadas para investigar a nasalidade da fala estão relacionadas ao movimento do esfíncter velofaríngeo para o acoplamento das cavidades oral e nasal. Por isso um grande número de estudos tem pesquisado aspectos isiológicos, acústicos e aerodinâmicos do mecanismo velofaríngeo no seu aspecto funcional, durante a fala. Vaissière (1995) desenvolve estudos aerodinâmicos e destaca procedimentos não invasivos, como o uso do captador piezo-elétrico e Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 523 do microfone nasal, que permitem inferir sobre os movimentos do véu do palato. Além desses, o microfone oral é utilizado para o registro de dados acústicos. Esses equipamentos são exibidos na Figura 1. FIGURA 1 – Equipamentos utilizados para estudos acústicos e aerodinâmicos: piezo-elétrico, microfone nasal e microfone oral. FONTE: arquivo pessoal da autora. Divulgação de imagem autorizada. No presente estudo, focalizaremos as análises aerodinâmicas obtidas a partir do captador piezo-elétrico. O captador piezo-elétrico tem sido usado para estudos dos fenômenos da nasalidade (BRKAN; AMELOT; PILLOT-LOISEAU, 2012) com a inalidade de converter a energia mecânica (movimento vibratório) em sinais elétricos (FERNANDES, 2000). Os sinais de vibração consistem geralmente de inúmeras frequências que ocorrem simultaneamente. Com a utilização da técnica de análise de frequência é possível relacionar a amplitude do sinal com a sua respectiva frequência. Uma das maneiras pela qual a amplitude da vibração pode ser quantiicada é o nível quadrático médio (ou RMS – Root Mean Square), que é uma importante medida de amplitude porque mostra a média da energia contida no movimento vibratório (FERNANDES, 2000; MARQUES, 2007). O piezo-elétrico é aixado na superfície externa do nariz e registra a amplitude das vibrações do luxo de ar nas cavidades nasais quando ocorre a ressonância nasal (VAISSIÈRE et al., 2010). Observe na Figura 1 o microfone captador do sinal acústico nasal utilizado em conjunto com o microfone captador do sinal acústico oral, que servem para medir a pressão sonora. 524 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Serão descritos a seguir alguns estudos, baseados em especial sobre análises aerodinâmicas, incluindo os que tratam da nasalidade do PB e do francês. 5. Estudos aerodinâmicos da nasalidade Vaissière (1995) aponta que os aspectos aerodinâmicos estão relacionados com a forma da cavidade oral para produção das consoantes nasais e que dependem do ponto de articulação (bilabial, alveolar, palatal), do contexto vocálico vizinho à consoante e das características acústicas consonantais. Para o francês, Vaissière (1995) observou o papel do movimento do esfíncter velofaríngeo no curso temporal da fala, a partir de estudos aerodinâmicos e articulatórios. A autora constatou que o véu do palato está geralmente elevado durante a fala, sendo abaixado temporariamente na presença de um som nasal. Sobre a altura do véu do palato, a autora encontrou fatores que a inluenciam: (i) o fenômeno de antecipação do abaixamento do véu do palato durante a emissão da vogal que precede a consoante nasal; e (ii) o fenômeno de nasalização progressiva, ou seja, quando a nasalidade se propaga à direita para outras vogais. A maior parte dos estudos aerodinâmicos é realizado com sons vocálicos nasais e com a estação aerodinâmica EVA2TM (Evaluation Vocale Assistée, SQLab), empregada para avaliar os parâmetros de luxo de ar nasal (dados que são semelhantes aos obtidos pelo piezo-elétrico) e luxo de ar oral. Nesse caso, como no presente estudo, são utilizadas medidas sincronizadas de dados acústicos e aerodinâmicos. Assim, a seguir, apresentaremos os principais resultados que podem ser associados aos dados tratados no presente estudo. Basset et al. (2001) esclarecem que a presença do luxo aéreo nasal indica que a porta velofaríngea está aberta, mas a ausência de FAN não signiica que a porta velofaríngea esteja fechada, uma vez que, para a produção de uma vogal ou consoante nasal, a abertura velofaríngea está entre 0,4 e 1,0cm2 e assim com uma abertura menor não haveria passagem de ar pelas cavidades nasais (AMELOT, 2004). Para um entendimento mais exato referente à abertura ou ao fechamento velofaríngeo, seria necessária uma análise articulatória. Basset et al. (2001), no entanto, analisaram somente medidas aerodinâmicas da nasalidade das vogais a partir da produção de quatro falantes nativos do francês. Eles também Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 525 utilizaram a estação EVA2 e compararam os fenômenos de movimento do véu do palato durante a produção de fala espontânea e de fala lida. Os autores deinem como antecipação (antecipation) quando o FAN começa antes do surgimento da nasal; atraso (delay) quando o FAN começa após o início da vogal nasal e; progressivo (carryover) quando o FAN se espalha sobre o segmento seguinte. Citam, ainda, a possibilidade de ocorrer o início e o inal da curva de FAN sincronizados (synchronous), com a produção do som nasal. Os resultados mostraram uma tendência da curva de FAN iniciar antes da vogal nasal (51 a 54%) e uma forte propensão para se estender depois da nasal (89 a 94%). Basset, Amelot e Crevier-Buchman (2007) estudaram as consoantes nasais [ n] do francês por meio de medidas aerodinâmicas, obtidas com a estação EVA2, e com medidas articulatórias, obtidas com a nasoibroscopia, com três falantes nativos do francês. Os resultados mostraram uma diferença de duração, dependendo do tipo de dado (acústico, aerodinâmico ou articulatório), sendo que a duração do ciclo de abaixamento do véu (articulatório) é o mais longo, seguido pela duração do FAN (aerodinâmico), que é maior do que a duração dos segmentos acústicos correspondentes às consoantes nasais. A propagação do movimento velar é tanto progressiva quanto regressiva, enquanto a propagação do luxo de ar nasal é bastante gradual. Medeiros, D’Imperio e Espesser (2008) pesquisaram dados aerodinâmicos (luxo de ar nasal e oral), utilizando o EVA2, com cinco falantes do PB do sudeste do Brasil. Analisaram o murmúrio nasal das vogais nasais (denominado de apêndice nasal) diante de dois contextos segmentais diferentes: antes de [p] (contexto oclusivo – ‘quimpa’) e antes de [f] (contexto fricativo – ‘canfa’). As autoras consideraram o apêndice nasal, que apresenta elevado nível de luxo de ar nasal, como resultante da constelação de gestos implicados na produção de uma sequência vogal nasal + consoante oral: gesto vocálico, velar e labial. O gesto velar seria ativado durante o gesto vocálico e se sobreporia ao labial, sendo altamente sensível à altura vocálica e aos contextos adjacentes. Mendonça e Seara (2015), em estudo sobre as vogais nasalizadas coarticulatoriamente, tendo por base dados de dois falantes lorianopolitanos, obtidos com o piezo-elétrico, veriicaram que todas as três consoantes nasais do PB exerceram efeitos coarticulatórios sobre as vogais [a], [e], [i], [o] e [u]. Foram utilizados logatomas, nos quais as consoantes nasais ocupavam contextos tônicos e átonos (postônicos). 526 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 As autoras sugeriram uma diferença no surgimento do FAN entre as consoantes nasais do PB, de modo que o FAN para a produção [m] iniciou-se muito próximo do onset desse segmento, mostrando pouca antecipação sobre a vogal antecedente; o FAN para a produção do [n] apresentou antecipação moderada, e em [] o FAN foi o mais antecipado, se comparado com as duas outras consoantes nasais. Passemos agora à metodologia empregada no presente estudo sobre aspectos acústicos e aerodinâmicos da produção da consoante nasal palatal no PB. 6. Metodologia Esta pesquisa está vinculada ao Laboratório de Fonética Aplicada (FONAPLI) e ao Programa de Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), situados em Florianópolis/Brasil. Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da UFSC sob o número de processo 2057, FR 434924. Os dados acústicos e aerodinâmicos analisados no presente estudo constituem-se em uma pequena amostra do banco de dados referente à nasalidade das vogais do PB, do projeto “O Detalhe Fonético: análise acústica exploratória de segmentos de fala”, do FONAPLI. Esses dados foram coletados no Laboratoire de Phonétique et Phonologie, da Université Paris III – Sorbonne Nouvelle, em Paris/França, no ano de 2011. 6.1 Participantes Foram coletados dados de três falantes nativos do PB, do sexo feminino, nascidos e residentes na cidade de Florianópolis/SC/Brasil, com idades entre 25 e 52 anos, nível de escolaridade superior e denominados locutor 1 (L1), locutor 2 (L2) e locutor 3 (L3). No período de gravação, esses informantes se encontravam em Paris e autorizaram suas participações mediante o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os participantes não apresentavam alteração de fala e de linguagem em suas histórias pregressas ou no momento da coleta. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 527 6.2. Corpus O corpus utilizado para as gravações incluiu pares de logatomas que continham como alvo a consoante nasal palatal. No primeiro logatoma do par, o alvo está em contexto átono (postônico) e, no segundo, em contexto tônico. Os logatomas estão dispostos na seguinte fraseveículo: ‘Digo _____ baixinho’ (por exemplo: ‘Digo papanha panhapa baixinho’), conforme mostrado na Tabela 2. TABELA 2 Corpus contendo frases-veículo e os pares de logatomas com a consoante nasal palatal do PB. Consoante nasal palatal [] Contexto tônico Contexto átono Digo Digo Digo Digo Digo panhapa penhapa pinhapa ponhapa punhapa papanha papenha papinha paponha papunha baixinho. baixinho. baixinho. baixinho. baixinho. FONTE: primária (2015). Os logatomas (por exemplo: papanha–panhapa) são estruturados com CV’CV1CnV2 – CV1’CnV2CV, em que Cn é a consoante nasal [] intervocálica e está na posição de onset, V1 é a vogal precedente e V2, a vogal seguinte. Em ambos os contextos de tonicidade, o som que precede a consoante nasal é formado por cinco vogais nasalizadas do PB [)], [)], [)], [)], [)] e o contexto seguinte é representado pela vogal baixa átona []. Considerando-se os três locutores, os cinco contextos precedentes, os dois contextos de tonicidade, inseridos na frase-veículo, as gravações dos dados corresponderam ao total de 30 produções da consoante nasal palatal (3x5x2). Como o número de dados ainda é muito pequeno, a análise acústica aqui apresentada servirá somente para uma comparação qualitativa com dados de outros estudos, permitindo um olhar sobre a gradiência do comportamento acústico exibida por essa consoante e para auxiliar nas observações de cunho aerodinâmico. Uma investigação mais ampla desses resultados será tema de futuras pesquisas. 528 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 6.3. Coleta dos dados Os equipamentos utilizados para a coleta das gravações dos dados acústicos e aerodinâmicos, de modo simultâneo, foram o microfone oral e o captador piezo-elétrico, conforme ilustrados na Figura 1. O captador piezo-elétrico (K&K Sound) é acoplado ao nariz por meio de duas pastilhas do diâmetro de 0,5cm, ixadas por um adesivo de dupla face nos ossos aterais do nariz (LIPPMAN, 1981 apud BRKAN; AMELOT; PILLOT-LOISEAU, 2012). Ele está ligado a um préampliicador (40dB) e a uma placa de aquisição externa (Motu UltraLite mk3 hybride). A medida do piezo-elétrico é feita com base em uma referência. Essas medidas de nasalidade são transformadas em percentuais em relação a essa referência que é tomada de palavras usadas para calibração do equipamento na gravação de cada participante e obtenção do valor máximo de RMS. Esse valor máximo é obtido com base na produção da consoante [m] em uma sequência nasal [)))], usada na calibração. Assim 100% de nasalidade seria referente ao valor máximo para essa consoante. O microfone captador do sinal acústico oral é apoiado nas orelhas e capta o sinal da gravação dos dados com posição e distância ixas da boca do falante. É um microfone do tipo MicroMic C520L. Observe as posições dos dispositivos na Figura 1. A coleta dos dados acústicos e aerodinâmicos foi realizada em uma sala com tratamento acústico. Os dados acústicos obtidos pelo microfone oral foram segmentados e etiquetados por análise visual dos dados com o uso do software Praat (BOERSMA; WEENINK, 2011). Na sequência, esses dados foram sincronizados através de um script (AMELOT, 2011) que faz a interface entre diferentes softwares (Praat; MATLAB2) para a obtenção da visualização das medidas a partir dos valores de RMS dos sinais nasais obtidos com o piezo-elétrico. Dessa forma, pôde-se veriicar o aspecto aerodinâmico das consoantes nasais e seus contextos vocálicos, precedentes e seguintes. O script gera então uma tabela com os valores de RMS do piezo-elétrico do ponto inicial, medial e inal de etiquetagem do som e ainda o valor médio de RMS. Um exemplo dos dados acústicos e aerodinâmicos analisados é apresentado na Figura 2. Os dados são exibidos em duas janelas, sendo o eixo x representado pelo tempo e o eixo y pela amplitude do sinal. Na janela (a), é mostrado o sinal acústico com a forma de onda e a 2 MATLAB - Disponível em <http://www.mathworks.com/products/matlab/>. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 529 etiquetagem de cada segmento que compõe os logatomas. Nessa igura, tem-se o exemplo do par de logatomas: papanha panhapa. Na janela (b), são apresentados os dados aerodinâmicos obtidos com o piezo-elétrico (RMS piezo). A curva de FAN pode ser quantiicada pelos valores de RMS. FIGURA 2 - Logatomas [pa)))aa] produzidos por L3, com destaque para as regiões [)))a Em (a), forma de onda do sinal captado pelo microfone oral; em (b), curvas de RMS do luxo de ar nasal (FAN) captado pelo piezo-elétrico. FONTE: primária (2015). 6.4 Procedimentos de análise Os dados acústicos referentes à consoante nasal palatal foram analisados com o software Praat, a partir da percepção auditiva, da amplitude da forma de onda, do espectrograma, considerando os traçados dos formantes e suas respectivas intensidades (energia formântica). Foi realizada reamostragem do sinal de fala ao dobro da freqüência máxima de 5000Hz. Também foram consideradas as medidas espectrais, extraídas por meio de análises Fast Fourier Transform (FFT) e suavização cepstral (Cepstral smoothing). A partir da seleção de quatro pulsos glotais na região medial do som correspondente à consoante nasal palatal, foi realizada uma superposição do espectro de Fourier de banda estreita (janela de 0,025 s) e do cepstro com iltragem de até 500Hz. Dessa forma, foi possível analisar os picos das curvas (regiões formânticas) e obter os valores das frequências dos formantes (To Spectrum Tier peaks). Essas análises podem ser visualizadas na Figura 3. 530 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 a) b) c) d) formantes freq(Hz) pow(dB/Hz) 1 276 24,37 2 1705 -18,45 3 2693 5,09 4 3466 -10,70 5 3925 -5,27 FIGURA 3 - Em (a), forma de onda de ) do logatoma [pa) (L1), com o som-alvo delimitado pelo pontilhado; em (b), espectrograma com traçados e energia dos formantes; em (c), superposição do espectro FFT de banda estreita com janela de 0,025s (preto) e cepstro (vermelho), em (d), frequências dos formantes do som-alvo. FONTE: primária (2015). Em seguida, foram analisados os dados aerodinâmicos buscandose um padrão para sua ocorrência. O software Ocenaudio, versão 2.0.13 (build 6997)3, também foi utilizado para visualização em paralelo das formas de onda das medidas obtidas pelo microfone oral e pelo piezoelétrico, conforme Figura 4. Possibilitou, assim, comparar o sinal acústico da vogal precedente, da consoante nasal e da vogal seguinte, com o início e o inal das vibrações captadas na passagem do luxo de ar nasal (FAN) para uma melhor análise da antecipação da nasalidade. Desenvolvido pelo grupo de pesquisa do Laboratório de Circuitos e Processamento de Sinais (LINSE) da Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em http:// www.ocenaudio.com.br/. 3 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 531 FIGURA 4 - Logatomas [pa)p)a] produzidos por L3, com destaque para as regiões [)))a mostrando: em (a), forma de onda, captada pelo microfone oral (sinal acústico) e, em (b), forma de onda do FAN, captada pelo piezo-elétrico (vibração). FONTE: primária (2015). 7. Resultados e discussão 7.1 Análise acústica Iniciamos a apresentação dos resultados obtidos por meio da análise acústica dos sons nasais palatais intervocálicos, representados pelo grafema ‘nh’ nos logatomas do corpus da pesquisa (Tabela 2). Buscamos conciliar uma avaliação perceptual auditiva com a análise acústica para decidirmos sobre a classiicação apresentada pelos sons nasais palatais. Inicialmente ouvimos as produções de todo o logatoma, depois, da região V1CnV2 e, em seguida, somente da região Cn. O objetivo era buscar padrões classiicatórios, no entanto não conseguimos de oitiva tal classiicação. Na sequência, observamos a amplitude da forma de onda, esperando maior amplitude para a vogal e menor para a consoante. A amplitude da forma de onda, por apresentar muitas irregularidades nos dados, não auxiliou na identiicação das produções consonantais e vocálicas. Depois, avaliamos o traçado e a intensidade dos formantes do som nasal visualizados no espectrograma. Esperava-se maior energia 532 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 formântica, com escurecimento na região entre a vogal precedente (V1) e a vogal seguinte (V2), na produção do som vocálico nasalizado. Todavia, para a consoante, buscava-se uma redução da intensidade, com clareamento na região do som nasal, relacionando esse fenômeno ao bloqueio do luxo de ar na cavidade oral, característico das consoantes. A análise espectrográica contribuiu para a classiicação dos dados em produções com características consonantais e vocálicas. As curvas obtidas com a superposição das análises espectrais (FFT e cepstral) mostraram-se bastante consistentes para diferenciar as produções: consonantais e vocálicas. Entretanto, a análise das frequências dos formantes listadas não indicou um padrão que diferenciasse precisamente produções consonantais e vocálicas, uma vez que houve a detecção de um formante em torno de 1000Hz para ambos os tipos de produções classiicadas. Por isso, os valores das frequências dos formantes serão analisados posteriormente para auxiliar na caracterização dos tipos acústicos, após sua classiicação. Então, foram consideradas, de modo associado, as classiicações das análises espectrográicas e espectrais, sendo possível classiicar 18 dos 30 dados em [] ou [j)]. Observamos que, dos 12 dados restantes, alguns tendiam mais para características vocálicas (espectrograma: maior intensidade na região do som-alvo em F2 e F3; análises espectrais: maior amplitude nas frequências mais altas), enquanto outros, mais para características consonantais (espectrograma: menor intensidade na região do som-alvo em FN2 e FN3; análises espectrais: perda de amplitude nas frequências mais altas), mas de forma menos evidente do que nos 18 dados anteriores. Portanto, os critérios das análises espectrais somados à análise da intensidade (escurecimento e clareamento) no espectrograma foram os mais idedignos para a identiicação das produções encontradas. As análises acústicas realizadas permitiram a observação da gradiência dos sons-alvo caracterizando o contínuo que vai da produção de uma consoante nasal palatal até a produção de um som vocálico nasalizado, além da descrição acústica dos dados que mostravam mais características consonantais ou vocálicas. Após a análise dos parâmetros acústicos, foi estabelecida uma classiicação dos dados nasais, com a identiicação de quatro tipos de produções acústicas: 1) consonantal (n=10); 2) características mais consonantais (n=6); 3) características mais vocálicas (n=6); e 4) vocálico Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 533 (n=8). Na Figura 5, estão exempliicados os tipos acústicos classiicados, com (a) espectrograma e com (b) superposição do espectro de Fourier de banda estreita com janela de 0,025s (preto) e cepstro (vermelho) com iltragem de até 500Hz para a região medial do som correspondente à consoante nasal palatal dos logatomas inseridos na frase-veículo “Digo _____ baixinho.”, emitidos pelos locutores lorianopolitanos. Tipo acústico 1 – Consonantal - logatoma papanha - [))], de L2 a) b) Tipo acústico 2 – Características mais consonantais - logatoma panhapa - [))a], de L2 a) b) Tipo acústico 3 – Características mais vocálicas - logatoma pinhapa - [)j)a], de L1 a) b) 534 a) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Tipo acústico 4 – Vocálica - logatoma papanha - [))j)], de L3 b) FIGURA 5 - Exemplos de tipos de produções: Tipo Acústico 1: consonantal; Tipo Acústico 2: características mais consonantais. Tipo Acústico 3: características mais vocálicas; Tipo Acústico 4: vocálico. Em (a), espectrograma e, em (b), superposição do espectro de Fourier de banda estreita com janela de 0,025s (preto) e cepstro (vermelho). FONTE: primária (2015). Na Tabela 3, estão descritas as características dos parâmetros analisados para a classiicação acústica: intensidade dos formantes no espectrograma (clareamento e escurecimento da energia formântica); superposição do espectro de Fourier e cepstro; detecção do segundo formante nasal (FN2) em torno de 1000Hz, ocorrendo entre 900 e 1600Hz. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 535 TABELA 3 Caracterização dos parâmetros (intensidade dos formantes no espectrograma; espectro FFT e cepstro; detecção de formante em torno de 1000Hz) veriicados por tipos de produções: Tipo Acústico 1: consonantal, Tipo Acústico 2: características mais consonantais, Tipo Acústico 3: características mais vocálicas e Tipo Acústico 4: vocálico. Tipo Acústico Intensidade dos formantes Espectro FFT e cepstro Formantes (FN2) 1 Redução de intensidade, entre V1 e V2, com clareamento evidente em toda a extensão do som-alvo Evidente perda de amplitude nas frequências mais altas Detecção de FN2 em torno de 1000 Hz em todos os dados 2 Redução de intensidade na região entre V1 e V2 , no entanto mais escurecida se comparada àquela apresentada no Tipo Acústico 1 Evidente perda de amplitude nas frequências mais altas Detecção de FN2 em torno de 1000 Hz na maioria dos dados 3 Mantém a intensidade na região entre V1 e V2, porém menos escurecida se comparada àquela apresentada no Tipo Acústico 4 Apresenta maior amplitude nas frequências mais altas Detecção de FN2 em torno de 1000 Hz na maioria dos dados 4 Mantém a intensidade na região entre V1 e V2, com escurecimento evidente nessa região Apresenta maior amplitude nas frequências mais altas FN2 em torno de 1000 Hz não detectado na maioria dos dados FONTE: primária (2015). Estes quatro tipos principais de ocorrência comprovam a existência da consoante nasal palatal (Tipo Acústico 1) no dialeto de Florianópolis e por consequência, no PB. Demonstram, ainda, que esse som nasal apresenta, além de sua produção vocálica nasalizada (Tipo Acústico 4), também indicada em estudos anteriores, outras produções 536 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 com características similares à consoante (Tipo Acústico 2) ou à vogal (Tipo Acústico 3). Essas variações no detalhe acústico podem ser vistas como uma gradiência, com um contínuo de possíveis produções entre as categorias de consoante e de vogal, como esquematizado na Figura 6. FIGURA 6 - Representação da gradiência encontrada na produção da consoante nasal palatal do PB, com base na produção de três locutores de Florianópolis/SC/Brasil. Tipo Acústico 1: consonantal; Tipo Acústico 2: características mais consonantais; Tipo Acústico 3: características mais vocálicas; Tipo Acústico 4: vocálico. FONTE: primária (2015). A classificação foi organizada nos quatro grupos acústicos expostos anteriormente, formados pelos Tipos Acústicos 1, 2, 3 e 4. A partir daí, considerando os 33% de produções do Tipo Acústico 1, que caracterizam a consoante nasal palatal; os 20% de produções do Tipo Acústico 2, com características mais consonantais; os 20% de produções do Tipo Acústico 3, com características mais vocálicas; e os 27% de produções do Tipo Acústico 4, que caracterizam o som vocálico nasalizado, descreveremos as médias dos formantes desses tipos acústicos, conforme Tabelas 4 e 5. Observe, nessas Tabelas, que os dados marcados com “-” não foram produzidos pelos locutores. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 537 TABELA 4 Médias do primeiro (FN1), segundo (FN2) e terceiro (FN3) formantes nasais dos tipos acústicos com características consonantais (Tipos Acústicos 1 e 2), por locutor e por número de dados (n = 16). Formantes do Tipo Acústico 1 - [] Média de FN1 Média de FN2 Média de FN3 Formantes do Tipo Acústico 2 N° de dados Média de FN1 Média de FN2 Média de FN3 N° de dados L1 203 Hz 922 Hz 2451 Hz 2 240 Hz 919 Hz 2249 Hz 1 L2 212 Hz 1462 Hz 2178 Hz 8 208 Hz 2028 Hz 3046 Hz 2 L3 - - - - 227 Hz 2094 Hz 3641 Hz 3 Média* 210 Hz 1354 Hz 2233 Hz 10 219 Hz 1865 Hz 3112 Hz 6 FONTE: primária (2015). * As médias aqui apresentadas correspondem às produções de todos os locutores em cada tipo acústico. TABELA 5 Médias do primeiro (F1), segundo (F2) e terceiro (F3) formantes dos tipos acústicos com características vocálicas (Tipos Acústicos 3 e 4), por locutor e por número de dados (n = 14). Formantes do Tipo Acústico 3 L1 L2 L3 Média* Média de F1 236 Hz 215 Hz 218 Hz Média de F2 1618 Hz 1599 Hz 1602 Hz Média de F3 2897 Hz 3068 Hz 3040 Hz N° de dados 1 5 6 Formantes do Tipo Acústico 4 - [j)] Média de F1 246 Hz 245 Hz 246 Hz Média de F2 2219 Hz 2642 Hz 2325 Hz Média N° de de F3 dados 3015 Hz 6 3783 Hz 2 3207 Hz 8 FONTE: primária (2015). * As médias aqui apresentadas correspondem às produções de todos os locutores em cada tipo acústico. Observamos, pelas Tabelas 4 e 5, que as frequências dos formantes da consoante nasal palatal (Tipo Acústico 1) parecem ser caracterizadas por valores médios mais baixos para FN1 (210 Hz), FN2 (1354 Hz) e FN3 (2233 Hz) em relação aos demais tipos acústicos. No outro extremo da classiicação, valores médios um pouco mais altos foram encontrados para o som vocálico nasalizado (Tipo Acústico 4), para F1 (246 Hz), F2 (2325 Hz) e F3 (3207 Hz), quando comparados aos outros tipos acústicos. 538 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Ainda, podemos salientar irregularidades do segundo formante nasal em torno de 1000 Hz com maior detectabilidade nos Tipos Acústicos 1, 2 e 3, tanto para consoantes nasais quanto para vogais nasalizadas, corroborando estudos anteriores. Constatamos também, com base na Tabela 4, que dois locutores (L1 e L2) produziram a consoante nasal palatal (Tipo Acústico 1) em sua fala, e que todos os locutores produziram o Tipo Acústico 2, que apresenta características mais consonantais. Podemos inferir, portanto, que os falantes lorianopolitanos podem apresentar produções consonantais (Tipo Acústico 1 e Tipo Acústico 2). Os dados da Tabela 5 demonstram que apenas um locutor (L2) não produziu sons nasais com características mais vocálicas (Tipo Acústico 3) nem o som vocálico nasalizado (Tipo Acústico 4). Esse resultado indica que nem todos os falantes de Florianópolis produzem sons nasais palatais com características vocálicas. Esses dados evidenciam a variação que ocorre em uma mesma região geográica, aliada a aspectos individuais, na produção desses sons nasais. Com esses resultados, respondemos à Questão 1, ou seja, a consoante nasal palatal não apresenta as mesmas características acústicas em todas as suas produções. Passaremos agora à análise dos dados aerodinâmicos na tentativa de responder às Questões 2 e 3. 7.2. Análise aerodinâmica - conigurações de curvas de luxo aéreo nasal (FAN) Destacamos que, na análise aerodinâmica, mantivemos, para a transcrição fonética, o símbolo [], independentemente do som apresentar características consonantais ou vocálicas. Primeiramente, realizamos uma classiicação qualitativa dos traçados das curvas de luxo aéreo nasal (FAN) com todos os dados registrados. Isso nos permitiu observar quatro conigurações aerodinâmicas diferentes, a saber: Coniguração Aerodinâmica 1: a amplitude da curva de FAN progride lentamente (em rampa) a partir da vogal precedente (V1) até atingir o pico máximo no som nasal (Cn) e decresce lentamente para amplitude zero (linha preta pontilhada) que é atingida no inal da vogal seguinte (V2). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 539 FIGURA 7 - Traçado da curva do luxo aéreo nasal para a Coniguração Aerodinâmica 1 nos logatomas [pa)p)a] (L3). Em destaque, curva de FAN de [)). FONTE: primária (2015). Coniguração Aerodinâmica 2: a amplitude da curva de FAN progride rapidamente, subindo para uma amplitude máxima que é atingida ainda na vogal precedente (V1), mantendo-se no som nasal (Cn). A partir daí, a amplitude vai decrescendo até atingir amplitude zero (linha preta pontilhada) no inal da vogal seguinte (V2). 540 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 FIGURA 8 - Traçado do luxo aéreo nasal para a Coniguração Aerodinâmica 2 nos logatomas [pa)pu)a] (L2). Em destaque, curva de FAN de [)). FONTE: primária (2015). Coniguração Aerodinâmica 3: a amplitude da curva de FAN vai aumentando a partir da vogal precedente (V1), mantendo-se praticamente em platô, até atingir amplitude máxima no som nasal (Cn). Em seguida, a amplitude da curva de FAN vai decrescendo lentamente até atingir amplitude zero (linha preta pontilhada) no inal da vogal seguinte (V2). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 541 FIGURA 9 - Traçado do luxo aéreo nasal para a Coniguração Aerodinâmica 3 o logatoma [pa)] (L3). Em destaque, curva de FAN de [)). FONTE: primária (2015). Coniguração Aerodinâmica 4: a amplitude da curva de FAN aumenta rapidamente até atingir amplitude máxima na vogal precedente (V1) e vai decrescendo lentamente até o inal da vogal precedente (V1), mantendo-se em platô no som nasal (Cn). Em seguida, vai novamente decrescendo lentamente até atingir amplitude zero (linha preta pontilhada) no inal da vogal seguinte (V2). 542 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 FIGURA 10 - Traçado do luxo aéreo nasal para a Coniguração Aerodinâmica 4 nos logatomas [pa)p)a] (L2). Em destaque, curva de FAN de [). FONTE: primária (2015). Identiicamos 30% de produções com a Coniguração Aerodinâmica 1; 37% de produções com a Coniguração Aerodinâmica 2; 27% de produções com a Coniguração Aerodinâmica 3; e 6% de emissões com a Coniguração Aerodinâmica 4. Observamos diferenças em termos de amplitude máxima da curva de FAN entre as conigurações descritas. Uma maior amplitude foi apresentada para a região da consoante nasal nas Conigurações Aerodinâmicas 1 e 3, já a Coniguração Aerodinâmica 2 apresentou amplitude semelhante na vogal precedente e na consoante nasal. A Coniguração Aerodinâmica 4 mostrou maior amplitude da curva de FAN na região da vogal que precede a consoante. A Coniguração Aerodinâmica 4 foi caracterizada em apenas 6% dos dados (duas produções), quando a vogal [i] precedia a consoante nasal e quando eram emitidas pelo locutor 2 (L2). Diante desses aspectos muito especíicos, como número de dados, produção diante de determinada vogal e somente por um locutor, optamos por não incluir a Coniguração Aerodinâmica 4 nas análises subsequentes. De modo geral, notamos certas regularidades nos traçados das curvas de FAN aqui observados para o som nasal intervocálico (Cn), Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 543 como, por exemplo, os das Conigurações Aerodinâmicas 1, 2 e 4, que se assemelham a alguns contornos de curvas de FAN descritos para as vogais do francês por Amelot (2004). Conforme os dados apresentados nesta seção, por meio da análise aerodinâmica qualitativa, conseguimos estabelecer conigurações aerodinâmicas distintas de curvas de FAN advindas do piezo-elétrico para a consoante nasal palatal do PB, denominadas de Conigurações Aerodinâmicas 1, 2, 3 e 4, respondendo assim parcialmente a Questão 2. A im de responder o segundo ponto da Questão 2, na seção a seguir, faremos uma comparação com as conigurações aerodinâmicas das curvas de FAN, exibidas na Figura 7 (Coniguração Aerodinâmica 1), na Figura 8 (Coniguração Aerodinâmica 2) e na Figura 9 (Coniguração Aerodinâmica 3), com as produções que foram classiicadas em Tipo Acústico 1: consonantal [], Tipo Acústico 2: características mais consonantais; Tipo Acústico 3: características mais vocálicas; e Tipo Acústico 4: vocálico. 7.3 Análises dos tipos acústicos x conigurações aerodinâmicas Na Tabela 6, são contabilizadas as ocorrências das conigurações aerodinâmicas de FAN (Conig. 1, 2 e 3) por classiicação com base nos tipos acústicos: consoante nasal palatal (Tipo Acústico 1); características mais consonantais (Tipo Acústico 2); características mais vocálicas (Tipo Acústico 3) e vogal nasalizada (Tipo Acústico 4). TABELA 6 Número de ocorrências das conigurações aerodinâmicas (Conig. 1, 2 e 3) por tipos acústicos: Tipos Acústicos 1 e 2, com características consonantais; e Tipos Acústicos 3 e 4, com características vocálicas (n=28). Análise acústica e aerodinâmica Tipos Acústicos/ Conigurações Aerodinâmicas Tipos Acústicos 1 e 2 (n = 14) Tipos Acústicos 3 e 4 (n = 14) Conig.1 (n = 9) 44% 56% Conig.2 (n = 11) 45% 55% Conig.3 (n = 8) 62,5% 37,5% FONTE: primária (2015). 544 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 De acordo com o exposto na Tabela 6, analisamos os dados a im de veriicar se determinada coniguração aerodinâmica tinha maior ocorrência em algum dos tipos acústicos. Ou seja, se uma coniguração aerodinâmica apresentava características acústicas consonantais, juntando os Tipos Acústicos 1 e 2, que totalizavam 50% das produções; ou características vocálicas, somando os Tipos Acústicos 3 e 4, que totalizavam 50% dos dados produzidos. Esses dados estão ilustrados no Gráico 1. GRÁFICO 1 – Ocorrência dos tipos acústicos (Tipos Acústicos 1 e 2: características consonantais; Tipos Acústicos 3 e 4: características vocálicas) por coniguração aerodinâmica (Conigurações Aerodinâmicas 1, 2 e 3) (n=28). FONTE: primária (2015). De acordo com o Gráico 1 e Tabela 6, observamos que os dados acústicos com características consonantais distribuem-se de forma equilibrada pelas três conigurações aerodinâmicas, sendo o mesmo observado para os dados acústicos com características vocálicas, com uma restrição apenas para a Coniguração Aerodinâmica 3. Observamos, ainda, que as Conigurações Aerodinâmicas 1 e 2 apresentam, respectivamente, ocorrência em 44% e 45% dos dados acústicos com características consonantais (Tipos Acústicos 1 e 2) e apresentam 56% e 55% com características vocálicas (Tipos Acústicos 3 e 4). Por sua vez, a Coniguração Aerodinâmica 3 tem porcentagem mais evidente de ocorrência nos sons com características consonantais (62,5%) do que nos sons com características vocálicas (37,5%). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 545 Portanto, em resposta à Questão 2, não podemos afirmar, devido ao número de dados analisados e aos resultados obtidos, que as conigurações aerodinâmicas distintas de curvas de FAN para a consoante nasal palatal estejam relacionadas às diferentes produções acústicas. Essa análise parece indicar que as características aerodinâmicas independem do tipo acústico, com características vocálicas ou consonantais, da consoante nasal palatal. Consideramos ainda, na Seção 7.4, os fenômenos de coarticulação da nasalidade, observados nas curvas de FAN do som nasal e dos sons vocálicos adjacentes, considerando os diferentes tipos acústicos estabelecidos na análise acústica. 7.4. Fenômenos de coarticulação da nasalidade Agora retomamos a classiicação proposta das conigurações de curvas aerodinâmicas e discutiremos a relação entre os fenômenos da nasalidade (antecipação, progressão, sincronização ou atraso), propostos por Basset et al. (2001) e a produção acústica dos sons com características consonantais (Tipos Acústicos 1 e 2) e com características vocálicas (Tipos Acústicos 3 e 4) com o objetivo de responder à Questão 3. Na Figura 11, são exempliicados os fenômenos de antecipação e de progressão da nasalidade, referentes ao momento temporal de abaixamento do véu do palato, observando o som-alvo nasal em relação aos contextos vocálicos adjacentes. 546 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 FIGURA 11 - Setas indicam os fenômenos da nasalidade: em (a), à esquerda (antecipação) e, em (b), à direita (progressão), a partir da consoante nasal palatal (entre pontilhados), nos logatomas [pa) p)a] (L2). Em destaque, sequência sonora [õ)õa. FONTE: primária (2015). O fenômeno de antecipação do abaixamento do véu do palato, conforme explica Vaissière (1995), implica uma reorganização do sistema motor com o seu abaixamento durante a vogal que precede a consoante nasal. No presente estudo, esse fenômeno de nasalidade regressiva ocorreu durante a vogal que precede os sons-alvo (Figura 11), corroborando estudos do PB que investigaram a vogal nasalizada, realizados por Moraes (2013) e por Mendonça e Seara (2015). Segundo Vaissière (1995), o fenômeno de nasalização progressiva caracteriza-se quando a nasalidade se propaga à direita para outras vogais. Embora esses casos de nasalização progressiva sejam menos frequentes nas línguas, os dados obtidos no presente estudo apontam para a presença de propagação da nasalidade à direita da consoante nasal palatal e dos demais tipos acústicos em 100% dos dados analisados (Figura 11). Esse resultado corrobora os encontrados por Moraes (2013) e por Mendonça e Seara (2015) para o PB. Em nossos dados, essa nasalidade progressiva se estendeu por toda a vogal vizinha em todos os dados analisados, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 547 tanto em vogais postônicas quanto tônicas. Dessa forma, o contexto de tonicidade não parece se mostrar um fator inluenciador para a nasalidade progressiva nos logatomas investigados. Conforme Basset et al. (2001), nas vogais do francês, pode ocorrer o início e o inal sincrônico do FAN do som-alvo com o dado acústico. Em nossa pesquisa, os dados acústicos e aerodinâmicos não indicaram essa possibilidade de o início ou o término do FAN restringirem-se ao início ou inal do som-alvo, conforme ilustrado na Figura 11. Observamos, portanto, em resposta à Questão 3, os fenômenos relacionados ao comportamento do véu do palato que ocorrem durante a produção da consoante nasal palatal. A antecipação da curva de FAN está presente em todos os contextos vocálicos precedentes ao som nasal. Enquanto a progressão da curva de FAN do som nasal sobre a vogal seguinte também foi observada em todas as produções pelos três locutores. Constatamos, ainda, que a sincronização ou o atraso não foi veriicado nos dados desta pesquisa. Os resultados referentes à antecipação do abaixamento do véu do palato apresentaram diferentes curvas, uma que cobria toda a vogal precedente e outra que cobria apenas parte dessa vogal. Em virtude desse comportamento, outra análise qualitativa foi realizada a im de veriicarmos se essas diferentes curvas com início sincronizado ou não com o início da vogal precedente estavam relacionadas a conigurações aerodinâmicas especíicas. Assim, dois casos distintos foram observados e estão demonstrados na Figura 12. No primeiro (a), quando a antecipação começava após o início da vogal precedente, foi chamada de antecipação parcial do FAN, pois mostrava menor antecipação sobre a vogal precedente. No segundo caso (b), quando a antecipação ocorria desde o início da vogal precedente, foi denominada de antecipação total, pois se estendia por toda a vogal precedente. 548 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 FIGURA 12 – Setas indicam: em (a), antecipação parcial no logatoma [pa)] e, em (b), antecipação total no logatoma [põa] (L1). Em destaque, sequência sonora [õõa FONTE: primária (2015). Os dados referentes à análise dos fenômenos de antecipação total (Ant.Total) e antecipação parcial (Ant.Parcial) considerando as Conigurações Aerodinâmicas 1, 2 e 3 estão expostos no Gráico 2. GRÁFICO 2 – Fenômeno de antecipação da nasalidade (Antecipação total e parcial) por conigurações aerodinâmicas (Conig. Aerod. 1, 2 e 3) (n=28). FONTE: primária (2015). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 549 Pelo Gráfico 2, podemos observar que, na Configuração Aerodinâmica 1, o percentual de ocorrência de antecipação total (55%) é levemente mais alto do que o de antecipação parcial (45%), contrariamente ao que acontece com as Conigurações Aerodinâmicas 2 e 3, que apresentam percentuais de ocorrência de antecipação parcial (55% e 62,5%, respectivamente) mais elevados do que os de antecipação total (45% e 37,5%, respectivamente). Esses resultados, embora não conclusivos, parecem indicar que pode haver um comportamento ligeiramente diferente quanto à antecipação (timing) da nasalização regressiva de acordo com o tipo de curva de FAN. Os dados concernentes à ocorrência de antecipação da curva de FAN ratiicam os achados de Mendonça e Seara (2015), para os quais já havia sido veriicada essa tendência de antecipação, principalmente, para os dados de consoantes nasais palatais. Esses resultados também se mostraram diferentes dos apresentados em dados do francês, pois, enquanto, para o francês, a antecipação da curva de FAN sobre a vogal precedente está em torno de 51 a 54% (BASSET et al. 2001), para os dados aqui pesquisados, ela se apresentou em 100% dos casos, diferindo apenas no ponto de início (timing) da antecipação (total ou parcial). Conclusão A partir da investigação do detalhe fonético sobre dados de falantes de Florianópolis/SC, sugerimos o conjunto mais idedigno de parâmetros para análise acústica da consoante nasal palatal do PB. Pelo espectrograma, observamos a energia (escurecimento e clareamento) e, pelas análises FFT e cepstral, observamos a amplitude das frequências mais altas. Dessa forma, constatamos que a consoante nasal palatal não apresenta uniformidade nas características acústicas, ocorrendo uma gradiência fônica nas produções, desde a consoante nasal palatal propriamente dita até a produção vocálica nasalizada. Por meio da análise aerodinâmica, conseguimos estabelecer quatro conigurações aerodinâmicas distintas de curvas de FAN para a consoante nasal palatal do PB. A relação entre tipos acústicos e conigurações aerodinâmicas deve ser aprofundada a im de auxiliar em uma possível direção na caracterização de sons nasais gradientes em futuras pesquisas, considerando o presente estudo como uma primeira contribuição acústicoaerodinâmica sobre a consoante nasal palatal do PB. 550 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 Os resultados da análise aerodinâmica evidenciam a presença do fenômeno de antecipação da nasalidade na vogal que precede a consoante nasal palatal, bem como do fenômeno de nasalização progressiva, com propagação da nasalidade para a vogal seguinte, tanto em contexto átono (postônico) quanto tônico. Concluímos, ainda, que a antecipação da nasalidade pode ocorrer de modo variado, temporalmente, na vogal precedente: desde seu início (antecipação total) ou começar um pouco depois do seu início (antecipação parcial). Esse pode ser um aspecto aerodinâmico a ser melhor investigado para sinalizar uma produção mais consonantal ou mais vocálica. A partir dos resultados obtidos, podemos dizer que o uso do captador piezo-elétrico permitiu descrever conigurações e interagir com os dados acústicos no estudo de aspectos temporais e qualitativos da nasalidade do PB, avançando no entendimento sobre a consoante nasal palatal. Agradecimentos À equipe de pesquisadores do Laboratoire de Phonétique et Phonologie, da Université Paris III – Sorbonne Nouvelle, em Paris/França. Ao CNPQ pela bolsa de produtividade. Ao Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina - UNIEDU/ FUMDES da Diretoria de Educação Superior (DIES) da Secretaria de Estado da Educação (SED). Aos pareceristas anônimos desta Revista pela leitura rigorosa e pelos comentários ao texto original que certamente contribuíram para uma versão mais adequada do artigo. Salientamos, no entanto, que as inadequações remanescentes são de nossa inteira responsabilidade. Referências ALTMANN, E. B. C. Anatomia e isiologia do esfíncter velofaríngico. In: ALTMANN, E. B. C. (Org.). Fissuras Labiopalatinas. São Paulo: Pró-Fono, 2007. p. 133-153. AMELOT, A. Étude aérodynamique, fibroscopique, acoustique et perceptive des voyelles nasales du français. 2004. 203f. Tese (Doutorado) - Université Paris III – Sorbonne Nouvelle, Paris, 2004. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 551 BASSET, P.; AMELOT, A.; CREVIER-BUCHMAN, L. Etude multiparamétrique des consonnes nasales du français: prise de données simultanées aérodynamiques et ibroscopiques. Parole, 2007. halshs-00139540, version 1, 2 Apr., 2007. BASSET, P.; AMELOT, A.; VAISSIÈRE, J.; ROUBEAU, B. Nasal airflow in French Spontaneous Speech. Journal of the International Phonetic Association, v.31, n.1, p. 87-100, 2001. https://doi.org/10.1017/ S0025100301001074. BELL-BERTI, F. Understanding Velic Motor Control: Studies of Segmental Context. In: HUFFMAN, M. K.; KRAKOW, R (Ed.). Nasals, Nasalization and the Velum. San Diego: Academic Press, 1993. p. 63-85. https://doi.org/10.1016/B978-0-12-360380-7.50007-7. BOERSMA, P.; WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer. Amsterdam: Universidade de Amsterdam. Disponível em: <http://www. praat.org>. Acesso em: 2011. BRKAN, A.; AMELOT, A.; PILLOT-LOISEAU, C. Utilisation d’un accéléromètre piézoélectrique pour l’étude de la nasalité du Français Langue Etrangère. Actes de la conférence conjointe JEP-TALN-RECITAL, v. 1, p. 689-696, 2012. CROWLEY, T.; BOWERN, C. An introduction to historical linguistics. 4 ed. New York: Oxford University press, 2010. FANT, G. Nasal Sounds and Nasalization In: Acoustical Theory of Speech Production. The Hague: Mouton, 1960. p. 140-161. FERNANDES, J. Segurança nas vibrações sobre o corpo humano. Disponível em: <http://wwwp.feb.unesp.br/jcandido/>. Acesso em: nov. 2014. FREITAS, G. C. M. Sobre a aquisição das plosivas e nasais. In: LAMPRECHT, R. R. et al. Aquisição fonológica da português: peril de desenvolvimento e subsídios para terapia. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 73-82. PMid:15367772. GAMBA, P. A. A consoante nasal palatal no português brasileiro. 2011. 58f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Letras) Universidade Federal de Santa Catarina, 2011. 552 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 GAMBA, P. A. As soantes palatais no português: uma caracterização fonético-fonológica. 2014. 144f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2014. HOUSE, A.; STEVENS, K. Analog studies of nasal consonants. Journal of Speech and Hearing Disorders, v. 22, p. 190-204, 1957. https://doi. org/10.1044/jshd.2202.190. PMid:13429662. KELLER, E. Fundamentals of phonetic Science. In: KELLER, E. (Ed.). Fundamentals of speech synthesis and speech recognition. New York: John Wiley & Sons, 1999. p. 5-21. MEDEIROS, B. R.; D’IMPERIO, M.; ESPESSER, R. O apêndice nasal: dados aerodinâmicos e duracionais. Revista do GEL, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 123-138, 2008. MENDONÇA, C. S. I. de; SEARA, I. C. Análise aerodinâmica da nasalidade coarticulatória no falar lorianopolitano. Revista Domínios de Linguagem, v.9, n.5, p. 83-104, 2015. https://doi.org/10.14393/ dle-v9n5a2015-5. MORAES, J. A. Produção e percepção das vogais nasais. In: CASTILHO, A. T. (Coord.); ABAURRE, M. B. M. M (Org.). Gramática do português culto falado no Brasil - volume VII: a construção fonológica da palavra. São Paulo: Contexto, 2013. p. 95-112. SEARA, I. C. Estudo acústico-perceptual da nasalidade das vogais do português brasileiro Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis (SC), 2000. SEARA, I. C.; BERRI, A. R. Vogais nasais do francês: observações sobre falantes nativos e aprendizes de FLE. Fórum Linguístico,Florianópolis, v.6. n.1, p. 91-104, jan.-jun., 2009. https://doi.org/10.5007/19848412.2009v6n1p91. SEARA, I. C.; NUNES, V. G.; LAZZAROTTO-VOLCÃO, C. Fonética e fonologia do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2015. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2010. SOUSA, E. Para a caracterização fonético-acústica da nasalidade no Português do Brasil. 1994. 180f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, 1994. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 515-553, 2017 553 VAISSIÈRE, J. Nasalité et phonétique, Le voile du palais et la parole. In: Conférence Tutorielle Invitée, Colloque sur le voile pathologique, Mai. 1995, Lyon, publié par la Société Française de Phoniatrie de la Société d’Acoustique, 1996. VAISSIÈRE, J.; HONDA, K.; AMELOT, A.; MAEDA, S.H.; CREVIERBUCHMAN, L. Multisensor platform for speech physiology research in a phonetics laboratory. The Journal of the Phonetic Society of Japan, v.14, n.2, p. 65-78, 2010. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 Motivações semântico-pragmáticas para a ordenação dos argumentos na construção ditransitiva Semantic-pragmatic motivations for argument ordering in the ditransitive construction Maria Angélica Furtado da Cunha Universidade Federal do Rio Grande do Norte angefurtado@gmail.com Resumo: O objetivo deste artigo é demonstrar que, embora a construção ditransitiva do PB possa ser instanciada por dois padrões sintáticos que expressam o mesmo conteúdo, eles diferem em termos discursivo-pragmáticos. Nesse sentido, esses padrões constituem diferentes possibilidades de instanciação da mesma construção, e não duas construções distintas. A análise segue os pressupostos teóricometodológicos da Linguística Funcional Centrada no Uso e da Gramática de Construções. Em termos de metodologia, a investigação conjuga elementos quantitativos e qualitativos na investigação da construção ditransitiva. A fonte dos dados é o Corpus Discurso & Gramática. O exame do material empírico comprovou que as alternativas de ordenação dos argumentos da construção ditransitiva do PB sinalizam diferentes perspectivações do evento referencial. Fatores discursivo-pragmáticos, semânticos e gramaticais motivam a preferência pela ordenação do objeto indireto antes do objeto direto nessas orações. Palavras-chave: construção ditransitiva; argumentos; motivações. Abstract: This paper aims at demonstrating that, although the ditransitive construction in Brazilian Portuguese can be instantiated by two syntactic patterns, which express the same content, they differ in discourse-pragmatic terms. In this sense, these patterns are not two different constructions, but eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.555-584 556 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 different possibilities of instantiating the same construction. The analysis follows the theoretical and methodological principles of both Linguística Funcional Centrada no Uso and Construction Grammar. In terms of methodology, the investigation joins quantitative and qualitative elements in the investigation of the ditransitive construction. The database for the study is the Corpus Discurso & Gramática. The analysis of the data has proved that the ordering of the ditransitive construction arguments points to different construals of the referential event. Pragmatic, semantic and grammatical elements motivate the preference for the ordering of the indirect object before the direct object in these clauses Keywords: ditransitive construction; arguments; motivations. Recebido em: 22 de novembro de 2015. Aprovado em: 3 de agosto de 2016. 1 Introdução A construção ditransitiva do inglês é descrita como um pareamento forma-signiicado cujo sentido central é “agente faz com que o recipiente receba o tema”, codiicado como S V O1 O2 (GOLDBERG, 1995; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013). No português do Brasil (PB), a construção ditransitiva1 tem o mesmo signiicado básico do inglês e do espanhol (GARCÍA-MIGUEL; COMESAÑA, 2004), ou seja, o signiicado de transferência associado a verbos de oferecimento, cujo protótipo é dar. Contudo, enquanto no inglês o O1 – o recipiente da ação verbal – é codiicado como um SN no slot imediatamente posterior ao verbo e antes do O2, no PB, o recipiente é preferencialmente codiicado antes do objeto direto (OD), como um pronome em posição pré ou pósverbal ou como um sintagma preposicional (SPrep) em posição pósverbal. Desse modo, se considerarmos a posição do objeto indireto (OI) em relação ao OD, temos dois padrões sintáticos diferentes associados ao mesmo signiicado central: um em que o OI precede o OD e outro em que 1 A construção ditransitiva também é denominada construção dativa em trabalhos sobre o português ou sobre o inglês, quando o recipiente é codiicado como Sintagma Preposicional. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 557 o OD antecede o OI.2 Há, então, duas estruturas diferentes codiicando o mesmo domínio funcional, a saber, a expressão do signiicado de um evento de transferência. Ao examinar as construções de estrutura argumental do inglês, Goldberg (1995) formula o Princípio da Não Sinonímia de Formas Gramaticais,3 o qual estabelece que se duas construções são sintaticamente distintas, tais construções devem ser também distintas semântica ou pragmaticamente. A linguista esclarece que os aspectos pragmáticos das construções envolvem peculiaridades relativas à estrutura da informação, como tópico e foco, e fatores estilísticos, como registro. Este trabalho tem como objeto de estudo a construção ditransitiva e os padrões que a instanciam no português do Brasil. O objetivo é demonstrar que, embora os dois padrões que analiso expressem o mesmo conteúdo, eles diferem em termos pragmáticos. Nesse sentido, esses padrões constituem diferentes possibilidades de instanciação da mesma construção, e não duas construções distintas. Este artigo não pretende explicar a diferença entre a estrutura OI com pronome e a estrutura OI com SPrep, mas a ordenação do OI em relação ao OD. É importante salientar que a construção ditransitiva é deinida aqui como uma construção que consiste em um verbo que denota a transferência de uma entidade (T) de um agente (A) para um recipiente (R). Essa deinição leva em conta o signiicado da construção, sendo irrelevante a manifestação formal de seus argumentos (MALCHUKOV; HASPELMATH; COMRIE, 2010). Nesse sentido, a construção ditransitiva é totalmente esquemática, já que não há material léxico especiicado em sua representação. Em termos de metodologia, a análise conjuga elementos quantitativos e qualitativos na investigação da construção ditransitiva. A fonte dos dados é o Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998), do Rio de Janeiro (VOTRE e OLIVEIRA, 1998a) e de Niterói (VOTRE e OLIVEIRA, 1998b). Foram examinados dois tipos textuais, a saber, A sigla OI refere-se aos dois tipos de codiicação – pronome ou SPrep – do objeto indireto em português. 3 Trabalhos anteriores também abordam a questão da sinonímia, ou a correlação entre forma e função, como Bolinger (1968), Givón (1985), Haiman (1985) e Langacker (1987), por exemplo. 2 558 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 narrativas e relatos de procedimento, nas modalidades falada e escrita, produzidos por estudantes do terceiro ano do ensino médio e estudantes universitários do último semestre.4 A escolha desses tipos textuais se justiica pelo maior ocorrência de instanciações da construção sob análise. Os outros tipos textuais que compõem o corpus – descrição e relato de opinião – não apresentaram um número signiicativo de exemplares. São contadas as frequências type e token (BYBEE, 2010) da construção ditransitiva, que são examinadas à luz de parâmetros como papel semântico, estatuto informacional, complexidade gramatical e ordenação dos argumentos. A exposição está dividida em cinco seções. Após a introdução, são explicitadas as bases teóricas que dão suporte à investigação. Na sequência, descrevo o objeto de pesquisa e suas manifestações discursivas. A seguir, apresento as questões que norteiam o trabalho. Na seção 5, analiso o objeto indireto, com ênfase em aspectos semânticos e discursivo-pragmáticos. Fecho com as Considerações Finais. 2 Alinhamento teórico A análise da construção ditransitiva segue os pressupostos teóricometodológicos da Linguística Funcional Centrada no Uso5 (FURTADO DA CUNHA et al., 2013) e da Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995; CROFT, 2001; TRAUGOTT; TROUSDALE, 2013). A Linguística Funcional Centrada no Uso parte do princípio de que a estrutura da língua emerge à medida que esta é usada (BARLOW; KEMMER, 2000; BYBEE, 2010). A aparente regularidade e a instabilidade da língua são motivadas e modeladas pelas práticas discursivas dos usuários no cotidiano social (FURTADO DA CUNHA; TAVARES, 2007). Busca, pois, descrever e interpretar os fatos linguísticos com base nas funções (semântico-cognitivas e discursivo-pragmáticas) que desempenham nos diversos contextos de uso da língua, integrando sincronia e diacronia, numa abordagem pancrônica (BYBEE, 2010). O Corpus Discurso & Gramática permite uma comparação coniável entre os mecanismos de codiicação da fala e da escrita já que o mesmo estudante produz o mesmo texto sobre o mesmo assunto nas versões oral e escrita. 5 A Linguística Funcional Centrada no Uso corresponde, em termos teóricos, metodológicos e epistemológicos ao que Bybee (2010) denomina Usage-based Linguistics. 4 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 559 Sob esse viés teórico, a gramática é produto da estruturação de aspectos sócio-comunicativos e cognitivos da linguagem. Nesses termos, toma o fenômeno linguístico como processo e produto da interação humana, da atividade sociocultural (THOMPSON; COUPER-KUHLEN, 2005). A língua é concebida como um sistema adaptativo complexo, uma estrutura plástica, constituída, ao mesmo tempo, de padrões mais ou menos regulares e de outros que emergem, em virtude de necessidades cognitivas e/ou comunicativas (BYBEE, 2010). O sistema linguístico tem natureza eminentemente dinâmica, já que surge da adaptação das habilidades cognitivas humanas a eventos de comunicação especíicos e se desenvolve com base na repetição ou ritualização desses eventos. Alguns dos fatores considerados nas análises são os efeitos da frequência de uso, os processos cognitivos envolvidos, a modelagem das estruturas linguísticas no contexto discursivo e as inferências pragmáticas que acompanham a língua na interação. Formulada no quadro da Linguística Cognitiva, a Gramática de Construções (GC) defende o pressuposto de que a língua é constituída de pareamentos forma-signiicado, as chamadas construções, organizados em uma rede (GOLDBERG, 2006; LANGACKER, 2008). Nesse sentido, todas as unidades da língua são simbólicas – desde morfemas simples, passando por expressões idiomáticas, estruturas sintáticas (GOLDBERG 1995, 2006), até padrões textuais (ÖSTMAN; FRIED, 2005). Logo, o conceito de construção dá conta de um grande número de unidades linguísticas, dispostas num continuum, de modo que a distinção entre elas é gradiente e não discreta. Há diferentes modelos linguísticos que seguem a abordagem construcional. Embora esses modelos não sejam idênticos, eles se unem em torno dos seguintes princípios gerais, compartilhados por todos: a unidade básica da gramática é a construção; a estrutura semântica é projetada diretamente na estrutura sintática; a língua, como outros sistemas cognitivos, é uma rede de nós e elos entre os nós; as associações entre esses nós são representadas na forma de hierarquias de herança; a estrutura da língua é moldada pelo uso. A Linguística Funcional Centrada no Uso e a Linguística Cognitiva compartilham vários pressupostos teórico-metodológicos, como a rejeição à autonomia da sintaxe, a incorporação da semântica e da pragmática às análises, a não distinção estrita entre léxico e gramática, a relação estreita entre a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem 560 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 delas nos contextos reais de comunicação, o entendimento de que os dados para a análise linguística são enunciados que ocorrem no discurso natural, só para citar alguns. A gramática é vista como representação cognitiva da experiência dos indivíduos com a língua; portanto, ela pode ser afetada pelo uso linguístico. Assume-se, pois, que a categorização conceptual e a categorização linguística são análogas, ou seja, o conhecimento do mundo e o conhecimento linguístico seguem, essencialmente, os mesmos padrões (TAYLOR, 1998; FURTADO DA CUNHA et al., 2015). Sendo a categorização o processo cognitivo mais básico, por meio dela são estabelecidas as unidades da língua, seu signiicado e sua forma (BYBEE, 2010). De acordo com essa visão, as línguas são moldadas pela interação complexa de princípios cognitivos e interacionais que desempenham um papel crucial na mudança linguística, na aquisição e no uso da língua. Assim, a língua(gem) constitui um mosaico complexo de atividades comunicativas, cognitivas e sociais estreitamente integradas a outros aspectos da psicologia humana (TOMASELLO, 1998). Uma tese central da Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995) é que as orações simples são instâncias de construções de estrutura argumental, pareamentos de forma-signiicado que não dependem de verbos particulares. Esse entendimento é compartilhado por diferentes linguistas que adotam a abordagem construcional. As construções de estrutura argumental, que expressam cenas dinâmicas do mundo biossocial, são uma subclasse especial de construção que fornece os meios de expressão oracional em uma língua. Em relação à estrutura argumental, o objetivo da GC é demonstrar que há atributos comuns entre predicados em construções especíicas. As construções são padrões que existem independentemente dos predicados lexicais e dos argumentos que estes tomam. A língua é aprendida em chunks6 (BYBEE, 2010), e as construções são pares de forma e função (semântica, pragmática e/ou discursiva), aprendidas no uso, as quais variam em constituição (esquemáticas, parcialmente esquemáticas ou totalmente especiicadas), tamanho, forma e complexidade. As 6 Chunk refere-se a sequências de palavras ou estruturas complexas que são acessadas como um todo, devido à co-ocorrência frequente dos elementos que as constituem. Essas estruturas correspondem a construções e expressões formulaicas, como marcar consulta e efeito colateral, por exemplo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 561 construções de estrutura argumental, organizadas em torno de um determinado tipo sintático-semântico de verbo, formam um grupo de construções abstratas, que se relacionam em uma rede construcional. A proposta de Traugott e Trousdale (2013) contempla um sistema hierárquico organizado em três níveis: os esquemas são generalizações de nível mais alto, mais abstrato; os subesquemas, menos esquemáticos do que os esquemas, estão ligados ao sentido central da construção; as micro-construções representam tipos individuais de construção. As microconstruções são instanciadas por construtos (tokens), ocorrências empiricamente atestadas, instâncias de uso em uma ocasião particular, produzidas por um falante particular com um propósito comunicativo particular. Interessado especialmente na relação entre descrição gramatical e tipologia linguística, Croft (2001) argumenta que as construções são especíicas à língua e as categorias são deinidas com relação a uma língua em termos das construções em que elas ocorrem. Assim, “verbo ditransitivo”, por exemplo, é uma categoria na construção ditransitiva do português. Nesse modelo, portanto, a construção tem signiicado próprio, esquemático, parcialmente independente das palavras que a compõem, servindo, pois, como um esquema ou modelo que reúne o que é comum a um conjunto de elementos da mesma natureza (GOLDBERG, 1995). Signiicado compreende propriedades semânticas, pragmáticas e/ou discursivas relacionadas a uma determinada coniguração estrutural, ou seja, todos os aspectos convencionalizados da função da construção, incluindo as particularidades da situação descrita no enunciado, as propriedades do discurso em que este ocorre e o próprio contexto de uso (CROFT, 2001). Cada um dos padrões formais e seu significado associado forma uma construção. Assim, não há uma divisão estrita entre léxico e gramática. Quando falamos, selecionamos do léxico itens lexicais e construções, que contribuem, cada um deles, com um componente de signiicado, e os fundimos de uma maneira que pode ser inteiramente inovadora, lexicalizada em alguma medida, ou mesmo totalmente idiomática. As construções são adquiridas através de um processo de categorização baseado em instâncias aprendidas, de modo que padrões frequentes no uso interacional da língua são estocados como parte do repertório linguístico do falante. 562 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 O formato das construções relete o mapeamento entre sintaxe e semântica. Além da estrutura sintática, uma construção deve especiicar papéis argumentais, tais como agente, paciente e recipiente, assim como a interação semântica entre esse papéis. As construções também devem restringir as classes de verbos que podem ser integradas nelas (por exemplo, verbos de transferência, de movimento etc.), e deve especiicar o modo como o tipo de evento verbal se relaciona ao tipo de evento da construção. O padrão sintático e as especiicações semânticas de uma construção são, em princípio, independentes dos verbos que podem ser fundidos com ela, embora o evento evocado pelo verbo contribua para a interpretação da oração. Na mesma linha, Tomasello (2003) se refere à concepção de construções linguísticas como esquemas cognitivos, isto é, procedimentos relativamente automatizados para atingir determinados objetivos comunicativos. Para esse autor, os formatos oracionais são motivados pela cognição humana, por meio do modelo de evento, e pela comunicação, mediante os objetivos e necessidades comunicativas dos interlocutores. A frequência de ocorrência de um dado formato serve para ixá-lo no repertório do falante e torná-lo uma unidade de processamento. 3 Instanciações da construção ditransitiva No corpus sob análise, foram encontradas 380 ocorrências (312 na fala e 68 na escrita) de orações cujos verbos são acompanhados por um elemento tradicionalmente classiicado como objeto indireto mais SN objeto direto. Esses verbos triargumentais são do tipo semântico de ação-processo (CHAFE, 1970; BORBA, 1996), pois denotam uma ação em que um sujeito animado, intencional, causa uma mudança no estado ou na localização do paciente, como no fragmento: (1) ... então eu observei isso em uma pessoa ... aí a gente queria entregar o prêmio a essa pessoa ... (D&G/Natal, p. 180, fala) Os verbos de ação-processo representam um típico evento de transferência, em que um agente animado (Sujeito) transfere (= afeta, causando a mudança de localização ou de estado) um elemento paciente (Objeto Direto) para uma entidade humana recipiente (Objeto Indireto). No corpus examinado, foram atestadas 105 ocorrências (tokens) de verbos de transferência, distribuídas em 16 tipos (types), com 78 casos na Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 563 fala e 27 na escrita. Entre esses, o mais frequente (45 ocorrências, 42% do total) é dar, que representa o verbo de transferência prototípico. A prototipicidade de dar se deve ao fato de que sua semântica lexical (i.e., sua moldura semântica) é idêntica à semântica da construção ditransitiva. A postulação desse sentido central se justifica porque ele envolve transferência concreta, e não metafórica ou abstrata e, como já demonstrado diacrônica (TRAUGOTT, 1988; SWEETSER, 1990) e sincronicamente (LAKOFF; JOHNSON, 1980), signiicados concretos são mais básicos. Vejam-se alguns dados: (2) ... Quando o paciente e particular, ou seja, a consulta, o mesmo paga a consulta eu dou-lhe o recibo e, em seguida, o paciente se consulta [...] (D&G/Natal, p. 268, escrita) (3) tá lembrado dos detalhes da ... da tela que você me presenteou? (D&G/Natal, p. 152, fala) As orações ditransitivas coletadas têm duas variações principais quanto à ordenação do objeto indireto em relação ao objeto direto. Assim, podemos ter dois padrões sintáticos: o OI é codiicado antes do OD como um pronome em posição pré ou pós-verbal (4a) ou como um SPrep em posição pós-verbal (4b); o OI segue o OD, codiicado como um SPrep após o verbo (5a) ou como um pronome antes do verbo (5b), conforme as amostras que seguem: (4) a. ... aí o garçom estava sabendo que eles estavam querendo me sacanear ...” desculpe a expressão ... aí pegou/ me deu ... o ... o garinho de sobremesa ... (D&G/Niterói, fala) b. A minha amiga viu 2 lugares na frente e abriu a bolsa para pegar o dinheiro da passagem, até que o homem em voz baixa chamou a sua atenção, mostrou-lhe uma pequena arma e disse para ela passar para ele, o dinheiro, relógio e pulseira. (D&G/Rio, escrita) (5) a. mas aí ele insistiu muito pra icar ... esses dias com ele ... aí ela disse que cobrava tanto ... se eu num me engano é assim ... que ela cobrava ou então ... depois que ele deu o dinheiro a ela ... mas parece que ela ... cobrou ... (D&G/Natal, fala, p. 241) 564 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 b. Entrevistador: você tá lembrado dos detalhes da ... da tela que você me presenteou? Informante: mais ou menos ... já faz tanto tempo ... é um bosque ... (D&G/Natal, fala, p. 152) Esses padrões se manifestam tanto nas instanciações da construção ditransitiva que conceitualizam um evento de transferência concreta, de posse (sentido central) quanto naqueles que expressam uma atividade que pode ser metaforicamente interpretada como um evento de transferência (FURTADO DA CUNHA, 2015). No primeiro caso, temos verbos como dar, presentear e passar, entre outros. No corpus investigado, além dos verbos diretamente vinculados ao sentido central da construção ditransitiva, foram encontrados outros que se afastam, em alguma medida, desse sentido, como oferecer (6), deixar (7) e fazer (8), relacionados ao grau de êxito da transferência. Note-se que a oração em que ocorrem se conforma ao padrão S V OD OI. (6) ... “você num me oferece esse lugar não?” (D&G/Natal, p. 106, fala) (7) ... ela acabou tomando comprimido e tudo pra morrer e nisso ele descobre e ela deixou um bilhete pra ele e qualquer coisa assim ... (D&G/Natal, p. 183, fala) (8) ... então icou naquele negócio ... ela fazia as cartas pra pessoa que ela gostava e ainda tinha que responder de novo pra amiga ... (D&G/Natal, p. 183, fala) A oração ditransitiva em (6) corresponde ao sentido B postulado por Goldberg (1995): condições de satisfação implicam que o agente faz com que o recipiente receba o paciente. A transferência só se completa se o recipiente aceitar o oferecimento. No segmento em (7), o verbo deixar, usado numa coniguração ditransitiva, aproxima-se do sentido D: agente age para fazer com que o recipiente receba o paciente em algum ponto no futuro. O verbo fazer, codiicado com ditransitivo em (8), está relacionado ao sentido F de Goldberg: agente tenciona fazer com que o recipiente receba o paciente. Com verbos de criação, como fazer, não há certeza ou garantia de que o recipiente necessariamente receberá o objeto criado pelo agente com essa intenção. Como se pode ver, a Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 565 construção ditransitiva se associa a uma família de sentidos distintos mas relacionados, formando uma rede, conforme prevê a Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995). A Figura 1 exempliica a hierarquia construcional da construção ditransitiva. Esquema (X causa Y receber Z) Subesquema1 (Sentido A) Microconstrução1 (V do tipo de dar) eu dou-lhe o recibo Subesquema2 (Sentido B) Subesquema3 (Sentido D) Microconstrução2 Microconstrução3 (V do tipo de oferecer) (V do tipo de deixar) você num me oferece esse lugar não? ela deixou um bilhete pra ele Subesquema4 (Sentido F) Microconstrução4 (V do tipo de fazer) ela fazia as cartas pra pessoa FIGURA 1: Hierarquia construcional da CD O exame dos dados evidencia que a construção ditransitiva pode associar-se a um conjunto de sentidos diferentes, mas relacionados, para cobrir um amplo âmbito de signiicados. As extensões a partir de uma construção básica são motivadas e são adquiridas como parte do nosso conhecimento da língua. Cabe observar que, nos subesquemas dessa construção, a transferência é restringida de algum modo, e portanto eles podem ser considerados como extensões polissêmicas da CD. Logo, os elos polissêmicos dizem respeito ao nível dos subesquemas, não ao nível das microconstruções. Em termos de esquematicidade, [[S V OD OI] ⇔ [X causar Y receber Z]] é mais esquemático do que o subesquema [[S fazer OD OI] ⇔ [X Tencionar Y receber Z]], já que o primeiro generaliza sobre verbos (V), enquanto o segundo especiica um verbo particular (fazer) com posições gerais. Quanto à transferência abstrata, a construção ditransitiva sanciona verbos do tipo dicendi (dizer, contar, falar etc.), em que aquilo que é dito (OD efetuado)7 é transferido para um interlocutor (OI recipiente), 7 O objeto direto de um verbo de enunciação, como contar, é criado pela ação do verbo, e não transformado, como acontece com o objeto dos outros verbos de ação-processo. Hopper (1985) chama esse caso de objeto efetuado, para distingui-lo de objeto afetado. 566 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 como em (9). Por meio de uma metáfora comum, a fala sairia, como em movimento, de um falante para um ouvinte; o ouvinte é o destino inal da ação.8 Daí servirmo-nos da preposição para em construções coloquiais como ele falou isso para mim. No corpus, os verbos dicendi correspondem a 279 dados, 238 na fala e 41 na escrita, distribuídos em 17 tipos. O mais frequente é o verbo contar, com 160 ocorrências (57%)9. Seguem alguns dados: (9) então seu amigo começou a dá em cima dela, mais ela não aceitou, mas seu amigo contou-lhe uma estória mentirosa ... (D&G/Natal, p. 266, língua escrita) (10) ele passou muitos dias assim ... sabe? aéreo ... [...] e num dizia pra onde ia ... saía sem camisa ... ia pro supermercado fazer feira ... ia assim por instinto ... sabe? num dizia nada pra ninguém ... (D&G/Natal, p. 224, língua falada) (11) ele começou a ver de novo esse cara e falou pra esse velho também que tava vendo esse cara e começou a falar né ... (D&G/Natal, p. 30, língua falada) É possível, portanto, agrupar os verbos de transferência (dar, entregar, oferecer, mostrar, por exemplo) com os verbos dicendi10 (dizer, contar, perguntar, pedir) na medida em que, semanticamente, eles compartilham o mesmo conjunto de papéis participantes: agente, paciente e recipiente. Em outras palavras, esses verbos têm a mesma Esse é um caso de metáfora do conduto, deinida por Reddy (1979). Ela opera quando o falante “insere” seu conteúdo mental (ideias, signiicados, conceitos etc.) em recipientes (palavras, frases, orações etc.), cujo conteúdo é então “extraído” pelo seu interlocutor para que a unidade linguística seja interpretada. 9 A recorrência de verbos dicendi está relacionada ao tipo de amostra examinada: entrevista semiplanejada em que o informante é estimulado a narrar experiências pessoais ou estórias que leu ou ouviu. Daí a alta frequência de verbos como contar, dizer, falar. Contar, especiicamente, ocorre toda vez que uma entrevista começa, quando a entrevistadora estimula o estudante a produzir seu discurso: “eu queria que agora você me contasse uma história que tenha acontecido com você”. 10 Haspelmath (2015) refere-se aos verbos dicendi como verbos de transferência cognitiva. 8 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 567 estrutura argumental ou a mesma moldura semântica e, portanto, estão incluídos no domínio ditransitivo.11 A noção de construção pode explicar o agrupamento dos verbos de transferência concreta (dar, entregar, oferecer, etc) e os verbos dicendi, de transferência metafórica (dizer, contar, falar, etc). Segundo Goldberg, a construção é um pareamento forma-signiicado que não depende de verbos particulares. Em outras palavras, a própria construção tem signiicado, independentemente das palavras que a constituem, servindo como um esquema que reúne o que é comum a um conjunto de predicados. Sob essa abordagem, a interpretação total de uma oração depende do sentido da construção e do signiicado do verbo que está integrado nessa oração.12 Há, pois, uma relação icônica entre estrutura conceptual (representada pelo evento de transferência) e estrutura linguística (oração ditransitiva). Para Givón (2001), o fato de que os tipos de oração e sua estrutura argumental característica são, em grande medida, deter- minados pela classe semântica – e também sintática – do verbo exempliica a vinculação isomórica entre forma e função. 4 Correlação forma-função na construção ditransitiva Do total de 380 orações ditransitivas, 30 (8%) têm objetos anafóricos, situação em que não se pode determinar a ordenação do OI ou do OD, como segue: Outros autores (BERLINCK, 1996; MATEUS et al., 2003, por exemplo) também agrupam os verbos ditransitivos em termos dos papéis temáticos dos seus argumentos. 12 A rede hierárquica para a CD parece ser semanticamente mais complexa do que a apresentada na Figura 1. No corpus investigado, foi esse o padrão de polissemia encontrado. É possível que a ampliação do material de análise permita veriicar outras instanciações dessa construção. A esse respeito, ver Soares da Silva (2006). 11 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 568 TABELA 1 Objetos indireto e direto anafóricos TRANSF. CONCRETA TRANSF. ABSTRATA TOTAL OI ANAF. 1 1 2 OD ANAF. 13 15 28 TOTAL 14 16 30 Descartando os casos de objeto anafórico, em termos quantitativos, a análise do corpus forneceu os seguintes resultados: TABELA 2 Ordenação do OI em relação ao OD TRANSF. CONCRETA TRANSF. ABSTRATA TOTAL OI OD 41 105 146 (42%) SPrep OD 4 100 104 (30%) OD OI 4 19 23 (6%) OD SPrep 38 39 77 (22%) TOTAL 87 263 350 (100%) Se considerarmos somente a posição do OI e do OD, independentemente da codiicação morfológica do OI (SN pronominal ou SPrep), 250 (71%) dos dados apresentam a ordenação OI OD, enquanto 100 (29%) têm ordenação OD OI. As 30 (8%) orações restantes dão conta dos casos de objeto direto ou indireto anafóricos. Nota-se, portanto, uma preferência acentuada pelo posicionamento do objeto indireto antes do direto. Tendo em vista as manifestações diversiicadas da construção ditransitiva no PB e acatando a hipótese da não sinonímia, a questão que se coloca é: por que tal variação ocorre? Essa pergunta envolve duas outras estreitamente relacionadas: (i) que fatores motivam a escolha de uma ordem ou outra? (ii) a que função ou funções a ordenação dos participantes serve? Para responder a primeira questão, focalizo o Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 569 status informacional, o papel semântico e a complexidade gramatical de OI e OD e sua inter-relação. Quanto à(s) função(ões) das diferentes ordenações, considero as vantagens em termos de produção do falante e recepção do ouvinte. 5 Comportamento semântico e pragmático do OI Nesta seção, vou observar mais detidamente o comportamento semântico e pragmático do OI das orações ditransitivas coletadas no corpus D&G.13 De um ponto de vista semântico, em 378 (99%) das orações examinadas, o SPrep é humano (1-6, p. ex.). No fragmento em (12), porém, o verbo dar é usado no sentido de transferência metafórica, em que o OD (uma ideia de volume) é “movido” para o SPrep (a essa onda), que se afasta do recipiente típico, na medida em que não é humano ou, ao menos, animado. Temos, aqui, o papel semântico meta. (12) ... falta algumas ... alguns detalhes nesse mar ... é:: dá um ... falta ... dar uma idéia de volume a essa onda ... o é:: talvez você jogar um azul da prússia aqui mais forte ... um mais claro ali ... e um mais claro ali ... você consiga ... (D&G/Natal, p. 135, fala) Assim, apesar de a oração conformar-se ao padrão estrutural S V OD SPrep, ela se desvia do sentido prototípico da construção ditransitiva porque seus argumentos não desempenham os papeis temáticos previstos para ela. Nesse sentido, a implicação de transferência não é um fato independente das palavras envolvidas, mas resulta diretamente da própria construção ditransitiva. É interessante observar que, mesmo um verbo prototípico da construção ditransitiva, como é o caso de dar, pode originar usos produtivos mais metafóricos, desde que o sentido central de transferência entre um agente intencional e um recipiente “acolhedor/receptivo” se mantenha. A esse propósito, veja-se: Em sua análise translinguística da construção ditransitiva, Haspelmath (2015) argumenta que o comportamento dos dois argumentos – recipiente e tema – é muito variável, tanto dentro da mesma língua quanto em línguas diferentes. 13 570 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 (13) Eu tive uma crise de garganta muito grande, daquelas, que eu não podia engolir a saliva e nessa fase ele me deu muito apoio e eu pude retribuir quando ele teve catapora, [...]. (D&G/Natal, p. 266, escrita) Na oração ditransitiva em (13), o sujeito (ele) age intencionalmente de modo que o referente do objeto indireto (me) “receba” o SN muito apoio, concebido como uma entidade concreta. Temos, aqui, um chunk (BYBEE, 2010), em que ‘X dar apoio a Y’ se ixou a partir da frequência de uso de dar seguido de apoio. Embora a expressão dar apoio seja relativamente ixa, suas partes internas ainda são identiicáveis, o que se evidencia pela possibilidade de acrescentar modiicadores entre elas (muito apoio). Vale observar que as construções com dar, como em (13), em que esse verbo atua como verbo-suporte ou verbo-leve (NEVES, 1996, 2000; TROUSDALE, 2008; CASTILHO, 2010, entre outros) apresentam graus variáveis de idiomaticidade.14 Na grande maioria dos dados, o OI desempenha o papel temático de recipiente da ação denotada pelo verbo, como se pode ver nos fragmentos de (1-6). Esse resultado não surpreende, já que o evento de transferência evoca um recipiente humano capaz de receber a coisa transferida. No entanto, à medida que o verbo da oração se afasta do sentido central da construção ditransitiva, o SPrep não se comporta como um recipiente prototípico. Observe-se o dado (14): (14) ... nesse dia não houve aula e o professor me chamou pra fazer uma limpeza geral no laboratório ... chegando lá ... ele me fez uma experiência ... (D&G/Natal, p. 50, fala) A moldura semântica de fazer não implica um recipiente, já que esse verbo não designa, necessariamente, um evento de transferência; contudo, ele pode ser usado numa oração ditransitiva, como em (14). Assim, esse participante “adicional” não tem status argumental, não é 14 Nas construções com dar mais ou menos idiomáticas, resultado do processo de chunking (BYBEE, 2010), as funções do verbo e do SN que o segue se alteram, o que leva à reinterpretação da construção como um todo. O verbo se esvazia do seu sentido lexical pleno e passa a concentrar apenas informações gramaticais, como tempo, modo, aspecto, voz e concordância com o sujeito. Não nos aprofundaremos na análise dessas construções aqui, dadas as limitações de espaço. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 571 exigido, semântica ou sintaticamente, pela valência mínima do verbo, e é licenciado pela própria construção. Dependendo da classe semântica do verbo, as orações ditransitivas produzem diferentes implicações quanto ao papel temático do OI. Nesse dado, o objeto (me) desempenha o papel de beneiciário, sendo caracterizado, como o recipiente, pelo traço [+humano]. Um aspecto típico dos eventos de transferência é que o recipiente geralmente faz algum uso da coisa transferida em seu próprio benefício. Esse aspecto está presente como parte da moldura semântica maior associada a esses eventos, relacionando-se a uma etapa cronologicamente posterior do ato de transferir. Por esse motivo, a construção ditransitiva pode integrar o SPrep beneiciário, marcando-o do mesmo modo que o recipiente. No corpus D&G, dos 380 objetos indiretos apenas 5 (1%) não são recipientes, papel prototípico desse argumento na construção ditransitiva. Outro ponto a ser ressaltado é que, além das generalizações semânticas, existem também generalizações sobre as propriedades da estrutura informacional da construção. As categorias de estatuto informacional, como dado e novo (PRINCE, 1981), são relevantes na ordenação dos argumentos, uma vez que o luxo da informação relete aspectos cognitivos e sociais do modo como as pessoas embalam o conteúdo ideacional enquanto se comunicam. Assim, a identiicabilidade de um referente tem a ver com aquilo que o falante assume que seu ouvinte pode identiicar. O estado de ativação de um referente na mente dos interlocutores se relaciona com o modelo do falante a respeito do estado cognitivo corrente do ouvinte: ativo, semiativo, inativo (CHAFE, 1987, 1994). A possibilidade de rastreamento de um participante no discurso dá conta tanto da introdução de um referente no contexto comunicativo como da continuidade de uma menção anterior. Desse modo, as suposições do falante sobre o estado de ativação do conhecimento do ouvinte no momento da fala reletem-se na estrutura da oração ditransitiva. Há, pois, uma tendência estatística para que o argumento recipiente já tenha sido mencionado no discurso precedente (geralmente codiicado por pronome), o que lhe atribui uma proeminência maior do que sua ocorrência num SPrep.15 Neste trabalho, vou utilizar Note-se que, mesmo em ocorrências nas quais o OI vem depois do OD, como em (5), o OI codiica informação velha, o que parece conirmar sua saliência discursiva, ligada ao fato de que o referente desse argumento é predominantemente humano. 15 572 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 o critério textual para rastrear as menções ao argumento recipiente (PRINCE, 1981). No que diz respeito à perspectiva pragmática, dos 380 objetos indiretos, 377 (99%) codiicam informação textual (4b, 5a, 8, 9, 15, p. ex.) ou situacionalmente dada (4a, 5b, 7, 14 e 16, entre outros), logo, contínua, nos textos examinados, o que evidencia a natureza nuclear desse argumento. (15) ... então tinha um cara lá ... esse já era doente ... ele já era tuberculoso ... já tava com os dias contados ... que ele fez ... resolveu antecipar ... resolveu antecipar sua morte ... comprando ... vendendo sua vida a esse advogado ... (D&G/Natal, p. 54, fala) (16) ... faz o seguinte ... você ... eu te dou o dinheiro ... você não me perturba mais ... tá bom? (D&G/Rio, fala) Em meus dados de língua em uso, é somente no material falado que ocorrem três OI introdutores de informação nova no texto, morfologicamente expressos por Prep + SN, como em (17-18), ao passo que todos os objetos indiretos na escrita representam informação velha ou dada. Uma vez introduzidos como OI, os referentes desse argumento persistem no texto, com funções idênticas ou não (essa pessoa, em (17) e dele, em (18). A pequena quantidade de casos (apenas três) não possibilita explicar essa diferença entre fala e escrita. (17) “... aí a gente queria entregar o prêmio a uma pessoa ... a gente vai chamar o pastor Martins que é pastor da igreja pra entregar o prêmio a essa pessoa” ... (D&G/Natal, p. 180, fala) (18) eu estava fazendo um trabalho free-lancer assim ... pra um cara ... aí eu liguei pra casa dele pra/ que ele tinha que me pagar por esse trabalho ... (D&G/Rio, fala) Para corroborar o estatuto informacional dado do OI, veriiquei o recurso utilizado para codiicá-lo e obtive os seguintes resultados: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 573 TABELA 3 Codiicação do participante Objeto Indireto FALA ESCRITA TOTAL PRO(nome) 134 43 177 (47%) PREP + PRO 124 7 131 (34,5%) PREP + SN 56 14 70 (18%) 1 1 315 65 ∅ TOTAL 2 (0,5%) 380 (100%) Há uma correspondência entre o status informacional dado de um participante e sua expressão formal, na medida em que os SN dados são mais frequentemente representados por anáfora pronominal. Como se pode ver na Tabela 3, tanto na modalidade falada quanto na escrita, o OI é predominantemente codiicado como pronome pessoal (308 casos, 81% do total), precedido (131 ocorrências) ou não (177 dados) de preposição.16 Esses números comprovam sua persistência no texto e, consequentemente, sua importância discursiva. No corpus analisado, predomina a preposição para/pra (171 ocorrências), tanto na fala (157 casos), como na escrita (14 casos), ao passo que a tem 30 ocorrências, 22 na fala e 8 na escrita (FURTADO DA CUNHA, 2015). Essas preposições funcionam como um marcador de argumento oblíquo. Não parece haver diferenças signiicativas entre SPrep introduzido por para/pra e SPrep com a no que diz respeito à ordenação dos argumentos. No primeiro caso, em 59% das orações predomina a ordenação OI OD, ao passo que com a preposição a temos 56% de OD OI. Esses números demonstram que a ordenação dos argumentos não é afetada pelo tipo de preposição do SPrep. Ao tratar dos correlatos distribucionais e cognitivos da estrutura sintática, Givón (1995) airma que os pronomes átonos, assim como as anáforas zero, são o recurso cognitivamente menos marcado para a codiicação de um referente. O argumento é o de que esses pronomes e No corpus analisado, predomina a preposição para/pra (171 ocorrências), tanto na fala (157 casos), como na escrita (14 casos), ao passo que a tem 30 ocorrências, 22 na fala e 8 na escrita (FURTADO DA CUNHA, 2015). Essas preposições funcionam como um marcador de argumento oblíquo. 16 574 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 essas anáforas codiicam referentes maximamente contínuos, aqueles que estão ativados no momento corrente. Logo, eles não sinalizam mudança na operação cognitiva do estado de ativação em curso. O status tópico de um referente depende de sua (des)continuidade no discurso. A alta ocorrência de OI codiicado por pronome evidencia que este constitui um subtópico discursivo, ou tópico secundário, ao lado do tópico primário, representado pelo sujeito. Conforme Givón (1984), a principal manifestação de tópicos importantes no discurso é a continuidade. A própria possibilidade de referência anafórica do OI relete sua topicidade e sua natureza informacional dada. É importante ressaltar que dos 308 pronomes que codiicam o OI, 200 (65%) referem-se à primeira pessoa do singular (me e mim, com 196 e 67 dados, respectivamente) ou do plural (nos e a gente, com 3 e 1 dados, respectivamente). Os outros 35% dos pronomes dividemse entre a segunda (te e você, 52 ocorrências) e a terceira pessoa do singular (lhe, ela e ele, 58 ocorrências). Há, portanto, a prevalência do falante como participante dos eventos relatados, o que pode ser explicado pela hierarquia de referencialidade, tal como proposta originalmente por Comrie (1981) e depois por Croft (1990), entre outros. Também conhecida na literatura como hierarquia de animacidade, empatia ou indexibilidade, essa hierarquia posiciona os participantes do ato de fala (isto é, primeira e segunda pessoas) acima da terceira pessoa, os animados acima dos inanimados ou referentes mais tópicos acima de referentes menos tópicos. As ideias de Benveniste (1976) sobre a subjetividade na linguagem e o papel dos pronomes na estruturação do discurso acrescentam um outro viés explicativo para a signiicativa frequência das formas pronominais de primeira pessoa no material analisado. Segundo esse linguista, todo texto é marcado pela subjetividade de seus autores. Em cada instância de discurso, há um dado sujeito que pode ser percebido pelas escolhas verbais, as quais também sinalizam a pessoa que enuncia. A categoria dos pronomes é a primeira a estabelecer e revelar a subjetividade no discurso. Para Benveniste, na primeira e na segunda pessoas, há, ao mesmo tempo, uma pessoa implicada e um discurso sobre essa pessoa. Eu designa quem fala e implica um enunciado sobre o eu. Tu é designado por eu, que enuncia algo como um predicado de tu. Eu é um signo único, mas móvel, que pode ser assumido por todo locutor, desde que ele só remeta à instância do seu próprio discurso. Tal propriedade é o Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 575 fundamento do discurso individual. A subjetividade se manifesta no uso da língua, já que é na instância de discurso na qual eu designa o locutor que ele se enuncia como sujeito. Assim, a proeminência discursiva da primeira pessoa nas orações examinadas revela a subjetividade inerente a toda produção discursiva, especialmente no caso dos tipos textuais selecionados neste trabalho. As narrativas de experiência pessoal e os relatos de procedimento, caracteristicamente, envolvem a primeira pessoa, que narra e relata fatos por ela vivenciados, assumindo, portanto, importante papel no discurso. É possível, pois, estabelecer uma correlação, vinculada ao fator pragmático status informacional, entre foco da informação e ordenação dos argumentos tema e recipiente com relação ao verbo. Conforme os resultados das Tabelas 2 e 3, nos dados investigados, o OI se posiciona preferencialmente antes do OD (72% contra 28%, num total de 349 ocorrências),17 tanto na forma de pronome (146) quanto na de SPrep (104), independentemente do tipo de transferência – concreta (101 orações) ou metafórica (279 ocorrências) – veiculada pelo verbo. Desse modo, a preferência pela ordenação OI OD é indiferente tanto à pronominalização do OI como ao tipo de transferência indicada pelo verbo. Nessa linha, nas orações ditransitivas, é o participante OD que normalmente codiica a informação nova no discurso, sendo os referentes do sujeito e do objeto indireto previamente conhecidos. Em suma, o OI é predominantemente humano/animado, enquanto o OD é geralmente não humano/inanimado. Há, também, uma forte tendência para o recipiente ser deinido e mais tópico, ao passo que o OD tende a ser indeinido e menos tópico (GIVÓN, 1979; THOMPSON, 1990; HASPELMATH, 2015). Nesse sentido, Haspelmath observa que a relação entre R(ecipiente) e T(ema) de uma oração ditransitiva é similar à relação entre A(gente) e P(aciente) de uma oração monotransitiva, em que o A é tipicamente animado, deinido e tópico, enquanto o P é tipicamente inanimado e não tópico, além de frequentemente indeinido. Ainda com respeito à ordenação OI OD versus OD OI, vejam-se as seguintes amostras: 17 Foram excluídas dessa contagem 31 orações ditransitivas, das quais 28 têm OD anafórico, 2 apresentam OI anafórico e 1 corresponde àquele caso em que o SPrep funciona como meta. 576 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 (19) … até que o homem em voz baixa chamou a sua atenção, mostrou-lhe uma pequena arma e disse para ela passar para ele, o dinheiro, relógio e pulseira. (D&G/Rio, escrita) (20) … fui pro colégio fazer essa prova pensando “poxa ... já pensou se ela me desse a mesma prova do quarto bimestre? Ah ... eu icar emocionada ... ia passar na mesma hora ...” (D&G/Rio, fala) Observe-se que, nas orações destacadas em (19) e (20), o objeto direto é mais pesado, em termos de número de sílabas, do que o indireto, daí seu posicionamento no im da oração. Pelo mesmo motivo, o OI é colocado antes do OD oracional, o qual representa uma signiicativa quantidade de ocorrências no corpus (31% de 349): (21) … aí ele mostrou pra ela quais eram ... os frascos que ele tinha usado ... ela começou a rir… (D&G/Niterói, fala) Outras pressões estruturais também atuam na ordenação dos argumentos objeto da oração ditransitiva. Assim é que todas as vezes em que o OD é expresso por um pronome relativo,18 como em (22), ele se posiciona antes do OI (15% dos casos): (22) ... parece que uma moedinha de um cruzeiro que ... que ele tinha dado pra ela ... ela mostrou ... aí ela começou a ver que ela não tava mentindo ... (D&G/Natal, p. 180, fala) As alternâncias formais envolvidas na ordenação do OI em relação ao OD dizem respeito a diferentes perspectivações da oração ditransitiva. Associada à organização da informatividade no discurso, a perspectivação refere-se ao modo como se distribui a atenção com respeito a uma cena referencial – o evento a ser comunicado – em uma determinada cena atencional – o evento de interação (TOMASELLO, 18 No corpus D&G, predominam orações ditransitivas com verbos dicendi (279 dados, contra 101 ocorrências de orações com verbos do tipo de dar). Conforme observado anteriormente, a alta frequência desses verbos está relacionada ao tipo de amostra examinada. A recorrência de contar, dizer, falar é responsável pelo grande número de OD oracional (105 dados, 28% do total) e OD codiicado por pronome relativo (40 dados, 11%). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 577 1999). Tem a ver, portanto, com a focalização de aspectos especíicos de uma cena, motivada pelo ponto de vista a partir do qual o falante escolhe relatar essa situação. Para Kay (2005), a lexibilidade tanto na codiicação quanto na conceitualização é a principal razão por que a gramática parece arbitrária. Conceitualmente, há incontáveis maneiras de conceber um dado evento, e uma concepção particular de um evento pode se desviar do cânone em qualquer grau. Linguisticamente, uma variedade de recursos gramaticais, cada um com valores múltiplos agrupados em torno de um protótipo, está disponível como meio alternativo de codiicar uma dada concepção. As propriedades objetivas de um evento são consequentemente insuicientes para predizer a estrutura gramatical de uma oração que o descreve. O processo de tomada de perspectiva leva o locutor a selecionar diferentes elementos como foco do enunciado. Na oração ditransitiva, a posição preferencial do OI antes do OD comprova que é com esse referente que o falante empatiza (KUNO, 1980) ao transmitir o evento de transferência. O fato de esse referente ser tipicamente humano torna-o uma entidade proeminente na cena e permite que ele seja conceitualizado como um elemento mais igura do que a coisa transferida. Dada a natureza antropocêntrica do discurso, as pessoas tendem a falar mais sobre humanos que são recipientes do que sobre não humanos que são temas (GIVÓN, 1979). Nesse sentido, é mais provável que os eventos e as situações sejam conceitualizados do ponto de vista das pessoas envolvidas do que em termos dos referentes não-humanos por elas afetados. A proeminência discursiva do OI relete-se, também, na sua persistência no texto, em oposição à baixa continuidade do OD (FURTADO DA CUNHA, 2006). 5 Considerações inais A construção ditransitiva constitui um tema particularmente interessante por causa da complexidade relativa do evento que ela representa. O evento de transferência tipicamente envolve três participantes – o transferidor, a coisa transferida e o recipiente. A relação entre esses participantes é variada e complexa: há uma interação entre um doador e um recipiente, entre um doador e uma coisa e entre um recipiente e uma coisa; uma mudança de posse; um movimento físico de uma coisa e, ainda, causação. A diversidade e a complexidade translinguísticas da 578 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 sintaxe e da semântica das orações com dar, verbo prototípico desse evento, são relexos da complexidade interna do próprio evento. De acordo com Haspelmath (2015), em muitas línguas a classe de verbos ditransitivos básicos é pequena, não indo além de verbos como dar, mostrar, contar. Para esse autor, a diferença mais saliente entre as línguas com relação à construção ditransitiva diz respeito ao alinhamento da codiicação dos dois argumentos objeto, ou seja, se é o R ou o T que é codiicado como o P (objeto direto) da oração monotransitiva. No caso do português, constata-se alinhamento indireto (indirective, em inglês), quando o R é codiicado como um SPrep e o T é tratado como o P monotransitivo (como em (5a) ele deu o dinheiro a ela) e alinhamento secundário (secundative, em inglês), quando o R é tratado como o P monotransitivo e o T é tratado de modo especial (como em (5b) da tela que você me presenteou?). Não há, como no inglês, alinhamento neutro, quando R e T são tratados do mesmo modo (como em Kim gave Lee the box). Segundo Haspelmath (2015), os três tipos de alinhamento são encontrados nas línguas do mundo, embora o alinhamento indireto pareça ser particularmente comum na Eurásia. Sob o prisma da interação humana, conforme Newman (2002), as línguas podem diferir quanto ao elemento selecionado como objeto sintático primário de verbos do tipo de dar. No inglês, por exemplo, pode ser o recipiente (The principal presented Lee with an award) ou a coisa transferida (The principal presented the award to Lee). No português, por outro lado, salvo quando expresso por pronome pessoal (177 ocorrências nas amostras examinadas), o argumento recipiente vem ligado ao verbo por preposição (201 dados). Todavia, em ambas as codiicações, a posição preferencial desse elemento é antes do OD (146 ocorrências no primeiro caso e 104, no segundo). Como visto, essas alternativas de ordenação sinalizam diferentes perspectivações da oração ditransitiva. Para Newman, elas podem ser pensadas como a codiicação de perspectivas cognitivas diferentes do ato de dar, as quais, seguindo Tuggy (1998), ele denomina interação humana e manipulação do objeto. A primeira perspectiva se correlaciona com o recipiente como objeto primário, enquanto a segunda se correlaciona com a coisa como objeto primário. Retomando as questões de pesquisa apresentadas na Seção 4, em relação à primeira, a análise do material empírico demonstrou que (i) fatores discursivo-pragmáticos, como o status informacional dado, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 579 e consequente continuidade discursiva desse participante, além da expressão da subjetividade do produtor do texto; (ii) semânticos, como o papel temático de recipiente do OI; e (iii) gramaticais, como o peso do OD, motivam a preferência pela ordenação do objeto indireto antes do objeto direto nas orações ditransitivas do PB.19 Quanto às funções a que os diferentes padrões da construção ditransitiva podem servir, defendo que a posição dos argumentos na oração pode trazer benefícios para o falante, para o ouvinte e para ambos (ARNOLD et al., 2000). Sob o ângulo do falante, a ordenação relete restrições de tempo real sobre a produção do enunciado, e é uma estratégia utilizada para dar conta das necessidades do enunciador. É possível também que o falante escolha a ordem do argumento para facilitar o processo de compreensão do receptor. Por im, a ordenação pode desempenhar ambas as funções e, assim, ambas as motivações – os processos de produção e recepção – atuam em diferentes momentos da interação. Como o discurso falado é geralmente é construído sem planejamento, adiar elementos que são mais difíceis de produzir, como constituintes longos e complexos, dá ao falante mais tempo para formulálos. Há, também, vantagens na ordenação de referentes dados antes de novos, da perspectiva do falante e do ouvinte. Por um lado, começar uma oração com um referente que já foi mencionado antes fornece um elo entre o que já foi dito e o que vai ser dito, o que proporciona continuidade ao discurso, facilitando a compreensão do ouvinte. Além disso, como certas posições são preferencialmente usadas para a introdução de referentes novos, os falantes podem mais facilmente transmitir a seus interlocutores a informação nova que eles querem comunicar. Logo, colocar material novo, mais leve antes provavelmente facilita a compreensão, ao mesmo tempo em que esses elementos são supostamente mais fáceis de produzir. 19 Não foi feita uma ponderação dos três fatores – discursivo-pragmáticos, semânticos e gramaticais – que favorecem a ordenação OI OD. Isso exigiria uma análise quantitativa multifatorial aplicada a um corpus mais extenso, o que foge do escopo deste artigo. O propósito do texto foi mostrar a coatuação de fatores de diferentes níveis. 580 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 Referências ARNOLD, J. E. et al. Heaviness vs. newness: The effects of complexity and information structure on constituent ordering. Language, v. 76, n. 1, p. 28-55, 2000. https://doi.org/10.1353/lan.2000.0045. https://doi. org/10.2307/417392. BARLOW, M.; KEMMER, S. (Ed.). Usage based models of language. Chicago: University of Chicago Press, 2000. BENVENISTE, É. Problemas de linguística geral. São Paulo: Nacional/ USP, 1976. BERLINCK, R. de A. The Portuguese dative. In: BELLE, W. V.; LANGENDONCK, W. V. (Ed.) Case and grammatical relations across languages. v. 2. Amsterdam: John Benjamins, 1996. BOLINGER, D. L. Entailment and the meaning of structures. Glossa, v. 2, p. 119-127, 1968. BORBA, F. Uma gramática de valências para o português. São Paulo: Ática, 1996. BYBEE, J. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. https://doi.org/10.1017/CBO9780511750526. CASTILHO, A. T. de. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. CHAFE, W. Signiicado e estrutura lingüística. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. CHAFE, W. Cognitive constraints on information low. In: TOMLIN, R. (Ed.). Coherence and grounding in discourse. Amsterdam: John Benjamins, 1987. CHAFE, W. Discourse, consciouness and time: the low of displacement of conscious experience in speaking and writing. Chicago: University of Chicago Press, 1994. COMRIE, B. Language universals and language typology. Chicago: University of Chicago Press, 1981. CROFT, W. Typology and universals. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 581 CROFT, W. Radical construction grammar: syntactic theory in typological perspective. Oxford: Oxford University Press, 2001. https://doi. org/10.1093/acprof:oso/9780198299554.001.0001. FURTADO DA CUNHA, M. A. (Org.) Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN, 1998. FURTADO DA CUNHA, M. A. Estrutura argumental e valência: a relação gramatical objeto direto. Gragoatá, v. 21, p. 115-131, 2006. FURTADO DA CUNHA, M. A. O estatuto argumental do objeto indireto e a construção ditransitiva no português do Brasil. In: FURTADO DA CUNHA, M. A. (Org.). A gramática da oração – diferentes olhares. Natal: EDUFRN, 2015. p. 135-165. FURTADO DA CUNHA, M. A.; TAVARES, M. A. Funcionalismo e ensino de gramática. Natal: EDUFRN, 2007. FURTADO DA CUNHA, M. A.; BISPO, E. B.; SILVA, J. R. Linguística funcional centrada no uso: conceitos básicos e categorias analíticas. In: CEZARIO, M. M; FURTADO DA CUNHA, M. A. (Org.). Linguística centrada no uso: uma homenagem a Mário Martelotta. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2013. PMid:24340137. FURTADO DA CUNHA, M. A.; OLIVEIRA, M. R. de; MARTELOTTA, M. E. (Org.). Linguística funcional: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2015. GARCÍA-MIGUEL, J. M.; COMESAÑA, S. Verbs of cognition in Spanish: Constructional schemas and reference points. In: SILVA, A. S. de: TORRES, A.; GONÇALVES, M. (Org.). Linguagem, cultura e cognição. v. 1. Coimbra: Almedina, 2004. GIVÓN, T. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979. GIVÓN, T. Syntax. A functional typological introduction. v. 1. Amsterdam: John Benjamins, 1984. GIVÓN, T. Function, structure, and language acquisition. In: SLOBIN, D. (Ed.). The crosslinguistic study of language acquisition. v. 2. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1985. p. 1005-1028. 582 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam: John Benjamins, 1995. GOLDBERG, A. E. A construction grammar approach to argument structure. Chicago: University of Chicago Press, 1995. GOLDBERG, A. E. Constructions at work. Oxford: Oxford University Press, 2006. HAIMAN, J. Natural syntax: iconicity and erosion. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. https://doi.org/10.1038/317106d0. https://doi.org/10.1038/315115a0. HASPELMATH, M. Ditransitive constructions. Annual Review of Linguistics, v. 1, p. 19-41, 2015. https://doi.org/10.1146/annurevlinguist-030514-125204. HOPPER, P. J. Causes and effects. CLS, v. 21, p. 67-88, 1985. KAY, P. Argument structure constructions and the argument-adjunct distinction. In: FRIED, M.; BOAS, H. (Ed.). Grammatical constructions: Back to the roots. Amsterdam: John Benjamins, 2005. p. 71-98. https:// doi.org/10.1075/cal.4.05kay. KUNO, S. Functional syntax. In: MORAVESIK, E. A.; WIRTH, J. R. (Ed.). Syntax and semantics. v. 13. New York: Academic Press, 1980. LAKOFF, G; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980. PMid:11661871. LANGACKER, R. Foundations of cognitive linguistics. v. 1. Theoretical Prerequisites. Stanford: Stanford University Press, 1987. LANGACKER, R. Cognitive Grammar: A basic Introduction. New York: Oxford University Press, 2008. MALCHUKOV, A.; HASPELMATH, M.; COMRIE, B. Ditransitive constructions: a typological overview. Studies in ditransitive constructions: a comparative handbook, 2010. p. 1-64. MATEUS, M. H. M. et alii. Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Caminho, 2003. NEVES, M. H. de M. Estudo das construções com verbo-suporte. In: KATO, M. (Org.). Gramática do português falado VI: Desenvolvimentos. Campinas: Ed. Unicamp/FAPESP, 1996. p. 119-54. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 583 NEVES, M. H. de M. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. NEWMAN, J. Culture, cognition, and the grammar of ‘give’ clauses. In: ENFIELD, N. (Ed.). Ethnosyntax: Explorations in culture and grammar. Oxford: Oxford University Press, 2002. ÖSTMAN, J.; FRIED, M. The cognitive grounding of Construction Grammar. In: ÖSTMAN, J.; FRIED, M. (Ed.). Construction Grammars: cognitive grounding and theoretical extensions. Amsterdam: John Benjamins, 2005, p. 1-13. https://doi.org/10.1075/cal.3. PRINCE, E. Toward a taxonomy of given-new information. In: COLE, P. (Ed.). Radical pragmatics. New York: Academic Press, 1981. REDDY, M. J. The conduit metaphor: A case of frame conlict in our language about language. In: ORTONY, A. (Ed.). Metaphor and thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. p. 284-310. SOARES DA SILVA, A. Polissemia na sintaxe: o objeto indirecto e a construção ditransitiva. In: SOARES DA SILVA, A. O mundo dos sentidos em português: polissemia, semântica e cognição. Coimbra: Almedina, 2006. p. 245-264. SWEETSER, E. From etymology to pragmatics: metaphorical and cultural aspects of semantic structure. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. https://doi.org/10.1017/CBO9780511620904. TAYLOR, J. R. Syntactic construction as prototype categories. In: TOMASELLO, M. (Ed.). The new psychology of language. New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1998. THOMPSON, S. A. Information low and “Dative Shift” in English. In: EDMONDSON, J.; FEAGIN, K.; MÜHLHÄUSLER, P. (Ed.). Development and diversity: Linguistic variation across time and space. Dallas: Summer Institute of Linguistics, 1990. p. 239-253. PMid:2382946 PMCid:PMC2499249. THOMPSON, S. A.; COUPER-KUHLEN, E. The clause as a locus of grammar and interaction. Discourse Studies, v. 7, p. 481-506, 2005. https://doi.org/10.1177/1461445605054403. 584 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 555-584, 2017 TOMASELLO, M. (Ed.). The new psychology of language: cognitive and functional approaches to language structure New Jersey: Lawrence Erlbaum, 1998. TOMASELLO, M. The cultural origins of human cognition. Cambridge: Harvard University Press, 1999. PMCid:PMC1656717. TRAUGOTT, E. C. Pragmatic strengthening and grammaticalization. Proceedings of the Fourteenth Annual Meeting of the Berkeley Linguistic Society, 1988. p. 406-416. https://doi.org/10.3765/bls.v14i0.1784. TRAUGOTT, E. C.; TROUSDALE, G. Constructionalization and constructional changes. Oxford: Oxford University Press, 2013. https:// doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199679898.001.0001. TROUSDALE, G. Constructions in grammaticalization and lexicalization: Evidence from the history of a composite predicate construction in English. In: TROUSDALE, G.; GISBORNE, N. (Ed.). Constructional approaches to English grammar. Berlin: Mouton de Gruyter, 2008. p. 33-67. https://doi.org/10.1515/9783110199178.1.33. TUGGY, D. Giving in Nawatl. In: NEWMAN, J. (Ed.). The linguistics of giving. Typological Studies in Language, v. 36. Amsterdam: John Benjamins, p. 35-65, 1998. https://doi.org/10.1075/tsl.36.03tug. VOTRE, S.; OLIVEIRA, M. R. (Org.) A língua falada e escrita na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998a. (reprod). VOTRE, S.; OLIVEIRA, M. R. (Org.) A língua falada e escrita na cidade de Niterói. Niterói: UFF, 1998b. (reprod). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 O lugar nos estudos toponímicos: relexões Place in toponymic studies: relections Karylleila Santos Andrade Universidade Federal do Tocantins karylleila@gmail.com Resumo: Este texto parte da seguinte questão norteadora: qual é a posição ou status que lugar ocupa nos estudos toponímicos? O objetivo geral é discutir lugar como categoria na disciplina toponímia para, em seguida, propor seu alargamento conceptual. Utilizar-se-á a abordagem teórica da Geograia Cultural e Humanista, a partir do viés da Fenomenologia, como também, os princípios teórico-metodológicos da disciplina Toponímia. É uma pesquisa de cunho qualitativa e interpretativista. Conclui-se, nesta etapa do trabalho, que lugar pode ser interpretado como categoria, pois trata-se da extensão/apreensão das relações (motivações) as quais são estabelecidas entre o homem e o próprio nome de lugar: é a sua gênese. O alçamento, enquanto categoria central, deu-se com uma discussão prévia das categorias espaço, território, paisagem e lugar. Daí o conceito em uma dimensão analítica: motivacional, histórica, linguística, ideológica, social, identitária. Quanto à sua extensão semântica, essa acontece no plano da abstração do vínculo que se estabelece entre o denominador e o designatum: como sentimento de pertencimento, afetividade, mundo vivido e experienciado. Palavras-chave: lugar; categoria; toponímia; geografia cultural e humanista. Abstract: This paper stems from the following guiding question: what is the position or status that place occupies in toponymic studies? The overall objective is to discuss place as a category in toponymic eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.585-607 586 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 studies and, then, to propose an extension for its concept. We will use the theoretical approach of Cultural and Humanistic Geography, from the the point of view of Phenomenology, and also the theoretical and methodological principles of Toponymy as a discipline. It is a research of qualitative and interpretative nature. It can be concluded, at this stage of the work, that place can be interpreted as a category because it is the extension/seizure of relations (motivation) that are established between man and the place name itself: it is its genesis. Its rising, as a nuclear category, was achieved after prior discussion of space, territory, landscape and place categories. Hence the concept in an analytical dimension: motivational, historical, linguistic, ideological, social, identitary. As for its semantic extension, this happens in the abstraction plan of the bond that is established between the denominator and the designatum: as sense of belonging, affection, world lived and experienced. Keywords: place; category; toponymy; cultural and humanistic geography. Recebido em: 06 de outubro de 2015 Aprovado em : 01 de junho de 2016 1 Introdução Ao se estudar o léxico de uma língua, pode-se também apreender a realidade do grupo que a utiliza: cultura, história, modo de vida e visão de mundo. As palavras que constituem o sistema lexical de uma língua são como um espelho: reletem os aspectos do mundo concreto em uma realidade. Segundo Andrade (2010, p. 106), o ser humano, ao utilizar-se do léxico, sempre atribui nome a tudo que o cerca: às coisas, aos animais, às pessoas, ao espaço físico e cultural em que vive. Nomear é, para o homem, uma necessidade de organização e de orientação. É no plano da denominação que o topônimo surge como o resultado da ação do nomeador ao realizar um recorte no plano das signiicações, representações, ou seja, praticar um papel de registro no momento vivido pela comunidade. É nessa etapa, portanto, que compreendemos que, no ato de denominar a coisa, o recorte cultural apreendido, estabelece-se um vínculo de afetividade com a coisa nominada, o lugar, corporiicado e materializado. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 587 Sabemos que o signo toponímico é motivado, sobretudo, pelas características físicas do local ou pelas impressões, crenças e sentimentos do denominador. Além de diferir dos demais signos no que se refere à motivação, tem particularidade especíica quanto à função. O signo linguístico se reserva à arbitrariedade, enquanto o signo toponímico à motivação. O que os diferencia é a função signiicativa quando a Toponímia os transforma em seu objeto de estudo. Na atividade onomasiológica, Todorov (1983, p. 37-38) faz referência à atividade de nomeação de Colombo, durante o descobrimento da América. Em matéria de linguagem, Colombo faz menção aos nomes próprios e diz que, em certos aspectos, são os que mais se assemelham aos indícios naturais. A sua preocupação se inicia pelo próprio antropotopônimo Colombo. Ele modiicou a graia de seu nome várias vezes, tentou chamar-se Colón, recuperando um nome antigo, motivado pela vontade divina que o havia “eleito” para realizar o que seu nome e sobrenome signiicavam. Desse modo, por diversos motivos, feito o recorte, a apreensão no espaço, o lugar recebe o batismo, a “benção”, afere-se alma, ““nome” e “lugar” constituem-se uma unidade identitária, referencializada e referenciável (DICK, 2008, p. 179)”. É fato que nome e lugar constituem uma unidade identitária, que marca o recorte cultural. Particularmente, entendemos essa unidade (nome e lugar) como um sentimento de ligação, de alma, de afetividade. Sabemos que a Toponímia é o estudo dos nomes de lugares, mas uma inquietação tem nos tomado como desaio quando pensamos na noção de lugar, já que o nome é o signiicante. Esse, sim, passa a ter alma quando relacionado com o lugar. Mas o que é o lugar em Toponímia? Partindo, então, dessa angústia provocadora, um dos desaios deste trabalho é perceber qual é a posição que lugar ocupa nos estudos toponímicos? Uma provável resposta, ainda que embrionária, é de que a ideia de se construir um sistema de identiicação de categoria na disciplina Toponímia se faz pensando no real: ela reproduz a realidade que se quer abstrair. No nosso entender, lugar torna-se, então, categoria central, pois se trata da extensão/apreensão das relações (motivações) que são estabelecidas entre o homem e o próprio nome de lugar: é a sua gênese. Por isso, é essencial, a priori, conceituar lugar em uma dimensão de categoria analítica: motivacional, histórica, linguística, ideológica, social, identitária. E um diálogo com outras áreas do saber é fundamental, como, por exemplo, a Geograia Cultural e Humanista. 588 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 O trabalho está dividido em 3 (três) partes: a primeira referese à discussão de Lugar como categoria nos estudos toponímicos, a segunda propõe-se discutir Lugar na perspectiva da Geograia Cultural, Humanista e Toponímica, por im, o subitem Caminhos ainda a trilhar que retoma a questão balizadora inicial do texto se posicionando na extensão conceptual de lugar como categoria nos estudos toponímicos. O nome de lugar é compreendido como patrimônio linguístico e cultural, testemunho de uma comunidade. Materializado e corporiicado, o nome é um produto e o relexo social e cultural da cosmovisão de um grupo. A pretensão deste estudo não é, de forma alguma, modiicar, em sua essência, o conceito de Toponímia como o estudo do nome de lugar. A proposta vincula-se mais na perspectiva de ampliação conceptual do que seja lugar na própria disciplina. A intenção é construir, no primeiro momento, uma proposição conceitual e metodológica que permita alçar lugar à noção de categoria nos estudos toponímicos. Para isso, apoiarnos-emos em questões teóricas da Geograia Cultural e Humanista. Em seguida, apresentamos a correlação dos conceitos debatidos a im de apresentar, ainda que preliminarmente, uma extensão conceptual de lugar como sentimento de pertencimento, afetividade, mundo vivido e experienciado. 2 Lugar: almejando uma categoria na Toponímia Conhecimento vem do latim cognitio, ação de aprender. Clément et al (1994, p. 69) assinalam que o conhecimento é concebido como uma atividade pela qual o homem toma consciência dos dados da experiência e procura compreendê-los ou explicá-los. Nesse processo, o homem procura adquirir saberes, assimilar conceitos sobre os fenômenos reais, compreender o mundo a sua volta: seu im consiste em alcançar a verdade objetiva. São vários os tipos de conhecimento, dentre eles: o senso comum, o religioso, o ilosóico e o cientíico. Este último é o que mais se diferencia dos demais, e uma das razões é a necessidade de uma ordenação em suas proposições, e isso acontece no ato da relação do pensamento humano com os objetos, por meio de deinições de conceitos básicos. Estamos denominando esses conceitos básicos de categorias. Segundo Clément e al (1994, p. 55), categoria vem do grego Katègoria de Kategorein, quer dizer “airmar”. Na ilosoia, frequentemente, é sinônimo de conceito no Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 589 sentido de noção de classiicação, e tem por função selecionar, congregar, enquadrar os seres, as coisas, os pensamentos. Dessa maneira, a categoria pode e deve ser reconhecida como o modo de ser das coisas e nesse caso, as coisas não podem ser pensadas no vazio, não há modo de ser sem o ser. Então, sendo categorias modos de ser, as mesmas podem representar propriedades gerais dos objetos, ou seja, qualidades objetivas do ser. Caminhando nesse sentido, ao considerarmos a Toponímia como uma disciplina do conhecimento cientíico, identiicamos nela a existência de uma ordenação em suas proposições. Ou seja: a determinação de categorias que relacionem o objeto da Toponímia e o pensamento humano. Nosso interesse, portanto, é estudar, com mais ainco, qual é a extensão do signiicado de lugar, o qual constitui-se como elemento caracterizador na própria deinição da disciplina – estudo do nome de lugar – e que, na nossa concepção, deve ser elevado à noção de categoria. O conhecimento cientíico é real porque se apoia em fatos, experimentações, observações, ou seja, utiliza-se de processos de descrições e análises, bem como, relexões dos fatos. Uma de suas características é a de que se constitui “em um conhecimento falível, em virtude de não ser deinitivo, absoluto e inal, e, por esse motivo, é aproximadamente exato: novas proposições e o desenvolvimento de técnicas podem reformular o acervo da teoria existente (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 17)”. Apoiar-nos-emos nessa perspectiva para pensar o que abrange lugar em Toponímia. Direcionamos, portanto, nossa investigação para a compreensão e o desvelamento do fenômeno1 a ser estudado: qual é a posição que lugar ocupa nos estudos toponímicos? Enfatizamos, assim, a descrição densa e exaustiva do fenômeno e seus sentidos. Conforme Sartre (1997, p. 16), o que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo. “O fenômeno é o que se manifesta, e o ser manifesta-se a todos Para Clément et al (1994, p. 149), fenómeno vem do grego phainomenon, de phainestai, ser visível, brilhar, de phôs, a luz. Ainda segundo os autores, os ilósofos que se dizem da “fenomenologia” estimam que, no fenómeno, são as próprias coisas que se revelam: o projecto fenomenológico consiste precisamente neste esforço no sentido de deixar desvendar-se – a partir da intuição imediata, da experiência concreta – o “mundo” situado aquém da ciência. A “visão das essências” no fenómeno é possível graças ao método fenomenológico, que nos permite restabelecer uma relação originária com as coisas “em carne e osso” (grifos dos autores). 1 590 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 de algum modo, pois dele podemos falar e dele temos certa compreensão” (SARTRE, 1997, p. 19). Isto nos faz pensar que, em geral, o fenômeno é tudo aquilo que se mostra, ou seja, o que aparece com evidencia à percepção dos sentidos ou consciência. Mais do que aparência, é uma realidade concreta ou percebida, identiicada. Quando (nos) interrogamos, focalizamos o fenômeno e não a coisa em si, pois a ideia de fato tem sua gênese nos fundamentos da lógica positivista. E essa lógica concebe o fato como tudo aquilo que pode tornar-se objetivo, explicativo e rigoroso como objeto cientíico. Teremos, então, ideias como as de causalidade, repetitividade e controle, entre outras. Interrogar implica pensar sobre o que estou me propondo a examinar. É preciso ativar o pré-relexivo, o qual diz respeito a um assunto, objeto de estudo, que o investigador aspira conhecer, mas que ainda não está bem explicado, claro. Portanto, não se parte do vazio, de algum modo já se conhece de onde quer partir. É a volta às coisas em si mesmas. Boemer (1994, p. 87) diz que “quanto mais o pesquisador conhecer a temática, maior é o seu pré-relexivo, e isso possibilita-lhe colocar o fenômeno diante dos olhos, em suspensão, e olhar para ele de forma atentiva”. No entanto, deve-se evitar que a teoria a ser abordada inluencie o seu interrogar a ponto de oferecer-lhe respostas prontas. Chauí (2002, p. 61), leitora de Merleau-Ponty, assinala que o ilósofo procurava as essências – do comportamento e da percepção – embora não em caráter de redução. Como considerava impossível a constituição transcendental como ato do sujeito constituinte, MerleauPonty apud Chauí (2002, p. 61) não trabalhava como a separação noemanoesis (objeto/o pensado – subjetivo/a percepção) e a tese do mundo natural, mas buscava a essência do comportamento e da percepção no interior do fato ou do que ele chamava de existência. Aqui existência é entendida como o modo de ser dos objetos lógicos que se deinem pela não contradição. Nos dizeres de Merleau-Ponty, há uma preocupação com a gênese dos sentidos: “a fenomenologia é a descrição e não explicação (cientíica) e nem análise (relexiva) [...] (CHAUI, 2002, p. 63)”. Para tanto, esta investigação compreende o estudo do fenômeno do ponto de vista interpretativo e descritivo, de cunho qualitativo. Os estudos de pesquisa qualitativa diferem entre si quanto ao método, à forma e aos objetivos. Compreendem um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e a decodiicar os componentes complexos de signiicados. “Segundo esta perspectiva, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 591 um fenômeno pode ser melhor compreendido no contexto em que ocorre e do qual é parte, devendo ser analisado numa perspectiva integrada” (GODOY, 1995, p. 21). Tem por objetivo revelar e expressar o sentido dos fenômenos no mundo social; trata-se de abreviar a distância entre teoria e o corpus; entre o contexto e a ação. A pesquisa qualitativa, abordada neste estudo, tem como interesse a relação noema-noesis (aquilo que é percebido - ato de perceber/atividade da consciência) a im de que se possa obter a descrição do contexto e alcançar a compreensão do fenômeno. Embora nossa preocupação tenha como foco o fenômeno em si, sua descrição e interpretação, isso não quer dizer que não possamos partir também para uma explicação dos fatos, tendo em vista seus determinantes e suas relações intrínsecas. Ao partir desse movimento, advém uma transformação que pode gerar uma nova atribuição de signiicado, ou simplesmente, a ressigniicação de sentidos. Uma das características essenciais capazes de identiicar uma pesquisa de cunho qualitativo é o enfoque descritivo e indutivo. O processo indutivo inicia-se pela coleta de dados, que sistematizados permitem, partindo das experiências e observações, chegar a certas inferências ou generalizações. Nesse sentido, intencionamos partir do próprio conceito de Toponímia, estudo dos nomes de lugares, a im de compreender o status de lugar nesse conceptus. Acreditamos que uma abordagem pelo viés da Geograia Cultural e Humanista nos possibilitará ampliar os horizontes de lugar enquanto categoria analítica. Lembramos que a Toponímia é capaz de “evidenciar marcas na história social (formação étnica, processos migratórios, sistema de povoamento de uma região administrativa) e perpetuar características do ambiente físico (vegetação, hidrograia, geomorfologia, fauna e outros) de uma região” (ISQUERDO; SEABRA, 2010, p. 79). É fundamental compreender os topônimos a partir dos diferentes signiicados, olhares e áreas de atuação, pois, por se organizarem de maneira dinâmica, constantemente (re)inventam-se no tempo e no espaço, sobrepondo-se valores socioculturais, econômicos, políticos e religiosos. Ao procurar discutir um constructo teórico e metodológico para elevar lugar à categoria principal em Toponímia, valemo-nos de que em ciência nada pode ser para sempre. O conhecimento está sempre em movimento, em transformação, e novas proposições podem ser apresentadas, conceitos podem ser revistos ou ampliados, dados podem ser contestados. O estudo toponímico prevê um diálogo com diversos 592 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 saberes, os quais estão continuamente em mudança: “é uma disciplina que se volta para a História, a Geograia, a Linguística, a Antropologia, a Psicologia Social e, até mesmo, à Zoologia, à Botânica, à Arqueologia, de acordo com a formação intelectual do pesquisador” (DICK, 1990, p. II). Deve ser pensada como um complexo línguo-cultural: um fato do sistema das línguas humanas. Faz parte de uma ciência maior, a Onomástica, a qual se subdivide em Toponímia, estudo do nome de lugar, e Antroponímia, estudo do nome de pessoas. Como explicita Ullmann (1964, p. 161), “o estudo dos nomes próprios ou onomástica pode esclarecer muitos aspectos da história política, econômica e social”. Ao utilizar-se de uma metáfora, o ato de tecer, vislumbramos a complexidade das teias de relações que abarcam o conhecimento como categoria essencial do processo educativo. Segundo ANDRADE (2012, p. 205-206), podemos pensar, então, que a relação da Toponímia, a partir de uma visão interdisciplinar, estabelece o sentido de unidade diante dos diversos saberes. Ou seja: possibilita ao sujeito re/encontrar a identidade, a história, a etimologia do nome na multiplicidade de conhecimentos, tendo em vista, o plano onomasiológico no ato de dar nomes aos lugares. No sentido da construção da teia do conhecimento, a integração das diversas ciências não garante a sua perfeita execução. A interdisciplinaridade, nesse caso, aparece como uma possibilidade de enriquecer e ultrapassar a integração dos elementos do conhecimento. A episteme2 que envolve os estudos toponímicos compreende o estudo das relações (motivações) que são estabelecidas entre o homem e o nome de lugar. É nesse sentido que o estudo dos nomes de lugares sugere um movimento de aglutinação de múltiplos aspectos socio-históricos, culturais, geográicos e linguísticos. Portanto, não deve ser visto como um estudo de saberes partilhados, despedaçados e isolados, apenas sob o enfoque disciplinar. O sujeito (o enunciador, o emissor) tem um papel fundamental na nomeação do lugar. É ele quem estabelece os parâmetros de seleção das motivações, sejam elas de força da natureza ou humana. Dick (2008, p. 179) ao dizer que nome e lugar constituem-se uma unidade identitária, referencializada e referenciável faz outra observação: 2 Epistemologia: do grego epistèmè, “ciência” e logos, “discurso”. Utilizado, sobretudo, nos países Anglo-saxónicos, refere-se à análise ou estudo dos processos evolutivos gerais do conhecimento; epistemologia é, neste caso, sinónimo de “teoria do conhecimento” (ou gnoseologia). (CLÉMENTE et al, 1994, p. 119) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 593 “o de lugar e o de não-lugar, que correspondem, contrastivamente, ao nome-dito e ao não nome” (DICK, 2008, p. 179). O lugar refere-se ao ponto do espaço, ao recorte propriamente dito, vincula-se à relação nome/lugar (denominação/referência) de modo transparente, como assevera a investigadora. Em um outro trabalho, a autora coloca que a compreensão da linguagem toponímica se dá também pelo aspecto nãoverbal: o cheiro, as cores, o brilho, a sombra, o olhar. Esses elementos de produção e construção de conteúdos, manifestados na apropriação dos recortes do espaço, são, para Dick (2008a, p. 229), a primeira tentativa de transformação de um não-lugar em lugar, que vai ocorrer no momento em que o denominador se apropria do espírito da denominação no que diz respeito à projeção da referência. Com base nos apontamentos de Dick (2008 e 2008a), retomemos a pergunta norteadora: qual é a posição que lugar ocupa nos estudos toponímicos? Uma possível resposta, ainda que incipiente, é que a ideia de se construir um sistema de identiicação de categoria na disciplina Toponímia se faz pensando no real: ela reproduz a realidade que se quer abstrair. No nosso entender, lugar torna-se, então, categoria central, pois trata-se da extensão/apreensão da relação (motivações) que são estabelecidas entre o homem e o próprio nome de lugar: é a sua gênese. Por isso, é essencial, a priori, conceituar lugar em uma dimensão de categoria analítica: motivacional, histórica, linguística, ideológica, social, identitária. A sugestão é uma ampliação conceptual de lugar como experiência de mundo vivido, de afetividade, lugar como parte do todo. Sem esse procedimento, somos “impossibilitados de desmembrar o todo através de um processo de análise, para reconstruí-lo depois através de um processo de síntese (MAIA; ALVES, 2009, [s.p.])”. Assim, um diálogo com outras áreas do saber é fundamental: Geograia Cultural e Humanista. Se vamos partir da concepção de ampliar a noção de lugar para uma categoria do conhecimento toponomástico, justiica-se também a ampliação para o estudo das relações que o homem estabelece com o lugar, como parte integrante de um todo maior. A totalidade é o espaço geográico. A episteme Geográica se consolidou como uma disciplina que tem como objeto de estudo as relações entre o homem e o meio (natureza), concentrando-se no estudo do espaço geográico. 594 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 3 Lugar na perspectiva da Geografia Cultural, Humanista e Toponímica A relação homem e meio se estabelece através do espaço. Para Sueretegaray (2001), é preciso pensar o espaço geográico como um todo uno e múltiplo, aberto a diversas conexões que se expressam por meio dos diferentes conceitos já apresentados. Esses, ao mesmo tempo em que separam visões, também as unem. Para melhor explicitar o pensamento, a autora apresenta as categorias operacionais do espaço. FIGURE 1 - Categorias operacionais do espaço (SUERTEGARAY, 2001) Para a autora, essa representação é proposta com o intuito de expressar a concepção de que o espaço geográico pode ser lido a partir das categorias paisagem,3 território,4 lugar,5 ambiente;6 sem desconsiderar que cada uma dessas dimensões está contida em todas as demais. A 3 De uma perspectiva clássica, os geógrafos perceberam a paisagem como a expressão materializada das relações do homem com a natureza num espaço circunscrito. Para muitos, o limite da paisagem atrelava-se à possibilidade visual. (SUERETEGARAY, 2001) (grifo nosso). 4 Sob o conceito de território, tratamos o espaço geográico a partir de uma concepção que privilegia o político ou a dominação-apropriação. Historicamente, o território na Geograia foi pensado, deinido e delimitado a partir de relações de poder. (SUERETEGARAY, 2001) (grifo nosso). 5 Lugar constitui a dimensão da existência que se manifesta através “de um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, irmas, instituições–cooperação e conlito são a base da vida em comum. (SANTOS, 1997 apud SUERETEGARAY, 2001) (grifo nosso). 6 Geograia tem pensado o ambiente diferentemente da Ecologia, nele o homem se inclui não como ser naturalizado, mas como um ser social produto e produtor de várias tensões ambientais. (SUERETEGARAY, 2001) (grifo nosso). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 595 contiguidade é a relação que imbrica e permeia paisagem, território, lugar e ambiente. Embora, Suertegaray (2001) atente-se para o fato de que uma frutífera articulação com as conexões imbricadas pode gerar a um reducionismo da noção de espaço. Segundo Azevedo (2002, p. 64), na busca por um caminho metodológico, pensamos o todo nas partes e as partes no todo, numa perspectiva holográica, como um caleidoscópio. O todo e as partes estão ali, mas a cada vez que se olha apresentam-se com um desenho que é sempre inovado. O todo é mais do que a soma das partes, porque possui mais propriedades e qualidades do que cada parte separada. Mas, ao mesmo tempo, é também menos, ao constituir-se impõe limites às partes, que perdem a liberdade. Quando situamos a relação todo/parte e parte/todo, estamos caminhando para uma concepção humanística, a qual estabelece entre espaço e lugar uma relação de “penumbra e claridade – [...] corporiicados a partir de experiências, ambiguidade e valores humanos, que manifestam níveis distintos de especiicidades” (MELLO, 2011, p. 7), concepção que se preocupa com os espaços e lugares dos homens. O que ele conhece, vive, conota aconchego, afetividade, proximidade; é o lugar por excelência, é o vivido, corporiicado. O que se desconhece torna-se mistério, intimidação, ameaça e desesperança. Portanto, existir pressupõe a ideia de ter um lugar, seja uma casa, um hotel, uma rua, um viaduto, um bairro, enim, o homem necessita de um lugar, um “ninho” para viver. É daí que ele estabelece seus vínculos afetivos, sociais, culturais, guarda seus mistérios, refúgio, coninamento, é o seu cosmo. Tuan (1983, p. 3) apud Mello (2011, p. 9) inicia sua obra com a frase “Não há lugar como o lar”. Mas, o que é o lar? Em seguida, dá a resposta: a velha casa, o bairro, a cidade ou a pátria. Na simplicidade da resposta uma teia complexa e simbólica sustenta sua airmação: é a gênese da alma dos lugares que estabelece os laços de afetividade e de convivência entre os homens que ocupam os espaços. Tuan, (1980) apud Mello (2011, p.10) diz que, por símbolo, entende-se a parte representativa do todo. Ou seja: o sentimento de lugar se apropria, simbolicamente, das faixadas, das calçadas, dos letreiros, das cores, do cheiro. Qualquer ruptura que ocorra em um desses elementos causa perda, protestos. É o que acontece quando o nome de um lugar é alterado. Tem-se, nesse caso, um sentimento de dor, abandono, alição. O sentimento de identidade é afetado profundamente pelo vazio da perda, da desesperança, 596 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 da angústia. Não se sabe o que vem pela frente, o que era sólido, irme e resistente, torna-se líquido, dilui, entra pelas frestas. E daí o caminho, outrora conhecido, vivido e experienciado passa a ser uma incógnita. O que era luz vive a penumbra; o que era afeição desanda ao mistério. Mas a essência permanece, pois ela constitui a natureza permanente e universal de uma coisa. Lembrando que, embora o nome tenha sofrido uma alteração, ao deixar de existir, isso não acontece com a essência do lugar, ela permanece no íntimo e na alma de cada morador. Os vínculos estabelecidos, em tempos passados, evocam sentimento de posse, são elementos de signiicado. Segundo Mello (2011, p. 10) Esta questão de posse, defesa e significado remonta à noção fenomenológica 7 do mundo vivido trabalho contemplando indissociavelmente os pertences privados ou públicos, parentes ou amigos, conhecidos e a base territorial intrinsecamente imbricados e fazendo parte do acervo íntimo do indivíduo ou grupo social. Em outras palavras, consoante a alma dos lugares. Nossas experiências partem dos lugares, diversos são os elementos que agregam laços de afetividade, os quais formam uma teia complexa e simbólica de experiências: a praça, a rua, as calcadas, o movimento contínuo de ir e vir das pessoas, dos carros. Esses, ainda que efêmeros e sofrendo mudanças, podem eternizar-se no íntimo das pessoas. Para Mello (2011, p. 07), “o conceito lugar, baseado nos princípios da “[…] a fenomenologia não é acessível senão a um método fenomenológico” (MERLEAUPONTY, 1945, p. II apud PERIUS, 2012, p. 138) que não é uma doutrina, um saber, um conjunto de teses ou ideias, porém um projeto incoativo, “[...] laborioso como a obra de Balzac, Proust, Valéry ou Cézanne.” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. XVI apud PERIUS, 2012, p. 138), pois a fenomenologia não é neutra em relação a suas respostas e conceitos, mas subtende a si mesma enquanto possibilidade de pergunta por um campo sobre qual está inclinada e suspendida como questão de fato. Se é laboriosa como a obra do escritor, e condenada a recomeçar indeinidamente em torno de si mesma, não é por conter um mistério qualquer, mas conter a exigência de surpreender o nascimento de si mesma, através de uma interrogação contínua que não ultrapassa o seu objeto, mas se compreende através dele, e assim o exige, toda vez que interrogar o que ela é. (PERIUS, 2012, p. 139) 7 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 597 fenomenologia8 com a noção do mundo vivido, confunde-se com a própria trajetória da geograia humanista, sendo considerado lar, por excelência, no qual cria, projeta, vive, ama e atua”. No entender de Tuan (2012, p. 135), o sentimento e o seu objeto são, muitas vezes, inseparáveis. Aqui ele faz referência à topoilia, cujo neologismo pode ser deinido, em sentido amplo, como incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente9 material. Mas e os sentimentos que temos com o lugar? O autor responde que os sentimentos que temos com lugar, os laços criados e fortalecidos com o tempo, por ser o lar, é o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida. Quando evocamos as reminiscências, a memória é ativada, uma vez que produz afeição, lembranças de um tempo que não volta mais. E o nome de lugar passa a ser sua extensão, seu passado, suas memórias, e qualquer modiicação é sinônimo de privação de seu valor enquanto homem. Ao alterar o nome, por exemplo, o homem sente-se despido de um invólucro, e devido ao seu sentimento de pertencimento, percebe-se abalado diante das perplexidades do mundo. A memória, nos estudos nomes de lugares, constitui-se em elemento essencial para o conhecimento e a interpretação do espaço/ lugar referencial ou imaginário. De acordo com o dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Cunha (2010, p. 419), memória signiica “lembrança, reminiscência, vem do latim mĕmŏria, de memor –ŏris ‘que se lembra”. Os diferentes interlocutores, como membros de uma determinada comunidade linguística, quer como falantes, quer como ouvintes, recorrem à memória de sua comunidade e dela fazem uso, na interação, para produzir atos de fala e interpretá-los a todo instante. Com efeito, enquanto fenômeno que se produz no interior de uma comunidade, conigura-se como memória coletiva. Segundo Merleau-Ponty (1999), sendo a memória vestígio perceptivo, ela não se exprime necessariamente 8 Fenomenologia: o fenómeno (o que aparece à consciência) é o objeto de intuição ou de conhecimento imediato, ao mesmo tempo, é a manifestação da essência. (CLÉMENT et al, 1994, p. 149), 9 Gonçalves (1989) apud Suertegaray (2001), em sua crítica ao conceito de meio ambiente, propõe uma visão de ambiente por inteiro, ou seja, considerá-lo nas suas múltiplas facetas. Não sendo mais possível conceber ambiente como equivalente a natural. O ambiente, por inteiro como se refere, implica em privilegiar o homem como sujeito das transformações, sem negar as tensões sob as mais diferentes dimensões. 598 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 de forma consciente, uma vez que também é memória daquilo que se esquece e que se manifesta no corpo. Como elemento integrante de uma língua, o léxico, por exemplo, pode atualizar a partir da combinatória da seleção dos fatos da memória coletiva com os diferentes modos de apreensão do espaço/lugar referencial ou imaginário, variando de comunidade para comunidade. Dick (1990, p. 20) refere-se ao topônimo como um verdadeiro fóssil linguístico, expressão emprestada do geógrafo francês do século XIX, Jean Brunhes, que o considerava como “um fóssil da geograia humana”. Para a autora, [Os topônimos], ao lado de uma função identiicadora, guardam, em sua estrutura imanente, uma signiicação precisa, muitas vezes não mais transparente em virtude da opacidade que esses nomes adquirem, ao se distanciarem de suas condicionantes tempo-espaciais. (DICK, 1990, p. 19). De fato, alguns autores deinem os topônimos como elementos de característica fossilizada pelo valor que se revestem como fonte de conhecimento histórico, cultural e social quanto à denominação de um lugar, testemunhados pelo grupo que habitou o sítio, seja de caráter temporário ou permanente. É o caso de Carvalhinhos (2002) que também compara um topônimo a fóssil descoberto pela paleontologia: o maior ou menor grau de “descoberta” ou “achado valioso” depende da antiguidade do nome cristalizado em determinado momento da oralidade (termo utilizado: cristalização); Rostaing denominava fossilização o fenômeno. Descreve-se, assim, a tendência conservadora do topônimo (CARVALHINHOS, 2002, p. 173). Os topônimos, nesse caso, como fato sociais e culturais, servem como documentação para outras disciplinas: História, Geograia humana e cultural, Arqueologia e Antropologia. Tuan (2012, p. 144) chama a atenção para a consciência do passado, como um elemento admirável e respeitável pelo lugar. A retórica patriótica sempre tem dado ênfase às raízes de um povo. Para intensiicar a lealdade se torna a história visível com monumentos na paisagem, e as batalhas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 599 passadas são lembradas na crença de que o sangue dos heróis santiicou o solo. Os povos analfabetos podem estar profundamente afeiçoados ao seu lugar de origem. Eles podem não ter o senso ocidental moderno, mas quando procuram explicar a sua lealdade para com o lugar, ou apontam os laços com a natureza (o tema mãe-terra), ou recorrem à história. (TUAN, 2012, p. 144) Sob perspectiva geográico-cultural, Claval (2001) considera a denominação de lugares como tomada de posse do espaço, airmando que todos os lugares habitados e um grande número de sítios característicos na superfície da Terra têm nomes – frequentemente há muito tempo. A Toponímia é uma herança preciosa das culturas passadas. Batizar as costas e as baías das regiões litorâneas foi a primeira tarefa dos descobridores. “O batismo do espaço e de todos os pontos importantes não é feito somente para ajudar uns aos outros a se referenciar. Trata-se de uma verdadeira tomada de posse (simbólica ou real) do espaço (CLAVAL, 2001, p.189)”. A título de exempliicação, temos o nome Morro de São João, uma comunidade remanescente quilombola do estado do Tocantins. Conforme relatos da tradição oral, sua formação histórica é originada da ruptura dos escravos com as estruturas econômicas sociais do passado colonial, representadas pela fazenda, constituindo-se um dos grupos de população rural negra mais antigos da região. Para o grupo, o presente não se interpreta por si mesmo, mas está envolvido dentro de um discurso de valores “entre tempos”. Assim, todas as coisas que existem agora, e através das quais as pessoas se enfrentam, são deinidas a partir de um confronto com tempos anteriores, e pelas formas como os mesmos tipos de sujeitos e relações existiram dentro de cada um deles. A população explica a sua sociedade pelo desdobramento da mesma em duas etapas: passado e presente. Há uma época distante que quase não alcança a biograia de qualquer membro vivo da comunidade. Esse é o período que eles costumam chamar de “tempo antigo”. Finalmente, o “tempo novo” é o tempo deinido por eles como sendo de “benefícios”, em alusão às políticas públicas, usufruídas dentro do programa “Brasil Quilombola”.10 10 O Programa Brasil Quilombola foi lançado em 12 de março de 2004, com o objetivo de consolidar os marcos da política de Estado para as áreas quilombolas. Informações disponíveis em: <http://www.seppir.gov.br/comunidades-tradicionais/programa-brasil-quilombola>. Acesso em: 12 de novembro de 2014. 600 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 O lugar se particulariza a partir de visões subjetivas atreladas a percepções emotivas. As apreensões do lugar são derivadas da realidade circundante. Retomando o pensamento de Tuan, o qual associa sentimento com lugar, o autor assinala que “as imagens mudam à medida que as pessoas adquirem novos interesses e poder, mas continuam a surgir do meio ambiente” (TUAN, 2012, p. 170). Ao mirar seu ambiente circundante, o homem consegue traduzir suas experiências ao partir de uma realidade concreta: o aspecto físico, humano, sensorial. É essa totalidade que constitui a identidade do grupo, conferindo-lhe uma situação de luta ao manter fatos culturais que tornaram a comunidade símbolo de resistência. É com esse exemplo que retomamos a discussão inicial de ampliar conceptualmente lugar e elevá-lo à categoria em Toponímia. Nossa proposta, como base nas discussões já apresentadas, é partirmos do conceito de lugar como noção de sentimento de pertencimento, afetividade, mundo vivido e experienciado. Tuan (2012, p.135) fala em amor humano ou topofília: “laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente material”. Para tal proposição, ainda que não seja nosso objetivo aprofundar em questões vinculadas à Geograia Humanista e Cultural, nem tampouco à Fenomenologia Existencialista, é fundamental, como “pano de fundo”, que discutamos a partir dessas áreas do saber. Quando nos referimos a “sentimento de pertencimento e afetividade”, entendemos “pertencer” como fazer parte de alguma coisa, ter relação com; e “afeiçoar”, estima, consideração. O sentimento de pertencimento implica, portanto, manter vínculo com um determinado lugar, grupo, história. E a afeição se vale do sentimento de apego por alguém ou algo, afeiçoamento, que também pode ser entendido como relação, conexão. Segundo Tuan11 (2012, p. 136), “os pertences de uma pessoa são uma extensão de sua personalidade; ser privado deles é diminuir seu valor como ser humano, na sua própria estimação”. O caso de Morro de São João revela o quão a consciência do passado é um elemento importante Holzer (2003, p. 121), ao discutir a bibliograia de Tuan (1975), diz que em Place: an experential perspective, o autor “caracteriza o lugar a partir da experiência. O lugar, então, era avaliado como lar, em suas diversas escalas: o próprio lar, a vizinhança, a cidade, a região (o qual atribuía características semelhantes à da vizinhança), e o estado-nação. Mais tarde, com a publicação de Space and Place: the perspective of experience, Tuan (1983) consolida suas investigações a respeito de lugar. (TUAN, 1975 apud HOLZER, 2003, p. 121). 11 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 601 nos vínculos que a comunidade estabeleceu com o lugar, com o mundo vivido e experienciado. Ao assinalarmos que uma coisa é, aceitamos a sua existência; e ao dizermos o que ela é, deinimos a sua essência. De acordo com Rosental e Iudin (1972) “[...] A essência está relacionada com a consciência e com o pensamento”. (p. 92). “[...] A essência não existe fora das coisas, mas nelas e através delas, como a sua propriedade geral, como a sua lei (ROSENTAL; IUDIN, 1972, p. 93).” A busca pela essência é a busca de sua própria natureza. Segundo Pereira (2013), perceber o mundo e a existência do sujeito são ios de uma mesma meada, e o lugar, por sua vez, está encarnado no sujeito posto que a existência é espacial. “O mundo vivido é o lugar onde habitam os homens, e compreendê-lo é uma tarefa que exige um reaprender constante, um reapreender a ver o mundo e um reaprender a ver o lugar” (PEREIRA, 2013, p. 138). Para Clémente et al (1994, p. 130) Não existe, para o existencialismo, um sentido anterior à existência, nem qualquer sentido que não seja o que o homem lhe dá. É o que traduz a formula de Sartre: <A existência precede a essência> (CLÉMENT et al, 1994, p. 140). (grifos dos autores) [...] O existencialismo pretende airmar que o Homem, por assim dizer, se cria a si próprio, pelos seus actos e escolhas (CLÉMENT et al, 1994, p. 130). E assim, o conhecimento humano vai se apropriando lentamente e gradualmente da essência do mundo objetivo, e, por conseguinte, no seu desenvolvimento, nele se aprofunda. É pensar em como o homem se vê no mundo, suas percepções, atitudes e cosmovisão, como ele se relaciona e estabelece vínculos com o outro e com o próprio mundo circundante. O lugar emana luz, personalidade, existe um “sentido do lugar” (TUAN, 1979 apud HOLZER, 2003, p. 120). O lugar é visto como expressão de conteúdo estético e de sentidos. Ou seja: os sentimentos que o lugar suscita no homem, visual, olfativo, paladar e tato, os quais exigem uma interlocução, uma interação, com o ambiente que o envolve: interação aqui é partilhar sentidos, experiências com o outro. “A comunicação tem de ser compreendida a partir da estrutura do ser-aí12 como ser com 12 O ser-aí é interpretado como o ser que tem relações com o mundo. 602 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 o outro” (HEIDEGGER, 1988b, p. 362-363 apud DUARTE, 2005), p. 136.), de tal modo que a “análise ontológica da linguagem tem de ser, simultaneamente, uma análise da co-existência, do ser um com o ser outro. (DUARTE, 2005, p. 136)”. O mundo não é aquele que eu penso, mas aquele que eu vivo, estar aberto ao mundo é comunicar-se com o mundo. Para Milton Santos (2000, p. 269), a ideia de interação equivale a uma “verdadeira negociación social”, “Comunicar”, nos recuerda H. Laborit (1987, p. 38), “significa etimologicamente poner en común”. Esse processo, en el cual entran en juego diversas interpretaciones de lo existente, es decir, de las situaciones objetivas, resulta de una verdadera negociación social, de la que participan preocupaciones pragmáticas y valores simbólicos, “puntos de vista más o menos compartidos”. (SANTOS, 2000, p. 269)13 O autor chama atenção para a ideia de que relacionar-se com o outro implica a ideia de mundo. E o mundo adquire sentido no seio das relações de familiaridade e reciprocidade ao produzirem o sentimento de alteridade. Para inalizar, Santos (2000, p. 268) trata lugar com a acepção de existência de um mundo vivido. “Cada lugar es, a su manera, el mundo”. Para ele, existência é sinônimo de liberdade, no sentido da perspectiva ilosóica do existencialismo.14 É no lugar que a essência15 se torna existência. “Comunicar”, nos lembra H. Laborit (1987, p. 38, apud SANTOS, 2000), “significa etimologicamente colocar em comum”. Esse processo, no qual entram diversos jogos de interpretações do existente, ou seja, das situações objetivas, resulta de uma verdadeira negociação social, da qual participam questões pragmáticas e valores simbólicos, “pontos de vistas mais ou menos divididos”. (Tradução nossa) 14 Segundo Clemént et al (1994, p. 139 e 140), “do ponto de vista do existencialismo, deve-se partir da unidade sujeito e objecto. Esta unidade acha-se encarnada na <existência>, quer dizer, em certa realidade irracional. Ao dizermos que uma coisa é, admitimos a sua existência; quando dizemos o que ela é, deinimos a sua essência. A existência repercute no ser, não enquanto essência, mas no ser que se opõe ao nada. Existir é, pois, <ex-sistir>, no sentido de si próprio, de uma abertura do ser. <A essência do homem é a existência: escreve Heidegger”. 15 “Etim.: latim essentia, de esse, “ser”, tradução do grego ousia. Sentido comum: o que a natureza faz uma coisa ou de um ser. Filosoia: 1. Opondo-se a acidente, aquilo que constitui a natureza 13 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 603 Santos, ao recordar-se do ilósofo Michel Serres,16 remete lugar ao estado de relexão a respeito de nossa relação com o mundo. Um mundo cada vez mais globalizado, luido. É a nova ordem mundial. E apropriação da tecnologia torna os homens clandestinos, despaisados (estrangeiros), sem fronteiras. E o lugar pode passar a ter uma outra dimensão de “existência de um mundo vivido”. Segundo Pereira (2013, p. 90), vivemos e nos relacionamos com um mundo cheio de signiicados, e no debate sobre o lugar está imbricado a relexão sobre o mundo, uma vez que construir o lugar é também construir a nós mesmos. “Compreender um lugar e o nome que este carrega consiste em traduzir a emoção bruta que esse encontro faz nascer e crescer em nós, em outra linguagem possuidora de um poder de elucidação. Compreender é interpretar um sentido imediatamente percebido porque pertence ao próprio lugar” (BESSE, 2011, p. 130 apud PEREIRA, 2013, p. 90). Retomando, portanto, nossa proposta inicial de ampliação conceptual de lugar, com base em questões teóricas e metodológicas da Geograia Cultural e Humanista, reconhecemos lugar como uma dimensão de categoria analítica: motivacional, geográica, histórica, linguística, ideológica, sociocultural, identitária. E sua extensão semântica se dá no plano de compreendê-lo como sentimento de pertencimento, afetividade, mundo vivido e experienciado na relação que se estabelece entre o denominador e o designatum. 4 Caminhos a ainda trilhar Desde o início, uma questão dominou o cenário da investigação: qual é o status ou posição que lugar ocupa na área da Toponímia, ou seja, nomes de lugares? No nosso entender, lugar é mais que uma referência locacional. Não faz sentido algum estudar o lugar partindo apenas da localização, o lócus, recorte que se faz no/do espaço, espaço esse entendido como transformação social. Mas adiantamos que não foi nossa permanente de um ser, independentemente do que lhe acontece; neste sentido, próximo de “substância”. 2. Opondo-se à existência, o que é um ser, independentemente do facto de existir; neste sentido, próximo de “conceito”. (CLÉMENT et al, 1994, p. 127 e 128). 16 Michel Serres apud Santos (2000, p. 267) em uma entrevista a Bernardo Carvalho, Folha de São Paulo, 21 de abril de 1990. 604 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 pretensão alterar ou mudar, em sua essência, o conceito de Toponímia como o estudo do nome de lugar. A ideia vincula-se mais na perspectiva de uma ampliação conceptual no que se refere a lugar em Toponímia. A intenção foi construir uma proposição conceitual e metodológica que pudesse permitir elevar lugar à noção de categoria nessa área. Para tal empreitada, a contribuição do constructo teórico e metodológico da Geograia Cultural e Humanista foi fundamental. Partimos, então, do princípio que lugar é mais que o espaço apreendido e ocupado, localização referenciada, nomeada. Seguindo tal premissa, assinalamos que o conhecimento que abrange este estudo possibilita algo a mais, como o entendimento ou apreensão das relações (motivações) que são estabelecidas entre o homem e o nome de lugar. É neste sentido que a Toponímia, como disciplina vinculada à Onomástica, sugere um movimento de aglutinação de múltiplos aspectos sóciohistóricos, culturais, geográicos e linguísticos, dentre outros. Portanto, ao nomear um recorte cultural, o denominador vale de elementos descritivos de caráter objetivo (características geomorfológicas, fauna, lora etc) ou subjetivo (emoções, cores, cheiro etc). Qualquer elemento pode desencadear um vínculo que, na nossa concepção, é permeado de afetividade. O lugar passa a ter “alma”, é corporiicado e materializado no ato da denominação. O alçamento, enquanto categoria central, deu-se com uma discussão prévia das categorias espaço, território, paisagem e lugar, com base em Sueretegaray (2001) e Santos (2000). Daí o conceito em uma dimensão de categoria analítica: motivacional, histórica, linguística, ideológica, social, identitária. Considerando as discussões da Geograia Cultural e Humanista, acreditamos na ampliação conceptual de lugar como noção de sentimento de pertencimento, afetividade, mundo vivido e experienciado. Nesse sentido, percebemos o nome de lugar como um patrimônio linguístico e cultural, testemunho de uma comunidade. Materializado e corporiicado, o nome é um produto e o relexo social e cultural da cosmovisão de um grupo. Citando Fonseca (1997, p. 18), como referentes de uma realidade nomeada, objetos de uma cultura, os topônimos podem ser concebidos, de acordo como um centro político-social a partir do qual se organiza culturalmente um espaço geográico, sendo a nomeação de entidades geográicas uma manifestação especíica do poder organizador que um grupo exerce sobre a paisagem geográica. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 605 Referências ANDRADE, Karylleila dos Santos. Os nomes de lugares em rede: um estudo com foco na Interdisciplinaridade. Revista Eletrônica de Linguística Domínios de Linguagem, v. 6, n. 1, p. 205-225, mar.-jun 2012. ANDRADE, Karylleila dos Santos. Atlas toponímico de origem indígena do estado do Tocantins: Atito. Goiânia: Ed. da PUC Goiás, 2010. AZEVEDO, J. G. A tessitura do conhecimento em redes. In: OLIVEIRA, I. B.; ALVES, N. (Org.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 157p. BOEMER, Magali Roseira. A condução de estudos segundo a metodologia de investigação fenomenológica. Rev. Latino-am. de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 2, n. 1, p. 83-94, jan. de 1994. Disponível em: <http:// ftp.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/1350494711.pdf>. Acesso em: 16 de out. de 2014. CARVALHINHOS, Patrícia de Jesus. Onomástica e Lexicologia: o léxico toponímico com catalisador e fundo de memória. Estudo de caso: os sociotopônimos de Aveiro (Portugal). Revista USP, São Paulo, n. 56, p. 172-179, dez.-fev. 2002. CHAUÍ, Marilena. Experiência do pensamento. Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. CLAVAL, Paul. A Geograia Cultural. 2. ed. Florianópolis: Ed. UFSC, 2001. CLEMENT et al. Dicionário prático de ilosoia. Terramar: Lisboa, 1994. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. Revista pela nova ortograia. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e antroponímia no Brasil: Coletânea de estudos. 2. ed. São Paulo: Serviço de Artes Gráicas da FFLCH/USP, 1990. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Etnia e etnicidade. Um novo modo de nomear. Projeto ATESP/ATB. In: ISQUERDO, Aparecida Negri; FINATTO, Maria José Bocorny. As Ciências do léxico. v. IV. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008. p.177-198. 606 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. A toponímia como meio de investigação linguística e antropocultural. In: ISQUERDO, Aparecida Negri (org). Estudos geolinguísticos e dialetais sobre o português. Campo Grande: Ed. UFMS, 2008a. p. 215-231. DUARTE, André. Heidegger e a linguagem: do acolhimento do ser ao acolhimento do outro. Nat. hum. [online]. v.7, n.1, p. 129-158, 2005. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/nh/v7n1/v7n1a04.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2014. FONSECA, Gustavo Solis. La gente pasa, los nombres quedan... Introduccíon en la toponímia. Lengua e Sociedad: Lima, 1997. HOLZER, Werther. O conceito de lugar na geograia cultural-humanista: uma contribuição para a geograia contemporânea. GEOgraphia, ano V, n. 10, p. 113-123, 2003. Disponível em: <http://www.uff.br/geographia/>. Acesso em: 24 out. 2014. ISQUERDO, Maria Aparecida Negri; SEABRA, Maria Cândida Trindade Costa de. A trilha dos “buritis” no vocabulário onomástico-toponímico: um estudo na toponímia de Minas Gerais e de Mato Grosso do Sul. In: BARROS, Lídia Almeida; ISQUERDO, Maria Aparecida Negri (Org.). O léxico em foco. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. KANTOR, Íris. Usos diplomáticos da ilha-Brasil: polêmicas cartográicas e historiográicas. Varia História, Belo Horizonte, v. 23, n. 37, p. 70-80, jan.-jun. 2007. LAKATOS, Eva. M; MARCONI, Marina A. Metodologia Cientíica. São Paulo: Editora Atlas, 1991. MAIA, Adriano Correa; ALVES, Flamorian Dutra. Categoria e epistemologia: relexões teórico-metodológicas na ciência geográica. Encontro de Grupos de Pesquisa em Educação ANAIS V e Território, novembro de 2009. MELLO, João Baptista Ferreira de. A humanística perspectiva do espaço e do lugar. Revista ACTA Geográfica, ano v, n. 9, p. 7-14, jan.-jun. 2011. Disponível em: <http://revista.ufrr.br/index.php/actageo/article/ view/429>. Acesso em: 24 out. 2014. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 585-607, 2017 607 PEREIRA, Carolina Machado Rocha Busch. Geografias de mundo reveladas nas canções de Chico Buarque. 2013. 150f. Tese (Doutorado em Geograia) – Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Geograia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. PERIUS, Cristiano. A deinição da fenomenologia: Merleau-Ponty leitor de Husserl. Trans/Form/Ação, Marília, v. 35, n. 1, p. 137-146, jan.-abr. 2012. Disponível em: <http://www2.marilia.unesp.br/revistas>. Acesso em: 24 out. 2014. ROSENTAL, M. M.; IUDIN, P. F. Dicionário ilosóico. 3. ed. v. ABC. Editorial Estampa: Lisboa, 1972. SANTOS, Milton. La naturaleza del espacio. Técnica y tiempo – razón y emoción. Barcelona: Ariel Geografía, 2000. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Ensaios de ontologia fenomenológica. 7. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997. SUERTEGARAY, Dirce Maria Antunes. Espaço geográfico uno e múltiplo. Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, Universidad de Barcelona, n. 93, 15 jul. 2001. Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/sn-96.htm>. Acesso em: 23 out. 2014. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1983. TUAN, Yi-Fu. Topoilia. Um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Eduel: Londrina, 2012. ULLMANN, S. Semântica: uma introdução ao signiicado. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 “Tudo bem”, “tudo em paz” e “uma tremenda sorte”: Avaliações positivas no gerenciamento da incerteza na comunicação entre oncologistas e pacientes com câncer de mama ‘You’re all right’, ‘Everything’s ok’ and ‘tremendous luck’: Positive assessments in the managing of uncertainty in the communication between oncologists and breast cancer patients Joseane de Souza UNISINOS joseanedesouzabr@gmail.com Ana Cristina Ostermann UNISINOS ana.cristina.ostermann@gmail.com Resumo: Este artigo apresenta a investigação de interações entre oncologistas e mulheres com câncer de mama em consultas de acompanhamento ao longo de seus tratamentos ou de revisão. Especificamente, analisa-se como pacientes e médicos lidam interacionalmente com a impossibilidade de certezas nesse contexto. Além disso, relete-se brevemente sobre as implicações desse gerenciamento para a prática médica na oncologia. A metodologia utilizada advém da abordagem teórico-metodológica da Análise da Conversa ou Fala-emInteração (SACKS, 1992). Os dados (24 consultas gravadas em áudio) foram gerados em um hospital da região sul do Brasil, transcritos segundo convenções próprias da área (JEFFERSON, 1984) e então analisados. A análise revela como as ações de avaliação e solicitação de avaliação realizadas por oncologistas e pacientes operam de forma a lidar com eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.609-640 610 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 a impossibilidade da certeza nas consultas. No gerenciamento das incertezas envolvidas em consultas oncológicas, a análise também revela que e como as avaliações positivas produzidas pelos médicos podem ter consequências tranquilizadoras para a paciente. Palavras-chave: câncer de mama; análise da conversa; comunicação médico-paciente; gerenciamento da incerteza. Abstract: This article investigates interactions between oncologists and women patients of breast cancer in follow up appointments along their treatment or post treatment follow up appointments. In particular, we analyze how patients and physicians interactionally deal with the impossibility of certainty within this context. We also discuss on the implications of such interactional management for the medical practice. The theoretical and methodological perspective is that of Conversation Analysis or Talk in Interaction (SACKS, 1992). The interactions analyzed (24 audiorecorded consultations) were collected at a hospital in Southern Brazil, transcribed by using the conversation analytical conventions (JEFFERSON, 1984), and then analyzed. The analysis reveals the means by which the actions of evaluating and requesting for evaluation undertaken by oncologists and patients operate so as to deal with the impossibility of certainty in these consultations. In the management of uncertainty in the oncological consultations, the analysis also shows which and how positive evaluations produced by the physicians might have interactionally-demonstrated tranquilizing or alleviating consequences to the patients. Keywords: breast cancer; conversation analysis; doctor-patient communication; management of uncertainty. Recebido em: 25 de março de 2016. Aprovado em: 16 de junho de 2016. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 611 1 Introdução: uma lacuna de pesquisa habitada pela impossibilidade da certeza1 “Tá tudo bem.” Parece óbvio dizer que é isso que as pacientes com câncer de mama querem ouvir em suas consultas de revisão ou acompanhamento de seus tratamentos. O que não é nada óbvio é justamente desvelar como a impossibilidade da certeza (relativa ao estado de saúde das pacientes, à eicácia de seus tratamentos e à possibilidade de recidivas) perpassa as interações em suas consultas oncológicas. Não se trata aqui de perceber incerteza ou certeza por meio dos modalizadores linguísticos, como poderia se pensar em nossa área, mas por meio de ações interacionais coconstruídas e negociadas pelos interlocutores desse evento discursivo, o que constitui a abordagem da Análise da Conversa (SACKS, 1992) de base etnometodológica. Uma das vias pela qual observamos as incertezas, ou o “gerenciamento da incerteza”, termo que propomos aqui inspiradas em Fatigante e Bafaro (2014)2, é pela orientação de médicos e pacientes ao “tudo bem” e avaliações positivas equivalentes e escalonadas em consultas de acompanhamento e revisão do câncer de mama. Como esse gerenciamento da incerteza se revela nas interações é o que será descrito e discutido neste artigo, e também se reletirá a respeito da implicação desse gerenciamento para a prática médica concernente ao tipo de consulta em questão. Tenta-se mostrar que essa busca pelo “tudo bem” na consulta inicia-se com avaliações do próprio estado emocional produzidas pelas pacientes. Consequentemente, argumenta-se aqui, as avaliações positivas 1 Agradecemos à CAPES pelo apoio obtido por meio de bolsas de Doutorado e de PósDoutorado concedidas à primeira autora, e também ao CNPq, à CAPES e à FAPERGS pelo apoio obtido através de Bolsa de Produtividade (Processo CNPq n.º 311473/20121) e pelos auxílios à pesquisa obtidos através dos editais MCT/CNPq/MEC (Processo n.º 401569/2010-1) e PPSUS MS/CNPq/FAPERGS 06/2006 (Processo n.º 0700767) à segunda autora. 2 Marilena Fatigante e Saverio Bafaro, linguistas de Sapienza – Universidade de Roma, na Itália, propõem o termo management of uncertainty ao investigarem como ocorre a entrega de opinião especializada em consultas entre ginecologistas e obstetras e pacientes gestantes. Esse contexto, entretanto, difere do contexto de pesquisa sendo apresentado neste artigo, uma vez que não lida com as incertezas inerentes aos tratamentos e desdobramentos do câncer de mama e com as especiicidades do tipo de interação sob análise. 612 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 dos médicos em resposta apresentam um potencial de tranquilização das pacientes – o que funciona como um ‘atestado de saúde’, uma espécie de ‘carimbo institucional’ de que elas estão bem (isso pelo menos até a próxima investigação via exames), e por isso a escolha do termo “gerenciamento da incerteza” para retratar a maneira como os participantes lidam com o problema da impossibilidade da certeza nesse contexto. A preocupação com consultas dessa natureza (acompanhamento e revisão) provém da constatação de que a literatura sobre comunicação médico-paciente com câncer concentra-se ou em momentos de diagnóstico da doença, ou em desdobramentos de casos terminais, em que não há mais nada a ser feito pela doença em si. Ou seja, consultas de acompanhamento e revisão tendem a não ser objeto de análise. Ao mesmo tempo, a literatura existente sobre consultas oncológicas é embasada em uma larga quantidade de estudos realizados por meio de entrevistas ou questionários que olham para o que os/as proissionais da saúde e os/as pacientes têm a dizer sobre suas consultas depois que elas já aconteceram, assim como já apontado em outros estudos sobre a comunicação proissional da saúde-paciente (OSTERMANN; MENEGHEL, 2012). As pesquisas brasileiras que se ocupam da relação médicopaciente na oncologia basicamente iniciam seus trabalhos a partir do tema da comunicação de más notícias, ou da revelação em si do diagnóstico de câncer. Conforme Valéria Silva e Márcia Zago (2005), o interesse pela comunicação médico-paciente no momento da revelação do diagnóstico de câncer cresce em função do envolvimento de aspectos psicológicos, físicos e interpessoais que podem resultar em conlitos de diferentes naturezas e afetar sintomas, tratamento e resultados. Também Ana Valéria Miceli (2009), para citar mais um estudo da área, constatou, em pesquisa conduzida no Instituto do Câncer do Rio de Janeiro (INCA), que pacientes com câncer valorizam o tratamento atencioso do médico mais do que a própria supressão da dor. A autora aponta para a relação imediata entre a qualidade da comunicação médicopaciente e a satisfação do paciente e a crença nos resultados do tratamento. Além disso, Miceli (2009) airma que pacientes que expressam mais suas preferências e preocupações e que fazem mais perguntas possibilitam ao médico prover mais informações, acomodar pedidos e oferecer suporte, o que legitima “um contínuo envolvimento do paciente. Isto relete a dinâmica da reciprocidade comunicacional e a mútua inluência nos encontros” (p. 86-87). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 613 Ainda que o estudo de Miceli aborde a conjuntura da relação médico-paciente do ponto de vista tanto dos “direitos e deveres” do paciente quanto do médico, grande ênfase é dada ao sofrimento dos proissionais envolvidos diariamente com a comunicação de notícias difíceis e, em outros estudos, até mesmo com as perdas constantes (mortes) de seus/suas pacientes. É o caso, por exemplo, da cartilha Comunicação de notícias difíceis: compartilhando desaios na atenção à saúde, lançada pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), no ano de 2010, em uma parceria com o Hospital Albert Einstein, no Rio de Janeiro, a ser distribuída ao Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS). O estudo que originou a cartilha deu atenção quase unicamente a relatos das equipes médicas pesquisadas, em reuniões semanais, sobre sua diiculdade interacional e sobrecarga emocional ao comunicar notícias difíceis (INCA, 2010). Parafraseando uma das coordenadoras da pesquisa, a ênfase foi dada primordialmente ao cuidado com o cuidador, ou seja, a preocupação central são os proissionais da oncologia (INCA, 2010, p. 24). Assim, tal pesquisa não levou em consideração as ações e os entendimentos construídos conjuntamente na interação por oncologista e paciente nesses momentos, via dados naturalísticos, como é o caso da pesquisa que originou o presente artigo, desdobramento de uma tese de doutorado em Linguística Aplicada. Dessa forma, a cartilha, subproduto do estudo do INCA, baseia-se muito mais em impressões contidas nos relatos (do que seria adequado fazer naquele momento) construídas pelo grupo de trabalhadores pesquisado, do que em práticas exemplares, identiicadas a partir de dados naturalísticos, que tenham dado certo com membros da equipe por surtirem efeitos positivos nos pacientes. É dentro desse cenário – de uma lacuna de pesquisas que se debrucem sobre consultas de acompanhamento e revisão e que foquem no que de fato acontece entre os interagentes em questão – que este estudo emerge. Por meio deste artigo, queremos demonstrar a importância de: (1) se investigar dados naturalísticos da interação médico-paciente, assumindo uma perspectiva de linguagem em uso, e de (2) se investigar as consultas pós-diagnóstico no contexto do câncer de mama em situações em que aparentemente não há nenhum problema novo, e nenhuma paciente está em estado terminal, para daí, então, lançarmos sugestões para a prática proissional. Essas consultas não têm sido objeto de estudo no Brasil, sob perspectiva teórica alguma, entretanto somam a maior parte do dia-a-dia dos consultórios oncológicos e constituem-se no mais 614 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 longo período de vivência dessas mulheres como pacientes com seus/ suas respectivos/as médicos/as. Este artigo, assim, analisa como pacientes e médicos lidam, em suas consultas, com a impossibilidade de certezas. Contudo, antes que se passe à análise, faz-se necessária uma discussão sobre avaliação, posicionamento epistêmico e ailiação, já que esses conceitos serão fundamentais para as discussões do artigo, e a apresentação da metodologia utilizada no estudo. 2 Avaliação: quem faz, quem pode fazer, como se faz e o que ela faz nas interações? A pergunta polar “tá tudo bem?” (polar porque é formatada para receber sim ou não como resposta), analisada neste artigo, aponta para uma preferência por uma conirmação ou concordância como resposta (HERITAGE; RAYMOND, 2012). Nas respostas ao “tá tudo bem?” das pacientes, os médicos muitas vezes respondem com um “tudo bem”. Para Heritage e Raymond (2012), a repetição que conirma, mais do que apenas assente, tem o papel de corroborar o direito epistêmico de quem conirma (aqui o médico) em determinar se a inferência feita pelo falante (aqui a paciente) pode ser feita de fato. Ao mesmo tempo, essa pergunta das pacientes é a solicitação para que os médicos realizem uma avaliação de seu estado de saúde. Anita Pomerantz (1984, p. 57) airma que “[a]valiações são produzidas como produtos de participação; com uma avaliação, um falante alega conhecimento daquilo que está avaliando”. Charles Goodwin e Marjorie Goodwin (1992) deinem ‘avaliação’ como uma atividade que envolveria, por exemplo, uma descrição e então a avaliação propriamente dita – como quando uma pessoa narra a outra um ilme a que assistiu e adiciona uma avaliação sobre ele, muitas vezes em um mesmo turno de fala. O autor e a autora airmam que “[...] a atividade de realizar avaliações constitui um dos lugares-chave em que os participantes negociam e mostram um ao outro uma visão congruente dos eventos com os quais eles se deparam em seu mundo.” (1992, p. 182). Para ins desta análise, deinimos avaliação como a produção de uma ideia ou opinião sobre algo subsidiada pelo conhecimento que o avaliador tem sobre o que está avaliando (vide “posicionamento Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 615 epistêmico”, discutido a seguir), ainda que seu “projeto”3 de avaliação não receba tratamento pelo outro. Como se tratam de consultas médicas, tanto os médicos quanto as pacientes podem realizar avaliações de acordo com o que eles conhecem sobre algo, baseando-se em seu saber, participação ou experiência – não sendo, então, uma atividade exclusiva dos médicos por serem representantes do “saber técnico-cientíico”, já que as pacientes têm o conhecimento relacionado a seu corpo, sua história e suas sensações. Pomerantz (1984) trata de concordâncias e discordâncias de falantes correntes com avaliações produzidas pelo falante anterior. A autora considera que avaliações são ações que geram adjacência ao requerer avaliações em resposta (segunda posição) que concordem ou discordem da avaliação em primeira posição.4 Contudo, Tanya Stivers e Federico Rossano (2010) consideram avaliação uma ação que não necessariamente mobiliza resposta e não constrói adjacências – ou seja, não gera a relevância de uma segunda parte – com a mesma força com que o fazem ações como perguntas, pedidos ou convites. Esse argumento baseia-se no fato de que, nas sequências em que, por exemplo, perguntas, pedidos ou convites são realizados, há uma orientação dos interlocutores a uma resposta ou a uma explicação para a ausência da resposta, diferentemente do que acontece em alguns tipos de avaliações. Os autores explicam que a construção de adjacência e mobilização de resposta não está somente no que Emanuel Schegloff e Harvey Sacks (1973) chamaram de relevância condicional, referindo-se às propriedades funcionais das ações (para cada tipo de ação iniciadora de uma sequência, um tipo respectivo de ação é esperado em resposta), em que o formato do turno vai determinar o tipo de resposta a ser provida. Stivers e Rossano Por projeto, Harvey Sacks (1992) e Anita Pomerantz (1988) referem-se ao propósito de uma pergunta / contribuição de um falante que pode ser reconhecido pelo interlocutor (e isso então se mostra em sua resposta). Esse reconhecimento do projeto / do propósito pode acontecer tanto em situações mais explícitas, em que o propósito de fato ica claro em algum elemento do design do enunciado que o falante utiliza (uma expressão especíica, ou a entonação empregada) ao fazer uma pergunta, por exemplo, ou ser mais implícito, depender de maiores inferências do interlocutor. 4 Há que se explicar primeiramente que ações em primeira posição são as que criam a necessidade de uma resposta na sequência, também chamadas de geradoras de adjacência (e.g. Você me daria um copo d’água?), e não as respostas em si, que são, então, ações em segunda posição (e.g. Aqui está seu copo d’água). 3 616 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 concordam com Schegloff e Sacks, mas observam que até então não se pensara na possibilidade de o formato do turno “condicionar se uma resposta é ou não mobilizada de todo” (p. 4, grifo nosso). Stivers e Rossano (2010), então, listam as características de formato de turno que mobilizam ou não resposta de acordo com o que observaram em seus dados: (a) léxico-morfossintaxe interrogativa (palavras e ordem de palavras específicas envolvidas na ação de perguntar – ordem de palavras aqui se refere à inversão auxiliarpronome da língua inglesa, não encontrada no português); (b) prosódia interrogativa (entonação ascendente em contraposição a entonações descendente ou contínua da fala); (c) condição e posição epistêmica do interlocutor (possibilidade de acessar o objeto da avaliação para produzila ou obrigatoriedade de saber sobre o assunto); e (d) olhar do falante (característica multimodal de direção do olhar, de contato de olhos entre os falantes, etc). Essas características de formato de turno, estreitamente relacionadas a formatos de solicitação de informação, são importantes na mobilização de respostas, ou seja, na criação de adjacência e de relevância condicional, além da própria ação que está sendo produzida e da posição sequencial em que é realizada – que obviamente também são relevantes. Outro conceito importante neste artigo é o de ailiação. Stivers (2008) entende que o termo ailiação descreve ações em segunda posição (normalmente em resposta a uma primeira ação) que dão suporte ao ponto de vista ou posicionamento (no inglês, stance) do interlocutor. Ela ainda airma que o ponto de vista/posicionamento pode ser entendido como o “tratamento afetivo do falante para com os eventos que ele ou ela está descrevendo” (STIVERS, 2008, p. 37). Assim, expressar um ponto de vista compatível com aquele construído por quem acabou de contar uma história, por exemplo, é considerado uma ação ailiativa. Para Steensig (2012), turnos ailiativos em segunda posição são os que (a) demonstram empatia, (b) oferecem suporte a posicionamentos, e (c) mostram-se colaborativos com a preferência das ações. O excerto a seguir, de uma das interações do corpus, ilustrará esse conceito: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 617 Excerto 1: 124 125 126 127 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 140 141 142 143 144 FRANCINE: SILVIO: FRANCINE: SILVIO: FRANCINE: SILVIO: FRANCINE: SILVIO: FRANCINE: FRANCINE: SILVIO: bom (.) eu ã hhh .hh comece:i no- não- ã (.) ↓lá em se↑tembro em diante outubro em diante não sei se foi coinci↑dência que eu tava (cuidando) comecei a tê assim (.) uma irritabilidade tão grande a:rrãm ↑ufe- que (ninguém) me aguentá- aguen[ta:va, [nem tu te aguentava nem eu me aguentava ã- as- uma co:isa e eu pa- parece assim que tudo aquilo que eu tive que:: segurá durante o tratamento explo↑diu só- chegô. agor::a (deu) hahaha te concedeu o:: é. =a oportunidade [(também)] [olha:, é aí eu comecei a analisá a situação tava >icando difícil icando difícil< aí eu procurei u::m (.) terapeuta. ótimo. O continuador da linha 129 representa um alinhamento, isto é, contribui para que a paciente continue em sua narrativa. Já a avaliação positiva de Sílvio na linha 144 não apenas contribui para a manutenção da atividade em que ambos estão engajados, como também consiste no ponto de vista de Sílvio a respeito do fato que ela está contando, constituindo uma ação ailiativa – sua aprovação da atitude da paciente. Segundo Lindström e Sorjonen (2013), ações afiliativas frequentemente são formatadas como preferidas5. As autoras discutem 5 Ação preferida é aquela socialmente esperada. Por exemplo, quando alguém faz um convite, espera que seja aceito. A recusa constitui uma ação despreferida. “As ações preferidas / despreferidas têm também o que chamamos de ‘formatos (tecnicamente) preferidos / despreferidos’. Uma ação apresentada em formato preferido é normalmente produzida de forma direta, sem atrasos, sem hesitação, sem justiicativas (e.g. um aceite a um convite com um curto ‘Sim.’). Já o formato despreferido caracteriza aquelas ações que são produzidas de forma mais alongada, com atrasos, hesitações, justiicativas (e.g. declinar um convite produzindo algo como ‘Poxa. Logo hoje. Sabe o que é? É que hoje eu já tinha marcado de fazer um exame lá no centro.’).” (SOUZA; OSTERMANN, 2012, p. 163) 618 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 vários estudos que apontam que respostas a ações em primeira posição, tais como pedidos, convites, avaliações, autorreprovações, acusações, indicam uma ligação entre o seu formato e o posicionamento / ponto de vista expressado pelo falante. Lindström e Sorjonen (2013) dão o exemplo de um convite que é rejeitado (ação despreferida) apontando para como o formato dessa rejeição (com atrasos e justiicativas) é produzido de maneira a atenuar seu “impacto desailiativo” e “minimizar a afronta à solidariedade social” (LINDSTRÖM; SORJONEN, 2013, p. 350), isto é, lidar com o caráter de despreferência de uma desailiação. Além disso, consideramos que, ao avaliar, o falante também se posiciona epistemicamente a respeito do objeto que avalia (e isso atualiza no aqui-e-agora seu status epistêmico, que, portanto, não é ixo). Para Heritage (2012), o posicionamento epistêmico6 refere-se à exibição de conhecimento situadamente nas relações sociais, o que engloba o status epistêmico dos falantes; entretanto, o autor esclarece que o status epistêmico a priori de um falante e um posicionamento epistêmico seu podem não convergir, dependendo do fazer de cada um na interação. Esses posicionamentos (epistêmicos) acontecem por meio do formato (e.g. mais ou menos declarativo, com ou sem modalizações, etc.) dos turnos de fala dos interagentes e da natureza da ação que o turno desempenha (no caso deste artigo, uma avaliação de um proissional). Então, ao se considerar determinadas ações como avaliações neste artigo, quer-se chegar no ponto de congruência entre (a) uma ação estar sendo entendida como uma avaliação ou não, (b) o falante seguinte ter ou não a condição e a posição epistêmica para avaliar, (c) o formato desse turno ter ou não gerado uma adjacência, ou seja, ter mobilizado (no sentido de requerido) uma resposta. Além desses pontos, há que se atentar para a diferença entre a simples produção de uma avaliação (por meio de um formato que não necessariamente gere a relevância de uma avaliação em segunda posição) e a explícita solicitação de uma avaliação (por meio de um formato que gere necessidade de uma avaliação em resposta ou de uma justiicativa para sua ausência – o que acontece por meio de perguntas diretas, por exemplo). 6 Posicionamento epistêmico traduz o termo epistemic stance, já posição epistêmica aqui é como traduzimos o termo epistemic status (HERITAGE, 2012). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 619 3 Metodologia Os dados utilizados neste artigo são naturalísticos. As interações das 20 consultas médicas de revisão ou de acompanhamento ao longo de tratamentos de pacientes com câncer de mama e seus oncologistas foram coletadas em um hospital da rede privada brasileiro em áudio e depois transcritas seguindo as convenções da área (JEFFERSON, 1984)7. Uma tabela com a versão resumida dessas convenções é apresentada na Figura 1, a seguir. [texto] (1.8) (.) , . ? : TEXTO Texto (texto) XXXX ((texto)) haha ◦texto◦ ↑ ↓ >texto< <texto> = h .h Falas sobrepostas Pausa Micropausa Entonação contínua Entonação descendente do turno Entonação ascendente do turno Alongamento de som Fala com volume mais alto Sílaba, palavra ou som acentuado Dúvida na transcrição Trecho inaudível Comentários da transcritora Risada Fala em volume mais baixo Entonação ascendente da sílaba Entonação descendente da sílaba Trecho de fala mais rápida Trecho de fala mais devagar Interrupção abrupta da própria fala Fala colada Expiração audível Inspiração audível Figura 1 – Convenções de transcrição, adaptadas de Jefferson (1984) 7 Algumas das interações foram transcritas pelas bolsistas do Grupo do Diretório de Pesquisas do CNPq Fala-em-Interação em Contextos Institucionais e NãoInstitucionais, coordenado pela segunda autora, em 2012, e então revisadas várias vezes pela primeira autora ao longo dos anos de 2013 a 2015. 620 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 Salienta-se que o projeto de pesquisa do qual este artigo deriva tramitou por dois comitês de ética (o da universidade e o da instituição pesquisada)8. Os dados foram analisados de acordo com a abordagem teórico-analítica da Análise da Conversa (SACKS, 1992) ou Análise da Fala-em-Interação, termo mais utilizado para referência a estudos que investigam as ações dos participantes em contextos institucionais (DREW; HERITAGE, 1992). Sob essa perspectiva, faz-se uma análise sequencial para ver os entendimentos que são construídos pelos interlocutores, ou seja, entendese que cada turno de um falante corrente carrega o entendimento que esta pessoa tem da última fala do falante anterior, e assim sucessivamente, numa maquinaria que consiste em uma troca de turnos de fala. Para a análise da fala-em-interação, é na troca de turnos e em cada turno em si que as pessoas constroem suas ações no mundo, e o lócus dessas ações é a interação. Tal abordagem não objetiva interpretar o que um participante “quis dizer” com determinado enunciado, mas sim como o outro participante (o próximo falante) compreendeu esse enunciado, descrevendo as práticas por meio das quais os participantes realizam suas ações. O entendimento de ação possui papel central na sequencialidade. A cada novo turno (ou vez de falar) em que “respondemos” a uma fala de um falante anterior, demonstramos a atribuição de sentido que izemos da fala recém-produzida pelo outro. Na verdade, entende-se que a conversa só é possível devido a esse pré-requisito de atribuições de sentido às ações de acordo com o que estamos ouvindo. Levinson (2013) explica que o entendimento do que o outro está a produzir e a consequente atribuição de sentido à ação que ele está a construir se dá de maneira muito rápida, enquanto o primeiro falante ainda está a produzir seu turno de fala. Assim, com base em elementos que já são compartilhados pelos falantes como sistema gramatical, entonação e outras características na produção dos sons, reconhecimento de elementos multimodais como gestos, olhares e direcionamento corporal e a relação entre esses elementos e dados contextuais e situacionais, conseguimos reconhecer e atribuir 8 O projeto de pesquisa A construção de tópicos delicados na fala-em-interação em consultas oncológicas gerou, no comitê de ética da instituição pesquisada, a homologação número 493/11; já na instituição de ensino superior à qual as autoras estão vinculadas, a homologação número 11/128. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 621 sentido à determinada ação enquanto ela é produzida e, assim, podemos instantaneamente agir a partir dela. A maior evidência de que realmente tudo acontece muito rápido é o fato de que, como falantes, conseguimos produzir até mesmo sobreposição de falas, muitas vezes antecipando nosso entendimento do que o outro ainda está a inalizar. Dessa forma, pares de ações adjacentes se formam, e eles são a base do entendimento das ações para os analistas: falas concatenadas como pedido de informação-provimento de informação, convite-recusa, convite-aceite, avaliação-avaliação, etc, permitem que o analista tome como base a ação em resposta de um falante para chegar naquilo que ele entendeu da ação do primeiro falante. 4 A busca pelo “tudo bem” 4.1 “Solicitações” de avaliação mitigadas: As avaliações de estado emocional das pacientes feitas por elas mesmas A interação a seguir acontece entre um oncologista e uma paciente que já tratou o câncer de mama e está na fase de consultas periódicas de revisão. O objetivo dessa consulta para a paciente é coletar a requisição para fazer exames de controle. Observe-se como a avaliação de estado emocional que a paciente produz aqui é mitigada. Por meio da discussão de seu formato, pondera-se se ela de fato cria a relevância por uma avaliação do médico em resposta. Excerto 2 1 SALETE: 2 ALBERTO: 3 SALETE: 4 5 ALBERTO: 6 7 SALETE: 8 9 ALBERTO: 10 11 SALETE: 12 13 ALBERTO: 15 SALETE: 16 oi hãhãh tudo bom? tudo bom. (2.9) como é que estamos? (1.1) estamos b↑em (.) agora quando chega a época da revisão é que: (1.1) dá um pouco de medo hã[heh] [↑é::] (0.5) >aí o senhor pediu< pra mim vim em julho né (0.7) [aí ] = [isso] =como a gente tá no inal do mês já daí eu já vim buscá a requisiçã:o (0.4) 622 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 17 ALBERTO: 18 SALETE: 19 ALBERTO: tá bem pra fazer os °exa↓mes° >a gente< tinha se visto em março ↑né Depois da troca de cumprimentos entre os falantes, Salete orientase para a pergunta da linha 5 como um convite à avaliação / elaboração de sua condição de saúde. Das linhas 7 a 8, ela provê a avaliação de sua condição de saúde e, após uma micropausa, produz uma avaliação de sua condição emocional ao dizer que quando chega a época da revisão [...] dá um pouco de medo. Assim, a fonte geradora desse medo seria a revisão, ou, mais precisamente, seriam os exames que terá que fazer e que apresentarão resultados com os quais terá que lidar. É nesse ponto que a avaliação de Salete sobre si mesma assemelha-se a uma queixa ou à apresentação de um problema e vai ao encontro do fato de as queixas serem ações constituintes de consultas médicas – o motivo da consulta (HERITAGE; MAYNARD, 2006). A avaliação de sua condição emocional nas linhas 7 e 8 é produzida com um formato que não coloca pressão no médico para produzir uma resposta, ou seja, que não gera uma relevância condicional. A paciente aloca sua avaliação e o tópico medo como informação adicional logo depois de responder (estamos b↑em) à pergunta do médico; como uma segunda UCT9 naquele mesmo turno, que funciona como uma espécie de extensão da primeira ação, a de responder ao “como é que estamos”. Assim, ica a critério de Alberto, e não sua obrigação sequencial (tal como seria em um par adjacente), lidar com a avaliação de condição emocional exibida pela paciente, o que aqui ele, de fato, não faz. Em outras palavras, há uma pergunta (linha 5), uma resposta (linha 6) e uma terceira parte (↑é::, da linha 8), que encerra a sequência. A informação sobre sentir medo da época da revisão, além de ter sido embutida em uma resposta ao “como é que estamos” do médico, também não é uma pergunta e, por isso, não gera um novo par, não gera relevância condicional. Além disso, a avaliação de sua condição emocional feita pela paciente é realizada em uma fase da consulta médica em que normalmente médicos recolhem 9 UCT, sigla para unidades de construção de turno, é a unidade básica de análise na abordagem da Análise da Conversa. Pode ser um som, uma palavra, uma sentença, qualquer unidade que tenha sentido para os falantes na ocasião da interação (SACKS; SCHEGLOFF; JEFFERSON, 1974). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 623 informação, e não proveem informações, como na fase de entrega de diagnóstico ou após uma avaliação física da paciente. No que tange ao formato desse turno, Salete alonga a palavra que: na linha 8 e produz uma pausa relativamente longa, de mais de um segundo. Lembramos aqui que uma pausa dentro de um turno de fala, antes da completude gramatical e semântica de um enunciado, é diferente de uma pausa ao inal dele – que por sua vez seria um lugar relevante para troca de falantes. Assim, por ser intraturno, essa pausa torna-se um atraso no que a paciente estava dizendo. Após esse atraso, Salete explicitamente diz que sente medo, produzindo riso a seguir. Markku Haakana (2001) sugere que esse tipo de riso em contexto médico-paciente caracteriza a produção de ações delicadas (que aqui pode ser revelar algo mais íntimo, como sua condição emocional), demonstrando reconhecer a delicadeza da sua ação. Além disso, pode estar minimizando um possível caráter de “queixa” de sua fala. Assim, estamos diante de uma avaliação em uma posição sequencial que não mobiliza uma resposta, ou seja, acaba por não tornála sequencialmente relevante. Além disso, o enunciado de Alberto na linha 9, após a avaliação de Salete, parece estar em consonância com sua condição epistêmica sobre o medo da paciente: o oncologista não tem acesso a ele; portanto, sem condições de proferir uma avaliação em resposta, seu ↑é::: marca sua posição epistêmica de apenas recebedor dessa informação. Entretanto, se nos perguntarmos o que a avaliação de Salete após o estamos b↑em estava fazendo ali, podemos especular que tinha um projeto (SACKS, 1992; POMERANTZ, 1988; LEVINSON, 2013) de falar sobre um sentimento com o médico, aparentemente abandonado pela própria paciente naquele momento da consulta a favor da continuidade da agenda do tratamento do câncer (ROGERS; TODD, 2010) – especiicamente, ter acesso às requisições que possibilitarão a revisão propriamente dita. Nota-se que seu medo também não é retomado pelo médico em momento posterior. Apesar de o formato da avaliação de estado emocional pela paciente aparentemente não suscitar relevância condicional para que haja um tratamento dessa demanda emocional naquele exato momento, nem a fase da consulta ser normalmente a de um parecer do médico, a natureza da fala da paciente em sua avaliação (emocional) nos aponta para a instauração de uma demanda nessa consulta: a busca pelo “tudo bem”, ou, em outros termos, a busca pelo “carimbo institucional” de 624 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 que está tudo bem com a sua saúde e que a paciente em questão está livre de uma recidiva. No entanto, airmações dessa natureza não são possíveis nesta consulta. Lembrando o contexto desse encontro, Salete está ali para pegar a requisição para fazer seus exames de revisão. Qualquer avaliação positiva que o médico izesse naquele momento em que Salete explicitara seu medo implicaria em problemas quando da revelação dos resultados dos exames de Salete, no caso de o quadro ser de uma má notícia. Assim, seria um posicionamento do oncologista não suicientemente fundamentado em evidências biomédicas. O próximo excerto é de outra interação, também de uma paciente em época de retorno para fazer sua revisão. Nota-se que novamente a avaliação de estado emocional apresentada pela paciente não recebe uma avaliação em resposta. Excerto 3 1 2 3 4 5 6 7 ALBERTO: ROSANE: ALBERTO: ROSANE: ALBERTO: ROSANE: 8 ALBERTO: 9 ROSANE: 10 11 ALBERTO: 12 e aí, (.) °e aí°= =>como que tá:< (.) tudo bem? tu:do bem, como é que estamos, tô bem (1.0) >tudo< em pa:z, tudo em pa:z, ATÉ O MOME:nto né (2.0) tá bo:m, (.) tá- <tem fe:ito a vaci::na,> (1.0) deixa eu vê desde quando aqui:. (1.0) quando é que [foi a última] Nas linhas 1 a 3, médico e paciente trocam cumprimentos e, nas linhas 4 e 5, a sequência do “como vai?” (ou do “tudo bem?”). Na linha 6, podemos dizer que esse novo turno de como é que estamos equivaleria a uma solicitação da condição de saúde da paciente, como Jeffrey Robinson (2006) observa. Contudo, o como é que estamos, como também vimos no Excerto 2 (paciente Salete), é como Alberto solicita condições de saúde da paciente e move-se para o motivo da consulta. Rosane, na linha 7, responde à pergunta de Alberto com um tô bem, não produzindo elaborações para essa contribuição. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 625 O oncologista então provê uma formulação – seu entendimento da resposta de Rosane – que vai um pouco além, oferecendo uma ideia, uma avaliação a ser conirmada (>tudo< em pa:z, na linha 8). Note-se que há a preferência por uma concordância em resposta marcada no formato da pergunta de Alberto, com entonação ascendente. A formulação de Alberto é entendida por Rosane como uma solicitação para que ela também produza uma avaliação, porém ela tem que lidar com o formato da pergunta que expressa a preferência pela concordância. A paciente, então, na linha 9, concorda sem delonga – formato de concordância que Sacks (1987) já observara – utilizando a mesma avaliação do médico em resposta (tudo em pa:z,) no primeiro UCT. Contudo, ela adiciona, em segundo UCT, a ideia de que a paz poderá não existir mais dependendo de como estiver sua condição de saúde pós-exames. O volume mais alto em ATÉ O MOME:nto né participa desse formato de seu posicionamento relativo a como se sente. Ao mesmo tempo, esse segundo UCT da paciente vislumbra uma discordância parcial da ideia do médico de que esteja “tudo em paz”. É como se ela, uma vez cerceada pelo formato da solicitação do médico e pela preferência ali exibida, tivesse como única saída produzir uma expansão do turno para mostrar a discordância parcial, em vez de prontamente responder que “não, não está tudo em paz”. Parece ser essa discordância parcial que corrobora, ao topicalizar indiretamente, certa apreensão da paciente – alguma preocupação em ter que lidar com sua condição de saúde novamente, e sentir-se em paz poderá, assim, não ser mais possível, a partir do que os novos exames apresentarem. Depois do turno de Rosane na linha 9 e de dois segundos de silêncio, o tá bo:m de Alberto marca seu movimento de iniciar uma atualização do estado de saúde da paciente em seu próximo UCT; assim, a avaliação de Rosane na linha 9 acaba não sendo tratada pelo médico. Ele não volta a topicalizar o assunto trazido pela paciente via avaliação em outro momento da consulta; há apenas uma pergunta direta da paciente que requer uma avaliação do médico ao inal da consulta, o que será visto na subseção perguntas diretas aos médicos. Há que se ponderar, contudo, que há um problema aqui envolvendo posicionamento epistêmico do médico nesse momento: se ele produzisse algo como uma discordância (nesse caso, uma ação preferida) em resposta, como: “não, mas vai continuar tudo bem, tudo em paz”, isto é, um movimento ailiativo ou de solidariedade social, ele poderia comprometer-se para além do que 626 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 pode, pois ainda não sabe se os exames trarão uma desestabilização da paz de Rosane ou não. Novamente vimos que as avaliações de estado emocional produzidas pelas pacientes são problemáticas: sua posição na interação equivale a uma contribuição mais mitigada, além de lidar com um aspecto – o emocional – que muitas vezes escapa à identidade ainda biomédica do metier dos médicos em contraposição ao metier dos psicólogos, por exemplo. Entretanto, parece haver uma orientação dos oncologistas à natureza da consulta (se de revisão, se primeira consulta) e à consequente relação médico-paciente podendo ser estreitada em situações pontuais. Assim, apesar de sair da proposição inicial deste artigo de deter-se na organização das consultas de acompanhamento e revisão, a interação seguinte, que vem de uma primeira consulta oncológica, vale ser mostrada, uma vez que também envolve uma avaliação da paciente sobre seu estado emocional. Nessa consulta, a paciente está acompanhada pelo marido e ilha. Ela fez a cirurgia em sua mama há pouco e está ali para decidir sobre os tratamentos a serem seguidos. Nota-se que, diferentemente das consultas anteriores (de revisão), nesta a paciente recebe uma avaliação em resposta. Excerto 4 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 SILVIO: ANELISE: SILVIO: ANELISE: SILVIO: ((nome de uma mastologista)) já fomos pra lá e e::m (.) uma semana eu já tava fazendo biópsia mhm. aí conirmô e:: (>aqui estamos<)= =e lamentavelmente chegamos a isso hah hh ↑não mas sabe que pra te falar bem a verdade foi uma tremenda sorte viu uma lesão relativamente pequena relativa não- é pequena (0.9) hhhh o fato é o seguinte ó (.) chegou cedo numa lesão pequena sem envolvimento de axila (.) portanto uma lesão localizada isso é excelente (.) (me antecipa) o prognóstico (.) é: as características (.) microambientais delas: que nos são um pouco divididas (.) hhhh ao mesmo tempo que ela veio o HER2 negati:vo BOM receptor hormonal positivo pra estrógeno (.) nãopra progesterona BOM TAMBÉM (.) negativo pra estrógeno tudo bem é ruim mas também o fato de ser positivo para Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 80 627 estrógeno já compensa ((entendo que ele quis dizer “progesterona”, conforme conteúdo do autorreparo na linha 77)) Nesse excerto, na linha 66, Anelise produz ao inal de sua narrativa uma avaliação de seu estado emocional que contém seu posicionamento a respeito da descoberta do câncer. Nota-se que o lamentavelmente e o riso e a aspiração de Anelise no início do excerto sinalizam como ela se sente com relação a sua situação; lamentável é aquilo que é digno de ser lamentado, digno de dó, triste. Portanto, tristeza e dó de sua situação atual estão relacionados ao posicionamento de Anelise sobre como se sente com relação ao câncer. Após esse turno de Anelise (e lamentavelmente chegamos a isso hah hh), Sílvio passa a construir uma avaliação do caso da paciente. A narrativa dela terminara com uma avaliação negativa sobre sua situação atual. Sílvio, em contraste, inicia sua construção fazendo uma avaliação positiva da situação (linhas 67 a 69), o que demonstra que ele não concorda com o caráter lamentável do caso. A discordância de Sílvio com a avaliação e posicionamento de Anelise é realizada sem delonga, como ação preferida, trabalhando a favor de uma ailiação com o que ela sente. Ao discordar e mostrar o lado positivo de seu problema, o médico ailia-se, demonstra solidariedade com a situação da paciente. Aqui se pode notar o que Sorjonen (2001) considera como turno que torna relevante / pede uma ailiação por fatores que se sugere não estarem apenas na sequencialidade nem somente no “nível afetivo” ou de solidariedade social. O turno de Anelise pede uma ailiação por elementos do contexto imediato do evento “primeira consulta oncológica” (como a criação de vínculo entre médico e paciente e até mesmo familiares) e pelo fato de o médico estar naquele momento com resultados de exames e cirurgia em mãos, o que possibilita que o médico também se posicione, e não só a paciente. Apesar desses fatores outros, a sequencialidade torna relevante que o oncologista, nessa interação, alinhe-se e coloquese como ouvinte de uma narrativa, e produza, ao seu fechamento, uma avaliação (STIVERS, 2008). Há também o fato de a narrativa, além de ter sua própria organização discursiva10, ao explorar um evento passado, possibilitar maiores condições epistêmicas ao interlocutor de realizar uma Segundo Labov e Waletsky (1967), podemos dizer que esse turno da linha 66 que encerra a narrativa de Anelise concentra avaliação, resolução e coda. 10 628 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 avaliação do que sobre um evento futuro (em comparação a um medo de algo vindouro, por exemplo). Podemos dizer que essa avaliação positiva que consiste em uma ação ailiativa do médico aqui pode levar a uma tranquilização11 da paciente. Em seguida à avaliação positiva que discorda do lamentavelmente da paciente, o médico passa a listar as evidências que justificam seu posicionamento, sua avaliação positiva ( lesão pequena, sem comprometimento de axilas, HER2 negativo, receptor hormonal positivo para progesterona). O formato de seu turno inclusive contém ênfase em palavras como cedo e pequena, e a evidência ruim é seguida de uma conjunção adversativa que a minimiza em negativo para estrógeno tudo bem é ruim mas também o fato de ser positivo para progesterona já compensa. Essa prática de listar (e enfatizar) as evidências do que há de bom equipara-se ao “tá tudo bem” que os médicos fornecem às pacientes em consultas de acompanhamento e revisão. Neste momento, Sílvio não pode dizer a Anelise que tudo está bem; mas ele pode fazê-la vislumbrar um quadro mais positivo (em vez de digno de lamento) ao evidenciar as boas características de seu problema, ou, na nomenclatura de Douglas Maynard (2003), uma “saída interacional positiva” numa situação não tão positiva. 4.2 O “tá tudo bem” oferecido pelo médico (sem ter sido solicitado) Na interação a seguir, analisa-se uma ocorrência de avaliação oferecida pelo médico à paciente que pode estar respondendo à avaliação de seu estado emocional produzida no início da consulta. De qualquer forma, a avaliação aqui é sobre um dado físico, não emocional, mas que pode consistir no único tipo de avaliação que o médico pode produzir nesse momento. 11 Ao dizer que essas avaliações positivas têm um potencial de tranquilização das pacientes, está-se orientando ao fato de que não se pode airmar que a tranquilização ocorreu, a não ser que as pacientes explicitamente o demonstrem na sequencialidade da interação. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 629 Excerto 5 20 21 22 23 24 25 26 ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: >a gente< tinha se visto em março ↑né é inal de fevereiro que eu tinha feito aquela: tomograi:a, [°tomo°] [que tava] tudo bem mhm e (.) continua tomando arimidex (.) >em comprimido< Voltando à interação entre Alberto e Salete apresentada no Excerto 2, menos de um minuto depois de Salete ter produzido uma avaliação de seu estado emocional, descrita anteriormente, o médico relembra a paciente de que o último resultado de sua tomograia era bom, produzindo uma avaliação positiva de um evento passado (tava, linha 24). Nesse ponto da interação, sua avaliação positiva tem o potencial para tranquilizar a paciente. Assim, ao relembrar que até a última revisão estava tudo oicialmente bem, o médico conclama o status epistêmico aqui compartilhado por ambos os falantes (porque ela também sabe dos últimos resultados). Ao fazer o movimento de retomar essa informação, Alberto de certa forma responde à avaliação da emoção que Salete izera no início da consulta (vide Excerto 2), retirando parte da legitimidade de seu medo, uma vez que as coisas estavam até então indo bem. Justamente porque não requerida sequencialmente, percebese que a avaliação de Alberto parece responder à avaliação de estado emocional de Salete. É nesse ponto que se sugere que as avaliações de estado emocional feitas pelas pacientes são, nesse contexto, respondidas com avaliações de seu estado físico. Na interação a seguir, a paciente Francine, que está no período de revisão para controle, está retornando laudos de exames ao médico. Francine não faz avaliação de seu estado emocional, nem há pergunta direta para que o médico avalie seu estado de saúde. No entanto, a paciente está tomando um medicamento psicotrópico e fazendo terapia (ela e o médico conversaram sobre isso no início da consulta). O excerto a seguir mostra o momento em que o médico oferece sua avaliação sobre os exames depois dessa conversa, orientando-se para os resultados. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 630 Excerto 6 200 201 202 203 204 205 206 207 208 209 210 211 212 213 214 215 SÍLVIO: FRANCINE: SÍLVIO: FRANCINE: SÍLVIO: FRANCINE: SÍLVIO: FRANCINE: =pode sentá (.)(vou carimbá teu exame)(.) ((trecho inaudível de fala enquanto eles estão longe do gravador)) >tão normais.< não tem ↑nem uma alteração no teu exame (0.4) ◦graças a deus◦= =não tem nenhuma alteração (.) estão todos normais (e os outros) tu chegaste a olhá? (.) sim todos normais também= =tá tudo bem ent[ão] [quan]tas doses do zometa (tu izeste) (0.4) ↓ai acredito que e- eu comece:i (.) foi em ou↑tubro né Das linhas 202 a 203, Sílvio, o oncologista, produz uma avaliação do resultado dos exames da paciente Francine, o que é recebido por ela com uma avaliação positiva que demonstra seu alívio (graças a deus). Conforme já constatado em sequências de boas notícias, atrasos ou hesitações são bem mais raros (MAYNARD, 2003), e de fato é o que acontece aqui: Sílvio produz sua avaliação positiva dos exames da paciente sem delonga. Nas linhas 206-207, o oncologista enfatiza sua avaliação positiva, repetindo-a (ele praticamente só muda os UCTs de posição em seu novo turno e inclui a palavra todos, linha 207). Francine ainda pergunta no próximo turno sobre outros exames (apesar de o médico recém ter se referido a “todos”), buscando, assim, uma conirmação de que “tudo” está bem, ou seja, uma avaliação 100% positiva, o que ela recebe de Sílvio no turno seguinte (que utiliza pela terceira vez a palavra normais para avaliar positivamente os exames). Francine, na linha 210, emblematicamente para os dados deste estudo, explicita seu entendimento de que está tudo bem então, delagrando o objetivo principal das consultas de acompanhamento ou revisão para os participantes da pesquisa. 4.3 Perguntas diretas das pacientes aos médicos O Excerto 7 é parte da mesma consulta discutida nos excertos já analisados nas outras seções, entre o oncologista Alberto e sua paciente Salete, que está em seu consultório para buscar a requisição para fazer Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 631 seus exames de revisão. Nesse excerto o médico está realizando um exame físico na paciente e o momento é de busca por possíveis novos sintomas ou nódulos. Note-se que aqui é a fase da consulta em que Salete produz uma pergunta direta. Veja-se a natureza de sua pergunta: Excerto 7 61 62 63 64 65 64 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 ALBERTO: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: ALBERTO: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: ALBERTO: ALBERTO: ALBERTO: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: ALBERTO: SALETE: alguma- algum ↑nódulo alguma ↑íngua (0.4) ↑n[ão] [↑nã:o] não haha .h na↑da? (.) ↑não? (3.4) (agora vamo) medir a pressão (3.3) pra respirar tudo bem? (0.4) tá (0.5) °tudo bem°. respira fundo (2.6) °de novo° (4.2) °novo° (4.1) °de novo° (4.0) °↑óti↓mo°= =tá tudo bem? (0.6) tudo bem ah que [bom hahaha ] [tá tudo ótimo] (1.2) então salete ((ruído de cadeira sendo arrastada)) vamo fazê: (0.4) >pode sent↑á< (0.7) vamo fazê teus exames novos ↑tá arrãm Alberto pergunta à paciente se ela notara algum nódulo ou íngua na linha 61. Na sequência (linhas 63 e 64), tanto o médico quanto a paciente respectivamente perguntam e respondem “não” quase ao mesmo tempo. Na verdade, o ↑n[ão] de Alberto (linha 63), convidando a uma 632 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 conirmação de Salete, antecipa a resposta da paciente por algum motivo, talvez pelo breve atraso de Salete para responder (linha 62). A resposta negativa de Salete é produzida parcialmente sobreposta ao turno anterior e com marcadores que parecem traduzir um “nem pensar!”: ela diz não duas vezes, na primeira com um pico de entonação ascendente e um alongamento ([↑nã:o]), para em seguida repetir o não seguido de riso (não haha .h). A insistência de Alberto nas linhas 65 e 66 demonstra que ele não ica satisfeito com os nãos de Salete da linha 64. Pode-se ver que, depois que o médico mede sua pressão e faz a ausculta de seu peito, na linha 82, Salete produz uma pergunta polar que solicita uma avaliação do médico sugerindo, pela sua escolha lexical, um tá tudo bem? – que também aponta a preferência da resposta que o médico deve prover. Repara-se que aqui há de fato uma pergunta direta que exerce pressão por resposta e que reairma o status epistêmico de Alberto; e ainda que Alberto esteja restrito à preferência apontada pelo formato da pergunta de Salete, é ele quem pode conirmá-la ou desconirmá-la. Parece também haver uma orientação de Salete ao fato de que o exame físico é o momento, dentre todos em sua consulta atual, mais propício para fazer uma pergunta direta sobre seu estado físico (GILL; MAYNARD, 2006). Outro momento seria ao encaminhar-se para o inal da consulta, como será visto no Excerto 9 da mesma interação. Depois que o médico conirma que está tudo bem, com um atraso de pouco mais de meio segundo (linha 84), Salete produz uma avaliação positiva em resposta (ah que bom) e um riso ao inal do turno, linha 85, que podem ser entendidos como uma demonstração de alívio da paciente. O médico, na sequência, alinha-se à expressão de alívio de Salete, escalonando sua avaliação ao dizer que está tudo “ótimo”, em sobreposição à última palavra e ao riso do turno anterior de Salete (linha 86 – tá tudo ótimo). Esse alinhamento, por oferecer um suporte à evidente (em função da expressão de alívio) importância da avaliação “tudo bem” para a paciente ao escaloná-la, mostra-se como um movimento ailiativo. Essa nova avaliação, então, ailia-se com a importância do “tudo bem” para a paciente, ou seja, com a necessidade de tranquilização que esse tipo de consulta dá mostras de requerer. No Excerto 8, apesar de Salete já ter recebido uma avaliação positiva do oncologista Alberto no momento em que a solicitara durante o exame físico, ela a solicita novamente ao inal dessa consulta, fazendo reemergir o tópico. Vejamos o excerto: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 633 Excerto 8 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: ALBERTO: SALETE: e aí doutor alberto pelo que o senhor me escutou assim,= =>tudo bem< >mhm< (0.9) faz os exames e aí me traz aí depoi:s (.) só daqui quatro meses ↑né= =↑isso, mas primeiro me traz aí o exame [aí né] [sim] sim ◦sim◦ tá bom? tá. Dessa vez poderíamos falar em uma espécie de resíduo de sintoma, como observado por Maynard e Frankel (2006) em alguns dados de interação médico-paciente. Os autores mostram que a entrega de boas notícias pode gerar incerteza do paciente sobre os sintomas que não puderam ser explicados pela avaliação médica, depois de excluída alguma doença grave. Isso seria o resíduo, ou seja, o sintoma ou problema que ica sem um esclarecimento apesar de as notícias serem boas. Esse resíduo pode transparecer na insistência do paciente quanto a uma explicação para seu caso, desde uma reapresentação de um sintoma até a repetição de uma pergunta, por exemplo. Repetição é o que Salete faz nas linhas 110-111: uma nova pergunta direta ao médico (que exerce pressão para resposta). Talvez, para ela, a tosse apresentada no início da interação (turnos omitidos) icara sem explicação já que, segundo o médico, está tudo bem. Dessa vez, a paciente escolhe uma pergunta mais aberta, em contraposição à pergunta polar que izera (vide Excerto 8), repetindo então o tópico, mas não o formato da pergunta em si (e aí doutor Alberto pelo que o senhor me escutou assim,). A nova solicitação de avaliação ganha uma repetição da resposta anterior do oncologista: >tudo bem<. O que Alberto não faz aqui nem no Excerto 8, e que se diferencia do que Sílvio izera com Anelise (Excerto 3, dado de primeira consulta), é prover evidências que mostrem que está tudo bem (como dizer, por exemplo, que o pulmão está limpo, que a respiração está boa, etc). Essas evidências obviamente não seriam deinitivas (no sentido de o médico não poder oferecer as garantias que os exames oferecerão ao icarem prontos), mas sugere-se que a possibilidade é a de que elas funcionariam para a Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 634 consulta em questão; ou seja, talvez a construção de evidências pudesse ter bastado para Salete, e ela não estaria ainda a buscar conirmações. Somente o tudo bem ou o tudo ótimo não parecem ser suicientes como avaliação em alguns casos, ainda que o médico tenha se ailiado com essa necessidade da paciente (Excerto 8, linhas 84 e 86). Assim, tem-se que esta não é a única interação em que essa solicitação de uma nova avaliação (de uma reconirmação) é realizada pela paciente. Reiteradas reconirmações (e suas solicitações) são recorrentes nas interações no contexto aqui investigado. Há que se falar aqui, conforme o estudo de Sandén et al. (2001), que o maior objetivo de uma consulta de acompanhamento como estas sob análise é a reairmação de que tudo está sob controle. Segundo os autores, os medos e as inseguranças “estão sempre presentes quando se pensa sobre o futuro” (2001, p. 140), referindo-se ao medo da morte como um dos principais existentes no horizonte do paciente de câncer. “Tá tudo bem” é então de fato o enunciado que elas buscam ouvir dos médicos por meio de suas solicitações de avaliações, mas obviamente que quanto mais fundamentado em evidências, além de escalonado, mais verossímil. Retornamos à interação cujo Excerto 2 já havia sido apresentado, para descrever agora uma avaliação do médico sobre o estado físico da paciente Rosane a partir da pergunta direta que ela faz, que acontece em momento adiante na sua consulta (mostrado aqui no Excerto 10). Note-se que aqui ela produz uma solicitação de avaliação via pergunta direta na mesma fase da consulta em que Salete (Excerto 8) o fez: na fase de fechamento. Há que se salientar que nesta interação o médico não oferecera nenhuma avaliação da saúde da paciente até então. Excerto 9 311 312 313 314 315 316 317 318 319 320 321 ROSANE: ALBERTO: ROSANE: ALBERTO: ROSANE: ALBERTO: 322 ROSANE: ↑ahh (.) a↑té o verão vai tá melhor (2.0) no ↑mais o tratamento tá indo bem, (.) >excelente< então tá bom. tá:? (1.0) nos vemos aí: ã- >quando tivé os exa:mes ↑pron[tos] [tá:]= Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 635 Ao encaminharem-se para o inal da consulta, na linha 315, Rosane solicita uma avaliação perguntando se o tratamento vai bem. Veja-se que essa solicitação tem o formato de uma pergunta polar e indica a preferência da resposta, uma concordância com a valência positiva da ideia expressa pelo item lexical “bem”. Alberto provê uma avaliação positiva em resposta (>excelente<) que na verdade é um escalonamento de “bem”. Rosane ainda produz uma avaliação, em formato conclusivo, em resposta à avaliação do médico (então tá bom.). Reitera-se aqui que tanto o tipo de pergunta (uma solicitação de avaliação apontando uma preferência por uma conirmação, uma avaliação positiva) quanto o tipo de resposta contendo um escalonamento são constantes nos dados. E, além da fase do exame físico, a fase inal da consulta é também escolhida pelas pacientes para buscarem uma conirmação ou reconirmação de que estão bem. 5 Discussão A análise apresentada neste artigo evidencia a maneira pela qual as pacientes, no contexto estudado, lidam com a impossibilidade da certeza sobre o status do câncer em suas vidas. As análises mostram um padrão que revela a organização da busca pelo “tá tudo bem” como uma espécie de carimbo ou de atestado de boa saúde que “aliviaria” as pacientes, pelo menos até a próxima revisão. Mostram também que essa busca não é unilateral da paciente, mas conjunta. Isso ica evidente na orientação do próprio médico para essa busca, já que, além de responder a solicitações de avaliação e de enfatizar avaliações positivas, ele também oferece avaliações positivas que têm potencial para tranquilizar a paciente – e as repete. A busca reiterada das pacientes por esse “carimbo institucional”, evidenciada nos dados, parece também sugerir o que Sandén e colegas (2001) observaram em consultas de acompanhamento da oncologia: o medo da morte, ainda que a maior parte dos casos aqui analisados seja considerada pelos médicos como de baixo risco para recidivas. Considerase, assim, que a tranquilização da paciente também é importante e parece de fato ser um dos objetivos da consulta de revisão e acompanhamento para ambos os participantes. A avaliação do estado emocional das pacientes produzida por elas próprias parece delagrar essa necessidade de ouvir que está tudo 636 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 bem isicamente. Se as avaliações não são voluntariamente oferecidas pelo/a médico/a, ou se não são recebidas pelas pacientes quando fazem suas avaliações de seu estado emocional, elas as solicitam de uma forma mais direta, por meio de uma pergunta polar, como foi evidenciado. A preferência observada nos dados, talvez não surpreendentemente, é sempre por avaliações positivas – isso se mostra pelo fato de que a pergunta mais recorrente é na verdade um pedido de conirmação, prevendo uma concordância (tá tudo bem?), em vez de uma pergunta aberta, como “e então, como estou?”. O escalonamento das avaliações positivas que os médicos do contexto pesquisado produzem ao utilizar palavras que enfatizam o lado positivo (“excelente”; “ótimo”; “tudo tranquilo”) consiste em um tipo de ailiação; entretanto, há que se observar que, mesmo em contextos de escalonamentos, na maioria das vezes a paciente ainda repete sua solicitação de avaliação. Isso pode estar apontando para a importância de que os proissionais da saúde retomem as evidências de que tudo está bem com a paciente, tal como mostrado na análise da primeira consulta (Excerto 4). As ações descritas neste artigo podem ser consideradas formas pelas quais as pacientes lidam com a impossibilidade das certezas no contexto do câncer. Suas avaliações de estado emocional e as repetidas solicitações de avaliação da sua saúde física demonstram que as pacientes estão a buscar uma certeza nesse contexto. Os oncologistas, ao avaliarem positivamente a saúde física das pacientes apenas, e não a emocional, acabam por fazer o que lhes é possível naquele momento – o gerenciamento da incerteza inerente a esses casos. Referências DREW, P.; HERITAGE, J. (Ed.). Talk at work: Interaction in institutional settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. FATIGANTE, M.; BAFARO, S. The journey to advice: balancing certainty and uncertainty in doctor delivery of expert opinion. In: ZUCZKOWSKI, A.; BONGELLI, R.; RICCIONI, I.; CANESTRARI, C. Communicating certainty and uncertainty in medical, supportive and scientiic contexts. Amsterdam: John Benjamins, 2014. https://doi. org/10.1075/ds.25.08fat. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 637 GILL, V. T.; MAYNARD, D. W. Explaining illness: patients’ proposals and physicians’ responses. In: HERITAGE, J.; MAYNARD, D. W. (Ed.). Communication in Medical Care: Interaction between primary care physicians and patients. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 115-50. https://doi.org/10.1017/CBO9780511607172.007. GOODWIN, M.; GOODWIN, C. Assessments and the Construction of Context. In: DURANTI, A.; GOODWIN, C. (Ed.). Rethinking Context: Language as an interactive phenomenon. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. p. 147-190. HAAKANA, M. Laughter as a patients resource: Dealing with delicate aspects of medical interactions. Text, v. 21, p. 187-219, 2001. https://doi. org/10.1515/text.1.21.1-2.187. HERITAGE, J. Epistemics in Action: Action Formation and Territories of Knowledge. Research on Language and Social Interaction, v. 45, n. 1, p. 1-29, 2012. https://doi.org/10.1080/08351813.2012.646684. HERITAGE, J.; RAYMOND, G. Navigating Epistemic Landscapes: Acquiescence, Agency and Resistance in Responses to Polar Questions. In: DE RUITER, J. P. (Ed.) Questions: Formal, functional and interactional perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 179-192. https://doi.org/10.1017/CBO9781139045414.013. INSTITUTO Nacional do Câncer. Comunicação de notícias difíceis: compartilhando desafios na atenção à saúde. Coordenação Geral de Gestão Assistencial. Coordenação de Educação. Rio de Janeiro: INCA, 2010. JEFFERSON, G. Transcript notation. In: ATKINSON, J.; HERITAGE, J. Structures of social action: studies in conversation analysis. New York: Cambridge University Press, 1984. p. ix-xvi. LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative Analysis: Oral Version of Personal Experience. In: HELM, J. (Ed.). Essays on the Verbal and Visual arts. Proceedings of the 1966 annual spring meeting of the American Ethnological Society. Seattle: University of Washington Press, 1967. p. 12-44. LEVINSON, S. C. Action formation and ascription. In: STIVERS, T.; SIDNELL, J. (Ed.). The Handbook of Conversation Analysis. Malden, MA: Wiley-Blackwell, 2013. p. 103-130. 638 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 LINDSTRÖM, A., SORJONEN, M. Affiliation in conversation. In: SIDNELL, J.; STIVERS, T. (Ed.). The Handbook of Conversation Analysis. Wiley-Blackwell, 2013. p. 350-369. MAYNARD, D. W. Bad News, Good News: Conversational order in everyday talk and clinical settings. Chicago: University of Chicago Press, 2003. MAYNARD, D. W.; FRANKEL, R. On diagnostic rationality: bad news, good news, and the symptom residue. In: HERITAGE, J.; MAYNARD, D. W. Communication in Medical Care: interaction between primary care physicians and patients. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 248-278. https://doi.org/10.1017/CBO9780511607172.011. MICELI, A. V. P. Laços e nós: A comunicação na relação médico-paciente com câncer e dor crônica. Brasil. 2009. 127p. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. OSTERMANN, A. C.; MENEGHEL, S. N. Humanização. Gênero. Poder: contribuições dos estudos de fala-em-interação para a atenção à saúde. Rio de Janeiro/São Paulo: Fiocruz e Mercado de Letras, 2012. POMERANTZ, A. Agreeing and disagreeing with assessments: some features of preferred/dispreferred turn shapes. In: ATKINSON, J. M.; HERITAGE, J. Structures of social action: studies in conversation analysis (Studies in emotion and social interaction). Paris: Cambridge University Press, 1984. p. 57-101. PMid:6480908. POMERANTZ, A. Offering a Candidate Answer: An Information Seeking Strategy. Communication Monographs, v. 55, p. 360-373, 1988. https://doi.org/10.1080/03637758809376177. POMERANTZ, A. Responding to a query with reference to the inferred purpose-for-asking. Comunicação pessoal. 2014. ROBINSON, J. D. Soliciting patients’ presenting concerns. In: HERITAGE, J.; MAYNARD, D. W. Communication in Medical Care: Interaction between primary care physicians and patients. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 22-47. https://doi.org/10.1017/ CBO9780511607172.004 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 639 ROGERS, M.; TODD, C. Can cancer patients inluence the pain agenda in oncology outpatient consultations? Journal of Pain and Symptom Management, v. 39, n. 2, p. 268-282, February 2010. https://doi. org/10.1016/j.jpainsymman.2009.05.024. PMid:19963336. SACKS, H. Lectures on conversation. Oxford: Blackwell, 1992. v. 1 e v. 2. SACKS, H. Sobre as preferências por concordância e contiguidade em sequências na conversa. Tradução de Lívia Miranda de Oliveira, Maria das Graças de Castro Nogueira e Paulo Gago. Interseções, v. 13, n. 1, p. 94-113, jun. 2011 [1987]. SACKS, H.; SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. The simplest systematics for turn-taking in conversation. Language, v. 50, n. 4, p. 696-735, 1974. https://doi.org/10.2307/412243. https://doi.org/10.1353/lan.1974.0010. SANDÉN, et al. Routinization and sensitivity. Health, v. 5, n. 2, p. 139163, 2001. https://doi.org/10.1177/136345930100500201. SCHEGLOFF, E.; SACKS, H. Opening up closings. Semiotica, v. 8, n. 4, p. 289-327, 1973. https://doi.org/10.1515/semi.1973.8.4.289. SILVA, V. C. E.; ZAGO, M. M. F. A revelação do diagnóstico de câncer para proissionais e pacientes. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 58, n. 4, p. 476-480, 2005. https://doi.org/10.1590/S0034-71672005000400019. PMid:16514959. SORJONEN, M. L. Responding in conversation: a study of response particles in Finnish. Amsterdam: John Benjamins, 2001. 330 p. https://doi.org/10.1075/pbns.70. SOUZA, J. de. Da impossibilidade de certezas na fala-em-interação em consultas de câncer de mama. 2015. 198f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Unisinos. São Leopoldo, 2015. 198p. SOUZA, J. de.; OSTERMANN, A. C. Glossário conciso de termos de estudos de fala-em-interação. In: OSTERMANN, A. C.; MENEGHEL, S. N. Humanização. Gênero. Poder: Contribuições dos estudos de falaem-interação para a atenção à saúde. Rio de Janeiro/São Paulo: Fiocruz e Mercado de Letras, 2012. p. 163-165. 640 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 609-640, 2017 STEENSIG, J. Conversation Analysis and Afiliation and Alignment. In: MORTENSEN, K.; WAGNER, J. The Encyclopedia of Applied Linguistics: Conversation Analysis. Cambridge, UK: Wiley-Blackwell, 2012. https://doi.org/10.1002/9781405198431.wbeal0196. STIVERS, T. Stance, Alignment, and Afiliation During Storytelling: When Nodding Is a Token of Affiliation. Research on Language and Social Interaction, v. 41, n. 1, p. 31-57, 2008. https://doi. org/10.1080/08351810701691123. STIVERS, T.; ROSSANO, F. Mobilizing response. Research on Language and Social Interaction, v. 43, n. 2, p. 3-31, 2010. https://doi. org/10.1080/08351810903471258. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Interferências linguísticas na interlíngua em alunos hispanofalantes de português como língua estrangeira Linguistic interferences in the interlanguage of native Spanishspeaking learners of Portuguese as a foreign language Nildicéia Aparecida Rocha UNESP nildirocha@fclar.unesp.br Ana María del Pilar Altamirano Robles UNESP amp.altamirano@gmail.com Resumo: O presente trabalho estuda como acontecem as interferências linguísticas na interlíngua na aprendizagem de português como língua estrangeira (PLE) em alunos hispanofalantes de uma universidade no interior de São Paulo. A análise focaliza as interferências linguísticas nos níveis semântico, sintático e ortográico. Por meio de princípios do modelo da interlíngua, pertencente à Linguística Contrastiva, procura-se explicar como a língua materna dos alunos hispanofalantes inluencia nas produções escritas em língua portuguesa e mostrar quais as interferências linguísticas mais comuns nesses alunos. Ao observar a proximidade tipológica entre português e espanhol, também se aplicou um questionário para compreender o que os alunos hispanofalantes pensam sobre o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira próxima à sua língua materna. Sendo assim, investiga-se o que as produções escritas evidenciam sobre as interferências linguísticas na interlíngua e as impressões dos alunos hispanofalantes sobre como aprendem português língua estrangeira. Após discussão sobre a noção eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.641-680 642 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 de interlíngua e a análise dos dados, sendo entrevistas e textos, veriicase que existe um número signiicativo de interferências linguísticas em alunos hispanofalantes de português, mesmo em um contexto de imersão, pois sua língua materna, espanhol, parece inluenciar de modo negativo a aprendizagem de português. Palavras-chave: interferências linguísticas; interlíngua; português como língua estrangeira; hispanofalantes. Abstract: This work studies how linguistic interferences occur in interlanguage in native Spanish-speaking learners of Portuguese as a foreign language at a university in São Paulo. The analysis focuses on linguistic interferences at semantic, syntactic and orthographic levels. This study, based on interlanguage modelling of Contrastive Linguistics, aims at explaining how learners’ native language inluences in the writings in Portuguese as well as showing their most common linguistic interferences. By observing the typological proximity between Portuguese and Spanish, a questionnaire was administered to these learners so as to understand what they think about the process of learning a foreign language that has cross-linguistic similarity to their native language. Therefore, this paper investigates evidences of linguistic interferences in interlanguage, and the impressions of native Spanish-speaking learners about their learning process of Portuguese as a foreign language. After discussing the notion of interlanguage and analyzing the data from the questionnaire and the written compositions, it is veriied that there is a signiicant number of linguistic interferences in the linguistic output of these native Spanish-speaking learners of Portuguese even in immersion context, since Spanish, their native language, seems to influence negatively their learning of the Portuguese language. Keywords: linguistic interferences; interlanguage; Portuguese as a foreign language; native Spanish speakers. Recebido em: 03 de maio de 2016. Aprovado em: 08 de agosto de 2016. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 643 Introdução Este trabalho originou-se a partir da importância que tem o ensino de português como língua estrangeira (PLE) no Brasil a imigrantes e alunos hispanofalantes que estudam em diversas universidades brasileiras por meio de constantes intercâmbios estudantis. Graças ao rápido desenvolvimento do Brasil nestes últimos anos, a sua participação na criação do Mercosul e no grupo dos BRICS (Grupo político de cooperação entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) surgiu o aumento de estudantes no território nacional brasileiro, provenientes de países hispanofalantes de América do Sul e da Espanha, assim como de outros países do mundo (Ásia, Europa), para realizar diversos cursos no Brasil e se formar tanto na graduação como na pós-graduação em distintas áreas acadêmicas. Especiicamente quanto aos falantes de espanhol, segundo um estudo estatístico, existem 410.000 hispanofalantes de domínio nativo e, 96.000 hispanofalantes de competência limitada no Brasil (INSTITUTO CERVANTES, 2014). Assim, a relevância do conhecimento do português não se limita a seu uso no território brasileiro, mas também além fronteiras, pois a língua portuguesa tem se tornado importante no exterior em virtude da criação de novos espaços para a sua circulação (ZOPPI FONTANA e DINIZ, 2008). Portanto, considera-se fundamental entender os problemas de aprendizagem mais frequentes nesses aprendizes de PLE, uma vez que no Brasil existe um número signiicativo de estudantes estrangeiros, falantes nativos de espanhol. Em consequência do aumento de aprendizes hispanofalantes de PLE no Brasil, o objetivo deste trabalho é apresentar uma relexão teóricoprática sobre as interferências linguísticas que surgem na aprendizagem do português em alunos hispanofalantes, veriicando que, geralmente, eles tendem a seguir as normas linguísticas da sua língua materna (LM), espanhol, para realizar as produções escritas devido à proximidade tipológica entre português e espanhol. Assim, leva-se em conta que tais interferências podem ser fontes constantes de erros sistemáticos na aprendizagem de uma língua estrangeira (LE), notadamente, de línguas próximas como o português e o espanhol. Como airma Lado (1973), um aluno tende a transferir as formas e os signiicados da sua própria língua e cultura, assim como a distribuição destas formas e os signiicados à língua e à cultura estrangeira, não somente ao tentar falar o idioma e 644 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 se desenvolver na mesma cultura, mas também ao tentar compreender a língua e a cultura segundo como os falantes nativos que as praticam. Com relação ao suporte teórico, apoia-se este estudo sobre as interferências linguísticas com base no modelo da interlíngua, pertencente à Linguística Contrastiva, dado que a interlíngua é entendida como um sistema aproximado que ocorre em uma etapa intermediária susceptível de modiicações e reestruturações do input do aprendiz (SELINKER,1972). Desse modo, o estudo desse fenômeno linguístico possibilitou ampliar a análise das interferências linguísticas no nível semântico, sintático e ortográico identiicadas nas produções escritas dos alunos hispanofalantes de PLE. À vista disso, Almeida Filho (2001) assevera que o portunhol, termo usado para designar a produção linguística de nível intermediário de hispanofalantes ao tentarem falar português, surge da interlíngua que se desenvolve na aprendizagem de PLE naqueles aprendizes. Assim, o estudo da interlíngua é importante para evidenciar e entender problemas existentes durante a aprendizagem de uma LE, no nosso caso, de línguas próximas: português e espanhol. Deste modo, por meio da análise das redações escritas, objetivase identiicar as interferências linguísticas no processo de produção da interlíngua em alunos estrangeiros hispanofalantes, de graduação e pós-graduação, que frequentam curso presencial de PLE no nível intermediário, em uma universidade brasileira localizada no interior do Estado de São Paulo e que estão em situação de imersão, e podese evidenciar dados relevantes que proporcionam uma contribuição signiicativa aos estudos sobre ensino e aprendizagem de PLE tanto para esses aprendizes como para promover a redução de desvios da norma culta nos campos linguísticos focalizados. Finalmente, com o propósito de realizar uma relexão sobre a representação que os alunos hispanofalantes têm sobre a aprendizagem de PLE, especiicamente, sobre como inluencia a proximidade tipológica entre português e espanhol, aplicou-se um questionário sobre qual o papel da LM durante o processo de aprendizagem de PLE. De modo geral, pôdese veriicar nas respostas dos alunos, na análise destas e de suas redações que o espanhol ainda está presente e inluenciando a produção de textos em português, reiterando a presença de uma interlíngua nesses alunos hispanofalantes. Deste modo, entende-se que a maioria das interferências linguísticas é originada da LM, espanhol, o que pode diicultar o processo de aprendizagem da nova língua, português. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 645 Sendo assim, passa-se ao aporte teórico que sustenta este estudo, ou seja, interlíngua e interferências. 1 Interlíngua Com o objetivo de revisar a literatura sobre Linguística Contrastiva (LC) em especial sobre a Interlíngua (SELINKER, 1972), tanto para fundamentar o construto epistêmico como para proceder a análise neste estudo, recupera-se, a seguir, os teóricos que versaram sobre o tema. A proposição de modelos de análise baseados na LC abrange o estudo da interlíngua. Assim, para entender o conceito de interlíngua, pretende-se deinir primeiro a LC, com o propósito de contextualizar o estudo. De acordo com Trager (1949), o termo ¨linguística contrastiva¨ foi utilizado como subdisciplina da linguística aplicada, com a inalidade de estudar os traços conlitivos das línguas descrevendo suas gramáticas. Procedendo desta maneira, é possível mostrar quais são as partes da estrutura que diicultam o processo de aprendizagem. Santos Gargallo (1993) airma que a LC propõe um tipo de investigação baseado na comparação de duas ou mais línguas, a LM do aluno e uma LE. Portanto, a LC faz parte da linguística aplicada e estuda o contraste sincrônico de dois ou mais sistemas linguísticos. Na literatura da linguística contrastiva, esta subdisciplina apresenta duas versões de estudo: a linguística contrastiva teórica e a linguística contrastiva prática (SANTOS GARGALLO, 1993). A primeira focaliza seus estudos nas diferenças e semelhanças entre duas ou mais línguas e estabelece um modelo adequado de comparação para determinar quais são os elementos possíveis de comparar. A segunda versão analisa e explica como uma categoria universal acontece em línguas diferentes. Segunda a autora, a diferença entre essas duas versões está assentada no objetivo inal da investigação, isto é, na versão teórica buscase consequências nos universais linguísticos e se comparam mais de duas línguas, enquanto a versão prática procura, além de realizar e explicar as diferenças e as semelhanças entre duas línguas, aplicar seus resultados ao processo de ensino e aprendizagem da LE como sua inalidade. Além disso, a autora analisa os três modelos teóricos da linguística contrastiva: o modelo de análise contrastivo (AC), o modelo de análise de erros (AE) e o modelo de interlíngua (IL). Para ela, o modelo de AC 646 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 prediz erros; o modelo de AE classiica, cataloga e analisa os erros; e o modelo de IL indica que nível de aprendizagem o aluno apresenta por meio do tipo de erros. Em relação ao modelo da interlíngua, o presente trabalho procurou identiicar e estudar as interferências linguísticas por meio das análises das produções escritas de alunos hispanofalantes de PLE em contexto de imersão. Uma vez sabendo como surgiu a análise da interlíngua, o próximo passo é explicar o conceito desse modelo que foi introduzido pela primeira vez por Selinker (1972), entendendo-o com um sistema caracterizado pela variabilidade e sistematicidade que apresenta processos centrais, os quais fazem parte da base teórica para a análise das interferências linguísticas nos alunos hispanofalantes de PLE. Segundo este investigador norte-americano, a maioria dos aprendizes ativa na mente uma estrutura psicológica latente quando tenta produzir ou entender um enunciado em uma LE. Essa estrutura se realiza no sistema independente, que o autor chama de Interlíngua. Segundo o pesquisador, o estudo da interlíngua pode ser efetuado a partir de processos como: transferência linguística, transferência de instrução, estratégias de aprendizagem, estratégias de comunicação e hipergeneralização do material linguístico da LE. A transferência linguística acontece quando as regras e subsistemas, desenvolvidos na interlíngua, procedem da LM. Enquanto que na transferência de instrução essas regras e subsistemas são o resultado de processos de instrução ou ensino. Se essas regras sucedem da aproximação do aluno com o material de estudo, trata-se do processo de estratégias de aprendizagem, e se resultam da aproximação do aluno com a língua, para se comunicar com falantes nativos da LE, trata-se das estratégias de comunicação. Finalmente, quando acontece uma hipergeneralização, ou seja, quando se toma uma regra especíica para generalizar casos de outras regras semelhantes linguisticamente da LE, trata-se do processo de hipergeneralização do material linguístico da LE. Do mesmo modo, a interlíngua é conhecida como o “sistema aproximado”. Trata-se de um sistema linguístico utilizado pelo aprendiz, durante seu processo de aprendizagem de uma LE. O falante recorre a esse sistema aproximado para se exprimir na língua meta. Tal sistema tem uma gramática própria que não é a da LE nem a da LM, modiicandose rapidamente ao passar por diferentes etapas da aquisição (NEMSER 1971). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 647 Corder (1973), por sua vez, utiliza o termo “competência transitória” ou “dialeto idiossincrático” para se referir à interlíngua e, assim como Nemser, também airma ser um sistema com regras próprias, contudo, marcado pela instabilidade. Em outras palavras, Corder entende que a língua do aprendiz não é necessariamente o código de nenhum grupo social; enquanto o aluno está no processo de aprendizagem, não existe uma constância em seu dialeto. Isto posto, Corder estabelece que o fenômeno da interlíngua se refere a um sistema interlinguístico do qual o aprendiz faz uso, e em que aparecem tanto as reduções como as simpliicações do código da LE. Corder expõe, ainda, que o aluno de uma LE utiliza um reduzido número de palavras gramaticais, utiliza estruturas sintáticas simples e um léxico altamente polissêmico. Portanto, nesta perspectiva o objetivo do pesquisador deve ser o de identificar e analisar as expressões idiossincrásicas produzidas pelos alunos, buscando a explicação de sua produção. Segundo Corder, existem quatro etapas da interlíngua na análise de erros. A primeira é a pré-sistemática, caracterizada por ser uma etapa inicial de experimentação da língua, em que se constroem hipóteses de acordo com os dados a que se tem acesso. Na segunda etapa, a emergente, há o início do discernimento e assimilação de regras da LE; todavia, embora possua um conhecimento linguístico, o aprendiz ainda não consegue corrigir os próprios erros. Na terceira, denominada etapa sistemática, o aprendiz é capaz de se corrigir quando os erros são apontados por outras pessoas, revelando, assim, um conhecimento mais estruturado da língua. A etapa inal, denominada etapa de estabilização, caracteriza-se pela ocorrência de poucos erros na produção do aprendiz, não havendo a necessidade da retroalimentação. Nessa fase, o aprendiz se autocorrige. Para Ellis (1989), quando o aluno recorre à interlíngua signiica que à medida que os aprendizes adquirem mais conhecimentos sobre a LE, eles reestruturam o sistema linguístico da LE podendo haver um aumento de uso de regras gramaticais e a eliminação de outras regras na LE. Sendo assim, a interlíngua é um sistema variável que surge da necessidade do aprendiz de ter acesso aos dados da LE e, consequentemente, de comunicar-se nessa língua, recorrendo a esse sistema interiorizado. 648 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Para o autor, na interlíngua ocorre tanto a sistematicidade como a variabilidade. Desse modo, a interlíngua é sistemática por possuir conjuntos de regras que vão sendo construídos, sendo variáveis na medida em que há uma reorganização linguística constante. Assim, é composta por duas grandes fases: uma de alta variabilidade, que acontece depois de alguns anos, e outra de estabilização, que é atingida quando o aprendiz já passou pelas etapas do processo de aprendizagem, e já experimentou suas hipóteses sobre a LE, atingindo uma etapa de estabilização na qual há poucas mudanças na produção. Por sua vez, Santos Gargallo (1993) menciona que a interlíngua se refere ao sistema não nativo do aprendiz de uma LE, pois esse sistema constitui uma língua autônoma. À vista desse conjunto linguístico utilizado pelo aprendiz, Santos Gargallo (1999, p.28) airma que a interlíngua é: Um sistema que possui traços da língua materna e outros propriamente idiossincrásicos, e cuja complexidade vai se incrementando em um processo criativo que atravessa sucessivas etapas marcadas pelos novos elementos que o falante interioriza.1 Dessa forma, a autora explica que a interlíngua do aprendiz sempre estará subordinada a sua intenção de estabelecer e manter a conversação na LE. Ao levar em conta esse fato, o aprendiz estará sujeito a buscar solução a problemas de caráter comunicativo usando recursos linguísticos ou não linguísticos para remediar as carências linguísticas que ele apresenta. O objetivo inal da comunicação é a compreensão da mensagem transmitida pelo aprendiz ao interlocutor nativo ou não nativo da LE, portanto, a linguista espanhola defende que se as produções linguísticas realizadas pelos alunos conseguem ser decodificadas, signiica que a interlíngua desse aluno tem funcionado. Um estudo muito relevante que trata sobre a interlíngua, é realizado por Fernández (1997), que resume o conceito da interlíngua em uma etapa necessária que aparece e persiste obrigatoriamente no processo de aprendizagem do aluno. Seus traços essenciais são manifestados por Un sistema que posee rasgos de la lengua materna y otros propiamente idiosincrásicos, y cuya complejidad se va incrementando en un proceso creativo que atraviesa sucesivas etapas marcadas por los nuevos elementos que el hablante interioriza. (Todas as traduções pertencem aos autores). 1 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 649 meio da diferença que marca este sistema aproximado da LM e da LE, com suas próprias regras e com sua variabilidade e evolução. Fernández airma que a investigação sobre a interlíngua surge com a apresentação e a análise do erro, e, sobretudo, com a preocupação do professional por buscar um rumo para ensinar a superação desse dialeto idiossincrático. Em relação ao papel da interlíngua e o conceito do erro, Fernández (1997, p. 14) assevera que: Da Assunção dos erros como índices das etapas pelas quais o aprendiz atravessa no percurso da apropriação da língua-alvo, passa ao conceito de ¨interlíngua¨ (IL), como o sistema próprio de cada uma dessas etapas. A análise da IL nasce apoiando-se na análise de erros, mas logo amplia seu campo de observação, dado que nesse ¨sistema aproximado¨ existem estruturas diferentes às da línguaalvo – as formas ¨errôneas¨ -, mas também se produzem muitas estruturas corretas de acordo com a norma da nova língua.2 Baralo (1999) também aborda o fenômeno da interlíngua em seus estudos. A autora, assim como Fernández, airma que o principal motivo do estudo da interlíngua é a preocupação dos professores em utilizar critérios metodológicos adequados cuja aplicação ofereça aos alunos de LE mecanismos para evitarem o erro. Esses erros acontecem quando as estruturas e as formas linguísticas da LE ainda não estão interiorizadas no aluno. Baralo declara que o fenômeno da interlíngua está intrinsecamente relacionado ao modelo teórico-prático da Análise de Erros. Assim, essa metodologia se baseia em interpretar o erro, não somente como uma consequência da transferência da LM, mas também como resultado de causas intralinguais, referidas ao próprio processo de aprendizagem do novo sistema linguístico. Para a autora, os estudos da interlíngua são importantes, pois permitem obter um panorama detalhado e expressivo do desenvolvimento do sistema idiossincrático, e auxiliam De la Asunción de los errores como índices de los estadios por los que el aprendiz atraviesa en el camino de apropiación de la lengua meta, se pasa al concepto de ¨interlengua¨ (IL), como el sistema propio de cada uno de esos estadios. El análisis de la IL nace apoyándose en el análisis de errores, pero pronto alarga su campo de observación, ya que en ese ¨sistema aproximado¨ existen estructuras diferentes a las de la lengua meta – las formas ¨erróneas¨ -, pero también se producen muchas estructuras correctas de acuerdo con la norma de la nueva lengua. 2 650 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 na compreensão dos problemas inerentes ao processo de aprendizagem de uma LE, de modo a proporcionar aos educadores a possibilidade de adoção de técnicas de ensino mais adequadas, que possam ajudar os alunos a superarem suas diiculdades com a nova língua. Baralo (2003) menciona que o construto teórico da interlíngua tem se desenvolvido paralelamente com a evolução da teoria linguística e das teorias de aquisição e aprendizagem de línguas. Os estudos sobre a interlíngua tentam descobrir o que acontece na mente do aprendiz, como se processam, são usados e dispostos os dados linguísticos nas produções textuais dos educandos. Ademais, Baralo airma que na construção do conhecimento interlinguístico intervêm três processos básicos, três abordagens teóricas especíicas em relação à aprendizagem e ao ensino, a saber: o input, o intake, o output. O input é o processo da entrada de dados externos com os quais o aprendiz tem contato e que são selecionados, ordenados e sistematizados; o intake se refere ao processo de incorporação dos novos dados ao sistema, os quais o aprendiz assimila e organiza; e o output é o processo de saída, que permite ao aprendiz compreender e se exprimir na LE. Segundo a autora, quanto ao construto dos modelos cognitivos, os processos da interlíngua têm sido interpretados como processos de aprendizagem por meio de comprovação de hipóteses. Assim, o aluno formula hipóteses sobre as propriedades estruturais da LE a partir dos dados do input que ele recebe. Ele pode construir uma gramática hipotética que é testada por meio da compreensão e a produção ao veriicar se as respostas interlinguísticas são plausíveis e aceitas pelos interlocutores, sem comentários nem mal-entendidos. Se frustrada a intenção comunicativa, o aprendiz tem a oportunidade de reestruturar as hipóteses sempre e quando ele estiver motivado. Uma análise mais contemporânea acerca da interlíngua é realizada por Durão (2007), para quem esse fenômeno é um continuum linguístico, que para ser atravessado é necessário o tempo. Essa meta depende das características dos próprios alunos, ou seja, de suas aspirações, de sua LM, e se dominam mais LEs. A autora menciona que existem dois extremos: de um lado, a LM e as outras línguas não nativas; de outro, a LE em processo de aprendizagem. Por conseguinte, o percurso que o aluno deve fazer de um extremo ao outro coincide com o conhecimento que ele deve adquirir sobre a nova língua, baseando-se em sua própria LM ou em outras LEs aprendidas anteriormente. Os novos elementos Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 651 que são adicionados aos conhecimentos prévios do aluno, ocasionam também experiências de uso. Assim, o aluno deve superar distintas etapas ou obstáculos que a autora chama de “barreiras”, “diiculdades de aprendizagem” e “plataformas de resistência”. Em relação a todas essas características da interlíngua, Durão (2007, p.31) conclui que: Todas e cada uma das etapas da aprendizagem pelas quais os aprendizes terão que passar ao atravessar a passarela deixarão evidências dos traços da interiorização das regras da língua em questão (desenvolvidas com ou sem atitude) e ajudarão a identiicar a etapa de sua interlíngua, isto é, o nível de aprendizagem conseguido.3 Para a autora, os estudos da interlíngua abrangem, principalmente, a aprendizagem do conhecimento da LE, as teorias que explicam como os alunos constroem a representação mental da LE, como se desenvolve o conhecimento das regras e dos itens da LE. Portanto, esses estudos se referem ao conhecimento do aluno, ou seja, ao sistema operativo abstrato de unidades e regras combinatórias que subjaz ao uso real desse conhecimento. À guisa de conclusão, a interlíngua se refere às etapas pelas quais o aprendiz percorre antes de atingir sua meta ao aprender uma LE, isto é, a luência comunicativa adequada em LE (FERNÁNDEZ, 1997), de acordo com seus objetivos traçados e contexto ao qual estará inserido. O estudo da interlíngua tem como objetivo demostrar que os erros não são fortuitos, e, portanto, intenciona descrever o sistema de regras presentes no aprendiz quando este tenta se comunicar em uma LE. Deste modo, este estudo pretende iluminar a análise dos dados levantados segundos os aportes de Selinker, sobre conceito de interlíngua e seus processos; de Durão no que se refere à questão da reestruturação na aprendizagem de LE e de Corder com relação às etapas da interlíngua, contribuindo, assim, tanto na aprendizagem de PLE por hispanofalantes como no ensino de PLE em geral. Todas y cada una de las etapas del aprendizaje por las que los aprendices tendrán que pasar al cruzar la pasarela dejarán evidencias de las huellas de la interiorización de las reglas de la lengua en cuestión (desarrolladas con o sin actitud) y ayudarán a identiicar el estadio de su interlengua, es decir, el nivel de aprendizaje conseguido. 3 652 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 2 Interferências linguísticas Para entender o conceito de interferência linguística é necessário salientar que o estudo deste termo baseia-se na teoria behaviorista. Esta teoria pressupõe que os indivíduos não possuem habilidades inatas, mas sim propensões para responder aos estímulos aos quais estão expostos. Assim, com a resposta de cada estímulo se desenvolveriam comportamentos. Deste modo, Watson (1913) postulou que cada resposta a um estímulo pode ser reforçada de maneira positiva ou negativa. O reforço positivo acontece quando uma resposta tem como resultado um benefício. Portanto, o reforço negativo acontece quando aquela resposta não contribui a nenhum benefício. Sousa (2002) assevera que a teoria behaviorista entende o fenômeno da transferência linguística como fator de aprendizagem e que é afetado pela semelhança entre o conhecimento prévio e o subsequente. De acordo com esta teoria, estabelecem-se dois tipos de transferência linguística no âmbito de aprendizagem: a transferência linguística positiva e a transferência linguística negativa, mais conhecida como a interferência linguística. Segundo Lado (1957), a transferência linguística positiva se refere ao uso produtivo da LM no desempenho da LE, sendo o resultado das semelhanças entre a LM e a LE. Dessa forma, a interpretação de interferência linguística baseiase sob a óptica de dois elementos que se alteram como consequência do contato linguístico, e, sobretudo na circunstância de que um traço alheio se introduz em um código ou no uso que se faz deste código. Por um lado, a interferência é considerada como um processo e possui distintas fases. Weinreich (1953) estabelece duas fases: a interferência na fala, que afeta aos indivíduos bilíngues e se produz no momento da situação comunicativa; e a interferência na língua, interferência que está integrada no sistema e que não faz parte unicamente da fala dos bilíngues, mas que tem sido incorporada pelos indivíduos monolíngues. Por outro lado, o autor propõe outra perspectiva de estudo ao tratar a interferência linguística como resultado e não como processo, ou seja, fazer uma análise de maneira isolada de cada uma das formas ¨interferidas¨ em relação à estrutura ¨interferente¨. Este linguista estabelece quatro casos unicamente para a interferência fonológica: hipodiferenciação de fonemas, hiperdiferenciação de fonemas, reinterpretação de distinções, e substituição de fonemas. Por sua vez, Payrató (1985) faz extensivo Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 653 este esquema aos níveis gramatical e lexical, e adiciona os fenômenos de importação e perda. Em consequência, Overbeke (1976) oferece uma classiicação da interferência linguística a partir de diferentes pontos de vista, estabelecendo dez relações binárias: interferência como processo/ interferência como resultado; interferência proativa/interferência retroativa; interferência que afeta o código/interferência que afeta os comportamentos sociolinguísticos; interferência de formas libres/ interferência de formas obrigatórias; interferência segmental/interferência suprassegmental; interferência na primeira articulação/interferência na segunda articulação; interferência gramatical/interferência lexical; interferência morfológica/interferência sintática; interferência interlinguística/interferência intralinguística; interferência denotativas/ interferência conotativa. Percebeu-se que não existe uma única unidade de critério para a classiicação das interferências, provavelmente porque é um fenômeno no qual estão envolvidos muitos fatores e se torna impossível trabalhar a partir uma única perspectiva. No entanto, existe um ponto em comum nas classiicações de todos os autores mencionados anteriormente, pois direta ou indiretamente as interferências estão relacionadas com a divisão metodológica própria do sistema da língua nos quatro níveis básicos: fonológico, lexical, morfológico e sintático. Por outro lado, os níveis linguísticos não são compartimentos estanques, a língua é dinâmica e, em consequência, os fenómenos linguísticos como a interferência, atravessam continuamente as fronteiras entre um e o outro, portanto, resulta difícil airmar que se envolve unicamente um nível linguístico, pois na maioria dos casos existem implicações em mais de um nível. Assim sendo, Baetens (1986) airma que a fronteira entre a morfologia, a sintaxe e o léxico não é jamais uniforme e às vezes as interferências só podem ser explicadas cruzando as barreiras entre os distintos níveis da análise linguística. Por conseguinte, segundo as asserções de Weinreich (1953), Overbeke (1976) e Baetens (1986), a interferência linguística se refere aos casos de desvio da norma de qualquer das línguas de uma comunidade bilíngue devido ao contato linguístico. Nesta deinição, a norma é entendida não somente como aquela que procede das instituições que estão a cargo de criar regras sobre a língua, mas também com o uso habitual da língua. 654 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Desta forma, este trabalho analisa as interferências linguísticas na interlíngua com base no último conceito mencionado, isto é, casos de desvio da norma devido ao contato linguístico entre a LM (o espanhol) e a LE (o português) em alunos hispanofalantes de PLE. De acordo com o exposto, as interferências linguísticas estão analisadas no nível semântico, sintático e ortográico, de modo separado por questões didático-metodológicas, promovendo a compreensão das interferências e a relexão sobre estas relações. 2.1 Interferência no nível semântico A importância do nível semântico está no fato de ser um campo linguístico, no qual os alunos costumam apresentar diiculdades em diferenciar no processo de ensino e aprendizagem de PLE, a língua portuguesa da língua espanhola, provavelmente por existir muitos cognatos e falsos cognatos entre estas duas línguas próximas. Primeiramente, faz-se necessário distinguir quando a interferência afeta unicamente a forma ou quando afeta o signiicado. Portanto, o estudo das interferências neste nível linguístico se classiica em: semântica proposicional e semântica lexical (Odlin, 1997, p.71). A semântica proposicional investiga as mudanças existentes nos signiicados de sintagmas, proposições ou orações. A semântica lexical estuda as mudanças que acontecem nos signiicados das palavras, e este, por sua vez, se classiica em: estudo do léxico e estudo morfológico. Quando se analisa o caso concreto do contato espanhol-português, sendo estas duas línguas tão próximas, resulta difícil, às vezes, distinguir se o léxico pertence a uma ou a outra língua (Atienza et al., 1996). À vista disso, podem ser notadas palavras que são casos claros de interferência e cuja semelhança formal diiculta a aplicação de um termo que indique com clareza o fenômeno. 2.2 Interferência no nível sintático Blas Arroyo (1993) alega ser a interferência sintática como aquela que está relacionada às estruturas dentro da oração. O autor airma que a interferência sintática é pouco estudada em comparação com a interferência semântica ou à interferência fônica, provavelmente porque o nível sintático é o mais estruturado, e, portanto, o mais difícil de sofrer alteração. Em contrapartida, é mais complexo estudar a variação sintática Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 655 em textos orais ou escritos que estudar os sons ou o léxico, razão pela qual esses estudos foram realizados em poucas ocasiões. Isso signiica que o nível em voga experimenta pouca variação na interlíngua. Em geral, considera-se que este campo linguístico não é alvo de muitos erros em alunos hispanofalantes de PLE, o português e o espanhol apresentam uma sintaxe muito parecida. No entanto, neste estudo julgouse necessário apresentar os casos mais comuns das interferências neste nível linguístico para ins de melhor compreender o desenvolvimento da interlíngua nos alunos. 2.3 Interferência no nível ortográico Atienza et al. (1996) analisam questões de ortograia, mantendo dois grandes blocos que tradicionalmente se distinguem neste âmbito a “acentuação”, na qual se observam interferências em razão da norma escrita e da pronúncia do espanhol, das “graias” propriamente ditas, em que se distinguem interferências provocadas por confusão de graias, assim como interferências ocasionadas pela confusão na segmentação de algumas unidades (p.52). Cogitou-se, aqui, em estudar este campo linguístico porque existe pouca literatura que trata da ortograia no âmbito de ensino e aprendizagem de LEs, notadamente na área de PLE para hispanofalantes. 3 Metodologia Os dados constituintes deste estudo foram coletados na Universidade Estadual Paulista ¨Júlio de Mesquita Filho¨, câmpus de Araraquara, no curso de Português como Língua Estrangeira para alunos estrangeiros, especiicamente em hispanofalantes de graduação e pósgraduação da área de Letras, Ciências Sociais, Farmácia, Química e Odontologia. Este trabalho teve como instrumentos de análise: a) um questionário aplicado no inal do curso que trata do papel da LM durante o processo de aprendizagem de PLE, e b) material escrito e produzido pelos alunos hispanofalantes, que frequentavam aulas de PLE no nível intermediário durante os primeiros meses do curso. Considerou-se este período como a etapa inicial do nível intermediário, fator que poderia ter maior ocorrências de interferências de espanhol na aprendizagem de português. O material escrito compõem-se de dois textos argumentativos Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 656 solicitados aos alunos de PLE sobre os temas que se estavam trabalhando nas aulas, totalizando 20 redações. Cada aluno realizou dois textos argumentativos cujos temas foram os seguintes: • Trabalhar em casa versus trabalhar no escritório. • Vantagens e desvantagens de morar no exterior. Quanto à metodologia, este estudo foi desenvolvido seguindo as análises qualitativa e quantitativa. Realizaram-se gráicos estatísticos para a análise das interferências linguísticas e para o questionário aplicado aos alunos. Além disso, para a análise das interferências linguísticas, as análises qualitativa e quantitativa são subsidiadas pelo critério frequência, nos moldes de Bybee (2006). Para esta autora, há dois métodos relevantes para constatar a frequência, a frequência token e a type. A frequência token refere-se à frequência textual de ocorrência de um item/construção independentemente do seu signiicado. A frequência type refere-se à frequência com que um padrão particular ocorre, sendo avaliada por meio das funções assumidas pelo item ou construção. Com base na deinição da interferência linguística (WEINREICH, 1953), as interferências linguísticas são divididas em três níveis: semântico, sintático e ortográico. Por conseguinte, é necessário esclarecer que neste trabalho considera-se relevante tratar tanto da frequência token como da frequência type. Ao classiicar as interferências linguísticas, a frequência token refere-se à contagem geral das interferências linguísticas existentes em cada um dos níveis: semântico, sintático, ortográico. Nesse sentido, a frequência type é obtida por meio da análise e quantiicação dos diferentes construtos linguísticos identiicados nas interferências linguísticas, a saber, semânticas, sintáticas e ortográicas. 4 Análise dos dados Nesta pesquisa identificaram-se um total de 119 (cento e dezenove) interferências linguísticas. A análise teve como foco as interferências no nível semântico, sintático e ortográico identiicadas na interlíngua dos alunos hispanofalantes de PLE em contexto de imersão. Observa-se a seguir a frequência token: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 657 TABELA 1 Frequência token das interferências linguísticas identiicadas nas produções escritas INTERFERENCIAS LINGUÍSTICAS FREQUÊNCIA PORCENTAGEM Interferência linguística no nível semântico 21 9% Interferência linguística no nível sintático 33 16% Interferência linguística no nível ortográico 65 75% TOTAL 119 100% A partir dos valores mostrados na tabela, é possível observar nos alunos hispanofalantes, em sua aprendizagem de português em contexto de imersão, uma forte tendência à interferência no nível ortográico, o que pode signiicar um problema grave na escrita, pois tanto a acentuação quanto a graia da língua portuguesa podem estar comprometidas. Com a intenção de explicar as ocorrências de interferências linguísticas presentes na interlíngua desses alunos, mostram-se em seguida as análises de acordo com sua classiicação, a saber, interferências semânticas, sintáticas e ortográficas. Logo, passa-se a realizar a interpretação do questionário aplicado aos alunos hispanofalantes que trata sobre o papel da LM na aprendizagem de PLE. 4.1 Interferências no nível semântico Neste nível linguístico foram identiicadas 21 (vinte e uma) interferências semânticas nas produções escritas dos alunos. As análises realizaram-se com base na classiicação de Odlin (1997), ou seja, semântica proposicional e semântica lexical. Veja-se a seguir: TABELA 2 Frequência type dos construtos linguísticos das interferências semânticas NIVEL SEMÂNTICO FREQUÊNCIA PORCENTAGEM Falso cognato 14 67% Versão literal 4 17% Palavra homófona 3 16% TOTAL 21 100% 658 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Nas interferências semânticas apresentam-se três construtos linguísticos identiicados nas redações dos alunos. Em primeiro lugar, o falso cognato que acontece quando palavras da LM e da LE têm semelhança ortográica, mas diferem completa ou parcialmente quanto ao signiicado. Em segundo lugar, a palavra homófona que ocorre quando uma palavra da LM ou da LE se pronunciam de forma quase idêntica a outra palavra da LE diicultando entender o signiicado da palavra que realmente deve ser utilizada no contexto. Em terceiro lugar, a versão literal que trata quando os alunos traduzem palavra por palavra da LM para a LE, assim, existe a diiculdade de compreensão por não haver tal estrutura na LE. (1) Falso cognato Exemplo: SALUDAR Texto observado: Eles sempre abraçam quando a gente saluda Possibilidade em português: Eles sempre abraçam quando a gente cumprimenta/saúda. Em espanhol: Ellos siempre abrazan cuando la gente saluda. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência semântica da LM. Este exemplo é um caso de interferência na semântica lexical, pois em espanhol, o verbo SALUDAR4 se usa com o sentido de cumprimentar alguém. Em português, temos também o verbo saudar com significado de cumprimentar. A seguir, um exemplo de versão literal: SALUDAR. In: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol.com. br/>. Acesso em: 23 jun. 2015 4 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 659 (2) Versão literal Exemplo OLHAR MAL Texto observado: Nós olhamos mal as pessoas que visten extranho ou com roupa colorida. Possibilidade em português: Nós temos um olhar preconceituoso para as pessoas que vestem de maneira estranha ou com roupa colorida. Em espanhol: Nosotros vemos mal a las personas que visten extraño o con ropa colorida. Processo de interlíngua Transferência linguística Observa-se que este exemplo trata-se de uma interferência semântica proveniente da LM, sendo um caso de interferência na semântica proposicional. Em espanhol, a expressão VER MAL é usada para se referir a algo ou a alguém com tom depreciativo e é construída com o verbo ¨ver¨ seguido do advérbio ¨mal¨, assim como em português a expressão SÃO MAL VISTAS ou ainda NÃO SÃO BEM VISTAS, entretanto, o aluno usou a versão literal em português com o emprego do verbo OLHAR MAL. Além disso, pode ser usada ainda outra expressão em português: TER UM OLHAR PRECONCEITUOSO. (3) Palavra homófona Exemplo MAIS Texto observado: Mais bôm a mia experiencia é ótima. Possibilidade em português: Mas bom, a minha experiência é ótima. Em espanhol: Pero bueno, mi experiencia es óptima. Processo de interlíngua Estratégia de comunicação Trata-se de uma interferência semântica da LE devido à confusão da pronúncia entre as palavras mas, conjunção adversativa, e mais, advérbio de intensidade, em português. Este exemplo é um caso de interferência na semântica lexical, porque houve uma mudança no signiicado da palavra MAIS. Este caso apresenta surdez fonológica devido a que os alunos hispanofalantes não percebem a diferença entre os fonemas /ais/ da palavra MAIS e os fonemas /as/ da palavra MAS. 660 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Observa-se também uma transferência da expressão “pero bueno”, típica do espanhol, mas não correspondente em português, que expressaria a mesma intenção com a conjunção adversativa “mas”, sem o adjetivo “bom”. Vale ressaltar que o emprego fonológico da conjunção adversativa e do advérbio de intensidade, mas/mais, em geral não é marcado em todo o território brasileiro, dependendo da variedade de cada região. 4.2 Interferências no nível sintático Neste nível linguístico foram identiicadas 33 (trinta e três) interferências sintáticas. A análise foi realizada de acordo com a deinição de Blas Arroyo (1993). Veja-se a seguir: TABELA 3 Frequência type dos construtos linguísticos das interferências sintáticas NIVEL SINTÁTICO FREQUENCIA PORCENTAGEM Omissão de contração 13 38% Uso incorreto de verbo 5 15% Uso incorreto de preposição 4 13% Uso incorreto de adverbio 3 8% Uso incorreto de plural 3 8% Uso incorreto de adjetivo 2 6% Seleção de tempo verbal 2 7% Uso incorreto de gerúndio 1 5% TOTAL 33 100% Apresentam-se oito construtos linguísticos das interferências sintáticas. A omissão de contração ocorre quando não existe a junção de elementos na LE por exemplo, a preposição por com os artigos deinidos o, a, os, as. A seleção do tempo verbal acontece quando o aluno erra no uso dos tempos verbais na LE, provavelmente por haver uma semelhança ortográica entre a conjugação de verbos da LM e aquela da LE. Além desses construtos, os alunos realizaram um uso incorreto de verbo, gerúndio, advérbio, adjetivo, preposição e plural na LE, devido notadamente ao uso da norma linguística da LM. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 661 (1) Omissão de contração Exemplo: POR A Texto observado: Eles têm muito respeto por a diversidade cultural ao contrario da gente na Argentina. Possibilidade em português: Eles têm muito respeito pela diversidade cultural ao contrário da gente na Argentina. Em espanhol: Ellos tienen mucho respeto por la diversidad cultural al contrario de la gente en Argentina. Processo de interlíngua Transferência lingüística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, não existe contração da preposição ¨por¨ seguida de um artigo deinido (el, la, los, las). Em português, a norma exige que aquela preposição seja contraída com os artigos deinidos (o, a, os, as) construindo: pelo, pela, pelos, pelas (2) Uso incorreto de verbo Exemplo: VOU A FICAR Texto observado: Tambem estou gostando muito da comida, vou a icar gordo no Brasil. Possibilidade em português: Também estou gostando muito da comida, vou icar gordo no Brasil. Em espanhol: También estoy gustando mucho de la comida, voy a quedar gordo en Brasil. Processo de interlíngua Transferência lingüística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, a estrutura gramatical do futuro imediato é constituída da preposição a: [IR + A + VERBO NO INFINITIVO] Em português, o futuro imediato não é constituído da preposição a: [IR + VERBO NO INFINITIVO] 662 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 (3) Uso incorreto de preposição Exemplo: ACOSTUMAR DE Texto observado: A gente aqui acostuma de comer muito pão. Possibilidade em português: A gente aqui costuma comer muito pão. Em espanhol: La gente aquí acostumbra a comer mucho pan. Processo de interlíngua Hipergeneralização do material linguístico de LE Trata-se de uma interferência sintática da LE. O aluno fez um erro sintático devido à norma em português de colocar a preposição de depois de verbos como: lembrar, esquecer, gostar. No entanto, em português o verbo ACOSTUMAR5 se usa com o sentido de fazer adquirir um costume ou habituar, já o verbo COSTUMAR6 se usa com o sentido de ter um determinado procedimento habitual ou uma prática constante e é precedido de um verbo no ininitivo. Portanto, o possível equivalente em português é COSTUMAR. (4) Uso incorreto de advérbio Exemplo: PERTAS DE Texto observado: Eu espero poder visitar as cidades pertas de Araraquara nos prosimos días. Possibilidade em português: Eu espero poder visitar as cidades perto de Araraquara nos próximos dias. Em espanhol: Espero poder visitar las ciudades cercanas de Araraquara en los próximos días. Processo de interlíngua Transferência lingüística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, quase sempre se usa o adjetivo CERCANO que concorda em número e gênero com o substantivo relacionado. Por isso, o aluno criou confusão e ACOSTUMAR. In: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol. com.br/>. Acesso em: 23 jun. 2015 6 COSTUMAR. In: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em: < http://michaelis.uol. com.br/>. Acesso em: 23 jun. 2015 5 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 663 aplicou a mesma regra tentando concordar o advérbio PERTO em gênero feminino e em plural, pois aquele advérbio está seguido do substantivo cidades. Em português, a locução prepositiva ¨perto de¨ não sofre lexão de gênero nem de número. (5) Uso incorreto de plural Exemplo: LEGALES Texto observado: Os brasileiros são muito legales, mas sempre chegam atrasados. Possibilidade em português: Os brasileiros são muito legais, mas sempre chegam atrasados. Em espanhol: Los brasileros son muy chéveres pero siempre llegan atrasados. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, o adjetivo legal é relativo à lei. O plural desse adjetivo é construído adicionando ¨es¨: LEGALES. No entanto, em português o adjetivo LEGAL7 se usa com o sentido de ser de modo agradável e positivo. Assim, a forma correta em plural é LEGAIS. (6) Uso incorreto de adjetivo Exemplo: PAO-DURAS Texto observado: A gente é pão-duras. Possibilidade em português: A gente é pão-duro. Em espanhol: La gente es tacaña. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, o adjetivo TACAÑO se usa com o sentido de ser avarento ou tacanho e concorda em gênero e número de acordo com o substantivo precedido LEGAL. In: DICIONÁRIO Houaiss. Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br/>. Acesso em: 23 jun. 2015 7 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 664 (gente). O aluno utilizou o equivalente em português PÃO-DURO. No entanto, este adjetivo é comum de dois gêneros (singular feminino, pãoduro; plural feminino, pães-duros). Além disso, ele cometeu um erro ao colocar em plural esse adjetivo devido ao uso inadequado e comum da discordância de substantivos coletivos em espanhol (geralmente oral), por exemplo: ¿Cómo vivirán esa gente? Nessa sentença em espanhol, o substantivo coletivo gente é concordado em plural por tratar-se de várias pessoas e, em geral, as pessoas hispanofalantes fazem o erro de concordar em plural esse substantivo. A sentença correta em espanhol é: ¿Cómo vivirá esa gente? (7) Seleção de tempo verbal Exemplo: FORAM Texto observado: Eu gostaria que os argentinos foram mais abertos com a gente estrangeira. Possibilidade em português: Eu gostaria que os argentinos fossem mais amigáveis com a gente estrangeira. Em espanhol: Me gustaría que los argentinos fueran más abiertos con la gente extranjera. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência sintática da LM. Em espanhol, o uso do verbo GUSTAR no tempo condicional é seguido do pretérito imperfeito do subjuntivo: Me gustaría que los argentinos fueran más abiertos con la gente extranjera. ↓ Verbo [gustar] tempo: condicional ↓ Verbo [ser] tempo: pretérito imperfeito do subjuntivo Em espanhol, a conjugação do verbo ¨ser¨ no pretérito imperfeito do subjuntivo da terceira pessoa do plural FUERAN é similar à escrita da conjugação do verbo ¨ser¨ no pretérito perfeito da terceira pessoa do plural Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 665 em português FORAM. Essa semelhança interferiu na seleção do tempo verbal adequado para o contexto da frase produzida pelo aluno na LE. (8) Uso incorreto de gerúndio Exemplo: CURTIENDO Texto observado: Eu estou curtiendo muito o Brasil. Possibilidade em português: Eu estou curtindo muito o Brasil. Em espanhol: Estoy disfrutando mucho Brasil. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência sintática da língua materna. Em espanhol, o gerúndio dos verbos terminados em ¨ir¨ se usa com a terminação IENDO, enquanto, em português os verbos terminados em ¨ir¨ se usa com a terminação INDO. 4.3 Interferências no nível ortográico Identiicaram-se um total de 65 (sessenta e cinco) interferências ortográicas nas produções escritas dos alunos. Realizou-se a análise de acordo com a classiicação de Atienza et al. (1996): acentuação e graias. TABELA 4 Frequência type dos construtos linguísticos das interferências ortográicas NÍVEL ORTOGRÁFICO FREQUENCIA PORCENTAGEM Troca de grafema 36 56% Omissão de grafema 10 15% Acréscimo de grafema 5 8% Omissão de acento 11 17% Acréscimo de acento 2 3% Palavras da língua materna com graia da língua estrangeira 1 1% TOTAL 65 100% 666 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 No nível ortográico apresentam-se seis construtos linguísticos de interferências. Quanto aos grafemas, identiicaram-se casos de troca, acréscimo e omissão de grafema na LE devido a que o aluno recorreu à ortograia das palavras equivalentes na LM ou à construção de palavras em português que se escrevem de uma forma semelhante nessa LE. Em relação aos acentos, observaram-se casos de omissão e acréscimo de acento em palavras da LE, pois quase sempre os alunos izeram uso da norma de acentuação do espanhol. No entanto, poucos casos nesse nível linguístico, acentuação, foram observados, possivelmente devido a uma incorreta aplicação da norma de acentuação da língua portuguesa. (1) Troca de grafema Exemplo: FACEM Texto observado: No Brasil os mininos facem muito exercício. Possibilidade em português: No Brasil os meninos fazem muito exercício. Em espanhol: En Brasil los chicos hacen mucho ejercicio. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência ortográica da LM. Em espanhol, a conjugação do verbo ¨hacer¨ no tempo presente da terceira pessoa do plural é HACEN. Observa-se que se utiliza o grafema c. Em português, na conjugação do verbo ¨fazer¨ no tempo presente da terceira pessoa do plural FAZEM se utiliza o grafema ¨z¨. Portanto, o aluno utilizou a norma de conjugação do verbo ¨hacer¨ em espanhol para a conjugação do verbo ¨fazer¨, o equivalente em português. (2) Troca de grafema Exemplo: TUDO Texto observado: Tambem tudo mundo é acolhedor. Possibilidade em português: Também todo mundo é acolhedor. Em espanhol: También todo el mundo es acogedor. Processo de interlíngua Estratégia de comunicação Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 667 Trata-se de uma interferência ortográica da LE. Erro ortográico cometido devido à surdez fonológica na inserção em um contexto de aprendizagem de PLE. O aluno confundiu a pronúncia do pronome indeinido TUDO com o adjetivo indeinido TODO por apresentarem semelhança fonológica. Além disso, com a inexistência de TUDO em espanhol, automaticamente, o aluno produz apenas TODO. (3) Troca de grafema Exemplo: ESSO Texto observado: Eu gosto muito de esso. Possibilidade em português: Eu gosto muito disso. Em espanhol: Me gusta mucho eso. Processo de interlíngua Estratégia de comunicação Trata-se de uma interferência ortográica da LM e da LE. Em espanhol, ESO é pronome demonstrativo neutro, cujo equivalente em português é ISSO. Neste caso, o aluno acreditou que o equivalente de ESO em português é ESSO, pois alguns pronomes demonstrativos se escrevem com duplo ¨s¨. Ademais, a escrita correta em português desse pronome demonstrativo é com o grafema ¨i¨. (4) Omissão de grafema Exemplo: ROPA Texto observado: Por exemplo, os argentinos son muito preconceituosos sobre a roupa. Possibilidade em português: Por exemplo, os argentinos são muito preconceituosos sobre a roupa. Em espanhol: Por ejemplo, los argentinos tienen mucho prejuicio sobre la ropa. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência ortográica da LM. O equivalente em português do substantivo ROPA, em espanhol, é ROUPA. O aluno omitiu o grafema ¨u¨ devido à semelhança com a graia da LM. 668 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 (5) Acréscimo de grafema Exemplo: VANIDOSOS Texto observado: Eles son muito vanidosos. Possibilidade em português: Eles são muito vaidosos. Em espanhol: Ellos son muy vanidosos. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência ortográica da LM. O equivalente em português do adjetivo VANIDOSO, em espanhol, é VAIDOSO. O aluno adicionou o grafema ¨n¨ devido à semelhança com a graia da LM. (6) Acréscimo de grafema Exemplo: FALHAR Texto observado: Eles gostam de falhar sobre as festas. Possibilidade em português: Eles gostam de falar sobre as festas. Em espanhol: A ellos les gusta hablar sobre las iestas. Processo de interlíngua Hipergeneralização de material linguístico de LE Trata-se de uma interferência ortográica da LE. O equivalente em português do verbo HABLAR, em espanhol, é FALAR. O aluno adicionou o grafema ¨h¨ devido ao fato de que em português existem muitas palavras que se escrevem com esse grafema, por exemplo: trabalhar, falhar, etc. (7) Omissão de acento Exemplo: CONTRARIO Texto observado: Eles têm muito respeto por a diversidade cultural ao contrario da gente na Argentina. Possibilidade em português: Eles têm muito respeito pela diversidade cultural ao contrário da gente na Argentina. Em espanhol: Ellos tienen mucho respeto por la diversidad cultural al contrario de a gente en Argentina. Processo de interlíngua Transferência linguística Trata-se de uma interferência ortográica da LM. O equivalente em português do substantivo CONTRARIO, em espanhol, é CONTRÁRIO. O aluno omitiu o acento agudo no grafema a devido à semelhança com a graia da LM. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 669 (8) Acréscimo de acento Exemplo: BÔM Texto observado: Mais bôm a mia experiencia é ótima. Possibilidade em português: Mas bom, a minha experiência é ótima. Em espanhol: Pero bueno, mi experiencia es óptima. Processo de interlíngua Estratégia de comunicação Trata-se de uma interferência ortográica da LE. O equivalente em português do adjetivo BUENO, em espanhol, é BOM. O aluno adicionou o acento circunlexo no grafema ¨o¨ devido ao fato de que em português, algumas palavras apresentam acentos circunlexos (acento que não existe em espanhol), talvez para marcar o fonema fechado da vogal “o”, diferentemente da vogal aberta, que em geral está marcada graicamente com o acento agudo. (9) Palavras da língua materna com graia da língua estrangeira Exemplo: TENHE Texto observado: Nós temos llamas como a gente aqui tenhe cachorros. Possibilidade em português: Nós temos lhamas como a gente aqui tem cachorros. Em espanhol: Tenemos llamas como la gente aquí tiene perros. Processo de interlíngua Estratégia de comunicação Trata-se de uma interferência da LM e a LE. Em espanhol, a conjugação do verbo ¨tener¨ na terceira pessoa do singular é TIENE. Em português, a conjugação do verbo ¨ter¨ na terceira pessoa do singular é TEM. O aluno fez uma aplicação de uma graia comum em português (nh) na forma da palavra em espanhol ¨tiene¨: TIENHE, por assimilação da primeira pessoa do singular deste verbo em português: TENHO, fator que poderia marcar um nível mais avançado de aprendizagem de português. Em geral, ao analisar as interferências linguísticas, veriicou-se que a interlíngua dos alunos hispanofalantes de PLE está marcada pela instabilidade e sistematicidade. Assim, podem ser consideradas duas etapas de interlíngua nesses alunos segundo a classiicação de Corder. De um lado, a pré-sistemática, pois muitos alunos hispanofalantes realizam hipóteses sobre a LE nas redações, evidenciando a recorrência da LM na escrita em português. De outro lado, a emergente, ao observar que esses 670 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 alunos possuem conhecimentos das normas linguísticas da LE, no entanto, a maioria das vezes eles erram no uso dessas regras. Em consequência, conforme a interpretação de Durão sobre a interlíngua como continuum linguístico, a representação mental de PLE está sendo construída com base nos conhecimentos do espanhol. Isto pode representar a existência de ¨barreiras¨ que esses alunos devem superar para não fazer mais uso dos seus conhecimentos prévios relacionados à LM na escrita em português, mas também podem representar uma colaboração em tal processo, pois as semelhanças podem tanto confundir como promover a aprendizagem de línguas próximas. O diferencial será a conscientização do aluno em seu processo de aprendizagem da língua alvo. Neste sentido, surge a aplicação e análise do questionário, subseção a seguir. 4.4 Análise do questionário Nesta subseção apresenta-se a análise do questionário aplicado aos alunos hispanofalantes o qual trata sobre o papel da LM na aprendizagem de PLE. Além de apresentar as análises estatísticas das respostas, mostram-se as justiicativas mais recorrentes utilizadas pelos alunos. Antes de aprender português, como você imaginava que seria o processo de aprendizagem dessa língua? 20% Difícil Fácil 80% GRÁFICO 1: Pergunta 1 Para a resposta ¨difícil¨, a justiicativa mais utilizada se baseia na existência de alguns aspectos linguísticos do português que torna sua aprendizagem complexa. No entanto, poucos alunos acreditam que Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 671 o processo é fácil porque o espanhol e o português são línguas muito parecidas Antes de aprender português, você considerava que o léxico do português era parecido com o léxico do espanhol? Sim Não 100% GRÁFICO 2: Pergunta 2 Todos os alunos responderam airmativamente e a justiicativa mais utilizada foi: as palavras são entendíveis e de fácil assimilação. Antes de aprender português, você considerava que a conjugação dos verbos da língua portuguesa se regia pelas mesmas normas que as da língua espanhola? Sim Não 100% GRÁFICO 3: Pergunta 3 Todos os alunos responderam negativamente. A justiicativa mais utilizada foi: existem terminações de conjugações que confundem aos hispanofalantes nos tempos verbais. 672 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Antes de aprender português, você considerava que as estruturas sintáticas em português eram semelhantes àquelas estruturas em espanhol? 40% Sim Não 60% GRÁFICO 4: Pergunta 4 De um lado, para a resposta ¨sim¨, a justiicativa mais utilizada foi: é fácil estabelecer uma oração em português seguindo o mesmo padrão de sujeito e predicado do espanhol. De outro lado, para a resposta ¨não¨, a justiicativa mais utilizada foi: porque existem algumas estruturas sintáticas que têm ordens distintas do espanhol. Antes de aprender português, você considerava que as ortografias dessas duas línguas eram idênticas? 20% Sim Não 80% GRÁFICO 5: Pergunta 5 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 673 A maioria dos alunos respondeu ¨não¨ e a justiicativa mais utilizada foi: o português possui regras muito diferentes e existem acentos que não existem em espanhol. Entretanto, poucos alunos responderam ¨sim¨, justiicando que as duas línguas apresentam quase as mesmas letras porque elas provêm do latim. Atualmente, você encontra dificuldades na conjugação de verbos na língua portuguesa? 40% Sim Não 60% GRÁFICO 6: Pergunta 6 Para a resposta ¨sim¨, a justiicativa mais utilizada foi: os tempos de conjugação como os tempos compostos são difíceis. Não obstante, para a resposta ¨não¨, a justiicativa mais utilizada foi: a conjugação dos verbos regulares é fácil. Atualmente, você encontra dificuldades na aprendizagem de estruturas sintáticas da língua portuguesa? 30% Sim Não 70% GRÁFICO 7: Pergunta 7 674 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Observa-se que 70% dos alunos respondeu airmativamente e a justiicativa mais utilizada se baseia em que às vezes se realiza a construção errada das frases, pois ainda está latente a língua materna, porém 30% dos alunos respondeu ¨não¨, argumentando que o português é muito parecido com o espanhol. Atualmente, você encontra dificuldades na aprendizagem do léxico da língua portuguesa? 30% Sim Não 70% GRÁFICO 8: Pergunta 8 Do mesmo modo, 70% dos alunos respondeu ¨sim¨ justiicando que embora muitas palavras sejam quase iguais ao espanhol, existem algumas mudanças que confundem. Além disso, 30% dos alunos respondeu ¨não¨, mencionando que por muitas delas serem parecidas ao espanhol se aprende rápido. Atualmente, você encontra dificuldades na ortografia na língua portuguesa? Sim Não 100% GRÁFICO 9: Pergunta 9 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 675 Neste caso, 100% dos alunos respondeu ¨sim¨ e a justiicativa mais utilizada foi: principalmente no uso dos acentos e mudanças nas graias das palavras com igual som em espanhol. Atualmente, você acha que a língua espanhola interfere no aprendizado da língua portuguesa? Sim Não 100% GRÁFICO 10: Pergunta 10 Nesta pergunta, todos responderam ¨sim¨, argumentando que na hora de aprender português, se faz uso dos conhecimentos em espanhol. Atualmente, você encontra dificuldades na produção escrita na língua portuguesa? 40% Sim Não 60% GRÁFICO 11: Pergunta 11 676 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 Sobre a produção escrita, 60% dos alunos respondeu airmativamente e a justiicativa focaliza que sempre se recorre às normas do espanhol, as quais atrapalham suas produções linguísticas. Entretanto, 40% respondeu ¨não¨, argumentando que a produção escrita é parecida em espanhol, e não existe diiculdade nenhuma na hora de escrever. Quando você não sabe algo na língua portuguesa, você recorre à língua espanhola? Sim Não 100% GRÁFICO 12: Pergunta 12 No referente a recorrer à língua materna, todos responderam ¨sim¨, justiicando que a língua materna rege o pensamento e o inconsciente deles quando aprendem português na sala de aula. Depois de ter analisado as respostas e as justiicativas dos alunos em relação ao questionário sobre o papel da LM durante o processo de aprendizagem de PLE, concluiu-se que as diiculdades que surgem no processo de aprendizagem do português em alunos hispanofalantes estão relacionadas intrinsicamente àquelas semelhanças linguísticas no nível semântico, sintático e ortográico entre essas duas línguas (espanhol e português), pois o uso das regras linguísticas da LM causou interferências linguísticas nas produções escritas desses alunos, como pode ser comprovado na análise apresentada neste estudo. Considerações inais O presente trabalho apresentou um enfoque sobre as interferências linguísticas no nível semântico, sintático e ortográfico em alunos hispanofalantes no nível intermediário de PLE em contexto de imersão. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 677 Observou-se que as interferências ortográicas são as mais recorrentes nas produções escritas daqueles alunos (75%). Ao analisar especiicamente os casos, percebeu-se que nas interferências semânticas se apresentam mais construtos linguísticos de Falsos Cognatos (67%). Nas interferências sintáticas se apresentam mais construtos linguísticos de Omissão de contração (38%); no nível ortográico, identiicaram-se mais casos linguísticos de Troca de grafema (56%). Quanto à origem, veriicou-se que a maioria das interferências linguísticas provêm da LM. Pôde-se concluir que o iltro cognitivo da LM conigura um papel importante na aprendizagem de uma LE próxima à LM. Em relação à análise dos processos de interlíngua deinidos por Selinker, percebeu-se que a maioria das interferências linguísticas identiicadas nos textos foram realizadas utilizando regras e subsistemas da LM. Contudo, poucas vezes os alunos realizaram mudanças nas regras da LE para poder se comunicar em português. Além disso, identiicouse que raramente esse grupo de alunos generalizou regras gramaticais da LE em processo de aprendizagem no seu discurso, as quais foram inapropriadas em diversas frases ocasionando, assim, a criação de construtos linguísticos incorretos na LE. Deste modo, segundo as definições de Corder, as análises informam que a interlíngua dos alunos hispanofalantes de PLE encontrase tanto na etapa pré-sistemática como na emergente, porque se realizam hipóteses sobre a LE, e, apesar de existir uma assimilação de regras da LE, os alunos não conseguem corrigir seus próprios erros e os cometem repetidamente. Este fato, pode promover a aprendizagem do aluno quando toma consciência de sua etapa como aprendiz e também promover o ensino ao professor que estimula o aluno para lidar com estratégias alternativas em seu processo de interlíngua. Com relação ao conceito de Durão sobre a representação mental da interlíngua, pode-se observar que os alunos hispanofalantes internalizam os novos conhecimentos da LE, mas baseando-se no uso da LM. Isto pode resultar em passar por ¨diiculdades de aprendizagem¨ devido às semelhanças linguísticas entre a LM e a LE, ou seja, entre espanhol e português, línguas tipologicamente próximas, mas também devem ser vistas como promotoras do processo de ensino e aprendizagem, em contraposição com línguas muito diferentes. Ademais, pode-se considerar que o fato do aluno aprender PLE em um contexto de imersão 678 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 pode ser favorável para atravessar as etapas de aprendizagem e superar a interlíngua de modo mais rápido e signiicativo. A respeito das percepções de alunos hispanofalantes sobre a aprendizagem de PLE em contexto de imersão, veriica-se que a LM pode diicultar a aprendizagem do português em níveis mais avançados, provocando assim casos de interferências linguísticas nas redações daqueles alunos, este dado pode ser observado tanto nas análises linguísticas como na resposta 11, sobre recorrer a LM. Por outro lado, ao analisar as respostas do questionário, especiicamente as perguntas 10 e 12, foi possível veriicar que a proximidade tipológica parece ser um facilitador da aprendizagem, pois 100% dos alunos verbalizam que recorrem a sua LM, espanhol, ao utilizar a língua portuguesa, entretanto, justamente este fator de aproximação com a LM é que pode provocar a interlíngua. À guisa de conclusão, é importante ressaltar que o professor de PLE deve tratar as interferências linguísticas durante o processo de ensino e aprendizagem, principalmente em níveis mais avançados e em contexto de imersão, entendendo que o aluno hispanofalante geralmente se encontra exposto a um conlito contínuo entre as regras e os hábitos adquiridos de português com a sua LM, espanhol, no caso de línguas próximas. Deste modo, com essa análise, pretendeu-se proporcionar um estado de conhecimento das interferências linguísticas na interlíngua em alunos hispanofalantes de PLE em contexto de imersão e sua descrição, para que os professores de PLE levem-nos em conta nas salas de aula e possam reduzir os desvios de aprendizagem nesses campos linguísticos e elaborar estratégias que tratem essas interferências. Referências ALMEIDA FILHO, J. C. P. Português para estrangeiros: interface com o espanhol. São Paulo: Pontes Editores, 2001. ATIENZA, E. et al. Una tipología de interferencias catalán-castellano a partir de las producciones escritas de los estudiantes universitarios. In: CANTERO, F. et al. (Ed.). Didáctica de la lengua y la literatura para una sociedad plurilingüe del siglo XXI. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1996. p. 577-582. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 679 BAETENS, H. Bilingualism: Basic Principles. Boston: College Hill Press, 1986. PMCid:PMC387218. BARALO, M. Lingüística aplicada: aprendizaje y enseñanza del español/le. Interlingüística, n. 14, p. 31-44, 2003. BARALO, M. La adquisición del español como lengua extranjera. Madrid: Arco Libros. 1999. BLAS ARROYO, J. La Interferencia Lingüística en Valencia. (dirección: catalán-español). Castellón: Universitat Jaume I, 1993. BYBEE, J. Frequency of Use and the Organization of Language. Oxford: Oxford University Press, 2006. CORDER, S. P. The study of learners’ language: error analysis. Introducing Applied Linguistic. Harmondswort: Penguin Books, 1973. p. 256-294. DURÃO, A. B. A. B. La Interlengua. Madrid: Arco/Libros, 2007. PMCid:PMC3301216. ELLIS, R. Understanding Second Language Acquisition. Oxford: Oxford UniversityPress, 1989. FERNÁNDEZ, S. Interlengua y análisis de errores en el aprendizaje del español como lengua extranjera. Madrid: Edelsa, 1997. INSTITUTO CERVANTES. El español, una lengua viva. Informe 2014. Madrid: Instituto Cervantes, 2014. Disponível em: <http://eldiae.es/wpcontent/uploads/2014/07/El-espa%C3%B1ol-lengua-viva-2014.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2015. LADO, R. Linguistics across cultures. Ann Arbor: Michigan University Press, 1957. LADO, R. Lingüística Contrastiva: lenguas y culturas. Tradução de Joseph A. Fernandez. Madrid: Alcalá, 1973. NEMSER, W. Approximative systems of foreign language learners. IRAL, v. 9, n. 2, p. 115-124, 1971. https://doi.org/10.1515/iral.1971.9.2.115. ODLIN, T. Language transfer: cross-linguistic inluence in language learning. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 680 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 641-680, 2017 OVERBEKE, M. Mécanismes de l’interférence linguistique. Madrid: Fragua, 1976. PAYRATÓ. La interferencia linguística. Cataluña: Curial Edicions Catalanes, 1985. SANTOS GARGALLO, I. Lingüística Aplicada a la enseñanzaaprendizaje del español como lengua extranjera. In: LICERAS, J. La adquisición de Lenguas Extranjeras. Hacia un modelo de análisis de la interlengua. Madrid: Visor, 1999. SANTOS GARGALLO, I. Análisis Contrastiva, Análisis de Errores e Interlengua en el marco de la Lingüística Contrastiva. Madrid: Sintesis, 1993. SELINKER. The Interlanguage. IRAL, v. 10, n. 3, p. 209-232, 1972. SOUSA, D. Cómo aprende el cerebro. Thousand Oaks: Corwin Press, 2002. TRAGER, G. L. The ield of linguistics. Studies in Linguistics: Occasional Papers 1. Norman, Okla: Battenburg Press, 1949. WATSON, J. Psychology as a Behaviorist Views. Psychological Review, Washington, v. 2. p. 158-177, 1913. https://doi.org/10.1037/h0074428. WEINREICH, U. Languages in contact. La Haya: Mouton, 1953. ZOPPI FONTANA, M.; DINIZ, L. R. A. Declinando a Língua pelas Injunções do Mercado: Institucionalização do Português Língua Estrangeira (PLE). Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 27, p. 89-119, 2008. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 Populism and the people in Lula’s political discourse: Bridging linguistic and social theory Populismo e o povo no discurso político de Lula: Uma ponte entre teoria linguística e social Bruno Coutinho IESP/UERJ brunocouti@gmail.com Adriana Carvalho Lopes UFRJ adrianaclopes14@gmail.com Daniel do Nascimento e Silva UFRJ dnsfortal@gmail.com Abstract: This paper combines conceptual tools from discourse and social theories to analyze a particular speech that former Brazilian president Luiz Inacio Lula da Silva delivered at the end of his second term (2007-2010) in the Complexo do Alemão, a neighborhood located in one of the poorest areas of Rio de Janeiro. It attempts to highlight how Lula breaks with a longstanding tradition of Brazilian politicians who have chiely represented the political elites. While using a speciic rhetoric, Lula constructs (and is constituted by) a “populist” locus of enunciation. Drawing from Ernesto Laclau’s theory of populism, this paper argues that populist logic in Latin America should not be understood pejoratively, but rather as a particular way of doing politics. It thus claims that Lula positioned himself and his interlocutors as “the people,” a speciic eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.681-710 682 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 discourse that breaks with certain Eurocentric expectations about the “appropriate” language of politics in Brazil. Keywords: Discourse; text; context; Lula; Complexo do Alemão; populism. Resumo: Este artigo articula conceitos oriundos tanto da teoria linguística quanto social de forma a analisar um discurso proferido pelo expresidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, no im do seu segundo mandato (2007-2010) no Complexo do Alemão, um bairro localizado em uma das regiões mais pobres do Rio de Janeiro. O artigo aborda o modo como Lula rompe com uma tradição de políticos brasileiros que representam primariamente as elites. Por meio de uma retórica especíica, Lula constitui (e é constituído por) um lugar de enunciação “populista”. Engajado com a teoria do populismo de Ernesto Laclau, este artigo propõe que o populismo na América Latina seja entendido não de modo pejorativo, mas como um modo próprio de realizar política. Assim, argumenta-se aqui que Lula posicionou a si e a seus interlocutores como “o povo”, um discurso especíico que rompe com certas expectativas eurocêntricas do que seja a linguagem “apropriada” da política no Brasil. Palavras-chave: Discurso; texto; contexto; Lula; Complexo do Alemão; populismo. Recebido em: 25 de janeiro de 2016. Aprovado em: 05 de agosto de 2016. To begin with, it’s a contradiction that someone’s child studies in a school with air-conditioning while another’s child cannot even write because the room is so hot that the sweat drips down into the notebook. (LULA, 2010, p. 4) 1 Introduction A former migrant from the poor Nordeste (Northeast) of Brazil and later a union leader in the wealthy state of São Paulo and one of the founders of the Workers Party (henceforth, the PT), Luiz Inácio Lula da Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 683 Silva served as president of Brazil in two consecutive terms between 2003 and 2010. During his presidency, Lula (as he is commonly referred to in Brazil) was frequently in the news not only for what he did, but also for what he said and how he said it. His speech was frequently treated by the corporate media and by some Brazilian intellectuals as a form of “deviation,” “error,” “expression of ignorance”, or as an “abnormal style” in need of being corrected. His grammar was often regarded as lawed, his metaphors were considered laughable, his working class speech register was scorned, and above all the “content” of his speech was frowned upon. Much of this negativity and discontent stems from the fact that Lula often broke with commonly held expectations about the adequate political language in Brazil (DALTOÉ, 2010 and SIGNORINI, 2006, 2014). Yet Lula has had an internationally recognized career as the president who lifted millions out of poverty and put Brazil on the path to development. While situating ourselves in an interdisciplinary combination of linguistic and social analysis, we address in this paper some challenges that Lula’s discourse posed to the traditional language of politics in Brazil. All in all, Lula departed from a longstanding tradition of Brazilian politicians who had chiely represented the political elites. We argue that Lula, in using a speciic rhetoric, constructed (and was constituted by) a “populist” locus of enunciation. Drawing on Ernesto Laclau’s theory of populism, we claim that populist logic in Latin America should not be understood pejoratively, but rather as a particular way of doing politics. Unlike classical theories of populism (IANNI, 1989; 1994; WEFFORT, 2003), which conceive it in a pejorative way, or as a deviation from the natural evolution of Brazilian society, Laclau claims that populism is the very essence of the political scene. In order to present an account of Lula’s populist locus of enunciation, we methodologically attempt to bridge pioneering analytical instruments of discourse analysis (FAIRCLOUGH, 1993; van DIJK, 2008; LACLAU, 2005; WODAK, 2011) with an interpretative disposition that Signorini (2002, p. 122) has termed “contextual ethnographic analysis” or “ethnographic perspective” (see also PINTO, 2015; GARCEZ; SCHULZ, 2015). We thus attempt to provide a token of Signorini’s contextual ethnographic analysis, and we do so in order 684 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 to provide scholarship on language that does not detach itself from a careful consideration of society. Along these lines, we analyze a particular speech that Lula delivered at the end of his second term as president (2007-2010) in the Complexo do Alemão, a neighborhood located in one of the poorest areas of Rio de Janeiro. Author Bruno was present at this event and had the chance to accompany irst-hand a great deal of the process of production of Lula’s speech. While working on his Masters thesis, aimed at studying the impacts of the Program of Acceleration of Growth in the Complexo do Alemão (OLIVEIRA, 2011), the author spoke with Lula’s press advisors and some displaced families that Lula’s staff had interviewed in order to situate the president’s speech within local “real life” stories. Our analysis of Lula’s speech will be also based on a interview with Gloria, a journalist who had worked during his incumbency as staff member of the Presidency Secretariat for Social Communication (henceforth, SECOM). Composed of journalists, intellectuals and some leaders in the government, the Secretariat was responsible for the conception and production of the print version of Lula’s speech (an artifact that Lula would transform in his public oral performances), and for the transcript of the oral text that would be made available in the Presidency website. In our contextual ethnographic analysis, studying Lula’s speech vis-à-vis Gloria’s remarks and other accompanying discourses is a mode of accounting for the complexity of given utterances – discursive artifacts that, as Bakhtin (1986) reminded us, stand as links in a succession of other utterances. This article is organized as follows: We irst present our read of the notion of locus of enunciation and spell out our conception of discourse. Then we describe the collective construction of the speech that Lula delivered in the Complexo do Alemão in 2010, at the inauguration of a housing complex for the poor. Next, we focus on the irst part of Lula’s speech and explore some linguistic features of his populist locus of enunciation. The analysis then turns to some metaphors that Lula uttered to position himself as a politician who is close to his allies and to God, while being wary of the dangers of political lamboyance. Next, we explore the concept of populist logic by Laclau (2005) and try to relate it to both Lula’s performance in speech and his political agenda. Finally, we conclude that Lula explored features of discourse in ways that simultaneously respected and subverted the system of interdictions Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 685 constraining his affordances in speech, thus producing a locus of enunciation that had been foreign to Brazilian national politics. 2 Locus of enunciation and discourse We intend to analyze Lula’s discourse by seeking to understand how social and linguistic factors constitute the locus of enunciation of a subject. As Mignolo (1994) aptly points, the loci of one’s enunciation aren’t a set of ixed linguistic sites but rather trajectories that subjects follow amidst a myriad ambivalent struggles, interdictions, and desires. A few words on our conception of discourse are also necessary. First, we here build on several authors who, despite their different disciplinary leanings, defend that discourses are ideological (FAIRCLOUGH, 1993; FOUCAULT, 1981; BAKHTIN, 1986; BLOMMAERT, 2005). By ideology we mean neither ‘false consciousness’ nor ‘afiliation with hegemonic discourses.’ We conceive of ideology instead in a more mundane and practical (BOURDIEU, 1977) sense, in which ideology is “some kind of ‘social cement’ [that] turns groups of people into communities, societies, and cultures” (BLOMMAERT, 2006, p. 510). Second, we hold that subjects who utter discourses are not autonomous entities in a social vacuum, but rather actors who are constituted by (and authors of) discursive processes. The subject’s utterance is always the re-uttering of some previously constituted linguistic unit in a language, and so the action of the subject in language is necessarily historical and ideological. Third, we see discourse not as a mere linguistic or representational practice, but rather as a performative (AUSTIN, 1962) and material one, that is both social and historical and produces social reality. Fairclough (1993) emphasizes that discourse is a practice not just of representing, but also of giving meaning to the world, thereby constituting perspectives of action in society. In this framework, in order to understand social reality and identities one must irst understand how and why such constructs are discursively produced. Along similar lines, Laclau (2005) argues that discourse is a material category, not precisely a mental or ideal fact. In short, discourse is a social practice inasmuch as any actions undertaken by subjects and social groups are meaningful actions. 686 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 Fourth, all discourses are fundamentally heterogeneous. We will refer to discourses as practices that carry other accompanying voices and ideologies. As Bakhtin taught us long ago, every discourse is full of fragments of other discourses – linguistic units that may be explicitly demarcated or mixed with other utterances. A stretch of discourse may assimilate, contradict, deny or echo other discourses. Here, it is worth approximating the notion of discourse to that of ‘utterance’ in Bakhtin (1986). For the Russian Philosopher, “any utterance is a link in a very complexly organized chain of other utterances” (BAKHTIN, 1986, p. 69). Every utterance is thus constituted by an intense polyphony: (…) the unique speech experience of each individual is shaped and developed in continuous and constant interaction with others’ individual utterances. This experience can be characterized to some degree as the process of assimilation – more or less creative – of others’ words (…). Our speech, that is, all our utterances (including creative works), is filled with others’ words, varying degrees of otherness or varying degrees of “our-own-ness,” varying degrees of awareness and detachment. These words of others carry with them their own expression, their own evaluative tone, which we assimilate, rework, and re-accentuate. (BAKHTIN, 1986, p. 89) Building upon these established principles of discourse, we here analyze the speech of Lula as he produces his own locus of enunciation in a public gathering at a group of poor neighborhoods of Rio de Janeiro – a locus of enunciation that is, as a condition of its own possibility, already plural and polyphonic. Also, to the extent that the subject who utters “I” in language is necessarily positioning him/herself in relation to a “you” (BENVENISTE, 1973), we will take into account how Lula discursively represents his interlocutors. We believe that this perspective is fundamental in our critique of the discourses of Lula as he assumes the position of a “public man” in the ways he addresses his interlocutors. As Foucault argued, the authorial position of a subject is different from a metaphysical notion of authorship. That is, there is no primary origin of discourses and meanings. Authorship is rather “an empty function that can be illed by virtually any individual when he formulates the statement” (FOUCAULT, 1972, p. 93). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 687 While focusing on the loci of Lula’s enunciation in a speciic speech event, we’re also focusing on the space-time of his discourse, identifying privileged interlocutors, and exploring how he refers to both public policies and the role of the State. Besides, we will interpret how Lula produces the “people” (theoretically, the target of politics). Note that the category of the “people” is not an “ontology” that exists independently of discourse, nor is it “a static category that can be measured in economic and/or sociological terms” (MENDONÇA; LOPES, 2013). It is rather a discursive construction that can be signiied in different ways with regard to the power relations in which it is inserted. Having specified our read of both the notions of locus of enunciation and discourse, we’ll turn in the next section to some ritualistic features of Lula’s speech production. As Foucault taught us, the ritual is a complex system of restrictions that constitutes discourses (FOUCAULT, 1981). As we hope to demonstrate, Lula embedded his populist locus of enunciation not only in the myriad conlicting demands of institutional politics but also within a speciic ritual. 3 The Ritual of Preparing Lula’s Speech 3.1 Broader Context: Favelas Former President Lula da Silva’s speech took place at the inauguration of a housing complex in the Complexo do Alemão, one of the poorest neighborhoods of the city of Rio de Janeiro. The Complexo do Alemão is a group of 12 slums (known as “favelas”) in Northern Rio de Janeiro where some 120,000 people live. Favelas or irregular urban agglomerations have long been called ‘shantytowns’ in English (ZALUAR, 2010). However, the term is no longer appropriate as Rio de Janeiro’s favelas are not comprised of shacks but rather houses built by residents with bricks and concrete. The oficial 2010 census estimates that some 1,393,300 people live in the 763 favelas spread throughout Rio de Janeiro. Rio has a population of approximately 6,323,000; therefore 22% of them live in irregular dwellings (IBGE, 2010). Favelas are ethnically heterogeneous, including low-income descendants of Africans, Europeans and indigenous Brazilians. Rio – the second largest city in Brazil – has the largest population of favela 688 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 residents. These neighborhoods have the lowest rates of employment, education and public services. The Complexo do Alemão, for instance, has the lowest Human Development Index (0.38) in the 30 administrative regions of Rio de Janeiro. One third of its inhabitants are unemployed; out of the 40.8% who self-identiied as employed in the 2010 national census, most hold positions for which educational requirements are low, working conditions are bad, and wages are worse (IBGE, 2010). We should add that favelas are at once a byproduct of long-lasting ineficient urban planning and an icon of human agency. Yet hegemonic discourses usually position favelas in space-times that ignore their complex processes and logics of formation while invoking topographies and temporalities of human evil, crime and (intentional) segregation from the city. Slogans like the “fractured city” (VENTURA, 1995) or “neighborhoods that lack culture and peace” rapidly got combined under an “authoritarian political culture” (NOBRE, 2013, p. 30) inherited from Brazil’s military dictatorship of over two decades (1964-1985), opening up a symbolic terrain where a police State should “bring” things: culture, public services, peace. 3.2 Immediate Context Lula uttered his speech to an audience comprised of favela residents, local community leaders, and some political and institutional authorities (namely, the governor and vice-governor of the state of Rio de Janeiro, the city mayor, State ministers, senators, federal congress representatives, city representatives, the president of Caixa Econômica Federal, and State and city secretaries). The speech took place on October 25, 2010, seven months after heavy rains had provoked mudslides in the neighborhood, leaving some 400 families homeless. The houses were built with resources from the federal housing program known as “Minha Casa Minha Vida” [My home, my life] that helps the poor to acquire affordable apartments by offering loans from Caixa Econômica Federal, a public bank. As many families had been displaced due to the mudslides, local community leaders had demanded that the homeless be prioritized over those who had previously signed up for the loans but already had a place to live. The April 2010 heavy rains displaced many families in the Complexo do Alemão and other areas of the city, causing a series Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 689 of changes in the implementation of public policies in this group of favelas – relocation of inance resources, readjustment of schedules and methodologies, and the establishment of new local partnerships. The government of Rio de Janeiro would eventually announce that the 592 apartments built within the Minha Casa, Minha Vida program would be purchased by the State and destined to homeless families. The inauguration of the housing complex also had electoral implications. At the time, politicians were campaigning for the Presidency, the Senate, the Congress and the State Government. Sergio Cabral, thengovernor of Rio de Janeiro, was campaigning to be re-elected, while Lula was supporting the campaign of his successor to the presidency, Dilma Rousseff. Therefore, the April 2010 loods, the “pressure” from homeless residents and the 2010 federal and state campaigns all comprise the immediate political context of Lula’s speech. 3.3 Lula’s speech Our corpus consists of the transcript of Lula’s speech and an interview with Gloria,1 a member of the SECOM, who provided us with a perspective on the process of production and dissemination of Lula’s speeches. In order not to read the loci of enunciation out of a bounded text, we’ll reinforce our earlier point that an ethnographic perspective is essential in reading texts and their contexts. Here, we embrace an empirical perspective through our narration of Lula’s ingenious production of his locus of enunciation. Thus our analysis of Lula’s transcribed “text” is accompanied by a careful empirical consideration of other accompanying texts and practices. The transcribed text has many marks of Lula’s typical oral discourse. However, it isn’t a facsimile copy of the “original” oral discourse, as we’ll be using the transcription that Lula’s press advisors made themselves. So this transcription is an entextualization (BAUMAN; BRIGGS, 1990) of his “original” discourse, i.e. it is a textual form whose units have traveled from another place, simultaneously carrying with themselves histories of their past context(s) and provoking disruptions in these histories. As such, this entextualized form is a phase of the process 1 We are here using a pseudonym. 690 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 of mediation of Lula’s speech, or yet a translation, with all the linguistic and political connotations of the term. To say that Lula’s speech (like any speech) is mediated implicates at least two things. First, however original, singular and innovative Lula’s rhetoric is, an artifact like the transcription we analyze here is not the very expression of Lula’s “inner voice,” but rather a set of entextualizations which are already polyphonic and iterable, a provisional place where, as Mignolo (1994, p. 508) aptly points, “conlictive enunciations remain to be deciphered behind or beyond the enunciated.” Second, Lula’s speech follows a ritual, a system of restrictions that impose limits, yet one whose possible breaches Lula knew (and exploited) very well. The following subsection is dedicated to explaining how Lula draws on both the history of entextualizations of Brazilian politics and on certain “breaches” of the (presidential) system of interdictions in order to enact the identity of a president who speaks like (and to) the People. 3.4 The ritual Like any discourse, the President’s discourse follows a speciic ritual. Discourses are delimited by a set of constituting norms and rules, which at once provide the conditions for the individual’s utterances and constrain his/her liberty in the process of formulating the discourse (FOUCAULT, 1981). In this sense, presidential discourses are ritualistic texts that enable certain choices within a ield of restrictions. Foucault highlights the “complex system of restrictions” that constitutes discourses. This system is the set of norms and rules that restrict the freedom of an individual in the process of discourse production. No one simply says what he or she pleases. Depending on the interlocutors, the individual makes moral and social choices that are determined by the “ritual” itself. As there is no such thing as a toolkit that explains all features and speciicities of the ritual framing of Lula’s speech, Bruno’s experience in the ield was invaluable as it provided some evidence that explains how Lula’s press advisors and the President himself handled some ritualistic injunctions. According to information from the Secretariat of the Presidency that Bruno gathered in the ield, Lula’s speech was planned as follows: in addition to protocol information (greetings and acknowledgements to authorities) that is required in the beginning of Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 691 any presidential address, the speech would refer to “life stories” that the President’s advisors had collected in their previous visit to the neighborhood. The stories would display the precariousness of life in the neighborhood, which would reinforce Lula’s account of the beneits of his government’s popular housing policy. Following these lines, two press advisors wrote the text that would later be read aloud by the President in public. But as it became clear at the event, Lula treated the print text as a mnemonic outline, one that he would combine with information gathered by him minutes before his public pronouncement, thus transforming the print guidelines into an oral performance that was not typical of Brazilian political language. It is worth stressing here Gloria’s input on the way Lula translated the print discourse that his press advisory would hand him (often) a day before his public speeches. Here she emphasizes that Lula would at once praise and subvert the written discourses previously elaborated by his Secretariat: In general, he received [the written rendition of his speech] the day before or on the plane (…). He would often say that the discourse was too elaborated, that it had too many numbers and such, (…) but actually the text helped him prepare his own improved speech, with his own words. He would extract life stories and numbers from the text. I saw him many times reading the text on the airplane, that is, hours before the event. It was a transversal reading. Then he would place the pages vertically and organize them, and sometimes leave them on the plane seat or on his table. I sometimes saw him reading the text in the car or, in case he had slept in the city, while having breakfast. He would often bring the print version of the speech to the stage or the pulpit. But he rarely read it out to the public. I think I’ve never seen him reading it aloud. Only some stretches of it, or a speciic number. He usually referenced the written texts in his own impromptu speech, cheerfully saying things like “don’t worry, I won’t read you this stack of papers. My press advisory made up this brochure to keep you here for two hours, but I won’t bother you for so long.” And the audience would respond with great fervor. He always started his speech by saying he wouldn’t read the material, isn’t that interesting? 692 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 Note that even though his speech took place within an oficial “literacy regime” (BLOMMAERT, 2007), Lula engaged with the oficial literacy by twisting it altogether. Lula didn’t simply read out or repeat the written text; he would instead re-iterate it as a novel text. As Gloria points out, his reiteration was ironic in that typical artifacts of the “pedagogic or institutional” literacy (STREET, 2009) such as institutional “stacks of paper” would be rendered as tedious objects that played only a secondary or supportive role. In these events, the authentic protagonist was his charismatic and populist oral rendition of the print artifacts. The people’s understanding of his discourse was not only his main concern, but also the guiding principle of his public readings. That is why for Gloria the formality of “too many numbers and such” wasn’t the location of his transgressive performance. Lula seems to place his locus of enunciation on a singular terrain, or yet in the blindspot of the already established ield of oficial politics. Performatively constituted in such terms, this emerging space would allow Lula to both attach himself and translate his politics to the public. This inventive translation process would ultimately produce affect in his audiences: “the audience would respond with great fervor. He always started his speech by saying he wouldn’t read the material, isn’t that interesting?”, Gloria noted. Lula’s populist locus of enunciation was thus an ambivalent incorporation of institutional politics. In refusing to read out to the public a textual artifact produced by intellectuals (while at the same time drawing from it), Lula both reafirmed and twisted Brazilian institutional politics. He rendered the convoluted discourse of the intelectual elites into a populist (textual) form, thereby reaching – hence, inventing – the “people”. In the Complexo do Alemão, Lula didn’t perform his populism any differently. Before stepping on the stage, the President personally talked to some of the beneiciaries of the federal housing program who would receive apartment keys on stage. This was a low-income context: Lula was in a favela, near the working classes he had been historically committed to. While listening to the residents, Lula became “intimate” with them. During his personal interactions with the residents, he would capture their framing of issues – personal fragments that Lula would translate into the larger scale of the Brazilian working class experience. This was one of the strategies that Lula devised and that helped him legitimize public policies for the poor. Let us now switch to Lula’s performance on stage, a place where he would further produce his locus of enunciation. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 693 4 A populist locus of enunciation According to the protocol, Lula began his speech by greeting everyone who was present in the event: (...) Bem, meus queridos companheiros e companheiras do Rio de Janeiro, meus queridos companheiros e companheiras do Complexo do Alemão, meu querido companheiro Sérgio Cabral, governador do estado do Rio de Janeiro e sua querida companheira Adriana Ancelmo Cabral, minha querida companheira Marisa, meus companheiros ministros Marcio Fortes, das Cidades; Dulci, da SecretariaGeral da Presidência; Franklin Martins, da Comunicação Social e o nosso companheiro Eloi Ferreira de Araujo, Ministro da Igualdade Racial. Quero cumprimentar o nosso querido companheiro Luiz Fernando Pezão, vice-governador e braço direito e esquerdo do companheiro Sergio Cabral, quero cumprimentar o nosso querido companheiro senador reeleito, Marcelo Crivella, quero cumprimentar a Deputada Federal Cida Diogo e deputado Jorge Bittar. Feliz aniversário, Jorge Bittar. Você, para quem aparenta 80 anos, está novo, parece que tem 70 [anos]. Quero cumprimentar o nosso querido companheiro Eduardo Paes, prefeito da cidade do Rio de Janeiro. (LULA, 2010, p. 1) (…) Well, my dear comrades of Rio de Janeiro, my dear comrades of the Complexo do Alemão, my dear comrade Sérgio Cabral, governor of Rio de Janeiro, and his dear partner Adriana Ancelmo Cabral, my dear comrade Marisa, my comrade minister Marcio Fortes, from the Ministry of Cities; Dulci, from the General-Secretary of the Presidency; Franklin Martins, from the Ministry of Social Communication, our comrade Eloi Ferreira de Araujo, minister of Racial Equality, I would like to greet our dear comrade Luiz Fernando Pezão, vice-governor and the right and left arm of comrade Sergio Cabral, I would like to greet the federal congresswoman Cida Diogo; congressman Jorge Bittar. Happy Birthday, Jorge Bittar. You, for someone who is 80 years old, looks like someone who is 70 (years). I would like to greet our dear comrade Eduardo Paes, mayor of the city of Rio de Janeiro. (LULA, 2010, p. 1) 694 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 Note that Lula repeated the noun ‘companheiro’ [comrade] throughout this stretch of discourse. The term is associated with a discursive memory of the Brazilian political left. It indexes a relationship between peers who work together and share a collective struggle for better life conditions for the working class. After the media exposure and political inluence of Lula in the workers’ strikes in the 1970s, in addition to the creation of the PT in 1980, the term ‘companheiro’ became a trademark of Lula himself. Now it is also the mark of a party and a generation of politicians and left-wing activists who fought for the democratization of the country after 20 long years of military dictatorship (1964-1985). Lula also often combined the noun ‘comrade’ with the adjective ‘dear.’ This usage seems to imply that his interlocutors were not only his political allies, but also those who were part of a space of proximity, partnership, and friendship. In short: People the president trusted. In 2010, Lula enjoyed great popularity. At the time, his presidential term of almost 8 years had coincided with intense economic growth. Most of the political authorities addressed by Lula were part of the political multiparty alliance of the PT in the federal government. At the local level, the city administration and the government of Rio de Janeiro had both received an enormous amount of inance resources from the federal government in order to implement programs like the Program of Acceleration of Growth (PAC) and Minha Casa, Minha Vida. Sergio Cabral was the candidate for re-election as governor of Rio. Since the beginning of his speech, Lula made clear that “everyone was together for Rio,” an echo of the slogan of Mr. Cabral’s campaign. It is fundamental to invoke this political background in order to understand Lula’s moves within the system of restrictions that constrain a President’s discourse. Lula constantly addressed the governor, evoking the former’s accomplishments and resemblance with the people of Rio de Janeiro. In the following stretch of discourse, Lula addressed Sergio Cabral while expressing gratitude to God’s blessings: (...) quero primeiro, Sérgio, agradecer a Deus, porque acho que todo dia, todo dia nós temos que levantar, colocar nossas mãos para o céu e agradecer por mais um dia. Muitas vezes, a gente se esquece de agradecer, muitas vezes, a gente se levanta nervoso com coisas menores, e a gente se esquece que o dom maior é a nossa vida e, por Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 695 ela, nós temos que agradecer todo dia ao nosso Criador. (LULA, 2010, p. 2) I would like to first of all, Sergio, thank God, because I think that every day, every day we have to wake up, raise our hands up to the sky and thank for one more day. Many times we forget to thank, many times we wake up in a nervous mood, we forget that the greatest blessing is our life and, for it, we have to thank our Creator every day. (LULA, 2010, p. 2) He then added that: (…) A história do Rio de Janeiro será dividida em dois momentos, antes do Sergio Cabral e depois do Sergio Cabral, porque o Sergio Cabral, ele traz dentro da alma dele aquilo que é a alma do carioca. Ele não um intelectual carioca, ele é o carioca. Ele não é um sambista carioca, ele é o carioca. Em qualquer coisa que você tentar procurar o símbolo de um carioca, está na cara, no jeito e na espontaneidade do companheiro Sergio Cabral. (LULA, 2010, p. 2) (…) The history of Rio de Janeiro will be divided up in two moments, before Sergio Cabral and after Sergio Cabral, because Sergio Cabral, he brings inside his soul that which is the Carioca soul. He is not a Carioca intellectual; he is the Carioca. He is not a Carioca samba singer; he is the Carioca. Wherever you look for the symbol of a Carioca, it is in the face, in the manners and in the spontaneity of comrade Sergio Cabral. (LULA, 2010, p. 2) In addressing Sergio Cabral as one of his privileged interlocutors, Lula irst iterated religious signs. Scholars in the anthropology of secularism correlate the construction of modernity with the denial of pre-modern practices and sensibilities such as religiosity (ASAD, 2003; MAHMOOD, 2009). Lula subverted this modern construction of politics and subjectivity by bringing religious sensibilities into the political realm.2 In other words, 2 In entangling religion and politics, Lula is also strategically drawing on the sensibilities of Brazil’s immense Christian (especially Catholic) population. 696 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 he spoke as someone from the people, uttering a language as religious as the people’s language (SEGATO, 1995) while simultaneously ressignifying this non-modern grammar as the proper language of Brazilian politics. Next, Lula used the term ‘Carioca’ to reference Sergio Cabral. Carioca is both a noun and an adjective that refers to the native inhabitants of Rio de Janeiro. His invocation of a Carioca body and soul was intertwined with his government’s efforts to upgrade Rio’s symbolic and economic status. After a long period of political and economic decay following the transference of the federal government from Rio to Brasília in 1960, Rio de Janeiro became, in the second term of Lula’s presidency (2006-2010), the epitome of Brazil’s contemporary economic growth and change. In his address to governor Cabral, Lula at once displayed his awareness of the ritualistic language of politics and destabilized the “normality” of this language by bringing in the non-modernity of religion and a feeling of belonging related to the “authentic” context of the Carioca. His style also framed authorities occupying high positions in the vertical and unequal organization of Brazilian society as friends who were willing to come down to the place where the People belong. On stage, his dear comrades were framed as neither traditional Carioca intellectuals (Lula’s predecessor and political opponent, Fernando Henrique Cardoso, was an intellectual from Rio de Janeiro who made an academic and political career in São Paulo) nor famous samba singers, but as spontaneous and “average” Cariocas. 5 Metaphor and Populism To highlight the importance of Rio de Janeiro’s politicians, Lula explored yet another feature of language and discourse: metaphor. For instance, he argued that, with the new political administration, Rio witnessed a “miracle of the multiplication of loaves” (LULA, 2010, p. 3). He then criticized Cabral and mayor Eduardo Paes’ predecessors (Rosinha Garotinho and César Maia, respectively) by stating that: (...) esse milagre da multiplicação dos pães aqui no Rio de Janeiro se deve à capacidade de interlocução que tem o Sérgio Cabral que tem o companheiro Pezão, e que tem o Eduardo Paes na prefeitura, que é outro alívio que vocês deram a vocês mesmos. É como se vocês vivessem com Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 697 dor de cabeça a vida inteira, uma dor de cabeça crônica (com) um prefeito que parecia um pavão... vocês elegeram Eduardo Paes... é como se vocês tivessem tomado um remédio para acabar com a dor de cabeça de quem agia apenas pensando em si próprio. (LULA, 2010, p. 3) (…) such miracle of the multiplication of loaves here in Rio de Janeiro stems from the ability of interlocution that Sergio Cabral has, as well as the likened ability that both comrades Pezão and Eduardo Paes have, which is yet another relief that you guys gave to yourselves. It is like you guys had a headache that lasted forever, a chronic headache with a mayor who behaved like a peacock… then you elected Eduardo Paes… it is like you had taken a medicine to end a headache caused by someone who acted only on behalf of himself. (LULA, 2010, p. 3) Lula addressed both his interlocutors and opponents by means of metaphors. On the one hand, he mocked previous local politicians by dismissing them as pretentious leaders who ended up giving long-lasting headaches to the people. He referred to Rio de Janeiro’s former mayor, Cesar Maia, as a “peacock,” and to the period before Cabral and Paes’ administrations as “a chronic headache.” On the other hand, he associated his political allies and consequently himself with the Carioca lifestyle. In Lula’s speech, Cabral was the very Carioca soul. As Lula’s speech was being uttered in a group of favelas, the claim of being an authentic Carioca may have two possible effects. First, Lula played with regional identities: He is from the poorest geographic region of Brazil, the Nordeste. Residents from the Nordeste occupy the place of pre-moderns in the Nation’s imaginary (SILVA, 2012), a symbolic location also occupied by people from peripheral neighborhoods like the Alemão. In other words, his being from a region traditionally associated with hunger and misery in popular discourse authorized him to assign trust to his ally Cabral, the very icon of the Carioca soul, as being able to do the best for those who share Lula’s previous marginalized condition. Lula’s politics here were both national and local. Second, to be a Carioca also stood out as a differential marker from Rio de Janeiro’s “old politics.” Both Anthony Garotinho and Rosinha Garotinho are from the municipality of Campos, in the North of Rio de Janeiro State. They 698 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 effectively become foreigners when it comes to the Carioca demands of the capital city. Lula also drew on such metaphorical notions as proximity and religiosity to perform the locus of enunciation of a politician who is close to his allies and to God, while being wary of the dangers of distance and lamboyance. Ricoeur (1977) argues that metaphor produces meaning by combining signs that are already part of the structure of experience and understanding of the social world. Lula utters metaphors that combine politics with the everyday life of ordinary people, thereby making his speech more “concrete.” Lula breached the modern ideology of secular politics by conlating his political deeds with religious symbols, for instance by invoking the image of God to feed the hope that things will get better. He “[thanked] God” for one more day and referred to Rio’s politicians as those who made the “miracle of the multiplication of loaves” (LULA, 2010, p. 2-3). Lula also couched his populism in metaphorical notions such as (relief from) pain and suffering. The moments in his speech in which these notions are encoded are all the more relevant as they reveal the resigniication of the pain and suffering that historically marked the Brazilian poor and especially the Nordestinos like him. The promise of a messianic time – proper of religious notions enacted in his discourse – is anticipated from the after-life of paradise into the present time of the Brazilian welfare State. The following excerpt is indicative of this operation: (...) Os ilhos de vocês, agora, podem estudar em uma escola com ar-condicionado dentro da escola, o que não poderia continuar a ser privilégio dos setores mais abastados. Ainal de contas, não pode o ilho de um estar em uma escola com ar-condicionado, e o ilho de outro não conseguindo nem escrever, porque o suor molhava a folha do caderno em que ele tinha que escrever. (LULA, 2010, p. 4) (…) Your children now can study at a school with airconditioning. This should no longer be the privilege of the rich. To begin with, it’s a contradiction that someone’s child studies in a school with air-conditioning while another’s child cannot even write because the room is so hot that the sweat drips down into the notebook. (LULA, 2010, p. 4) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 699 Lula thus positioned the accomplishment of the policies devised in his administration as the relief for the corporeal suffering of the people. Natural factors such as heat are no longer impediments for the people’s realization of their citizenship. In drawing from the same corporeal ield in which our necessity as humans is grounded, Lula claims to have transformed a state of necessity into a state of rights. As much as at a local scale the children and the families in the Complexo do Alemão would have their suffering and pain alleviated by social programs, his political alliances would amount, at the broader scale of Rio’s politics, to the remedy for an abiding “headache” aflicting Fluminense people. The messianic “país do futuro” (country of the future) is pragmatically rendered into the country of the now. Lula’s metaphoric language is yet another source of the polyphony of his discourse. It places the “abstract” language of politics in the “concrete” ground of proximity, religion, and everyday corporeal life. Yet, while such metaphors do approximate the President and the poor, they also reveal an uncanny conception of Brazilian political language. Before Lula, all previous presidents had diplomas of higher education and were recognized as “doctors.” The term “doctor” in Brazil refers primarily to a physician, but is also used as a prestigious title often conferred to a small part of the Brazilian population – a white male from the economic elite. It also refers to someone holding a doctoral degree, although the latter reference is much less widespread. In exploring a metaphoric language that entextualizes signiiers proper to the People, Lula enacted a linguistic identity that broke with previous utterances of Brazilian politics – utterances that would make a sharp distinction between the “head of state” and his people. 6 Lula’s Populism Lula also made jokes and told a few stories of the families beneiting from public policies: (...) Pois bem, companheiros e companheiras, a entrega destas unidades habitacionais signiica um novo começo para cada uma das famílias aqui beneiciadas. Por meio do programa “Minha Casa, Minha Vida” (…), companheiras como Alexandra de Jesus e Ana Paula Silva estão vendo seus sonhos, que pareciam impossíveis, se tornarem realidade. (LULA, 2010, p. 4) 700 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 (…) Thus, my comrades, the inauguration of these houses amounts to a new beginning for every family here. By means of the Program “My Home, my Life” (…), comrades such as Alexandra Jesus and Ana Paula Silva can now see that their dreams, impossible to be realized before, are coming true today. (LULA, 2010, p. 4) Lula thus produces his proximity to the people by means of discursive properties such as metaphor and polyphony. In this section, we want to draw on Laclau’s (2007) logic of populism to discuss how Lula entangles his locus of enunciation with populism. In Brazil and elsewhere, classic theories of populism tend to frame this political form negatively. Weffort and Ianni are two academic icons of such position in Brazil. Weffort (1989) claims that populism in Brazil, after its emergence in the 1930s, manifested itself in two forms: as a style of government and as mass politics. The author couches his explanation of the success of populism in Brazil in three elements: repression, manipulation, and satisfaction. The entanglement between State repression, the manipulation of the masses and the satisfaction of workers who saw some of their demands being accommodated would give rise to a “populist pact” in Brazil. In his analysis of the political history of Brazil and the reasons behind the 1964 civil-military coup d’état, Ianni published, in 1968, O colapso do populismo no Brasil, or The Collapse of Populism in Brazil (IANNI, 1989). He circumscribes populism to the years of 1945 and 1964 – a period he termed “populist democracy”. Ianni sees the 1964 coup as the disintegration of populism in Brazil, i.e., the collapse of an economic development model characteristic of a transition period (from an agriculture society into an urban and industrial one) conducted by an interventionist State and by charismatic leaders who sought to legitimize themselves in mass politics. According to Ferreira (2001), both Weffort and Ianni regard populism as a “deviation” from the natural course of political life. The “deviation” theory is grounded on a teleologic view of Marxism, namely that the working classes, in becoming aware of their class positionality, would ind their own vocation – the socialist revolution. Grounded on repression, manipulation, and cooptation, (this rendition of) populist politics, however, would have prevented workers from an autonomous initiative. In this perspective, workers and other popular segments are Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 701 less authors than witnesses of the political process. They would thus be patients rather than agents of history. Laclau’s positions departs from the classic view. He devises a discursive theory of populism, arguing that the latter ought to be understood not as a political system but as a symbolic game of negotiation between different social actors. Populism is not a strategy of manipulation from above, but a bilateral political game. Populism is less a movement (identiied with a certain ideological orientation) than a logic of political struggle, one that operates on distinct ideological grounds and orientations. In diverging from classical theories, Laclau regards populism as the proper of the political arena. Society is divided into two camps, and populism takes place when those from “below” interpelate power. This typically comes during moments of crisis of hegemony, when social demands do not ind satisfactory answers in the institutional system. In Laclau’s own words, Populism is not an irrational set of practices that somehow undermines more rational coherent forms of political conduct. Rather, all politics contains a populist dimension (…). [I]t starts at a time of crisis, when the ideology of the people is articulated in a popular democratic antagonism against the ideology of dominant bloc. (LACLAU, 2005, p. 47) Populist logic calls into question a certain normal political universe. Lula permeates his speech with such popular and everyday imagery that he does away with the “objectivity” of the political, as well as with the supposed autonomy of politics in relation to other spheres of social life, such as religion or soccer. In Lula’s speech, politics is built up by vague and indeterminate meanings. However, as Laclau (2005) claims, vagueness and indeterminacy are not a “problem” for populist logic. Rather, this hybrid rhetoric, by mixing different spheres of social life, makes clear that social and political reality is itself vague and indeterminate. Thus, rather than interpreting such language as deviation, we ought to understand it as a break with certain expectations about what should be the language of politics – a language traditionally infused with ascetic and Eurocentric values. 702 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 Lula’s locus of enunciation becomes all the more populist if we consider that he was elected President during a crisis of the hegemony of the traditional ruling class in Brazil. During the years of redemocratization (1990-2002), Brazil had been ruled by parties that applied principles of radical modern liberal ideology to the economy and to the State. During the international crises of markets in the late 1990s, the Brazilian economy suffered a signiicant negative impact resulting from the economic policies adopted by then-President Cardoso in his second term (1999-2002). The population felt the political and economic crisis and longed for change. A speciic voice of the “people” began to be heard: A voice demanding more jobs, access to education, health, public transportation, security etc. In short, Lula clearly articulated a set of historical demands from Brazil’s lower middle classes. When he was irst elected in 2002, Lula would then become the symbol of change. In Laclau’s (2005) terms, Lula’s image was that of an “empty signiier.” The concept is closely related to the way Laclau deines populist logic. Strictly speaking, an empty signiier is a signiier without a signiied. This occurs when a discourse universalizes its content in such way that it becomes impossible to construct an accurate meaning. An empty signiier is a discourse that expands its contents, becoming inlated by its meanings. Laclau relates this double movement of emptying and overlowing of the signiier to the political sphere, arguing that these empty signiiers condense at a given time in history around a series of particular demands of individuals and groups that were not institutionally answered. When a series of social demands cannot be absorbed differentially by institutional channels, they become unsatisied demands that enter into a relationship of equivalence with one another and thus crystallize around common symbols. Some leaders exploit these symbols by interpellating the frustrated masses and incarnating a process of popular identiication that ends up producing “the people” as a collective actor to confront the existing regime with the purpose of demanding change. Lula became the symbol for the resolution of varied and distinct demands, including housing, health, education, and food. These demands were condensed and became equivalent, with Lula as the icon of the unraveling of all of these long-lasting problems. It was no coincidence that the symbol of his irst campaign had the following motto, “Hope Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 703 overcame fear.” In many respects, Lula was then the embodiment of hope and happiness. This position was further strengthened with the establishment of the imaginary of an opposition between the people and the rulers that were in power before Lula – representatives of the agricultural, industrial and military political elites. In the recent history of Brazilian democracy, Lula was the irst person from the poor Nordeste to be elected president, and the irst with little formal education. In Signorini’s terms (2014, p. 178), Lula disrupted previous standards of presidential discourse and literacy, in that he blurred traditional correlations between “discursive genre and sociopragmatic function in the public sphere (informal conversation instead of formal speech; performative action instead of erudite oratory)”; and also made vague associations between “linguistic standards and the legitimacy of political authority,” thus challenging “boundaries normally taken as stable and well-deined by traditional sociopolitical and sociolinguistic orders”. Lula was also the irst candidate to be elected from the PT, the irst party in Brazil that was not created by the elites. To many, Lula embodied the possibility of change and redemption for the “forgotten people.” Laclau claims that in populism the “people” are not a “datum” of the social structure, but rather a discursive construction. The “people” are less than the whole body of citizens – the populus. In populism, the people are equivalent with the “plebs”, the underprivileged, inasmuch as the people claim to be “the only legitimate populus – that is, a partiality which wants to function as the totality of the community” (LACLAU, 2005, p. 81). The populist production of the “people” requires an operation that presents the plebs as the entire populus. This construction is established by means of an antagonism between sectors of the society: the “people” versus the “elite”. The populist logic strategically promotes a social division by using privileged signiiers that condense the whole ield of actors into two antagonistic sides (for the enemy, the “regime”, the “oligarchy”, the “dominant groups” etc., and for the oppressed, the “people”, the “nation”, the “silent majority,” and so on). Discourses about Lula often display such imaginary opposition between the two sides of the dispute. Silva (2012) discusses one such opposition by conducting a textual analysis of the ways in which Veja (a weekly magazine widely read in Brazil, also known for its right-wing 704 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 bias) delegitimizes Lula’s electors as non-modern subjects. One of Silva’s examples is a Veja magazine article proiling Lula voters. On August 16, 2006, when Lula was running for his reelection, Veja displayed a young woman from the Nordeste, Gilmara Cerqueira, smiling on the cover while holding her voter identiication card. The main caption was: “She can decide the election.” Just below the captions, the subtitle read: “Nordestina, 27 years, average education, 450 Reais per month ($115 per month), Gilmara Cerqueira portrays the voter that will tip the scales in October.” Both in the cover and in the main article, Veja exhibited linguistic and visual elements that portrayed the modern ield of politics in Brazil, iconized by elements such as the electoral card held by Gilmara and expressions like “Brazilians who work and pay taxes,” which referenced supporters of the right-wing opposition candidate, Geraldo Alckmin. Veja consciously represented an imagined community of readers, the nation’s “good” citizens. In our analysis of Lula’s locus of enunciation, we argue that the sign “people” comprises precisely those left out of this “imagined community” produced by this right-wing magazine. Below are some portions of Lula’s speech in which the word “people” was uttered: (...) Portanto, Sérgio, (…) você está dizendo que é possível fazer as coisas icarem melhores quando a gente gosta do povo, quando a gente respeita o povo e quando a gente não faz distinção nem pela cor, nem pela idade, nem pela religião e muito menos pelo status social. (LULA, 2010, p. 4) (…) Therefore Sergio (…) you are saying that you can make things better when we like the people, when we respect the people and when we do not distinguish people by color, or by age, nor by religion and much less by social status. (Lula, 2010, p. 4) (...) verdade que tem traicantes aqui e tem bandidos aqui (…) Mas nós temos que provar, todo santo dia, que a maioria do povo daqui é povo que vive do seu salário, do seu suor e do seu sangue. (LULA, 2010, p. 7) Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 705 (...) it is true that here we have drug dealers, thugs (...) But we have to prove every single day that the majority of the people here are people who earn a salary, and who live out of their sweat and blood. (LULA, 2010, p. 7) Note that Lula had as his audience not only fellow politicians, but a majority of residents who shared a similar socioeconomic condition with Gilmara Cerqueira – people who were unemployed or working in the informal sector, with low levels of schooling, and with per capita income between zero and two minimum wages (or between zero and 400 US Dollars). They also belonged to the group familiar with most of Lula’s metaphors: religious people who enjoyed everyday, humble activities. In the passages above, ‘people’ is synonymous with ‘workers’, but not just any workers. Lula’s people are those who have to prove every day that they are not drug dealers. By the end of his speech, Lula stated: “Rio de Janeiro is not a state of bandits, neither of drug dealers” (p.7). He adds that, “we have to prove every day, every sacred day, that the majority of the people here live out of their sweat and blood” (p.7). Both utterances contradict historical constructions in the corporate media that, for at least two decades (1990s and 2000s), treated the Complexo do Alemão as a space of disease, violence, and decadence. Lula expanded the signiier “the people” in such a way that they became the bearers of the promises of the Welfare State. Housing, health, education, and security are now keywords of a Welfare State language that Lula’s government helped to develop (SINGER, 2012). While recognizing the overall scenery of social and economic hardship among the people living in the Complexo do Alemão, Lula in his speech also afirmed that his political commitment would improve their lives. Lula reframed the space and time of the people he was talking to: while they live in areas considered by mainstream discourses as only it for drug traficking and crime, Lula positioned them as individuals who deserve to be respected regardless of color, age, religion or social status. Lula at once praised and produced the “people,” the plebs, the underprivileged. ‘The people’ is an empty signiier that Lula explored as if to delimit it against ‘the elites’, or those who have always been in power in Brazilian society; those who, in Lula’s own terms, are “the more afluent sectors of society,” or in Veja’s words, “the Brazilians who work and pay taxes.” 706 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 7. Conclusions The generic features of Lula’s speech – the acknowledgement of political and institutional authorities and the recontextualization of narratives of displaced families who would beneit from Minha Casa, Minha Vida – were entangled with the process of producing a ritual and following protocol procedures that constrain the speech of heads of state in particular contexts. This example of Lula’s speech supports the argument that the subject who speaks in ritual contexts is framed by an order that disciplines, controls and deines the (good) forms of life. On the one hand, Lula stood as an interlocutor of the Welfare State, positioning himself as a leader that could ensure State support in providing minimal socioeconomic guarantees to the people (plebs): income, health, education and housing. Lula thus followed institutional rules. On the other hand, with a unique style that marks his identity as a “simple man,” Lula recontextualized real life stories and popular signs such as the admiration for the sacred in order to resonate with the poor. In a double bind, Lula fulilled the institutional role of the State in recognizing and meeting social demands, while subverting certain expectations regarding a “President’s locus of enunciation,” thus occupying the uncanny place of someone in an elite position speaking the language of the plebs. This image is foreign to the tradition of political discourse in Brazil and therefore marks Lula’s singularity as president. Lula’s discourse is therefore constituted by an anti-institutional dimension and by a challenge to political normalization, or the usual order of things. In wittingly exploring some unorthodox features of language and discourse, Lula produced his locus of enunciation as a voice from the people, as if the people were talking to the people. Acknowledgements This article was partially funded by a grant from the Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ (Process: 100.101/2012). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 707 References ASAD, T. Formations of the secular: Christianity, Islam, Modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003. ARENDT, H. The Human Condition. Chicago: Chicago University Press, 1958. AUSTIN, J . How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1962. BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays. Austin: University of Texas Press, 1986. BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993. BAUMAN, R.; BRIGGS, C. Poetics and performance as critical perspectives on language and social life. Annual Review of Anthropology, v.19, p.59-88, 1990. BENVENISTE, É. Problems in General Linguistics. Miami: University of Miami Press, 1973. BLOMMAERT, J. Discourse: A critical introduction. London: Routledge, 2005. https://doi.org/10.1017/CBO9780511610295. BLOMMAERT, J. Language Ideology. In: BROWN, K. (Ed.). Encyclopedia of Language & Linguistics. 2.ed. Oxford: Elsevier, 2006. v. 6, p.510-522. BLOMMAERT, J. Grassroots literacies. Writing, identity in Central Africa. London: Routledge, 2007. BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. BRIGGS, C. The Gallup poll, democracy, and the vox populi: Ideologies of interviewing and the communicability of modern life. Text & Talk, v.5, n.6, p.681-704, 2007. DALTOÉ, A. Divulgação do discurso político: as metáforas de Lula e suas formas de interdição. Linguagem em (Dis)curso, v.11, n.3, p.585606, 2011. 708 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 FAIRCLOUGH, N. Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press, 1993. FERREIRA, J. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: ______. O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 60-124. FOUCAULT, M. The Archaelogy of Knowledge. London: Tavistock, 1972. FOUCAULT, M. The Order of Discourse. In: YOUNG, R. (Ed.). Untying the Text: A Post-Structuralist Reader. Boston: Routlege & Keagan Paul, 1981. p.51-78. GARCEZ, P.; SCHULZ, L. Olhares circunstanciados: etnografia da linguagem e pesquisa em Linguística Aplicada no Brasil. D.E.L.T.A., v. 31, n. 3, p. 1-34, 2015. IANNI, O. A forma̧ão do Estado populista na América Latina. São Paulo: Ática, 1989. IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. IBGE. Censo 2010. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br>. Acesso em: 10 mar. 2015. LACLAU, E. On Populist Reason. London: Verso, 2005. LULA, L. The President’s speech delivered in October 25, 2010, at the inauguration ceremony of units from Minha Casa, Minha Vida designed for families displaced by the mudslides of April 2010, Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes/luiz-inaciolula-da-silva/discursos/2o-mandato/2010/2o-semestre/25-10-2010discurso-do-presidente-da-republica-luiz-inacio-lula-da-silva-nacerimonia-de-entrega-de-unidades-do-programa-minha-casa-minhavida-para-familias-atingidas-pelas/view>. Acesso em: 15 mar. 2015. MAHMOOD, S. Religious reason and secular affect: an incommensurable divide? In: ASAD, T.; BROWN, W.; BUTLER, J.; MAHMOOD, S. Is Critique Secular? Blasphemy, injury, and free speech. Berkeley: University of California Press, 2009. p. 64-100. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 709 MENDONÇA, D.; LOPES, C. A. Apresentação: O populismo na visão inovadora de Laclau. In: LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013. p. 9-17. MIGNOLO, W. Editor’s Introduction: Loci of Enunciation and Imaginary Constructions: The Case of (Latin) America. Poetics Today, v.15, n.4, p.505-521, 1994. OLIVEIRA, B. Políticas públicas e participação popular na implementação do PAC Social no Complexo do Alemão, RJ. 2010. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010. NOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao Governo Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2013 PINTO, J. Trajectories of the Black Female Body in Brazil. Circulations of Racist and Antiracist Representations on a TV Show. Pragmatics and Society, v. 6, n. 2, p.197-216, 2015. RICOEUR, P. The rule of metaphor. Toronto: University of Toronto Press, 1977. SEGATO, R. Santos e daimones: o politeísmo afro-brasileiro e a tradi̧ão arquetipal. Brasília: Editora UnB, 1995. SILVA, D. Pragmática da Violência: O Nordeste na Mídia Brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012. SINGER, A. Os sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. SIGNORINI, I. Por uma teoria da desregulamentação linguística. In: BAGNO, M. (Org.). A linguística da norma. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p.93-123. SIGNORINI, I. Língua oicial (oicial pra quem?). In: CORREA, M.; BOCH, F. (Org.). Ensino de língua: representa̧ão e letramento. Campinas: Mercado de Letras, 2006. p.123-138. SIGNORINI, I. A Brazilian ex-President’s Public Speech: A Threat to the Existing Order? In: GORRTZEL, T.; ALMEIDA. P. R. (Ed.). The Drama of Brazilian Politics. From Dom João to Marina Silva. New York: Kindle Book, 2014. p.176-194. 710 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 681-710, 2017 STREET, B. Ethnography of writing and reading. In: OLSON, D. R.; TORRANCE, N. (Ed.). The Cambridge handbook of literacy. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 332-328. van DIJK, T. Discourse and Power. London: Palgrave Macmillan, 2008. VENTURA, Z. Cidade Partida. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. WODAK, R. The Discourse of Politics in Action: Politics as Usual. New York: Palgrave Macmillan, 2011. ZALUAR, A. Youth, drug trafic and hyper-masculinity in Rio de Janeiro. Vibrant, v.7, n. 2, p. 7-27, 2010. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 Os registros da experiência da criança na linguagem: o ato enunciativo de transcrição The recording of children’s experience in language: the enunciative act of transcription Marlete Sandra Diedrich http://orcid.org/0000-0002-9177-089X Universidade de Passo Fundo marlete@upf.br Resumo: Este artigo aborda a atividade de transcrição envolvida nas pesquisas com fatos de linguagem de criança nas quais os arranjos vocais ganham destaque na análise. Tem por objetivo reletir acerca da atividade de transcrição de fatos de linguagem da criança, a partir de uma perspectiva enunciativa aquisicional. A especiicidade desse ponto de vista reside no seguinte aspecto: nos fatos de linguagem da criança marcados por arranjos vocais, o gesto interpretativo do transcritor precisa recair sobre formas discursivas nem sempre coincidentes às da língua, característica da aquisição da linguagem, além de dar conta do registro por escrito de aspectos advindos da manifestação vocal da língua. Com base em princípios derivados dos estudos do linguista Émile Benveniste sobre enunciação, entende-se a transcrição como um ato enunciativo, o que coloca em destaque a igura do transcritor e a relação de interpretância que este estabelece com os fatos analisados. Palavras-chave: transcrição; enunciação; linguagem da criança. Abstract: This paper discusses the transcription activity in research on child language in which vocal arrangements are highlighted in the analysis. It aims to relect on the transcription activity of child eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.711-737 712 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 language from an enunciative perspective of language acquisition. The speciicity of this view lies in the following aspect: given child language phenomena marked by vocal arrangements, the interpretative gesture of the transcriber must fall on discursive forms, which do not always coincide with standard language forms This is characteristic of language acquisition and the transcriber’s interpretative gesture allows for the written registration of oral language aspects. Based on principles stemming from Émile Benveniste’s studies on enunciation, transcription is, therefore, understood as an enunciative act, that highlights the role of the transcriber and the relation of interpretation henceforth established with the recorded phenomena. Keywords: transcription; enunciation; child’s language. Recebido em: 6 de julho de 2016. Aprovado em: 15 de julho de 2016. 1 O percurso traçado Partimos do princípio de que a atividade de transcrição envolvida nas pesquisas com fatos de linguagem de criança nas quais os arranjos vocais ganham destaque na análise envolvem um trabalho de transcrição caracterizado por determinadas particularidades. Por isso, ocupamo-nos em descrever as singularidades dessa atividade e analisar algumas das escolhas de transcrição realizadas pelo pesquisador em determinados trabalhos. A especiicidade desse ponto de vista reside no seguinte aspecto: nos fatos de linguagem da criança marcados por arranjos vocais, o gesto interpretativo do transcritor precisa recair sobre formas discursivas nem sempre coincidentes às da língua, característica da aquisição da linguagem, além de dar conta do registro por escrito de aspectos advindos da manifestação vocal da língua. Para tratarmos dessa questão, lançamos, inicialmente, algumas problemáticas enunciativas que iluminam a discussão, pautados nos estudos de Émile Benveniste, autor no qual buscamos fundamentação para nossa jornada investigativa. Essas problemáticas apontam para um aspecto fundamental no trabalho do transcritor: as relações de interpretância mobilizadas na transcrição, as quais caracterizam o ato do pesquisador transcritor. Tais relações são Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 713 evidenciadas em uma pesquisa com fatos de linguagem de criança por nós empreendida e cujas decisões em torno da transcrição ilustram bem nosso pensamento. Por im, nossa relexão sugere a possibilidade de novos olhares para o tema da transcrição de fatos dessa natureza. 2 Problemáticas enunciativas envolvidas na transcrição Após alguns estudos e pesquisas acerca da linguagem da criança, em especial, dos aspectos vocais da língua na experiência da criança, percebemos que, numa investigação na área da Aquisição da Linguagem, os pesquisadores em geral necessitam buscar e registrar dados de fala da criança. Neste artigo, ao reletirmos sobre esse trabalho de registro do pesquisador, assumimos o ponto de vista de uma abordagem enunciativa aquisicional, a qual, na perspectiva de Silva (2009, p. 158), envolve “considerar os dados de aquisição num quadro de singularidade, no qual está implicada a relação do sujeito com o ‘outro’ e com a língua a cada ato enunciativo”. Os “dados” referidos por Silva (2009) são entendidos por nós como “fatos de linguagem”, denominação que assumimos no lugar do uso da palavra “dados”, a qual é comumente percebida em pesquisas dessa natureza. Isso porque, conforme discutiremos neste artigo, não vemos tais fatos como uma realidade pronta, dada, já que há um trabalho intenso de interpretação efetuado pelo pesquisador. São justamente as especiicidades desse trabalho que, acreditamos, caracterizam o momento de transcrição e de análise dos fatos de linguagem estudados. Pensar sobre esse trabalho revela-se tema pertinente e necessário no universo da pesquisa cientíica. Neste artigo, temos, assim, o objetivo de reletir acerca da atividade de transcrição de fatos de linguagem da criança, a partir de uma perspectiva enunciativa aquisicional. Fazemos isso com a ciência de que outros pesquisadores já trataram do tema da transcrição, como Flores (2006); Silva (2009), Surreaux (2014), entre outros. Certamente, muitos deles, como os três citados, são trabalhos que nos motivam a airmar o que aqui trazemos e que iluminam a especiicidade de nossa discussão. No entanto, não estamos apenas repetindo o já dito; nosso interesse de pesquisa é renovado, uma vez que nossa relexão procura dar conta de aspectos da transcrição em pesquisas com fatos de linguagem de criança nas quais os arranjos vocais ganham destaque na análise. 714 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 Entendemos, portanto, que o tratamento dado pelo transcritor aos registros dos arranjos vocais merece relexão, uma vez que ele envolve, entre outras complexidades, a passagem do oral para o escrito, movimento que exige do transcritor a tomada de decisões acerca de como lidar com esse registro. Além disso, ao se tratar de fatos de linguagem da criança, uma outra dimensão é vislumbrada: a da aquisição da linguagem, entendida como uma experiência de signiicação, a qual exige um olhar especíico do pesquisador, uma vez que não se trata de comparar essa experiência à experiência do adulto, mas de buscar entender o mover da criança no mundo do adulto via linguagem e buscar recursos de registro dessa experiência. Paradoxalmente, sabemos que uma experiência na linguagem não poderá jamais ser registrada por completo, pois ela extrapola o âmbito do registro e se constitui na efemeridade do aqui e do agora de cada enunciação. Além disso, a atividade de transcrição, sem dúvida, é altamente inluenciada pelo olhar interpretativo do transcritor sobre o fato a ser transcrito, uma vez que esta etapa da investigação leva o pesquisador a uma tomada de decisões frente aos fatos. Por essa razão, a transcrição é entendida neste artigo como um ato subjetivo, uma nova enunciação, marcada pelo agir do transcritor: O transcritor, ao se apropriar do aparelho formal de enunciação, institui-se como locutor para produzir referências e sentidos no discurso transcrito. Tais sentidos construídos pelo locutor-transcritor para o observável instanciam o teórico não presente na linearidade do discurso transcrito, mas constitutivo dele, já que está presente no transcritor um ponto de vista teórico a priori que prevê produção de referências, através de marcas especíicas e comentários para elementos verbais e nãoverbais contidos na cena. Esse ponto de vista teórico é criador do objeto transcrito. (SILVA; ENDRUWEIT , 2011, p. 250) Como uma nova enunciação, as marcas da transcrição, no dizer de Silva e Surreaux (2011, p. 294), “instanciam o caráter de intersubjetividade da enunciação (intersubjetividade na medida em que envolve um eu transcrevendo para um tu)”, uma vez que o transcritor almeja constituir um dado como um fato que foi apreendido e que se revela possível de ser analisado para um outro ou para ele próprio. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 715 Entende-se, assim, com base em Silva (2009), que a transcrição dos fatos de linguagem já representa uma etapa de análise. O pesquisador, ao trabalhar com a linguagem de crianças em aquisição de linguagem, em geral, trabalha com elementos vocais, os quais são compreendidos neste artigo como arranjos vocais. Ao pensar a atividade de transcrição, percebe-se que também o transcritor desempenha o papel de percepção da emissão vocal do locutor, já que ele precisa acessar a experiência do falante na comunicação de signiicados. O transcritor assume, dessa forma, em relação ao locutor, o papel do outro, do tu, na enunciação, uma vez que, desde o momento em que o locutor assim se declara e assume a língua, “ele implanta o outro diante de si” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 84, grifo do autor), com todas as implicações que esse papel traz, o que faz o pesquisador pensar com maior rigor ainda o método de transcrição. Assim, é difícil adotar um modelo de transcrição único ou deinido previamente, já que o pesquisador se depara com as singularidades de cada ato, de cada fato, o que exige uma decisão de registro sempre renovada. Para tanto, lembramos Flores (2006, p. 74) quando diz que “Cada transcrição é sempre única, singular e não linearmente extensível: é o efêmero”. De fato, a singularidade do ato enunciativo move a singularidade da transcrição, dada a experiência renovada vivida a cada situação. Além disso, há a implicação da complexidade dos fatos com os quais se trabalha. Em pesquisas cujo foco de investigação são as especiicidades da realização vocal da enunciação na experiência da criança na linguagem, por exemplo, o pesquisador é levado a observar fenômenos de realização fônica, nos quais os arranjos vocais, em sua materialidade, mobilizam sentidos particulares das formas linguísticas, mas também exigem que se observem a gesticulação, os movimentos corporais e faciais, uma vez que esses recursos também afetam o sentido na situação enunciativa. Em alguns casos, as formas da língua ainda não se encontram completas para a criança, e o sentido é garantido tão somente pela mobilização da realização vocal na particularidade de cada enunciação, na relação de emissão e percepção de cada ato. O método de transcrição escolhido, frente a essa complexidade de informações, precisa contemplar todos esses registros e é com esse intuito que o pesquisador transcritor mobiliza esforços em sua investigação. No entanto, temos certeza de que, independente do método de transcrição escolhido, as pesquisas conseguem apenas uma imagem representativa 716 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 do fenômeno da enunciação falada e jamais se conseguirá resgatar toda a sua complexidade. Acerca disso, Silva e Surreaux (2011) trabalham com a ideia de que na transcrição perde-se a voz, restando um efeito da escuta do transcritor. Esse fato assume grande importância em trabalhos de investigação que se voltam para os elementos vocais, uma vez que se faz necessário buscar recursos na transcrição para representar os arranjos vocais especíicos de cada enunciação. Além disso, sabe-se que a transcrição não é uma operação mecânica, mas uma tentativa de reconstituição das condições de produção do ato enunciativo. Nesse sentido, lembramos que a oralidade excede os limites da transcrição. A veriicação do dado oral transcrito nas pesquisas revela a heterogeneidade de sua constituição, pois ora o discurso transcrito aparece com muitas marcas especíicas, ora com poucas marcas, ora com comentários do transcritor e ora sem comentário do transcritor. (SILVA; ENDRUWEIT, 2011, p. 248). Frente a isso, mais uma vez airmamos que a transcrição se revela um ato interpretativo do pesquisador. Silva (2009), com base em Rey-Debove (1996), airma que na atividade da transcrição há sempre um “resto”, uma vez que não se pode passar diretamente de um sistema para outro. E aí deparamo-nos com o conceito de interpretância proposto por Benveniste (1969/1989), segundo o qual a relação que se estabelece entre sistemas é de sistema interpretante e de sistema interpretado. Dadas essas problemáticas todas que envolvem a questão, propomo-nos a discutir tais aspectos sob as luzes de princípios enunciativos, os quais se revelam capazes de esclarecer o ato de transcrição e explicitar a relação de interpretância mobilizada pelo pesquisador transcritor. Acerca disso, ocupamo-nos na sequência. 3 As relações de interpretância e a transcrição Em Semiologia da língua, Benveniste convoca à discussão as relações entre sistemas de signos, tema central para a atividade de transcrição. Nesse texto, o linguista (1969/1989, p. 51) mostra, a partir da ideia de que “utilizamos concorrentemente e a cada instante vários sistemas de signos”, um elenco de signos que marcam a vida Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 717 social de todo indivíduo. Nesse elenco, Benveniste (1969/1989, p. 51) apresenta: “em primeiro lugar os signos da linguagem, que são aqueles cuja aquisição começa mais cedo, com o início da vida consciente; os signos da escrita;...” e segue sua lista de variados signos que marcam a existência humana e sua vida em sociedade. O que une todos os sistemas a que se refere e ainda os outros tantos existentes, segundo o autor, é a propriedade de signiicância de todos eles e a sua composição em signos, unidades de signiicância. O autor depreende dois princípios que dizem respeito às relações entre sistemas semióticos. O primeiro deles é o princípio de não redundância entre sistemas, ou seja, não há sinonímia entre sistemas semióticos de base diferente. Deparamo-nos aqui com o que poderia ser um limitador para nossa atividade de transcrição: se, de fato, não se pode “‘dizer a mesma coisa’” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 53) pelo sistema oral e pelo sistema escrito, a transcrição a que nos dedicamos nesta investigação seria inatingível, uma vez que “O homem não dispõe de vários sistemas distintos para a MESMA relação de signiicação.” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 53, grifo do autor). No entanto, salientamos que o argumento de Benveniste diz respeito a “sistemas semióticos de base diferente”, o que não se presta ao exame das relações entre sistema oral e sistema escrito, os quais encontram na língua sua mesma base. Como segundo princípio que rege as relações entre sistemas semióticos, o autor airma que um mesmo signo pode fazer parte de dois sistemas sem caracterizar sinonímia, uma vez que o valor do signo só pode ser deinido no sistema que o integra. Há, no entanto, entre os sistemas uma relação de natureza semiótica, “determinada primeiramente pela ação de um mesmo meio cultural, que de uma maneira ou de outra produz e alimenta a todos os sistemas que lhe são próprios”. Essa relação aponta para a possibilidade ou impossibilidade de autointerpretação, responsável pela existência de sistemas interpretantes e sistemas interpretados. E é justamente por essa condição que “a língua ocupa uma situação particular no universo dos sistemas de signos”: ela será sempre o sistema interpretante de todos os demais sistemas, inclusive dela mesma, pois “a língua pode, em princípio, tudo categorizar e interpretar, inclusive ela mesma” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 54; 55; 62). Encontramos ainda nos trabalhos de Benveniste um exame particular do sistema de escrita nas notas manuscritas deixadas pelo linguista e organizadas por Coquet e Fenoglio em Dernières Leçons (BENVENISTE, 2012) e em cuja tradução, apresentada em Últimas aulas 718 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 no Collège de France, publicada no Brasil (BENVENISTE, 2014), nos apoiamos. Na obra organizada, encontramos, no capítulo 2, A língua e a escrita, a discussão já referida em Semiologia da língua acerca da escrita e do exame particular que ela mereceria. A partir de notas manuscritas de Benveniste, os organizadores apresentam a visão do linguista acerca dessa relação especíica. Trata-se de um complexo raciocínio acerca da escrita, apresentando-a como “uma imagem da língua”: A atividade completa na qual o locutor está engajado, esse comportamento tanto gestual quanto fonoacústico, essa participação do outro, de todos os outros, da totalidade dos parceiros possíveis nessa manifestação individual e coletiva, tudo isso é substituído por signos traçados à mão. (BENVENISTE, 2014, p. 129-130). Não podemos deixar de identiicar a relação possível de se estabelecer entre o trabalho de transcrição a que nos referimos e a descrição apresentada por Benveniste: de fato, o transcritor tem a pretensão de substituir por signos traçados à mão toda a completude da atividade de enunciação, a qual envolve os arranjos vocais na experiência da criança na linguagem. O autor (2014), em seus manuscritos, aprofunda suas ideias acerca da escrita, trazendo outras revelações sobre a questão: a escrita é vista pelo autor como uma forma secundária da fala. Essa visão benvenistiana acerca da relação fala e escrita baseia-se no princípio de que a escrita é uma autossemiotização da língua, uma vez que ela comporta as duas propriedades especíicas do discurso: semiótica e semântica. A partir da ideia de sistema interpretante e sistema interpretado, Benveniste (2014, p. 79) airma que a escrita permite à língua se autossemiotizar. Trata-se da “fala convertida pela mão em signos falantes”, uma vez que a relação estabelecida pelo aspecto vocal da língua por meio da escuta é retransmitida pelo sistema da escrita, o qual envolve o mecanismo interpretante do traçado das letras. Entendemos que é essa a relação que o pesquisador vive na transcrição, ao passar os fatos da linguagem em sua manifestação falada, expressão natural do corpus a ser investigado, para a manifestação escrita, registro desse corpus: o papel do pesquisador, na função de transcritor, é, inicialmente, o papel de percepção das emissões vocais, com toda a complexidade gestual e corporal que caracteriza as vocalizações Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 719 com as quais ele trabalha. Na sequência, o mesmo transcritor passa à atividade de registro escrito dessas emissões vocais, o qual precisa ser lido pelas demais pessoas, a im de que, de fato, a pesquisa possa se dar a conhecer. Na base desses dois processos, está a língua, o que nos leva a entender as relações possíveis entre a fala e a escrita. Para isso, retornamos ao Semiologia da língua, uma vez que é nesse texto que encontramos as possibilidades de relações entre sistemas semióticos. Para Benveniste (1969/1989), um sistema semiológico caracteriza-se pelo seu modo operatório, pelo seu domínio de validade, pela natureza e pelo número de signos, assim como pelo tipo de funcionamento. Quando pensamos na passagem do oral para o escrito, faz-se necessário que o modo operatório se modiique de auditivo para visual, o que implica um esforço grande do transcritor para buscar marcar os fenômenos característicos do sistema falado no sistema escrito ou iconográico. Também os domínios de validade são diferentes: o falado é reconhecido na efemeridade de sua realização, enquanto o registro escrito se mantém válido no papel enquanto durar o registro; acreditamos que em relação à natureza, linguística, não há modiicações, mas quanto ao número dos signos, sim, assim como quanto ao seu funcionamento: no falado, os fonemas funcionam em relação de oposição, enquanto no registro escrito esse papel cabe às letras e aos sinais iconográicos em geral. No entanto, esses sistemas mantêm relações entre si, as quais marcam o trabalho de transcrição. Essas relações, baseadas na classiicação de Benveniste (1969/1989, p. 61), atestam o que airmou o linguista: “Um sistema pode engendrar outro sistema”. Acreditamos que há, sim, entre eles, uma relação de engendramento, uma vez que se trata de “dois sistemas distintos e contemporâneos, mas de mesma natureza” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 61), entendida por nós como a natureza linguística. E, por im, a relação mais evidente: a relação de interpretância, referida por Benveniste nas notas traduzidas em Últimas aulas no Collège de France (2014), reveladora da capacidade de autossemiotização da língua. A escrita é, para Benveniste, a prova de que a língua se autossemiotiza, de que ela pode interpretar a si mesma. Ou seja, o que temos, essencialmente, tanto na escrita quanto na fala, são as propriedades da língua. No caso especíico da transcrição, transposição da fala para a escrita, cumpre-se o que airmou Benveniste (2014, p. 179): “Não teria sido possível reletir acerca da análise da linguagem falada se não se dispusesse dessa ‘linguagem visível’ que é a escrita.” De 720 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 fato, o pesquisador da linguagem, para tomar consciência dos arranjos vocais que marcam os dados em questão, lança mão de recursos da escrita que se “revezam” em relação aos arranjos vocais mobilizados no discurso, realizando a “fala transferida” mencionada pelo linguista (BENVENISTE, 2014, p. 179). Para melhor ilustrarmos a questão, trazemos, a seguir, uma experiência de transcrição por nós vivenciada, na qual destacamos as relações de interpretância no ato enunciativo marcado pela relação de emissão e percepção de arranjos vocais mobilizados por uma criança de dois anos de idade. 4 Uma experiência Como já deixamos claro neste artigo, entendemos que um trabalho na perspectiva enunciativa aquisicional leva o pesquisador transcritor a assumir determinadas normas de transcrição especíicas para o aqui e o agora por ele vivenciado em relação aos fatos de linguagem a serem analisados, o que o impede, em geral, de se apropriar de normas já deinidas em outras pesquisas. Isso porque o ato se renova a cada fato enunciativo, levando também o pesquisador transcritor, em seu gesto de interpretação do dizer do outro, a renovar suas escolhas realizadas na transcrição. Para melhor discutirmos essa questão, apresentamos dois recortes enunciativos, os quais izeram parte do corpus de nossa pesquisa de doutorado (DIEDRICH, 2015), disponível em http://hdl.handle. net/10183/130026, para, a partir dos fatos enunciativos nele revelados, podermos reletir sobre as escolhas de transcrição realizadas e o que elas nos dizem acerca das relações de interpretância vivenciadas pelo pesquisador transcritor. É importante ainda destacar que nesses registros contamos com o apoio do software Eudico Language Annotator (ELAN), denominação usada para identificar um recurso tecnológico desenvolvido pelo Instituto de Psicolinguística Max Planck, na Holanda, que permite a criação, edição, visualização e busca de anotações através de dados de vídeo e áudio. O software livre pode ser obtido em <https://tla.mpi. nl/tools/tla-tools/elan/>. A escolha por esse software se deve a várias razões. Destacamos, entre elas, o fato de que ele permite a associação da transcrição e de quaisquer outras anotações que o pesquisador julgar Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 721 necessárias a trechos dos vídeos, o que contribui para a representação do fato enunciativo. Isso porque o recurso audiovisual permite recuperar, ao menos em parte, o ato de enunciação, o qual é revivido pelo pesquisador, ao mesmo tempo em que é apresentada a sua interpretação para os fatos enunciativos eleitos para análise, por meio da transcrição pelo registro escrito e das anotações de comentários já indicativos de uma análise a se realizar ou que já se realiza no ato de transcrição. Recorte enunciativo 1 Participantes: Dália, Mar e Ber Data da coleta: 28/10/2012 Idade da criança: 2;5;4 Situação: Dália e Mar caminham no pátio observando um gato de cor amarela que passeia entre elas. Dália OLHA ! o pintinho amaleelinho... não. espera. não i ica qui. comentário Dália fala dirigindo-se ao gato que passa por ela. Dália não é a maluca. é o pintinho... oi... ... vem vem vem Dália olha o pintinho amalelinho Mar CUIDADO. ele é UM PINTIINHO amarelinho?? Dália ééé ... vem PINtiiinhuu ... o que o pinTInho tá fazeenndo? Mar ele não é um gatinhoo? Dália ele é gatinhoo miaaauuuu oi gatiin/gatinho Mar por que tu chama ele de pintinho? Dália chama eele ... PINTINHOO... GATINHOOO.... PINTINHOOO gatinhopintinho comentário Mar ri baixinho. Mar o nome dele é gatinho pintinho amarelinho? Dália vaivai... vai lá na água :::::::::::::: corpo Movimenta o braço fazendo sinal para o gato ir em frente. Dália olha o gatinho ama/lelinho... é é PINtinho amalelinho? 722 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 Mar é pintinho amareLInho? ... igual o da música né?... vamo cantá PRA ELE? Dália vaamu Mar como é que é? corpo Dália faz o movimento de bater um dedinho na palma da mão, silenciosamente, numa referência à mímica da música infantil. Mar caabe aqui ? Dália na minha mão Mar QUEM que cabe na tua mão? Dália o piintinho Mar o pintinho amarelinho? e dá pra cantá uuum gatiinhoo amareliiinho... dá? comentário Mar enuncia o trecho da música infantil cantarolando-o. corpo Dália corre, distraindo-se com a visão de Ber que se aproxima. Recorte enunciativo 2 Participantes: Dália, Ber e Mat Data da coleta: 28/10/2012 Idade da criança: 2;5;4 Situação: Dália, Ber e Mar voltam a atenção para uma gata doméstica que entra no quiosque onde eles se encontram. Mar chÃchà SAI PRÁ LÁÁÁ MAROTA. MAROTA NÉ Dáália !? Dália MAIOOOTA MAA-ROO-TAAA :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: corpo Volta-se para a gata ao falar. Ber maarootAAA comentário Ber enuncia a palavra com musicalidade, cantando-a. Dália marootaa marootaa Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 comentário Dália também procura impor um ritmo musical ao dizer Dália di vem 723 :::::::: corpo Dália corre, fugindo da gata Ber CARA DITATU Dália CATUTUUU catutuuu catu :::::::::::::::::::::::::::::::: corpo caminha atrás do gato comentário Dália procura captar o enunciado de Ber e enuncia cantarolando Nesses recortes enunciativos, foi usado um cabeçalho descritivo com informações contextuais que visam a situar o fato enunciativo na situação em que ele ocorreu: os participantes da situação de comunicação expressa no recorte, por meio da citação de seus nomes ou iniciais de seus nomes ou funções que desempenham na relação afetiva; a data da coleta do fato enunciativo; a idade da criança no momento da coleta; uma breve descrição da situação na qual a criança se encontrava quando a coleta foi realizada. Nos registros das falas da criança e dos demais participantes, foi tomada uma decisão extremamente pontual e signiicativa para os ins da pesquisa mencionada: o pesquisador transcritor optou por não usar letra maiúscula no registro dos nomes próprios, porque a letra maiúscula representa, na transcrição em foco, tons ascendentes. A letra maiúscula, assim, foi usada para os nomes próprios apenas na trilha “comentários” e na trilha “corpo”. Outra escolha que afeta a transcrição diz respeito à noção de recorte enunciativo, concebido por nós como o espaço de discurso em que determinado sentido é mobilizado por meio de determinados procedimentos na relação eu-tu. A coniguração de cada um desses recortes é decisão do pesquisador, baseada nos objetivos da pesquisa. Sendo assim, entendemos que o recorte enunciativo precisa interrogar o pesquisador e, ao mesmo tempo, dizer-lhe algo sobre as especiicidades da realização vocal na experiência da criança na linguagem. No caso da pesquisa em foco, em especial, no caso dos dois recortes citados, podemos airmar que há um esforço do pesquisador transcritor em registrar as operações reveladas por meio da mobilização 724 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 dos arranjos vocais, uma vez que este é o tema ao qual a referida pesquisa se dedica. Nessas operações, os elementos linguísticos recebem uma espécie de contorno de sentido pela mobilização do vocal, o qual só pode ser compreendido na integralidade do ato enunciativo. O recorte enunciativo 1 congrega muitos arranjos vocais que contribuem para ilustrar o que estamos focalizando aqui: a criança, na relação intersubjetiva com o adulto, ajusta forma e sentido em sua enunciação. Nesse ajuste, há o papel de um elemento da cultura que marca o diálogo em questão: a concorrência entre a palavra “pintinho” e “gatinho” só é vivenciada em função do arranjo vocal que dá conta do ritmo da música infantil para o qual as duas formas são satisfatórias, independentes do que signiicam. Nesse jogo de apropriações, a criança mobiliza, sempre na relação intersubjetiva constitutiva da enunciação, arranjos vocais que buscam “afunilar sentidos”. No discurso, portanto, na semantização, no ato de converter os signos em palavras, concorrem para a mobilização do sentido na instância enunciativa, os arranjos vocais especíicos que garantem ao discurso o estatuto de música, estabelecendo no enunciado a sintagmatização dos elementos segmentáveis, como são os fonemas, as palavras e, em destaque, o sintagma “um gatinho amarelinho”. Nessa situação, o sentido é mobilizado muito mais pelos arranjos vocais do que por uma ou outra unidade de um nível linguístico. Ao concorrer com as duas formas em relação associativa para constituir seu discurso, a criança mobiliza propriedades de dissociação e de integração das unidades linguísticas, atualizando-as, por meio do ritmo musicado, na singularidade da enunciação. É, portanto, papel do pesquisador transcritor registrar esses movimentos discursivos em sua transcrição, o que o leva a fazer escolhas de registro sempre renovadas e que o impelem, muitas vezes, a explicitar informações dos fatos de linguagem vivenciados por meio de recursos descritivos, veriicados nas trilhas corpo e comentário. O sentido mobilizado, assim, no discurso analisado, não pode ser captado apenas pelo registro dos elementos verbais, havendo a necessidade de inserção de tais trilhas, o que relacionamos com a ideia anteriormente apresentada de tentativa de recuperação de perda, característica de toda enunciação, decorrente da efemeridade do discurso. É uma tentativa de recuperar a instância enunciativa que leva o transcritor a registrar, por exemplo, a seguinte informação, no recorte 1: “Mar ri baixinho”. Esse registro, entre outros, revela a necessidade de o pesquisador transcritor apreender a realidade em que se realiza o ato enunciativo, uma vez Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 725 que é a partir da noção de referência a essa realidade que o sentido é mobilizado no discurso. Além disso, os arranjos vocais constituem novas formas e sentidos na particularidade do discurso, evocando elementos dos esquemas sociais vivenciados pela criança. O registro dessa evocação só é possível via gesto interpretativo do pesquisador transcritor, resultado da relação de interpretância revelada na mobilização da língua. conforme observamos na trilha corpo do recorte 1: “Dália faz o movimento de bater um dedinho na palma da mão, silenciosamente, numa referência à mímica da música infantil”. É por meio da descrição do gesto da criança, constitutivo do seu dizer, que o sentido se particulariza no ato de transcrição. É importante destacar o papel do outro da enunciação nesse ajuste de formas e sentidos: ainda no recorte 1, o adulto interroga a criança acerca da propriedade do uso da forma “pintinho” e o faz principalmente a partir de tons ascendentes e entonação bastante marcada de interrogação. Devido à insistência do outro, a criança resolve a questão alternando as formas “gatinho” e “pintinho” na busca de referência e correferência que atenda à relação intersubjetiva necessária para que a enunciação/coenunciação aconteça. Sendo assim, a criança se apropria do sistema de substituição e de integração de unidades da língua na mobilização de sentidos particulares. Esse sistema, portanto, é afetado pela relação singular que marca a emissão e a percepção dos sons da língua, na vivência da “diversidade das situações nas quais a enunciação é produzida” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 83). Por essa razão, não seria possível a investigação dos elementos propostos na pesquisa se o registro do transcritor recaísse apenas nas formas mobilizadas pela criança. O sentido mobilizado no discurso implica, portanto, que o trabalho de transcrição se ocupe da relação estabelecida pela língua mobilizada na enunciação entre o eu e o tu. Justamente por isso percebemos nos recortes 1 e 2 um investimento do transcritor nessa relação, o que se dá por meio da descrição de elementos contextuais presentes na trilha comentário, como evidenciamos no recorte 2: “Dália procura captar o enunciado de Ber e enuncia cantarolando”. A descrição apresentada revela a interpretância manifestada linguisticamente pelo transcritor em relação ao ato enunciativo vivenciado pela criança e pelo outro. Nesses recortes, foram usadas as seguintes normas de transcrição, pensadas para o im especíico da pesquisa cujo foco se centrava nos arranjos vocais mobilizados na enunciação pela criança. 726 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 QUADRO1 Normas de transcrição Procedimentos Tons ascendentes Tons descendentes Entonação de interrogação Entonação de exclamação Alongamentos Pausas breves, com duração de até 3 segundos Pausas longas, com duração de mais de 3 segundos Gesticulação, movimentos corporais e faciais da criança Concomitância entre a gesticulação, movimentos faciais e corporais e o enunciado verbalizado Interrupções bruscas do enunciado Sobreposição de vozes Silabação Entonação de fechamento de frase, marcada somente quando a situação exigir a explicitação de tal entonação na interpretação dos fatos Comentários contextualizadores Fonte: DIEDRICH, 2015. Recursos de registro Letras maiúsculas Sublinhado Ponto de interrogação ? Ponto de exclamação ! Repetição da letra representativa do som alongado ... ... ... Comentários descritivos do pesquisador em trilha especíica para esse im denominada “corpo” e relacionada à trilha da enunciação com a qual há concomitância com o sinal : Quando o sinal : não é usado, trata-se de gesticulação, movimentos corporais e faciais da criança realizados na sequência em que aparecem na transcrição, não concomitantes ao enunciado. ::::::: / [ - (sílabas separadas por hífen) Ponto inal . Comentários descritivos do pesquisador, em trilha especíica para esse im denominada “comentários”, em relação ao aqui-agora da enunciação que não envolvem gesticulação, movimentos corporais e faciais da criança Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 727 Apresentamos o quadro de normas apenas para ins de elucidação das escolhas realizadas pelo transcritor na pesquisa referida como ilustração. É importante também que apresentemos a relação dos aspectos focalizados neste artigo com o quadro em questão. O primeiro aspecto que se revela em nossa relexão diz respeito às especiicidades advindas da realização vocal da linguagem. A esse respeito, Flores e Surreaux (2012) lembram os estudos de Barbosa (2010), segundo os quais, as funções linguísticas do ritmo e da entonação encontram lugar na perspectiva linguística enquanto fenômenos linguageiros e comunicativos; os marcadores discursivos, atitudes, emoções e fenômenos ligados a fatores sociais e individuais teriam lugar nos estudos extralinguísticos e paralinguísticos. Flores e Surreaux (2012, p. 91) apontam para a possibilidade de se verem os fenômenos entendidos por Barbosa como extralinguísticos e paralinguísticos de outra forma, numa “perspectiva linguística – mesmo que não a clássica – entendida de um ponto de vista enunciativo”. Assim, os elementos decorrentes da realização vocal da língua na enunciação são vistos como constitutivos do ato de enunciação, uma vez que “estabelecem uma sintagmática na enunciação dos elementos segmentais, uma espécie de concatenação entre eles” (FLORES; SURREAUX, 2012, p. 87). Essas especiicidades convergem para um olhar transversal em relação à enunciação, o qual verá cada unidade linguística mobilizada em relação ao todo do discurso. É justamente esse olhar transversal que deve perpassar todo o ato de transcrição. Salientamos que a marcação dos fenômenos discursivos encontra sua razão de ser na análise qualitativa que geralmente caracteriza pesquisas gerenciadas pela abordagem enunciativa aquisicional. Logo, a marcação dos fenômenos é extremamente importante para a análise, pois o pesquisador nela se pauta para analisar a mobilização de sentidos particulares em cada ato enunciativo. Além disso, cabe destacar que, como não se elegem elementos a priori para investigação, os comentários do transcritor, como o que se encontra na percepção do vocal, acabam por trazer elementos importantes para a análise, nesse ato de interpretância do transcritor, conforme já discutido neste artigo. Tal realidade nos conduz à outra especiicidade do tratamento dos arranjos vocais: trata-se da relação de emissão e percepção deinidora das marcas de transcrição a serem adotadas: o pesquisador transcritor assume seu papel de escuta e, a partir desse papel, é que deine o que marcar e o que não marcar na transcrição. Apesar de os elementos a 728 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 serem analisados não serem deinidos a priori nas pesquisas realizadas na perspectiva da enunciação, há um gesto de interrogação prévio ao ato enunciativo de registro da transcrição. Esse gesto de interrogação é que norteia a deinição das marcas usadas na transcrição. Portanto, numa investigação cuja metodologia envolve a transcrição de fatos de linguagem, vivem-se dois momentos distintos na história da pesquisa: um antes do registro, em que o pesquisador adquire intimidade com o corpus a partir da interrogação dos fatos de linguagem nele revelados; e um outro, o do registro. A relação de interpretância dos fatos, portanto, não ocorre no ato de registro; há o momento anterior, de escuta, ao qual em geral não se faz referência, mas que se encontra implícito em toda pesquisa. É sabido que todo pesquisador, frente aos fatos de linguagem a serem transcritos, investe grande esforço e muito tempo para a realização desta etapa de escuta, a qual é decisiva para a transcrição. Logo, quando, numa perspectiva enunciativa, airma-se que os fatos a serem analisados não são deinidos anteriormente, quer-se dizer, na verdade, que esses fatos se revelam durante a pesquisa, a qual envolve o momento de escuta do pesquisador. E é justamente e tão somente em razão dessa relação temporal que é possível, numa pesquisa de abordagem enunciativa, trabalhar-se com um quadro de normas de transcrição, como o que apresentamos. Relacionamos essa constatação ao princípio proposto por Benveniste e já referido por nós: “Aquele que fala faz renascer pelo seu discurso o acontecimento e a sua experiência do acontecimento. Aquele que o ouve apreende primeiro o discurso e através desse discurso, o acontecimento reproduzido.” (BENVENISTE, 1963/2005, p. 26). Para o autor, “renascer” refere-se ao fato de a realidade vivenciada ser produzida novamente, mas submetida à organização da linguagem. Há uma função mediadora da língua na reprodução dos acontecimentos vividos. Por meio desse propósito, realiza-se o caráter da linguagem deinido por Benveniste (1952/2005, p. 65): “propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem im no tempo e no espaço”. Ao se apropriar dos fatos da experiência da criança na linguagem, o pesquisador busca simbolizar, por meio da transcrição, sua própria vivência interpretativa de tal experiência, instanciando-se, por meio das escolhas das marcas de transcrição no aqui-agora da enunciação. Ao analisar os arranjos vocais nessa experiência, é importante, numa abordagem enunciativa, lembrar que “os mesmos sons não são Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 729 jamais repetidos exatamente”, sendo a identidade apenas aproximativa, “mesmo quando a experiência é repetida em detalhe” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 83). O que estamos focalizando é justamente a reprodução, por meio do discurso, da experiência na linguagem vivida em determinado evento social. Destacamos o uso do preixo “re” em “reproduz”, uma vez que ele aponta para o fato de que, embora as formas linguísticas sejam as mesmas, elas se revestem, a cada enunciação, de características renovadas, próprias de cada ato enunciativo, conforme raciocínio de Dessons (2006). Trata-se da “experiência repetida em detalhe” a que se refere Benveniste e que permite que visualizemos a dupla natureza da língua: social, manifestada nos esquemas culturais que determinam a mobilização dos arranjos vocais; individual, manifestada nas escolhas particulares da criança a cada ato e que constituem os arranjos vocais especíicos observados em cada situação e que dependem da relação de emissão e de percepção vivenciada a cada vez que a língua é mobilizada em atos enunciativos. Outro aspecto em torno do qual reletimos é a necessidade de se marcar na escrita fenômenos da oralidade. Segundo Silva (2012, p. 355), “se torna impossível dar conta de ‘tudo’ que se apresenta na oralidade em sua representação escrita”. Nem tudo, portanto, pode ser registrado nesta transposição da oralidade para a escrita, uma vez que há uma perda, consequência do próprio ato de enunciação que se realiza no aqui e no agora da própria enunciação. O que cabe ao pesquisador transcritor é tão somente uma tentativa de recuperação desse ato que se perde na efemeridade de sua realização. Na busca de registro dos arranjos vocais especíicos que constituem o dizer da criança e do outro da enunciação, o quadro de normas recorre a recursos da escrita como tentativa de captar o oral, conforme veriicamos no uso de letras maiúsculas e no sublinhado para marcação da entonação ascendente e descendente, respectivamente; no uso da repetição de vogais para marcar os alongamentos vocálicos; e dos pontos de interrogação e exclamação na busca de marcação das entonações interrogativas e exclamativas, respectivamente. Tal tentativa é também expressa na deinição de uso da trilha comentários. Nessa trilha, verifica-se mais explicitamente do que nas demais a subjetividade do pesquisador transcritor, já referida por Hilgert (1989). Isso porque o pesquisador transcritor realiza “propósitos signiicantes sobre a signiicância”, segundo Benveniste (1969/1989, p. 66). Ou seja, ele se vale da língua para interpretar a própria língua: o 730 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 pesquisador transcritor enuncia, à sua maneira, a interpretação que faz do fato enunciativo que marca os recortes de análise. O quadro de normas também contempla a trilha corpo, uma vez que o gesto constitutivo do dizer é levado em consideração na análise enunciativa, o que motivou a deinição de tal marcação na transcrição. Acerca disso, lembramos Cavalcante e Brandão (2012), em trabalho acerca da gesticulação e luência em aquisição da linguagem: as autoras focalizam a relação da fala com recursos expressivos advindos da gestualidade, dos movimentos corporais e da mímica. Por essa razão, as autoras entendem a fala como multimodal. Com seus estudos, elas têm mapeado a emergência dos gestos na primeira infância, considerando a produção de fala em situações dialógicas. A necessidade de registro da descrição dos gestos da criança no ato enunciativo nos leva a pensar novamente na ideia de perda, de resto, já referida anteriormente. Isso porque tais descrições colocam em evidência aspectos gestuais da criança considerados importantes e necessários para análise do ponto de vista do pesquisador transcritor, enquanto outros aspectos de mesma natureza talvez nem tenham sido percebidos por ele e, portanto, não são revelados na trilha. Há, portanto, uma escolha por parte do pesquisador do gesto considerado relevante naquele ato enunciativo. Além disso, nem todas as enunciações das crianças recebem acompanhamento da trilha corpo na transcrição. Será porque, de fato, não foram marcadas por gestos constitutivos do dizer ou será porque o pesquisador transcritor julgou não ser necessária esta marcação para os ins de sua pesquisa? As decisões do pesquisador transcritor funcionam assim como uma espécie de iltro entre os fatos que marcam o ato de enunciação em si e os fatos eleitos para análise em função dos objetivos da pesquisa. O que se tem, dessa forma, na transcrição, é o ato interpretativo do pesquisador transcritor, o que funda uma nova enunciação derivada da relação de interpretância por ele vivida. Ainda em relação a esse mesmo aspecto, veriicamos que, na trilha comentário, cujo conteúdo recai sobre a situação enunciativa em si, na o pesquisador transcritor busca descrever o aqui e o agora em que se realizam os fatos a serem analisados. Novamente, a relação é de seleção do que é relevante ser descrito para os ins de análise propostos. Há, na constituição dessa trilha, novamente, a explicitação do ato interpretativo do pesquisador transcritor, porque ele assume o papel de descritor, cumprindo o que Normand (2009, p. 181) diz acerca desse trabalho: o Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 731 estudo enunciativo “depende menos de uma análise linguística do que de um comentário de texto cada vez particular”. A que tipo de comentário se refere Normand? Segundo a autora, esse comentário se apoia na descrição semiótica, a dos marcadores da enunciação, pertencentes ao sistema da língua, mas com a propriedade especíica de atualização no aqui-agora da enunciação. É dessa atualização que o pesquisador se apropria e, por sua vez, também empreende sua atualização sobre os fatos analisados, caracterizando sua transcrição como um novo ato enunciativo. Acerca dessa experiência, lembramos o raciocínio benvenistiano apresentado em Estruturalismo e linguística (1968/1989, p. 20-21), segundo o qual a criança, ao aprender uma língua, aprende o mundo do homem: “A apropriação da linguagem pelo homem é a apropriação da linguagem pelo conjunto de dados que se considera que ela traduz.” Sendo assim, se é papel do pesquisador entender a apropriação da linguagem pela criança, precisará explicitar o conjunto de dados que essa experiência traduz, os quais se confundem com a constituição do homem no meio cultural de que faz parte, caracterizado pelo conjunto de valores que se articulam e se dão a conhecer no simbólico da linguagem, realizando-se, assim, a tríade homem, linguagem e cultura. Trata-se do seguinte princípio a ser levado em conta em pesquisas cujo foco de interesse sejam as realizações vocais da criança: as vocalizações evocam valores culturais impressos no discurso do outro, os quais possibilitam a experiência singular da criança na linguagem. Esse princípio nos leva à noção de “semantismo social”, conforme discorre Benveniste (1968/1989) em Estrutura da língua e estrutura da sociedade. O autor, ao discutir as relações entre língua e sociedade, afirma que “a língua interpreta a sociedade. A sociedade torna-se signiicante na e pela língua, a sociedade é o interpretado por excelência” (BENVENISTE, 1968/1989, p. 98). A partir dessa ideia, entendemos que toda a organização da vida em sociedade, para ser compreendida, precisa do seu interpretante, que é a língua. Assim, o “semantismo social” está relacionado aos valores culturais impressos na realização vocal da língua na enunciação. Ao falar, portanto, o homem não apenas mobiliza formas e sentidos particulares explicitados na língua da qual se apropria, ele vai além, comunica, pela mobilização de arranjos vocais, valores sociais, capazes de revelar muito acerca da sua história construída no seio de uma sociedade e da experiência por ele vivida no mundo que o cerca. Para nós, o conceito de cultura está relacionado ao sistema de valores, 732 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 uma vez que na experiência da criança na linguagem vemos a realização vocal manifestar rudimentos da cultura, pois a criança entra no mundo do outro, o mundo do adulto, sai da liberdade da pura natureza para experenciar os limites simbólicos da cultura que a cerca. Encontram-se nos arranjos vocais mobilizados pelo outro em relação à criança uma série de elementos decorrentes do sistema de valores que caracteriza a vida em sociedade, a saber: para certa situação social, por exemplo, a criança vivencia uma forma de mobilização da realização vocal: entonação descendente, sussurro, entre outras. Há, portanto, um semantismo social que se revela nos arranjos vocais. Assim, ao se valer de tais arranjos em suas enunciações, o locutor marca sentidos que estão relacionados às suas emoções, às relações familiares, aos elementos de ordem social, por exemplo. Na relação com o outro, a criança está sempre mobilizando sentidos particulares que encontram eco na cultura que a cerca. Para isso, o simbólico da língua é o elemento que restringe a mobilização do vocal na enunciação pela criança: ela não apenas “brinca” com a emissão fônica, mas se marca no discurso fazendo a passagem, por meio dos arranjos vocais, de locutor a sujeito. Essa realidade é vivida pela criança desde que sua existência se conirma no mundo dos homens e a ela os adultos passam a se dirigir: a cada ato enunciativo, os valores culturais acima mencionados são revelados à criança e passam a constituir também a sua experiência na cultura. Para dar conta de todos esses fatores mobilizados via arranjos vocais na linguagem da criança, é fundamental que a transcrição vá além do dito, marcando, por meio de algum recurso, essa relação de dependência entre língua e valores culturais reveladas na enunciação. Assim, o ato de transcrição envolve muito mais aspectos do que simplesmente decisões e escolhas de sinais de registros dos elementos vocais, ele se revela já uma etapa importante de análise dos fatos estudados, a qual exige que o pesquisador transcritor assuma a função de interpretar o dizer do outro, neste caso, da criança, inserida na cultura da qual faz parte, o que só lhe é possível a partir de princípios de signiicância que olhem para a vida da linguagem no seio da sociedade. Pensar na linguagem e na transcrição de fatos da linguagem, implica, portanto, pensar na faculdade simbolizante da língua no seio da sociedade. Em Estrutura da língua e estrutura da sociedade, Benveniste (1968/1989) reairma que não encontramos jamais linguagem separada de sociedade, apesar de essas entidades apresentarem estruturas diferentes. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 733 Nesse processo, a sociedade torna-se signiicante na e pela língua. Para tanto, a língua deve manter-se capaz de registrar, de designar e orientar as mudanças que caracterizam o interpretado, ou seja, a sociedade. Conforme Benveniste, a signiicância da língua se dá em relação a todos os demais sistemas signiicantes que constituem a cultura humana e que toda criança apreende, com a língua, os rudimentos da cultura. É justamente a faculdade simbolizante que distingue o homem do animal e é a fonte comum do pensamento, da linguagem e da sociedade. Esse aparato simbólico possibilita a relação entre o homem e o mundo, entre os homens, estabelecendo-se, dessa forma, por meio da linguagem, a estrutura social, conforme airma Benveniste (1963/2005, p. 31, grifo do autor): [...] a linguagem se realiza sempre dentro de uma língua, de uma estrutura linguística deinida e particular, inseparável de uma sociedade deinida e particular. Língua e sociedade não se concebem uma sem a outra. Uma e outra são dadas. Mas também uma e outra são aprendidas pelo ser humano, que não lhes possui o conhecimento inato. Logo, uma pesquisa que busque investigar a aquisição da linguagem numa perspectiva enunciativa precisa se desenvolver a partir do princípio de que a vida em sociedade, desde muito cedo, se constitui com a utilização de vários sistemas de signos: “Nossa vida inteira está presa em redes de signos que nos condicionam a ponto de não se poder suprimir apenas um sem colocar em perigo o equilíbrio da sociedade e do indivíduo”. E nessa rede a língua exerce papel fundamental. Essa dimensão semiológica traz à língua um novo estatuto, segundo o qual “somente a língua torna possível a sociedade” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 63), pois, para o linguista, constitui o que mantém juntos os homens como fundamento das relações da sociedade. Por esse prisma, é possível dizer que é a língua que contém a sociedade. Registrar, portanto, o mover da criança, via linguagem, nessa sociedade, é tarefa do pesquisador que se propõe a investigar a aquisição da linguagem, aspecto fundamental que interfere sobremaneira na transcrição dos fatos da linguagem por ele estudados, os quais jamais poderão ser vistos apenas como unidades de um nível linguístico ou de outro: fonemas, morfemas, elementos sintáticos. Acerca dessas limitações de descrições linguísticas pautadas no emprego das formas, também 734 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 Benveniste ((1970/1989, p. 81) se posicionou, distinguindo esse emprego do emprego da língua. O autor faz isso airmando ser essa distinção “uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e de as interpretar”. Essa airmação do autor lança, aos nossos olhos, luzes sobre os fenômenos da aquisição da linguagem: os fenômenos estudados já podem ter sido analisados sob outros vieses, mas, seguindo o que propõe o linguista da enunciação, outras maneiras de descrever e interpretar tais fenômenos se apresentam quando se descortinam os aspectos da enunciação. Ao fazer essa distinção entre emprego das formas e emprego da língua, o autor tece críticas ao grande número de modelos consequentes da descrição do emprego das formas, e o faz a partir da constatação de que “a diversidade das estruturas linguísticas não se deixa reduzir a um pequeno número de modelo” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82). Por isso, defende o estudo do emprego da língua, com ênfase naquele que realiza este emprego: o homem. Feita a crítica aos modelos, o autor apresenta o que ele entende por emprego da língua: “Coisa bem diferente é o emprego da língua”. E, para mostrar a diferença, deine esse emprego como “um mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a língua inteira”. Trata-se da enunciação: “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82). Destacamos nessa deinição a ideia de ação, proposta pelo verbo “colocar” e conirmada em seguida pelo linguista (1970/1989, p. 82) quando airma: “é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. O locutor apropria-se do aparelho formal da língua e, nesse ato de apropriação, particulariza o emprego das formas a tal ponto que elas se coniguram no aparelho formal da enunciação. No centro dessa vivência, está o funcionamento da língua, o que nos leva a reletir sobre o que, de fato, signiica língua em funcionamento. Quando a língua funciona? Cremos que por “funcionamento da língua” estamos tratando, com Benveniste, da comunicação humana. Ainal, a língua existe para que os locutores possam constituir-se como protagonistas de sua comunicação. Mas o conceito de enunciação diz mais: “por um ato individual de utilização”, o que nos leva a direcionar nosso olhar para as implicações de considerar-se a enunciação como um ato individual. Nos estudos da aquisição da linguagem, encontramos um histórico marcado pela deinição de estágios e modelos no intuito de padronizar as etapas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 735 de aquisição. O que vemos com essa deinição é bastante diferente: se entendemos a enunciação como um ato individual, as regularidades características da língua dão lugar às singularidades advindas da individualidade posta em cena na conversão da língua em discurso. E é justamente o tratamento dessas singularidades que coloca o trabalho do pesquisador transcritor num patamar diferenciado quando assume uma perspectiva enunciativa aquisicional: depara-se com o novo a cada ato enunciativo, o que o leva a também renovar seu ato de transcrição a cada fato, a cada recorte. 5 Para reletir Apresentamos aqui uma breve reflexão acerca do ato de transcrição como um ato enunciativo na busca do pesquisador em registrar os fatos de linguagem da criança, vistos como uma experiência de signiicação. Concluímos, com esse raciocínio, que o trabalho de transcrição de tais fatos envolve sempre a relação de interpretância da língua em relação aos fatos enunciados pela criança, relação esta que se dá por um ato interpretativo do pesquisador, o qual acaba, muitas vezes, por preencher lacunas na realização linguística da criança, cujas formas, em alguns momentos, ainda não se revelam coincidentes à estrutura linguística da qual o adulto já se apropriou; em outras vezes, o papel do transcritor envolve a decisão de deinir o que é importante registrar e o que é dispensável para os ins anunciados em sua pesquisa. Por essa razão, entendemos que há uma especiicidade no trabalho com fatos de linguagem dessa natureza, a qual exige um olhar singular para a metodologia de transcrição. Justamente por se tratar de um ato singular, a transcrição desses fatos é contemplada numa abordagem enunciativa aquisicional. Essa abordagem permite que se trabalhe com os fatos da linguagem da criança numa perspectiva que os vê como dependentes do aqui e do agora da enunciação, privilegiando aspectos singulares dos atos de fala, conforme Surreaux e Santos (2014); além disso, por se tratar de um olhar para a experiência de aquisição da linguagem, permite que se veja o mover da criança nessa experiência como a vivência de sua historicidade, com todas as lacunas e dissociações que isso possa representar quando comparada à vivência do homem adulto, na qual a língua já se presentiicou de forma bem mais completa. Trabalhar com a transcrição dos fatos de linguagem da criança é, portanto, recuperar 736 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 sua historicidade na experiência da signiicação ao se mover na e pela linguagem. O papel de pesquisador da experiência da criança na linguagem realiza-se, dessa forma, por meio da vivência de sua própria experiência de dizer sobre o dizer dessa criança, o que, para nós, revela-se também como uma experiência de linguagem, manifestada nos atos de acompanhamento, transcrição e análise dos fatos enunciativos. Referências BENVENISTE, É. (1968). Estrutura da língua e estrutura da sociedade. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. BENVENISTE, É. (1969). Semiologia da língua. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. BENVENISTE, É. (1970). O aparelho formal da enunciação. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. CAVALCANTE, M. C. B.; BRANDÃO, L. Gesticulação e fuência: contribuições para o estudo da linguagem. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, p. 55-66, jan.-jun. 2012. DIEDRICH, M. S. Aquisição da linguagem: o aspecto vocal da enunciação na experiência da criança na linguagem. 2015. 147 p. Tese de doutorado. Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/130026>. DESSONS, Gérard. Émile Benveniste, l’invention du discours. Inpress, 2006. ELAN. Disponível em: <https://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/>. Acesso em: 5 jan. 2016. FLORES, V. Entre o dizer e o mostrar: a transcrição como modalidade da enunciação. ORGANON, Porto Alegre, n. 40/41, p. 61-75, 2006. HILGERT, J. G. Língua falada e enunciação. Calidoscópio, São Leopoldo, v. 5, n. 2, p. 69-76, maio-ago. 2007. NORMAND, C. Convite à linguística. São Paulo: Contexto, 2009. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 711-737, 2017 737 REY-DEBOVE, J. (1988). À procura de distinção oral/escrito. In: CATAH, Nina (Org.). Para uma teoria da língua escrita. São Paulo: Ática, 1996. SILVA, C. L. da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes, 2009. SILVA, C. L. da C.; ENDRUWEIT, M. L. O oral e o escrito sob o viés enunciativo: relexões metodológicas. ReVEL, v. 9, n. 16, 2011. SILVA, C. L. da C.; SURREAUX, L. M. O tratamento do dado em aquisição e distúrbios de linguagem: uma leitura linguístico-enunciativa. Estudos em aquisição fonológica, Pelotas, v. 4, 2011. SURREAUX, L.; SANTOS, R. O. Transcrição de base enunciativa em distúrbios afásicos: aspectos prosódicos e gestuais. Revista Prolíngua, v. 8, n. 2, 2014. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 A representação do homossexual no discurso humorístico: uma análise do canal “Porta dos Fundos” Homossexual representation in humorous speech: an analysis of “Porta dos Fundos” YouTube channel Nilton César Ferreira Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP nc.ferreirah@hotmail.com Alexandre Sebastião Ferrari Soares Universidade Estadual do Oeste do Paraná asferraris@globo.com Resumo: O presente artigo objetiva analisar os efeitos de sentidos do discurso humorístico acerca da homossexualidade masculina e da chamada “proposta de cura gay” apresentada por um segmento conservador do cristianismo brasileiro. A metodologia adotada foi a Análise do Discurso de orientação francesa. O trabalho está organizado da seguinte maneira: primeiro, examinamos a relação entre o discurso, o humor e as piadas; em seguida, apresentamos uma breve contextualização sobre a homossexualidade enquanto categoria; e, por im, analisamos um corpus de um esquete publicado pelo canal “Porta dos Fundos”, cujo título é “Cura”. É possível depreender da análise que os temas acerca do humor constituem-se em veículos de produção e reprodução de ideologias e que o discurso em estudo apresenta um contraponto em relação aos dizeres que mobilizam as práticas não heterossexuais como contingente e moralmente condenáveis. Observamos, inclusive, que as falas enunciadas pelas personagens na produção humorística contrapõem os discursos religioso, médico e patriarcal, permitindo uma relexão a respeito das cristalizações sobre o que é ser gay. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.739-763 740 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Palavras-chave: Análise do Discurso; Humor; Ideologia; Homossexualidade masculina; Cura gay. Abstract: This paper analyses, through the French Discourse Analysis point of view, the meaning effects of humorous speech on male sexuality and the Conversion Therapy disseminated by a conservative wing of Brazilian Christianity. The work is organized as follows: irst, the relationship between speech, humour and jokes; then a brief background of homosexuality as a category is presented; and inally, the corpus of a Brazilian YouTube channel “Porta dos Fundos” sketch – “The Cure” – is analyzed. It is possible to conclude that the linguistic themes from comic speech are means of production and reproduction of an ideology and that the investigated discourse is a contrasting element about the sayings of non-heterosexual contingent and morally reprehensible practices. It has been noticed that the lines spoken by the characters in the comical production disagree with the religious, medical and patriarchal discourses, allowing a relection on the crystallization of what means to be gay. Keywords: Discourse Analysis; Humour; Ideology; Male homosexuality; Conversion Therapy. Recebido em: 12 de abril de 2016. Aprovado em: 20 de junho de 2016. 1 Introdução Os textos de humor têm sido apresentados como um domínio privilegiado para a manifestação inconsciente de uma ideologia calcada na homofobia,1 fenômeno amplamente observado no Ocidente. Tanto é que a imagem dos homossexuais é construída tipicamente, por exemplo, nas piadas, por meio de contendas e dissensões ideológicas e sociais. Isto não signiica, porém, que tais textos não possam servir como um espaço de contraponto, de ruptura, em relação aos discursos que signiicam como contingente e moralmente condenáveis as práticas não heterossexuais. 1 A palavra “homofobia”, cuja origem remete às pesquisas do psicólogo estadunidense George Weinberg (1972), nos anos setenta do século passado, é usada para deinir o preconceito contra os sujeitos homossexuais. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 741 No presente trabalho, pretendemos reletir acerca dos efeitos de sentido que circulam sobre a homossexualidade,2 buscando compreender como o discurso humorístico funciona como veículo de ideologias e como estas apropriam-se de outros discursos para signiicar o sujeito homossexual. Neste sentido, as produções de humor são de fato um excelente corpus para veriicar de que modo este sujeito circula, a partir de uma visão que se importa em questionar não apenas o conservadorismo religioso, mas também a concepção que preconiza uma possibilidade de “cura” da homossexualidade. Para tanto, escolhemos um esquete humorístico3 intitulado como “Cura”,4 publicado em 9 de setembro de 2013, no site “Porta dos Fundos” – deinindo-se como corpus para análise o discurso em resposta ao Projeto de Decreto Legislativo n.º 234/11, popularmente conhecido como “Cura Gay”, que buscava suspender os artigos 3.º e 4.º da Resolução n.º 01/99 do Conselho Federal de Psicologia e, logo, tornar a “homossexualidade” como uma “patologia” passível de “tratamento”. A metodologia adotada neste artigo, para a compreensão dos efeitos de sentidos sobre a homossexualidade, consiste na análise de sequências discursivas, a partir do esquete “Cura”, de forma a compreender o funcionamento ideológico dos discursos que se instalam nos modos de dizer sobre a homossexualidade e o homossexual. O corpus suprarreferido não é “neutro”, até porque só existem piadas sobre temas que são socialmente controversos, consistindo num material importante, devido a forma de sua circulação, para se apreender determinadas manifestações culturais e ideológicas (POSSENTI, 1998, p. 25). Sendo a realidade ediicada através da língua(gem), a árdua tarefa do analista do discurso consiste em desvelar os lugares discursivos de onde partem os sentidos (GONÇALVES; FERREIRA, 2014, p. 197). É importante ressaltar que estamos falando especiicamente da homossexualidade no Brasil (sobretudo da homossexualidade masculina). 3 Os esquetes humorísticos, de acordo com Luiz Antônio Marcuschi (2008, p. 199), são um gênero emergente na mídia eletrônica (rádio, televisão e internet) e, embora possuem características próprias, têm como um contraparte em gênero preexistente as piadas. Em virtude disso, consideraremos o nosso objeto de análise, para ins do presente trabalho, como sendo caracteristicamente piadístico. 4 CURA. Porta dos Fundos. 09/09/2013. Disponível em: <http://www.portadosfundos. com.br/video/cura>. Acesso em: 04 abr. 2015. (audiovisual) 2 742 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Neste diapasão, o artigo está organizado da seguinte maneira: na próxima seção, examinamos a relação entre o discurso e o humor; na seção 3, apresentamos uma abordagem teórica a respeito do riso, sob uma perspectiva ilosóica; na seção 4, discutimos a relação entre o inconsciente e os chistes; na seção 5, apresentamos um breve histórico sobre a homossexualidade; na seção 6, procedemos a análise propriamente dita, descortinando os signiicados produzidos no esquete humorístico; na seção 7, temos as considerações inais. 2 Do ponto de vista linguístico, o humor e as piadas De acordo com Possenti (2010, p. 103), o humor incide em uma esfera onde circulam diversos gêneros, dentre os quais, as piadas. Tal esfera abrange praticamente todos os tipos de temas. O que se faz por meio de muitos gêneros, da comédia à charge. A partir daí, as produções humorísticas são conceituadas de acordo com o pensamento de Mikhail Bakhtin (2011, p. 262), quer dizer, como enunciados relativamente estáveis, marcados por “seu conteúdo, seu estilo e sua composição”. Com o intuito de situar as piadas enquanto efeitos de sentidos e gênero de discurso, Possenti (2010, p. 104) recorre às contribuições de Raskin (1985). O qual considera como basilar, para que um texto seja constituído como piadístico, a presença de dois scripts que se opõem e, ao mesmo tempo, são compatíveis. O “gatilho”, por sua vez, é o que permite acionar uma interpretação, por exemplo, não esperada, estabelecendo a passagem de um script a outro. Contudo, as piadas não são de fácil classiicação, de modo que algumas não apresentem as características requeridas por Raskin (POSSENTI, 2010, p. 105). Os discursos explorados nas piadas, de acordo com Possenti (1998), são temas socialmente controversos, os quais pontuam visões estereotipadas sobre um problema (p. 25-26). Assim, as temáticas abrangidas no espaço das piadas encontram-se arraigadas no imaginário popular, como parte da memória e da identidade de uma sociedade. Desta forma, as piadas tendem a representar, por exemplo, os homossexuais masculinos, inseridos na história das sociedades ocidentais, como promíscuos, caricatos, efeminados. Para Possenti (1998), as piadas são interessantes, pois veiculam quase sempre um discurso proibido, não oicial. Sendo assim, o discurso humorístico “consegue dizer o que não pode/deve ser dito” (p. 26). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 743 Somente nas piadas, certos temas, como o racismo, a homossexualidade, a obesidade, entre outros, são possíveis de circular sem um tratamento cauteloso. De uma forma geral, estes temas reclamam os sentidos estabelecidos a partir do que é permitido dizer, ou seja, há uma interdição social em relação a eles. O discurso humorístico não deve ser visto simplesmente como instrumento de diversão, pois se constitui como suporte para as diversas manifestações culturais e ideológicas. Assim sendo, o discurso tem a sua regularidade, o seu funcionamento, que é possível apreender “se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao produto” (ORLANDI, 2000, p. 22). De tal modo, as produções de humor exigem ser tomadas não apenas no seu contexto imediato de produção, mas como “efeito de sentidos entre interlocutores” (PÊCHEUX, 1997, p. 82). Vale a pena lembrar que os temas acerca do humor e do riso, os quais já estavam em voga na segunda metade do século XIX, não interessam apenas à Teoria do Discurso. A partir daí, torna-se imprescindível uma releitura sobre as obras dos principais teóricos, que se dedicaram ao estudo dos referidos temas, dentre os quais, Bergson (1978) e Freud (2006). 3 Do ponto de vista da ilosoia, o riso No campo da ilosoia, Bergson (1978), em sua obra “O Riso”, publicada originalmente em 1899, deine o ato de rir como um traço distintivo do próprio homem (BERGSON, 1978, p. 12). Dessa forma, a palavra “veado”, por exemplo, só desperta risos devido às características que lhe atribuímos, associando ao homossexual masculino. Para Bergson (1978), a insensibilidade é o ambiente natural do riso. Isto não signiica que não se possa rir de alguém que inspire piedade, ou até mesmo afeição. No caso, “será preciso esquecer por alguns instantes essa afeição, ou emudecer essa piedade” (BERGSON, 1978, p. 12). Sendo assim, as piadas que signiicam, por exemplo, os homossexuais masculinos com traços efeminados, despertam risos inclusive do próprio público GLBTTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), o que pode caracterizar a insensibilidade em questão. Por sua vez, o riso não se trata de um som articulado, nítido e acabado, visto que “o nosso riso é sempre o riso de um grupo” 744 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 (BERGSON, 1978, p. 13). O que implica considerar que a graça de uma piada não reside tão somente numa determinada técnica, numa quebra de expectativa ou na presença de um “gatilho”. Sendo assim, o riso exige ser compreendido em seu ambiente natural, quer dizer, a sociedade (p. 14). Nesta conluência, o riso não é provocado pela queda de quem tropeçou, mas pelo desajeitamento de quem caiu, ou seja, o alvo é a pessoa. Assim, o riso presta-se a uma inalidade punitiva e corretiva (BERGSON, 1978, p. 13-14), de modo que os textos humorísticos permitem à sociedade castigar certos defeitos, “como a doença castiga certos excessos, atingindo inocentes” (p. 99). Desta forma, o riso tem a função de intimidar humilhando (p. 100). 4 Do ponto de vista da psicanálise, os chistes O pensamento de Bergson (1978) já era bastante conhecido por Freud (2006), cujas ideias são incorporadas e criticadas por este em seu livro “Os chistes e a sua relação com o inconsciente”, publicado em 1905. Para Freud, é possível compreender a lógica do inconsciente por meio dos chistes,5 situada não apenas nos sonhos e sintomas, mas também na vida cotidiana, nos atos falhos, nas práticas religiosas e na arte. A palavra chistosa, então, permite-nos apreender aquilo que está situado na ordem do recalcado, sem que o interlocutor pague o preço neurótico da angústia ou do padecimento dos sintomas. Para Freud (2006), um novo chiste age de modo semelhante a um acontecimento de interesse universal, já que “passa de uma a outra pessoa como se fora a notícia da vitória mais recente” (p. 28). A formação de um chiste, por sua vez, ocorre a partir de determinadas técnicas, entre as quais: a condensação, formação e modiicação de palavras; o múltiplo uso do mesmo material; o duplo sentido; o trocadilho; o deslocamento; o raciocínio falho; os chistes absurdos (o sentido nonsense); a resposta pronta; a ironia. Tais técnicas “evocam um sentimento de prazer no 5 Cabe ressaltar que a expressão “witz”, cuja raiz pode ser encontrada no romantismo alemão, servindo para designar tanto as tiradas ferinas que têm a forma de uma sentença sarcástica, quanto as anedotas em forma de historieta, é de difícil tradução para o português. Na edição brasileira, traduziu-se como “chiste”, mas, por ser um termo com o qual temos pouca intimidade, alguns estudiosos preferem nomear de “anedota” e outros como “piada” (SLAVUTZKY; KUPERMANN, 2005, p. 7). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 745 ouvinte” (p. 95) e, assim, a atividade chistosa não pode ser concebida como inútil ou desinteressada (p. 96). Há duas espécies de chistes, considerando-se o efeito perturbador que pode ou não produzir, os abstratos ou inocentes, os quais possuem um im em si mesmos, e os tendenciosos, aqueles que se prestam a um im (FREUD, 2006, p. 91). Sobre o propósito dos chistes, os tendenciosos diicilmente provocam a explosão do riso e, por outro lado, os “triviais” ou “carentes de substância”6 são fontes de muito prazer (p. 97). Estes são tidos como irresistíveis e podem servir a dois propósitos: “ou será um chiste hostil (servindo ao propósito de agressividade, sátira ou defesa) ou um chiste obsceno (servindo ao propósito de desnudamento)” (p. 97). Freud (2006) volta-se, em primeiro lugar, aos chistes desnudadores, os quais se apresentam, quase sempre, uma linguagem pornográica (smut), devido a serem motivados pelo desejo de desvelar aquilo que é sexual. Por sua vez, aquele que ri do smut é tido como “expectador de um ato de agressão sexual” (p. 98). Na perspectiva freudiana, esta espécie de chiste é preferida, com raras exceções, pelo sexo masculino. Desta forma, os chistes desnudadores permitem liberar o preconceito, por exemplo, contra os homossexuais, sob tom jocoso, emergindo um incômodo silenciado e igualmente desconhecido. A estrutura dos chistes tendenciosos situa em torno de três pessoas (FREUD, 2006, p. 100), quer dizer, aquela que produz o chiste, o alvo “que é tomada como objeto da agressividade hostil ou sexual” e o destinatário onde “cumpre o objetivo do chiste a produzir prazer”. O que permite ao enunciado indecente valer-se de “fontes de prazer além daquelas abertas aos chistes inocentes”, cujo prazer está de algum modo vinculado à técnica (p. 101-102). Se o prazer vincula-se a uma técnica, os chistes tendenciosos tendem ao prazer da superação de um obstáculo para a satisfação de um instinto (p. 102). O qual inclina-se a um propósito hostil, promovendo a misoginia, a homofobia, o racismo, etc. Desde a infância, os impulsos hostis contra o nosso próximo têm-se sujeitado às mesmas restrições, assim como nossas tendências sexuais (FREUD, 2006, p. 102). Os chistes permitem-nos “contornar” a proibição de certas hostilidades contra o nosso inimigo, tido como 6 Sob o ponto de vista da Análise do Discurso, não há o que se falar em discursos “inocentes” ou “carentes de substância”, devido a considerar que não existe neutralidade em língua(gem). 746 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 “pequeno, inferior, desprezível ou cômico”, ao qual superamos “por linhas transversas” (p. 103). Logo, a crítica insultuosa dirige-se não somente àquelas pessoas em posições elevadas, mas também a algumas instituições, à imagem de pessoas indefesas (p. 104) e ao sujeito enquanto pessoa coletiva (p. 110), tal como os homossexuais. Em virtude disso, os chistes não se restringem ao riso, pois “não podemos excluir a possibilidade de que a produção dos chistes também partilhe outros motivos” (FREUD, 2006, p. 135). A maior parte dos chistes circulam anonimamente, mas se deve ter em mente que “ninguém se contenta em fazer um chiste apenas para si” (p. 138). Em oposição, o texto cômico permite rir até mesmo sozinho, sendo suiciente apenas o comediante e o objeto ou o alvo (p. 138-139). O sucesso dos chistes, por sua vez, exige que o enunciatário não cultive um sentimento contrário aos propósitos daquilo que é enunciado (p. 144-147). Os estudos acerca do inconsciente, por sua vez, interessam à Análise do Discurso, no sentido de compreender a existência do sujeito, que se dá no próprio ato de enunciação (PÊCHEUX, 2009, p. 277). Até porque é através da língua(gem) que se manifestam incessantemente e sob mil formas – o lapso, o ato falho, etc. – os traços inconscientes do signiicante. O que implica considerar que o sujeito é efeito de linguagem, um ser que foi falado antes de falar, que traz um vestígio do discurso do Outro.7 Entre os objetivos desse trabalho, procura-se veriicar os “efeitos de sentido” que circulam, no discurso humorístico, em torno do sujeito homossexual. Para tanto, é imprescindível desenvolver um breve histórico, na próxima seção, a respeito da homossexualidade masculina. 5 Sobre as construções que permeiam a categoria homossexual Em termos de registro, a palavra “homossexual” surgiu num panleto, publicado em 1869, e a sua autoria é atribuída ao jornalista austro-húngaro Karl Maria Kertbeny. As relações sexuais, por sua vez, entre pessoas do mesmo sexo, ingressaram no campo de projeção da ciência, com o artigo escrito pelo médico Karl Friedrich Otto Westphal, sobre as “sensações contrárias” (FOUCAULT, 2010, p. 50). Tão logo, a 7 O inconsciente, explica Mussalim (2000, p. 107), é o lugar do discurso do Outro, quer dizer, é onde emana o lugar da família, da lei, do pai, etc. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 747 conduta do sujeito homossexual passou a ser medida em relação à sua sexualidade, uma vez que nada daquilo que ele é, no im das contas, escapa à sua sexualidade. Até o século XIX, o pensamento religioso predominante no Ocidente concebeu a salvação como um mérito individual e sua busca como inerente ao próprio homem (FOUCAULT, 2004, p. 68). Sendo assim, a condição para a salvação consistia na obediência incondicional ao pastor, o representante da vontade divina (p. 69). O “sodomita”, por sua vez, em desacordo com os dogmas cristãos, não poderia ser salvo. O que permitiu considerar a sodomia como justiicativa para muitas desgraças. O cristianismo instaurou, então, por meio da sexualidade, uma espécie de poder regrador dos indivíduos (p. 71). A ideia que traduz os homossexuais como homens com trejeitos efeminados remonta à metade do século XIX, uma vez que físicos, políticos, advogados, intelectuais e artistas representavam os homossexuais como homens efeminados, passivos e que ganhavam a vida com a prostituição nas ruas (GREEN, 2000, p. 63). Isto implica considerar que a homossexualidade só faz sentido no imaginário popular, quando a “normalidade” sexual é deixada à margem daquilo que se considera como padrão brasileiro de masculinidade. Na virada do século XIX, o médico Francisco José Viveiros de Castro publicou, em 1894, as suas observações sobre a personalidade dos “uranistas”. Estes foram retratados como caprichosos, invejosos, vingativos, ciumentos e instáveis, os quais passavam “rapidamente de um egoísmo à sensibilidade que chora”, bem como incapazes de seguir “as proissões que demandam qualidades viris” (TREVISAN, 2000, p. 179). Os médicos da época, então, chegavam às mesmas conclusões adotadas pela religião cristã, frente à homossexualidade. Outro médico higienista foi José Ricardo Pires de Almeida que, em 1906, publicou uma extensa monograia, defendendo que os uranistas, em maior parte, apresentavam um andar típico, rebolando as ancas e salientando as nádegas (GREEN, 2000, p. 90). Para ele, o tratamento da homossexualidade consistia em submeter o “doente” à leitura de romances, cuja beleza das formas femininas despertassem paixões, ou a se deitar com mulheres nuas ou trajadas como homens. E, de modo paralelo, eram recomendadas cerca de 30 a 100 sessões de hipnose com a inalidade de se “incutir ao doente a repulsão, o nojo, o horror em relação à sua anormalidade” (TREVISAN, 2000, p. 181). 748 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Até pouco tempo atrás, o Código Penal, instituído na década de 1940, em relação ao atentado violento ao pudor, considerava, em seu artigo 214, os atos libidinosos diversos da cópula vaginal. O que signiicava que a relação sexual era apenas a que acontece entre um homem e uma mulher, a qual se denominava “conjunção carnal”. E, assim como a Igreja concebe em absoluto a relação entre homem e mulher, a lei penal reletia essa normalidade em seus artigos. Entretanto, o Código Militar, instituído durante o regime militar, em relação à prática da homossexualidade, mantém, em seu artigo 235, como passível de penalidade e reprovação, toda relação sexual que não seja entre pênis e vagina. Desse modo, as relações que rejeitam a reprodução da espécie, conforme se pode perceber, são consideradas como libidinosas, devido a ensejar apenas o prazer. Na década de 1980, a representação social do vírus do HIV era sinônimo de “homossexualidade” e, ao mesmo tempo, de morte. Os representantes de diversos setores da sociedade, então, em especial aqueles ligados à medicina e à Igreja Católica, responsabilizavam os homossexuais por adoecerem (TREVISAN, 2000, p. 442). Produzindo um sentido naturalizado de que somente os homossexuais (masculinos) poderiam ser portadores do vírus HIV (SOARES, 2012). A situação exigiu, portanto, que as diversas áreas da sociedade, as quais consideravam-se imunes à doença, empenhassem-se numa luta que passava a ser “de todos e não mais dos chamados grupos de risco” (p. 456). Em relação à noção de “homossexualidade”, houve mudanças signiicativas. Deixou de ser considerada uma doença pela Associação Psiquiátrica Americana, em 1980. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, em 1985, passou a homossexualidade do código 302.0, dentro da categoria de “desvio e transtorno sexual”, para o código 206.9, sob a denominação “outras circunstâncias psicossociais”. Em 1990, foi retirada do rol de patologias, pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Por im, o Conselho Federal de Psicologia, através da Resolução CFP n.º 001/99, deiniu como antiético o tratamento da “homossexualidade” como “desvio comportamental” ou “doença”. Contudo, a discussão acerca de um “tratamento” para a homossexualidade tornou a ganhar notoriedade com o polêmico Projeto de Decreto Legislativo n.º 234/11, conhecido como “cura gay”. Tal projeto consistia em suspender a resolução do Conselho Federal de Psicologia, que proíbe aos psicólogos de considerarem a homossexualidade Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 749 como patologia, além de tentarem mudar a orientação sexual de seus pacientes. Em 2013, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados assentiu ao projeto em questão, o que resultou em uma série de manifestações pelo país. Ante o exposto, podemos airmar que a “homossexualidade” tem história, uma posição política. Desta forma, o “seu sentido não apenas marca outras formas de signiicar o homossexual, mas aponta para outros sentidos possíveis nesse embate de forças entre dizeres e a cristalização de conceitos” (SOARES, 2012, p. 120). A partir daí, procuramos compreender, no presente trabalho, a maneira como a imagem do homossexual é construída, num discurso que se importa em contestar uma visão que preconiza a “cura” para a homossexualidade. 6 Sobre o esquete “Cura”, uma análise do discurso humorístico A AD considera o contexto sócio-histórico como parte constitutiva do sentido (MUSSALIM, 2000, p. 123). Ela se interessa pelas condições em que o nosso objeto de análise – o esquete humorístico, nomeado como “Cura”8 –, por exemplo, foi produzido. Contextualizado num momento histórico em que os radicais religiosos brasileiros empenhavam-se em aprovar, na Câmara dos Deputados, uma proposta de “cura” para os homossexuais, nada mais representativo que o “Porta dos Fundos”9 como contraponto ideológico. No vídeo, o ator Rafael Infante interpreta Jesus em uma sessão de “cura”. Eis que surge Marcus Marjella, Sandrinho, com gestuais “efeminados”, pedindo que seja curado de um “fogo que o consome”. Após a sessão, os traços efeminados do rapaz persistem, deixando os “discípulos” atônitos, os quais julgavam, supomos, em virtude da forma como os diálogos, os silêncios compõem o vídeo, a homossexualidade como a doença a ser curada por Jesus. A referência ao projeto de “cura gay”, então, proposto pela “bancada evangélica”, não é nada sutil. 8 CURA. Porta dos Fundos. 09/09/2013. Disponível em: <http://www.portadosfundos. com.br/video/cura>. Acesso em: 04 abr. 2015. (audiovisual) 9 Criado em 2012, o “Porta dos Fundos” tem um nome bastante sugestivo, podendo ser associado à forma de “sexo anal”, a saber, um tabu para a sociedade cristã. A partir daí, o referido canal vale-se de uma tonalidade de humor crítico, comumente dirigido às práticas de uma religião dogmática. 750 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Em virtude disso, podemos airmar que todo discurso ediica-se a partir de uma rede interdiscursiva. A partir deste processo dialógico, a língua(gem), ora citando, ora comentando, ou parodiando outros discursos, permite disputar a verdade numa relação de aliança, de polêmica ou até mesmo de oposição. O que implica considerar que o discurso é uma arena de lutas em que os (inter)locutores, falando de posições ideológicas, sociais e culturais distintas, interagem e atuam uns sobre os outros (BRANDÃO, 2012, p. 22). No início da cena, Jesus surge em pé, em cima de uma pedra alta e rodeado por uma multidão, que, em parte, encontra-se assentada sobre pedras menores ou de pé. Assim, o protagonista estende as suas mãos, chamando atenção de seus “iéis”, diz: “Oh, no 1”. Dirige a sua face aos céus e põe-se a contar: “5, 4, 3, …”. Ele vira o seu rosto à direita, em direção ao chão. Surge, então, aos pés do Cristo, um homem aparentemente morto. A contagem continua: “2, 1”. Em seguida, Jesus ordena: “Lázaro, levanta-te e anda”. A personagem que antes se encontrava “morta” é “ressuscitada” e, em simultâneo, grita: “eita”. Logo, a multidão aplaude ao “milagre”. Porém, o mestre comenta, de um modo um tanto engrandecedor, que o milagre por ele realizado “não é tão complicado”. O entendimento de uma produção de humor só é possível devido a ser construída através do saber já-dito sob a forma do pré-construído, do conhecimento partilhado (POSSENTI, 1998, p. 19), entre o falante e o ouvinte cristãos. Dessa forma, o esquete em análise mobiliza a personagem Jesus de acordo com o imaginário popular, caracterizada com uma longa barba, cabelos compridos, trajada com uma túnica. A partir daí, podemos averiguar que o discurso em análise é uma prática social que funciona pelo imaginário (PÊCHEUX, 1997, p. 82), no caso, cristão. A heterogeneidade mostrada, de acordo com Maingueneau (1998, p. 78-79), pode ser marcada e não marcada. As formas marcadas são recuperadas no nível enunciativo, a partir de marcas linguísticas que mostram a presença de outra voz, tais como o discurso direto, o discurso indireto, as aspas e a glosa. Já as formas não marcadas são identiicáveis sobre a face de índices textuais distintos, ou graças à cultura do coenunciador, como, por exemplo, o discurso indireto livre, a alusão, a imitação e a ironia. Em vista disso, o milagre da ressurreição, cuja cena é (re) produzida no corpus em análise, consiste num recorte de tempo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 751 Isto signiica que, em algumas culturas, muito provavelmente não se reconheçam nem a cena, nem Jesus e nem as suas palavras. Por outro lado, identiicamos sem muita diiculdade, quando Jesus diz “Lázaro, levanta-te e anda”,10 como uma remissão ao Evangelho, pois somos interpelados por uma ideologia cristã. Dessa forma, a heterogeneidade mostrada e não marcada ocorre na medida em que o locutor produz, embora de modo não explícito, em nível do discurso, formas detectáveis que inscrevem o outro (MAINGUENEAU, 1998, p. 78-79). Embora se conigure como essencialmente humorística, a cena em análise é validada por meio de elementos do discurso religioso. O que permite ao (inter)locutor deparar-se com a situação limite da morte, pela qual confronta-se com a sua initude. A partir daí, a desigualdade – isto é, a imortalidade e a mortalidade – instala, aos homens, a relação vida e morte (ORLANDI, 2003, p. 243). Surge, portanto, a necessidade de salvação para a vida eterna e, sob uma perspectiva cristã, o móvel para a salvação é a fé em Jesus.11 Na cena protagonizada, embora Jesus e Lázaro compartilhem do mesmo espaço sobre a pedra, só o primeiro está em pé e, de acordo com a crença, possui uma essência “imortal”. Já a outra personagem, caracterizada por sua condição “mortal”, surge aos pés de Cristo. O que se pode deduzir que Jesus ocupa um lugar à parte, em oposição aos ouvintes, constituídos como mortais, pois, “embora seja a parte acessível de Deus, é o próprio Deus” (ORLANDI, 2003, p. 246). Nesta conluência, o Cristo é o sujeito que detém o poder de locução no discurso em análise, quer dizer, mais vale a palavra dele que a dos demais personagens. Não é à toa que a pedra mais elevada reserva-se a tal locutor. Sendo assim, podemos veriicar que o objetivo da produção de humor não consiste em ofender a legitimidade do Cristo. O que será contestado, porém, ao longo da cena em análise, é a interpretação ortodoxa que alguns religiosos proferem à “condição homossexual”. De modo paralelo, a cena humorística distingue duas espécies de ouvintes, dentre os quais, em um primeiro plano, uma parte se acomoda sobre as pedras medianas, enquanto outra parte, em segundo plano, resta o desconforto de se manter em pé. Sendo assim, a interpretação deste 10 11 João 11.43. Atos 16.31. 752 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 episódio passa pela memória, mais especiicamente pelos prestígios sociais que alguns cristãos gozam, em detrimento dos demais. Em vista disso, veriicamos uma crítica que remete – considerandose a noção de interdiscurso – à própria formação da ética protestante, onde a preguiça e a indolência, assim como as riquezas que delas advenham, são consideradas como “pecados mortais” (WEBER, 2012, p. 127). Desta forma, o discurso em análise sugere que os cristãos conservadores, estruturados na vontade de poder, tornaram-se incapazes de se adaptarem às transformações da sociedade contemporânea. Na cena em questão, há uma variedade signiicativa de símbolos, perpetrados historicamente por uma conjuntura religiosa, o que evidencia sua formação discursiva12 (FD), a saber, “religiosa cristã”. O discurso em questão, por outro lado, propõe que o pensamento religioso integrese à cultura moderna. Isto implica considerar que a FD é igualmente “progressista”, ou “liberal”. Então, os sentidos veiculados, no esquete em análise, deslocam-se entre um ponto de vista ortodoxo e outro liberal do cristianismo. Com efeito, uma religião é na verdade uma multidão de religiões distintas e, por vezes, contraditórias (ORLANDI, 2003, p. 248). Assim, a heterogeneidade social e ideológica coloca, por exemplo, a existência de uma teologia progressista e outra mais conservadora. A partir daí, a condição homossexual é (re)pensada por uma corrente e, ao mesmo tempo, rejeitada por outra. Sendo assim, o confronto de forças entre as posições adotadas pelos diferentes segmentos da religião, especialmente, em relação à homossexualidade, é chamado de formações ideológicas (MUSSALIM, 2000, p. 124). Cabe ressaltar que, dadas as relações de força existentes, a formação social constitui-se como heterogênea. Não obstante, o sentido produzido pelas/nas instâncias de poder, assim, colocado em circulação, pode ser considerado hegemônico e produzir efeitos ideológicos de unicidade (MARIANI, 2001, p. 108). O que implica considerar que as igrejas, sobretudo aquelas do segmento Pentecostal, mas também a Católica, produzem efeitos hegemônicos sobre o sujeito homossexual, sendo signiicado como pecador, doente e anormal. A formação discursiva, de acordo com Michel Foucault (2005, p. 43), é deinida como um conjunto de regras que, a partir do lugar que o sujeito ocupa, determina aquilo que pode/deve ser dito. 12 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 753 Durante o processo de realização do “milagre”, a personagem Jesus procura criar uma expectativa em relação aos enunciatários, utilizando-se de uma contagem regressiva (5, 4, 3, ...2, 1). Tal mecanismo permite desconstruir a imagem que a ortodoxia teve produzido em torno da divindade cristã. Para tanto, a contagem evoca a representação que o interlocutor faz a respeito de um mágico. A cena em análise, por conseguinte, visa reforçar a ideia de um Cristo que, embora seja Deus, possui certa “humanidade”.13 Jesus: “próximo”. Sandrinho: “sou eu, Senhor... sou eu... desculpa é que está cheio de pedra aqui...”. Jesus: “tudo bem?”. Sandrinho: “tudo ótimo... então, é isso...”. Jesus: (é isso) “o quê?”. Sandrinho: “é isso... o que falaram... ouvi falar... ouvi falar dessas coisas do milagre... das coisas que você está fazendo... a cura... no bairro só se fala nisso... daí vim aqui ser testada”. Jesus: “mas, o quê que você tem?”. Sandrinho: “eu tenho um fogo... eu tenho um fogo incontrolável... me queimando por dentro, que não aguento mais... não aguento mais, Senhor... preciso de ajuda”. Jesus: “desculpa, acho que não entendi exatamente o quê que você quer”. Sandrinho: “preciso que o Senhor me livre desse mal... dessa maldição que me corrói... eu não aguento mais...”. Jesus: “éééé... tá... eu vou tentar... tentar te ajudar...”. Sandrinho: “uhum”. (CURA, 2013) Após o episódio da ressurreição, Jesus chama, de acordo com a ordem de chegada, o próximo para ser atendido. Tal expressão remete o (inter)locutor, considerando-se a noção de interdiscurso,14 à imagem que se faz tradicionalmente de um médico. Sendo assim, o papel da memória discursiva consiste em reairmar a ideologia cristã, na qual Jesus é mobilizado como o “médico dos médicos”.15 A intervenção divina, portanto, ocorre num nível espiritual e, então, a lógica é de que Jesus tenha maior poder que os médicos do plano temporal. Por sua vez, a situação torna-se inusitada, na medida em que o “próximo” sujeito manifesta-se com certos traços efeminados. Assim, o 13 João 1.14. O interdiscurso, de acordo com Eni Orlandi (2000, p. 31), é um conjunto de formações elaboradas, embora já esquecidas, e que sustentam a possibilidade mesma do dizer. 15 Atos 2.22. 14 754 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 imaginário cristão também possui um protótipo para o gênero masculino, o qual deve ser consoante com a “normalidade” do heteroerotismo monogâmico (BRITZMAN, 1996, p. 79). Desta forma, a graça da cena em análise situa-se em torno de uma personagem, cujos “gestuais” por ela utilizados rompem com o “padrão” de masculinidade do (inter) locutor brasileiro. Na cena protagonizada, o funcionamento da língua(gem) assentase na tensão existente entre dois processos (ORLANDI, 2000, p. 36). Os parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém. Já os polissêmicos representam o deslocamento de processos de signiicação. O que vemos, por exemplo, num primeiro momento, é a ruptura do quadro humorístico com o processo de língua(gem), que põe em conlito os discursos acerca de um “tratamento” para a homossexualidade. Isto implica considerar que os sentidos não são esgotáveis, uma vez em todo dizer há sempre a possibilidade de uma abertura para a polissemia (ORLANDI, 2000, p. 36). Mas, a cena em questão, na medida em que permite uma leitura a partir dos estereótipos sobre a homossexualidade, obedece a um estrito processo dominado pela (re)produção de dizeres machistas. O que justiica uma personagem que surge por meio do estereótipo de um homem com trejeitos efeminados. Tal sujeito utiliza-se inclusive de expressões que concordam, em língua portuguesa, com o gênero feminino (“vim aqui ser testada”). É possível veriicar, então, a estabilidade de dizeres sedimentados em uma cultura patriarcal, onde as características masculinas de um sujeito que não se igura como macho são apagadas. Além disso, a personagem homossexual, devido aos seus trejeitos efeminados, migra tão rapidamente de um estado de espírito, como diria Viveiros de Castro, a uma “sensibilidade que chora” (TREVISAN, 2000, p. 179). Se não bastasse, o próprio site do “Porta dos Fundos” aduz que “certas ‘doenças’ não precisam de cura” (CURA, 2013). Isto não signiica que a homossexualidade não possa vir a ser considerada como uma “patologia”, só não é passível de “cura”. O discurso em análise, portanto, constitui-se, de igual modo, como um retorno aos dizeres (re) produzidos pelos médicos higienistas. Em certo momento, a personagem em questão, que mais tarde identiica-se como Sandrinho, acusa as “pedras” de obstruírem a sua caminhada até Jesus (“desculpa, é que está cheio de pedra aqui”). Evidentemente, o episódio em questão consiste em uma crítica ao Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 755 “dogmatismo religioso”, ou mais propriamente à “bancada evangélica”. Assim, o interdiscurso permite que o leitor cristão evoque na memória, a respeito da ortodoxia cristã, um sentido bíblico, a saber, “pedra de tropeço”.16 A personagem Sandrinho, quando questionada por Jesus, a respeito do problema que o aligia, enuncia padecer de um “fogo” (“eu tenho um fogo... incontrolável...”). Logo, a interpretação desta cena evoca pela memória, especiicamente, um sentido “sexual” para a palavra “fogo”. Isto pois, a primeira das técnicas para a obtenção do fogo resulta de uma fricção, um movimento de vaivém (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 442). De tal modo, o termo “fogo” não poderia comportar outro sentido, que fosse distinto de uma conotação “sexista”, a im de explicar um desconforto íntimo, sentido por um sujeito que não atende aos padrões de masculinidade do interlocutor brasileiro. Jesus estende a mão esquerda. Há um momento de silêncio. Sandrinho: “nooossa... linda a sua bata... comprou aqui em Jerusalém mesmo?”. Jesus: “só um instantinho”. Sandrinho: “é linho?”. Jesus: “algodão... vamos respirar”. Sandrinho: “100% algodão egípcio, 700 ios... adoooro... tem um amigo meu que vende, né... numa tendinha lá no Egito... na Aristides Espínola... esquina com o rio Nilo... se você quiser... te dou um desconto, tá?”. Jesus: “vamos icar calmo... você é ansioso, né? você tem coisas boas na sua personalidade... ica calmo”. Sandrinho: “desculpa... hummm...”. Jesus: “vamos concentrar”. Sandrinho: “nooossa, seu cabelo é maravilhoso, Jesus... babado, hein... você usa o quê? babosa? ou aquele óleo do Marrocos, que está todo mundo usando? sou super entendida... ôoow... eu sei de tudo”. Jesus: “amigo, olha só...”. O rapaz: “Sandriiinho... me chama de Sandriiinho?”. Jesus: “ouça, só... presta atenção... eu preciso me concentrar para poder te ajudar... prestou atenção nisto?”. Sandrinho: “desculpe”. (CURA, 2013) Como se vê, o processo de expulsão do mal é marcado por toda uma ritualização (“Jesus estende a mão”, “fecha os olhos”, etc.), na qual é submetida a personagem Sandrinho. O que se pode observar é 16 Mateus 18.6-7. 756 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 que a relação de “informalidade”, contida na produção de humor, não é suiciente para alterar o estatuto jurídico do locutor. Isto porque o fato da personagem falar diretamente com a divindade cristã, não modiica o seu poder de dizer, o lugar de quem recebe o milagre. A partir daí, o desnivelamento entre locutor (o Cristo) e interlocutor (o homossexual) mantém-se, pois, “de um lado, temos a onipotência divina, de outro, a submissão humana” (ORLANDI, 2003, p. 247). Entretanto, Sandrinho parece não compreender as regras para que o milagre seja realizado, até porque ele rompe constantemente o silêncio dramatizado por Jesus. De tal maneira, a graça da cena em análise reside no desajeitamento de uma personagem que, embora devesse falar do lugar de quem recebe uma cura, enuncia de um lugar de “intimidade” com o Cristo. Assim, os efeitos de sentido, produzidos pela quebra do silêncio em questão, permitem corrigir o comportamento de um sujeito, cujas práticas rompem com as formas convencionais de relação entre homem e mulher. Se não bastasse ser consagrado como efeminada, Sandrinho mostra-se intimamente atraída pelo universo da moda (“linda a sua bata”, “100% algodão egípcio”, “700 ios”, etc.). Assim, a interpretação deste trecho evoca, por meio da memória discursiva, como essencialmente femininos, os trabalhos ligados às indústrias da moda e da costura. A partir daí, podemos perceber um discurso que, na perspectiva dos médicos higienistas (TREVISAN, 2000, p. 179), associa os homossexuais masculinos aos papéis sociais atribuídos ao feminino, construindo, e reforçando também, um lugar muito especíico para o que pode/deve ser próprio do homem e, por oposição, o que pode/deve ser próprio da mulher, numa percepção binária da sexualidade. Na sequência, Sandrinho demonstra também um afeiçoamento em relação ao segmento da beleza e da estética (“seu cabelo é maravilhoso”, “você usa o quê?”, “é babosa?”). O que redunda em discursos discriminalizadores e, ao mesmo tempo, essencializantes. Desta forma, a cena protagonizada, na medida em que o sujeito em questão é restringido a determinados segmentos proissionais, permite manutenção de uma ideologia patriarcal. A formação imaginária a respeito do sujeito homossexual é reforçada pelas escolhas lexicais realizadas por Sandrinho ao se referir aos cabelos do Cristo. Este poderia escolher, por exemplo, entre “fantástico” ou “incrível”, mas optou por uma expressão tipicamente gay, quando Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 757 enuncia “babado, hein”. Daí, então, este recurso de linguagem mobiliza os estereótipos sobre a homossexualidade, a im de cultivar no interlocutor certa expectativa, em relação a tudo o que se disse sobre a cura. Em vista disso, o silêncio representa aquilo que não se diz na materialidade linguística, mas que se encontra alojado no interior desta (ORLANDI, 2007, p. 105). De tal modo, o silêncio consiste como objeto de interpretação, pois a sua quebra é o que permite situar um sujeito à margem da sociedade heterossexual e, ao mesmo tempo, (re)produzir efeitos de anormalidade, devido à inversão de papéis de gênero socialmente estabelecidos. É possível veriicar, então, que a homossexualidade não faz sentido fora dos lugares já estabelecidos pelos discursos religioso, médico e machista. Jesus: “vamos ficar calminho? você precisa se con...”. Sandrinho: “centrááá...”. Jesus: “que eu tô querendo ajudar o cole...”. Sandrinho: “guiiiinhaaa”. Jesus: “isso... vamos lá?”. Jesus: “foi (embora o mal que afligia ao rapaz)”. Sandrinho: “geeeente, tô ótima... tá aí... tô cem por centa...”. As pessoas, dentre a multidão, se olham, sem entender nada. Sandrinho: “não tô acreditando, Jesus (com a pronúncia em inglês do nome do ‘mestre’). Ele dá três beijinhos, alternadamente em cada lado do rosto de Jesus. Sandrinho: “obrigada por tudo, viu? tem que pagar alguma coisa? não vai me chamar de caloteira depois, não... hein?”. Sandrinho retira-se, dizendo: “você é louca”. Jesus (responde ao povo): “o quê, gente? gastriiiite”. (CURA, 2013) No trecho acima, é possível averiguar uma ideologia androcêntrica (BOURDIEU, 2005, p. 18), onde a imagem de Jesus constrói-se, em detrimento de Sandrinho, que se constitui emocionalmente instável. Assim, o sujeito macho é signiicado como alguém capaz de exercer tanto o controle da situação, quanto o controle do outro, do não macho. O que implica considerar um sujeito em conformidade com o Adão bíblico, o qual foi instituído por Deus para que “dominasse” sobre todas as “coisas”.17 Contudo, o sujeito em questão, se não bastasse ser a imagem e semelhança de Deus, é ainda o próprio Deus (ORLANDI, 2003, p. 247). 17 Gênesis 1.26. 758 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Em seguida, Jesus emprega uma técnica comum, em se tratando de imaginário sobre os educadores, em que estes solicitam aos alunos que completem os sentidos das palavras, de modo que compreendam melhor aquilo sobre o que se diz. Sendo assim, a produção humorística consiste pelo atravessamento do discurso pedagógico. O que permite educar uma personagem que, embora devesse falar de um lugar de quem recebe uma cura, insiste em enunciar de um lugar de “intimidade” com o Cristo. A graça do trecho em análise advém, em um primeiro momento, de uma personagem que, mesmo após à sessão de cura, permanece efeminada. Tão logo, Sandrinho (re)produz enunciados que concordam, na língua portuguesa, com o gênero feminino (“tô ótima”). Evidentemente, o uso de “cem por centa”, em lugar de “cem por cento”, que de acordo com a gramática é invariável, opera um trocadilho entre o numeral “cento” e o verbo “senta”. Além do que, nesse imaginário sobre a homossexualidade masculina, recorre-se comumente à aproximação entre este universo e o universo feminino, aqui exagerado (nas expressões no gênero feminino), devido aos efeitos de sentidos pretendidos com o esquete em análise. Com isso, a homossexualidade, considerada, sob uma formação discursiva religiosa, médica e machista, como vergonhosa e moralmente inferior, torna-se objeto de riso. Cabe pontuar que a memória discursiva exerce um importante papel na delagração de efeitos de humor que se instalam no corpus em análise. Assim sendo, a condição do riso situa na capacidade do interlocutor fazer uma leitura por conta das cristalizações sobre o que é ser gay. O que não signiica dizer que a personagem caracterizada com trejeitos efeminados seja de fato homossexual. Dessa forma, a nossa perspectiva seria a de que fosse porque estamos nessa formação discursiva, que nos permite reconhecê-lo pelo já-lá sobre a (homo)sexualidade. Em outro momento, o efeito de humor decorre da resposta inesperada de Jesus, ao enunciar que o “problema” de Sandrinho consistia em uma “gastrite”. O que permite interpretar que a sexualidade não seja uma questão para o mestre. Sendo assim, o Cristo parece zombar dos religiosos que o seguiam, frustrando-lhes a expectativa. Aliás, a própria inscrição contida no site, onde se encontra hospedado o vídeo em análise, signiica os cristãos dogmáticos como “falsos milagreiros”, pois não enxergam que certas “doenças” não precisam de cura. Dessa forma, a corrente conservadora, que prega uma possibilidade de cura aos homossexuais, constitui-se também como alvo de riso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 759 Com efeito, é possível veriicar que, em uma formação discursiva, existe sempre a presença do Outro, que confere ao discurso o caráter de ser heterogêneo (MUSSALIM, 2000, p. 129). E, embora o sujeito enuncie de um lugar ideológico progressista, os embates entre este lugar e o dogmatismo são recuperáveis no interior mesmo do discurso. Sendo assim, a produção humorística, quando ironiza a religião conservadora, negando-a através de uma paródia, recupera-a como parte constitutiva do discurso. 7 Conclusão No discurso humorístico, encontram-se cristalizadas as diversas manifestações culturais e ideológicas. O que implica considerar que o nosso corpus de análise (no caso, um esquete produzido pelo canal “Porta dos Fundos”, cujo título é “Cura”) não deve ser entendido apenas como um instrumento de diversão. Até porque o discurso de humor, como qualquer outro, tem a sua regularidade, o seu funcionamento, que “é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao produto” (ORLANDI, 2000, p. 22). Em vista disso, o presente trabalho consistiu em examinar quais eram os efeitos de sentido que circulavam, no discurso contido em uma produção de humor, a respeito da homossexualidade masculina, frente a uma “proposta de cura gay”, apresentada por um segmento conservador do cristianismo. Neste sentido, o corpus analisado constitui-se como uma arena de lutas, onde os (inter)locutores, falando de posições ideológicas, sociais e culturais distintas, interagem e atuam uns sobre os outros (BRANDÃO, 2012, p. 22). O que apreendemos imediatamente é que a cena protagonizada, embora se conigure como essencialmente humorística, valida-se a partir de elementos do discurso religioso. Sendo assim, o (inter)locutor, a princípio, é induzido a se deparar com a situação limite da morte, pela qual surge a necessidade de salvação para a vida eterna. Além disso, a cena em questão se apropria de uma variedade signiicativa de símbolos, os quais são perpetrados historicamente por uma conjuntura religiosa. A partir daí, veriicamos que o corpus analisado inscreve-se em uma Formação Discursiva (FD), a saber, religiosa cristã. 760 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 Nesta conluência, observamos que o esquete analisado importase, num primeiro momento, em reconsiderar os dizeres que sustentam uma “proposta de cura” para a homossexualidade. Não obstante, a cena em questão, num segundo momento, dialoga com os processos de linguagem dominados pela (re)produção de dizeres sedimentados nas FDs religiosa, médica e machista. O que justiica um sujeito marcado pela feminilização de seus trejeitos, de seu vocabulário, de seus interesses em torno da moda, etc. Em virtude disso, o riso produzido, sobre a homossexualidade masculina, reside na capacidade do interlocutor compartilhar as cristalizações sobre o que é ser gay. Contudo, a produção humorística em voga permite desfazer os estereótipos de gênero, na medida que os valores cristalizados pela religião dogmática, no que tange à homossexualidade, passam a ser questionados. Isto permite que se possa rir também desses valores “naturalizados” a partir do que Jesus cura. Ou seja, não a homossexualidade, já que esta pouco importa na veiculação do esquete (à qual é realocada a uma outra categoria, a da normalidade), mas a gastrite que alige a personagem de nome Sandrinho. Por im, é importante ressaltar que o deslocamento produzido, em termos históricos, contribui de igual modo para a produção do riso. Neste sentido, podemos observar que a vida de Jesus, em uma época remota, é atualizada em termos de localização (a referência aos pontos de venda, na fala de Sandrinho, ou ao bairro onde este ouviu falar sobre as curas realizadas por aquele etc.), de tratamento de beleza (babosa para os cabelos) ou ainda sobre o tecido da bata de Jesus ser cem por cento de algodão egípcio etc. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a signiicação do cômico. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1899; 1978. BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 761 BRANDÃO, H. H. N. Enunciação e construção de sentido. In: FIGARO, R. (Org.). Comunicação e Análise de Discurso. São Paulo: Contexto, 2012. p. 19-43. BRITZMAN, D. P. O que é esta coisa chamada amor: identidade homossexual, educação e currículo. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 21, n. 1, p. 71-96, jan.-jun. 1996. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva. 24. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. CURA. Porta dos Fundos. 09/09/2013. Disponível em: <http:// www.portadosfundos.com.br/video/cura>. Acesso em: 4 abr. 2015. (audiovisual) FOUCAULT, M. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 2005. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque et al. 20. reimp. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2010. FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. v. VIII (1905). Direção da edição brasileira de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1905; 2006. GONÇALVES; J. A. T.; FERREIRA, N. C. Testemunhos de conversão de egressos do sistema prisional: discurso, religião e ideologia. Revista Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 22, n. 2, p. 195-217, jul.-dez. 2014 GREEN, J. N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Editora da Unesp, 2000. MAINGUENEAU, D. Temas-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 1998. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais no ensino de língua. In: ______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. 762 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 MARIANI, B. A institucionalização da língua, história e cidadania no Brasil do século XVIII: o papel das academias literárias e da política do Marquês de Pombal. In: ORLANDI, E. P. (Org.). História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas: Pontes, 2001. MUSSALIM, F. Análise de Discurso. In: ______; BENTES, A. C. (Org.). Introdução à linguística II: domínios e fronteiras. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000. p. 101-142. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1983; 1997. p. 61-105. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: Uma crítica a airmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al. 4. Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. POSSENTI, S. Os humores da língua: análise linguística de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998. POSSENTI, S. Humor, língua e discurso. Campinas: São Paulo: Contexto, 2010. RASKIN, V. Semantic Mechanisms of Humor. Dordrecht: D. Reidel, 1985. SLAVUTZKY, A.; KUPERMANN, D. In.: ______. (Org.). Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SOARES, A. S. F. Doente e pecador: ecos do século XIX sobre a homossexualidade na imprensa oficial (1985-2010). In: TASSO, I.; NAVARRO, P. (Org.). Produção de identidades e processos de subjetivação em práticas discursivas. Maringá: Eduem, 2012. p. 111-129. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 739-763, 2017 763 TREVISAN, J. S. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2012. WEINBERG, G. Society and the healthy homosexual. New York: Saint Martin’s, 1972. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 A posição-sujeito gramático ocupada por Evanildo Bechara na mídia: tradição e/ou modernidade? The subject-position grammarian used by Evanildo Bechara in the media: tradition and/or modernity? Agnaldo Almeida agnaldoal@hotmail.com Universidade Federal de Minas Gerais Resumo: No presente trabalho, buscamos analisar o modo de funcionamento da posição-sujeito gramático ocupada por Evanildo Bechara na mídia. Pautamo-nos no arcabouço teórico da Análise de Discurso de linha francesa, de viés pecheutiano, e da História das Ideias Linguísticas. Consideramos que o sujeito é uma posição discursiva, entre outras, inscrita em dadas formações discursivas que, por sua vez, são determinadas por formações ideológicas. Logo, o que se diz não é dito de qualquer lugar, em qualquer circunstância. Enquanto sujeito gramático, posição construída sócio-historicamente, Evanildo Bechara pode enunciar de diferentes lugares, tais como o da tradição e o da ciência. Questionamo-nos, então: qual a posição-sujeito assumida pelo sujeito em questão? É reproduzido um discurso purista, pautado no tradicionalismo, ou há um deslizamento para uma posição cientíica, que leva em consideração os “avanços” dos estudos linguísticos? Para tanto, tomamos como corpus entrevistas com tal gramático postas em circulação pela mídia nacional entre os anos de 2005 a 2013. Em nossas análises, observamos que o sujeito em questão funciona em uma relação de distanciamento à imagem do gramático tradicional, aquele que não leva em conta os “avanços” dos estudos linguísticos. Porém, os sentidos eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.765-790 766 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 destes “avanços” encontram-se em uma relação contraditória com aqueles advindos da tradição gramatical. São reiteradas imagens e valores de que existe, por exemplo, um “bom português” e de que o domínio da norma culta é um dos requisitos fundamentais para a ascensão social. Portanto, enuncia-se sobre os “avanços” dos estudos linguísticos a partir da posição-sujeito gramático tradicional. Palavras-chave: posição-sujeito; mídia; gramático. Abstract: In this paper, we analyze the operating mode of positionsubject grammarian used by Evanildo Bechara in the media. Guided by the theoretical framework of French Discourse Analysis, pecheutiano inluence, and the History of Ideas Linguistic, we consider the subject a discursive position, among others, registered in given discursive formations which, in turn, are determined by ideological formations. So, what is said is not said anywhere, under any circumstances. While subject grammarian position built socio-historically Evanildo Bechara may contain from different places, such as from tradition and science. We wonder, then, what is the subject-position assumed by the subject in question? A purist discourse, based in traditionalism is played, or there is a slip for a scientiic position, which takes into account the “advances” of linguistic studies? To this end, we take as corpus interviews with such grammarian put into circulation by the national media around the years 2005 to 2013. In our analysis, we observed that the subject matter works in a distance relationship to the image of the traditional grammarian, one that does not take into account the “advances” of linguistic studies. But, the mean these “advances” ind themselves in a contradictory relationship with those coming from the grammatical tradition. Images and values are repeated that is real, for example, a “good Portuguese” and the ield of cultural norms is a fundamental requirement for social mobility. So is necessary enunciate on the “advances” of linguistic studies from the position subject-traditional grammarian. Keywords: subject-position; media; grammarian. Recebido em: 1 de julho de 2015. Aprovado em: 25 de abril de 2016. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 767 1 Primeiras palavras Conforme Orlandi (2000a) e Guimarães (1996a), até meados do século XIX, os estudos da língua portuguesa realizados no Brasil consistiam em uma apropriação de nosso país por Portugal, porque não havia trabalhos sobre as especiicidades do português brasileiro. É na segunda metade do século XIX, atrelados à questão da independência nacional e à constituição de uma língua nacional, que tais estudos começam a se desenvolver de modo particular, com a elaboração e publicação de gramáticas de autoria brasileira. Estas procuravam atender ao Programa de português para os exames preparatórios, elaborado por Fausto Barreto. O gramático, nesse contexto, tem uma dupla função: intelectual e política. Cabe a este sujeito o estabelecimento de uma unidade linguística (língua nacional), deslocando a autoridade de quem deve dizer como é a nossa língua e sua metalinguagem, que deixa de ser uma mera repetição do saber gramatical português. O gesto de autoria dos primeiros gramáticos brasileiros (Júlio Ribeiro, João Ribeiro etc.) está diretamente vinculado à constituição do Estado e de uma identidade linguística, cidadã e nacional. É inaugurada uma posição-sujeito gramático brasileiro, um lugar “[...] onde se produz um conhecimento legítimo da língua que corresponde a um gesto de apropriação da própria língua” (ORLANDI, 2000b, p. 30). No século seguinte, segundo Orlandi (2000a), as condições de produção mudam e, consequentemente, o funcionamento da autoria gramatical. O Estado em si marca as nossas diferenças em relação a Portugal. A gramática deixa de ter a função de atribuir forma aos limites da identidade brasileira. Porém, alora uma profusão desse instrumento linguístico, tecnologia que representa a língua para seus sujeitos falantes (AUROUX, 2009), e de terminologias, apagando a materialidade da autoria estabelecida no século anterior. Assim, em 1959, é instituída a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), cujo objetivo é homogeneizar as partes e nomenclaturas das gramáticas; em 1965, por meio de um decreto, o Conselho Nacional de Educação torna a Linguística uma disciplina obrigatória nos cursos de Letras do Brasil. Com estes deslocamentos, a autoria passa a funcionar de modo diferente, ocorre uma transferência do conhecimento do gramático para o linguista, um “[...] deslizamento cada vez mais forte de uma posição política e intelectual para uma posição marcadamente cientíica da 768 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 questão posta pela língua” (ORLANDI, 2000a, p. 30). A cientiicidade torna-se um argumento para a afirmação de nossa identidade, e a gramática deixa de ser um monumento à língua para se apresentar como um artefato de ciência. No presente trabalho, buscamos compreender o modo de funcionamento da posição-sujeito gramático ocupada pelo gramático Evanildo Bechara. Metodologicamente, adotamos a abordagem qualitativa, por conta da natureza do resultado buscado. Desse modo, foram selecionadas 10 entrevistas, quantidade máxima encontrada na internet, com o gramático em questão, postas em circulação pela mídia nacional (jornais, revistas semanais, periódicos, sites institucionais etc.), entre os anos de 2005 a 2013. Questionamo-nos, então: como se constitui a posição-sujeito assumida pelo sujeito em questão? É reproduzido um discurso purista, pautado no tradicionalismo, ou há um deslizamento para uma posição cientíica, que leva em consideração os “avanços” dos estudos linguísticos? Para responder tais questões, respaldamo-nos nos trabalhos realizados na área de História das Ideias Linguísticas no Brasil, ao considerar constitutiva a relação entre a história da língua e a história de seu saber linguístico. Articulamos essa área aos pressupostos da Análise de Discurso de linha francesa, de viés pecheutiano, para a qual o sujeito, a língua e os sentidos não são transparentes, eles têm uma materialidade constitutiva. Sujeitos e sentidos se constituem ao mesmo tempo por um processo que tem como fundamento a ideologia. E a língua, em sua forma material, na medida em que é suscetível à falha, ao deslize, ao equívoco, é lugar para a interpretação. Em nossas análises, constatamos que o sujeito em questão é construído no distanciamento em relação à imagem do gramático tradicional, aquele que não leva em conta os “avanços” dos estudos linguísticos. Ao analisar as discursividades, veriicamos que é requerida a caução da Linguística para a inscrição do trabalho gramatical nas práticas cientíicas. Como a relação entre a tradição gramatical e os “avanços” dos estudos linguísticos é contraditória, compreendemos os sentidos desses “avanços” enquanto uma exterioridade constitutiva que afeta o sujeito e o faz funcionar. Evanildo Bechara, ao ocupar a posição-sujeito gramático, se constitui nesse jogo tenso e conlituoso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 769 2 Política linguística e gramatização do português no brasil Apoiando-nos na teoria materialista do discurso, a qual procura analisar as determinações históricas dos processos de signiicação, observamos que a materialidade do sentido resulta de um processo histórico de signiicação em que o sujeito, a história e a linguagem estão materialmente pensados e implicados (ORLANDI, 2009). Enquanto sujeitos, somos afetados pelo real da língua e pelo real da história, não tendo controle de como eles nos afetam. A constituição de um saber (meta) linguístico está diretamente atrelada à constituição de uma identidade nacional, linguística e cidadã daqueles que falam uma determinada língua. De acordo com Auroux (2009), o processo de gramatização é decisivo para a constituição do saber metalinguístico de uma sociedade. A gramatização é, consoante tal autor (2009, p. 65), “[...] o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalinguístico: a gramática e o dicionário”. É uma transferência tecnológica de uma língua para outras, sendo que os sujeitos responsáveis pela transferência podem ser ou não locutores nativos das línguas em que esse processo é desencadeado. Nos termos do autor, enquanto a endogramatização é efetuada por sujeitos nativos, a exogramatização é realizada por sujeitos não nativos da língua em que ocorre a transferência. O processo de gramatização dos vernáculos europeus transcorre do século V ao século XIX. Contudo, é a partir do inal do século XV que ocorre a gramatização massiva das línguas europeias, como francês, português, espanhol e italiano, decorrente de três elementos fundamentais: a renovação da gramática latina – há uma recusa à gramática latina medieval pelos humanistas, que buscam a restauração do latim clássico, considerado belo; a imprensa, que permite a multiplicação do mesmo texto, diminuindo o seu custo, e o aumento de sua difusão; e as grandes descobertas – de cunho territorial (grandes navegações) e cientíico. Este processo está vinculado à constituição das nações europeias e as suas respectivas transformações nas relações sociais, como o nascimento do capital mercantil, a mobilidade social, a urbanização etc. O período do Renascimento Europeu (XIV a XVI) é fecundo para a gramatização. Desenvolve-se uma intensa produção de gramáticas e dicionários, tendo como base uma única tradição linguística europeia (a greco-latina). E para a consolidação desse processo, a produção de 770 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 gramáticas é de suma importância, em razão de ela ser uma descrição linguística, um corpus de airmações que propõem “reduzir” a língua a regras. A gramatização busca a redução das variantes linguísticas apoiando-se nas regras do “bom uso”. A gramática é, nesse viés, um instrumento linguístico. Ela, conforme Auroux, [...] não é uma simples descrição da linguagem natural; é preciso concebê-la também como instrumento linguístico: do mesmo modo que um martelo prolonga o gesto da mão, transformando-o, uma gramática prolonga a fala natural e dá acesso a um corpo de regras e de formas que não iguram juntas na competência de um mesmo locutor (AUROUX, 2009, p. 70). Destarte, as práticas linguísticas se transformaram com o surgimento dos instrumentos linguísticos. Auroux (2009) airma que uma língua é gramatizada quando podemos aprendê-la (falar/escrever), por meio desses instrumentos. Como a gramática greco-latina é utilizada como base para a constituição das gramáticas europeias, retomam-se as categorias de suas partes do discurso, mesmo que não existam na língua em processo de gramatização. No Brasil, retomando a classiicação postulada por Auroux (2009), houve, inicialmente, a exogramatização. Os instrumentos gramaticais europeus foram impostos aos índios e outros povos que aqui habitavam por indivíduos não nativos, os portugueses. É com a questão da língua nacional no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, que “o Brasil tem seus próprios instrumentos linguísticos de gramatização, diferentes de Portugal” (ORLANDI; GUIMARÃES, 2001, p. 24). É a partir deste momento que os estudos das ideias linguísticas e a gramatização se desenvolveram de um modo especíico aqui no Brasil, evidenciando que o português aqui falado e escrito era diferente do de Portugal. No Português brasileiro, temos palavras de origem africanas e indígenas, além de algumas signiicarem diferentemente. Antes desse século, ressaltam Guimarães e Orlandi (1996b), a questão da linguagem era apenas uma forma de apropriação do Brasil pela Europa, pois as gramáticas e dicionários aqui produzidos, até esse momento, não tratavam de nossas especiicidades. Por uma abordagem histórica, Guimarães (1996a) divide a gramatização do português no Brasil em quatro períodos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 771 O primeiro período tem início em 1500, com a colonização, e prolonga-se até a primeira metade do século XIX, quando ocorrem debates entre brasileiros e portugueses sobre algumas construções consideradas inadequadas do português. Os anos inais dessa época coincidem com a Independência do Brasil, que abre questões importantes, como a constituição de uma língua nacional. O segundo momento se estende da segunda metade do século XIX, a partir dos debates travados no inal do período anterior e pela publicação de gramáticas, como a de Júlio Ribeiro, em 1881, até o im dos anos 1930, com a fundação das Faculdades de Letras no Brasil. Em sua Gramática Portuguesa, Júlio Ribeiro se distancia das gramáticas portuguesas, buscando inluência em teóricos de outros países. A publicação dessa gramática é o marco inicial para o período de gramatização aqui no Brasil. Surgem outras gramáticas importantes nos anos subsequentes, cujo objetivo era atender ao novo Programa de português para exames preparatórios, elaborado por Fausto Barreto1. Alguns escritores têm a preocupação de que devemos escrever como falamos no Brasil, e não como se escreve em Portugal. Segundo Orlandi (2000a, p. 27), nesta época, “ser autor de uma gramática é ter um lugar de responsabilidade como intelectual e ter uma posição de autoridade em relação à singularidade do português no Brasil”. O saber metalinguístico defendido pelo gramático brasileiro não é, desse modo, um mero relexo do saber gramatical português. Além de saber sua língua, os brasileiros necessitavam de um suporte institucional para mostrar que a sabem. A gramática é esse lugar material, tornando-se um saber legítimo para a sociedade. O gesto de autoria dos primeiros gramáticos brasileiros (Júlio Ribeiro, João Ribeiro, entre outros) está diretamente ligado à construção do Estado e de uma identidade do brasileiro. Língua e Estado se conjugam: “[...] a identidade linguística, a identidade nacional, a 1 De acordo com Fávero (2001, 2007), Sílvio Elia divide a história dos estudos gramaticais no Brasil em dois períodos: o vernaculista, de 1820, época de nossa independência, a 1880, quando é publicada a Gramática Portuguesa de Júlio Ribeiro, marco do segundo período: o cientíico. Enquanto no primeiro a gramática é considerada uma arte, remontando a conceituação advinda do modelo greco-latino, o período subsequente é marcado pela adesão ao método cientíico, buscando contemplar o Programa elaborado por Fausto Barreto. 772 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 identidade do cidadão na sociedade brasileira traz entre os componentes de sua formação a constituição (autoria) de gramáticas brasileiras no século XIX” (ORLANDI, 2000a, p. 28). É ainda desse período, 1897, a fundação da Academia Brasileira de Letras - ABL. Instituição que se envolve em acordos de uniicação ortográica e emerge com o intuito de “cultivar a língua e a literatura nacional”. O terceiro período, por sua vez, transcorre do inal dos anos 1930 até meados da década de 1960, quando a Linguística é institucionalizada como uma disciplina obrigatória nos cursos de Letras. A fundação das Faculdades de Letras representa a abertura de um espaço para discutir questões de linguagem. Em 1943, é estabelecida a ortograia da língua portuguesa no Brasil, por meio de um acordo ortográico, com algumas diferenças em relação à ortograia de Portugal. É discutida a nomenclatura que deveria ter a língua falada no Brasil e concluído que continuaria a ser chamada de língua portuguesa. Em 1959 foi sancionada a Nomenclatura Gramatical Brasileira – NGB, com o objetivo de deinir e padronizar as terminologias e partes das gramáticas aqui produzidas. Orlandi (2000b) e Baldini (1998) argumentam que a imposição da NGB gera uma nova relação dos gramáticos com a autoria, uma vez que eles passam de autores para comentadores de tal documento: “os próprios títulos das gramáticas lançadas em seguida materializam esse acontecimento: as gramáticas exempliicam, deinem, interpretam e explicam a NGB. O gramático passa a ser aquele que comenta a nomenclatura” (BALDINI, 1998, p. 101). Desde então, as gramáticas escolares a adota consistentemente, mesmo não havendo referências explícitas nas gramáticas atuais. Já o quarto período desenrola-se de 1965 até hoje, marcado pela implantação da Linguística em todos os cursos de Letras e o surgimento de cursos de Pós-Graduação. Guimarães (1996a) pondera que esse período tem diversas linhas de pesquisa em relação ao português: trabalhos gramaticais de cunho estrutural, funcional ou gerativo; trabalhos semânticos, sendo eles formais ou enunciativos; trabalhos de sociolinguística (variacionista, interacionista etc.); trabalhos em análise do discurso, os quais se debruçam sobre o funcionamento discursivo do português no Brasil; etc. Consoante Orlandi (2000a), observa-se um deslizamento da posição intelectual e política dos gramáticos do século XIX para uma posição mais cientíica, respaldada pelos estudos linguísticos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 773 O modo de organização histórica dos estudos sobre o Português segue dois caminhos diferentes, observado que “um mesmo gramático, linguista, ilólogo pode ter na sua obra, ou num mesmo texto, a presença dos dois recortes” (GUIMARÃES, 1996a, p. 134). Consoante o autor, o primeiro recorte é composto por estudos que visam evidenciar (de forma contrastiva ou não) a especiicidade do português brasileiro do de Portugal. Em meados do século XIX, essa postura é defendida por José de Alencar, Mattoso Câmara e Nelson Rossi, por exemplo. O autor inclui a NGB, que visa dar unidade terminológica às gramáticas escolares adotadas no Brasil, e os estudos atuais sobre a língua portuguesa. O segundo recorte refere-se aos estudos que visam uma unidade linguística Portugal/Brasil (atitude purista, classicista). Fazem parte deste os estudiosos que defendem o modelo clássico no início do século XX, os gramáticos atuais que trabalham com textos clássicos e canônicos e ações como os acordos ortográicos. A partir dos recortes acima, o autor estabelece mais dois: um diz respeito aos trabalhos que não apresentam um aporte teórico bem deinido (João Ribeiro, a NGB etc.), outro focaliza as produções com um aporte teórico deinido (Said Ali, Mattoso Câmara, os estudos da pós-graduação). Conforme os argumentos arrolados, o desenvolvimento e a valorização do discurso gramatical estão diretamente relacionados à constituição de uma língua nacional, a im de gerar um imaginário de unidade linguística: “enquanto língua do Estado e língua nacional, o português dispõe de instrumentos especíicos de organização do espaço de enunciação: a Escola, a gramática e o dicionário. A estas se junta de maneira decisiva hoje a mídia” (GUIMARÃES, 2006, p. 49). Em nossas análises, articulamos tais pressupostos às noções da Análise de Discurso de linha francesa (de viés pecheutiano), discutidas na seção seguinte. 3 Discurso, sentido e ideologia: princípios teóricos Interessa à Análise de Discurso a língua em sua forma material (linguístico-histórica). Por ter uma materialidade constitutiva, ela não é transparente. Por conseguinte, o sentido das palavras não é obvio. As palavras não se referem de forma unívoca e clara às coisas do mundo. Há sempre a possibilidade do equívoco, pois a língua está sujeita a falhas. De acordo Orlandi (2007b, 2012), o equívoco é deinido como o permanente confronto entre o real da língua e o real da história – “[...] o 774 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 sistema [linguístico] é um sistema signiicante, capaz de falhas, que, para cumprir-se em seu desígnio de signiicar, é afetado pelo real da história” (ORLANDI, 2012, p. 40). A língua se inscreve na história para signiicar. Ela é o aspecto material do discurso; este, o aspecto material da ideologia. Conforme a autora, pelo fato de a língua não ser transparente, existe uma injunção à interpretação. Os fatos reclamam sentidos, e os sujeitos estão condenados a signiicar. Entretanto, não controlamos o modo pelo qual somos afetados pelos sentidos. Isto posto, Pêcheux (2009 [1975]) airma que o discurso é efeito de sentido entre locutores. Para ele, um enunciado se relaciona com uma série de outros enunciados heterogêneos, os quais funcionam a partir de diferentes registros discursivos e uma estabilidade variável. Os discursos se constituem a partir de determinadas condições de produção, que implicam a situação imediata em que o discurso é produzido, os sujeitos envolvidos e o contexto mais amplo, ou seja, as condições sócio-históricas e ideológicas. Nessa perspectiva, levamos em conta as formações imaginárias, que se constituem pelas relações de sentido, pelos mecanismos de antecipação e pelas relações de força (ORLANDI, 2009). As relações de sentidos dizem respeito ao fato de um discurso sempre apontar para discursos anteriores que o sustentam, como também para dizeres futuros. Não há discurso que não se relacione com outros: Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. Não há, desse modo, começo absoluto nem ponto inal para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis (ORLANDI, 2009, p. 39). Os mecanismos de antecipação, por sua vez, dirigem o processo de argumentação. O sujeito tem a capacidade de colocar-se imaginariamente no lugar do outro, de seu interlocutor, fazendo com que ele enuncie de um dado modo, de acordo com o efeito que ele pensa produzir em seu interlocutor. Já o terceiro fator, as relações de força, refere-se ao princípio de que “o lugar do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz” (ORLANDI, 2009, p. 39). Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, as relações de força se sustentam na imagem do poder de diferentes lugares, como o de professor, aluno etc., as quais lhes são conferidos determinados valores. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 775 Como o nome já aponta, o objeto da Análise de Discurso é o discurso, e sua unidade de análise, o texto em suas diversas materialidades (verbal, não-verbal). É neste que o discurso se materializa. É a partir dele que temos acesso ao discurso. Sendo um objeto linguístico-histórico, o analista busca averiguar como o texto funciona, como ele produz sentidos. O texto é uma unidade imaginária com um início, meio e im que o analista tem diante de si para analisar a produção de sentidos. Sobre esta questão, Orlandi (2012, p. 67) declara: O texto mostra como se organiza a discursividade, isto é, como o sujeito está posto, como ele está signiicado sua posição, como a partir de suas condições (circunstâncias da enunciação e memória) ele está praticando a relação do mudo com o simbólico, materializando sentidos, textualizando, formulando, breve, ‘falando’. O processo de produção do discurso, de acordo com a autora, implica três momentos importantes. O primeiro, a constituição, referese ao contexto histórico-ideológico mais amplo, à memória do dizer. A formulação, segundo momento, diz respeito às condições de produção, às circunstâncias especíicas da enunciação. É na formulação do discurso que a memória se atualiza, a linguagem adquire vida, os sentidos são decididos e os sujeitos se evidenciam. Já o terceiro momento, a circulação, é tão importante quanto os dois primeiros. Ela acontece em uma determinada conjuntura e segundo certas condições. Os meios nunca são neutros. Desse modo, é a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos, produzindo um efeito de evidência, como se os sujeitos e os sentidos existissem em si, sustentando-se no já-dito, nos sentidos institucionalizados admitidos como “naturais”. Ela não é a ocultação da realidade, e sim a condição necessária para a existência da relação entre mundo e linguagem, sendo, portanto, fundamental para a constituição dos sentidos e dos sujeitos. Orlandi airma (2007b, p. 31): “A ideologia é interpretação de sentido em certa direção, direção determinada pela relação da linguagem com a história e seus mecanismos imaginários”. Ainda segundo a autora: “Estando os sujeitos condenados a signiicar, a interpretação é sempre regida por condições de produção especíicas que, no entanto, aparecem como universais e eternas, daí resultando a impressão do sentido único e verdadeiro” (ORLANDI, 2007a, p. 96). 776 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 O sujeito, para a Análise de Discurso, não é uma entidade empírica, e sim uma posição entre outras que pode ser ocupada. Segundo a autora, Pensando-se a subjetividade, podemos então observar os sentidos possíveis que estão em jogo em uma posiçãosujeito dada. Isso porque, como sabemos, o sujeito, na análise do discurso, é posição entre outras, subjetivandose na medida mesmo em que se projeta de sua situação (lugar) no mundo para sua posição no discurso. Essa projeção-material transforma a situação social (empírica) em posição sujeito (discursiva) (ORLANDI, 1999, p. 1). A subjetivação é, portanto, para a autora, uma questão de qualidade: não é possível a quantiicação do assujeitamento. Não se é menos ou mais sujeito. Vale ressaltar que um dos fundamentos básicos da Análise de Discurso é que não existe sentido sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Como os sentidos não são dados, e os sujeitos não estão na origem deles, a perspectiva discursiva defende que eles são constituídos nas formações discursivas. Noção utilizada incialmente por Foucault em A arqueologia do saber (1969) e retomada por Pêcheux (2009 [1975]), na segunda fase da elaboração da teoria materialista do discurso. Pêcheux não a importou apenas, ele a interpretou e reelaborou. Para ele, [...] as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos formação discursiva aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito [....]. Isso equivale a airmar que as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 146-147). Os sentidos se constituem na inscrição do sujeito em múltiplas formações discursivas (regiões do dizível), as quais são determinadas por formações ideológicas. Estas são deinidas por Pêcheux e Fuchs (2010 [1975]) como um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais nem universais, pois estão ligadas mais ou Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 777 menos às posições de classes. As relações entre as diversas formações discursivas são reguladas historicamente, constituindo os diferentes efeitos de sentidos entre locutores. Orlandi (2007a, p. 1) defende que “[...] a formação discursiva é heterogênea em relação a ela mesma, pois já evoca por si o ‘outro’ sentido que ela não signiica”. A autora acrescenta ainda: As formações discursivas são diferentes regiões que recortam o interdiscurso (o dizível, a memória do dizer) e que reletem as diferenças ideológicas, o modo como as posições dos sujeitos, seus lugares sociais aí representados, constituem sentidos diferentes. O dizível (o interdiscurso) se parte em diferentes (as diferentes formações discursivas) desigualmente acessíveis aos diferentes locutores (ORLANDI, 2007a, p. 20). As formações discursivas recortam o interdiscurso (a memória do dizer, o já-dito). Este é compreendido como a exterioridade constitutiva do nosso dizer: “[...] todo enunciado é tomado em uma série de enunciados, que pertencem a outras sequências discursivas emitidas anterior ou simultaneamente, e que constituem sua condição de existência” (PÊCHEUX; FUCHS, 2010 [1975], p. 277). O intradiscurso (eixo da formulação) supõe a ocupação de lugares determinados em formações discursivas. Já o interdiscurso (eixo da constituição) permite a repetição, o esquecimento, o apagamento ou a denegação dos elementos de saber de uma dada formação discursiva. É ele que regula o deslocamento das fronteiras das formações discursivas que se encontram em embate (contradição, aliança etc.). Consoante Orlandi (2012, p. 14): “O discurso é um processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram ditas antes e outras serão ditas depois. O que temos são sempre ‘pedaços’, ‘trajetos’, estados do processo discursivo”. Por conseguinte, os sentidos não são ixados a priori como essência das palavras, nem tampouco podem ser qualquer um, por sua determinação histórica. São administrados (geridos) nas/pelas instituições, levando em conta as diferentes posições dos sujeitos (pai, professor, patrão etc.), as diferentes instituições (igreja, família, partido etc.), e pela grande produção de textos (livros, regulamentos, programas de partido etc.). 778 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 A partir desse quadro teórico, a seguir discutimos sobre o modo de funcionamento da posição-sujeito gramático ocupada por Evanildo Bechara na mídia. 4 A posição-sujeito ocupada por Evanildo Bechara: “um dos mais respeitados especialistas da língua portuguesa” Como observamos acima, recusando a concepção idealista de sujeito (homogêneo, origem do dizer), a perspectiva discursiva questiona a autonomia do sujeito, asseverando que sua constituição se dá ao mesmo momento da constituição dos sentidos. O sujeito é uma posição discursiva entre outras inscrita em determinadas formações discursivas que, por sua vez, são determinadas pelas formações ideológicas. Logo, o que se diz não é dito de qualquer lugar, em qualquer circunstância. Cabe-nos questionar como funciona a posição-sujeito assumida pelo gramático Evanildo Bechara na mídia. Será que é a mesma do século XIX, ocupada pelos primeiros gramáticos brasileiros? Enquanto posição discursiva, ele mantém um discurso purista pautado no tradicionalismo ou há um deslizamento para uma posição cientíica, levando em consideração os “avanços” dos estudos linguísticos? Para a constituição de nosso corpus, foram selecionadas 10 peças textuais, entrevistas com o gramático Evanildo Bechara, que dizem respeito ao debate sobre a gramática e a língua (estabelecimento do acordo ortográico, questões sobre o ensino de língua etc.). Sobre o gênero discursivo entrevista, em seu modelo canônico, tem-se uma estrutura geral marcada por perguntas e respostas, porém manifesta estilos e propósitos diversos, tais como: entrevista jornalística, entrevista cientíica, entrevista médica etc. Este gênero “é composto de, pelo menos, dois indivíduos, cada um com seu papel especíico: o entrevistador, responsável pelas perguntas, e o entrevistado, responsável pelas respostas” (HOFFNALGEL, 2010, p. 196), os quais ocupam geralmente, papéis institucionalizados. Em seu funcionamento, a entrevista é primordialmente um gênero oral. Quando publicada em jornais e revistas, na maioria das vezes, acontece a transcrição do oral para o escrito e é efetuado um recorte do material coletado. Todas as entrevistas aqui analisadas encontram-se na internet de forma escrita. Cronologicamente, os textos selecionados são: Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 779 QUADRO 1 Entrevistas selecionadas Título da entrevista Suporte de circulação Data de publicação Entrevista com Evanildo Bechara Revista Philologus 23 fev. 2005 Gramático Evanildo Bechara defende novo acordo ortográico Folha de São Paulo 29 dez. 2008 Entrevista: gramático defende que reforma ortográica torna escrita mais simples A Tarde 12 mar. 2009 Rubens Andrade.com 16 nov. 2010 O Povo 13 dez. 2010 Último Segundo 13 maio 2011 Revista Piauí jun. 2011 Veja 1º jun. 2011 “Com acordo, tiramos um peso dos ombros”, diz Evanildo Bechara Estadão 12 nov. 2012 Evanildo Bechara SESC SP 01 fev. 2013 Entrevista: Evanildo Bechara Evanildo Bechara: o mestre das letras O aluno não vai para a escola para aprender “nós pega o peixe” Senhor Norma Culta Em defesa da gramática Iniciamos nossas análises retomando a distinção dos recortes do modo de organização histórica dos estudos sobre o português no Brasil proposta por Guimarães (1996a). Enquanto um primeiro recorte visa evidenciar (de forma contrastiva ou não) a especiicidade do português brasileiro do de Portugal, um segundo recorte defende uma unidade linguística Brasil/Portugal. Fazem parte desse recorte os estudiosos que defendem o modelo clássico do século XX e os gramáticos atuais, os quais trabalham com textos clássicos e canônicos. O gramático Evanildo Bechara enquadra-se no segundo recorte. Existe uma identiicação com redes de sentidos que “defendem” uma unidade linguística entre os países de língua portuguesa. Além disso, da posição-sujeito gramático que ele se identiica, é defendida ferrenhamente a leitura e adoção de textos clássicos pelos professores de língua materna, airmando que a falta de leitura desses textos é uma das principais razões para a “deiciência” do ensino do português. Vejamos algumas sequências discursivas: 780 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 (1) “OP – O ensino do português brasileiro não se confunde com o ensino do português europeu? Ou o senhor não gosta de fazer essa distinção? Bechara – Na realidade, não. É como se você quisesse fazer a distinção entre você, cearense, e membros da sua família. Existiu um ilósofo alemão que disse que a língua era mais forte que o sangue” (O povo, 2010). (2) “O ensino do português nas escolas é deiciente. Uma das razões recai sobre o evidente despreparo dos professores. [...] Além disso, não detêm uma cultura geral muito ampla nem tampouco costumam ler os grandes autores, como faziam os antigos mestres” (Veja, 2011, p. 25). Em (1), observamos a signiicação da língua enquanto naturalidade, característica biológica. A unidade linguística Brasil/Portugal é, então, preponderante em relação aos aspectos que diferenciam a língua aqui falada e escrita da língua europeia. Não é observado que as línguas funcionam de acordo com a sua distribuição para os falantes, que é política, desigual. O enquadramento de Evanildo Bechara no segundo recorte pode ser corroborado ainda pelo fato da defesa à adoção do acordo ortográico elaborado em 1990. Nos textos em análise, o lugar ocupado pelo gramático evidencia que a padronização ortográica do português pode contribuir para o seu fortalecimento da identidade linguística e político-econômica no cenário internacional: (3) “O acordo ortográico da língua portuguesa quando ele foi imaginado ele tinha como objetivo facilitar a educação, hoje ele não só continua facilitando a educação escrita, mas também é um dos instrumentos importantes para divulgação da língua no mundo” (RubensAndrade.com, 2010). Estando à frente da adoção do acordo ortográico, a posiçãosujeito assumida pelo gramático é revestida pelos sentidos institucionais advindos da Academia Brasileira de Letras. Ao recortar o interdiscurso, o sujeito inscreve-se em uma formação discursiva marcada pela concepção de uma língua portuguesa unitária entre os países que a falam. Conforme Orlandi (2012, p. 10): Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 781 Não há corpo que não seja investido de sentidos e que não seja o corpo de um sujeito que se constitui por processo de subjetivação nos quais as instituições e suas práticas são fundamentais, assim como o modo pelo qual, ideologicamente, somos interpelados em sujeitos. Nesse ponto, vale ressaltar a importância do funcionamento da escrita. O que deve ser ensinado na escola e reforçado pela mídia é a norma culta: aquela utilizada por escritores consagrados como Machado de Assis. A gramática e a escrita encontram-se imbricadas. Sobre este fato, Auroux (1998) pondera que a gramática depende da razão gráica, uma vez que são classiicados os elementos de uma língua. O próprio da gramática é estabelecer fronteiras entre as partes do discurso (substantivos, adjetivos, verbos etc.) e entre variedades linguísticas (distinguir o “bom português” daquilo que não o é). Nos textos em análise, o gramático é significado como a “autoridade máxima” quando se trata das discussões envolvendo a língua, no que diz respeito não só à gramática, mas também ao ensino do português, aos acordos estabelecidos entre os países de língua portuguesa para a uniicação ortográica etc. Consoante Geraldi (1993), nas sociedades contemporâneas, instituições como a escola e a mídia deinem os sujeitos competentes para falar sobre determinados assuntos, observando sua especialidade. Ao tratar de questões relacionadas à gramática e ao ensino de língua materna, por sua importância na constituição de uma língua nacional e por defender o “bom português”, a posição-sujeito gramático é dominante na mídia. Vejamos o enunciado (4): (4) “O pernambucano Evanildo Bechara é um dos mais respeitados gramáticos da língua portuguesa. Doutor em letras e autor de duas dezenas de livros, entre os quais a consagrada Moderna Gramática Portuguesa, Bechara, de 83 anos, passou décadas ensinando português” (Veja, 2011, p. 21). Nos lides das entrevistas, temos uma contextualização do assunto tratado, e uma pequena apresentação do entrevistado. Nelas podemos observar como o gramático e a gramática são signiicados. Vejamos: 782 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 (5) “Um dos mais respeitados especialistas da língua portuguesa condena os colegas que se insurgem contra a norma culta – e diz que disseminá-la é crucial para o país avançar” (Veja, 2011, p. 21). (6) “Imortal da Academia Brasileira de Letras diz que língua familiar é aceita do ponto de vista linguístico, mas não deve ser ensinada” (Último Segundo, 2011). Retomando a noção de formação imaginária, nos enunciados acima arrolados, veriicamos como os autores dos textos apresentam o gramático e como este concebe o ensino de gramática, a qual adquire o sentido correlato à língua portuguesa. As qualiicações que signiicam o gramático colaboram para a imagem de defensor da língua portuguesa. O gramático é o responsável pelo discurso sobre a língua e a gramática, administrando os sentidos. Posição imputada historicamente a esse tipo de sujeito. Pelos mecanismos de antecipação, é possível analisar o direcionamento das questões propostas ao entrevistado, de acordo com as representações dominantes do que é um gramático e de quais assuntos esse sujeito pode tratar com autoridade. Em alguns casos, chegam até a defender um ponto de vista nas perguntas. (7) “A defesa que o livro Por uma Vida Melhor, distribuído a 500 000 estudantes ao custo de milhões de reais para o bolso dos brasileiros, faz do uso errado da língua deveria ter provocado uma revolta maior, não?” (Veja, 2011, p. 21). O gramático responde: (8) “A defesa que foi feita desse livro decorre de um equívoco. Estão confundindo um problema de ordem pedagógica, que diz respeito às escolas, com uma velha discussão teórica da sociolinguística, que reconhece e valoriza o linguajar popular” (Veja, 2011, p. 21). Em (7) e (8), mais uma vez, veriicamos os sentidos de “defesa”. No enunciado (7), o sujeito enunciador parte de uma constatação: “o livro faz uso errado da língua”. Esse imaginário de erro é constitutivo. Os sentidos do não questionamento é um efeito do pré-construído, deinido Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 783 por Pêcheux (2009 [1975], p. 198) como “o ‘sempre-já aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade e seu ‘sentido’ sob a formada universalidade – o ‘mundo das coisas’”. A dicotomia entre “certo” e “errado” é constitutiva de nossa memória discursiva. Vale ressaltar que esta divisão se origina dos estudos gramaticais na Antiguidade GrecoRomana. No tocante ao discurso sobre a gramática e a língua portuguesa, é naturalizado que devemos seguir, à risca, as normas que constituem a gramática normativa para sermos “bons cidadãos”, “bons sujeitos”. Nas entrevistas, a imagem construída dos linguistas é: (9) “Agora, um grupo de brasileiros tenta repetir essa mesma lógica equivocada, empenhando-se em desvalorizar o bom português” (Veja, 2011, p. 24, grifo nosso). (10) “Diz Bechara: ‘Alguns de meus colegas subvertem a lógica que só serve para tirar de crianças e jovens a chance de ascenderem socialmente’” (Veja, 2011, p. 21, grifo nosso). (11) “A linguagem popular que alguns colegas meus se referem, por sua vez, não apresenta vocabulário nem tampouco estrutura gramatical que permita desenvolver ideias de maior complexidade – tão caras a uma sociedade que almeja evoluir” (Veja, 2011, p. 21-24, grifo nosso). São utilizados pronomes indeinidos para referir-se aos linguistas, colocando-os em um lugar inferior. Na Gramática escolar da língua portuguesa, Evanildo Bechara assevera que os pronomes indeinidos “são os que se aplicam à 3ª pessoa quanto têm sentido vago ou exprimem quantidade indeterminada” (BECHARA, 2006, p. 138). Mesmo trabalhando com conceitos da Linguística, o gramático identiica-se com uma posição-sujeito que assume uma divisão entre aqueles que defendem a língua portuguesa (em seu bom uso) daqueles que aceitam tudo. Os enunciados “Um grupo” e “alguns (de meus) colegas” podem ser substituídos por “poucos”, “uma minoria”. A posição-sujeito assumida pelo gramático apoia-se no logicismo fundado pelas gramáticas gerais e arrazoadas, que tomam como base, principalmente, os fundamentos da Gramática de Port-Royal, dos franceses Arnauld e Lancelot (1660). Sobre essa relação, observando que é dessa tradição que são as gramáticas tomadas para o ensino de língua 784 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 aqui no Brasil, Bueno (1958, p. 247) argumenta: “grande e desastrosa consequência de tais ideias ilosóicas é o ensino intensivamente absurdo de tal análise lógica, análise sintática das orações, que tem sido a ruína do aprendizado idiomático, quer aqui, quer em Portugal”. Ainda no que diz respeito aos sentidos da lógica, Pêcheux (2012 [1983], p. 34) airma que nós, enquanto sujeitos pragmáticos, possuímos uma “imperiosa necessidade lógica”, sendo que “essa necessidade de um ‘mundo semanticamente normal’, isto é, normatizado, começa com a relação de cada um com seu próprio corpo e seus arredores imediatos”. Para o autor, são as evidências lógico-práticas que uniicam os espaços discursivos. A gramática e a língua são signiicadas como um “espaço discursivo logicamente estabilizado” (PÊCHEUX, 2012 [1983]). Os linguistas, dessa forma, são signiicados como sujeitos que buscam “subverter a lógica”, ou possuem uma “lógica equivocada”. A partir da posição-sujeito ocupada pelo gramático, os linguistas deveriam manter seus estudos somente na universidade. (12) “As teorias da sociolinguística jamais deveriam ter deixado as fronteiras da academia. Nas escolas, elas só reduzem as chances de os estudantes aprenderem o bom português” (Veja, 2011, p. 24). Tomado pelos sentidos do discurso dos estudos linguísticos, é observado que não há somente uma língua portuguesa ou uma única “modalidade linguística”. As contribuições da Linguística não são negadas. Porém, a escola deve ensinar somente a norma culta para que os estudantes obtenham “sucesso no âmbito pessoal e proissional”. Sem abandonar a tradição gramatical, a caução da Linguística (ciência) é requerida para inscrever o trabalho gramatical no lugar dos “avanços dos estudos linguísticos”. No prefácio da atual edição (37ª) da Moderna gramática do português, por exemplo, os sentidos advindos dos estudos linguísticos recortam a materialidade linguística: (13) “Amadurecido pela leitura atenta dos teóricos da linguagem, da produção acadêmica universitária, das críticas e sugestões gentilmente formuladas por companheiros da mesma seara e da leitura demorada de nossos melhores escritores, verá facilmente o leitor que se trata aqui de um novo livro” (BECHARA, 2009, p. 19). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 785 Nessa perspectiva, estamos compreendendo os sentidos desses “avanços” enquanto uma exterioridade constitutiva que afeta o sujeito e o faz funcionar. O objeto posto em debate (a gramática/a língua) é direcionado pela disputa entre os interlocutores. Os sentidos postos em circulação encontram-se em um equilíbrio tenso entre a paráfrase e a polissemia. Como mencionado acima, os sentidos da gramática, norma culta etc., são administrados nessa relação conlituosa entre o “tradicionalismo” e os “avanços”. Esse embate entre discursividades é textualizado de forma signiicativa nas entrevistas. Há uma busca do afastamento da imagem do gramático enquanto “conservador” e o linguista como “libertário”. (14) “Consolidaram-se processo histórico, assim, estereótipos. Enquanto o linguista era vinculado à ideia de liberdade, o gramático simbolizava a opressão. Todo o falar seria legítimo, não existiria certo e errado, desde que o falante se faça entender. A correção seria uma violência a jeitos diferentes de falar do aluno” (Revista Piauí, 2011). Em (14), Bechara se coloca como analista do ponto de vista histórico. Busca-se um deslocamento de sentidos que, dessa posiçãosujeito, constituem a identidade (estereotipada) do gramático e do linguista. Vale lembrar que o estereótipo é uma representação coletiva cristalizada. Ele está ligado, então, ao pré-construído (sempre-já aí). Destarte, podemos constatar que a posição-sujeito ocupada por Evanildo Bechara está diretamente ligada aos sentidos institucionais (gramático, professor, membro da ABL) que lhe conferem legitimidade e poder ao seu discurso. Ele enuncia sobre os avanços dos estudos linguísticos a partir do lugar da tradição gramatical. 5 Considerações inais Ao longo do presente trabalho, buscamos compreender a posiçãosujeito ocupada pelo gramático Evanildo Bechara em entrevistas postas em circulação pela mídia nacional. Observamos que a constituição do sujeito em questão acontece de forma contraditória. Existe uma tensão ideológica entre os sentidos dos “avanços” dos estudos linguísticos e os sentidos da tradição gramatical. Ao enunciar sobre questões concernentes à gramática, ao ensino de língua materna, à implementação do acordo 786 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 ortográico etc., o sujeito ocupa uma posição-sujeito que, por um lado, reairma uma análise lógica da língua, sendo o português dividido entre “bom” e “mau”; por outro, o gramático é tomado pelas discussões da Linguística, requerida para conferir cientiicidade ao seu dizer. Ao recortar três, dos quatros períodos do processo de gramatização deinidos por Guimarães (1996a), Evanildo Bechara identiica-se com formações discursivas que reatualizam a tradição gramatical lógicoilosóica (gramáticas gerais e arrazoadas), da qual faz parte a famosa gramática de A. Arnauld e Cl. Lancelot, a Gramática de Port Royal (1690) que, por sua vez, remonta aos estudos greco-latinos. Estes, com base na lógica, centravam-se na teoria do “certo” versus “errado”, privilegiando a escrita. O sujeito gramático Evanildo Bechara é, assim como os sentidos, construído em uma tensão posta pelo jogo entre uma tradição gramatical, oriunda da antiguidade greco-latina e análise lógica, que busca um “bom” falar e escrever; e os sentidos dos “avanços” dos estudos linguísticos, que funcionam como uma exterioridade constitutiva. Para signiicar enquanto “moderno”, o gramático é tomado pelas discussões postas pela Linguística, a ciência capaz de dizer como a língua funciona e que, consequentemente, dá caução ao dizer do gramático. Há, então, um embate entre discursividades textualizado de forma signiicativa nas entrevistas, por uma busca do afastamento da imagem do gramático enquanto “conservador” e o linguista como “libertário”. No entanto, reairmam-se outras imagens, como a do gramático “defensor”, e a do linguista que “aceita tudo”. Nas entrevistas, a materialidade que nos deu acesso ao discurso, é reiterada a posição de “defesa” dos gramáticos, sócio-historicamente construída. Esses sentidos de “defesa” da gramática, da língua portuguesa e do acordo ortográico estão atrelados à constituição de uma unidade linguística. Aqui no Brasil, é a partir da segunda metade do século XIX, depois da Independência do Estado nacional, com a publicação das primeiras gramáticas de autoria brasileira, que se busca um afastamento do saber metalinguístico português. Defende-se, então, a língua nacional, a identidade linguística e cidadã dos seus sujeitos falantes, a pátria. Destacamos também a importância dos sentidos institucionais para a construção de imagens de um gramático respeitado. O caráter institucional da posição-sujeito assumida por Evanildo Bechara é revestido por sua ocupação da cadeira de número 33, na Academia Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 787 Brasileira de Letras. Por ser considerado um imortal, sua autoridade frente a questões sobre a gramática e a língua é evidenciada. Por meio da análise de matérias sobre o gramático e dos títulos das entrevistas, por exemplo, podemos averiguar a produção de sentidos que enobrecem a signiicação de tal sujeito como “um dos mais respeitados” gramáticos e “especialistas” da língua portuguesa. Referências AUROUX, Sylvain. A ilosoia da linguagem. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998. p. 63-96. AUROUX, Sylvain. (1992). A revolução tecnológica da gramatização. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi. 2. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. BALDINI, Lauro. A NGB e a autoria no discurso gramatical. Língua e instrumentos linguísticos, Campinas/SP: Pontes, n. 1, p. 97-107, 1998. BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 1. ed. 6. reimpr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. BUENO, Francisco da Silveira. A formação da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1958. FÁVERO, Leonor Lopes. Gramática é a arte... In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP: Pontes, 2001. p. 59-70. FÁVERO, Leonor Lopes. A gramática luso-brasileira e o método cientíico. Filologia e linguística portuguesa, n. 9, p. 27-42, 2007. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. GUIMARÃES, Eduardo. Sinopse dos estudos do português no Brasil: a gramatização brasileira. In: GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas: Pontes, 1996a. p. 127-138. 788 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 GUIMARÃES, Eduardo; ORLANDI, Eni Puccinelli. Identidade linguística. In: ______; ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). Língua e cidadania: o português no Brasil. Campinas: Pontes, 1996b. p. 9-15. GUIMARÃES, Eduardo. Enunciação e política de língua no Brasil. Revista Letras: espaços de circulação da linguagem, n. 27, p. 47-53, jul.dez. 2006. HOFFNAGEL, Judith Chambliss. Entrevista: uma conversa controlada. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. p. 195-208. ORLANDI, Eni Puccinelli. Do sujeito na história e no simbólico. Escritos, n. 4, 1999. ORLANDI, Eni Puccinelli. O Estado, a gramática, a autoria: língua e conhecimento linguístico. Línguas e instrumentos linguísticos, Campinas, n. 4/5, p. 19-34, 2000a. ORLANDI, Eni Puccinelli. Metalinguagem e gramatização no Brasil: gramática-ilologia-linguística. Rev. ANPOLL, n. 8, p. 29-39, jan.-jun. 2000b. ORLANDI, Eni Puccinelli; GUIMARÃES, Eduardo. Formação de um espaço de produção linguística: a gramática no Brasil. In: ORLANDI, Eni Puccinelli (Org.). História das ideias linguísticas: construção do saber metalinguístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP: Pontes, 2001. p. 21-38. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP, Editora da Unicamp, 2007a. ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeito do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007b. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8. ed. São Paulo: Pontes, 2009. ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 4. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. PÊCHEUX, Michel. (1975). Semântica e discurso: uma crítica à airmação do óbvio. Trad. de Eni Puccinelli Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 789 PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. (1975). A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectiva. In: GADET, Françoise. HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. p. 159-249. PÊCHEUX, Michel. (1983). O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. Entrevistas analisadas A TARDE. Entrevista: gramático defende que reforma ortográica torna escrita mais simples. Salvador/BA, 12 mar. 2009. Entrevista a Içara Bahia. Disponível em: <http://atarde.uol.com.br/cultura/materias/1088381entrevista:-gramatico-defende-que-reforma-ortograica-torna-escritamais-simples>. Acesso em: 02 abr. 2013. ESTADÃO. “Com o acordo, tiramos um peso dos ombros”, diz Evanildo Bechara. São Paulo, 12 nov. 2012. Disponível em: <http://www.estadao. com.br/noticias/arteelazer,com-o-acordo-tiramos-um-peso-dos-ombrosdiz-evanildo-bechara,959220,0.htm>. Acesso em: 15 jun. 2013. FOLHA DE SÃO PAULO. Gramático Evanildo Bechara defende novo acordo ortográico. São Paulo, 29 dez. 2008. Entrevista a Sylvia Colombo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ ilustrada/ult90u484105.shtml>. Acesso em: 2 abr. 2013. O POVO ONLINE. Evanildo Bechara: o mestre das letras. Fortaleza/Ce, 13 dez. 2010. Disponível em: <http://www.opovo.com.br/app/opovo/ paginasazuis/2010/12/13/noticiasjornal paginasazuis,2077172/evanildobechara-o-mestre-das-letras.shtml>. Acesso em: 2 abr. 2013. PHILOLOGUS. Entrevista com Evanildo Bechara. 2005. Entrevista a Vito Manzolillo. Disponível em: <http://www.ilologia.org.br/revista/ artigo/11(31)entrevista.htm>. Acesso em: 5 mar. 2013. PIAUÍ. Senhor norma culta. Piauí, 57. ed., jun. 2011. Entrevista a Clara Becker. Disponível em: <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-57/ questoes-vernaculas/senhor-norma-culta>. Acesso em: 29 mar. 2013. 790 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 765-790, 2017 RUBENS ANDRADE.COM. Entrevista: Evanildo Bechara., 16 nov. 2010. Entrevista a equipe do site Rubens Andrade. Disponível em: <http:// www.rubensandrade.com.br /noticias/trabalho-parlamentar/entrevistaevanildo-bechara/>. Acesso em: 2 fev. 2014. SESC-SP. Evanildo Bechara. 01 fev. 2013. Disponível em: <http:// www.sescsp.org.br/online/artigo/6698_EVANILDO+BECHARA#/ tagcloud=lista>. Acesso em: 4 jan. 2014. VEJA. Em defesa da gramática. São Paulo, p. 21-25. 01 jun. 2011. Entrevista a Roberta de Abreu Lima. Disponível em: <http://veja.abril. com.br/acervodigital/home.aspx?cod= JNJMKQDQQRM>. Acesso em: 24 jan. 2014. ÚLTIMO SEGUNDO. O aluno não vai para a escola para aprender “nós pega o peixe”. São Paulo, 13 mai. 2011. Entrevista a Thais Arbex. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/ o+aluno+nao+vai+para+a+escola+para+aprender+nos+pega+o+peixe/ n1596951472448.html>. Acesso em: 21 ago. 2013. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 Grupo focal e prática de pesquisa em Análise do Discurso: metodologia em perspectiva dialógica Focus groups and research practices in Discourse Analysis: methodology in perspective Poliana Coeli Costa Arantes UERJ polianacoeli@yahoo.com.br Bruno Deusdará UERJ brunodeusdara@gmail.com Resumo: Este texto propõe uma discussão a respeito dos impasses metodológicos com os quais um analista do discurso se confronta ao optar pelo acesso aos “dados” por meio de pesquisa de campo. Serão apresentadas relexões sobre a produção e análise de “dados” em contextos de interação e, inalmente, exempliicações do percurso metodológico em pesquisa que investiga o universo da prática de leitura por meio da realização de grupos focais. Palavras-chave: pesquisa de campo; grupo focal; Análise do Discurso. Abstract: The aim of this paper is to introduce a discussion about the methodological impasses that a discourse analyst confronts accessing the “data” through the methodology of ield research. We will show relections on the production and analysis of “data” in interaction contexts and exempliications of the methodological course in a research that investigates the reading practices using the method of focus groups. Keywords: ield research; focus group; discourse analysis. Recebido em: 21 de julho de 2015. Aprovado em: 07 de março de 2016. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.791-814 792 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 Introdução Neste texto propomos um diálogo com um projeto mais geral de airmação das práticas de pesquisa qualitativa, que vem atravessando, mais recentemente, diferentes áreas das ciências humanas. Ao mesmo tempo, desejamos explicitar as ferramentas de que dispomos como analistas do discurso para esse debate, aliando-as a uma postura ética, orientada por uma valorização do próprio processo de pesquisa em detrimento de uma espécie de fetichismo dos resultados. O referido projeto de airmação das práticas de pesquisa encontra inspirações diversas, respondendo a aspectos de diferentes ordens da conjuntura nacional atual: (i) de ordem econômica, remetendo ao desequilíbrio entre as áreas na destinação dos recursos públicos para o inanciamento de pesquisa; (ii) social, interrogando as forças que atuam na compressão do espaço público e de um deslocamento no papel do intelectual; (iii) cultural, fundado em um preconceito insistente baseado em dicotomias como teoria × prática, objetivo × subjetivo; (iv) institucional, apreensível nas pretensões por demarcação de fronteiras e manutenção de especialismos; (v) tecnológico, cuja aceleração e imediaticidade no acesso à informação parece atribuir aos saberes efeitos de intensa fragmentação e rápida obsolescência; (vi) ilosóica, na airmação de uma perspectiva que compreende a indissolúvel vinculação entre saberes e as relações de poder em sua emergência; (vii) cientíica, nos debates em torno da legitimidade e validade de saberes produzidos em percursos que não pressupõem reiterar imparcialidades ou universalismos. Esse cenário nos indica a necessidade de um intenso debate, movimentando atores em diferentes instâncias, atuando ora em propósitos convergentes, ora em divergências cujas soluções não parecem despontar tão facilmente. Entendemos que nossa inserção no referido debate pode apontar para interrogações relativas às questões gerais, mas também precisa se centrar nas experiências concretas nas quais temos investido como analistas do discurso. Procurando compreender o modo como analistas do discurso podem se inserir nesse debate, parece-nos relevante observar que, de certo modo, essa parece ser uma atitude reiterada desde a emergência desse campo do saber no âmbito dos estudos linguísticos. Isso é o que destacam Mariani e Medeiros (2013), quando ressaltam que a descontinuidade operada pela Análise do Discurso (AD) em relação Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 793 aos estudos linguísticos nos anos 1970 e 1980, no Brasil, produziu um “acontecimento teórico”. Ainda em diálogo com as autoras, desde seus movimentos inaugurais, os estudos do discurso se propõem a considerar que “falar é tomar posição no sócio-histórico, é inscrever-se subjetivamente em redes de sentidos com a ilusão de se estar na origem e no controle do dizer” (Ibid., p. 20). Se desde seu gesto inaugural a AD vem fortalecendo a evidência dos vínculos indissolúveis entre ciência e política, uma contribuição contemporânea que nos parece importante atua no sentido de apontar para a necessária dissolução da crença nos universalismos, indicando um projeto de mudança social implicado na explicitação do potencial de intervenção dos dispositivos de pesquisa. Com efeito, toda pesquisa produz intervenção no cenário em relação ao qual pretende investigar. Não há ato de conhecer que não produza deslocamentos, ainda que em escala ininitesimal. Nosso projeto passa por uma relexão acerca das práticas metodológicas, de modo que seja possível acolher, o que nos acontece durante a pesquisa, tudo aquilo que reairma sua dimensão processual, em detrimento da busca exclusiva por resultados em razão unicamente de objetivos previamente estabelecidos. Um projeto de atuação em AD assim formulado está em consonância com um desejo de contribuir “no sentido de fazer implodirem as visões totalizantes sobre o real, possibilitando repensar os grandes estereótipos com os quais convivemos”, bem como “no sentido de desnaturalizar o que pode efetivamente ser apreendido como efeito discursivo” (ROCHA, 2014, p. 629). Como percurso para as relexões propostas, partiremos de uma breve consideração a respeito das opções metodológicas em pesquisa qualitativa, buscando caracterizar suas especiicidades; em especial, os desaios colocados quando o pesquisador vai a campo. Para evitar uma ênfase excessiva sobre o dito, negligenciando os modos de dizer e as práticas subjacentes aos textos, é preciso reletir sobre o contexto institucional no qual a pesquisa se insere. Com isso, evita-se a ideia de que comparecem à situação apenas pesquisadores e participantes da pesquisa. Essas imagens remetem a apenas uma das espessuras da densidade institucional na qual o pesquisador se insere. 794 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 Este texto propõe uma discussão a respeito dos impasses metodológicos com os quais analistas do discurso se confrontam ao eleger dispositivos diversos de pesquisa de campo como fonte de acesso ao que habitualmente se designa por “dados” a serem submetidos a exame. Centramos nossas relexões no debate acerca do percurso metodológico em pesquisa que investiga o universo da prática de leitura por meio da realização de grupos focais com leitores de dois universos sócio-culturais diferentes, o alemão e o brasileiro1. Como considerações inais, ressaltamos o modo segundo o qual se pode privilegiar uma dinâmica processual das pesquisas em detrimento dos resultados atingidos, considerando a possibilidade de incorporação dos imprevisíveis, das contingências dos processos em detrimento dos resultados. Práticas metodológicas e a airmação da dimensão processual em pesquisa linguística Discutimos a seguir as práticas metodológicas em pesquisa qualitativa, ressaltando a rejeição a roteiros previamente estabelecidos como elemento sem o qual se suporia ser possível questionar sua cientiicidade. Em termos bastante supericiais, pode-se compreender nesse tipo de consideração acerca de uma suposta fragilização de “resultados”, quando não se segue um roteiro metodológico ixo, um diálogo com um projeto foucaultiano de genealogia. A questão que dirige esse projeto é a seguinte: o que se reivindica quando se pretende airmar acerca de um conhecimento que ele seja cientíico? Relacionando-a com o que apresentamos aqui, é adequado interrogar: que legitimidade se deseja conferir aos resultados de pesquisa quando se exige que sejam obtidos por roteiros metodológicos ixos? Sendo assim, situamos essa expectativa de cientificidade subjacente às orientações conferidas às práticas metodológicas, inicialmente buscando referências básicas no campo dos estudos Esta pesquisa foi realizada no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, orientada pelo prof. Dr. Wander Emediato, com período de bolsa de doutorado sanduíche na AlbertLudwigs-Univesität Freiburg (Alemanha), sob a orientação do prof. Dr. Rolf Kailuweit, inanciada pela CAPES e pelo DAAD. 1 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 795 linguísticos. Em seguida, recorremos a elementos que buscam caracterizar o dispositivo do grupo focal para acesso aos “dados” na pesquisa de campo. Por último, explicitamos aspectos que vêm fundamentando as relexões sobre o potencial de intervenção implicado em qualquer pesquisa, não apenas nas de natureza qualitativa. Damos destaque ao privilégio da própria dimensão processual da pesquisa e a legitimidade reivindicada por esse tipo de discussão. O “paradoxo do pesquisador” e a impossibilidade do apagamento de sua inscrição no campo No campo dos estudos linguísticos, parece-nos lícito remontar às experiências empreendidas por W. Labov (2008) como um momento inaugural em que se pretendeu reletir explicitamente sobre a presença do pesquisador no campo. As preocupações inicialmente estabelecidas – ainda que de uma maneira ou de outra talvez permaneçam presentes em certas recomendações que insistem em se oferecer a pesquisadores da área – serão aqui assumidas como remetendo a uma perspectiva que respondia a impasses de sua época. Sua relexão fundamentou-se no que se convencionou chamar de “paradoxo do observador”, cuja síntese seria a seguinte: o projeto de uma pesquisa de campo “deve ser descobrir como as pessoas falam quando não estão sendo sistematicamente observadas – no entanto, só podemos obter tais dados por meio de observação sistemática” (Ibid., p. 244). A delimitação do referido paradoxo emerge como uma advertência para um problema que se deseja superar, nos marcos de uma orientação de pesquisa que privilegia a análise estatística de dados. Há, como se vê, uma pretensão de observação da fala espontânea, que a presença do pesquisador viria, senão inviabilizar, no mínimo, suspender. Sem que se discuta exatamente essa pretensão de acesso à espontaneidade, observando com que projeto de fazer ciência ela dialoga, as orientações pretendem neutralizar os efeitos da presença do pesquisador, em busca de restituir a espontaneidade da fala. Esse projeto de apagamento da inscrição do pesquisador surge como efeito do tipo de saber pretendido, extraído de variáveis estatísticas. No paradoxo, a pretensão de acesso à espontaneidade encontraria sua diiculdade no fato de só poder ser apreensível por meio da sistematicidade da observação. 796 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 As alternativas oferecidas nessa direção seriam, de um lado, desenvolver procedimentos diversos com o intuito de desviar a atenção dos falantes, permitindo, ao menos supostamente, que “a pessoa presuma inconscientemente que, naquele momento, não está sendo entrevistada” (Ibid., p. 245) e, de outro, realizar, depois de entrevistas individuais, sessões em grupo, nas quais os participantes interagiriam entre si. A conclusão a que se chegou com tal procedimento sintetiza-se da seguinte forma: “como resultado, reduziu-se ao mínimo o efeito da observação sistemática” (loc. cit.). Sem dúvida, a pretensão de apagamento da presença do pesquisador no campo é apenas parte de um projeto de fazer ciência com o qual uma perspectiva discursiva tem estabelecido polêmicas importantes. Apenas destacaríamos aqui o fato de tais polêmicas produzirem como efeito a ausência de roteiros metodológicos ixos, por assumir uma perspectiva acerca dos eventos sociais que não pode sustentar a ideia de que haveria uma espontaneidade sem espessura histórica. Essa ausência é eventualmente indicada como um demérito, cujo risco recairia sobre a perda de validade cientíica dos resultados alcançados. Já entre os pesquisadores do campo do discurso, somamo-nos aos que consideram que essa ausência, longe de igurar como um demérito que fragilizaria os resultados, aponta para uma impossibilidade de dissociação entre teoria e prática de pesquisa. Aliás, trata-se de um dos aspectos fundadores do campo dos estudos do discurso a crítica ao descolamento das práticas metodológicas em relação à perspectiva teórica. Já no texto de 1969, Pêcheux, ainda assinando como Paul Henry, apontava nessa direção indicando que toda teoria pressupõe igualmente a (re)invenção de seus instrumentos, “de tal maneira que o ajustamento de um discurso cientíico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria” (HENRY, 1997, p. 17). Na sequência, uma observação de Paul Henry merece destaque: “é isto que faz da atividade cientíica uma prática” (loc. cit.). Observações a partir da perspectiva dialógica De fato, a AD aparece no cenário das ciências humanas questionando a legitimidade da cisão entre reflexão teórica e os encaminhamentos metodológicos, porque recusa os imperativos de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 797 objetividade e neutralidade tão característicos do pensamento moderno. No vasto campo dos estudos do discurso, passaremos a fazer algumas considerações, inspirando-nos em uma orientação dialógica. Uma marca desse debate reside no cuidado que se deve conferir à materialidade verbal para que não seja tomada como “dado”, a que se atribuiria certa autonomia diante do contexto do qual teria sido “extraído”. Essa suposta autonomia produziria o efeito indevido de fazer supor que o tipo de conhecimento proveniente da análise empreendida viria apenas do exame dos enunciados. Dessa forma, a compreensão segundo a qual “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (BAKHTIN, 2011, p. 296) torna-se aqui uma advertência imprescindível, propondo o investimento em formas de restituir, a partir dos enunciados, sua situação de produção. Os desdobramentos da perspectiva de Bakhtin têm sido apropriados recentemente e tendem, por exemplo, a considerar que as interações entre pesquisador e participantes da pesquisa de campo “constituem-se a partir de um amplo processo de negociação, no qual entram em jogo diferentes interesses e expectativas em relação ao Outro” (VARGENS et al., 2008, p. 158). A compreensão de um processo de pesquisa a partir da perspectiva dialógica insere a negociação de sentidos não apenas no plano do que se diz em situação de pesquisa, mas se desdobra na própria densidade da instituição pesquisa. O diálogo e a negociação de sentidos com o campo já se inicia no momento mesmo de elaboração de objetivos, de escolha dos instrumentos de captação de textos, de articulação de referenciais teóricos, uma vez que todas essas etapas “dependem da tentativa de se entender as necessidades dos sujeitos pesquisados e as suas possíveis demandas, embora muitas vezes não sejam concretamente verbalizadas” (Ibid., p. 161). A relexão acerca da pesquisa de campo é desdobramento da perspectiva proposta por Rocha, Sant’Anna e Daher (2004), quando recusam compreender a entrevista como mero instrumento de captação de saberes, mas airmando seu estatuto de “dispositivo de produção/captação de textos, isto é, um dispositivo que permite retomar/condensar várias situações de enunciação ocorridas em momentos anteriores” (ROCHA; SANT’ANNA; DAHER, 2004, p. 175). Segundo uma orientação dialógica de pesquisa, não se pode conceber o momento da análise – o ato de compreender os textos – como a produção de algo que não seja igualmente um texto. “Compreende-se 798 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 sempre sob a forma do processo da palavra, reconstruindo-traduzindo o texto do outro” (AMORIM, 2004, p. 48). Essa tradução do texto do outro é também um texto, pois “ao concordar, discordar, completar, interromper, retirar-se, o coenunciador manifesta-se ativamente”. Enim, “compreender é, assim, posicionar-se” (DEUSDARÁ, 2013, p. 44). Grupo focal: uma breve caracterização contextualizada Passaremos agora a uma breve revisão da literatura a respeito do dispositivo de grupo focal, tecendo, na sequência, comentários críticos. Localizados entre observação de campo e entrevistas individuais, os grupos focais têm sido descritos como envolvendo um “bisbilhotar estruturado”, de acordo com Powney (1988 apud BARBOUR, 2009), pois estão situados, segundo ele, no continuum entre estrutura e espontaneidade. Segundo Barbour (2009), é justamente a capacidade de injetar alguma estrutura que dá aos grupos focais uma vantagem, além dos vários insights possíveis de serem elucidados por meio da interação com os participantes, no momento em que os dados são gerados. Observe-se que o desejo de se aproximar da “espontaneidade” sugere uma espécie de naturalidade para os fenômenos a serem investigados. Deinição e antecedentes históricos A literatura sobre grupos focais evoca alguns debates a respeito de sua deinição e terminologia. Dessa forma, os termos “entrevista de grupo”, “entrevista de grupo focal”, “grupos de discussão” e “discussões de grupo focal” são assumidos como reformulações possíveis e intercambiáveis. A deinição de Kitzinger e Barbour (1999 apud BARBOUR, 2009, p. ) tem obtido maior adesão: “qualquer discussão de grupo pode ser chamada de grupo focal, contanto que o pesquisador esteja ativamente atento e encorajando as interações do grupo”. Observam-se orientações ao pesquisador, para que assuma papel ativo, o qual é compreendido como aquele que estimula a interação, evitando posicionar-se como simples moderador. Esse papel não se resume somente ao momento de aplicação dos grupos focais, como também à elaboração do roteiro de discussão (ou guia de tópicos) e às decisões tomadas com relação à composição do grupo, garantindo que os participantes tenham algo em comum para que a discussão pareça Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 799 apropriada, mas que também apresentem experiências variadas o bastante para que ocorram debates e diferenças de opinião. As técnicas de grupo focal surgiram em meados dos anos 1940 e tinham como objetivo principal testar as reações às propagandas e transmissões de rádio durante a Segunda Guerra Mundial. Paul Lazarsfeld, Robert Merton e demais colegas da Agência de Pesquisa Social Aplicada da Universidade de Colúmbia foram os principais precursores dessa técnica. Após a Segunda Guerra Mundial, métodos de grupos focais foram adotados pela pesquisa com emissão de mensagens, marketing e opinião pública. Na área de marketing, esse método é atualmente bastante difundido, mas diferencia-se de sua aplicação nas Ciências Sociais, pois é comumente utilizado para a geração de dados em relação à percepção do público sobre produtos especíicos ou campanhas neste segmento. Nessa tradição grupos focais são valorizados pela capacidade de fornecer respostas imediatas e, portanto, de antecipar tendências de mercado, em vez de ser por sua capacidade de obter informações detalhadas do tipo geralmente requerido por pesquisadores de serviços de saúde e cientistas sociais. (BARBOUR, 2009, p. 30) No inal do século passado, a técnica de grupos focais ganhou signiicativa importância nas Ciências Sociais, quando passou a ser adaptada ao uso na investigação cientíica como complementar às técnicas quantitativas de análise. Atualmente, a referida técnica é bastante utilizada por pesquisadores da área da Saúde, Psicologia e Ciências Sociais (ARANTES, 2013). Fatores considerados relevantes na preparação e realização dos grupos Considerando o lugar conferido aos resultados encontrados nos grupos, Morgan (1997) propõe dividir os grupos focais em três modalidades: i) grupos autorreferentes (utilizados como fonte principal de dados); ii) grupos focais como técnica complementar (quando a intenção é utilizar o grupo como estudo preliminar na avaliação de programas de intervenção e elaboração de questionários e escalas) e, inalmente, iii) grupo focal como proposta multimétodos qualitativos, 800 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 integrando seus resultados aos da observação participante e da entrevista em profundidade. Sem dúvida, a articulação entre a modalidade utilizada, os objetivos da pesquisa, arcabouço teórico mobilizado e os contextos institucionais investigados não podem deixar de ser explicitados na pesquisa, como forma de valorizar o caráter de antecipação ao diálogo que as escolhas do pesquisador em cada uma das etapas possui, seu potencial dialógico. Descreveremos a seguir relexões sobre o processo de “coleta de dados” em ambientes cujo contexto é o trabalho e sobre a importância da observação dos seguintes aspectos: clareza dos propósitos de pesquisa e definição de seus objetivos, ambiente físico utilizado, recursos empregados para a realização da pesquisa, recrutamento e seleção de participantes, produção do roteiro do grupo e o respeito aos participantes. A primeira reflexão versa sobre a clareza dos propósitos e a definição dos objetivos da pesquisa, elementos considerados fundamentais na condução dos grupos pelo moderador para que possa lidar com situações em que sua interferência na adaptação de determinados processos possa ser bem articulada e estar em consonância com os objetivos, para que se mantenha concentrado na produção de dados relevantes ao contexto que se pretende investigar. Essa deinição de objetivos também indica caminhos para a elaboração de roteiros de discussão e garante que as questões sirvam como instrumentos para a condução do grupo. No entanto, é preciso que o moderador esteja atento às interações emergentes que podem, aparentemente, não se enquadrar aos objetivos e interações anteriormente imaginadas. Essas interações merecem atenção especial, sobretudo porque podem ser signiicadas. O segundo aspecto sugerido – a escolha do ambiente – também deve ser levado em consideração, visto que objetos presentes no ambiente do grupo focal (cartazes, pôsteres, quadros) oferecem sugestões semióticas diversas que podem integrar a interação realizada, produzindo efeitos indesejados como o da intimidação de participantes ou de integração e acolhimento. Se a opção for por um ambiente de trabalho, por exemplo, parte do que talvez se verbalize na situação estabeleça diálogo com essa condição de trabalhador e não apenas com a de participante da pesquisa. Nesses contextos não se pretende buscar a produção de sentidos isenta dessas interferências, mas, sim, como essas construções são deinidas a partir da própria identiicação desses processos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 801 O terceiro fator considerado diz respeito aos recursos monetários para a realização dos grupos focais. Não obstante ser atribuída à técnica de grupos focais a suposta vantagem de ser um método rápido e de baixo custo, Krueger (1993) desconstrói esse “mito” apontando os elementos que podem gerar custos à pesquisa: recrutamento de participantes (telefonemas, anúncios, cartas), local onde a pesquisa será realizada, custos com deslocamento, alimentação, equipamentos eletrônicos, análises, transcrições, entre outros. O quarto item refere-se à escolha dos participantes, já que essa decisão também, de certo modo, representa uma antecipação das interações que emergirão. Essa tarefa de recrutamento pode demandar muito tempo da pesquisa, uma vez que não é tarefa simples encontrar indivíduos que estejam dispostos a participar, voluntariamente, de uma pesquisa não remunerada. Além disso, a segmentação pode constituir tarefa de difícil realização para os grupos, dependendo dos sentidos que se pretende ver entrar em cena. Por esse motivo, a decisão sobre a amostra de participantes dos grupos focais deve ser um fator cuidadosamente observado de acordo com os objetivos da pesquisa e dos posicionamentos com os quais se pretender entrar em contato. A literatura disponível aponta a ausência de regras para a composição dos grupos, mas muitos teóricos concordam que os participantes devam ter, pelo menos, uma característica em comum e que tal característica tem de ser o bastante para permitir uma variação suiciente de opiniões e vivências divergentes. De acordo com a literatura, os grupos também não devem ser nem muito grandes, nem muito pequenos. A pesquisa em questão ateve-se, portanto, a aproximadamente seis participantes por grupo, pois grupos maiores acabaram por limitar a participação de alguns, restringindo as oportunidades de troca de posicionamentos e elaborações, aprofundamento do tema. Além disso, também diicultou os registros. Para se ixar quantos grupos focais conduzir, é comum utilizar-se de três ou quatro grupos e, então, veriicar a quantidade e o nível de informações obtidas para a questão em estudo. No entanto, em nossa prática, percebeu-se que regras não necessitam ser estabelecidas, se as produções de textos forem consideradas suicientes pelo moderador. Essa suiciência depende das pretensões dos pesquisadores e do estudo, mas é admitida quando se julga que já se obteve o conjunto de produções textuais necessário 802 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 para a problematização do objeto e se julga muito provável que novas produções não aparecerão, pois acabam por se tornar repetitivas e circulares (ARANTES, 2013). O quinto aspecto a ser abordado é a produção do roteiro de discussão. Assim, deve-se pensar nos objetivos de cada questão, antecipando o que provavelmente poderá se tornar um texto dentro dos grupos em interação e, desse modo, formular questões mais gerais ou especíicas, dependendo do problema de pesquisa. A ordem em que as questões serão apresentadas ao grupo e os Probes (perguntas que serão utilizadas caso a primeira formulação da questão não seja compreendida ou respondida pelos participantes) também podem interferir na coleta e na produção de textos/dados. Além disso, a literatura alerta para o fato de que o moderador deve planejar um número tal de questões que não ultrapasse o tempo disponível para a realização dos grupos focais. Com relação a esse ponto, consideramos que não será a quantidade de perguntas feitas em interação que determinará a suiciência ou pertinência dos “dados” produzidos. Sendo assim, o moderador precisa estar atento às diversas formas de produção de textos orais que ganham importância nos contextos de ação e de interlocução inter ou intragrupal. A formulação das questões deve estar direcionada à escolha dos participantes para o grupo, uma vez que a escolha vocabular ou o uso de socioletos deve ser explicitada de acordo com as previsões imaginadas de recuperação de sentidos que podem ser ativadas ou não pelos participantes, podendo interferir no acesso às opiniões ou entendimentos diversiicados. O uso de questões abstratas ou ilosóicas deve ser cuidadoso, bem como questões delicadas sobre valores que podem expor os participantes e constrangê-los na discussão, ou sugerir certo grau de hierarquia, o que parece desejar evidenciar a assimetria constitutiva da situação. Em muitos casos, os valores comunitários podem ser diferentes dos valores individuais, e os sujeitos podem não concordar em expor sua opinião, o que exigirá compromisso ético com o encontro. O manuseio cuidadoso dos textos produzidos em situação é um processo bastante delicado, pois deve incluir informações, análises e interpretações sobre o contexto, gravações feitas pelos equipamentos, notas de campo e transcrições. Assim, a qualidade das gravações afeta diretamente a qualidade das transcrições, assim como a falta de notas de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 803 campo afeta as transcrições, pois no momento da atuação do moderador nos grupos focais, este deveria estar concentrado na discussão, e o trabalho de anotação dos textos verbais e não verbais deve ser desenvolvido por um observador que esteja fora da discussão. As informações sobre o contexto auxiliam muito a interpretação dos “dados” e as análises de determinados tipos de comportamento ou interação. Os elementos não verbais podem ser capturados de forma restrita pela ilmagem, pois o posicionamento da câmera não antevê onde e o que focalizar durante as discussões. Finalmente, para abordar o último aspecto supracitado, o respeito aos participantes e ao método interfere na qualidade da pesquisa quando, por exemplo, os participantes não são respeitados ao expor suas opiniões, experiências ou pontos de vista. O método também deve ser respeitado e seus limites devem ser reconhecidos e considerados, pois pode ser apropriado para se obter determinadas informações, mas em outros casos pode demonstrar-se fraco. Encontros de pesquisa em campo: restituição/invenção de diálogos entre a opção pelo grupo focal e uma perspectiva discursiva No item anterior, expusemos relexões sobre o grupo focal como instrumento de pesquisa. Em nossa exposição, é possível notar que recuperamos nossas considerações em fontes da literatura sobre o tema que não o abordam de uma perspectiva discursiva e também não assumem em seu horizonte de relexões uma compreensão dialógica da linguagem. Essas observações preliminares no presente item nos parecem necessárias, antecedendo a articulação que proporemos na sequência. Com elas, gostaríamos de salientar que não há um único método que já possua a resolução para os impasses a serem vivenciados pelo pesquisador no campo. Dito de outro modo, não nos parece ser uma crença factível aquela que pretende aprimorar um determinado método a ponto de almejar a situação em que tal instrumento esteja absolutamente livre de interferências, podendo este então ser apenas aplicado. Conceber o exercício da pesquisa desse modo nos aproxima do que diz Guattari, quando considera os conceitos como “ferramentas, e as teorias o equivalente de caixas contendo-as – sua potência não podendo exceder os serviços prestados em campos delimitados” (GUATTARI, 2007, p. 33). Do mesmo modo, estamos autorizados a considerar que a potência 804 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 de certo instrumento de pesquisa residiria justamente na possibilidade de “prestar serviços” a campos delimitados, favorecer processos de intervenção em circunstâncias concretas de produção de sentido e vida. Dessa constatação da incompletude que estamos atribuindo a todos os métodos, parece ser possível também extrair algo que remeteria a certo grau de liberdade do pesquisador. Se não há método já integralmente aprimorado – a ponto de poder ser tão somente aplicado em diferentes circunstâncias –, isso também signiica assumir que todos os métodos possuem vantagens e desvantagens. Sendo assim, a atenção conferida aos objetivos da pesquisa é fator determinante no direcionamento das escolhas metodológicas e técnicas para a realização de cada estudo em questão (ARANTES, 2013). Diante do imperativo de cientiicidade, Foucault propõe uma insurreição “contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso cientíico organizado no interior de uma sociedade como a nossa” (FOUCAULT, 2002, p. 14). Nesse cenário, sua genealogia seria “uma espécie de empreendimento para desassujeitar os saberes históricos e torná-los livres”. Assim, no lugar de reivindicar um estatuto de cientiicidade, o desejo é tornar esses saberes “capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal, cientíico” (Ibid., p. 15). Com efeito, nesses termos, produzir conhecimento é, em certa medida, participar de uma luta, que pode se atualizar tanto nas reivindicações por hierarquização de saberes, por cumprimento dos rituais institucionalizados no âmbito de uma disciplina de um campo, quanto na liberação dos saberes dessas grades centralizadoras, cujos resultados estão, de algum modo, previstos em suas operações. Airma-se, com isso, uma concepção de fazer teórico como prática, institucionalmente situada, de produção de saber. Aliás, trata-se de um dos aspectos fundadores do campo dos estudos do discurso à crítica aos métodos utilizados pela análise de conteúdo. Já no texto de 1969, Pêcheux apontava que toda teoria pressupõe igualmente a (re)invenção de seus instrumentos, “de tal maneira que o ajustamento de um discurso cientíico a si mesmo consiste, em última instância, na apropriação dos instrumentos pela teoria”. Na sequência, uma observação de Paul Henry merece destaque: “é isto que faz da atividade cientíica uma prática” (HENRY, 1997, p. 17). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 805 A esse respeito, as diferentes avaliações sobre a ausência de roteiros metodológicos ixos coniguram-se como pistas importantes para modos distintos de conceber o exercício investigativo em Ciências Sociais. Articulando essas duas ordens de preocupações, o propósito de nossa relexão é colocar em questão o percurso metodológico como uma invenção2, cuja legitimidade não se sustenta na repetição de roteiros prévios, mas na explicitação dos encaminhamentos adotados e de seu diálogo permanente com os objetivos propostos pelo trabalho de investigação. Para isso, opera-se uma torção do rigor cientíico, que observa a produção de conhecimento como prática relexiva. Nesse sentido, parece-nos que tal prática pode também ser constituída em contextos mais gerais de pesquisas qualitativas, justiicados a seguir. No caso especíico das pesquisas de caráter qualitativo, em que a replicação e a comprovação da aquisição dos dados são mais difíceis, cabe ao pesquisador relatar os objetivos do estudo e os procedimentos utilizados para alcançá-los; mais do que isso, ser autocrítico com relação às escolhas efetuadas e à aplicação de métodos, reconhecendo os limites e diiculdades que as escolhas podem oferecer à pesquisa. Sendo assim, é fundamental que o pesquisador explicite detalhadamente, e com transparência, as diiculdades encontradas e os fatos considerados (ou não considerados) ao longo da aplicação e do desenvolvimento da pesquisa (ARANTES, 2013). Se a perspectiva discursiva emerge no cenário das ciências humanas evidenciando a dimensão política implicada e se destacamos anteriormente nosso distanciamento em relação à designação “dados” atribuída aos materiais submetidos à análise, trata-se de uma opção que nos parece produtiva para a trajetória de relexões que pretendemos empreender, rejeitando a possibilidade de supor qualquer autonomia dos enunciados “coletados” das situações de enunciações das quais emergem e às quais remetem indissoluvelmente. O primeiro deles encontra-se marcado no desejo de relativizar a designação “dados” conferida à materialidade verbal com a qual lidamos em nossas pesquisas como analistas do discurso. Isso se deve ao fato de a referida designação sugerir, entre outros aspectos, certa autonomia dos “dados” no contexto do qual teriam sido “extraídos”, fazendo supor que o tipo de conhecimento proveniente da análise empreendida viria apenas do exame dos enunciados. 2 Termo inspirado na discussão de Foucault sobre Nietzsche (2005). 806 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 Arriscaríamos dizer que, entre os métodos à disposição dos pesquisadores, diversos deles podem apresentar maior ou menor grau de aderência a uma perspectiva dialógica. A explicitação dos critérios utilizados para a opção por um ou por outro instrumento metodológico pode viabilizar análise das implicações do pesquisador com as redes de diálogo em funcionamento no processo de pesquisa. Para isso, é preciso sustentar as dúvidas, as inseguranças, procurando recuperar os valores, as relações, os desejos em jogo, quando se opta por um determinado caminho de pesquisa. Orientação discursiva e a possibilidade de acolhimento das inferências Elaboramos a seguir um diálogo que pretende articular as considerações que expusemos a respeito do instrumento de grupo focal com as discussões acerca de uma concepção discursiva da prática de pesquisa. Para o encontro desses dois eixos que atravessaram este texto, apresentaremos alguns encaminhamentos que articulam delimitação do tema, explicitação dos objetivos, trechos de transcrição das interações realizadas por Arantes (2013). As práticas de análise dos textos obtidos em situação de pesquisa de campo podem proporcionar-nos o acesso a sentidos que ganham consistência no grupo, a partir da observação de produção de consenso ou de embates. Trata-se de elemento interessante para se observar as forças atuantes em situação e em contextos determinados, principalmente as forças emergentes em contextos de trabalho. Apresentaremos alguns aspectos da pesquisa3 realizada pelo método de grupo focal para a investigação exploratória acerca das práticas de leitura de jornais populares em dois contextos sociodiscursivos divergentes: o alemão e o brasileiro. Merece destaque nessa elaboração do tema de pesquisa um conjunto de aspectos que já iguram como elementos que determinarão as escolhas do pesquisador. Considerando que o princípio dialógico de que toda compreensão se realiza necessariamente pela elaboração de outro texto, a explicitação das escolhas e das premissas que a sustentam se conigura como parte importante da prática de pesquisa como integrante de um diálogo e não apenas captação de “dados”. 3 Para acesso ao texto completo, ver Arantes (2013). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 807 Um primeiro aspecto reside na opção por práticas de leitura. À primeira vista, pesquisas sobre as práticas de leitura teriam muito de seu vínculo remetendo à instituição escolar: “leitura é atividade que se realiza na escola”, pode-se pensar. Muito do contato cotidiano que se tem com textos deixa de ser compreendido como leitura. Não é pouco recorrente o lamento acerca da escassa frequência com que jovens e crianças leriam. Ignora-se todo o tipo de contato com textos diversos, privilegiando em tal lamento a leitura de livros – aqueles que, na verdade, os jovens já não leem mais, suporiam. Outro aspecto a ser assumido como importante no conjunto de diálogo em jogo no processo de elaboração da pesquisa remete à proposta de trabalhar com jornais populares. Em certos contextos, entre eles o acadêmico, os referidos periódicos são frequentemente tomados como pouco “coniáveis”. Essa crítica faria supor imediatamente que haveria outros mais coniáveis, o que igualmente não deixará de ser questionado por diversos outros atores sociais, a exemplo das manifestações sociais em que uma dada emissora foi intensamente mencionada como não coniável. Nesse contexto, a pesquisadora registra já saber que a decisão por procurar leitores de jornais populares e de grande tiragem, como Bild Zeitung (Stuttgart, Alemanha) ou o Super Notícia (Belo Horizonte, Brasil), poderia ser recebida de diferentes modos, por ser capaz de antecipar que, em certos contextos, atribui-se conotação pejorativa à sua leitura, o que poderá não ocorrer em outros contextos. A opção por um contexto ou por outro precisa ser explicitada e já antecipa certo tipo de texto a ser produzido. Dessa forma, esses e outros diálogos integram os encaminhamentos de uma pesquisa cujo objetivo principal foi buscar compreender os universos de preferências e gostos dos leitores, o que se conigura como etapa complementar às análises linguístico-discursivas do material linguístico, isto é, jornais do segmento popular como o Bild Zeitung e o jornal Super Notícia. Privilegiaremos aqui a coleta de dados realizada apenas acerca do jornal popular brasileiro. Partindo de uma análise exploratória de determinado tema, os participantes de um grupo focal podem, por exemplo, levar em consideração em suas deliberações fatores que os pesquisadores não haviam antecipado. Esse tipo de aspecto, segundo Barbour (2009, p. 57), “pode salientar a relevância para o pesquisador de explicações alternativas de percepções ou comportamentos – ou mesmo de novos 808 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 paradigmas teóricos, cuja consideração durante a análise pode vir a ser útil”, tais como defesa por posicionamentos relacionados à posição hierárquica que ocupam, prescrições relativas a comportamentos no ambiente de trabalho, entre outros. Uma das vantagens da interação entre os participantes permitida pelo grupo é a aproximação das pessoas que são pouco acessíveis ou potencialmente relutantes em se envolver com entrevistas individuais, pois diicilmente a posição de alguém será deinida sem correlacioná-la com outras posições. Considerando que “a expressão do enunciado nunca pode ser entendida e explicada até o im levando-se em conta apenas o seu conteúdo centrado no objeto e no sentido” (BAKHTIN, 2011, p. 297), argumentamos que os grupos focais podem permitir aos participantes a oportunidade de administrar, simultaneamente, seus posicionamentos individuais e desenvolver uma representação coletiva para o pesquisador mediante a construção de signiicados e de seus impactos na ação. Parte da tarefa do pesquisador-moderador é “problematizar” ou trazer uma perspectiva crítica a respeito das airmações produzidas ou levantadas por outros meios, em vez de simplesmente tomá-las como dadas e se debruçar sobre elas como se fossem conteúdos a serem desvelados. Dessa forma, os grupos focais quase inevitavelmente encorajam essa posição questionadora, oferecendo condições para deslocamentos, para se pensar de forma diferente (ARANTES, 2013). Além disso, a abordagem permite capturar respostas a eventos enquanto estes se desenrolam, exigindo certa atenção aos imprevistos de uma dada situação. Wilkinson (1999) sugere que as discussões de grupos focais podem oferecer uma abertura para os processos que de outro modo permaneceriam ocultos e são difíceis de penetrar, pois durante as seções de grupo focal “um senso coletivo é estabelecido, os signiicados são negociados e as identidades elaboradas pelos processos de interação social entre as pessoas” (WILKINSON, 1999 apud BARBOUR, 2009, p. 49). Em Arantes (2013), considerou-se como elemento comum entre os participantes a condição de leitores assíduos do jornal Super Notícia. Esse elemento também foi levado em consideração na seleção dos participantes para a entrevista com os leitores do Bild Zeitung na Alemanha. Não interessava à pesquisa homogeneizar tanto o grupo, já que seu objetivo era exploratório e não se baseou em aspectos socioculturais e econômicos para análises intergrupais ou cruzamento de variáveis. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 809 Para tanto, interessou à pesquisa a busca por grupos heterogêneos, e, no caso das entrevistas realizadas na Alemanha, aleatórios, considerando os traços comumente assumidos por pesquisas de campo: classe socioeconômica, gênero, escolaridade, estado civil, idade e local de residência. Deinido o elemento comum que os participantes deveriam apresentar como pré-requisito, passou-se a investigar onde tais participantes poderiam ser recrutados para que se obtivesse uma amostra heterogênea de leitores dos jornais considerados, pois, segundo Gatti (2005, p. 18), “ligado aos objetivos, é preciso considerar o que se sabe sobre o conjunto social visado, uma vez que algum traço comum entre os participantes deverá existir, estando isso na base do trabalho com o grupo focal”. Assim, optamos pelo recrutamento de participantes em locais públicos que os leitores frequentariam; por hipótese: feiras livres, pontos de ônibus, parques, praças. A deinição da característica comum entre os participantes dos grupos deve também levar em conta que “os participantes devem ter alguma vivência com o tema a ser discutido, de tal modo que suas experiências possam trazer elementos ancorados em suas experiências cotidianas” (Ibid., p. 5). Por esse motivo escolheram-se, preferencialmente, leitores assíduos dos jornais que teriam vivenciado mais experiências pelo contato com o jornal. Assiduidade foi entendida como frequência de leitura semanal igual ou maior que três dias. Com relação ao número de participantes, a literatura recomenda que os grupos não devem ser nem muito grandes, nem muito pequenos. Ativemo-nos, portanto, à recomendação de seis a dez participantes em cada grupo, pois grupos maiores acabariam por limitar a participação, as oportunidades de troca de ideias e elaborações, o aprofundamento do tema e também os registros, sobretudo porque dispomos de apenas uma hora para a realização do grupo, já que esse intervalo de tempo correspondeu à pausa para o almoço dos funcionários de uma empresa. O número de grupos focais realizados também dependeu do planejamento, dos objetivos da pesquisa, do tempo disponível e, principalmente, da saturação da produção de dados, pois percebemos que, a partir do terceiro grupo focal aplicado, as informações e dados obtidos se repetiam e não havia mais produção de dados novos, assim como observado por Gatti (2005, p. 23): 810 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 Para ixar quantos grupos focais conduzir, é comum utilizar como procedimento a realização de três ou quatro grupos e, então, veriicar a quantidade e o nível de informações obtidas para a questão em estudo. Se as informações forem consideradas suicientes, não se compõem outros grupos. Essa suiciência depende das pretensões dos pesquisadores e do estudo, mas ela é admitida quando se julga que já se obteve o conjunto de ideias necessário para a compreensão do problema e se julga muito provável que novas ideias não aparecerão. Como não pudemos prever que a saturação de dados apareceria já no terceiro grupo focal, foi planejada a realização de quatro grupos inicialmente e depois observada a necessidade de não se realizarem mais aplicações. Antes da realização das discussões nos quatro grupos focais (quatro grupos no Brasil e quatro na Alemanha) estabelecidos, foi criado um Grupo Focal, em cada país, como projeto-piloto, a im de testarmos a efetividade do questionário para a produção de dados em tempo determinado, da dinâmica do grupo, da condução do moderador nas discussões e, por im, testar o funcionamento dos aparelhos técnicos para garantir sua utilização posteriormente, nas análises. Tal processo de interação no Grupo Focal pode ser ilustrado a partir do excerto a seguir, retirado das discussões de grupo realizado com leitores do jornal Super Notícia, no intervalo de almoço (uma hora de duração), em uma empresa na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais: A:[0:15:54] Teve uma notícia há um tempo atrás aí na época que eu estava estudando, em 2008. Que aconteceu que o Super noticiou. Só que era próximo, é, foi uma, um assassinato próximo à escola onde eu estudava, que era o SESI, né?! Só que no Super eles noticiaram que era num bairro próximo ao nosso bairro, em uma outra escola, não o SESI. J: [0:16:16] Ah, entendi! A: [0:16:17] Foi de frente pra o SESI, mas colocaram a escola “Arão Reis” e o bairro onde era a escola [CE: você tá falando daquele do SESI lá?] É. Então acho que foi assim, num sei, acho que foi proposital. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 811 J:[0:16:30] Você acha que foi proposital ?[A: lógico!] Por quê ? A:[0:16:31] Eu acho que a empresa SESI tem, deve ter uma ligação ou então uma força maior de desvincular o nome dela ao [C: SESI é mais indústria] ao acontecido. Então foi, pra gente foi [L: então você achou que eles devem ter feito de propósito pra não expor o nome do SESI?] É. Não expor o nome do SESI que é bem mais forte do que o “Arão Reis” que é uma escola pública. [L: será?] [A: e você acha que alguém vai querer estudar numa escola onde aconteceu um assassinato?] [L: Hum, entendi]. (Trecho de transcrição de grupo focal, 1 de outubro de 2011, Belo Horizonte. ARANTES, 2013) Essa interação entre os participantes permite que possam reconhecer nos outros partes de si mesmos previamente ocultas e, assim, tenham tempo e oportunidade para reletir sobre suas próprias experiências, identiicações e opiniões a partir do confronto de opiniões entre os demais membros do grupo. Trata-se de um processo produtivo viabilizado não por uma relexão posterior sobre os resultados atingidos, mas, sim, por algo viabilizado na própria situação de pesquisa. Atento a isso, o pesquisador pode contribuir para fazer ver um potencial de intervenção latente ao próprio processo de pesquisa, anterior e relativamente independente dos resultados pretendidos pelos objetivos originalmente estabelecidos. O que se ilustra aqui é o fato de uma pesquisa ter seu valor compreendido pelos resultados que oferece após suas análises, mas, também, de outra parte, por viabilizar na própria situação de pesquisa a elaboração de hipóteses, a busca de alianças, a tentativa de convencimento. É preciso que o moderador esteja atento às interações emergentes que podem, aparentemente, não se enquadrar aos objetivos e interações anteriormente imaginados. Essas interações merecem atenção especial, sobretudo porque podem ser signiicadas. Em direção a uma cartograia das práticas de linguagem Neste artigo, centramos nossas relexões na ideia de que a legitimidade do percurso metodológico não se sustenta na repetição de roteiros prévios, mas na explicitação dos encaminhamentos adotados e de seu diálogo permanente com os objetivos propostos pelo trabalho de 812 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 investigação. Para isso, sugerimos considerar a possibilidade de operarse uma torção do rigor cientíico, que passa a observar a produção de conhecimento como prática relexiva. Assim, parece-nos que tal prática pode também ser constituída em contextos mais gerais de pesquisas qualitativas. A orientação reiterada até aqui de explicitação das etapas metodológicas – não apenas como registro dos impasses encontrados, mas fundamentalmente como a preocupação de caracterizar que as interações que ocorrerão em situação de pesquisa constituem apenas uma pequena parte de um diálogo que atravessa todo o percurso da pesquisa – tem nos aproximado de iniciativas no campo da psicologia social, em especial das relexões sobre pesquisa-intervenção (AGUIAR; ROCHA, 2007; ROCHA; AGUIAR, 2003) e o método da cartograia (PASSOS et al., 2009, 2014; PASSOS; KASTRUP, 2013). Essas iniciativas afastam qualquer projeto de imparcialidade do pesquisador. Suas relexões se dirigem justamente no sentido de potencializar as interferências e não tratá-las como algo a ser evitado, “considerando que essa interferência não se constitui em uma diiculdade própria às pesquisas sociais, em uma subjetividade a ser superada ou justiicada no tratamento dos dados” (ROCHA; AGUIAR, 2003, p. 76). Se há um projeto compartilhado, uma espécie de empreendimento comum, no sentido de investir na análise dos processos, parece-nos interessante buscar compreender que entradas especíicas são favorecidas pelas especialidades. Longe de pretender investir na antiquada e estéril “demarcação de território” – lamentavelmente, atitude ainda insistente em alguns atores do universo institucional acadêmico –, indicamos uma contribuição da especialidade em estudos linguísticos. A especialidade do linguista residiria em sua preocupação com o desenvolvimento de práticas de pesquisa que permitem operar com a materialidade verbal, considerando o seguinte aspecto fundante da palavra ao desempenhar um papel de “regulação/construção do vasto leque de relações que se estabelecem entre os homens: relações de dominação, de enfrentamento, de deinição de identidades, de produção de diferentes modos de subjetivação” (ROCHA, 2014, 263). Portanto, todo pesquisador está irremediavelmente implicado no tipo de conhecimento produzido, com os consentimentos que sua prática sugere. “Estar implicado (realizar ou aceitar a análise de minhas próprias implicações) é, ao im de tudo, admitir que eu sou objetivado por aquilo que pretendo objetivar” (AGUIAR; ROCHA, 2007, p. 656). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 813 Referências AGUIAR, K.; ROCHA, M. L. Micropolítica e o exercício da pesquisaintervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia – Ciência e Proissão, v. 27, p. 648-663, 2007. AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2004. ARANTES, P. O jornal popular brasileiro e o Boulevardzeitung alemão: análise do discurso jornalístico em produção e em recepção. 2013. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2013. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. (a partir do francês) Maria Emantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BARBOUR, R. Grupos focais. Porto Alegre: Bookman; Artmed, 2009. DEUSDARÁ, B. Pragmática e discurso: a noção de texto em questão. Desenredo, Passo Fundo, v. 9, n. 2, p. 340-357, 2013. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Trad. e org. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1998. FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento das prisões. 29. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2004a. FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b. FOUCAULT, M. A Verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Machado e Eduardo Morais. Rio de Janeiro: Nau, 2005a. FOUCAULT, M. Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Trad. de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GATTI, B. A. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Líber Livro, 2005. (Pesquisa em Educação, v. 10). 814 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 791-814, 2017 GUATTARI, F. 1985 – Microfísica dos poderes e Micropolítica dos desejos. In: QUEIROZ, A.; CRUZ, N. V. (Org.). Foucault hoje? Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. p. 33-41. HENRY, P. Os fundamentos teóricos da “análise automática do discurso” de Michel Pêcheux (1969). In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al. Campinas: Unicamp, 1997. KRUEGER, R. A. Quality control in focus group research. In: MORGAN, D. L. (Org.). Successful Focus Groups: advancing the state of the art. Newbury Park: Sage, 1993. https://doi.org/10.4135/9781483349008.n5. LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008. MARIANI, B.; MEDEIROS, V. Disciplinarização dos estudos em Análise do Discurso. Gragoatá, Niterói, n. 34, p. 15-25, jan.-jun. 2013. MORGAN, D. L. Focus groups as qualitative research. London: Sage, 1997. https://doi.org/10.4135/9781412984287. PASSOS, E.; KASTRUP, V. Sobre a validação da pesquisa cartográica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, v. 25, n. 2, p. 391-414, maio-ago. 2013. ROCHA, D. Representar e intervir: linguagem, prática discursiva e performatividade. Linguagem em (Dis)curso, v. 14, p. 619-632, 2014. ROCHA, D.; SANT’ANNA, V. L. A.; DAHER, M. C. F. G. A entrevista em situação de pesquisa acadêmica: reflexões numa perspectiva discursiva. Polifonia, Mato Grosso, v. 8, p. 161-180, 2004. WILKINSON, S. How useful are focus groups in feminist research? In: BARBOUR, R. S.; KITZINGER, J. (Ed.). Developing focus group research: politics, theory and practice. London: Sage, 1999. p. 64-78. https://doi.org/10.4135/9781849208857.n5. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 Lapsos de língua e discurso: uma análise do termo nasciturno Language and discourse lapses: an analysis of the word nasciturno Carolina Padilha Fedatto Univás carolinafedatto@yahoo.com.br Resumo: A partir de relexões sobre erro, analogia e formação de palavras nos estudos da linguagem, da consideração do estatuto dos lapsos e atos falhos na psicanálise e das discussões da análise do discurso sobre o papel constitutivo da memória na estruturação da língua, o artigo apresenta uma análise do termo nasciturno, que apareceu como um lapso no contexto das polêmicas sobre o projeto de lei conhecido como Estatuto do Nascituro. Discutem-se as implicações entre a ordem da língua e a ordem do discurso na emergência de lapsos discursivos, isto é, formações lexicais que irrompem socialmente pela articulação da língua com o real da história. Pela consideração dos efeitos da poesia na língua e da exterioridade constitutiva, propõe-se uma análise do acontecimento do termo nasciturno, mostrando a imbricação entre forma linguística, incompletude do sentido e seu atravessamento pelo inconsciente e pela ideologia. Palavras-chave: lapsos de língua; lapsos discursivos; inconsciente e ideologia; língua, discurso e poesia. Abstract: From the relections on error, analogy and word formation, in language studies, the consideration of the establishment of lapses and Freudian slips in psychoanalysis and the discussions taken by discourse analysis about the founding role of memory in the structuring of language, eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.815-839 816 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 this paper presents an analysis of the term nasciturno, which arose as a lapse in the context of the parleys about the Brazilian bill known as Estatuto do Nascituro. We discuss the entailments between the order of language and the order of the discourse in the emergence of discursive lapses, which are nonstandard lexical structures repeated in many contexts and not connected to a sole speaker’s speech. From the pondering that exteriority is constitutive of language and of the effects of poetry in it, we propose an analysis of the event of the term nasciturno, showing the imbrication between linguistic form, meaning incompleteness and its crossing by unconscious and by ideology. Key words: language lapses; discursive lapses; unconscious and ideology; language, discourse and poetry. Recebido em: 31 de março de 2016. Aprovado em: 16 de junho de 2016. 1 Introdução: erro, analogia, lapso e produção de sentido Muito já se discutiu sobre a natureza arbitrária do signo linguístico. Desde o diálogo do Crátilo (PLATÃO, 2010), que problematiza o caráter natural ou convencional da relação entre referentes e nomes, até a teoria saussuriana, cujo primeiro princípio é a airmação da inexistência de qualquer motivação que una, natural ou inevitavelmente, signiicantes a signiicados (SAUSSURE, 1972), a ideia de que as línguas não nomeiam categorias já existentes, mas articulam suas próprias categorias é bastante produtiva para reletirmos sobre as relações entre língua e exterioridade. Mais do que tentar discutir os motivos que levam uma língua a se organizar por meio de determinadas formas – o que seria apenas uma idealização calcada na possibilidade de se descobrir uma causa para o mistério que produz os signos linguísticos –, nosso questionamento recai sobre os efeitos das relações fugidias que alguns signiicantes, inventados em contextos sóciohistóricos especíicos, estabelecem com os signiicados, colocando necessariamente em questão a adequação imaginária entre signos e referentes (cf. BENVENISTE, 1995). Assumir tal postura signiica justamente problematizar essa adequação pela discussão das consequências ideológicas do ato de nomear, isto é, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 817 pelo rastro que as formas signiicantes deixam nos direcionamentos interpretativos possíveis para os referentes que constroem. Se não há relação direta entre linguagem e mundo, a investigação dos fatores que constroem essa relação se pauta, na perspectiva que adotamos, na ideia de que o sentido é relação a, sempre aberta, como diz Canguilhem ao discutir o problema da produção de sentido pela e na linguagem: Falar é signiicar, dar a entender, porque pensar é viver no sentido. O sentido não é relação entre..., ele é relação a... Eis porque ele escapa a qualquer redução que tente inserilo numa coniguração orgânica ou mecânica. As máquinas ditas inteligentes são máquinas de produzir relações entre os dados que lhes são fornecidos, mas não estão em relação ao que o usuário se propõe, a partir das relações que elas engendram para ele. Porque o sentido é relação a, o homem pode brincar com o sentido, desviá-lo, simulálo, mentir, criar armadilhas. Pois, tanto numa ocorrência como na outra, é preciso levar em conta um desvio da relação a, uma entorse do sentido. A relação de sentido na linguagem não é a réplica imaterial de relações físicas entre elementos ou sistemas de elementos no cérebro do locutor. Inversamente, o sentido da palavra proferida na relação a... não é a produção de uma coniguração física no cérebro do interlocutor (CANGUILHEM, G. 1990 [1980], p. 10). Tendo em vista que a signiicação é um processo que coloca elementos, posições e signos em relação produzindo desvios e torções, trataremos neste artigo de um fenômeno corriqueiro, jocoso ou embaraçante, que está na fronteira do lapso com o chiste. São formas linguísticas que escapam sorrateiramente ou insistem no pensamento, hesitantes e demoradas, em busca, talvez, de encontrar a forma – imaginariamente – exata, apropriada, signiicativa para o som de uma palavra ou para um referente de contornos discursivos ainda imprecisos. São trocas, invenções, erros, deslizes de uma língua que se articula à revelia do sujeito e de um sujeito que contorce as formas da língua. Trataremos também da ideologia que se transmite obliquamente nessas articulações e contorções, como: açúcar mais caro ou açúcar mascado no lugar de açúcar mascavo; Zé Néga por Schwarzenegger; guitarra em vez de cigarra; religião por região; homissexual por homossexual; 818 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 cineastra por cineasta e tantos outros deslizamentos de som em direção ao sentido que, por erro ou por riso, emergem da língua cotidianamente. Abordaremos neste texto, particularmente, o que propomos chamar de lapsos discursivos: aqueles cometidos por muitas pessoas, às vezes sistematicamente, como uma tentativa de dar sentido a palavras – e por consequência também a coisas – que parecem mais opacas que outras. Os lapsos discursivos funcionam ainda como uma marca de que os sentidos das palavras não são únicos, justamente porque os referentes se constroem pelo modo como se fala deles, nas disputas e tensões por instituir signiicações. É o caso da emergência do termo nasciturno, nosso objeto especíico de análise, que pode ser estudado sob diversas perspectivas. Dentre elas, as formas mais reconhecidas no vasto campo dos estudos da linguagem são as que constroem os conceitos de erro, lapso e neologia. Nas ciências da linguagem, o fenômeno do erro foi objeto de diversas correntes de investigação: dos enfoques constatativos, descritivos e prescritivos às abordagens que o dotam de um estatuto heurístico em relação à compreensão do funcionamento da linguagem ou de algum fenômeno linguístico especíico. Desde de as primeiras gramáticas latinas, tem-se notícia dos famosos inventários de formas a evitar no uso culto da língua, como o Appendix Probi,1 denotando uma atitude normativa em relação ao aparecimento de formas linguísticas variantes. Também o registro de listas de erros e lapsos de fala, escrita e leitura foi feito com propósitos descritivos, notadamente pelos ilólogos austríacos Meringer e Mayer (1895) em um extenso trabalho sobre os lapsos em língua alemã que serviu de corpus para as teorizações de Freud (1901) no livro Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. No contexto cientíico do século XIX, esses inventários fomentam a comparação entre as formas linguísticas, o que permite conceituar o aparecimento do erro a partir de sua diferenciação em relação a uma forma considerada padrão, correta, possível ou impossível em uma língua dada. Estudados, então, do ponto de vista da história interna da língua e, posteriormente, da variação e da mudança linguística, a partir 1 Considerada a mais importante fonte do latim vulgar, o Appendix Probi é uma obra gramatical de autoria desconhecida. Aparece ao inal de um manuscrito mais extenso e que data aproximadamente do século VIII em forma de lista com 227 pares de palavras consideradas corretas ao lado de suas formas correntes na época, tidas como incorretas. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 819 das investigações histórico-comparativas – que buscavam compreender a sistematicidade dos câmbios linguísticos –, o erro e o lapso passam a ter estatuto explicativo nas ciências da linguagem. Na linha de pensamento dos neogramáticos, por exemplo, as mudanças formais que não podiam ser explicadas pelas regras das chamadas leis fonéticas deram lugar ao aparecimento do conceito de analogia, entendido como “o mecanismo pelo qual as palavras se atraem mutuamente” e na dependência de uma “correspondência parcial de som ou signiicado” (PAUL apud VIVACQUA, 2012, p. 8). Os lapsos podem ser explicados como uma questão de analogia, entendida como uma causa psicológica para mudança linguística baseada em associações de sons e ideias (DUCROT; TODOROV, 2001 [1972], p. 23, 126). Esse modo de compreender as causas da mudança linguística será sustentado também por Saussure ao diferenciar a mudança fonética da criação analógica. Ao descrever o papel da analogia na produção de novas formas, o autor airma que a analogia é, ao mesmo tempo, de ordem psicológica (a percepção de uma proximidade formal pelo falante) e de ordem gramatical, já que “supõe a consciência e a compreensão de uma relação que une as formas entre si”. Mais à frente ele considera ainda que a analogia “não passa de um aspecto do fenômeno da interpretação, uma manifestação da atividade geral que distingue as unidades para utilizá-las em seguida” (SAUSSURE, 1972 [1916], p. 191 e 193). Nas palavras de Mattoso Câmara (2011 [1956], p. 58-59), a analogia é definida como uma forma de mudança “em que há interferência do plano formal da língua no plano fonológico”, sendo que o chamado cruzamento analógico (mudança fonológica de uma forma por interferência de outras) é também conhecido sob o nome de etimologia popular. Nota-se que, em todas essas perspectivas, o tratamento das formas desviantes deixa sempre entrever a implicação entre o papel da língua, da sociedade e do falante na produção de rupturas linguísticas, ainda que sejam focalizados ora um ora outro desses aspectos, dependendo do objeto de estudo que se produz. Do lado da psicanálise, Freud também reconhece a imbricação entre o papel da língua e a atuação do sujeito na emergência do lapso ao mencionar rapidamente, mas de modo bastante produtivo, a “teoria da desigualdade do valor psíquico dos sons” (FREUD, 1976 [1901], p. 81). Isso quer dizer que os sons não têm igual peso simbólico e afetivo 820 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 nas palavras, ou seja, algo exterior ao sistema linguístico também atua na produção de lapsos. Já no campo da morfologia lexical, o lapso pode ser estudado do ponto de vista da formação de palavras por composição (aglutinação e justaposição), cruzamento vocabular (blend lexical) ou formação analógica. Nesse caso, as discussões são de caráter formal e funcional, encontrando explicações tanto em fatores fonológicos motivados cognitivamente (GONÇALVES, 2003) quanto no desempenho da função expressiva da linguagem (SILVA, FURTADO e FERREIRA, 2010) que atuaria na formação, sempre consciente e reconhecida, de palavras como os já padrões aguardente ou beija-lor, ou as inovações portunhol, chafé e bebemorar, mãedrasta. A partir dessas abordagens, o interesse deste artigo é compreender não só as possíveis relações linguísticas que atuam na formação lapso, mas também como língua, inconsciente e ideologia se articulam na materialização de polêmicas, confrontos e conlitos que são de ordem social e ideológica. 2 Algumas consequências teóricas da emergência de lapsos Buscamos colocar em suspenso o entendimento de que o lapso, como acontecimento efêmero, é um erro, um desvio ou uma produção circunstancial ligada a uma diiculdade subjetiva ou social não-intencional, estando, portanto, fora do sistema linguístico. O lapso é muitas vezes tratado como um caso à parte, uma anomalia da língua. Mas, no funcionamento da língua, na enunciação, na produção do discurso, o lapso se produz por analogia com outras formas e também por intervenção da memória discursiva (PÊCHEUX, 1997 [1975]). Por isso, propomos pensá-lo como uma marca de algo da língua (essa forma análoga) que captura a fala do sujeito e, por aí, expõe suas relações com o inconsciente e a ideologia. É a esse papel da língua que se refere AuthierRevuz (1990) ao questionar a primazia do sujeito na produção do sentido: Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso, através da qual a análise pode tentar recuperar os indícios da “pontuação do inconsciente” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 821 Não são, tampouco, as possíveis manifestações do inconsciente na língua que estão no foco desta relexão sobre o lapso. Este trabalho, de importantes consequências para a concepção de língua a qual nos iliamos, a saber, como um sistema relativamente autônomo (HENRY, 1992 [1975]), nos leva a pensar nos efeitos dessa ausência de controle do sujeito sobre as formas que emprega e os sentidos que isso produz nas relações sociais. Se, até então, o erro ou lapso foram estudados nas ciências da linguagem com objetivos prescritivos e descritivos ou por sua possibilidade de explicar algum aspecto da história interna da língua ou de sua sincronia, nossa proposta é, ao lado dessas iniciativas, colocar as relações constitutivas entre língua e ideologia como forma de compreensão do lapso discursivo. Em vez, pois, de discutir o desempenho do sujeito que fala, as condições sociais que o levam a falar assim, a distância entre o uso da língua e o conhecimento sobre ela ou as propriedades formais, cognitivas ou funcionais do lapso, consideraremos três aspectos desse fenômeno que, do ponto de vista discursivo, isto é, das relações entre a língua e sua exterioridade, estão imbricados: 1) o lapso diz algo da ordem do sujeito e do inconsciente em relação à língua; 2) há algo da ordem da língua que trabalha na emergência do lapso e 3) algo da ordem da ideologia se transmite pelo lapso. 2.1 A ordem subjetiva Em a Psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1976 [1901]) chamou atenção para o caráter heurístico das trocas, esquecimentos e descuidos, já que eles tocam o recalcado, o inconsciente, o desejo. O quinto e o sexto capítulos do livro tratam, com abundantes exemplos, dos lapsos de língua, de leitura e escrita, atualizando a impressão de que são como água que escorre por toda parte – lembrando a metáfora de R. Barthes (2000 [1978]) sobre o poder. Justamente por se tratar de um fenômeno da língua, corriqueiro, banal, inevitável, o lapso confunde as fronteiras entre o normal e o patológico: O material (linguístico) comum que usamos ao falar em nossa língua materna parece estar protegido contra o esquecimento, mas sucumbe com frequência bem maior a uma outra perturbação, conhecida como ‘lapso da fala’. Os lapsos de linguagem que observamos nas pessoas normais 822 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 dão a impressão de serem um estágio preliminar das chamadas parafasias que surgem em condições patológicas (FREUD, 1976 [1901], p. 77). Entremeadas com detalhados exemplos, Freud lança suas hipóteses: Tanto nos distúrbios de linguagem mais grosseiros quanto nos mais sutis, que podem ser classiicados sob o título de ‘lapsos de língua’, no meu entender não é a inluência do ‘efeito do contato dos sons’ [como airmam Meringer e Mayer, 1895], mas sim a influência de pensamentos exteriores à fala intencionada que determina a ocorrência do lapso e fornece uma explicação adequada do engano (FREUD, 1976 [1901], p. 108, grifos nossos). Se a explicação da ocorrência do lapso não pode se limitar à descrição das transposições, antecipações, perseverações, contaminações e substituições de som ou sentido, isto é, a fatores estritamente linguísticos, ainda que não sistêmicos, ela também não pode prescindir deles, como assinala Freud: É a concordância [ambiguidade, plasticidade, complacência, maleabilidade] do material linguístico que por si possibilita a determinação dos enganos e que, ao mesmo tempo, estabelece os limites para tal determinação (FREUD, 1976 [1901], p. 268, grifos nossos). Vemos que a argumentação de Freud já encaminha uma discussão sobre como a subjetividade tem a ver com a ordem da língua. O sujeito não escapa completamente da linguagem, tampouco é dominado por ela. Esse é seu espaço de jogo, de dizer, calar e cair. Há algo da ordem da língua que funciona como guia para a possibilidade de produção de novas formas para palavras já estabelecidas. Em suas relexões sobre mudança fonética e inovação analógica, Saussure (1972 [1916], p. 190) precisa que nunca há invenção de formas linguísticas a partir do nada – da criatividade ou vontade do falante –, mas sempre pelo trabalho com elementos fornecidos pela própria língua, seja em estados anteriores ou em outros contextos de utilização ou mesmo no contato com outras línguas. Essas discussões levam à airmação de que as formas linguísticas se impõem mesmo quando inconsciente e ideologia se marcam. Na verdade, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 823 é a língua a forma material dessas duas instâncias que, como categorias teóricas da análise do discurso (PÊCHEUX, 1997 [1975]), instauram um trabalho negativo do qual se pode extrair algumas características comuns: tanto o inconsciente quanto a ideologia funcionam por ausência e dissimulação, não apresentam um conteúdo positivo, recuperável ou contornável e são da ordem de uma estrutura que é determinante para o direcionamento das relações sociais e psíquicas. Além disso, do ponto de vista do imaginário, inconsciente e ideologia parecem poder ter seus efeitos amortizados, sendo driblados por estratégias de conscientização, sensibilização ou aprendizagem – aparência sob a qual reside grande parte da eicácia de suas implicações –, mas, de fato, são estruturasfuncionamentos que se sobrepõem aos efeitos da consciência, vontade, neutralidade ou imparcialidade. Dessa forma, a emergência do lapso é compreendida como um acontecimento dessa imbricação na e pela língua, um lugar de materialização de diferentes tomadas de posição e seus conlitos. 2.2 A ordem da língua Ao lado da noção de valor, tão fundamental para as elaborações da linguística estrutural, Saussure constrói uma igura de descrição do fenômeno linguístico que tem desdobramentos fundamentais para o ponto de vista que desenvolvemos sobre o estatuto do lapso no seio das questões de língua. Saussure (1972 [1916], p. 142-147) compreende a língua como um cruzamento de relações entre dois eixos: um vertical, o associativo, e outro horizontal, o sintagmático. Roman Jakobson (1974 [1963]), por sua vez, em um estudo sobre as afasias, propõe que o eixo vertical seja tomado como o campo da metáfora e o eixo horizontal como o da metonímia. A metáfora é o jogo de possibilidades do eixo paradigmático, é ausência, similitude, virtualidade e memória. Deslize, assonância, ressonância, substituição, podemos também dizer. Já a metonímia existe in praesentia no encadeamento por contiguidade do eixo sintagmático. As relações associativas (paradigmáticas, metafóricas) podem ser atualizadas com base na substituição de elementos morfológicos (radicais e aixos), de relações de signiicação (sinonímia e antonímia) ou no puro deslize signiicante (homonímia, lapso, chiste, jogos de palavras), como apontado por Saussure no próprio Curso (p. 145-146). Do ponto de vista discursivo, a instabilidade das relações in absentia dá lugar ao inesperado, à mudança 824 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 de sentido, ao movimento, pois elas supõem que a linguagem acontece através de sujeitos falantes falados pela língua e pela intervenção da história e do acaso na enunciação. É esse modo de funcionamento da língua que sustenta a airmação de Maia (2006) sobre o lapso de escrita: O próprio lapso de escrita vem apontar para a inexistência do literal, abrindo espaço à dimensão metafórica da linguagem – única dimensão possível, aliás. Nessa dimensão se aloca o sujeito em sua relação de interpretação da história e do signiicante, viabilizando operar no eixo da seleção ou paradigmático – metáfora – e da combinação ou sintagmático – metonímia –, num movimento em que um signiicante estará sempre remetendo-se [sic] a outro (MAIA, 2006, p. 39). No campo dos estudos da linguagem, podemos tratar o problema da metáfora (das trocas, lapsos, mudanças) ao mesmo tempo como testemunho de regularidade (não há linguagem sem metáfora) e ruptura (não há sentido que não possa se tornar outro). Estamos, pois, diante da antiga querela entre analogistas e anomalistas, uma das controvérsias que, transformadas e deslocadas, sempre izeram parte da história da linguística (PÊCHEUX; GADET, 2004 [1981], p. 29-33). Ao longo da história da teorização sobre a língua, essas duas posições dividiram o centro de um debate em que a questão do real da língua – formulada no inal dos anos 70 por J-C. Milner (1978/2012) considerando a distinção lacaniana entre real/simbólico/imaginário – é encarada pela disjunção entre “uma ordem própria à língua, imanente à estrutura de seus efeitos, e uma ordem exterior, que remete a uma dominação a conservar, a restabelecer ou a inverter” (PÊCHEUX; GADET, 2004 [1981], p. 30). Para aqueles que assumem a posição de uma primazia da ordem própria da língua, o real reside naquilo que, na língua, faz um, estabelecendo os limites entre o sistema (autônomo) e seu exterior (histórico, social, situacional, contingente). É pela negação do impossível (“de dizer, de não dizer de uma determinada maneira”, de dizer o nonsens) que a relexão gramatical autônoma se institui. Já os adeptos de que o sistema é fruto da ordem social que o constituiu, não desejam sobrepor a ordem natural à obrigação social, nem a ordem linguística à coação política. Segundo Pêcheux e Gadet, para estes a ordem da língua nada mais é do que a ordem política da língua, visão que cria uma suspeita Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 825 constante sobre tudo o que arrisca questionar a construção artiicial da unidade da língua. Dessa última postura derivam, por exemplo, as atitudes puristas contra o estrangeiro, a impossibilidade da tradução ou o fascínio por uma conjuntura – mítica – natural e essencialmente justa/correta que romperia com as coerções sociais sobre a língua. Nosso posicionamento é de que a ideologia atua sobre as formas da língua, mas que, por sua própria natureza, a língua fornece elementos que marcam/denunciam/mostram essa atuação do poder e da ideologia. Não há como escapar do poder, mas isso não signiica fatalismo ou impossibilidade de mexida nas redes sóciohistóricas que constituem as línguas. Certamente o sistema linguístico impõe limites estruturais ao dizer, assim como a exterioridade faz sentir seus efeitos sobre a língua. Mas nenhuma dessas instâncias pode ser considerada isoladamente ou como produzindo efeitos diretos sobre o sentido. A posição teórica que assumimos compreende que a história regula, sempre de modo contraditório, as fronteiras entre o já dito, o não-dito, o indizível e a dizer, daí a relação necessária do sistema linguístico com a exterioridade. Mas, consequente com a complexidade dessa relação, Paul Henry (1992 [1975], p. 147) diz que há “alguma coisa da linguagem que escapa à determinação das condições de produção”, algo que é relativamente autônomo em relação a essa determinação. Não podemos, pois, esquecer que a possibilidade do lapso está inscrita no interior do próprio sistema por meio do deslize da cadeia signiicante sob o signiicado, não havendo separação absoluta entre o formal e o contingente. Eis o porquê da luta pelo primado da metáfora sobre o sentido: A metáfora não é localizável, [assim] como a poesia: como para a poesia pode-se defender a ideia de que ela não existe, se está em toda parte da produção do sentido. Ela faz com que as evidências se movam do “mundo normal”: um efeito revolucionário. Neste sentido, a metáfora também merece que se lute por ela (PÊCHEUX; GADET, 2004 [1981], p. 160). Segundo Gadet e Pêcheux, o princípio saussuriano de valor autoriza a interpretação de tudo o que se passa no eixo vertical (analogias, lapsos, erros, deslizes, poesia) como “literalmente coextensivo” à língua, “do mesmo modo que o equívoco: talvez não haja poesia”. A força em airmar que a poesia não existiria é proporcional à desestabilização 826 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 provocada pelo olhar discursivo para as relações entre língua e exterioridade: aquilo que afeta a língua não pode ser localizável apenas em alguns elementos linguísticos, está na língua toda, na própria possibilidade de que a linguagem exista, na natureza de sua materialidade e de seu funcionamento. É o deslizamento de signiicações que comanda a possibilidade de fazer sentido e o sentido não tem uma origem assinalável. Por isso, é importante considerar que as formas linguísticas são materialmente contraditórias em relação aos sentidos históricos que elas acumulam, tangenciam, dispersam, mobilizam. 2.3 A ordem da ideologia Ao considerarmos que as propriedades da poesia (entre elas a metáfora, o equívoco, a icção, o deslize e, porque não, o lapso) não são alheias ao funcionamento ordinário da linguagem, enfocamos as relações entre os lugares que o sentido pode ocupar em vez de estabelecer um ou outro sentido, uma interpretação adequada da forma ou do fato linguístico. Esses lugares ainda não signiicados, essa combinação ainda não-dita de sons, apontam para a presença da historicidade na língua. Ainda nas palavras de Gadet e Pêcheux, o equívoco – esse lugar mal ocupado – é o ponto no qual o impossível linguístico se alia à contradição histórica: A irrupção do equívoco afeta o real da língua, o que se manifesta pelo fato de que todo processo revolucionário atinge também o espaço da língua: 1789, 1870, 1917... Essas datas históricas correspondem na linguagem a momentos privilegiados: a instauração do francês nacional, a mudança da forma de métrica francesa tradicional introduzida por Rimbaud, e o surgimento das vanguardas literárias, poéticas e linguísticas, no campo do outubro russo. Toda desordem social é acompanhada de uma espécie de ‘dispersão anagramática’ (Baudrillard), que constitui um emprego espontâneo das leis linguísticas do valor: as massas ‘tomam a palavra’, e uma profusão de neologismos e transcategorizações sintáticas induzem na língua uma gigantesca mexida, comparável, em menor proporção, àquela que os poetas realizam (PÊCHEUX; GADET, 2004 [1981], p. 64). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 827 Podemos, então, considerar que o lapso é capaz de movimentar a língua e expor as tensões políticas que estão em jogo na enunciação, já que não há lugar ixo para as ideias e que há intensa ainidade entre os campos da língua e da história – pelo fato de a história se fazer de linguagem e de a língua só adquirir sentido no curso histórico. Embora a relação de um signo com o mundo possa ser considerada arbitrária (BENVENISTE, 1995 [1939]), a partir do momento em que essa relação se estabelece, ela deixa marcas no elo dos signiicados com os signiicantes; uma vez existente, não pode ser esquecida sem deixar pistas. Na concepção discursiva que assumimos, a ideologia não é vista como ocultamento, mas como direcionamento de sentidos. Ela não é tampouco um conteúdo que se possa apreender ou deinir. A ideologia é um modo de funcionamento (PÊCHEUX, 1997 [1975]), ela estrutura as relações entre a forma linguística e sua exterioridade constitutiva. Não se pode, pois, vislumbrar a língua funcionando fora da ideologia, apartada das tomadas de posição que nela se materializam. A língua sempre produz sentidos. É por isso que este trabalho trata a emergência da palavra nasciturno como um lapso da ordem do discursivo e não como um erro – o que anularia a possibilidade de signiicação de sua materialidade – ou como neologismo ou um caso de formação analógica – o que a circunscreveria ao campo da morfologia minimizando seus sentidos e efeitos no contexto sóciohistórico em que se deu. 3 Emergência histórica de um lapso: nasciturno Trataremos inicialmente da palavra nascituro em um contexto especíico: meados de 2013, quando tramitava no Congresso Nacional o projeto de lei 478/2007, que classiica como nascituro (aquele que vai nascer, segundo a deinição dicionarizada) qualquer óvulo humano fecundado por um espermatozoide, mesmo que o processo tenha sido realizado in vitro e o zigoto não tenha sido inseminado. Ao longo do texto legislativo, as nomeações nascituro, bebê, ser humano e embrião oscilam sem precisão ou argumentação que sustente essas diferentes escolhas. Comecemos então pela análise dessa palavra, que efetivamente aparece no projeto de lei, em seu estado de dicionário: 828 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 Nascituro adj. s.m. (a1881 cf. ca) 1 que ou aquele que vai nascer 2 jur diz-se de ou o ser humano já concebido, cujo nascimento é dado como certo etim lat. Nasciturus,a,um ‘que deve nascer’ (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1997). Nasciturus (que há de nascer) é, em latim, um particípio futuro ativo, forma que em português deixou apenas vestígios em adjetivos e substantivos como duradouro (que há de durar), imorredouro (que há de morrer), vindouro (que há de vir) (RIBEIRO, 2007). Há poucas palavras em português com a mesma formação, elas são em geral bastante eruditas, como venturo (o que há de vir), outras bem corriqueiras como futuro (o que há de ser). Já obscuro e escuro, para trazer elementos lexicais com a mesma sonoridade, são adjetivos com a mesma terminação em -uro, de formação diferente evidentemente, mas que, no caso em estudo, não deixam de produzir efeitos em termos de som e memória associativa. Além disso, o aixo -uro é, em português, um elemento compositivo pospositivo, do grego ourá, âs ‘cauda, rabo’, que produziu palavras ligadas à nomenclatura naturalista do séc. XIX em diante, como paguro (uma espécie de crustáceo), poduro (animal que se desloca com a cauda sob o corpo), melanuro (animal de cauda negra) (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2811), fatos linguísticos que apontam para o imaginário de erudição e o hermetismo da palavra nascituro. Em termos de signiicação, pela forma verbal de que deriva, essa palavra se reveste de motivos morais que remetem à airmação de que o óvulo fecundado vai nascer, de que é um ser vivo, um ser humano, um bebê. Já o lapso nasciturno tem uma história diferente. Nossa hipótese é que a emergência dessa forma materializa o conlito de sentidos instaurado pelo projeto de lei sobre a estatuto do feto tendo a forma linguística e as relações entre signiicantes como alicerce. Esse lapso surge coletivamente, ou seja, tem uma emergência social, em diversos textos que circulam nas mídias digitais e também em comentários, fóruns de discussão e documentos atribuídos a um autor especíico. Em pesquisa realizada em março de 2016 no site de buscas Google, a entrada “nasciturno” retornou aproximadamente 7190 resultados apesar de o mecanismo de busca assinalar um possível erro de digitação ao sugerir “Você quis dizer: nascituro”. Desses mais de 7000 documentos eletrônicos, muitos são textos repetidos e redivulgados, numa prática comum do meio virtual. Pelo caráter qualitativo e indiciário deste estudo, não trataremos de todas essas ocorrências ou do conjunto da Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 829 amostra. Nossa proposta é reletir sobre o imaginário social e linguístico que sustenta esse lapso discursivo. Nesse universo de atestações de uso do lapso nasciturno, alguns fatos merecem atenção. O primeiro é justamente a ocorrência que encabeça os resultados da busca na ocasião em que a lançamos: o verbete nasciturno aparece como resultado inexistente no Dicionário inFormal, uma plataforma colaborativa que pretende, de acordo com o site, “documentar a evolução do português”. A inexistência da redação de um verbete, mas a existência da entrada desse verbete, aponta para um funcionamento especíico do texto eletrônico: há buscas automáticas que localizam palavras em uso como sendo verbetes em potencial. Mas o fato de não haver uma deinição publicada para essa entrada assinala uma espécie de censura em deinir um vocábulo que é, na verdade, um erro ou que não corresponde à forma padrão. A ausência de deinição para nasciturno não deixa de funcionar como um julgamento de valor sobre a inexistência da palavra. No imaginário das línguas há sempre palavras que não existem! Ou que existem, mas não deveriam... O segundo fato que comentaremos nesse conjunto de ocorrências é uma chamada de um site de venda de livros que anuncia a obra “O nascituro no direito romano”, editada em 2005, como “O nasciturno no direito romano” num lapso de escrita que, provavelmente, antecede as discussões sobre o Estatuto de Nascituro do ano de 2013. Também nessa direção, a de um lapso que ultrapassa o contexto da polêmica sobre o Estatuto no Brasil, está uma conversa entre falantes de português europeu sobre como preencher os formulários da seguridade social: A. Nasciturnos? olá meninas! Só vos queria fazer uma perguntinha, alguem me sabe dizer o que é um nasciturno? Tenho andado com esta duvida desde que iz a simulação do abono pré-natal no site da seg-social. Eu primeiro presumi que fossem os ilhos, mas ao escrever um 0 disse que não aceitava. Será que isso é as pessoas que moram em casa? É que ao colocar o rendimento do agregado familiar, se puser 1 nasciturno, o valor é baixo, se puser 2 e por ai fora o valor é mais alto. Alguem me ajuda?????? B. Nasciturno ou nascituro? nascituro: * adjectivo: que há-de nascer; * substantivo masculino: ser humano concebido, mas ainda não nascido; 830 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 Eu tb já iz a simulação do abono pré-natal e a verdade é k s for só 1 bebé k vai nascer, o abono k nos dão é uma miséria...S forem gémeos recebes mais, mas n recebes o dobro é essa a ideia!! (Fórum De mãe para mãe, 27 mar. 2008) Esses episódios mostram que o lapso nasciturno é rejeitado pela imagem que se faz da correção na/da língua, mas é absolutamente possível tanto sistemicamente quanto historicamente, aparecendo em diferentes contextos, pela opacidade da forma nascit-uro que desliza facilmente para nascit-urno. A “imagem oral perambulante” (para retomar a bela expressão freudiana, 1976 [1901], p. 82) que assalta as discussões sobre o Estatuto do Nascituro é o elemento compositivo -urno, que, nos termos da história interna da língua, representa simplesmente um alongamento do suixo verbal –no: soturno, noturno, taciturno são as associações mais patentes. Essas são analogias que colocam em cena o traço obscuro, enigmático e mudo do objeto em discussão pelo estatuto. Pensar sobre a ancoragem linguístico-histórica dessa analogia é reletir sobre o papel do discurso na produção do sentido. Signiica também reconhecer que há um trabalho do sujeito e da sociedade na constituição da língua, sabendo-se que não se trata de uma questão de vontade, já que a matéria linguística disponibiliza elementos passíveis de associação e, nesse mesmo gesto, limita o que pode ou não ser relacionado. E como não é possível prever quais formas da língua serão alvo de analogia, podemos avançar a hipótese, no caso de nasciturno, de que algo de ordem político-ideológica coloca o suixo –urno na condição de formar a palavra-lapso em questão. Analisando os textos em que esse lapso aparece, notamos que a necessidade de deinir e especiicar o sentido, tanto da palavra quanto da coisa, é um movimento enunciativo recorrente. Esses traços de iniciação que buscam dar sentido ao termo polêmico são marcados ora por enunciados com verbos existenciais, estativos e factivos (como ter, ser, impor): O Código Civil brasileiro estabelece que o nasciturno tem seus direitos assegurados pela lei desde sua concepção [...]. O Estatuto do Nasciturno impõe a violação da integridade psicofísica da mulher, em detrimento do feto e do embrião, desprezando a ordem constitucional. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 831 Estatuto do nasciturno” é mais uma violência contra a mulher [...]. ora por descrições deinidas, com demonstrativos, orações encaixadas e adjetivos, como em: Isso porque na última quarta (5), esse projeto de lei, conhecido popularmente como Estatuto do Nasciturno, foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara (clique aqui para ler o projeto) [...]. Neste contexto é inaceitável e deve ser profundamente repudiada a proposição do chamado Estatuto do Nasciturno, que tramita no Congresso Nacional. Trata-se de uma iniciativa obscurantista que propõe, entre outras barbaridades, [...]. Mas me espanta muito que uma mulher tenha que ser desconsiderada enquanto ser humano dotada de direitos para que um questionável nasciturno que ninguém sabe como e se existe tenha os seus. Quantas contas hão de ser cobradas por esses nasciturnos? E quem vai pagá-las? Alguém se importa que os direitos que são pseudo defendidos para os tais nasciturnos são os mesmos que são negados diariamente para crianças que existem e estão vivas no nosso país, ou para as mulheres, ou para os homossexuais, ou para os negros, ou para os pobres? O contexto textual-discursivo de aparecimento do lapso nasciturno sinaliza que a palavra em questão não tem uma signiicação transparente, que seu sentido é motivo de disputa, de diferença, de polêmica. Os diversos gestos de definição, adjetivação e precisão demonstram estranhamento, distância e dúvida sobre seu sentido. Charles Hockett (1973 [1967], p. 114) observa que “um lapso é, em certo sentido, uma indicação de indecisão: o falante está operando sob duas (ou mais) tendências conlituosas e não as resolve completamente”. A dimensão de conlito introduzida pelo lapso é clara. No entanto, a análise desse caso nos mostra que ele não é apenas da ordem da singularidade do indivíduo, mas da singularidade do modo como a sociedade lida com uma questão complexa como a de decidir se um zigoto é ou não um bebê e em quais 832 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 casos. Essa disputa pelo sentido é materializada na própria língua, já que o sistema linguístico do português oferece o suixo –urno, elemento formal mais corriqueiro, desencadeando esse lapso que parece buscar um sentido para a opacidade da palavra em questão. Na pena do sujeito, a língua materializa a tensão entre a signiicação da palavra evocada na legislação (nascituro: aquele que vai nascer) e a erudição da forma latina de que deriva o substantivo usado na lei ou a opacidade do sentido do suixo –uro (tendo como analogia possível a forma -urno). O lapso nasciturno pode, nesse sentido, ser considerado como um acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 2012 [1983]), isto é, como um fato da língua na história que produz ruptura e faz emergir um questionamento sobre a aparente transparência de uma palavra que se apresenta de modo meramente descritivo, como ‘nascituro’. Podemos dizer, assim, que o lapso nasciturno desloca, transforma, mexe na rede de iliações históricas (memória discursiva) que afetam os processos de constituição dos sentidos. O aparecimento desse lapso indica que nasciturno não é necessariamente alguém que vai nascer, mas também alguém que não se sabe se existe ou que talvez não nasça, justamente pela obscuridade do traço analógico que forma o lapso, no caso da associação com soturno, noturno, taciturno, ou pelo caráter intervalar, temporário de uma analogia com turno, por exemplo. O lapso nasciturno aponta para uma intervenção do sentido no signiicante, pois expõe conlitos de ordem sóciohistórica na própria materialidade da palavra, numa tentativa de signiicar e, ao mesmo tempo, opaciicar um signiicante obscuro no transbordamento de seus sentidos. 4 Considerações inais No percurso de análise do termo nasciturno, procuramos mostrar os resultados de uma perspectiva que considera a exterioridade como constitutiva, tanto da construção como da significação, das formas linguísticas. Abordagens que focalizam aspectos formais, funcionais e cognitivos da emergência de novas formações lexicais produzem explicações diacrônicas e/ou sincrônicas sobre o sistema da língua ou vislumbram conhecimentos sobre a linguagem humana, entendida em termos de faculdade ou natureza. Já uma análise que não dissocia língua, sujeito e ideologia permite compreender como os sentidos se produzem, em movimentos de acomodação e tensão, na e pela materialidade da língua. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 833 Considerando ainda o papel da ciência na estabilização de imagens sobre os fenômenos linguísticos, podemos reletir sobre as consequências de conceitos e noções vindos de diferentes campos disciplinares, como erro, lapso, analogia e neologia, nas concepções que se tem a respeito de formações lexicais que rompem com formas já consolidadas. Para o senso comum, nasciturno pode ser apenas um erro atribuído a fatores técnicos, como reprodução mecânica de textos na internet, falha tipográica ou gralha. Em perspectivas mais tradicionais e normativas, pode ser entendido também como incompreensão ou ignorância por parte do falante, que não teria erudição suiciente sobre a palavra usada na legislação. Por outro lado, a linguística, ao tratar o fenômeno por meio da noção de analogia, traz como parte da explicação a possibilidade de intervenção de aspectos exteriores ao sistema linguístico, como a percepção, pelo falante, de semelhanças e aproximações entre formas, usos e funções. Desse modo, ainda que não aborde qualquer relação das inovações com questões de ordem sóciohistórica, abra-se o campo para investigações que ultrapassam o sistema linguístico fechado. Nossa compreensão dos lapsos discursivos apresenta também um contraponto a concepções que tratam dos processos de formação de palavras ou da neologia de um ponto de vista estritamente imanentista, oferecendo explicações sobre a interação e hierarquização entre elementos de diferentes níveis de análise linguística (fonológico, morfológico, prosódico etc.). Já em relação à psicanálise, as noções de lapso e ato falho são desterritorializadas para se reletir sobre o papel do inconsciente na produção linguística, mostrando que o sujeito é capturado não só pela língua, mas também por associações que escapam a sua vontade e ao seu desejo de domínio sobre o sentido. Seguindo essas brechas teóricas, as relexões desenvolvidas pela análise do discurso permitem compreender o termo nasciturno como um lapso discursivo que concentra forças de ordem linguística, subjetiva e ideológica. Isso signiica não hierarquizar nenhum desses aspectos e não isolar um acontecimento discursivo como se fosse um fenômeno observável objetivamente. O estudo apresentado mostra que o termo nasciturno é uma construção tensa que, partindo da alternância entre os segmentos -uro e -urno permite, no contexto das discussões sobre o Estatuto do Nascituro, associações semânticas com noturno, soturno, taciturno, turno. Essas relações, possíveis no domínio da memória, da 834 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 metáfora, da substituição, apontam para a instabilidade e para a indecisão sobre o sentido da palavra e mesmo do referente que ela busca construir. De modo mais abrangente, este trabalho projeta, ainal, uma discussão sobre o trabalho de imbricação entre língua, sujeito e ideologia na emergência de rupturas de sentido, vislumbrando análises discursivas de fenômenos materialmente semelhantes. Por isso, propomos a conceituação da noção de lapso discursivo entendido como uma ruptura na formulação, como a emergência de uma forma nova que traz também outros sentidos e expõe as contradições entre as formas linguísticas e as formações sóciohistóricas, sempre considerando o atravessamento do sujeito e do sentido pelo inconsciente e pela ideologia. Referências AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas: Unicamp, n. 19, p. 25-52, 1990. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2000 [1987]. BENVENISTE, Émile. Natureza do signo linguístico. In: _____. Problemas de linguística geral I. Campinas: Ed. Unicamp, 1995 [1939]. CANGUILHEM, Georges. O cérebro e o pensamento. In: Georges Canguilhem – Philosophe, historien des sciences. Paris: Albin Michel, 1990. Tradução de Sandra Yedid e Monah Winograd. Disponível em: <https://docente.ifrn.edu.br/avelinolima/disciplinas/ilosoia-da-mente/ocerebro-e-o-pensamento-georges-canguilhem>. Acesso em: mar. 2016. DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2001 [1972]. FREUD, Sigmund. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1901]. GONÇALVES, Carlos Alexandre. Blends lexicais em português: nãoconcatenatividade e correspondência. Veredas, Juiz de Fora, v. 7, n. 1- 2, p. 149-176. jan.-dez. 2003. HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito, discurso. Trad. Maria Fausta Pereira de Castro. Campinas: Unicamp, 1992 [1975]. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 835 HOCKETT, Charles Francis. Where the tongue slips, there slip I. In: FROMKIN, V. (Ed.). Speech errors as linguistic evidence. The Hague: Mouton, 1973. p. 93-119. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ILIOVITZ, Erica R. A prosódia e os lapsos de língua. Anais do IV Encontro do Círculo de Estudos Linguísticos do Sul, 4, 2000, Curitiba: Mídia Curitibana, 2001. Disponível em: <http://www.celsul.org.br/ Encontros/04/artigos/028.htm>. Acesso em: 15 dez. 2014. JAKOBSON, Roman. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia. In: _____. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1974 [1963]. p. 34-62. LACAN, Jacques. Écrits I. Paris : Seuil, 1999 [1966]. MAIA, Maria Claudia G. O lapso de escrita como refúgio do sujeito. In: MARIANI, Bethania (Org.). A escrita e os escritos: relexões em análise do discurso e psicanálise. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 31-44. MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2011 [1956]. MERINGER, Rudolf; MAYER, Carl. Versprechen und Verlesen: Eine psychologisch-linguistische Studie. Amsterdam: John Benjamins, 1978 [1895]. https://doi.org/10.1075/cipl.2. MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. Paulo Sérgio de Souza Júnior. Campinas: Ed. Unicamp, 2012 [1978]. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2012 [1983]. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à airmação do óbvio. Trad. Eni Orlandi e outros. Campinas: Ed. da Unicamp, 1997 [1975]. PÊCHEUX, Michel; GADET, Françoise. A língua inatingível: o discurso na história da linguística. Trad. Bethania Mariani. Campinas: Pontes, 2004 [1981]. 836 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 PLATÃO. Crátilo ou sobre a correção dos nomes. In: SOUZA, Luciano de. Platão: Crátilo – Estudo e tradução. 2010. Dissertação (Mestrado) USP, 2010. p. 83-144. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/>. Acesso em: fev. 2016. RIBEIRO, Márcio Luiz M. Formas nominais portuguesas e conexões com o latim. Cadernos do Congresso Nacional de Linguística e Filologia, v. XI, n. 2 – Livro dos Minicursos, 2007. Disponível em: < http://www. ilologia.org.br/xicnlf/2/05.htm>. Acesso em: mar. 2016. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1972 [1916]. SILVA, Hayla Thami da; FURTADO, Lilian Ribeiro; FERREIRA, Rosângela Gomes. De pretinhosidade a namorido: opacidade e transparência nos cruzamentos vocabulares do português do Brasil. Anais do IX Encontro do CELSUL, Palhoça: Unisul, out. 2010. Disponível em: <http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/Hayla%20Silva.pdf>. Acesso em: 29 fev. 2016. VIVACQUA, Maria Victória Guinle. Lalangue, erro e lapso: o falante entre a língua materna e as línguas outras. 2012. Tese (Doutorado em Linguística) - [Orientação: Maria Fausta Cajahyba Pereira de Castro]. Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2012. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 837 Anexos 1 Corpus coletado “Estatuto do Nasciturno: entenda os pontos polêmicos do projeto de lei”, por Graziela Salomão, Revista Marie Claire, 07 jun. 2013. Disponível em: <http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-doMundo/noticia/2013/06/estatuto-do-nasciturno-entenda-os-pontospolemicos-do-projeto-de-lei.html>. Acesso em: jan. 2015. “IBDFAM opina pela rejeição do Estatuto do Nasciturno”, Instituto Brasileiro de Direito de Família, s.d. Disponível em: <http://ibdfam. jusbrasil.com.br/noticias/100558975/ibdfam-opina-pela-rejeicao-doestatuto-do-nasciturno>. Acesso em: jan. 2015. “Intermezzo – o tal estatuto do nasciturno”, Blog Barriga de bebê, 7 jun. 2013. Disponível em: <http://barrigadebebe.com/2013/06/07/intermezzoo-tal-estatuto-do-nasciturno/>. Acesso em: jan. 2015. “Nasciturnos?” Fórum De mãe para mãe, 27 mar. 2008. Disponível em: <http://demaeparamae.pt/forum/29833>. Acesso em: jan. 2015. “Significado de nascituro”. Dicionário colaborativo Significados. Disponível em: <http://www.signiicados.com.br/nascituro/>. Acesso em: jan. 2015. “Você sabe o que realmente está por trás do estatuto do nascituro?” Por Clair Castilhos, Viomundo,18 set. 2014. Disponível em: <http://cebes. com.br/2014/09/voce-sabe-o-que-realmente-esta-por-tras-do-estatutodo-nascituro/>. Acesso em: jan. 2015. Panleto “Estatuto do Nasciturno é mais uma violência contra a mulher”. Sindicato dos Professores do Ensino Oicial do Estado de São Paulo, s.d. 838 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 2 Recortes analisados Recortes da deinição “Signiicado de nascituro”, Signiicados. Dicionário colaborativo: O que é nascituro: Nascituro é «aquele que há de nascer”, que foi gerado e não nasceu ainda e vêm do latim [..] O Código Civil brasileiro estabelece que o nasciturno tem seus direitos assegurados pela lei desde sua concepção [...] Foi criado um dia no Brasil chamado de o Dia do Nasciturno, que é celebrado no dia 25 de março. Foi criado um dia para ser comemorado e para rezar por todos os nasciturnos, pois são muitos os riscos que as crianças correm desde a sua concepção até o nascimento. Recortes do texto “Estatuto do Nasciturno: entenda os pontos polêmicos do projeto de lei”, por Graziela Salomão, Revista Marie Claire, 07 jun. 2013. Estatuto do Nasciturno: entenda os pontos polêmicos do projeto de lei Isso porque na última quarta (5), esse projeto de lei, conhecido popularmente como Estatuto do Nasciturno, foi aprovado pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. Recortes do texto “IBDFAM opina pela rejeição do Estaturo do Nasciturno”, Instituto Brasileiro de Direito de Família, s.d. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) enviou no último dia 5, minuta pela rejeição do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. O Estatuto do Nasciturno impõe a violação da integridade psicofísica da mulher, em detrimento do feto e do embrião, desprezando a ordem constitucional. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 815-839, 2017 839 Recortes do panleto “Estatuto do Nasciturno é mais uma violência contra a mulher”. Sindicato dos Professores do Ensino Oicial do Estado de São Paulo, s.d. “Estatuto do nasciturno” é mais uma violência contra a mulher [...]. Neste contexto é inaceitável e deve ser profundamente repudiada a proposição do chamado Estatuto do Nasciturno, que tramita no Congresso Nacional. Trata-se de uma iniciativa obscurantista que propõe, entre outras barbaridades, [...]. Recortes do texto “Intermezzo – o tal estatuto do nasciturno”, Barriga de bebê, 7 jun. 2013. Intermezzo – o tal estatuto do nasciturno O singelo nome de “Estatuto do nasciturno”, que pretensamente estaria defendendo os direitos de um ser inocente que não pode defender-se sozinho, é na verdade uma das maiores recusas de direito a um seu semelhante. E em nome do que essas pessoas – vulgo nós, mulheres – teríamos que ser silenciadas quanto à nossa decisão, sempre tão delicada, pessoal e complexa, de ter ou não um ilho? Em nome dos direitos de quem? Do nasciturno? Mas quem é esse nasciturno? Mas me espanta muito que uma mulher tenha que ser desconsiderada enquanto ser humano dotada de direitos para que um questionável nasciturno que ninguém sabe como e se existe tenha os seus. Quantas contas hão de ser cobradas por esses nasciturnos? E quem vai pagá-las? Alguém se importa que os direitos que são pseudo defendidos para os tais nasciturnos são os mesmos que são negados diariamente para crianças que existem e estão vivas no nosso país, ou para as mulheres, ou para os homossexuais, ou para os negros, ou para os pobres? Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 A semiótica das paixões e a análise da dimensão passional dos enunciados The semiotics of passions and the analysis of the passional dimension of discourse Eliane Soares de Lima Universidade de Franca (UNIFRAN) li.soli@hotmail.com Resumo: Adotando uma perspectiva diacrônica, a intenção deste artigo é a de apresentar os desenvolvimentos teóricos e metodológicos que têm marcado o estudo das paixões dentro do quadro geral da semiótica de linha francesa. Interessa a partir daí retomar os apontamentos que assinalaram a chamada “virada fenomenológica” da teoria – enquanto momento no qual a preocupação com o sensível, com as condições de emergência do sentido, passa a ocupar o centro da atenção dos semioticistas – e discutir os desaios impostos, a necessidade de contínua evolução do modelo de análise criado para dar conta desse outro universo de signiicação. Assim, com base nos desdobramentos mais recentes da teoria, agora voltados à problemática da enunciação, do sentido conigurado em ato, propõe-se uma reformulação do esquema passional canônico tal como concebido no livro Semiótica das paixões, de Greimas e Fontanille. Palavras-chave: semiótica; paixões; dimensão passional; modalidades; tensividade. Abstract: Adopting a diachronic perspective, the aim of this article is to present the theoretical and methodological developments that have characterized the study of passions within the general framework of French Semiotics. From this perspective, we’d like to go back to the eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.841-871 842 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 writings which have marked the so-called “phenomenological turn” of the theory – as the moment when the concern with the sensitive, with the conditions of meaning emergence, becomes a major issue for semioticians – and discuss the challenges inlicted, the need of a constant evolution on the pattern of analysis created in order to examine this alternative universe of signiication. Thus, based on the theory’s most recent developments, having to do with enunciation, with meaning set up in act, we propose a reorganization of the canonical pathemic schema as featured in Greimas and Fontanille’s Sémiotique des passions. Keywords: semiotics; passions; emotional dimension; modality; tensivity. Recebido em: 11 de abril de 2016. Aprovado em: 10 de agosto de 2016. 1 Dos estados de coisas aos estados de alma: o nascimento de uma semiótica das paixões Tendo surgido em meio às discussões de cunho estruturalista da década de 60, a semiótica de linha francesa, preocupada em compreender os modos de produção da signiicação dos textos, procurou irmar-se enquanto uma teoria geral das ciências da linguagem, com metodologia eicaz e coerente. Iniciou seus estudos rejeitando, então, tudo aquilo que de perto ou de longe parecesse estar ligado a subjetivismos, e concentrou toda a sua atenção na depreensão das operações lógicas que estruturam os discursos. Assim, quando o interesse pelas paixões, ou, mais especiicamente, pela dimensão passional dos enunciados surgiu no quadro geral da teoria, os semioticistas atentaram à necessidade de evitar uma tomada de posição ontológica, de afastar qualquer possibilidade de análise de natureza metafísica, ou de cunho psicológico, buscando, ao contrário, estabelecer conceitos operatórios passíveis de ser usados na descrição sintáxica dos núcleos passionais discursivizados, considerados modelos de previsibilidade, sistemas conotativos de reconhecimento das interações passionais já moldadas pelo uso. O estudo das paixões no domínio da semiótica discursiva tem seu início em 1978, com a publicação do Bulletin 6, intitulado “Pour Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 843 une théorie des passions”, que anunciava as primeiras hipóteses de trabalho. Dois anos do Seminário de Semiótica geral de Paris (19781979 e 1979-1980) foram dedicados a pesquisas exploratórias e à busca de um método de descrição geral e abstrato, isento de considerações ideológicas e psicologizantes. Depois do exame sistemático das teorias propostas pelos ilósofos, para o estudo das paixões, constatando que em meio a algumas diferenças todas elas tinham como traço comum a classiicação de base taxionômica, a semiótica procurou trabalhar na direção de uma descrição sintáxica das paixões-lexemas, por meio das modalidades. Interessava aos semioticistas depreender e descrever a organização interna dos afetos, o seu modo de estruturação, e, para isso, os então recentes desenvolvimentos da teoria das modalidades pareciam bastante pertinentes. Um dos textos mais representativos dessa época, que introduz a noção de timia relacionando-a à perspectiva modal, é “De la modalisation de l’être”, publicado pela primeira vez em 1979 no Bulletin 7, e republicado anos mais tarde em Du sens II (1983). Nesse artigo, Greimas trabalha suas primeiras ideias para a depreensão de uma sintaxe modal própria ao ser do sujeito narrativo e à série de sub-articulações signiicantes da massa tímica amorfa, indício do primeiro contato interactancial, caracterizado primitivamente por atrações e/ou repulsões. Conforme explica Fontanille (2002, p. 6031): Depois de ter consagrado os anos precedentes à modalização do “fazer”, para estabelecer a competência modal do sujeito narrativo, Greimas aborda o que ele chama a existência modal do sujeito. A categoria das “modalidades do ser” (dever-ser, querer-ser, poder-ser, etc.) é deinida em relação a uma categoria mais profunda, a “foria” (literalmente: o que leva em direção a...). […] É assim que os dois Trecho original: “Après avoir consacré les années qui précèdent à la modalisation du ‘faire’, pour établir la compétence modale du sujet narratif, Greimas aborde ce qu’il appelle alors l’existence modale du sujet. La catégorie des ‘modalités de l’être’ (devoir-être, vouloir-être, pouvoir-être, etc.) est déine par rapport à une catégorie plus profonde, la ‘phorie’ (littéralement: ce qui porte vers...). […] C’est ainsi que les deux pôles de la phorie, l’euphorie et la dysphorie, seront convertis respectivement, et plus précisément, en ‘désirable / indésirable’ (/vouloir-être/), en ‘indispensable / nuisible’ (/devoir-être/), en ‘possible / impossible’ (/pouvoir-être/), etc...” 1 844 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 pólos da foria, a euforia e a disforia, serão convertidos respectivamente, e mais precisamente, em “desejável/ indesejável” (/querer-ser/), em “indispensável/ nocivo” (/dever-ser/), em “possível/impossível” (/ poder-ser/), etc... O objetivo era estabelecer um equilíbrio entre o desenvolvimento dos estudos relativos à modalização do fazer e os da modalização do ser, dos modos de existência semiótica do sujeito a partir de sua relação com o objeto-valor. Isso interessava porque a teoria das modalidades estava no centro da intenção dos semioticistas de dar às paixões uma deinição sintáxica, segundo deixa entrever a observação de Greimas (1978, p. 42): No inal das contas, talvez não seja inútil insistir sobre uma evidência: a reflexão a respeito da semiótica das paixões deve ser levada paralelamente a um exame mais aprofundado da teoria das modalidades. Nossa tentativa nesse domínio (Langages, 43, 1976) constitui apenas um ponto de partida. A determinação do estatuto e do comportamento das modalidades convertidas e inscritas nas estruturas semionarrativas de superfície, o estabelecimento de sequências modais canônicas, constitutivas da competência dos sujeitos, a descrição do procedimento de conversão das modalidades-predicados em valores modais, condição de sua axiologização, parecem-nos tarefas urgentes. Os anos seguintes foram, dessa forma, consagrados ao aperfeiçoamento da teoria modal. Era preciso não apenas identiicar combinações modais nos afetos, mas sobretudo compreender os diferentes Trecho original: “En in de compte, il n’est peut-être pas inutile d’insister sur une évidence: la rélexion sur la sémiotique des passions doit être menée de pair avec un examen plus approfondi de la théorie des modalités. Notre première tentative dans ce domaine (Langages, 43, 1976) n’en constitue qu’un point de départ. La détermination du statut et du comportement des modalités converties et inscrites dans les structures sémio-narratives de surface, l’établissement des suites modales canoniques, constitutives de la compétence des sujets, la description de la procédure de conversion des modalitésprédicats en valeurs modales, condition de leur axiologisation, nous paraissent comme des tâches urgentes. 2 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 845 modos de articulação entre elas, o agenciamento sintáxico muitas vezes incompatível, contraditório e paradoxal, bem como o funcionamento da dinâmica de conversão que dá a um arranjo de modalidades efeitos passionais. O grande desafio era, como coloca Fontanille em seu artigo de 1986, intitulado “Le tumulte modal: de la macro-syntaxe à la micro-syntaxe passionnelle”, compreender o que se passa entre as modalidades, o dinamismo interno dos estados, de maneira que fosse possível estabelecer uma sintaxe de caráter intermodal. Isso explica a entrada do domínio da aspectualização nas pesquisas referentes ao exame dos núcleos passionais. Nessa época de busca por maior compreensão do funcionamento das estruturas patêmicas, diversas investigações em torno de paixões tomaram lugar, seja a partir do ponto de vista dos lexemas-paixões, ou dos sintagmas narrativos realizados a partir de textos literários – a admiração (Thürlemann, 1980), o desespero (Fontanille, 1980), a cólera (Greimas, 1981), a indiferença (Marsciani, 1984), a nostalgia (Greimas, 1986), entre outros –, e ainda alguns poucos que já se aventuravam na representação das paixões a partir de estratégias discursivas da enunciação – Bertrand (1986, 2003) e Hénault (1986, 1994). Todas as análises, quaisquer que fossem seus pontos de vista, buscavam explorar as hipóteses da gramática narrativa e em especial os elementos levantados quando do estudo da manipulação, da ação, da sanção, e também da problemática da persuasão. Entre essas publicações encontra-se ainda a proposição de Herman Parret (1982 e 1986) para uma tipologia morfológica das paixões – a partir de princípios de concatenação modal subjacentes às taxionomias fornecidas pelas línguas naturais –, muito criticada por se apresentar como apenas uma tradução semiótica do que já havia sido feito pelos ilósofos (MARSCIANI, 1982). Como explica Fontanille (2002, p. 6063): Greimas se esforçava para escapar, a qualquer custo, da tipologia das paixões e demonstrar a originalidade da abordagem semiótica em relação à tradição Trecho original: “Greimas s’efforçait à tout prix d’échapper à la typologie des passions, et de démontrer l’originalité d’une approche sémiotique pas rapport à la tradition philosophique, qui est presque systématiquement taxinomique en cette matière; la sémiotique des passions devait être une syntaxe, et l’analyse modale, notamment telle la pratiquait H. Parret, en vrai philosophe, ramenait en partie la sémiotique des passions vers la taxinomie.” 3 846 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 filosófica, que é sistematicamente taxionômica nesta matéria; a semiótica das paixões devia ser uma sintaxe, e a análise modal, principalmente como a praticava H. Parret, verdadeiro filósofo que é, reconduzia parcialmente a semiótica das paixões em direção à taxionomia. O estudo das paixões, e o objetivo de uma descrição sintáxica desse novo universo de signiicação, sobretudo no que diz respeito à compreensão do funcionamento da estrutura subjacente, foi pouco a pouco trazendo à cena a problemática do sensível na sua articulação com o inteligível. O avanço das pesquisas no domínio do passional e a busca constante de aperfeiçoamento da proposição semiótica para a criação de um modelo geral de análise das paixões assinalaram a participação do sentir, mesmo que os semioticistas não soubessem ainda o melhor modo de tratar a questão, no processo de signiicação. Não só a noção de sujeito, na sua estrita relação actancial com o objeto, ganha mais espaço dentro da teoria, mas também a de corpo – enquanto elemento de mediação proprioceptiva (percepção do corpo-próprio) para a homogeneização semiótica entre a apreensão extero- (percepção do mundo exterior) e interoceptiva (percepção do mundo interior) – e, consequentemente, a de percepção. De acordo com Fontanille (PORTELA, 2006, p. 1664): O inal dos anos 1980, uma vez colocada a teoria das modalidades, que faz a transição entre a semiótica narrativa e a do discurso, o seminário sobre as paixões, a virada “sensível” das pesquisas semióticas, a ascensão das abordagens fenomenológicas, é o momento em que nasce a semiótica que se faz hoje. São duas as publicações de maior representação, e repercussão, dessa “virada rumo ao sensível” na qual embarca a semiótica, escritas quase que paralelamente: De l’imperfection (1987), de Greimas, e Trecho original: “La in des années 80, une fois posée la théorie des modalités, qui faisait la transition entre la sémiotique du récit et celle du discours, c’est d’abord le séminaire sur les passions, le virage « sensible » des recherches sémiotiques, la montée en puissance des approches phénoménologiques, c’est le moment où prend naissance la sémiotique qui se fait aujourd’hui”. 4 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 847 Sémiotique des passions (1991), de Greimas e Fontanille – traduzidos no Brasil em 2002 e 1993, respectivamente. Em Da imperfeição (2002), Greimas, tendo ainda como base metodológica a teoria das modalidades, apresenta uma discussão sobre os modos de se apropriar da investigação relacionada à produção da signiicação na experiência estética a partir da articulação entre o inteligível e o sensível, lançando o conceito de estesia, referente à apreensão, à emoção estética que funde o sujeito da percepção ao objeto percebido. São os primeiros indícios da relexão a respeito da emergência do sentido, das condições elementares de sua aparição, mais amplamente trabalhada em Semiótica das paixões (1993). Conforme aponta Lucia Teixeira (2002, p. 260), “é também com Da Imperfeição que o campo do sensível retorna fortemente às preocupações dos semioticistas, não só como busca metafórica de fontes fenomenológicas, mas também como apelo à entrada do corpo sensível no universo da produção do sentido”. Alguns poucos anos depois, o livro Sémiotique des passions (1991) aparece com o objetivo de “balanço” dos resultados de pesquisa adquiridos até então. De acordo com Fontanille (2012), tratava-se da concepção de um projeto de síntese das aquisições e de perspectiva teórica. Mesmo não sendo essa a intenção, essa obra marca uma grande mudança nos rumos da teoria, uma vez que a tentativa de esclarecer e estabelecer os princípios epistemológicos da semiótica das paixões trazia a necessidade de explicar de maneira coerente a geração das modalidades responsáveis pela descrição sintáxica dos afetos; ou seja, era preciso não apenas explicitar as condições estruturais dos núcleos patêmicos, mas também as pré-condições de coniguração dessas unidades formais. Como explica Fontanille (1993a, p. 1575): “[...] tornava-se inevitável recorrer a uma reformulação epistemológica de todo o edíicio teórico (ao invés de construir um outro edifício ao lado), mostrando como a semiótica podia dar conta da nova problemática e, ao mesmo tempo, avaliando o custo teórico da operação”. Trecho original: “[...] il devinait inévitable de procéder à une réfondation épistémologique de l’édiice tout entier (au lieu de bâtir un autre édifíce à côté), en montrant comment la sémiotique pouvait rendre compte de la nouvelle problématique et en évaluant le coût théorique de l’opération.” 5 848 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 A partir de então, a preocupação dos semioticistas vai se voltar completamente às questões ligadas mais propriamente ao sensível, à participação do corpo-próprio, da percepção, na geração da signiicação. Assim, mais do que os estudos apresentados desde o início do interesse da semiótica pelos afetos, é a discussão contida no último livro individual de Greimas, Da imperfeição, e nos capítulos inicias de Semiótica das paixões a responsável pela guinada da teoria rumo ao sensível. Contudo, se a problemática é levantada, sendo substancialmente apresentada sobretudo nas páginas introdutórias de Semiótica das paixões – que custou aos autores, segundo Fontanille (1993a, p. 1576), “dois anos inteiros de discussões, escrita e reescritas sucessivas” –, ela não aparece da mesma forma nas análises contidas nos capítulos seguintes do livro. De acordo com Landowski (2005, p. 98): […] esquecendo aparentemente as promessas da introdução e do capítulo inicial, [os autores] voltam a um estágio metodológico e teórico anterior, aquele da gramática narrativa dos anos 1970-80. Suas descrições desenvolvem-se quase que de modo integral no terreno modal, o que os conduz a privilegiar a tal ponto a dimensão do conhecer, o “cognitivo” em detrimento do “sensitivo”, que inalmente a questão das formas da coabitação esperada entre essas duas dimensões não será retomada. Nesse sentido, o sensível encontra espaço no quadro teórico da semiótica das paixões, mas o mesmo não acontece com o lugar que deveria ocupar também na metodologia concebida para o estudo dos afetos, pois o modelo de análise consagrado a partir desta publicação, como veremos a seguir, é o esquema passional canônico, no qual o exame das modulações, responsáveis pelo estabelecimento da estrutura modal no nível narrativo, não está previsto. O próprio Greimas parecia ter ciência disso, conforme lembra Fontanille (PORTELA, 2006, p. 1697): “ele me conidenciou um dia, comentando o subtítulo de Semiótica das paixões, Trecho original: “[...] deux années entières de discussions, d’écriture et réécritures successives.” 7 Trecho original: “Il m’a conié un jour, en commentant le sous-titre de Sémiotique des passions, “Des états de choses aux états d’âme », que dans ce livre, il estimait que nous avions « manqué les états d’âme”.” 6 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 849 ‘dos estados de coisas aos estados de alma’, que nesse livro, ele avaliava que nós tínhamos ‘icado devendo’ aos estados de alma”. É bem verdade que nessa época a questão do sensível era ainda bastante frágil e mesmo hipotética, demandando estudos e desenvolvimentos mais detalhados, só apresentados posteriormente. Era preciso compreender “como articular o contínuo? Como tratar de modo imanente a energia e a intensidade? Como tratar de maneira coerente aquilo que parece irredutivelmente heterogêno? etc” (FONTANILLE, 1993a, p. 1578). A inserção da problemática do sensível, ao impor, então, uma revisão dos princípios epistemológicos antes estabelecidos, acaba por elevar a afetividade ao estatuto de dimensão da atividade de linguagem, e, a partir daí, ela começa a interessar, e a ser pensada, enquanto componente geral da signiicação. Nas palavras de Fontanille (1995, p. 1869): Tudo se passa como se uma outra racionalidade reclamasse seus direitos, e mais ainda quando as manifestações do corpo-próprio (a proprioceptividade, na terminologia semiótica) se impõem ao discurso modiicando o seu curso; é como uma outra dimensão do sujeito que se ixa, e não mais somente aquela que é requerida para a realização de programas narrativos, mas sobretudo aquela na qual se airma sua identidade de sujeito e seu sentido de ser. Essa nova direção das pesquisas marca a “virada fenomenológica” da disciplina, e faz com que os semioticistas passem a se interessar cada vez mais pela questão da signiicação em ato, do devir, da emergência do sentido. É aí que as noções de percepção, presença e tensividade vão ganhando mais força e relevância no quadro geral da teoria. Como Trecho original: “[...] comment articuler le continu? comment traiter en immanence l’énergie et l’intensité? comment traiter de manière isotope ce qui semble irréductiblement hétérogène? etc.” 9 Trecho original: “Tout se passe comme si une autre rationalité réclamait ses droits, et plus encore quand les manifestations du corps propre (la proprioceptivité, dans la terminologie sémiotique) s’imposent au discours et en modiient le cours; c’est alors une autre dimension du sujet qui s’afiche, non plus celle, seulement, qui est requise pour la réalisation des programmes narratifs, mais celle, plutôt, où s’afirme son identité de sujet et son sens d’être.” 8 850 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 explica Beividas (2011, p. 19), “tendo o sensível ganhado paulatinamente a primazia no concurso da emergência da signiicação, o afeto passa de efeito à ‘razão’ das razões do sentido”. De todo modo, se os estudos no campo do sensível, ou da afetividade enquanto dimensão, evoluíram e continuam em pleno desenvolvimento, o exame propriamente dos estados de alma não progrediu da mesma maneira. A metodologia oferecida e consagrada à análise semiótica das paixões permanece conforme ao esquema passional canônico, no qual a ênfase é dada à estrutura modal, enquanto o sensível e as noções daí advindas continuam a não encontrar o seu lugar. A investigação semiótica sobre a coniguração dos afetos, mesmo reconhecendo as indicações e especiicidades desse outro universo de signiicação, da ordem do sensível, que desde o início apontou para a necessidade de transpor a abordagem descontínua do sentido, integrando os aspectos contínuos próprios à articulação entre inteligível e sensível, como foi discutido na introdução de Semiótica das paixões (1993), continuou, pois, fundamentada sobretudo nas modalidades, responsáveis por instituir, reciprocamente, o estatuto do sujeito e do objeto. Assim, a análise semiótica das paixões, na maioria das vezes, faz-se ainda hoje quase exclusivamente em termos de sintaxe modal, isto é, de dispositivos e combinações de modalidades que estruturam o estado do sujeito narrativo. O passional, no entanto, como apontam os próprios autores de Semiótica das paixões (GREIMAS; FONTANILLE, 1993), logo no início da obra, não é apenas uma organização sintagmática e modal, mas deve ser considerado também sobre o fundo de uma problemática tensiva e sensível, inerente à determinação fórica, tal como será proposto anos depois, por Fontanille e Zilberberg, em Tensão e signiicação (200110). Em seu debate com Paul Ricoeur, em 1989, a propósito da semiótica das paixões, Greimas admite (HÉNAULT, 1994, p. 20311): “[...] somos forçados, depois de muita hesitação (porque uma vez estabelecidos os princípios teóricos nós temos vontade de parar por aí), a reconhecer 10 A publicação do original surge na França em 1998. Trecho original: “[...] on est forcé après moult hésitations (parce qu’une fois qu’on a établi des principes théoriques qui paraissent satisfaisants on a envie de s’y tenir), on est forcé de reconnaître que le discours, ça bouge, qu’il y a des forces qui ne s’expliquent pas entièrement par les modalités, qu’il y a autre chose.” 11 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 851 que o discurso se movimenta, que ele tem forças que não se explicam inteiramente pelas modalidades, que há algo mais”. A combinação modal ocupa, sem dúvida, um papel fundamental no estudo das paixões, porque deine a identidade, o ser do sujeito narrativo e o conlito que caracteriza seus “estados de alma”; ela torna possível a depreensão das fases da manifestação afetiva enunciada e o seu papel na produção de uma dada paixão. As modalidades estão no centro da estrutura de configuração dos afetos, “traduzindo” a interação estabelecida entre sujeito apaixonado e objeto da paixão; mas sozinhas, elas nada dizem a respeito do “excesso” propriamente dito, das modulações tensivas que subjazem às articulações modais e sensibilizam a interação, o esquema narrativo como um todo. Conforme salientam Greimas e Fontanille (1993, p. 21): Uma primeira constatação impõe-se: a sensibilização passional do discurso e sua modalização narrativa são co-ocorrentes, não se compreendem uma sem a outra, e, no entanto, são autônomas, submetidas, provavelmente, ao menos em parte, a lógicas diferentes. Mesmo ao explorar a dimensão patêmica dos textos, a investigação sobre os elementos constitutivos de uma dada paixão, quando presa unicamente à estrutura modal, ica limitada aos conteúdos inteligíveis da coniguração, porque as modalidades, colocadas como peças-chave da análise, dizem respeito ao encadeamento sintáxico dos dispositivos atuantes no nível narrativo, não podendo ajudar no exame do componente propriamente sensível que o engendra. Os autores advertem (Idem, p. 68): “os efeitos de sentido passionais não podem encontrar explicação satisfatória apenas no seio do nível semionarrativo”, e explicam: “os dispositivos modais pertencem de direito ao semionarrativo; constituem ‘realizáveis’ do esquema semiótico, mas as paixões que deles se nutrem constituem-se de fato no seio no nível discursivo” (Idem, p. 69). Os semioticistas acrescentam ainda (Idem, p. 90): Elaborar uma semiótica das paixões é, portanto, tomar o partido de uma representação da dimensão narrativa dos discursos que não se reduz a uma espécie de lógica da ação nem a uma concepção do 852 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 sujeito que seria inteiramente determinado por seu fazer e pelas condições necessárias para realizá-lo. Para que se possa, pois, compreender a estruturação discursiva da paixão, é preciso atentar tanto à articulação modal quanto ao aspecto propriamente sensível da coniguração patêmica, das modulações tensivofóricas responsáveis pela sensibilização das modalidades em questão, indo além da ideia (ou da pressuposição lógica) de um “excedente modal”, de uma intensidade subjacente. De grande importância à análise dos afetos, a observação relativa à foria – entendida como aspectualização no nível discursivo e como modulação tensiva no nível profundo – propicia o exame do desenvolvimento contínuo e progressivo do núcleo passional, ou seja, das modulações articuladas à direção tensiva que conduz e controla o encaminhamento discursivo, uma vez que a dimensão fórica perpassa todo o percurso gerativo, conigurando o elemento sensível junto ao processo discursivo. A esse propósito, Fontanille (2007, p. 184) explica: […] a teoria das modalidades foi o primeiro passo na direção de uma semiótica das paixões: os efeitos passionais, graças ao componente modal oriundo da narratividade, tornam-se analisáveis, cada efeito passional podendo ser reduzido, de um ponto de vista narrativo, a uma combinação de modalidades. Portanto, os afetos passionais eram considerados como simples epifenômenos do percurso narrativo dos actantes. Todavia essa abordagem do domínio afetivo permanecia nos limites de uma lógica das transformações, a lógica do discurso-enunciado. Fica bem claro, no entanto, que a dimensão afetiva do discurso não pode ser privada da presença, da sensibilidade e do corpo que toma posição na instância do discurso, pois a afetividade reivindica o corpo do qual ela emana e o qual ela modiica. A problemática do sensível, como se pode entrever, não é apenas uma questão de nível de pertinência, pois ela atravessa de uma ponta a outra a geração da coniguração passional, estando intrinsecamente ligada às condições de sua estruturação. São as operações subjacentes às modalidades, do domínio das modulações, que as predispõem a Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 853 participar das conigurações patêmicas reconhecíveis em determinada cultura. Como admite Fontanille (1993a, p. 15712), “[...] anteriormente a sua discretização sob a forma de determinações do nível semio-narrativo, as modalidades são variações calculáveis no seio do espaço tensivo”. O exame das modulações, dessa forma, diretamente ligado ao devir da interação passional, a partir da inserção dos valores no campo de presença do sujeito, reina e aprofunda o estudo dos afetos em semiótica, podendo, então, ultrapassar os limites do discurso-enunciado e examinar a coniguração passional no momento de sua emergência, no domínio da signiicação em ato, da articulação entre o sensível e o inteligível. É por isso que, de nossa parte, retomando: (i) a discussão apresentada nas páginas introdutórias de Semiótica das paixões13 (1993), (ii) reexaminada em Tensão e signiicação (FONTANILLE; ZILBERBERG, 2001), quando ela ganha um tratamento mais formal, (iii) e em diversos outros textos de Fontanille e Zilberberg, pretendemos propor a reformulação do esquema passional canônico a partir de um ponto de vista tensivo, de modo que o modelo de análise semiótica das paixões evolua par a par com os desenvolvimentos atuais da teoria. A ideia é apresentar uma (re)formulação metodológica da teoria já esboçada na introdução de Semiótica das paixões (1993), desta vez, com a percepção ocupando o papel de “pedra angular” na produção dos afetos. Além do exame das características da dimensão passional nos níveis narrativo e discursivo, a ideia é que o modelo de análise proposto dê conta também das condições de geração destas especiicidades, da base tensivo-fórica subjacente, concebendo a paixão como resultado de correlações ao mesmo tempo sensíveis e inteligíveis. Dessa forma, em nossa proposta, a paixão será entendida, antes de mais nada, como resultante de um determinado modo de interação afetiva, caracterizado a partir de peculiaridades próprias à experiência (perceptiva) entre o sujeito da percepção e o objeto percebido. Trata-se da apresentação de uma semiótica das paixões fundamentada nas estruturas elementares da Trecho original: “[...] antérieurement à leur discrétisation sous la forme de déterminations du niveau sémio-narratif, les modalités sont des variations calculables au sein d’un espace tensif.” 13 Estamos nos referindo aqui tanto ao conteúdo da “Introdução”, quanto do capítulo 1, intitulado “A epistemologia das paixões”. 12 854 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 signiicação, com o sujeito do afeto constituindo-se como um algoritmo da percepção (DISCINI, 2011). Um exame das paixões que leve em conta o componente propriamente sensível, na sua articulação com o inteligível, parece válido por permitir concebê-las na própria emergência passional da relação intersubjetiva, depreendendo, para além das características de um peril, as condições enunciativas – de produção e de captação – do acontecimento passional, bem como uma maior compreensão das especiicidades de instauração dos diferentes modos de interação afetiva entre o sujeito e aquilo que se põe em seu campo de presença, do(s) elemento(s) responsável(is) pelas distintas formas de reação afetiva ao contato com o outro. 2 O esquema passional canônico e o seu aperfeiçoamento Greimas e Fontanille, a partir dos estudos realizados em Semiótica das paixões (1993), procurando instituir uma coerência formal ao percurso passional do sujeito apaixonado, ixaram, a exemplo do tradicional esquema narrativo canônico [manipulação – competência – performance – sanção], o esquema passional canônico [constituição – sensibilização (disposição – patemização – emoção) – moralização], considerado, tal como o primeiro, um modelo autônomo e dotado de um valor heurístico próprio. CONSTITUIÇÃO DISPOSIÇÃO SENSIBILIZAÇÃO PATEMIZAÇÃO MORALIZAÇÃO EMOÇÃO Esquema 1: Esquema passional canônico sugerido em Semiótica das paixões (GREIMAS; FONTANILLE, 1993). A ideia era o estabelecimento de um modelo de análise “concebido e construído como estrutura generalizável” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 61), isento, na medida do possível, do relativismo cultural, permitindo que as conigurações passionais dos discursos pudessem ser identiicadas e descritas independentemente de sua lexicalização. Assim, a estratégia de concepção do esquema é a de fases agenciadas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 855 progressivamente, ordenando de maneira dedutiva e calculável o desenvolvimento do percurso patêmico que afeta o sujeito narrativo. A constituição, a sensibilização e a moralização foram, pois, reconhecidas como as três principais formas de construção dos universos passionais que controlam as culturas individuais e as coletivas. Segundo os autores (1993, p. 244-245), “esses três segmentos comportam, no esquema patêmico canônico, referências às axiologias passionais, e, mais particularmente, àquelas que asseguram a regulação das relações sociais interindividuais”. Eles acrescentam (Idem, p. 245): “[os três segmentos] convocam para isso grades idioletais e socioletais de representação da paixão, de suas causas, de seus efeitos, de seus critérios de identiicação e de avaliação”. Dentro desse quadro, a disposição, a patemização e a emoção correspondem às etapas sucessivas do processo passional propriamente dito (sensibilização), do momento juntivo que marca a relação entre o sujeito e o seu objeto tímico. Dois anos após a publicação original de Sémiotique des passions (1991), Fontanille, em um artigo intitulado “Le schéma des passions”, de 1993b – revista Protée, volume 21, número 1 –, apresenta o que ele chama de “uma reformulação, explicação e ilustração das proposições feitas hipoteticamente sobre este assunto em Semiótica das paixões” (p. 3314). Nesse texto, ao contrário do que foi apresentado na primeira vez, o semioticista busca não apenas elucidar as etapas do modelo (agora esquematizado sem subdivisões: constituição – disposição – patemização – emoção – moralização), mas também incluir um ponto de vista mais próximo à noção de tensividade, cujo valor operatório é discutido na Introdução que antecede os capítulos de análise do livro escrito em parceria com Greimas. De acordo com o autor (1993b, p. 3315), “o esquema patêmico proposto em Semiótica das paixões resulta, no plano epistemológico, tanto de uma generalização, a partir de um conjunto de considerações Trecho original: “Cette présentation du schéma pathémique canonique se présente tout d’abord comme une reformulation, une explication et une illustration des propositions faites sur ce sujet, à titre d’hypothèse, dans Sémiotique des passions.” 15 Trecho original: “Le schéma pathémique proposé dans Sémiotique des passions résulte, au plan méthodologique, à la fois d’une généralisation à partir d’un ensemble de considérations pratiques, et d’une extrapolation à partir du schéma narratif canonique.” 14 856 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 práticas, quanto de uma extrapolação do esquema narrativo canônico”. Mas ele adverte (p. 3416): […] o método que dirige a elaboração dos dois esquemas é muito diferente: o ENC [esquema narrativo canônico] resulta da ‘bricolage’, da redução de um conjunto de ‘funções’ proppianas e de noções emprestadas da linguística chomskiana, bricolagem e redução com o intuito de integrar mutuamente a relexão sobre a lógica narrativa e a relexão sobre os diversos modos de existência dos fatos linguísticos; […] o EPC [esquema passional canônico] resulta de um tateamento, de uma elaboração progressiva motivada por um único objetivo: detalhar as operações constitutivas do processo passional, a partir das primeiras análises concretas realizadas sobre essa questão durante toda uma década, dandolhes, de maneira homogênea, nomes de operações (o que explica o suixo “-ção”). De qualquer forma, com base no esquema narrativo, o esquema passional canônico – tanto em Semiótica das paixões, quando a tensividade ainda aparecia nas análises práticas de modo bastante tímido, quase somente em termos de aspectualização, quanto neste texto posterior de Fontanille, no qual o autor procura apresentá-la de forma mais evidente – acabou privilegiando não o exame e a descrição das peculiaridades sintáxicas da coniguração patêmica em si, ou, como diz o próprio autor, “as operações constitutivas do processo passional”, mas os diferentes estados passionais no percurso patêmico do sujeito apaixonado nos discursos. Trecho original: “[...] la méthode qui a présidé à l’élaboration des deux schémas est très différente: le SNC résulte du ‘bricolage’ et de la réduction d’un ensemble de ‘fonctions’ proppiennes et de notions empruntées à la linguistique chomskienne, bricolage et réduction de nature à intégrer l’une à l’autre la rélexion sur la logique narrative et la rélexion sur les divers modes d’existence des faits linguistiques; […] le SPC résulte d’un tâtonnement, d’une élaboration progressive motivée par un seul objectif: détailler les opérations constitutives du processus passionnel, à partir des premières analyses concrètes menées sur cette question pendant une dizaine d’années, et leur donner de manière homogène des noms d’opérations (d’où le sufixe ‘tion’).” 16 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 857 As etapas da sequência estabelecida no esquema passional canônico deinem, portanto, estágios de evolução do estado patêmico do sujeito, ou seja, identidades transitórias do sujeito discursivo no sintagma passional, papéis patêmicos que permitem a compreensão de seu estilo global, sua identidade afetiva a partir da junção; isso porque a ideia era representar “sob a forma de um esquema canônico os diversos modos de existência do sujeito apaixonado” (FONTANILLE, 1993b, p. 3517). Em função disso, a coniguração propriamente dita do processo patêmico, as condições de emergência, de articulação do sensível com o inteligível na produção da afetividade, icaram de fora, com as paixões sendo identiicadas e descritas a partir de comportamentos estereotipados traduzidos em modalidades, sem a possibilidade de explicar também as modulações tensivas que fazem de tais combinações modais estruturas passionais, bem como as particularidades sintáxicas subjacentes aos patemas-processos concebidos como “conjunto das condições discursivas necessário à manifestação de uma paixão-efeito de sentido” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 78). Nessa primeira proposição do esquema passional canônico, Greimas e Fontanille (1993) deinem a etapa da constituição como sendo um determinismo do sujeito: social, psicológico, hereditário, ou qualquer outro, mas sempre anterior a toda competência e disposição, típicas à instauração do sujeito apaixonado. Trata-se, como aparece na ocasião do estudo do ciúme, do momento em que é engendrado “o estilo tensivo do sujeito apaixonado” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 243). É esta última concepção que defenderá Fontanille no artigo de 1993b, quando ele apresenta a constituição como a “etapa durante a qual o sujeito patêmico emerge no discurso […] essencialmente por sua receptividade a todas as solicitações passionais procedentes de seu entorno” (p. 3518). Para o autor, nessa fase, agora reconhecida como sendo de modulações rítmicas (andamento) e quantitativas instáveis, o sujeito é apenas um sujeito que sente (FONTANILLE, 1993b). Trecho original: “[le SPC] traduit sous la forme d’un schéma canonique les divers modes d’existence du sujet passionné.” 18 Trecho original: “La ‘constitution’ est l’étape pendant laquelle le sujet pathémique émerge dans le discours […] essentiellement par sa réceptivité à toutes les sollicitations passionnelles issues de son environnement.” 17 858 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 A sensibilização e a moralização, pensadas em Semiótica das paixões como gestos culturais pelos quais determinada cultura “interpreta uma parte dos dispositivos modais, concebíveis dedutivamente, como efeitos de sentidos passionais” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 140), são consideradas, em ambos os textos, como instâncias culturais de reconhecimento, articuladas de modo próprio à emergência discursiva da configuração patêmica propriamente dita, segundo os códigos identiicáveis já irmados pelo uso. O estágio da sensibilização, articulado pelas fases da disposição, da patemização e da emoção, corresponde, dessa forma, à manifestação da paixão propriamente dita, passível de ser descrita, segundo coloca Fontanille (1993b), a partir (i) da articulação modal subjacente à identidade e à competência afetivas do sujeito, determinadas por sua relação com o objeto-valor (fase da disposição), (ii) da identiicação de um comportamento estereotipado que, segundo as prescrições culturais, permite reconhecer e nomear o estado patêmico em questão (fase da patemização), e (iii) da expressão somática consequente (fase da emoção). A propósito da moralização, como explicam Greimas e Fontanille (1993, p. 154), ela “intervém em im de sequência e recai sobre o conjunto, mas mais particularmente no comportamento observável”. É o momento da inserção da coniguração passional no espaço de julgamento individual, ou coletivo, de certa comunidade. Em função do excesso, da insuiciência, ou da medida manifestados, a paixão é, nessa etapa, moralizada por um observador social. O esquema passional canônico, em sua primeira e segunda versão, apresenta-se, então, da seguinte maneira (cf. Esquema 2): Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 CONSTITUIÇÃO SENSIBILIZAÇÃO determinismo do sujeito (social, psicológico, hereditário, etc) 859 MORALIZAÇÃO manifestação da paixão julgamento social do (estrutura modal) comportamento observável identiicação de um estilo tensivo (observador social) do sujeito apaixonado comportamento estereotipado em determinada cultura DISPOSIÇÃO identidade e competência afetivas PATEMIZAÇÃO crise passional EMOÇÃO expressão somática (manifestação corporal) Esquema 2: Descrição das etapas do esquema passional canônico apresentadas em Semiótica das paixões (GREIMAS; FONTANILLE, 1993). Em suma, mesmo na reformulação proposta por Fontanille (1993b), o papel da tensividade na coniguração dos afetos, tão discutido na introdução do livro que oicializa o surgimento de uma semiótica das paixões, continua restrito à fase da constituição, como pré-condição da instauração do núcleo patêmico, sem muitas indicações sobre a maneira pela qual ela pode ser depreendida nos discursos, e sobre sua inluência na determinação das fases seguintes. As “operações” sintáxicas subjacentes, responsáveis pelo surgimento dos estados de alma, das modalidades que traduzem a interação e a junção do sujeito com seu objeto tímico, permanecem também ofuscadas por estágios patêmicos já manifestados. É só na “remodelagem” apresentada em Sémiotique du discours (1998; 2003, 2ª ed. ampliada), depois em Sémiotique et littérature (1999), e, anos mais tarde, no artigo “Sémiotique des passions”, em Questions de sémiotique (HÉNAULT, 2002) – publicações, se não paralela, posteriores a Tension et signiication, de 1998 –, que essas questões vão ser mais bem delineadas, passando da identiicação de um percurso narrativo do sujeito apaixonado a uma sintaxe tensiva dos estados de alma. 860 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 Nessa terceira reformulação do esquema passional canônico, embora o número de fases tenha sido mantido, com troca apenas de alguns dos nomes (despertar afetivo – disposição – pivô passional – emoção – moralização), Fontanille (1999) propõe a projeção de uma estrutura e de uma variação tensivas subjacentes a todas as etapas da sequência, descritas agora em termos de intensidade e extensidade, de movimentos de ascendência e de descendência, nos quais está prevista a ideia de presença. Trata-se da perspectiva já lançada em Tensão e signiicação (2001), no capítulo “Paixão”, quando Fontanille e Zilberberg assinalam, a propósito da sintaxe da dimensão passional dos enunciados, a correlação entre a dimensão modal e a dimensão fórica, deinidas em termos de constituintes (modais) e expoentes (tensivos), respectivamente. Assim, a fase do despertar afetivo é entendida como o momento ascendente em que a sensibilidade do sujeito é despertada por uma presença caracterizada segundo sua intensidade e extensidade, que são, por sua vez, representadas por códigos rítmicos e aspectuais (expoentes tensivos). A disposição continua a ser considerada o estágio no qual “o sujeito recebe a identidade modal necessária para experimentar uma paixão ou um tipo de paixão e não uma outra” (FONTANILLE, 1999, p. 8019), como uma espécie de competência (modal) patêmica, classiicada como descendente, por conta da colocação em cena de códigos modais (constituintes modais). O pivô passional também permanece como a principal etapa da sequência, na qual, através dos códigos igurativos, manifesta-se a paixão. Como explica Fontanille (2002, p. 63120), “essa fase é característica de um movimento de ‘ascendência’, pois ela põe em cena tanto um aumento da intensidade, quanto uma contração do campo de representações cognitivas, […] na ‘condensação’ da extensidade e no ‘deslocamento’ (e a progressão) do acento de intensidade”. Na emoção, manifestação corporal do sujeito afetado pelo impacto da fase anterior, “são, novamente, os expoentes tensivos que ocupam o primeiro plano, sobretudo a intensidade, por meio dos códigos Trecho original: “[...] le sujet reçoit l’identité modale nécessaire pour éprouver une passion ou un type de passion et pas un autre.” 20 Trecho original: “Cette phase est caractéristique d’un mouvement d’ ‘ascendance’, car elle se développe à la fois par une augmentation de l’intensité et une contraction du champ des représentations cognitives […] à la fois sur la ‘condensation’ de l’étendue et sur le ‘déplacement’ (et la croissance) de l’accent d’intensité.” 19 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 861 somáticos” (FONTANILLE, 1999, p. 8121). A moralização, culturalmente determinada por seu caráter de avaliação e de “medida” das manifestações emocionais, do comportamento observável, é compreendida como uma fase de atenuação, de controle da paixão. O esquema passional canônico passa, portanto, a se conigurar do seguinte modo (cf. Esquema 3): DESPERTAR AFETIVO → DISPOSIÇÃO → PIVÔ PASSIONAL → EMOÇÃO → MORALIZAÇÃO ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ a sensibilidade do identidade modal manifestação manifestação julgamento sujeito é despertada (códigos modais) da paixão corporal social por uma presença (códigos igurativos) (códigos somáticos) (códigos rítmicos e aspectuais) Esquema 3: Esquema passional canônico proposto por Fontanille (1999; 2000; 2002a). Nesta última proposta do esquema, o exame das modulações tensivas é de fato trazido à cena, bem como as operações sintáxicas subjacentes aos patemas-processo, isto é, ao “conjunto das condições discursivas necessário à manifestação de uma paixão-efeito de sentido” (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 78). No entanto, a nosso ver, mais do que as condições de emergência dos afetos na relação do sujeito com o objeto-valor, o modelo de análise continua a privilegiar a identiicação e descrição de estados de alma já conigurados, com a dimensão passional examinada no âmbito do uso, do discurso enunciado. É por isso que, ao entender a paixão como uma coniguração cujas correlações, provenientes de diversos níveis do percurso gerativo, são ao mesmo tempo sensíveis e inteligíveis, propomos, como sugestão de atualização do esquema passional canônico, um modelo de análise fundamentado sobretudo nas especiicidades de coniguração da interação que faz emergir a paixão, o afeto, desta vez, na perspectiva da enunciação, da signiicação em ato, e não exatamente na descrição do percurso patêmico do sujeito no discurso enunciado, como feito até então. Trecho original: “Ce sont donc, à nouveau, les exposants tensifs qui reviennent au premier plan, notamment l’intensité, à travers les codes somatiques de l’émotion.” 21 862 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 3 A interpretação tensiva do esquema passional canônico: uma proposta Segundo assinala Fontanille (2007, p. 213), “a racionalidade passional consiste em conjugar gradientes perceptivos, gradientes da presença perceptiva em discurso”, isso porque, “segundo a perspectiva da paixão, um processo não é considerado do ponto de vista de seu resultado, mas do ponto de vista de seu peso de presença” (Idem, p. 213). O estado juntivo que determina a interação passional entre o sujeito e o objeto-valor, a existência semiótica, será considerado, pois, conforme apresentamos anteriormente, como uma relação, antes de mais nada, perceptiva, na qual prevalece a problemática das modulações e do devir passional. Buscamos, desse modo, pensar as sequências do modelo proposto em Semiótica das paixões (1993) em um grau mais abstrato, com as modulações tensivas entendidas como propriedades elementares da percepção, como componentes do processo subjacente a determinado modo de interação afetiva, mais da ordem do sensível, ou mais da ordem do inteligível. A ideia é a de apresentar um estudo das paixões, dentro do quadro epistemológico da semiótica discursiva, assentado nas noções de percepção e de presença, conforme as entende a linha tensiva da teoria, sugerindo um percurso de análise capaz de dar conta das operações sintáxicas subjacentes à coniguração das interações patêmicas, das suas condições de emergência. Nessa nova interpretação do esquema, que privilegia a perspectiva da semiótica tensiva, a etapa da constituição passa a ser considerada como a da instauração do campo de presença. É, então, concebida como a fase na qual, a partir das primeiras somações resultantes da tensão criada na coexistência do sujeito e do “mundo natural” que se impõe a ele enquanto tensividade fórica, uma presença sensível se institui no campo de percepção do sujeito, dando origem à interação perceptiva. Na sequência, a sensibilização responderia, então, pelo processo de assimilação da presença, a articulação do sensível com o inteligível na produção da interação patêmica que liga sujeito perceptivo e objetovalor percebido. É o estágio de categorização do sensível, de atuação da semiose. Agora é o sujeito que se impõe ao mundo enquanto ser dotado de linguagem. Em sua subdivisão, a disposição seria o estabelecimento das determinações tensivas, das modulações intensivas e extensivas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 863 que determinam a profundidade do campo de presença instaurado. A patemização será, por sua vez, o segmento sensibilizador por excelência, o momento no qual, através da convocação sensível-inteligível do sujeito da percepção, os acentos fóricos (valores virtuais), convertem-se em valores axiológicos. É a etapa na qual se engendra a competência do sujeito da percepção para sentir, para vivenciar esta ou aquela paixão. A emoção virá, dessa forma, como consequência. Ela diz respeito ao grau de impacto da tensão apreendida, à reação somática manifestada (somação) diante do modo de presença do objeto-valor para o qual a afetividade suscitada é dirigida. Ela poderá ser tônica ou átona, forte ou fraca, a depender das determinações tensivas coniguradas na etapa da disposição. É o estágio em que se deine o estilo tensivo da interação patêmica, a natureza qualitativa do liame interactancial. Se a interação estiver sendo dirigida pelo sensível, o sujeito “perderá o controle” e se fundirá ao objeto-valor do afeto; mas, se ao contrário, for o inteligível a dimensão preponderante na assimilação da presença, o sujeito manterá o controle da emoção, que se tornará mais “inteligibilizada”. A moralização, ao agir no im do percurso de coniguração, equivaleria, nessa nova proposta de leitura do esquema passional canônico, à resolução, ao grau de intersubjetividade convocado, prescrevendo o modo de interação afetiva que deine a paixão, passível, nesta fase, de ser traduzida em termos de modalidades, de combinatórias modais. Trata-se da etapa na qual se consolida a conversão do valor axiológico apreendido em valor tímico, o “valor do valor”, elemento central na coniguração dos afetos. Quanto maior e mais forte for o impacto da presença do objeto-valor da afetividade, sentido pelo sujeito da percepção na etapa da emoção, mais tônica e sensível será a sanção intersubjetiva; por outro lado, quanto menor e mais fraca a presença, mais átona e inteligível a sanção se produzirá. A interação afetiva, na fase da moralização, tal como concebida nessa outra interpretação do esquema, conigura-se para o próprio sujeito da percepção, independentemente da sanção de um observador social outro, que pode estar presente ou não, pode se dar conta ou não da relação intersubjetiva emergente. Trata-se, agora, da coniguração da paixão para o próprio sujeito apaixonado e não mais a partir de um julgamento exterior do comportamento observável, conforme haviam formulado Greimas e Fontanille em Semiótica das paixões (1993). 864 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 Em resumo (cf. Esquema 4), as etapas do esquema passional canônico a partir desse novo ponto de vista podem ser concebidas da seguinte forma: CONSTITUIÇÃO SENSIBILIZAÇÃO instauração do campo de presença (uma presença sensível se institui) processo de assimilação da presença somação DISPOSIÇÃO determinações tensivas do campo de presença PATEMIZAÇÃO modo de convocação (mais sensível ou mais inteligível) MORALIZAÇÃO sanção intersubjetiva “valor do valor” (estrutura modal) resolução EMOÇÃO reação somática (grau de impacto) Esquema 4: Esquema passional canônico tensivizado (interpretação nossa a partir do esquema proposto em Semiótica das paixões, 1993). Nessa interpretação de caráter prioritariamente tensivo, a percepção assume, como se vê, a primazia absoluta no processo de instauração da interação patêmica entre sujeito e objeto-valor e torna possível a apreensão e o exame não só da dinâmica sintáxica subjacente, mas também do regime de inlexões sob o qual ela se desenvolve. O percurso de coniguração das paixões compreendido dessa maneira permite identiicar o que determina a maior ou menor densidade de presença do sujeito e do objeto-valor da afetividade reciprocamente, o tipo de determinação tensiva própria a uma interação mais da ordem do sensível, ou mais da ordem do inteligível. Essa perspectiva é semelhante às proposições de Jean-François Bordron (2002), para quem a percepção corresponde ao ato de enunciação, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 865 a um processo composto de três momentos: o indicial, referente à emergência de uma presença sensível no campo perceptivo do sujeito; o icônico, quando a presença sensível se organiza em formantes, ocupando uma certa extensão e tornando-se passível de um reconhecimento e uma identiicação cognitivas; e o simbólico, responsável justamente por essa especiicação, essa categorização da presença, atribuindo-lhe um sentido próprio. Nosso interesse está, todavia, mais do que no processo de produção do sentido em si, nas regularidades sintáxicas da articulação do sensível com o inteligível, no momento de instauração das condições de emergência da interação patêmica, subjacentes à produção dos afetos. Importa-nos, portanto, poder oferecer um modelo de análise capaz de depreender a predicação tensiva que, como princípio organizador do campo de presença, dirige a ligação entre os sujeitos de determinada interação afetiva e convocam de maneira especíica uma e outra dimensão. Desse modo, também a eicácia persuasiva dos afetos, a sua força de impacto sobre os sujeitos, passa a poder ser avaliada, assinalando, a partir desse ponto de vista analítico, tanto o papel de destaque da dimensão sensível e afetiva nos processos signiicantes, no percurso de geração da signiicação, quanto a possibilidade de um exame semiótico dessa atuação, da dimensão retórica dos enunciados. 4 Do enunciado à enunciação: a dimensão passional dos textos Como vimos, quando o interesse pelas paixões surge na teoria, o nível de pertinência regente é ainda prioritariamente o do enunciado, excluindo do campo de interesse as questões próprias à enunciação que o produz. Isso talvez explique o fato de a análise semiótica dos afetos, conforme concebida até então, estabelecer uma relação próxima com a ação, com a estrutura narrativa, sendo desenvolvida sobretudo a partir da identiicação de transformações passionais constituintes da identidade afetiva (modal) do sujeito apaixonado. A perspetiva da ação, todavia, é, na teoria semiótica francesa, a da redução da complexidade discursiva, e a paixão, por sua vez, diz respeito à sobreposição, a dispositivos e dimensões provenientes de diferentes etapas do percurso gerativo. Como explica Fontanille (2007, p. 168): 866 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 Se reduzimos o discurso enunciado unicamente à cena predicativa, só conservamos a dimensão narrativa e formal do discurso, e seu substrato axiológico, e perdemos de vista, ao mesmo tempo, tanto a dimensão do discurso em ato como as condições de emergência dos valores. Essa concepção sobre o discurso possibilitou os avanços teóricos e metodológicos dos anos 1970 e 1980, justamente porque ela reduzia o domínio de pertinência e puriicava-o de todo efeito “subjetivo”. Ao “objetivar” o discurso sob a forma de um simples enunciado, essa concepção tornava possível a articulação formal. Ela deve, atualmente, ser completada pela outra concepção que adota o ponto de vista do discurso em ato. Com o advento da tensividade, do corpo-próprio, da preocupação em compreender as (pré-)condições de emergência e coniguração da signiicação pela percepção, isso começa a se transformar, e a problemática da enunciação ganha força, ultrapassando o status de pressuposto lógico. É quando o devir passa a ocupar o primeiro plano na investigação dos processos de signiicação. Segundo chama a atenção Mancini (2007, p. 105), “essa perspectiva dinâmica parece revelar uma relação estreita entre os luxos tensivos e a expressão de suas estabilizações efêmeras no nível discursivo”; trata-se, como explica a autora (Idem, p. 98), “da organização de um campo de presença, cuja manutenção de seu devir depende de uma organização particular do campo tensivo, organização esta tributária tanto da direção do ato perceptivo (foco), quanto de sua extensão (apreensão)”. A noção de enunciação ica, dessa forma, atrelada à de percepção e à de presença, como responsável direta pela produção e estabelecimento desta última. Ela responde pela dinâmica que circunscreve e orienta a interação entre sujeito da percepção e objeto percebido. Conforme aos desenvolvimentos contemporâneos da semiótica francesa, a nova interpretação do esquema passional canônico adota também essa ideia, buscando examinar as paixões, a coniguração das interações afetivas, para além da identiicação e descrição de códigos estereotipados. Interessa agora depreender o instante de sua emergência, da experiência que o afeto proporciona ao sujeito patêmico no universo da signiicação em ato. Ao assumir a perspectiva do devir, o percurso de análise sugerido procura, pois, dar conta das condições de geração Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 867 dos afetos em todos os níveis do percurso gerativo, porque mais do que as paixões nos textos, importa compreender também a produção delas a partir dos textos, privilegiando a enunciação viva, não a passionalidade enunciada, mas aquela que é (re)criada nas estratégias enunciativas, no modo como o enunciador constrói seu enunciado, na maneira como ele estabelece o acesso do enunciatário ao conteúdo transmitido. Na análise concreta da dimensão passional dos textos, da afetividade que eles suscitam na significação em ato, a fase da constituição será, por conseguinte, aquela do contato do enunciatário com o enunciado, da “posição” que ele passa a ocupar (mais próxima e subjetiva ou mais distante e objetiva) quando o conteúdo começa a se concretizar, a tomar forma, diante dele, instaurando um campo de presença. A sensibilização, como manifestante da dimensão passional dos textos, diz respeito aos procedimentos de coniguração da interação entre o enunciatário e os atores do enunciado, portadores dos valores em questão; é a etapa de gerenciamento da tensão que deine os graus de presença do objeto-valor da afetividade, o modo de envolvimento afetivo do sujeito da percepção, o enunciatário. Na microestrutura que a constitui, a disposição responde, portanto, pela determinação do acesso ao conteúdo, ao gerenciamento do ato perceptivo que caracteriza as especiicidades do campo de presença com maior ou menor profundidade; tem a ver com as estratégias de apresentação, e consequentemente de interpretação, do conteúdo. A patemização, por sua vez, é a assimilação da tensão subjacente ao enunciado, à oposição dos valores semânticos de base, com o igural articulado à dimensão igurativa. É o momento da convocação mais sensível ou mais inteligível para a apreensão da presença. A emoção é a resposta, a manifestação da recepção das tensões, a instauração do elo – mais tônico ou mais átono, mais sensível ou mais inteligível – entre o enunciatário e os atores do enunciado. Para fechar a coniguração dos estados de alma, vem a moralização, o momento no qual se concretiza e se manifesta, pela apreciação subjetiva do sujeito já sensibilizado, o “valor do valor”, o valor que o enunciatário passa a atribuir aos valores dados pelo discurso, isto é, o afeto próprio ao estado de alma que então se institui. 868 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 5 Apontamentos inais Partir dessa outra forma de abordagem dos afetos, ou da dimensão passional dos enunciados, parece-nos válido por permitir uma investigação da função constitutiva dos estados de alma, ou seja, da junção (ou do modo de junção) que une o sujeito ao objeto, não apenas em sua pontualidade efetiva, como produto, mas em sua duração, como um percurso gerativo aspectualizado. Ademais, a proposição de um esquema passional canônico articulado em fases sucessivas de concretização discursiva aigurou-se como a melhor maneira de depreender e esboçar a organização estrutural da interação afetiva, da sua progressão, considerando tanto a produção do enunciado quanto a sua interpretação como atos de semiose. Não se trata, contudo, de apresentar um esquema a ser aplicado mecanicamente, mas sim um percurso de discretização do devir da relação intersubjetiva que delineia o efeito passional examinado. O que de fato importa é chamar a atenção do analista tanto às determinações sintáxicas subjacentes à emergência da interação afetiva em causa, e, com isso, à operacionalidade das noções emprestadas – de maneira peculiar, ou seja, semiotizada – da teoria fenomenológica, como percepção, presença, sensível e inteligível, quanto à complexiicação que vai das primeiras somações (sensíveis) à resolução (inteligível), à produção do “valor do valor”, o valor dado aos valores enunciados, base da intersubjetividade. Para além do exame das paixões enunciadas, poder depreender e avaliar, a partir da análise dos textos, as condições de produção dos efeitos de sentido passionais nos parece um passo importante para a teoria, que passa a oferecer uma metodologia coerente para o estudo, dentro da perspectiva semiótica, não só da signiicação atualizada pelo enunciador, quando da produção do enunciado, mas inclusive da signiicação realizada pelo enunciatário, no instante do seu contato com o texto. É aí que, ancorados no discurso enunciado e manifestado por uma linguagem qualquer, e tomando-o como ponto de partida, temos as melhores condições de observar o modo como a tríade enunciador, enunciado, enunciatário interage no processo de geração do sentido. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 869 Referências BEIVIDAS, W. A dimensão do afeto em semiótica: entre fenomenologia e semiologia. In: MARCHEZAN, R. C.; CORTINA, A.; BAQUIÃO, R. C. (Org.). A abordagem dos afetos na semiótica. São Carlos: Pedro & João editores, 2011. p. 13-33. BERTRAND, D. (Coord.). Actes sémiotiques. Bulletin, XI, n. 39, 1986. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA, sob a coordenação de Ivã Carlos Lopes et al. Bauru: EDUSC, 2003. BERTRAND, D. Da imperfeição. Trad. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo: Hacker, 2002. BERTRAND, D. De l’imperfection. Périgueux: Pierre Fanlac, 1987. BERTRAND, D.; FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. Trad. Maria José Rodrigues Coracini. São Paulo: Ática, 1993. BERTRAND, D.; FONTANILLE, J. Sémiotique des passions. Des états de choses aux états d’âme. Paris: Seuil, 1991. BORDRON, J-F. Perception et énonciation dans l’expérience gustative. In: HÉNAULT, A. (Dir.). Questions de sémiotique. Paris: PUF, 2002. p. 639-665. DISCINI, N. Um algoritmo da percepção: o sujeito do afeto. In: MARCHEZAN, R. C.; CORTINA, A.; BAQUIÃO, R. C. (Org.). A abordagem dos afetos na semiótica. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. p. 149-172. FONTANILLE, J. La base perceptive de la sémiotique. In: HELBO, André (Dir.). Dégres. Revue de synthèse à orientation sémiologique, n. 81, p. a1-a25, 1995. FONTANILLE, J. Le désespoir. Actes Sémiotiques. Documents II, n. 16, Paris, CNRS, 1980. FONTANILLE, J. Le schéma des passions. Protée, v. 21, n. 1, p. 33-41, 1993b. FONTANILLE, J. Le tumulte modal: de la macro-syntaxe à la microsyntaxe passionnelle. In: BERTRAND, D. (Coord.). Actes sémiotiques, Bulletin XI, n. 39, p. 12-31, 1986. 870 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 FONTANILLE, J. Modulations passionnelles. In: WIKTOROWICZ, C. Algirdas J. Greimas et Jacques Fontanille, Sémiotique des passions. Des états de choses aux états d’âme. Études littéraires, v. 25, n. 3, p. 153-161, 1993a. FONTANILLE, J. Semiótica do discurso. Trad. Jean Cristtus Portela. São Paulo: Contexto, 2007. FONTANILLE, J. Sémiotique des passions. In: HÉNAULT, A. (Dir.). Questions de sémiotique. Paris: PUF, 2002. p. 601-637. FONTANILLE, J. Sémiotique du discours. Limoges: PULIM, 1998. [2ª ed. ampliada publicada em 2003]. FONTANILLE, J. Sémiotique et littérature. Paris: PUF, 1999. FONTANILLE, J. Vent’anni dopo. Studiare le passioni oggi. Trad. it. di Cristina Greco. E/C, 2012. Disponível em: <http://www.ec-aiss.it/ archivio/tipologico/autore.php>. Acesso em: 15 jan. 2013. FONTANILLE, J.; ZILBERBERG, C. Tensão e signiicação. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Humanitas, 2001. GREIMAS, A. J. De la colère. Actes Sémiotiques. Documents III, n. 27, Paris, CNRS, 1981. GREIMAS, A. J. De la nostalgie. Étude de sémantique lexicale. In: BERTRAND, D. (Coord.). Actes sémiotiques, Bulletin XI, n. 39, p. 5-11, 1986. GREIMAS, A. J. Du sens II. Paris: Seuil, 1983. GREIMAS, A. J. Pour une théorie des modalités. Langages, n. 43, p. 90-107, 1976. GREIMAS, A. J. Pour une théorie des passions. Bulletin, n. 6, juin 1978. HÉNAULT, A. Le débat du 23 mai 1989 entre A. J. Greimas et Ricoeur sur la sémiotique des passions. In: ______. Le pouvoir comme passion. Paris: PUF, 1994. p. 189-216. HÉNAULT, A. Structures aspectuelles du rôle passionnel. In: BERTRAND, D. (Coord.). Actes sémiotiques, Bulletin XI, n. 39, p. 3242, 1986. 871 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 841-871, 2017 LANDOWSKI, E. Para uma semiótica sensível. Educação e realidade, v. 30, n. 2, 2005. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/ article/view/12417>. Acesso em: 20 fev. 2016. MANCINI, R. C. Dinamização nos níveis do percurso gerativo: canção e literatura contemporânea. 20-06. 191f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Linguística geral, FFLCH/USP, 2006. MARSCIANI, F. Les parcours passionnels de l’indifférence. Actes sémiotiques. Documents VI, n. 53, 1984. MARSCIANI, F. Note de lecture. Actes sémiotiques. Documents IV, n. 37, 1982. PARRET, H. Eléments pour une typologie raisonnée des passions. Actes sémiotiques. Documents IV, n. 37, 1982. PARRET, H. Les passions. Essais sur la mise en discours de la subjectivité. Bruxelles: Mardaga, 1986. PORTELA, J. C. Conversations avec Jacques Fontanille. Alfa, n. 50, v. 1, p. 159-186, 2006. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/ view/1401/1101>. Acesso em: 4 mar. 2016. TEIXEIRA, L. Da Imperfeição: um marco nos estudos semióticos. Galáxia, n. 4, p. 257-261, 2002. Disponível em: <http://revistas.pucsp. br/index.php/galaxia/article/view/1296/793>. Acesso em: 10 mar. 2016. THÜRLEMANN, F. L’admiration dans l’esthétique du XVIIe siècle. Actes Sémiotiques. Documents II, n. 11, Paris, CNRS, 1980. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 A compreensão da argumentação linguística: hipótese de interação entre leitura e oralidade1 Linguistic argumentation comprehension: reading and oral language interaction hypothesis Ana Cláudia de Souza UFSC anacs3@gmail.com Helena Cristina Weirich UFSC helenaweirich@gmail.com Leonilda Procailo Unicentro/UFSC lprocailo@gmail.com Resumo: Este artigo objetiva desenvolver e discutir aspectos teóricos relativos à hipótese que fundamenta a interação entre os sistemas linguísticos verbais, no que diz respeito à interferência do conhecimento da linguagem verbal escrita para ins de leitura na maneira como se compreendem aspectos da argumentação linguística na oralidade. A hipótese discutida se fundamenta nos estudos de Olson (1977; 1996; 1997), e a perspectiva de argumentação linguística, nas formulações teóricas de Ducrot (1987; 1989; 2002). Se o domínio da leitura interfere no modo de compreensão de articuladores de argumentação linguística, é possível que se explique por que tais elementos da linguagem verbal, conforme advoga Kail (1978; 2013), são adquiridos tardiamente. 1 Agradecemos ao CNPq e à SETI/FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA/CAPES, pelo apoio aos estudos de pós-graduação da segunda e da terceira autora, respectivamente. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.873-901 874 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 Palavras-chave: compreensão da linguagem; argumentação linguística; domínio da leitura; hipótese da interação entre os domínios linguísticos escrito e oral. Abstract: The present article aims at developing and discussing theoretical aspects pertaining to the hypothesis that underlies the interaction between verbal linguistic systems in terms of interference of written verbal language knowledge with reading purposes in the way comprehension aspects of oral linguistic argumentation happen. The hypothesis under discussion herein is grounded in studies by Olson (1977; 1996; 1997), and the linguistic argumentation perspective is based on the theoretical formulations by Ducrot (1987; 1989; 2002). If reading ability inluences the way connectives of linguistic argumentation are comprehended, it is plausible to argue that those verbal language elements, according to Kail (1978; 2013), are only acquired later. Keywords: language comprehension; linguistic argumentation; reading ability; oral and written linguistic domains interaction hypothesis. Recebido em: 31 de maio de 2016. Aprovado em: 25 de julho de 2016. 1 Introdução Diferentemente da fala, que se caracteriza por ser uma propriedade biologicamente humana, os sistemas de escrita são fruto de invenção e dependem de aprendizagem para serem conhecidos, não estando disponíveis ao acesso apenas por imersão do sujeito em ambientes nos quais seu uso e circulação ocorrem. As escritas foram criadas por meio de tecnologias, a im de registrar as informações e de promover a comunicação e a interação sem a presença concomitante dos sujeitos (OLSON, 1996), tendo-se desenvolvido, no que diz respeito à escrita alfabética, na direção do registro de informações linguísticas orais e, portanto, acústicas, em forma gráica - por meio de letras - e, assim, visual (SCLIAR-CABRAL, 2003; SOUZA, 2012; FROST, 2013). Dadas as diferentes características das realizações linguísticas verbal oral e escrita, os processos de aproximação a elas e de apropriação delas também se distinguem. Enquanto a oralidade é tipicamente Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 875 adquirida, precoce e espontaneamente, logo nos primeiros anos de vida, em contextos de uso e interação social, a escrita implica a implementação de processos de ensino, normalmente escolares, e é aprendida tardiamente em comparação à aquisição da oralidade, exigindo, inclusive, domínio linguístico suiciente para realizar operações metalinguísticas especíicas de natureza fonológica, ortográica, morfológica, sintática e semântica. Segundo Olson e Oatley (2014), a escrita é tanto uma tecnologia de comunicação quanto um instrumento de pensamento. Nesta perspectiva, oralidade e escrita não se distinguem somente pelo fato de esta ser uma tecnologia de representação visual daquela, mas uma tecnologia que permite conceitualizar a língua, tomando-a de modo desconectado ou, como nomeiam os autores, “off-line”. Isso signiica dizer que, por meio da escrita, a língua é tomada e pensada entre aspas, ou seja, a escrita promove um desligamento da condição e da situação da produção linguística (do falante, do tempo, do espaço), do contexto de expressão e das intenções do autor. A relevância do acesso a um sistema de escrita nos e para os processos escolarizados e para a inserção e interação social dos sujeitos tem sido considerada, descrita e discutida em muitos estudos que se voltam tanto às práticas e às políticas educacionais, quanto aos aspectos linguísticos, culturais, sociais e históricos da constituição dos sujeitos e dos grupos sociais (CAGLIARI, 1998; CASTRO, 1999; KAMIL; MOSENTHAL; PEARSON; BARR, 2000; ABREU, 2000; CHARTIER, 1996; 2002; BRITTO, 2012; MORAIS, 2014). É consensual que saber ler e escrever abre possibilidades de circulação e deslocamento ao sujeito e de acesso a informações que não são veiculadas senão por meio de um sistema de escrita. O que não parece ser consensual é o fato de a escrita, segundo argumenta Olson em seus estudos, ser o meio que permite reletir sobre a língua, transformando-a em objeto de análise e, assim, modiicando a relação dos sujeitos com a própria língua e com a oralidade. Quando se trata de sistemas de escrita que se organizam a partir de unidades linguísticas básicas abstratas constitutivas da oralidade, a exemplo dos sistemas alfabéticos aos quais nos referimos neste artigo, tem-se advogado que a imersão, a aprendizagem e o uso efetivo da escrita para ins de leitura se relacionam aos conhecimentos linguísticos prévios de que os indivíduos já dispõem, quando se deparam com a 876 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 escrita2 e iniciam os procedimentos e processos básicos para decifrá-la. Tais conhecimentos são relativos à língua, ao sistema linguístico, cuja natureza é verbal oral. Neste artigo, assume-se que os sistemas alfabéticos de escrita, ainda que guardem memória etimológica (não há exatamente nada em língua, se não há memória, memória coletiva e do próprio sistema, e memória individual, do sujeito da linguagem), se constituem a partir de uma base de natureza fonológica, o que signiica dizer, especiicamente, que, em um sistema alfabético, a palavra é representada por meio da conversão dos fonemas em grafemas, na escrita3. Assim, os grafemas, que se concretizam por meio dos símbolos aos quais damos o nome de letra, representam os fonemas da língua que notam ou registram (SCLIARCABRAL, 2003; GODOY, 2005; FARACO, 2012; SOUZA, 2012). Daí é possível justificar tantas pesquisas que se voltam à investigação do papel que a representação e o processamento fonológico têm no aprendizado inicial de sistemas de escrita alfabéticos (McGUINNESS, 1999, 2006; BLACHMAN, 2000; SCLIAR-CABRAL, 2003, 2013; MORAIS, 2012; LEYBAERT, 2013; EHRI, 2013; ORDEN; KLOOS, 2013; GODOY, 2005; SALLES; PARENTE, 2002, entre muitos outros). Uma das questões em debate diz respeito a ela ser preditiva da aprendizagem, dela decorrente ou seu desenvolvimento ocorrer à medida em que há imersão no sistema de escrita. Se o papel do conhecimento linguístico oral tem sido investigado na aprendizagem da leitura (inclusive nos casos em que os sujeitos têm 2 Referimo-nos, neste artigo, à escrita sempre como sistema, não como atividade ou ato de escrever. 3 Cagliari (1998) assume perspectiva distinta, defendendo que as letras representam unidades fonéticas não correspondentes aos fonemas. Tal perspectiva parece encontrar evidência apenas no que diz respeito à relação do sujeito com a escrita, quando da conversão para seu próprio dialeto. Entretanto, no que concerne ao sistema de escrita, não parece haver respaldo para a possibilidade de uma escrita de bases fonéticas (MORAIS, 2011; SCLIAR-CABRAL, 2003). Ademais, há que se considerar as evidências que vêm sendo apresentadas por estudos que investigam a relação entre leitura/escrita e consciência fonológica, nos quais se discute o papel desta consciência no desenvolvimento da leitura e/ou da escrita, não parecendo haver leitores que não a tenham desenvolvido, principalmente em relação à consciência fonêmica (LEYBAERT, 2013; SCLIAR, 2013; MORAIS, 2012; GODOY, 2005; SALLES; PARENTE, 2002; McGUINNESS, 2006). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 877 restrição de acesso ao sinal acústico, como na surdez (LEYBAERT, 2013; SEIMETZ-RODRIGUES; SOUZA, 2016), o mesmo não se pode dizer do papel que a aprendizagem da escrita, por meio do domínio dos processos de leitura, teria nos usos linguísticos orais no que diz respeito à compreensão. Segundo o que sintetiza Kail (2013), com base em suas próprias pesquisas (KAIL, 1978; KAIL; WEISSENBORN, 1984; 1991) e em estudos desenvolvidos por Anscombre e Ducrot (1977), no processo de aquisição da linguagem oral, a compreensão de conteúdos não explícitos ocorre tardiamente, ou seja, somente depois dos 7 anos de idade4. Até essa fase, de acordo com a perspectiva assumida pela autora a qual dá respaldo à hipótese aqui discutida, a criança parece acessar apenas o conteúdo linguístico manifestado explicitamente, não tendo sensibilidade para perceber elementos linguísticos indicativos da relação entre os conteúdos expressos por meio da língua. Com isso, a autora não defende a existência de uma idade mágica. O que ela discute é que a relação do sujeito com a linguagem verbal oral vai aumentando em complexidade e em condição analítica à medida que aumentam as experiências linguísticas dos sujeitos. Nesse sentido, a criança julgaria como aceitável um enunciado do tipo “Você brincou a tarde inteira na rua, mas está sujo e suado”, por não perceber ou não se ter apropriado do valor do mas no estabelecimento da relação entre as orações que constituem o enunciado. Assim, entendendo que brincar na rua faz suar e icar com o corpo sujo, ela aceita o enunciado e talvez até argumente com a mãe a respeito dele dizendo algo como “Eu estava fazendo buraco no quintal”, não notando que o mas anuncia uma quebra de expectativa ou, conforme Ducrot e Carel (2008), um encadeamento argumentativo transgressivo. A argumentação que a criança elaboraria nesta fase não parece estar respaldada na análise da organização linguística do enunciado, já que, se assim o fosse, a criança perceberia um encadeamento inaceitável no enunciado materno. 4 Em relação à aquisição de conteúdos implícitos, há uma perspectiva distinta da assumida neste artigo, segundo a qual a criança interage socialmente de modo signiicativo, desde a tenra idade, demonstrando compreender conteúdos implícitos e sendo capaz de produzir marcas de argumentação e, também, de humor. Tais pesquisas buscam respaldo em orientações teóricas que se pautam no diálogo como unidade de análise (LEMOS, 2012; DEL RÉ, 2003, 2013; CASTRO, 1992; VIEIRA; LEITÃO, 2014). 878 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 Considerando a exposição de Kail (2013), a argumentação linguística conforme descrita por Ducrot (1987; 1989; 2002; 2009) e Anscombre e Ducrot (1977), e a perspectiva, segundo Olson (1977), da interação entre os sistemas linguísticos escrito e oral no processamento e na compreensão da linguagem, o que faz com que a escrita se constitua como um modelo para a oralidade, nesta pesquisa, busca-se respaldo teórico à hipótese de que a aquisição tardia de elementos linguísticos cuja compreensão e cujo uso exigem acesso ao conteúdo implícito está vinculada ao período inicial do ensino fundamental, no qual a criança é convidada a reletir sobre a linguagem e a imergir no sistema de escrita por meio do processo de alfabetização. Como desdobramento dessa hipótese, explora-se teoricamente, ainda, a possibilidade de o envolvimento do sujeito em contextos nos quais a metalinguagem seja requerida, independentemente da faixa etária, e nos quais se instancia o erro, promover a relexão sobre as diferenças de valores e funções de tais elementos linguísticos de encadeamento argumentativo cuja compreensão exige o acesso ao conteúdo partilhado, mas não manifestado. Experiências pedagógicas com a educação de jovens e adultos ainda não plenamente alfabetizados5 ou alfabetizados apenas em termos rudimentares parecem dar sustentação às hipóteses acima levantadas, uma vez que sujeitos, mesmo em idade adulta, sem que estejam plenamente alfabetizados, cometem falhas recorrentes de compreensão e uso de tais elementos que desempenham papel linguístico no encadeamento entre as orações sendo indicativos de transgressão argumentativa (WEIRICH, 2016). Quanto ao método de pesquisa empregado no desenvolvimento do estudo teórico aqui descrito, seguimos o que recomendam autores como Vasconcelos (2013), Gray (2012) e Gil (2010) sobre a pesquisa bibliográica e sua jornada. Assim, depois de termos recorrido aos fundamentos acerca da teoria da argumentação na língua e das relações entre a fala e a escrita no processamento e na compreensão da linguagem, entre em agosto e setembro de 2015 e novamente entre março e abril 5 O termo plenamente alfabetizado se refere a indivíduos que, além de usarem produtivamente o sistema de escrita, nos processos de decodiicação e codiicação com vistas à signiicação, produzem sentidos a partir daquilo que leem e escrevem, mesmo que esses sentidos se restrinjam à micro e à macroestrutura textual (sem a construção de um modelo situacional). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 879 de 2016, procedemos a buscas de publicações no banco de teses e dissertações e no portal de periódicos da Capes, usando como critério a busca avançada por assunto, com os termos, em português e inglês, sem restrição à data de publicação: (1) aquisição de linguagem, ou aprendizagem da escrita, ou aprendizagem da leitura, ou aquisição da escrita, ou aquisição da leitura; e (2) conectivos, ou conjunções, ou conectores lógicos, ou elementos coesivos, ou articulares argumentativos, ou encadeadores argumentativos ou mas. 2 A argumentação linguística A teoria da argumentação na língua, também nomeada como semântica argumentativa, foi fundada na École des Hautes Études em Sciences de Paris, tendo como principal nome Oswald Ducrot que, inicialmente, atuou em coautoria com Jean-Claude Anscombre e, atualmente, trabalha com Marion Carel, com quem tem desenvolvido a teoria dos blocos semânticos. Na presente pesquisa, o que abordamos da teoria da argumentação na língua não pretende explicá-la em seus pormenores, tampouco abordá-la em todos os seus minuciosos aprimoramentos. Optamos por apresentar sinteticamente este aparato teórico, porque a hipótese aqui discutida repousa sobre processamento linguístico (não discursivo). Especificamente, processamento e compreensão de articuladores argumentativos, que, segundo defende Kail (1978; 2013), são adquiridos tardiamente. Tal aquisição tardia parece ocorrer em momento no qual os indivíduos já entraram em contato efetivo e signiicativo com o sistema de escrita, que passa a fazer parte dos usos linguísticos cotidianos deles e, por hipótese, interferir nos conceitos e usos da língua como um todo. O ponto de partida dessa teoria é definido pelo próprio slogan, formulado por Ducrot e Anscombre e que dá nome à teoria “A argumentação está na língua” (DUCROT, 1989). Essa premissa sintetiza a ideia geral e, em função dela, a teoria passou por três fases, facilmente identiicáveis (forma padrão, topoi e blocos semânticos), nas quais a ideia de argumentação sofreu alterações, mas não a essência da teoria. A busca dos teóricos tem sido a de tirar da teoria tudo aquilo que possa ser identiicado como externo à língua, ou seja, eles têm visado demonstrar que há um tipo de argumentação que se insere na língua, e 880 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 o extralinguístico (o que inclui o discursivo) não precisa ser evocado para explicá-lo. Em uma primeira fase, conhecida como forma padrão da teoria, Ducrot lança a base de sua hipótese, enfatizando que a argumentação na língua não pode ser confundida com a concepção tradicional de argumentação, a retórica. A argumentação retórica daria conta dos casos em que o falante produz determinado argumento (A) para justiicar outro enunciado (C) (DUCROT, 1989). Segundo o autor, esse tipo de enunciado, em português, ganha a forma “A logo C” ou “C já que A”. A ideia por trás da argumentação retórica é a de que o enunciado A representa uma realidade, a qual pode ser tida como verdadeira ou falsa. O falante deve, então, supor que o próprio fato (F) leva à conclusão C. A partir disso, o autor airma que, neste tipo de argumentação, não é a língua que tem papel essencial, mas o discurso. O papel da língua é oferecer conectivos que marcam uma relação argumentativa existente entre A e C, propiciando a estrutura, que é linguística, (A) que aponta para um fato (F). Segundo o autor, o movimento argumentativo que conduz à determinada conclusão é independente da língua e é explicado pela situação discursiva e por princípios lógicos, psicológicos, retóricos ou sociológicos (DUCROT, 1989; para uma revisão acerca do que constitui a argumentação retórica e a argumentação linguística, ver DUCROT, 2009). O tipo de argumentação com o qual Ducrot opera em sua teoria é aquele inerente à língua, buscando explicar o “movimento argumentativo” a partir de mecanismos e princípios linguísticos. Na fase inicial, Ducrot considerava que a força argumentativa de um dado enunciado (A) poderia ser deinida por um conjunto de enunciados que surgiriam como conclusão de A. Neste contexto, o autor explicava a diferença entre enunciados como “Maria comeu pouco ontem” e “Maria comeu um pouco ontem”, os quais representam o mesmo fato da realidade, mas não permitem movimentos argumentativos idênticos, por meio de um conjunto de conclusões gerados pelos operadores argumentativos pouco e um pouco. Ducrot (2009) propõe que a diferença entre os dois operadores se encontra nos encadeamentos possíveis a partir deles, como em “João treinou um pouco, portanto vai vencer” e “João treinou pouco, portanto vai perder”. Assim, a partir da signiicação de pouco e um pouco há a indicação antecipada do que pode ser concluído. Neste período da teoria, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 881 a argumentatividade de um enunciado era, portanto, caracterizada pelo conjunto de conclusões possíveis. Ducrot, todavia, concluiu que “as possibilidades de argumentação não dependem somente dos enunciados tomados por argumentos e conclusões, mas também dos princípios dos quais se serve para colocálos em relação” (DUCROT, 1989, p.21). Assim, entra em cena a segunda forma da teoria da argumentação na língua, os topoi argumentativos, na qual o autor apresenta uma descrição dos enunciados com o mas, defendendo que a orientação argumentativa de dado elemento semântico de um enunciado (e), orientada para uma determinada conclusão (r), é baseada em um princípio linguístico argumentativo, nomeado como topos, que possui três propriedades: universalidade, generalidade e gradação. A universalidade remete ao fato de que o topos é comum ou aceito por uma coletividade ou, pelos menos, assimilável pelo locutor e pelo alocutário. A generalidade trata da possibilidade de generalização do emprego do mesmo topos. A terceira propriedade, gradação, sustenta que a passagem do enunciado para a conclusão é gradual. Isso signiica que os topoi põem em relação duas escalas, na condição em que mudança ou movimento em qualquer uma delas provoca mudança ou movimento na outra, constituindo, os próprios topoi, relações complexas. Como exemplo, em “Sou rico, estou feliz”, no qual o topos utilizado é a riqueza traz felicidade, não apenas se relacionam as escalas da riqueza e de felicidade, mas se “constitui a noção de uma felicidade obtida a partir da riqueza e de uma riqueza suscetível de trazer felicidade” (MOURA, 1998, p. 4). É importante destacar que, para Ducrot (1987), a enunciação é constitutiva do sentido dos enunciados de uma língua. É a atividade linguística que integra os enunciados na cena discursiva. Assim, do ponto de vista deste teórico, no mínimo, deve-se aludir à enunciação para a descrição semântica possível e completa de uma língua. No contexto da teoria dos topoi, em relação ao mas, Ducrot analisa o seguinte exemplo: “É verdade, está quente, mas não o suiciente” (1989, p.31), explicando que, com o emprego do mas, o enunciador “não somente admite o fato de que está quente, mas que ele admite também o valor argumentativo deste fato, ou seja, a validade do topos. No entanto, acrescentando não o suiciente, ele se recusa, na situação presente, a utilizar esse topos, que ele utilizaria somente se o calor fosse maior” (1989, p.31). Ademais, ele defende que, em uma sequência “p 882 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 mas q”, está implicado que p veicula um conteúdo dirigido para uma dada conclusão, que q está dirigido para uma conclusão contrária e que a conclusão veiculada pelo discurso é feita a partir de q, não de p. Vogt (1974) discute, baseado na descrição semântica proposta por Ducrot (1973) o papel do mas, opondo-se à noção de que p mas q seja decomposto em três elementos, a saber: -p, -q, -oposição entre p e q. Segundo o autor, essa decomposição que coloca q em oposição a p poderia ser aplicada a diversos enunciados, no entanto, centenas de outros estariam excluídos. Como ilustração, Vogt analisa o enunciado “Maria foi ao baile mas estava com a mãe” (p. 27) e demonstra que não há oposição entre as duas proposições ligadas pela conjunção mas dada a seguinte situação de discurso entre A e B: A – interessado em Maria; B – conidente de A; Mãe de Maria: contrária à relação (situação conhecida de ambos). Dada essa situação, a proposição q (Maria estava com a mãe) introduzida por mas não é elemento que opõe p a q, mas o elemento que tira de B a conclusão r sugerida pela proposição p (Maria foi ao baile, então vocês icaram juntos). Assim, o valor do signiicado depende de fatores como ato de enunciação ou situação de discurso. Ducrot, em seu livro Polifonía y Argumentación (1988 apud WELP, 2005) elabora uma descrição analítica dos enunciados que apresentam o mas, que foi, depois, nomeado como articulador (DUCROT, 2002), explicando que construções com o mas argumentativo acionam a voz de quatro enunciadores, isto é, de quatro distintas origens que caracterizam cada ponto de vista expresso. Assim a signiicação de frases com mas se dá pelo seguinte conjunto de instruções que cada enunciador oferece ao interlocutor em enunciados do tipo “X mas Y”: 1) Construa quatro enunciadores. O enunciador E1 contém o ponto de vista X. O enunciador E2 tira uma conclusão r de X. O enunciador E3 sustenta o ponto de vista Y. A partir de Y, o E4 conclui não r; 2) Busque os posicionamentos do locutor em relação aos enunciadores. Vejamos um exemplo, que segundo Welp (2005, p. 306), manifesta a gestação da ideia do articulador mas relacionando dois blocos semânticos: “Sim, faz bom tempo, mas me doem os pés.” Neste caso, em que há a recusa a um convite, há quatro enunciadores (E), pelo menos, que devem ser identiicados pelo interlocutor: E1, que airma que faz bom tempo; E2, que fundamenta o convite com base no bom tempo; E3, que manifesta a dor nos pés do locutor; e E4, que conclui, com base na dor nos pés do locutor, que o passeio não vai acontecer (recusa ao convite). Observando Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 883 a segunda instrução, o interlocutor deve localizar os enunciadores com os quais o locutor se identiica. Neste caso, o locutor recusa E2 e se identiica com E4, por meio do emprego do articulador mas. Em relação à E1 e E3, não há recusa. No caso do mas como elemento opositor, a função dele é a de introduzir uma nova proposição, que orienta para a conclusão não-r. Assim, temos, por exemplo, “Ele joga pouco, mas foi mantido no time titular”, em que a primeira oração (p), “ele joga pouco”, orienta para a conclusão (r), “quem joga pouco é excluído do time titular”. No entanto, o mas permite articular a oração (q), “foi mantido no time”, a qual leva à conclusão não-r, ou seja, a conclusão suscitada por (p) não é válida para o locutor. Neste tipo de uso do mas, o argumento inicial continua sendo legítimo; no entanto, há um argumento que se opõe a isso e é mais forte. Discutiremos aqui, brevemente, as relações estabelecidas pelo mas a partir da classiicação que Ducrot e Carel (2008) atribuem ao seu equivalente no entanto na discussão do que chamam de “encadeamentos argumentativos”. Os autores deinem argumentação como dois enunciados em sequência ligados por um conector. Porém, nessa deinição, segundo os autores, há que se atentar para a não rigidez dos enunciados. Assim, em “o caminhão está carregado, mas se move rapidamente”, “está carregado” é suporte tanto em “está carregado, no entanto se move rapidamente” quanto em “se move rapidamente mesmo carregado”. Esse encadeamento argumentativo é classiicado por Ducrot e Carel como “transgressivo” em oposição ao encadeamento “normativo”. Essa classiicação está fundamentada na Teoria de Blocos Semânticos de Carel (1995), segundo a qual os segmentos que constituem um encadeamento argumentativo são dependentes semanticamente, ou seja, podem ser unidos por um conector donc (portanto) ou por um conector pourtant (no entanto). Como ilustração, os enunciados “o atleta está cansado, portanto desistiu da prova” (aspecto normativo) e “o atleta está cansado, mas não desistiu da prova” (aspecto transgressivo) podem ser entendidos como equivalentes por compartilharem do mesmo princípio: desistir da prova. Dessa maneira, tanto o encadeador normativo quanto o transgressivo partilham do mesmo bloco semântico. Ainda que o mas possa assumir diversas funções na língua, aquela que aqui nos cabe discutir diz respeito apenas a ele como articulador linguístico argumentativo. Nesse sentido, o mas articula vozes de enunciadores que se opõem, exercendo o papel de relacionar 884 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 os pontos de vista, de maneira a negar a conclusão da primeira oração, sem recusar o ponto de vista do primeiro enunciador. Ademais, o que é fundamental à pesquisa aqui apresentada, Ducrot insere este elemento em uma visão especíica de língua, tomada como interna e inerentemente argumentativa, o que permite compreender que a própria língua propicia determinados encadeamentos e não outros, segundo os topoi convocados para sua interpretação. 3 A interação entre a oralidade e a leitura: processamento e compreensão da linguagem verbal Nesta seção, será apresentada a hipótese de Olson (1977; 1996; 1997) acerca do papel do conhecimento do sistema de escrita, principalmente da leitura, nas conceitualizações, relexões e usos da linguagem verbal, que deu origem à hipótese aqui discutida sobre as possíveis mudanças na maneira como a linguagem verbal oral pode ser percebida e compreendida, naquilo que diz respeito a aspectos ou unidades da argumentação linguística, à luz do domínio do sistema de escrita por meio da leitura. A perspectiva teórica de Olson procura relacionar, desde sua proposição em 1977, mente e escrita, e fundamenta a ideia de que os sistemas de escrita provocam alterações culturais e cognitivas. Para este pesquisador, a leitura se constitui como um modelo para a oralidade, permitindo seu processamento, entendimento e análise de modo especíico e diferenciado, o que não signiica dizer que quem não lê não compreende ou não analisa a linguagem. Signiica, sim, assumir que saber ler altera os modos de relação com e de compreensão da linguagem verbal e possibilita a contemplação e a retomada da própria estrutura linguística para além do seu uso. Segundo Olson e Oatley (2014, p. 31), a escrita tem vantagem sobre a fala, em razão de um par de fatores que quem aprende a ler passa a entender e gerenciar. O primeiro deles diz respeito ao fato de que a escrita fornece um artefato visível e resistente à passagem do tempo e à mudança no espaço. O segundo se refere à possibilidade de este artefato representar e tornar disponíveis para análise aspectos da forma linguística que, quando trazidos à consciência pela desautomatização do uso, podem ser explorados com objetivos especíicos que ultrapassam a mensagem ou a interação por meio da linguagem. Tais aspectos da forma podem se tornar conscientes por meio da aprendizagem de um conjunto de Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 885 conceitos metalinguísticos e de normas interpretativas que explicitam as propriedades outrora implícitas da linguagem. Essa relexividade, para os autores, é a rota para a tomada de consciência de aspectos da forma e do sentido linguísticos. Ainda que pesquisas com um ponto de vista radical sobre a hipótese das implicações da escrita nos modos de organização do pensamento, da linguagem e da cultura (literacy hypothesis) tenham sido criticadas nos anos 80, Olson modalizou essa premissa, permitindo a compreensão sobre o modo como a leitura pode atuar sobre habilidades linguísticas e cognitivas. De acordo com o autor, a invenção da escrita foi capaz de trazer à consciência aspectos da linguagem falada, tornandoos objetos de relexão, análise e planejamento (OLSON, 1997, p. 274). Desse modo, não parece ser necessário pensar que os inventores dos sistemas de escrita possuíssem um conhecimento metalinguístico prévio. Ao contrário, os sistemas de escrita, elaborados inicialmente apenas para transmitir informações, tornaram-se modelos para a relexão e análise da oralidade. Ainda que nenhum modelo de escrita evidencie todos os aspectos do que é dito, aquilo que é representado pode ser trazido à consciência (OLSON, 1997, p. 276-276). Dessa maneira, uma vez que o modelo tenha sido assimilado, “é extremamente difícil não pensar nesse modelo e observar como uma pessoa não familiarizada com ele perceberia a linguagem” (OLSON, 1997, p.278). De acordo com Olson, a leitura propicia um modelo por meio do qual somos capazes de categorizar e reletir sobre a linguagem verbal oral. Dessa maneira, aprender a ler é, basicamente, “encontrar ou detectar aspectos da estrutura linguística implícita própria de alguém que possa ser mapeada ou representada por elementos de tal roteiro. Consequentemente, uma vez leitoras, as pessoas tendem a ouvir sua fala de acordo com o modelo fornecido pelo impresso” (OLSON, 1996, p. 93, tradução nossa6). É importante salientar que Olson argumenta que não é a atividade da escrita que implica alterações, mas a da leitura, enquanto competência para explorar aspectos culturais especíicos. Como sugere o próprio autor (1997, p.35): Excerto original: [...] “to ind or detect aspects of one’s own implicit linguistic structure that can map onto or be represented by elements of that script. Consequently, once they are readers, people tend to hear their speech in terms of the model provided by print” (OLSON, 1996, p. 93). 6 886 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 é a arte da leitura que permite que um texto seja adotado como modelo para a forma verbal, ou seja, para ‘o que é dito’. Esses modelos do que é dito – sejam eles sons, palavras ou frases – são sempre incompletos, ocasionando problemas de interpretação. Enquanto a escrita fornece modelos razoavelmente adequados para o que é dito, seus modelos para a interpretação do que é dito (em termos modernos, sua força ilocucionária) são menos adequados. Olson, de maneira geral, sugere que a leitura propicia um modelo para a compreensão de unidades linguísticas que são representadas na escrita. Conforme revisão de Morais e Kolinsky (2013), essa hipótese teórica tem respaldo empírico somente no que se refere às habilidades metafônicas, já que a maioria das pesquisas sobre os efeitos do letramento tomam por base a consciência da estrutura sonora das palavras. Destacase que estes autores, no texto de 2013, tratam da relação entre letramento e mudança cognitiva e assumem que “o letramento é o conjunto de representações e processos que o indivíduo adquire como consequência obrigatória e direta de aprender a ler e escrever” (2013, p. 207). Para Olson (1997), os povos falantes de línguas ágrafas (o que se poderia estender para sujeitos falantes, não leitores, de línguas que possuem representação escrita), também têm percepção da linguagem e também operam metalinguisticamente, fato que se pode observar nas onomatopeias, trocadilhos, repentes, rimas, poesias, generalizações de regras e nos recursos para lembrar ou contar o que foi dito e como deve ser entendido e também para inventar histórias iccionais. Os recursos mnemônicos relativos à linguagem também são observados na ausência da escrita como sistema. Todavia, tanto as questões metalinguísticas quanto as mnemônicas são distintas diante da existência, do contato e do domínio da escrita, por meio da competência e da experiência em leitura. A memorização ipisis verbis, por exemplo, parece ser um traço especíico propiciado pela escrita, por depender do confronto entre o que se armazena na memória e o documento original. Tal possibilidade de ampliação da memória potencializada pela escrita também é assumida por Faraco (2012). Mesmo diante da hipótese de que a escrita produz mudanças na relação dos sujeitos com a linguagem verbal, no que diz respeito ao processamento e à compreensão e também no que concerne à conceitualização, é fundamental enfatizar que indivíduos iletrados Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 887 e sociedades ou grupos ágrafos não são nem linguística nem cognitivamente comprometidos ou debilitados. E, para além disso, enquanto a aprendizagem da leitura em uma sociedade tradicionalmente escrita tem evidente utilidade e efeito, isso não parece se conirmar nos efeitos sociais e psicológicos previstos pela hipótese do letramento (OLSON; OATLEY, 2014). Na perspectiva de Olson, a criação dos sistemas de escrita em parte representou a descoberta de algo a mais sobre a fala, e a aprendizagem da leitura é, de modo semelhante, a descoberta de algo a mais sobre como nossa fala pode ser compreendida (e até mal compreendida), coisa que, sem a presença da escrita, não parece se tornar real para a criança, o que não signiica dizer que a criança, antes de estar plenamente alfabetizada, não relita sobre a linguagem verbal e não tenha consciência dela. Signiica tão-somente que acessar um sistema de escrita, por meio dos processos de leitura, permite ao sujeito uma análise especíica da língua em seus pormenores linguísticos a respeito de elementos que possivelmente façam parte do uso da linguagem, mas ainda não estejam disponíveis ao pensamento. Assim, o pesquisador assevera que o texto escrito fornece um modelo para a fala e, parafraseando Benjamin Whorf, airma que “introspectamos nossa língua por meio das linhas estabelecidas pelos nossos roteiros”7 (OLSON, 1996, p.100, tradução nossa). Essa perspectiva produz uma análise bem diferente das implicações conceituais da escrita, respondendo em grande parte por trazer a linguagem ao nível da consciência. A teorização de Olson é fundamentada e desenvolvida a partir de oito princípios, conforme descrito em sua obra publicada em português em 1997 (p. 274-286), quais sejam: 1) É a escrita que possibilita a tomada de consciência de certos aspectos da linguagem falada, ou seja, é ela que os torna objeto de relexão, análise e planejamento; 2) Não há sistema de escrita, incluindo o alfabético, que represente e torne evidente todos os aspectos do que é dito; 3) O que não é representado pela escrita como modelo é difícil ou talvez impossível tornar consciente; 4) Uma vez que uma escrita-como-modelo é assimilada, é extremamente complicado não pensar nesse modelo e observar como uma pessoa não familiarizada com ele perceberia a linguagem verbal; 5) As capacidades expressivas e 7 Excerto original: [...] “we introspect our language along lines laid down by our scripts” (OLSON, 1996, p.100). 888 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 relexivas da fala e da escrita são complementares, não similares. Assim, a aprendizagem da leitura signiica a aprendizagem acerca de como lidar, dispondo somente do texto, com o que não é expresso linguisticamente; 6) Uma consequência importante provocada pelo uso da escrita deriva da tentativa de compensar o que se perdeu no ato de transcrição e seleção do que representar; 7) Sempre que os textos são lidos de uma nova maneira, a natureza é “lida” de modo analogamente novo; 8) Tão logo se reconheça a força ilocucionária de um texto como expressão de uma intencionalidade pessoal e privada, os conceitos que representam o modo como um texto deve ser interpretado fornecem exatamente os conceitos necessários para a representação da mente. À luz do que propõe Olson, não é propriamente a escrita que gera nova maneira de pensar e sim os usos que se fazem dela, a partir das possibilidades de planejamento, reavaliação, estudo e interpretação de um dado texto, tomado distante de suas condições de produção. Somente a escrita, como sistema, parece possibilitar a preservação daquilo que foi realmente dito, não das intenções, para ser comparado com posteriores interpretações. Assim, a escrita possibilitaria reletir e tomar consciência da língua. 4 O saber ler e a aquisição de conectivos: estudos com enfoque na aquisição tardia de conectivos e sua relação com o acesso e o uso do sistema de escrita O peril de aquisição da argumentação é um tema em que há divergência entre os estudiosos, o que se deve, entre outras coisas, à abordagem teórica do objeto “argumentação”, bem como às diferentes metodologias empregadas (o que, também, é decorrente de abordagem teórica). Leitão e Banks-Leite (2013), apresentam duas principais correntes. Enquanto os estudos baseados na tradição ilosóico-retórica apontam para um peril no qual a criança seria capaz de argumentar precocemente – já aos dois anos -, aqueles baseados em teorias da argumentação linguística parecem demonstrar que a argumentação é um fenômeno adquirido tardiamente pelo indivíduo – mais ou menos aos dez anos de idade. Leitão e Banks-Leite (2013, p.45) consideram que essas divergências são devidas às “concepções de argumentação em que se ancoram os estudos, da maneira como, implícita ou explicitamente, Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 889 são deinidas as relações entre as dimensões cognitiva e discursiva da argumentação, bem como de opções metodológicas adotadas na investigação empírica da argumentação infantil”. No caso da abordagem ilosóico-retórica, a coleta dos dados é predominantemente naturalística, já que são observadas situações naturais de fala eliciada, permitindo a análise da produção verbal oral das crianças na interação com um adulto (pais, professores ou pesquisador) ou na interação com outras crianças. Um exemplo de pesquisa desse tipo foi conduzida por Ferreira (2005), na qual a pesquisadora observou situações de interação de crianças (de dois a quatro anos) com seus pais, no horário das refeições diárias. A partir da análise das produções verbais das crianças, a investigação permitiu concluir, segundo a autora, que elas podem antecipar posições contrárias aos seus argumentos dentro dos discursos, o que seria um indicativo da argumentação discursiva precoce. Pesquisas em uma perspectiva dialógica têm, igualmente, demonstrado um peril precoce de aquisição da argumentação (CASTRO, 1992; DEL RÉ, 2003, 2013; VIEIRA; LEITÃO, 2014). Na abordagem linguístico-discusiva, especialmente quando falamos de pesquisas baseadas na teoria da argumentação na língua, em muitos casos são criadas situações experimentais, nas quais as crianças devem reletir sobre a língua no que diz respeito aos elementos de argumentação. Neste tipo de pesquisa, são buscados indícios do nível de compreensão de tais elementos, por meio de situações controladas, tais como testes de entendimento, memorização, complemento de frases e juízos de aceitabilidade. Neste artigo nos baseamos nas pesquisas que, em uma perspectiva psicolinguística, mostram que os elementos argumentativos que pressupõem o acesso a proposições implícitas, relacionadas a conhecimento de mundo ou a crenças, parecem ser compreendidos plenamente em etapa tardia quando considerada a aquisição da linguagem. Antes disso, as crianças conferem a estes elementos signiicados outros ou apenas os ignoram, retirando sentido dos demais itens presentes na oração, que ainda não é compreendida de modo analítico. Kail e colaboradores (KAIL, 1978; 2013; KAIL; WEISSENBORN, 1984; 1991), a partir de diferentes testes, tais como de entendimento, memorização e juízo de aceitabilidade, concluíram que as crianças somente compreendem estes elementos por volta dos dez anos. Em torno dos seis anos, o elemento mas é interpretado como um coordenador, tal 890 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 qual e. Quando a criança tem por volta de oito anos, ele é interpretado como um operador de implicação, com base na pragmática dos enunciados. Kail e Weissenborn, em um estudo intitulado “A developmental cross-linguistic study of adversative connectives: French ‘mais’ and German ‘aber/sodern’” (1984), contrastaram a aquisição do signiicado dos conectores adversativos por crianças francesas e alemãs (entre 7 anos e 8 meses a 9 anos e 11 meses), a im de veriicar, entre outras coisas, se o mas retiicador ou, como as autoras nomeiam em inglês, substitutive but, seria mais facilmente processado e precocemente adquirido em comparação ao mas contrastivo ou argumentativo. Para tanto, foram realizados dois tipos de tarefas com base na oralidade: julgamento de gramaticalidade e complementação de sentenças. Os dois testes foram feitos a partir da escuta de textos lidos em voz alta pelo pesquisador. Como exemplo de texto oral utilizado nos dois testes - julgamento e complementação - temos: “In an indian village in Arizona there is a rodeo every year, where wild horses are tamed. The rodeo takes place in the centre of the village. Cowboys and Indians try to tame the horses and then there is a big picnic. The Indians are usually better at taming horses because they have been around horses since they were little children.” (KAIL; WEISSENBORN, 1984, p.147). O teste de complementação de sentenças com o mas contrastivo ou argumentativo foi constituído pelas seguintes sentenças, lidas pelo aplicador e complementadas oralmente pelos sujeitos: (1) “Joe is an Indian but he…”; (2) “Joe is not an Indian but he…”; (3) “Joe… but he won the rodeo.”; (4) “Joe… but he did not win the rodeo.”; (5) “Joe is a cowboy but he…”. Já o teste de julgamento para o mas contrastivo ou argumentativo foi constituído por sentenças, nas quais P levava a uma inferência baseada em um contexto, capazes de remontar e continuar uma história contada oralmente pelo pesquisador. O participante em teste deveria escolher a sentença que melhor remontasse ao contexto, a exemplo de: (1) “Joe is an Indian but he won the rodeo.”; (2) “Joe is an Indian but he didn’t win the rodeo.”; (3) “Joe is not an Indian but he won the rodeo.”; (4) “Joe is not an Indian but he didn’t win the rodeo.”; (5) “Joe is a cowboy but he won the rodeo.”; (6) “Joe is a cowboy but he didn’t win the rodeo.”. De acordo com as autoras, as hipóteses iniciais relativas à facilidade de processamento do mas retiicador frente ao mas contrastivo e sua aquisição anterior são válidas, já que as crianças com mais idade Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 891 têm um desempenho melhor nos testes de complementação e juízo de gramaticalidade em relação ao mas contrastivo ou argumentativo, enquanto em relação ao mas retiicador o grupo de crianças mais novas teve igualmente um bom desempenho. Além disso, a partir das justiicativas dadas para os julgamentos, as crianças mais novas demonstraram que o conector contrastivo é interpretado como um coordenador, como e, e a relação entre p e q é interpretada como uma implicação. Isso é demonstrado pela rejeição de sentenças, tais como “Joe is not an Indian but he won the rodeo”, seguida da justiicativa “If Joe is not an Indian then he cannot win”. A mesma estratégia é usada na aceitação de sentenças agramaticais como “Joe is an Indian but he won the rodeo” (1984, p.154). Resultado semelhante foi encontrado na pesquisa de Weirich (2016), realizada com dois grupos de estudantes adultos: um grupo (o experimental) considerado leitor, e outro grupo (o controle) considerado não leitor. O grupo de não leitores apresentou padrão de comportamento frente ao julgamento de gramaticalidade de enunciados complexos encadeados pelo mas argumentativo bastante semelhante ao comportamento das crianças mais jovens, o que parece ser um indicativo de que a devida compreensão do item linguístico que marca a argumentação no contexto frasal, neste caso o mas, ocorre somente quando há domínio do sistema de escrita. Além de terem desempenho signiicativamente inferior ao do grupo experimental, principalmente em termos de acurácia, os participantes do grupo controle izeram comentários, como o exempliicado a seguir a partir das anotações do diário de campo da pesquisadora. Ao ouvir o enunciado “Rodrigo se arrependeu, mas voltou a cometer os mesmos erros”, um participante do grupo controle disse: “Então ele não se arrependeu” e imediatamente clicou na tecla vermelha, julgando equivocadamente o enunciado como agramatical.8 Outro participante do grupo controle, ao ser exposto ao 8 No estudo de Weirich (2016), por haver um grupo de sujeitos não leitores, estudantes de alfabetização em Educação de Jovens e Adultos, os participantes foram instruídos a julgar se o português estava bom. Para explicar o que signiica bom português foi ministrada uma aula para cada participante, com exemplos semelhantes aos da coleta de dados. Não se falou em (a)gramaticalidade aos sujeitos para evitar uso de linguagem formal e especializada, o que poderia interferir nos resultados por (in)compreensão da tarefa proposta. 892 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 enunciado oral “Rodrigo come carne gorda todos os dias, mas está acima do peso”, prontamente se manifestou, dizendo: “Tem que estar mesmo”, e optou pela gramaticalidade do enunciado (WEIRICH, 2016, p.88). Bingham (1986) conduziu um estudo que trata do processamento de sentidos relacionais entre sentenças. A pesquisadora investigou as diferenças de processamento na compreensão leitora e oral de 90 sujeitos de 8, 11 e 14 anos, respectivamente no terceiro, sexto e nono anos de escolarização, os quais leram ou ouviram 40 pares de sentenças e escolheram conectores para completar a relação de sentido implícita. Exemplos de pares de sentenças usados no experimento (BINGHAM, 1986, p.54): 1. Relação causal (estímulo alvo): “They cut holes in the ice” e “They wanted to ish in the winter”; 2. Relação adversativa (estímulo alvo): “They can grow crops” e “There is no rain”; 3. Relação aditiva (distrator): “Jane is tal” e “She is a good reader”; 4. Relação temporal (distrator): “The ields were empty” e “Oil was discovered and reported”. Em cada par de sentenças, os sujeitos deveriam optar por um dos quatro conectores disponíveis: because (causal), although (adversativo), and (aditivo) e until (temporal). Os sujeitos, categorizados como tendo o nível adequado de leitura para a série escolar, foram divididos em dois grandes grupos. De um lado, aqueles que izeram o teste por escrito e, de outro, os que izeram o teste oralmente, somente a partir da escuta das instruções e das frases. O estudo, segundo a autora, mostra que os grupos, de forma geral, tiveram desempenhos signiicativamente diferentes, tendo uma melhor performance nos testes de leitura do que nos testes de compreensão oral. Isso pode indicar, de acordo com a pesquisadora, que não há convergência entre compreensão leitora e compreensão oral. Ao mesmo tempo, a idade e a escolaridade foram variáveis signiicativas na compreensão das relações de sentido. No que se refere ao processamento das sentenças adversativas, os sujeitos de 8 anos tiveram um desempenho levemente melhor no teste de compreensão oral do que no teste de compreensão leitora, mas nos outros níveis os leitores tiveram um desempenho signiicativamente maior no entendimento da relação adversativa. A autora explica os dados a partir da ideia de que os leitores atentam mais para a estrutura supericial do que os ouvintes, podendo usar a estrutura Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 893 supericial para estabelecer as relações de sentido no texto. Conforme cita Bingham (1986, p. 51, tradução nossa9): Goldman (1976) e Adams (1980) concluem que a compreensão do discurso linguístico escrito é diferente da compreensão do discurso linguístico oral, porque os leitores têm que observar as características da estrutura supericial da linguagem e os ouvintes não. Eles argumentam que os leitores devem usar a estrutura supericial da linguagem para estabelecer sentidos relacionais dentro do texto. Em contraste, os ouvintes podem depender da informação extralinguística disponível no contexto social da linguagem oral e nos sinais do falante. Se esta é uma descrição adequada de algumas das diferenças entre leitores e ouvintes, então, podemos esperar que os leitores sejam mais sensíveis a estruturas textuais explícitas, as quais estabelecem sentidos relacionais, do que os ouvintes. Cain e Nash (2011), ao estudarem a inluência dos conectivos no processamento e na compreensão de textos por leitores jovens, airmam, com base em Kail e Weissenborn (1991), que crianças de 5 anos de idade são capazes de utilizar uma variedade de conectivos na oralidade. Entretanto, a aquisição destes elementos acontece em uma certa ordem, segundo a qual primeiro vêm os aditivos, como o e, seguidos dos conectivos temporais e causais. Apenas mais tardiamente aparecem os adversativos, categoria na qual o mas se inscreve. Tal característica da aquisição desses elementos parece sofrer interferência da aprendizagem e do domínio da leitura, já que os conectivos são dispositivos coesivos que assinalam as relações entre as frases e são fundamentais à construção de uma representação coerente do sentido do texto. Essa ordem de 9 Excerto original: “Goldman (1976) and Adams (1980) conclude that comprehension of written language discourse is different from comprehension of oral language discourse because readers have to attend to surface structure characteristics of language and listeners do not. They argue that readers must use surface structures to establish relational meaning within the text. In contrast, listeners can depend on extra-linguistic information available from the social context of the oral language and the signals of the speaker. If this is a true description of some differences between readers and listeners, then, we could expect readers to be more sensitive to explicit text structures, which establish relational meaning, than listeners.” (BINGHAM, 1986, p. 51). 894 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 aquisição é, normalmente, atribuída à complexidade cognitiva de diferentes relações. As autoras esclarecem ainda que o uso apropriado dos conectivos, bem como o seu entendimento, continua em desenvolvimento por vários anos depois do aparecimento na produção. Elas acrescentam que até mesmo adultos podem ter diiculdades para apreciar as regras de foco mais soisticadas associadas ao but e ao although. Tal diiculdade foi observada na pesquisa de Weirich (2016), conforme descrito acima. Estudos realizados com crianças falantes de língua inglesa para testar o conhecimento, a compreensão e o processamento do elemento coesivo mas em períodos demonstram que crianças de 8 anos, embora possam fazer o uso adequado deste conectivo na oralidade, ainda apresentam diiculdades em exercícios do tipo cloze test (preenchimento de lacunas). A diiculdade diminui aos 10 anos de idade (CAIN; NASH, 2011). Isso pode ser explicado com base em Kail (2013) para quem a criança, aos 6 anos de idade, interpreta o mas como um operador de coordenação com valor de e. Portanto, enunciados como “Você brincou a tarde inteira na rua” e “está sujo e suado” são percebidos separadamente e, por isso, são aceitos quando encadeados pelo mas. Com o intuito de investigar o uso da argumentação por crianças em idade escolar, Leitão e Almeida (2000) investigaram 157 crianças de segunda, quarta e sétima séries e sua capacidade de gerar contraargumentos na produção escrita. A pesquisa buscou veriicar de que forma crianças e adolescentes, em diferentes etapas do processo tanto de aquisição de habilidades de raciocínio quanto de recursos linguísticos relativos à argumentação, lidam com o contra-argumento na sua produção escrita e como acontece a evolução no trato desse aspecto. Segundo as pesquisadoras, a condução da análise do uso de contra-argumentos levou em conta “qualquer ideia mencionada no curso de uma argumentação, que direta ou indiretamente enfraqueça o ponto de vista defendido pelo proponente de um argumento” (LEITÃO; ALMEIDA, 2000, p. 355). Embora os contra-argumentos sejam normalmente introduzidos por conectivos do tipo: embora, ainda que, mas, Leitão e Almeida não concentraram sua análise nos termos especíicos, por julgarem não serem estes os únicos indicativos da presença da contra-argumentação na escrita das crianças e adolescentes participantes da pesquisa, uma vez que, segundo as autoras, as habilidades linguísticas desses escritores ainda está em desenvolvimento. Os resultados apontam para uma diferença entre as faixas etárias e os níveis escolares na frequência de uso de justiicativas Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 895 para seus pontos de vista e na antecipação de contra-argumentos para suas posições. Enquanto a antecipação de contra-argumentos nos textos escritos por crianças de 2ª série (sete, oito anos) é apenas ocasional, na interpretação das pesquisadoras, passa a ser de uso sistemático na quarta série (dez, onze anos). É relevante enfatizar que a perspectiva teórica assumida por estas pesquisadoras é discursiva e, mesmo assim, os resultados da pesquisa parecem respaldar a hipótese defendida no presente artigo, segundo a qual há interação entre os sistemas linguísticos verbais, no que diz respeito à interferência do conhecimento da linguagem verbal escrita para ins de leitura na maneira como se compreendem aspectos e elementos da argumentação linguística oral. 5 Considerações inais: o domínio da leitura na compreensão oral da argumentação linguística Considerando a hipótese de Olson acerca da interação entre a escrita e a oralidade e acerca do papel que a escrita desempenha sobre a maneira como pensamos a linguagem, e considerando ainda as evidências, conforme apontam Kail e demais pesquisadores acima citados, de que os articuladores ou conectivos são adquiridos tardiamente e em fase na qual já houve apropriação do sistema de escrita pela via da leitura, levantamos a hipótese de que a aquisição tardia se justiicaria pela exigência de uma condição especíica de relexão sobre a língua, que somente seria possível por meio do acesso signiicativo ao sistema escrita, como claramente evidenciam os dados da investigação de Weirich (2016). Tal condição permitiria a compreensão da função e dos valores de articuladores argumentativos, como é o caso do mas. Assim, conforme apontam os estudos apresentados, o desempenho dos sujeitos na compreensão da linguagem pode indicar que a aprendizagem da leitura tem efeitos na análise e no entendimento de elementos argumentativos, já que estes apresentam sentidos relacionais especíicos e contribuem para a construção do sentido do texto escrito. Enquanto na oralidade a compreensão depende, também, de informações disponíveis no contexto extralinguístico e nos sinais dados pelo locutor, na escrita, as informações são acessadas, unicamente, a partir da superfície textual, onde os elementos de argumentação estão linguisticamente representados. Desse modo, ao aprender a ler, o sujeito pode modiicar 896 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 sua compreensão da oralidade, sendo capaz de reconhecer a função argumentativa desses elementos. No que diz respeito ao desenvolvimento da metalinguagem, mesmo que ele ocorra antes da aprendizagem da leitura e até desvinculado de um sistema de escrita, o envolvimento signiicativo dos sujeitos em contextos de uso da escrita para ins de leitura parece promover, segundo o que tem demonstrado a literatura, um tipo diferente de relação com a língua, propiciando que se crie um novo modelo de linguagem, respaldado na escrita, de modo que se possa, inclusive, a partir do erro, reletir sobre as diferenças de valores e funções dos elementos linguísticos de encadeamento argumentativo cuja compreensão envolva o acesso ao conteúdo implicitamente partilhado. Citando o que propõe Olson (1997, p. 101), “as propriedades escritas proporcionam um modelo para a fala; aprender a ler é precisamente aprender esse modelo. Ironicamente, aprender a ler é aprender a ouvir o que é dito, de maneira diferente!” Referências ABREU, M. (Org.). Leitura, história e história da leitura. 3.ed. Campinas: Mercado de Letras/ALB/FAPESP, 2000. PMCid:PMC89876. ANSCOMBRE, J. C.; DUCROT, O. Deux mais en français? Lingua, v. 43, p. 23-40, 1977. BINGHAM, A.B. Readers’ and listeners’ use of cohesive ties in processing relational meaning. Language Sciences, v. 8, n.1, 1986, p. 49-61. https://doi.org/10.1016/S0388-0001(86)80005-5. BLACHMAN, B. A. Phonological awareness. In: KAMIL, M. L.; MOSENTHAL, P. B.; PEARSON, P. D.; BARR, R. Handbook of reading research: volume III. New Jersey/London: Lawrence Earlbaum Associates, 2000. p.483-502. BRITTO, L. P. L. Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio. Campinas: Mercado de Letras, 2012. CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione, 1998. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 897 CAIN, K.; NASH, H. M. The influence of connectives on young readers’ processing and comprehension of text. Journal of Educational Psychology, v. 103, n.2, p. 429-441, maio 2011. https://doi.org/10.1037/ a0022824. CAREL, M. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatics, v. 24, p.167-188, 1995. https://doi.org/10.1016/0378-2166(94)00106-O. CASTRO, S.L. A linguagem escrita e o seu uso: uma perspectiva cognitiva. In: GRIMM-CABRAL, L.; MORAIS, J. (Org.). Investigando a linguagem. Florianópolis: Mulheres, 1999. CASTRO, M.F.P. de. Aprendendo a argumentar. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. CHARTIER, R. Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. CHARTIER, R. Os desaios da escrita. Tradução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Unesp, 2002. DEL RÉ, A. A pesquisa em aquisição da linguagem: teoria e prática. In: DEL RÉ, A. et al. Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolinguística. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2013. p. 13-44. DEL RÉ, A. A criança e a magia da linguagem: um estudo sobre o discurso humorístico. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2003. DUCROT, O. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução de Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987. PMid:3442742. DUCROT, O. Argumentação e “topoi” argumentativos. In: GUIMARÃES, E. (Org). História e sentido da linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p.13-38. DUCROT, O. Os internalizadores. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 37, n.3, p. 7-26, set. 2002. DUCROT, O. Argumentação retórica e argumentação linguística. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 1, p. 20-25, 2009. DUCROT, O.; CAREL, M. Descrição argumentativa e descrição polifônica: o caso da negação. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 43, n. 1, p. 7-18, 2008. 898 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 EHRI, L. C. O desenvolvimento da leitura imediata de palavras: fases e estudos. In: SNOWLING, M. J.; HULME, C. (Org.). A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 153-172. FARACO, C. A. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo: Contexto, 2012. FERREIRA, A. P. M. O desenvolvimento de condutas opositivas em crianças: antecipação de posições contrárias. 2005. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2005. FROST, R. Sistemas ortográicos e processos de reconhecimento de palavras na leitura. In: SNOWLING, M. J.; HULME, C. (Org.). A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 290-313. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010. GODOY, D. M. A. Aprendizagem inicial da leitura e da escrita no português do Brasil: Inluência da consciência fonológica e do método de alfabetização. 2005. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2005. GRAY, D. E. Pesquisa no mundo real. 2. ed. Porto Alegre: Penso, 2012. KAIL, M. La compréhension des présuppositions chez I’enfant. L’Anée psychologique, 78, p. 425-444, 1978. KAIL, M. Aquisição de linguagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2013. KAIL, M.; WEISSENBORN, J. A developmental crosslinguistic study of adversative connectives: French “mais” and German “aber/sodern”. Journal of Child Language, 11, p. 143-158, 1984. https://doi.org/10.1017/ S0305000900005638. PMid:6699107. KAIL, M.; WEISSENBORN, J. Conjunctions: Developmental Issues. In: PIÉRAUT-LE-BONNIEC, G.; DOLITSKY, M. (Org.). Language Bases: Discourse Bases. Amsterdam: Benjamins, 1991. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 899 KAMIL, M. L.; MOSENTHAL, P. B.; PEARSON, P. D.; BARR, R. Handbook of Reading Research: volume III. New Jersey/London: Lawrence Earlbaum Associates, 2000. LEITÃO, S.; ALMEIDA, E. G. S. A Produção de Contra-Argumentos na Escrita Infantil. Psicologia: Relexão e Crítica, v. 13, n. 3, p.351-361, 2000. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000300004. LEITÃO, S.; BANKS-LEITE, L. Argumentação na linguagem infantil: algumas abordagens: In: DEL RÉ, A. (Org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolinguística. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2013. p. 45-61. LEMOS, C.T.G. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Caderno de Estudos Linguísticos. Campinas, v. 42, p. 41-69, 2002. LEYBAERT, J. Aprendendo a ler com uma deficiência auditiva. In: SNOWLING, M. J.; HULME, C. (Org.). A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 397-414. McGUINNESS, D. Why our children can’t read and what we can do about it: a scientiic revolution in Reading. New York: Touchstone, 1999. PMCid:PMC1905163. McGUINNESS, D. O ensino da leitura: o que a ciência nos diz sobre como ensinar a ler. Tradução de Luzia Araújo. Porto Alegre: Artmed, 2006. MORAIS, A. G. de. (Org.). O aprendizado da ortograia. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. MORAIS, A. G. de. Sistema de escrita alfabética. São Paulo: Melhoramentos, 2012. MORAIS, J. Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso, 2014. MORAIS, J.; KOLINSKY, R. Letramento e mudança cognitiva. In: SNOWLING, M. J.; HULME, C. (Org.). A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 207-222. MOURA, H. M. M. Semântica e argumentação: diálogo com Oswald Ducrot. D.E.L.T.A: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 14, n. 1, p.1-7, fev. 1998. https://doi.org/10.1590/S010244501998000100008. 900 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 OLSON, D. R. From utterance to text: the bias of language in speech and writing. Harvard Educational Review, 47, p. 257-281, 1977. https://doi. org/10.17763/haer.47.3.8840364413869005. OLSON, D. R. Towards a psychology of literacy: on the relations between speech and writing. Cognition, [s.i], v. 60, p.83-104, 1996. OLSON, D. R. O mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo, Ática: 1997. OLSON, D. R.; OATLEY, K.. The Quotation Theory of Writing. Written Communication, [s.l.], v. 31, n. 1, p.4-26, dez. 2014. ORDEN, G. C. V.; KLOOS, H. A relação entre fonologia e leitura. In: SNOWLING, M. J.; HULME, C. (Org.). A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 79-96. SALLES, J. F.; PARENTE, M. A. M. P. Relação entre os processos cognitivos envolvidos na leitura de palavras e as habilidades de consciência fonológica em escolares. Pró-Fono Revista de Atualização Cientíica. Carapicuíba, SP, v. 14, n. 2, p. 175-186, maio-ago. 2002. SCLIAR-CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003. SCLIAR-CABRAL, L. Sistema Scliar de alfabetização: fundamentos. Florianópolis: Lili, 2013. SEIMETZ-RODRIGUES, C.; SOUZA, A. C. Ensino da leitura a surdos: o conhecimento do objeto de ensino e suas implicações para a prática pedagógica. Revista Linguagem e Ensino, Pelotas, RS, v. 19, n.1, p.55-79, jan.-jun. 2016. SOUZA, A. C. Leitura emergente: a alfabetização como chave à produção de sentidos a partir do escrito. In: GARCIA, W. A. C; SOUZA, A. C. A produção de sentidos e o leitor: os caminhos da memória. Florianópolis: NUP/CED. 2012. p. 43-60. PMid:22441595. VASCONCELOS, E. M. Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. VIEIRA, A.J.; LEITÃO, S. Argumentação e explicação. In: DEL RÉ, A.; PAULA, L.; MENDONÇA, M.C. (Org.). Explorando o discurso da criança. São Paulo: Contexto, 2014. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 873-901, 2017 901 VOGT, C. O intervalo semântico - contribuição para uma teoria semântica argumentativa. 1974. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-graduação em Linguística, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1974. WEIRICH, H. C. Domínio da leitura e compreensão oral do mas argumentativo. 2016. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pósgraduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2016. WELP, A.K.S. Uma visão argumentativa do mas. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 40, n. 1, p. 299-325, mar. 2005. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 Um estudo das emoções em crônicas jornalísticas A study about emotions in journalistic chronicles Lúcia Helena Martins Gouvêa Universidade Federal do Rio de Janeiro lhluar@yahoo.com.br Resumo: O presente artigo constitui-se em um estudo sobre o conceito de pathos aplicado a crônicas jornalísticas de autoria de Luiz Garcia e publicadas pelo jornal O Globo, do Rio de Janeiro. O pathos, segundo Aristóteles, é um meio de prova derivado da emoção despertada pelo orador nos ouvintes. Patrick Charaudeau, linguista em cuja teoria este trabalho se fundamenta, trata o fenômeno como uma categoria de efeito. Este artigo, portanto, considera o pathos como o efeito produzido pelo locutor no auditório. Como, para o linguista, o interesse da disciplina Análise do Discurso, com relação a esse conceito, está em estudar o processo discursivo por meio do qual as emoções se desencadeiam, este trabalho tem como objetivo analisar as estratégias linguístico-discursivas usadas pelo cronista a im de atuar sobre o auditório, provocando-lhe determinadas emoções com potencial para persuadi-lo. As emoções, à semelhança do conteúdo informativo dos enunciados, são consideradas importantes meios de persuasão. Alguns estudos desenvolvidos por Christian Plantin, sobre o tema, também serão levados em conta. Palavras-chave: efeitos visados; procedimentos linguístico-discursivos; argumentação; persuasão. Abstract: The present article is a study on the concept of pathos applied to journalistic chronicles authored by Luiz Garcia and published by the newspaper O Globo, from Rio de Janeiro. The concept of pathos, according to Aristotle, is an evidence derived from the emotion aroused eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.25.2.903-937 904 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 by the speaker in the listeners. Patrick Charaudeau’s theory, on which this work is based, analyzes this phenomenon as an effect category. This article, therefore, considers the concept of pathos as the effect produced by the speaker in the audience. As to the linguist the interest of Discourse Analysis, with respect to this concept, is to study the discursive process through which emotions are triggered, this study aims to examine the linguistic-discursive strategies used by the chronicler to act on the audience, causing them certain emotions with the potential to persuade them. Emotions, like the informative content of statements, are considered important means of persuasion. Some studies by Christian Plantin on the subject, will also be taken into account. Keywords: intended effects; linguistic and discursive strategies; argumentation; persuasion. Recebido em: 31 de maio de 2016. Aprovado em: 17 de agosto de 2016. 1 Introdução Este artigo tem como proposta apresentar uma pesquisa de pósdoutoramento que estuda o conceito de pathos em crônicas jornalísticas. Trata-se de um trabalho que tem como corpus crônicas de Luiz Garcia publicadas no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, nos anos de 2011, 2012 e 2013. O objetivo é mostrar uma possibilidade de estudo da subjetividade em gêneros opinativos, sob os pontos de vista argumentativo e persuasivo. Para isso, serão considerados os estudos de Patrick Charaudeau sobre pathos, estudos em que ele opera com a patemização como uma categoria de efeito e analisa a organização do universo de patemização. Com a inalidade de analisar, então, o efeito que o locutorcronista produz no auditório (pathos), serão observados os procedimentos linguístico-discursivos que possibilitarão a identiicação desse efeito visado. Vale dizer, serão analisadas algumas estratégias linguísticodiscursivas empregadas pelo locutor para atuar sobre o alocutário, estratégias essas que permitirão reconhecer as intenções do sujeito da Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 905 enunciação e vislumbrar as possíveis consequências no que diz respeito ao público-alvo. Algumas abordagens de Christian Plantin, sobre a temática, também contribuirão, assim como o tratamento dado por Oswald Ducrot, Jean Claude Anscombre e Ingedore Koch a marcas linguísticas da enunciação, e o comportamento de Kerbrat-Orecchioni quanto ao conceito de modalização. 2 Pressupostos teóricos Para falar de pathos, recorre-se à abordagem de alguns autores, iniciando-se pela Retórica de Aristóteles (2012). Segundo ele, a Retórica é uma forma de argumentação, é a arte genuína de argumentar e funda-se em provas, em meios de persuasão. São dois os meios de prova: o meio não artístico, que se constrói por intermédio da evidência de testemunhos ou de contratos escritos; e o meio artístico, que corresponde aos meios de persuasão engendrados pelo orador. A este trabalho, interessam os meios artísticos de prova, que, para Aristóteles, se dividem em três categorias: o logos, o ethos e o pathos. O logos diz respeito aos meios derivados de argumentos verdadeiros ou prováveis, vale dizer, corresponde ao conteúdo proposicional dos enunciados. O ethos é um meio de prova derivado do caráter do orador, isto é, designa a imagem projetada pelo locutor através de seu discurso. O pathos, tema deste artigo, é um meio de prova derivado da emoção despertada pelo orador nos ouvintes, ou seja, é um tipo de prova que recorre aos sentimentos dos ouvintes, afetando-os de tal sorte que eles passem a aderir mais facilmente às teses propostas pelo orador. Segundo Chabrol (2000, p. 112), o ethos e o pathos são indispensáveis no processo da argumentação, na medida em que o objetivo comunicacional não é somente fazer saber do ponto de vista cognitivo, mas também fazer gostar ou fazer tocar para persuadir ou convencer. Para Charaudeau (2007), criador da Semiolinguística do Discurso, o pathos é um conceito que exige um tratamento especial, razão por que adotou o termo patemização ao estudar as emoções no discurso. Segundo ele, a patemização é uma categoria de efeito, o que leva a se considerar, neste artigo, o pathos como o efeito produzido pelo locutor no auditório. 906 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 Pergunta-se, entretanto, como é possível investigar a emoção que se está produzindo no auditório, isto é, no “conjunto daqueles que o orador quer inluenciar com sua argumentação” (PERELMAN, 1996, p. 22), seja pelo discurso oral, seja pelo escrito. Sabe-se que entrar em contato com ouvinte ou com o leitor não é exatamente possível, mas uma forma de investigar o efeito que se pretende produzir é analisar as estratégias linguístico-discursivas empregadas pelo locutor para atuar sobre o alocutário. Charaudeau (2000, p. 136) diz que o interesse da disciplina Análise do Discurso, com relação ao conceito de pathos, está em estudar o processo discursivo por meio do qual as emoções se desencadeiam. Para isso, é importante entender o tratamento dado por ele (1992, 2008) aos “atos enunciativos”, tratamento de acordo com o qual as modalidades, em sentido amplo, dividem-se em alocutivas, elocutivas e delocutivas. Para Charaudeau, as modalidades alocutivas caracterizam-se por implicar o locutor e o interlocutor, mais precisamente a maneira pela qual o locutor impõe um comportamento ao interlocutor. Nesse quadro, estão inseridas algumas modalidades, dentre as quais a da sugestão ou conselho, como pode ser observado neste exemplo colhido do corpus, o qual, vale lembrar, constitui-se de crônicas de um único autor – Luiz Garcia: Não se esqueçam: ao contrário do que muita gente pensa, banqueiro também pode ir para a cadeia — onde os únicos bancos são de madeira dura (Agora, bancos de madeira, 06/08/2013). As modalidades elocutivas, por seu turno, não envolvem o interlocutor no ato locutivo. Elas dizem respeito à maneira pela qual o locutor revela seu ponto de vista sobre aquilo que enuncia. Dentre algumas delas, encontra-se, no corpus, um exemplo que reúne as modalidades da possibilidade e da convicção: [...] não posso garantir, mas aposto que nunca antes [...] o mais alto tribunal mandou para a cadeia [...] um grupo tão numeroso de cidadãos que, alguns anos atrás, mandaram e principalmente desmandaram (A turma da toga, 16/11/2012). Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 907 Por im, as modalidades delocutivas são desligadas do locutor e do interlocutor, no sentido de o discurso não apresentar marcas de 1ª ou 2ª pessoas. A proposta emitida existe em si mesma e se impõe aos interlocutores em seu modo de dizer. São duas as modalidades delocutivas: a da asserção, com suas variantes – dentre elas a modalidade da probabilidade, no exemplo (1) abaixo –, e a do discurso relatado – no exemplo (2). (1) Três diretores do Rural receberam penas de prisão: Kátia Rabello e José Roberto Salgado, 16 anos e 8 meses; e Vinicius Samarane, oito anos e 9 meses. Parece justo — como castigo para a trinca e como exemplo para outros cidadãos espertos do mundo financeiro. (Agora, bancos de madeira, 06/08/2013). (2) Há poucos dias, o presidente do Senado, José Sarney, disse num discurso que a universalização da saúde pública ainda é um desaio para o Brasil. (Saudáveis senadores, 27/03/2012) Como, de acordo com Charaudeau, quando os indivíduos interagem verbalmente, isso ocorre por meio de construções envolvendo locutor e interlocutor, somente locutor, ou não envolvendo nenhum dos dois, é possível entender que o estudo do pathos, como um efeito visado, direcione-se às estratégias linguístico-discursivas usadas para emocionar o interlocutor ou o auditório. O efeito patêmico, para o linguista, pode apresentar uma dupla enunciação: uma enunciação da expressão patêmica e uma enunciação da descrição patêmica. A enunciação da expressão patêmica caracteriza-se por ser simultaneamente elocutiva (“estou furioso”) e alocutiva (“não ique furioso”) e tem por objetivo provocar um efeito de patemização tanto pela descrição ou manifestação do estado emocional do locutor, quanto pela descrição do estado emocional em que o outro deveria encontrar-se. Imagine-se uma cena em que um pai, olhando para o ilho de modo sério, diz a ele: – estou furioso! Provavelmente, essa elocução provoque um sentimento de medo no menino. Por outro lado, na mesma cena, poderia ocorrer de o ilho olhar para o pai e dizer: – Não ique furioso, papai! Essa outra elocução poderia causar, no pai, por exemplo, um sentimento de arrependimento. 908 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 A enunciação da descrição patêmica é delocutiva (“a multidão está furiosa”) e tem como característica propor, ao interlocutor,1 a narrativa de uma cena dramatizante capaz de produzir um efeito patêmico. A partir de uma cena em que duas amigas conversam e uma narra momentos de tensão por que passara, dizendo “a multidão estava furiosa”, a elocução poderia produzir na outra um sentimento de perplexidade. Em se tratando de marcas verbais que provocam efeitos patêmicos, Charaudeau observa que tanto o emprego de certas palavras pertencentes a um universo emocional (indignação, felicidade; reconfortante, reprovável; suavizar, irritar) quanto o emprego de palavras não relacionadas a esse universo (manifestação, bombardeio; roxo, grande; escrever, organizar) podem produzir um efeito patêmico. Isso signiica que o efeito visado pode partir de um discurso explícito e direto ou de um discurso implícito e indireto. Visualizem-se duas cenas em que a primeira se constitui de dois velhos amigos conversando, e a segunda, de duas colegas de trabalho confabulando. Na primeira cena, um narra ao outro o seguinte: – Ele só me disse palavras reconfortantes. Na segunda, uma diz a outra: – O chefe chegou com o olho roxo! Os sentimentos produzidos, na sequência, podem ter sido de alívio e de preocupação, emoções despertadas pelo adjetivo “reconfortante”, cuja própria tonalidade é patêmica, e pelo adjetivo “roxo”, palavra que não descreve emoção. O efeito patêmico ainda pode depender das inferências que os parceiros do ato comunicativo podem fazer, do seu conhecimento de mundo e do conhecimento da situação de enunciação. O efeito patêmico não será o mesmo se se narrar que “um homem pobre ganhou a loteria” ou que “um homem rico ganhou a loteria”. No primeiro caso, a enunciação poderá provocar um comentário do tipo “Que maravilha!”, comentário que será a expressão de um sentimento de alegria. No segundo, poderá suscitar um comentário do tipo “Que absurdo!”, comentário que signiicará a expressão de um sentimento de indignação. O contexto e a situação de emprego das palavras são determinantes para o efeito que produzirão. Neste trabalho, determinados vocábulos como ouvinte, interlocutor, alocutário, auditório – embora isoladamente não sejam sinônimos – estão sendo usados com o sentido de reunião de pessoas a quem o locutor objetiva atingir com seu discurso, seja por intermédio da oralidade, seja por meio da escrita. 1 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 909 Charaudeau apresenta suas propostas sobre o estudo do efeito patêmico, declarando que esse efeito está atrelado a três tipos de condições. A primeira condição diz que o discurso produzido deve-se inscrever em um dispositivo comunicativo em que a inalidade e os lugares que são atribuídos previamente aos parceiros de troca favorecem o surgimento de efeitos patêmicos. Dessa forma, os dispositivos da comunicação cientíica, didática e dos debates de tipo colóquio de peritos não se predispõem ao surgimento desses efeitos, comparando-se com os dispositivos da comunicação iccional, da comunicação midiática (caso das crônicas jornalísticas, cujo estudo foi proposto pelo projeto de pósdoutorado) e das discussões polêmicas, que são altamente favorecedores. É importante destacar que não há discurso completamente neutro, já que, por trás dele, existe sempre um sujeito. O que há são discursos prototipicamente predispostos a provocar efeitos patêmicos e outros não. A segunda condição a que o efeito patêmico está atrelado diz respeito ao campo temático sobre o qual se apoia o dispositivo comunicativo. O tema deve prever a existência de um universo de patemização e propor certa organização das tópicas aptas a provocar o efeito patêmico. Para o discurso midiático, as tópicas da “desordem social” ou de sua “reparação”, por exemplo, são produtoras dos efeitos visados. Já para o discurso publicitário, as tópicas que se predispõem são a da “felicidade” e a do “prazer”. A terceira condição a que o efeito patêmico está ligado determina que a instância de enunciação se valha de uma mise en scène discursiva com visada patemizante (cf. CHARAUDEAU, 2004, p. 23), ou seja, a enunciação deve envolver uma encenação discursiva que trabalhe para um fazer crer e um fazer sentir. Assim, segundo Charaudeau, para que o discurso seja patemizante, é indispensável que ele se inscreva num dispositivo comunicativo determinado, esteja relacionado a certas temáticas e explore a mise en scène discursiva própria da emoção. Ainda sobre o conceito de pathos, é importante registrar algumas abordagens de Plantin (2010) acerca do assunto. Plantin diz que os linguistas que trabalham com as emoções valem-se não só do léxico das emoções (substantivos, verbos, adjetivos) como também dos enunciados de emoções, vendo estes como uma consequência daquele. Como exemplo, ele apresenta os enunciados “João 910 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 despreza o dinheiro” e “O dinheiro enoja João”, cujos verbos denotam sentimentos e cujo experenciador ocupa, no primeiro caso, a posição de sujeito e, no segundo, a posição de objeto. Quanto aos enunciados de emoções, ele diz tratar-se de enunciados-conclusões, isto é, enunciados que surgem a partir de uma argumentação, como exempliica o diálogo que se segue: X: O novo prédio da prefeitura é o mais bonito da região, estou tão orgulhoso! Y: Quando penso em tudo que poderia ter sido feito pelos moradores de rua da comunidade com o dinheiro gasto nesse prédio, tenho vergonha! (PLANTIN, 2010, p. 61) Segundo o linguista, o enunciador é a entidade que experencia algo, e as emoções vividas por ele são as mesmas vividas pelo sujeito falante. Assim, quando Luiz Garcia verbaliza o enunciado (1) “Os números são assustadores” – ao relatar que 711 menores haviam sido detidos por prática de violência e que nos três primeiros meses do ano haviam sido registrados 1.505 estupros (Guerra cívica, 10/05/2013) – ele experencia um sentimento de horror. Quando, porém, diz “Esse precedente, felizmente, não impediu que o secretário de segurança, J.M.B., esteja procurando uma forma legal de investigar a situação inanceira dos policiais civis e militares do Estado do Rio” (Na hora certa, 04/10/2011) – ao tratar da necessidade de os funcionários do Estado revelarem seus bens antes de assumirem um posto – ele experencia um sentimento de felicidade. Outros linguistas também são considerados para a pesquisa da temática em apreço, na medida em que apresentam trabalhos importantes sobre marcas linguísticas da enunciação. Trata-se de marcas linguísticodiscursivas por intermédio das quais se pode identiicar a subjetividade do locutor e, consequentemente, as suas intenções e os efeitos que quer produzir no alocutário. Assim, observam-se, por exemplo, os operadores argumentativos, estudados profundamente por Ducrot e Anscombre, e revistos por outros linguistas, como Koch no Brasil. Segundo Anscombre e Ducrot (1977, p 27), a descrição semântica de um enunciado não deve restringir-se ao seu conteúdo informativo, mas levar em conta também as indicações relacionadas à utilização desse enunciado visando a um determinado tipo de conclusão. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 911 Para os linguistas, estão presentes, na maioria dos enunciados, certas marcas que determinam o seu valor pragmático, independentemente de seu conteúdo informativo. Essas marcas são elementos da gramática tais como quase, apenas, ao menos, até, inclusive, mas, embora, portanto, já que etc; todas indicando a força argumentativa dos enunciados e, por essa razão, denominadas operadores argumentativos. Os operadores argumentativos, então, são marcas linguísticas da enunciação, o que signiica dizer que delineiam o caminho argumentativo dos enunciados, representando a intenção com que estes são produzidos. A intenção, o tempo, o lugar, os interlocutores, as relações sociais, isto é, as condições de realização dos enunciados são constitutivas de seu sentido. Esse fato indica que os operadores argumentativos constituem marcas de subjetividade no discurso, à semelhança de outras tais como “é claro que”, “pode ser que” etc. Assim, compreendem-se os operadores como traços de modalização cujo uso funciona como estratégia argumentativa capaz de causar determinados efeitos no alocutário. Dessa forma, são eles considerados, na pesquisa, como índices de patemização. Outro caminho linguístico-discursivo que conduz à identiicação do pathos está no trabalho com atos de modalização. Koch (2011) diz que um locutor, na realização de seu discurso, manifesta suas intenções e suas atitudes diante dos enunciados que produz por meio de atos ilocucionários de modalização. Esses atos se atualizam por intermédio de vários modos de lexicalização, como verbos performativos (Eu te proíbo de falar nesse assunto), advérbios modalizadores (Provavelmente ele chegue hoje), orações modalizadoras (É possível que isso aconteça) e operadores argumentativos (Embora ele seja displicente, fez o que lhe pedi). Segundo a autora (2011, p. 86), a utilização das modalidades tem por função (a) marcar o maior ou menor grau de engajamento do locutor em relação ao enunciado que produz; (b) deixar claros os tipos de atos que o locutor deseja realizar, e fornecer, ao interlocutor, pistas quanto às suas intenções; (c) permitir a introdução de modalizações efetuadas por outras vozes incorporadas ao seu discurso; e (d) possibilitar a construção de um panorama do evento histórico que é a produção do enunciado. Assim, por intermédio de marcas linguísticas de modalização, é possível realizar um estudo de identiicação do pathos relacionado ao locutor. Kerbrat-Orecchioni (1980, p. 43) também estuda marcas linguísticas da enunciação. A autora encara a enunciação como 912 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 um fenômeno cuja característica básica é a utilização de diversos procedimentos linguísticos que marcam a presença do locutor no enunciado, revelando o seu posicionamento em relação ao conteúdo informativo. Alguns desses procedimentos constituem justamente o que se chamam modalizadores e termos avaliativos, verdadeiras marcas de subjetividade no enunciado. No que diz respeito à subjetividade modalizante, KerbratOrecchioni (1993, p. 168) diz que funcionam, como modalizadores, expressões que especiicam o modo de asserção como constativo, hipotético, obrigatório. Veja-se a modalidade do obrigatório representada no enunciado de Garcia “O bafômetro tem de ser, democraticamente, igual para todos” (O bafo de todos, 09/10/2012). Também desempenham a função de modalizadores expressões que especiicam o modo das proposições enunciadas (Falou rapidamente sobre o assunto) e o grau de adesão do sujeito da enunciação com relação ao conteúdo airmado. Observe-se a modalidade da certeza no enunciado de Garcia “É certo que, na sociedade em que vivemos, homofobia e racismo não são considerados virtudes” (O preço da igualdade, 12/04/2013), por ocasião da relexão do cronista sobre projetos de lei e comissões que analisam os projetos, sendo presidente de uma das comissões um deputado acusado de homofobia e racismo. Quanto à subjetividade avaliativa, a linguista diz que o valor axiológico de um termo requer que se considere o contexto verbal e o que se acredita saber sobre a ideologia do locutor. Em relação ao objeto que é avaliado positiva ou negativamente, deve-se levar em conta a fonte avaliativa, bem como o grau de intensidade com que se formula a avaliação. Um caso bastante produtivo é a utilização de expressões axiológicas superlativas tais como “profundamente injusta”, “altamente eicaz”. O uso de adjetivos (atitude decente), substantivos (Eles têm escrúpulos, sim!) e verbos (O estudante equivocou-se) que expressam a avaliação do locutor também é um procedimento comum, segundo Kerbrat-Orecchioni. Como se veriica, existem diversas formas linguísticas que expressam a subjetividade do locutor e produzem um efeito visado por ele. O estudo dessas marcas linguístico-discursivas torna possível a identiicação do pathos em crônicas de Luiz Garcia, textos que formam o corpus da pesquisa desenvolvida. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 913 Veja-se, a seguir, a análise do corpus, a qual é apresentada por intermédio das hipóteses que nortearam o trabalho, da sua conirmação por meio de gráicos, dos exemplos, bem como do comentário a respeito destes. 3 Resultados da pesquisa Analisando-se o corpus da pesquisa, cujos textos foram publicados ao longo dos anos de 2011, 2012, 2013, constatou-se que Garcia tratou de quinze temáticas, a saber: justiça, política, ética, mídia, religião, contravenção, corrupção, educação, carnaval, segurança, turismo, economia, violência, trabalho e morte. No que concerne aos critérios de análise das crônicas, levaramse em conta estratégias de patemização relacionadas aos conceitos apresentados, há pouco, nos pressupostos teóricos. São estas as estratégias: palavras/expressões que desencadeiam emoção; expressões modalizadoras; princípio de avaliação; enunciados que podem produzir efeitos patemizantes; princípio da classificação, enumeração ou quantidade; princípio de proximidade ou distanciamento; palavras que descrevem de modo transparentes emoções; topoi; verbos que selecionam emoção; palavras que designam calamidade; menção a situações vividas; termos de cores; e termos de emoção descritiva. Vale destacar algumas características do gênero crônica jornalística, na medida em que ele se insere no dispositivo comunicativo midiático, o qual, como disse Charaudeau, é um dispositivo que se predispõe à produção de efeitos patêmicos. Vejam-se as palavras de Costa, abaixo, acerca da crônica: [...] é feita com uma inalidade utilitária e predeterminada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se, assim, no transcurso dos dias ou das semanas uma familiaridade entre os escritos e aqueles que o leem. [...] O estilo deve dar a impressão de naturalidade, e a língua escrita aproximar-se da fala. [...] É a pausa de subjetividade ao lado da objetividade da informação do restante do jornal. [...] A crônica nos obriga à síntese, à capacidade de condensar emoções em parágrafos-barragem. (COSTA, 2009, p. 79-81) 914 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 Levando-se em conta, então, que a crônica jornalística visa a agradar o leitor, estabelecendo uma familiaridade com ele por meio de um estilo livre – o que signiica caracterizar-se pela subjetividade –, entende-se que é um gênero que explora a capacidade de emocionar. Observe-se o trabalho com as hipóteses. Inicia-se a análise, considerando-se a primeira hipótese, segundo a qual o efeito patêmico se apresentaria tanto por meio de uma enunciação da expressão patêmica (alocutiva e elocutiva) quanto por meio de uma enunciação da descrição patêmica (delocutiva), havendo, porém, predomínio desta. A hipótese se conirmou, como pode ser constatado no gráico a seguir: Gráico 1 A partir desse gráico (1), que representa os comportamentos em relação às temáticas reunidas, veriica-se uma pequena diferença entre os dois primeiros grupos (delocutivo X delocutivo e elocutivo) e uma diferença imensa entre os dois primeiros e os dois últimos (delocutivo e alocutivo X delocutivo, elocutivo e alocutivo). São 72 crônicas construídas somente pelo comportamento delocutivo, 69 com os comportamentos delocutivo e elocutivo, 1 com os comportamentos delocutivo e alocutivo e 8 com os comportamentos delocutivo, elocutivo e alocutivo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 915 A hipótese de que o efeito patêmico se apresentaria predominantemente pela enunciação da descrição patêmica (comportamento delocutivo) foi levantada pelo fato de se constatar que Garcia é um cronista cujos textos se aproximam mais da formalidade – comparando-se com outros cronistas –, apesar do gênero descontraído que é a crônica. Dessa forma, seria natural que predominasse o comportamento delocutivo, aquele em que o sujeito da enunciação se apaga, no sentido de não ocorrerem explicitamente marcas de 1ª ou de 2ª pessoas do discurso. Veja-se este exemplo: “Seria salutar que todos os partidos exigissem de suas bancadas que nenhum de seus membros assinasse qualquer documento sem lê-lo primeiro.” (Ler primeiro, 14/08/2012) Este é um exemplo cujo texto é construído por meio de uma enunciação da descrição patêmica, isto é, constrói-se unicamente pelo comportamento delocutivo, já que não foram usadas marcas de 1ª ou 2ª pessoas do discurso. Vale destacar, entretanto, que a ausência dessas marcas apenas camula a subjetividade do locutor, pois ela continua existindo. Seria salutar na opinião de quem? Na opinião do cronista, é claro. Houve efetivamente o predomínio da enunciação da descrição patêmica, e a diferença mínima – 72 crônicas com o comportamento somente delocutivo e 69 com delocutivo e elocutivo – entre os dois primeiros grupos, que, num exame rápido, conduziria a uma conclusão de equilíbrio, constitui-se numa diferença expressiva. Explica-se: 1º) o comportamento delocutivo está em todos os grupos; 2º) as ocorrências de comportamento elocutivo se deram predominantemente pela 1ª pessoa do plural, pessoa do discurso que torna o texto mais formal do que se se usasse a 1ª do singular, portanto menos subjetivo. Veja-se um exemplo com a 1ª pessoa do singular: “Até o momento em que escrevo, as ditas foices ainda estavam empunhadas.” (Quelônios no Planalto, 21/12/2012) No recorte, da temática Política, há uma única ocorrência de marca de 1ª pessoa do singular (escrevo), mas ela é suiciente para fazer sentir a presença do sujeito da enunciação, instância discursiva que corresponde ao sujeito de carne e osso Luiz Garcia. 916 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 Resumindo-se, o cronista produz suas crônicas, valendo-se tanto de uma enunciação delocutiva quanto de uma enunciação elocutiva e alocutiva, apresentando preferência, entretanto, pela primeira. Isso signiica, considerando-se o fenômeno do pathos, que a subjetividade do sujeito da enunciação é disfarçada e que as estratégias de patemização têm um nível de elaboração mais alto do que simplesmente apresentar sua opinião de modo explícito (comportamento elocutivo) ou chamar o leitor para o seu texto (comportamento alocutivo). A segunda hipótese da pesquisa – as marcas verbais que provocariam efeitos patêmicos estariam tanto no grupo de palavras pertencentes a um universo emocional quanto no grupo de palavras não relacionadas a esse universo – foi conirmada. As duas categorias são utilizadas para provocar efeito patêmico. No que diz respeito à primeira parte da hipótese – as marcas verbais que provocariam efeitos patêmicos estariam no grupo de palavras pertencentes a um universo emocional –, destaca-se a estratégia de patemização palavras que descrevem de maneira transparente emoções (alívio, esperança, certeza, consolo, otimismo, tristeza, preocupação, indignação etc). Sobre elas, chegou-se aos seguintes resultados: Gráico 2 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 917 Observa-se, no gráico (2), que as palavras que descrevem emoções apresentaram uma frequência de 56% na temática Política, 18% em Justiça e 12% em Ética; 4% em Educação, 3% em Segurança e Trabalho, 1% em Mídia, Religião, Corrupção e Violência; 0% em Contravenção, Carnaval, Turismo, Economia e Morte. Veja-se um exemplo da temática Justiça: “Não é agradável icarmos sabendo, [...], que um deputado federal teve o exercício do mandato interrompido por ter sido punido pelo feio crime de botar no bolso dinheiro público. Aconteceu, na semana passada, com Natan Donadon, de Rondônia. [...] Ele é o primeiro deputado a ser preso e condenado por desviar verbas de publicidade da Assembleia Legislativa de Rondônia. [...] Policiais e membros do Ministério Público já manifestaram a esperança de que seu caso abra caminho para a punição de políticos de outros estados que tenham cometido.” (Celas, 02/07/2013) Este recorte apresenta o substantivo esperança, palavra que pertence a um universo emocional, que descreve um sentimento: o sentimento de esperança. Ao descrever um sentimento, provoca no leitor uma dada emoção. No caso em apreço, o cronista, ao relatar que policiais e membros do M.P. manifestaram esperança de que outros políticos criminosos fossem punidos, provoca no leitor a mesma emoção de esperança. O leitor elabora, em fração de segundos, o seguinte raciocínio: se os policiais e o MP estão com esperança de que outros sejam punidos a partir do exemplo do que ocorreu com Donadon, então eu também tenho esperança. Vale chamar a atenção, aqui, para o que diz Parret (1997, p. 113), em seu texto intitulado “O pathos razoável”. Para ele, as emoções têm um lado de racionalidade, racionalidade que está presente nas próprias estratégias de sua expressão ou designação. A racionalidade das emoções está presente, por exemplo, no fato de elas serem justiicáveis e, às vezes, até desejáveis. Observe-se que, no trecho em estudo, o leitor da crônica passa a ter esperança de que outros políticos sejam punidos, depois de tomar ciência de que proissionais (e não pessoas quaisquer) como policiais e membros do M.P. manifestaram esperança. Isso signiica que a esperança do leitor tem justiicativa (“Eu tenho esperança, pois policiais e membros 918 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 do MP têm esperança!”), e que é também desejada por ele. O leitorcidadão quer ter esperança, na medida em que deseja que a impunidade com relação aos políticos tenha im. É importante assinalar que se está considerando, aqui, o leitor cujos valores vão ao encontro do sentimento de esperança. Se se tratar de alguém cujos valores são diferentes, a palavra esperança pode provocar um outro sentimento, como o de preocupação, por exemplo. Com relação aos percentuais de uso de palavras que descrevem emoção, destaca-se a frequência de 56% na temática Política, estando o segundo e o terceiro lugares bem distantes – 18% em Justiça e 12% em Ética. A Política é uma temática bastante polêmica por sua própria natureza, mas esse assunto será tratado mais à frente. Quanto à segunda parte da segunda hipótese – palavras não relacionadas a um universo emocional também produziriam efeitos patêmicos –, sobressai-se a estratégia de patemização palavras/ expressões que desencadeiam emoção. Veja-se o gráico: Gráico 3 Como se pode observar no gráico (3), a estratégia palavras/ expressões que desencadeiam emoção apresentou uma frequência de 42% na temática Política, 20% em Justiça, 17% em Ética; 6% em Segurança, 5% em Mídia, 3% em corrupção, 2% em Violência e Educação, 1% Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 919 em Religião, Contravenção e Economia; e 0% em Carnaval, Turismo e Morte. Veja-se um exemplo da temática Política: “O Brasil vive obviamente uma crise social e política, como não se via há muito tempo [...]. Seria perigosa ingenuidade limitar as suas origens à questão das passagens de ônibus urbanos. Ela foi o ponto de partida — um modesto estopim, pode-se dizer — para uma explosão urbana como não se via há muito tempo. E que, pelo visto, estava esperando um pretexto para acontecer.” (Perigosa perplexidade, 25/06/2013) No recorte em apreço, identiicam-se 3 ocorrências de expressões que não pertencem a um universo emocional, mas que desencadeiam emoção no contexto em que se encontram. São elas: crise social e política; passagens de ônibus urbano; explosão urbana. O Brasil, na ocasião em que a crônica foi publicada, passava por um momento muito delicado, que dizia respeito à ocorrência de passeatas por várias cidades do país. Os movimentos protestavam contra a subida do preço das passagens de ônibus e reivindicavam a permanência do passe livre nos ônibus urbanos para estudantes e idosos. Aconteceu, entretanto, que se juntaram, às pessoas sérias e bem intencionadas, criaturas radicais e baderneiras, provocando pânico, ao tentar, por exemplo, invadir e incendiar o Itamaraty em Brasília, invadir a sede da prefeitura no Rio de Janeiro e praticar violência contra prédios públicos. Nesse contexto, Garcia usa, em sua crônica, a expressão crise social e política, o que pode ter provocado um sentimento de apreensão no leitor, na medida em que o caos que todos observavam nas ruas estava sendo traduzido e verbalizado pelo cronista: a sociedade estava em crise; a política estava em crise. O que viria depois? No mesmo recorte, utiliza o sintagma passagens de ônibus urbanos, que pode ter levado o leitor a um sentimento de angústia por fazê-lo lembrar-se da violência nas ruas. O sintagma explosão urbana pode tê-lo conduzido para um sentimento de medo em relação à violência que campeava nas grandes cidades. Com relação aos percentuais de uso dessas palavras/expressões que desencadeiam emoção, assinala-se a frequência de 42% na temática Política, de 20% em Justiça e 17% em Ética. A Política, mais uma vez, destaca-se das demais temáticas, dado que será comentado 920 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 posteriormente. A seguir, veja-se a abordagem sobre o percentual das estratégias como um todo. Gráico 4 Considerando-se a representação das estratégias, no corpus como um todo, isto é, sem se levar em conta as temáticas, vê-se que a estratégia mais produtiva nos textos de Garcia são as palavras/expressões que desencadeiam emoções, com uma frequência de 30,5%. A seguir, vêm as expressões modalizadoras, com 25,6%, o princípio da avaliação, com 19,59%, os enunciados que podem produzir efeitos patemizantes, com 12,18%, o princípio da classiicação, enumeração ou quantidade, com 5,57%, o princípio de proximidade ou de distanciamento, com 4,41%, as palavras que descrevem de modo transparente emoções, com 1,02%, os topoi, com 0,51%, os verbos que selecionam emoções, com 0,21%, as palavras que designam calamidades, com 0,19%, a menção a situações Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 921 vividas, 0,05%, os termos de cores, com 0,02%, e os termos de emoção descritiva, com 0,02%. Eis um exemplo da estratégia mais utilizada por Garcia, as palavras/expressões que desencadeiam emoções (30,5%): “Países europeus e americanos aparentemente cuidam apenas de tirar os jovens delinquentes das ruas pelo maior tempo possível. O que talvez possa recuperar alguns — mas também pode torná-los criminosos, digamos sem qualquer esforço de humor negro, mais eicientes.” (Duas apostas, 07/05/2013) Os sintagmas jovens delinquentes e criminosos mais eicientes constituem expressões que podem provocar emoção, sobretudo num contexto que trata de adolescentes que cometem crimes. A primeira tem potencial para produzir um sentimento de tristeza, na medida em que é nos jovens que está a esperança de um futuro promissor e mais justo. A segunda pode conduzir a um sentimento de medo, pois, ao mesmo tempo em que a sociedade é preservada do convívio com esses criminosos, estando eles na cadeia, ela corre o risco de eles, na convivência com outros delinquentes, aprimorar sua capacidade de praticar o mal e se tornar um perigo maior para todos e para eles mesmos. Veja-se, agora, um exemplo da segunda estratégia mais produtiva nos textos do cronista, as expressões modalizadoras (25,6%): “O nosso Estatuto da Criança e do Adolescente prevê uma pena máxima de três anos de internação; em países europeus e das Américas, menores de 18 anos podem pegar 15 anos de cadeia. Num rol de 17 países, apenas Brasil e Alemanha aplicam o teto de três anos. É uma diferença considerável, indício seguro que um dos critérios está errado. Os nossos índices de criminalidade juvenil sugerem [...] que está na hora de rever nossos índices. Talvez não seja má ideia um estudo suplementar [...].” (Duas apostas, 07/05/2013) No recorte em destaque, observa-se que o cronista está discutindo a problemática do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, estatuto que prevê uma pena máxima de 3 anos de internação, enquanto em outros países os menores de 18 anos podem pegar 15 anos de cadeia. Nesse 922 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 contexto, ele diz que “Num rol de 17 países, apenas Brasil e Alemanha aplicam o teto de três anos.” Assinala-se, aqui, o operador argumentativo apenas, que, para Ducrot (1987, p. 173), é um operador que aponta para a negação da totalidade. A totalidade seriam os 17 países, constituindo, os 2 países, – Brasil e Alemanha – a negação da totalidade. Assim, se apenas 2 países aplicam o teto de 3 anos, conclui-se que são poucos os países com essa conduta; se são poucos os países que adotam teto de 3 anos e muitos os que adotam teto de 15 anos, então o teto de 3 anos talvez seja o menos eiciente. A partir desse raciocínio, elaborado pelo leitor, desponta, nele, um sentimento de dúvida: o que está errado, tendo em vista que os índices de criminalidade juvenil no país são altos? Assim, considerando-se os operadores argumentativos como marcas linguísticas da enunciação e, portanto, uma expressão modalizadora, vê-se que o operador apenas pode suscitar uma emoção, isto é, provocar um efeito patêmico que, no caso, pode ser o de dúvida. Ainda no mesmo recorte, Garcia, acrescenta que está na hora de rever os índices de criminalidade juvenil e que “Talvez não seja má ideia um estudo suplementar [...]”. Veriica-se que o enunciado em destaque pode ser dividido em dois segmentos: o advérbio modalizador talvez e o conteúdo proposicional não é má ideia um estudo suplementar. O advérbio justamente expressa a opinião do locutor sobre aquilo que ele diz: a opinião de não ser má ideia um estudo suplementar é posta sob a modalidade da dúvida. Como o próprio cronista revela dúvida, é natural que o leitor também se sinta em dúvida, efeito patêmico despertado pela expressão modalizadora talvez. A seguir, veja-se um exemplo da terceira estratégia mais produtiva nos textos do cronista, o princípio da avaliação (19,59%): “Os nossos índices de criminalidade juvenil sugerem [...] que está na hora de rever nossos índices. Talvez não seja má ideia um estudo suplementar: acompanhar por um tempo razoável o comportamento de um grupo selecionado segundo critérios óbvios — organização familiar, comunidade de moradia etc. [...]” (Duas apostas, 07/05/2013) Neste trecho, o cronista propõe que, além de se reverem os índices de criminalidade, izesse-se um estudo suplementar segundo Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 923 critérios que, para ele, eram óbvios: organização familiar, comunidade de moradia etc. Vê-se, aqui, a avaliação do locutor com relação aos critérios que deveriam nortear o estudo: critérios óbvios. A partir dessa avaliação, ele transmite sua certeza quanto ao modo como deve ser feito o estudo, provocando no leitor um sentimento de coniança em relação ao tratamento dado por ele ao assunto da criminalidade juvenil. “Coniança”, pois, é o efeito patêmico provocado pela estratégia de patemização princípio de avaliação. A terceira hipótese levantada nesta pesquisa – algumas temáticas seriam mais favorecedoras de efeito patêmico do que outras – também foi conirmada. Observe-se o gráico a seguir: Gráico 5 A temática mais produtiva quanto às estratégias de patemização foi a Política, com uma frequência de 40,45%. A seguir, a Ética, com 23,54% e a Justiça, com 18,90%. As demais apresentaram um percentual 924 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 baixo: Segurança, com 4,63%, Religião, com 2,9%, Educação, com 2,27%, Mídia, com 2,18%, Violência, com 1,27%, Corrupção, com 1,09% e Trabalho, com 1%. As temáticas Turismo (0,54%), Economia (0,54%), Contravenção (0,45%), Carnaval (0,09%) e Morte (0,09%) obtiveram um percentual insigniicante. Segundo Charaudeau, o campo temático sobre o qual o dispositivo comunicativo se apoia é uma condição a que o efeito patêmico está vinculado. O tema deve prever a existência de um universo de patemização e propor tópicas aptas a provocar um efeito patêmico. A Política é um desses temas intimamente relacionados a um universo de patemização, na medida em que trata de casos que são altamente polêmicos – envolvendo variadas opiniões e até paixões, como os identiicados no corpus em estudo – e que acionam tópicas suscetíveis de produzir emoção. A identiicação dessas tópicas, nas crônicas de Garcia, justiica o fato de a Política ter sido a temática mais produtiva em relação às estratégias patemizantes (40,45%). Observe-se, no recorte que se segue, a exploração de duas tópicas – a da atração e a da repulsa (CHARAUDEAU, 2010, p. 53) – aptas a provocar efeito patêmico: “Tem considerável importância, portanto, que numa recente entrevista o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, tenha sentido a elogiável necessidade de cobrar agilidade na execução das penas impostas [...] aos cidadãos (todos da turma de colarinho branco, é bom lembrar) condenados no chamado processo do mensalão. O qual, é sempre bom lembrar, ocupa a vergonhosa posição de maior escândalo político dos últimos anos. Por decisão do STF, última instância do Poder Judiciário, 25 réus foram condenados; 23 receberam penas de prisão, e 11 deles cumprirão a pena, pelo menos inicialmente, em regime fechado.” (Sonos tranquilos, 19/03/13) A crônica Sonos tranquilos enaltece a igura do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, por ele, publicamente, cobrar agilidade no cumprimento das decisões do tribunal com relação à turma do colarinho branco condenada no processo do mensalão. O procurador se referia ao escândalo do mensalão, processo de corrupção praticado por políticos de vários partidos e tendo como mentor o então Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República, José Dirceu. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 925 Nesse contexto político, Garcia aciona a tópica da atração, ao apresentar a imagem positiva de benfeitor de Roberto Gurgel, que recebe a aprovação do leitor – “ele é admirável”. Ao mesmo tempo, Garcia ativa a tópica da repulsa ao referir-se ao processo do mensalão e categorizálo como o maior escândalo político dos últimos anos. Nesse momento, o cronista aponta para a imagem negativa de malfeitor, relacionada aos criminosos, que recebem total desaprovação por parte do leitor – “eles são abomináveis”. Entende-se, então, que os topoi vigentes na cultura dos brasileiros “quem luta contra o crime é admirado” e “quem pratica crimes é abominado” foram os responsáveis pela argumentação engendrada pelo cronista. Garcia, ao usar a expressão “elogiável necessidade”, estava defendendo a tese – de que tinha considerável importância a atitude do procurador-geral da República de cobrar agilidade na execução das penas –, apoiado no topos segundo o qual “quem luta contra o crime é admirado”. Assim, com as variadas estratégias de patemização presentes no recorte e valendo-se de topoi típicos da cultura brasileira, o cronista desperta efeitos patêmicos. Outra estratégia de patemização explorada por Garcia, na crônica intitulada Sonhos tranquilos, é a chamada palavras/expressões que desencadeiam emoção – turma do colarinho branco. Veja-se o raciocínio:  se Gurgel cobrou agilidade na execução das penas impostas aos cidadãos da turma do colarinho branco, então se está fazendo justiça, haja vista o topos que diz, “no Brasil, somente os pobres vão para a cadeia”. A conclusão para a qual o sintagma, em seu contexto, apontou, provoca um sentimento de satisfação por parte do leitor, ou ainda, usando-se uma expressão popular brasileira, um sentimento de alma lavada. Destaque-se que a expressão colarinho branco corresponde à única ocorrência, no corpus da pesquisa, da estratégia que pode produzir efeito patêmico chamada termos de cores. Ainda no recorte em apreço, vale destacar o emprego da estratégia princípio da classiicação, enumeração ou quantidade. Essa estratégia apresentou um percentual baixo (5,57%), mas, nos contextos usados, 926 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 caracterizou-se pela alta possibilidade de emocionar. Quando o cronista diz que 25 réus foram condenados, esse número provoca no leitor um sentimento de prazer, pois, até então, não se havia tido notícia de que qualquer pessoa pertencente ao âmbito da política ou relacionada a esse âmbito tivesse recebido o castigo que merecia ao ser acusada de corrupção. O mesmo sentimento de prazer é despertado no leitor, quando o cronista informa que 23 receberam penas de prisão, na medida em que, se os 23 roubaram o país, então têm de ser afastados da sociedade da mesma forma que são afastados os criminosos pobres. Ao se deparar, entretanto, com a airmação de que 11 deles cumprirão a pena em regime fechado, o leitor experimenta um sentimento de frustração, pois, se somente 11 icarão impedidos de conviver com a sociedade, então mais da metade terá condições de continuar infringindo, de alguma maneira, as regras de convívio social. Deve-se ressaltar, mais uma vez, que o sentimento provocado dependerá do auditório e de seus valores. A temática Ética se apresentou como a segunda mais produtiva quanto ao uso de estratégias que provocam emoção (23,54%). Essa temática trata de questões instigantes, na medida em que tem como ponto central os valores de conduta. Essas discussões, na mídia, têm por objetivo justamente chamar a atenção do leitor sobre o quanto determinados segmentos da sociedade – sobretudo os que ocupam os primeiros escalões – estão desviados dos valores que ainda norteiam a cultura do próprio país. Veja-se um exemplo ligado à falta de ética na política, trecho em que a tópica da repulsa também é explorada. “O que se espera de um advogado de defesa, num processo criminal, é que faça o possível para livrar seu cliente de uma condenação. Quando o acusado é político praticante, há também a expectativa de que a defesa prove – ou faça o possível para isso – que o acusado é cidadão de honestidade impecável [...]. Tudo isso é óbvio e sabido. Mas também se presta a uma airmação do advogado Marcelo Bessa, em sessão do Supremo Tribunal Federal, que no momento cumpre a dolorosa tarefa de julgar o escândalo do mensalão. Para quem já esqueceu, trata-se do desonesto esquema Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 927 de financiamento das ambições eleitorais de membros e aliados do PT com recursos obtidos por um grupo comandado por José Dirceu, principal estrategista do PT no governo Lula. O mensalão está em julgamento no STF. Foi lá que o advogado Marcelo Bessa, [...], defendeu a tese de que o mensalão foi uma iniciativa que nada tinha de ilegal: era apenas imoral. (Imoral e ilegal, 17/08/ 2012).” A crônica Imoral e ilegal trata de uma airmação feita por um advogado do PR – partido político a que, segundo Garcia, “em 2002 o PT presenteou com R$ 20 milhões supostamente para atender a despesas eleitorais” – sobre o escândalo do mensalão. Identiicam-se três estratégias de patemização: princípio de avaliação (dolorosa tarefa; desonesto esquema); palavra que desencadeia emoção (mensalão); e enunciado que pode produzir efeitos patemizantes (defendeu a tese de que o mensalão foi uma iniciativa que nada tinha de ilegal: era apenas imoral). Analisando-se o segmento que representa a estratégia enunciados que podem produzir efeitos patemizantes (12,18%), observa-se o relato do cronista, segundo o qual o advogado “defendeu a tese de que o mensalão foi uma iniciativa que nada tinha de ilegal: era apenas imoral”. O leitor, ao se deparar com o enunciado, ica impactado com a falta de ética do advogado. Esse fato provoca-lhe um sentimento de indignação, de revolta, sentimento desencadeado pelo enunciado que pode produzir efeito patemizante. Se o advogado defendeu a tese de que o mensalão foi uma iniciativa que nada tinha de ilegal: era apenas imoral, então esse proissional perdeu completamente a noção de certo e de errado, ou seja, a noção dos princípios que norteiam a vida em sociedade. A quarta hipótese aventada, a de que o efeito visado seria produzido tanto pelo léxico das emoções (substantivos, verbos, adjetivos) quanto pelos enunciados de emoções, também se conirmou. Quanto ao léxico das emoções, reúnem-se as seguintes estratégias: palavras/expressões que desencadeiam emoção; princípio da avaliação; palavras que descrevem de modo transparente emoções. No que se refere aos enunciados de emoção, tem-se a estratégia enunciados que podem produzir efeitos patemizantes. Observe-se o gráico 6: 928 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 Gráico 6 Por meio do gráico 6, veriicam-se as palavras/expressões que desencadeiam emoção em 1º lugar (30,5%), o princípio da avaliação em 3º (19,6%) e as palavras que descrevem de modo transparente emoções em 7º (1%), na classiicação das estratégias mais produtivas. Os enunciados que podem produzir efeitos patemizantes estão em 4º lugar (12,2%). Veja-se o trecho que se segue, cujo texto pertence à temática política: “É uma discussão secular e universal: o homossexualismo é opção de vida ou doença? A primeira hipótese vem ganhando aceitação, e já há bastante tempo. Principalmente nos países mais civilizados. No Brasil, pode-se dizer que Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 929 isso também acontece. Mais honestamente: começa a acontecer. [...]. Recentemente, por exemplo, o Conselho Federal de Psicologia — e, portando, o governo — emitiu uma resolução proibindo os proissionais da área de tratarem homossexuais, na chamada ‘cura gay’, uma expressão obviamente ofensiva, que deine o homossexualismo como uma doença, e não aquilo que realmente é: uma opção de vida. Tem os seus tarados, é verdade — exatamente como acontece no mundo heterossexual. Outro dia, veio a reação do outro lado: a Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovou um decreto legislativo em sentido contrário. Era uma iniciativa do seu presidente, o deputado Marco Feliciano. A ‘cura gay’ levou paulada de todo lado. [...] o Conselho Federal de Medicina também criticou, com palavras duras.” (A falsa cura, 21/06/2013) Destacam-se, por exemplo, como palavras/expressões que desencadeiam emoções os sintagmas discussão secular e universal, homossexualismo, opção de vida, doença. Observe-se o raciocínio que pode ser formulado pelo leitor: Se a dúvida de o homossexualismo ser uma opção de vida ou uma doença é uma discussão secular e universal, então essa dúvida sempre existiu em todos os cantos do planeta e não está resolvida até hoje. A partir desse raciocínio, é natural que o leitor experimente um sentimento de dúvida também. Observando-se, porém, os índices de avaliação expressão obviamente ofensiva e palavras duras, vê-se um posicionamento mais claro do cronista quanto à questão. O seu discurso aponta para raciocínios do tipo “se a expressão cura gay é obviamente ofensiva, então o homossexualismo não é uma doença”; “se a expressão foi criticada pelo Conselho Federal de Medicina com palavras duras, mais uma vez conclui-se que o homossexualismo não é uma doença”. Essas formulações podem provocar no leitor um sentimento de certeza, certeza essa que é, inclusive, reforçada pelo emprego do advérbio modal realmente (estratégia expressão modalizadora) em “[...] e não aquilo que realmente é: uma opção de vida”. Não se pode deixar de assinalar, entretanto, que o auditório não é inerte, na medida em que avalia o que 930 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 lhe é proposto, podendo aderir completamente, parcialmente, ou recusar a orientação argumentativa do discurso. Quanto à parte da quarta hipótese que diz que o efeito visado seria também produzido pelos enunciados de emoções, vê-se a sua conirmação por meio do enunciado que pode produzir efeitos patemizantes “A “cura gay” levou paulada de todo lado”. A partir dele, o raciocínio do leitor poderia ser este: se A “cura gay” levou paulada de todo lado, então é certo que o homossexualismo não é uma doença. A quinta hipótese elaborada – orações modalizadoras, advérbios modais, verbos modais e operadores argumentativos constituiriam estratégias produtivas para alcançar efeitos patêmicos – também foi conirmada. As quatro categorias gramático-discursivas – é pena que; obviamente; pode-se dizer; inclusive –, sob a rubrica “expressões modalizadoras”, foram bastante utilizadas, ocupando o 2º lugar (25,6%) na classiicação das estratégias mais produtivas como um todo. Veja-se, agora, cada uma separadamente: Gráico 7 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 931 Os operadores argumentativos apresentaram uma frequência de 32%; as expressões adverbiais modais, 31%; as orações modalizadoras, 25%; e os verbos modais, 12%. Os operadores argumentativos (32%) desempenham uma função muito importante no texto, seja do ponto de vista semântico, seja do ponto de vista discursivo. Se se tratar de conectores (portanto, embora, porque etc.), semanticamente, tornam explícita uma relação de sentido entre as orações; discursivamente, introduzem enunciados que funcionam como argumentos que apontam para determinada conclusão, ou introduzem tese. Se se tratar de advérbios ou palavras cuja classe gramatical é incerta ou que não foram encaixadas em nenhuma classe pela GT (inclusive, exceto, apenas etc), semanticamente expressam um determinado sentido – de inclusão, de exclusão, de diminuição, por exemplo – e discursivamente também introduzem argumentos que orientam para determinada conclusão. Dessa forma, é natural que os operadores argumentativos constituam uma estratégia produtiva. Vejase este exemplo: ‘Tem sido frequente na mídia a discussão sobre virtudes e defeitos do nosso sistema penal. Com ênfase nos defeitos. Dois exemplos, colhidos nos jornais dos últimos dias: o primeiro é a constatação de que somos talvez generosos demais com adolescentes que cometem crimes graves, inclusive homicídios.” (Duas apostas, 07/05/2013) O operador inclusive, que semanticamente tem o valor de inclusão, discursivamente introduz o argumento mais forte de uma escala de argumentos que apontam para dada conclusão. No recorte em apreço, a tese de que o nosso sistema penal tem defeitos é defendida por um exemplo retirado de jornal segundo o qual se constatou que somos talvez generosos demais com adolescentes que cometem crimes graves, inclusive homicídios. Observa-se que ser generoso demais com quem comete crimes graves (argumento menos forte) pode causar problemas. Ser generoso demais com quem comete homicídios (argumento mais forte), então, pode provocar problemas maiores ainda. Assim, conclui-se que o sistema penal brasileiro tem defeitos, conclusão que pode orientar o leitor para um sentimento de insegurança. As expressões adverbiais modais (31%) também apresentaram uma ótima frequência, e isso se deve ao fato de se constituírem de 932 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 advérbios ou locuções que expressam o ponto de vista do enunciador sobre o teor daquilo que ele diz. Constituem um modo de expressar a subjetividade do sujeito da enunciação. Em se tratando do gênero em estudo – a crônica jornalística –, é natural que a subjetividade esteja presente. Veja-se um exemplo: “Ninguém no governo fala em aplicar venda e mordaça nos meios de comunicação. Claro: isso seria antidemocrático, coisa de quem tem medo da verdade. O que se discute nos gabinetes de Brasília é simplesmente – se é que o advérbio pode ser aplicado a questão obviamente complexa – o estabelecimento de um ‘marco regulatório da mídia’. Trata-se de uma proposta do PT apoiada, com indisfarçável entusiasmo, por pelo menos dois ministros que dão expediente no Palácio do Planalto: [...].” (O marco, 06/09/2011) Observa-se, no recorte, o uso da expressão adverbial modal obviamente, modiicando o adjetivo complexa. O cronista, ao discutir uma proposta do PT de instalar um marco regulatório na mídia, declara que se trata de uma questão não só complexa, mas obviamente complexa. Isso signiica que, em sua opinião – e não necessariamente na de outros – é indiscutível a complexidade da implantação de um marco regulatório na mídia. Com essa certeza em suas palavras, o leitor tenderá a dar-lhe razão e, consequentemente, tenderá a experimentar um estado de alerta. As orações modalizadoras (25%), como estratégia de patemização, apresentaram um percentual um pouco menor, provavelmente por se constituírem em construções sintáticas complexas – correspondem, normalmente, a uma oração principal em que se encaixam orações subordinadas completivas. De qualquer forma, tiveram uma boa representatividade. Veja-se o exemplo a seguir: “[...] reportagem da ‘Veja’ desta semana: segundo a revista, o próprio Lula teria procurado ministros do Supremo Tribunal Federal com uma oferta marota: em troca de um adiamento do julgamento do mensalão – para depois das eleições de outubro, pelo menos – ele protegeria o ministro Gilmar Mendes de boatos sobre mordomias que teria Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 933 recebido do bicheiro Carlinhos Cachoeira numa viagem a Berlim. Gilmar conirmou ter encontrado o bicheiro na Alemanha, mas acrescentou ter dispensado, com a necessária indignação, a necessidade de qualquer proteção petista para a história das mordomias. De tudo isso, o que sobra para ser esclarecido é a possível gafe de Lula. Não há dúvida de que ele conversou com o ministro do STF. E é óbvio que o PT tem razões de sobra para desejar uma decisão favorável – ou, pelo menos, pouco dolorosa – dos ministros sobre o desagradável (se é aceitável este eufemismo) episódio do mensalão.” (Longe dos bicheiros, 29/05/2012) No trecho em apreço, observam-se duas ocorrências de orações modalizadoras: Não há dúvida de que e é óbvio que. Ambas expressam a mesma modalidade, a da certeza, o que signiica que, na opinião de Garcia – e não necessariamente na de outras pessoas –, é fato que Lula propôs ao ministro Gilmar Mendes uma troca de favores: o adiamento do julgamento do mensalão para depois das eleições pela proteção do ministro de boatos sobre mordomias que teria recebido do bicheiro Carlinhos Cachoeira numa viagem a Berlim. Também é fato que o PT tem razões de sobra para desejar uma decisão favorável dos ministros sobre o desagradável episódio do mensalão. Diante de tantas certezas por parte do cronista, o leitor pode experimentar um sentimento de satisfação – se for contrário aos procedimentos do PT –, ou de contrariedade – se for favorável aos procedimentos –, já que o ex-presidente, ao fazer uma “oferta marota”, estaria confessando que o PT estava efetivamente envolvido no esquema do mensalão. Por im, no que se refere às estratégias de patemização, os verbos modais (12% = 237 oc.) obtiveram um percentual mais baixo. É possível que a explicação esteja nos fatos de Garcia comumente mostrar-se categórico em relação às suas airmações e de fazer isso se utilizando fartamente de expressões adverbiais modais (596 oc.) (obviamente, 59 oc.; certamente, 40 oc.). Quando abrandava o sentido de uma assertiva, usava preferencialmente os verbos modais (poder, parecer) no lugar de expressões adverbiais como “possivelmente (8 oc.)” etc. Como a sua 934 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 tendência é ser bem mais categórico do que conciliador, entende-se o percentual mais baixo dos verbos modais. Veja-se este exemplo: “Ela (Dilma) propôs à plateia um pacto nacional em cinco áreas: responsabilidade iscal, reforma política, saúde, educação e transportes públicos. E mais um plebiscito sobre a criação de uma assembleia constituinte destinada a fazer uma reforma política. Tudo isso parece ser realmente necessário. Inclusive a promessa de investimento pesado em transportes públicos [...]”. No recorte em análise, observa-se uma ocorrência do verbo modal “parecer” seguido do ininitivo “ser”. Por meio da locução (seguida de “realmente”), veriica-se o emprego da modalidade da probabilidade no que diz respeito à real necessidade das medidas propostas pela presidente. A probabilidade verbalizada pelo cronista pode provocar no leitor um sentimento de otimismo quanto à perspicácia da Presidente. Levando-se em conta a pesquisa como um todo, encerram-se aqui as principais informações e discussões realizadas. A seguir serão arroladas as principais conclusões. 4 Considerações inais Este artigo apresentou os resultados de uma pesquisa que estudou o processo de patemização em crônicas jornalísticas escritas por Luiz Garcia. Para isso, valeu-se da visão de Patrick Charaudeau e de Christian Plantin sobre a temática, bem como de trabalhos de outros estudiosos acerca dos conceitos de enunciação e modalização. A análise do corpus orientou-se pelos conceitos emitidos pelos linguistas e por cinco hipóteses aventadas, as quais serão comentadas na sequência. A primeira hipótese postulou que o efeito patêmico se apresentaria tanto por meio de uma enunciação da expressão patêmica (alocutiva e elocutiva) quanto por meio de uma enunciação da descrição patêmica (delocutiva), havendo, porém, predomínio desta. A sua conirmação, representada no gráfico 1, mostrou a presença dos dois tipos de enunciação e indicou o predomínio da segunda, na medida em que o comportamento delocutivo esteve presente em todos os grupos. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 935 A segunda hipótese da pesquisa, de acordo com a qual as marcas verbais que provocariam efeitos patêmicos estariam tanto no grupo de palavras pertencentes a um universo emocional quanto no grupo de palavras não relacionadas a esse universo, também foi conirmada. As duas categorias são utilizadas para provocar efeito patêmico, sendo, a primeira, representada pela estratégia de patemização “palavras que descrevem de maneira transparente emoções” (gráico 2), e a segunda, pela estratégia “palavras/expressões que desencadeiam emoção” (gráico 3). Considerando-se a representação das estratégias, no corpus como um todo – sem interferência das temáticas – pode ser observada (gráico 4) a produtividade de todas as estratégias, destacando-se como mais produtiva a chamada “palavras/expressões que desencadeiam emoções”. A terceira hipótese levantada dizia que algumas temáticas seriam mais favorecedoras de efeito patêmico do que outras. O gráico 5 ilustrou plenamente a sua conirmação, revelando, por exemplo, que a temática Política suplantou as demais quanto à produção de estratégias patemizantes. A quarta hipótese aventada, a de que o efeito visado seria produzido tanto pelo léxico das emoções quanto pelos enunciados de emoções, também se conirmou. Certamente houve predomínio do léxico das emoções, já que essa categoria foi representada por três estratégias: palavras que desencadeiam emoção; princípio da avaliação; palavras que descrevem de modo transparente emoções. No que se refere aos enunciados de emoção, estes foram representados por uma única estratégia: enunciados que podem produzir efeitos patemizantes. O gráico 6 ilustra esses resultados. A quinta hipótese, de acordo com a qual orações modalizadoras, advérbios modais, verbos modais e operadores argumentativos constituiriam estratégias produtivas para alcançar efeitos patêmicos, foi igualmente conirmada. As quatro categorias, que se reuniram sob a rubrica “expressões modalizadoras”, foram muito utilizadas, ocupando o 2º lugar no gráico que representou a produtividade das estratégias como um todo. Considerando-se as quatro categorias separadamente, observouse, o predomínio dos operadores argumentativos, seguidos pelos advérbios modais, orações modalizadoras e verbos modais (gráico 7). Fecha-se este artigo, que reúne os principais dados da pesquisa, com a convicção de que muito ainda pode ser estudado sobre o processo de patemização e espera-se avançar nessa tarefa, juntamente com os 936 Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 orientandos que estão trabalhando com o conceito de pathos aplicado à mídia. Referências ANSCOMBRE, J. C. e DUCROT, O. Deux mais en français. Língua. Amsterdam, n. 43, p. 23-40, 1977. ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. CHABROL, C. De l’impression des personnes à l’ expression communicationnelle des émotions. In: PLANTIN, C. et alii. (Org.). Les émotions dans les interactions. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000, p. 105-124. CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992. CHARAUDEAU, P. Para uma nova análise do discurso. In: CARNEIRO, A.D. (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oicina do Autor, 1996. p. 5-43. CHARAUDEAU, P. Une problématisation discursive de l’émotion: à propos des effets de pathémisation à la télévision. In PLANTIN, C. et alii. (Org.). Les émotions dans les interactions. Lyon, Presses universitaires de Lyon, 2000. p. 124-155. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dictionnaire D’Analyse du Discours. Paris: Éditions du Seuil, 2002. CHARAUDEAU, P. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: MACHADO, I. L.; MELLO, R. (Org.). Gêneros: relexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD – Faculdade de Letras da UFMG, 2004. p 13-41. CHARAUDEAU, P. Pathos e discurso político. In: MACHADO, I.L.; MENEZES, W.; MENDES, E. (Org.). As emoções no discurso. v. I. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. p. 240-251. CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v.25, n.2, p. 903-937, 2017 937 CHARAUDEAU, P. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. In: MENDES, E.; MACHADO, I.L. (Org.). As emoções no discurso. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v. II, p. 23-56. COSTA, S.R. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987. GRICE, H. P. Lógica e conversação. In: DASCAL, M. (Org.). Fundamentos metodológicos da linguística. Campinas: Editora do Autor, 1982. v. IV, p. 81-103. KERBRAT-ORECCHIONI, C. La enunciación: de la subjetividad en el lenguaje. Buenos Aires: Edicial, 1993. KOCH, I. V. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2011. MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2010. MAINGUENEAU, D. Ethos, cenograia, incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2011, p. 69-90. PARRET, H. O pathos razoável. In: PARRET, H. A estética da comunicação: além da pragmática. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 107-130. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PLANTIN, C. A argumentação: história, teorias, perspectivas. São Paulo: Parábola, 2008. PLANTIN, C. As razões das emoções. In: MENDES, E.; MACHADO, I.L. (Org.) As emoções no discurso. Campinas: Mercado das Letras, 2010. v. II, p. 57-80.