Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.27 - Nº 1 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 27 n. 1 p. 1-453 jan./mar. 2019 Revista de estudos da linguagem Universidade Federal de Minas Gerais REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira Faculdade de Letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETORA: Sueli Maria Coelho Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Revisão e Normalização Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Alda Lopes Durães Ribeiro Úrsula Francine Massula Geraldo Abreu Gustavo Ximenes Cunha Heliana Ribeiro de Mello Secretaria Úrsula Francine Massula REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 Revista de estudos da linguagem V. 27 - Nº 1 - jan.-mar. 2019 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Científico) [Spain] Sindex (Sientific Indexing Services) [USA] Web of Science [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany] Revista de estudos da linguagem Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Editores-associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Conselho Editorial Alejandra Vitale (UBA, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, França) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Scott Schwenter (OSU, Columbus, Ohio, Estados Unidos) Shlomo Izre'el (TAU, Tel Aviv, Israel) Stefan Gries (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Teresa Lino (NOVA, Lisboa, Portugal) Tjerk Hagemeijer (ULisboa, Lisboa, Portugal) Comissão Científica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Alessandro Panunzi (UniFl, Florença, Itália) Alina M. S. M. Villalva (ULisboa, Lisboa, Portugal) Aline Alves Ferreira (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Ana Lúcia de Paula Müller (USP, São Paulo/SP, Brasil) Ana Maria Carvalho (UA, Tucson/AZ, Estados Unidos) Ana Paula Scher (USP, São Paulo/SP, Brasil) Anabela Rato (U of T, Toronto/ON, Canadá) Aparecida de Araújo Oliveira (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Aquiles Tescari Neto (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Augusto Soares da Silva (UCP, Braga, Portugal) Beth Brait (PUC-SP/ Universidade de São Paulo-USP, São Paulo/SP, Brasil) Bruno Neves Rati de Melo Rocha (UFPA, Altamira/PA, Brasil) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL, Pelotas/RS, Brasil) Celso Ferrarezi (UNIFAL, Alfenas/MG, Brasil) César Nardelli Cambraia (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Cristina Name (UFJF, Juiz de Fora/MG, Brasil) Charlotte C. Galves (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Deise Prina Dutra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Diana Luz Pessoa de Barros (USP/ UPM, São Paulo/SP, Brasil) Dylia Lysardo-Dias (UFSJ, São João del-Rei/MG, Brasil) Edwiges Morato (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Emília Mendes Lopes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Esmeralda V. Negrão (USP, São Paulo/SP, Brasil) Flávia Azeredo Cerqueira (JHU, Baltimore/MD, Estados Unidos) Gabriel de Avila Othero (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Gerardo Augusto Lorenzino (TU, Filadélfia/PA, Estados Unidos) Glaucia Muniz Proença de Lara (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Hanna Batoréo (UAb, Lisboa, Portugal) Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Heronides Moura (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Hilario Bohn (UCPEL, Pelotas/RS, Brasil) Hugo Mari (PUC-Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil) Ida Lucia Machado (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Ivã Carlos Lopes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jean Cristtus Portela (UNESP-Araraquara, Araraquara/SP, Brasil) João Antônio de Moraes (UFRJ, Rio de Janeiro/ RJ, Brasil) João Miguel Marques da Costa (Universidade Nova da Lisboa, Lisboa, Portugal) João Queiroz (UFJF, Juiz de Fora/MG, Brasil) José Magalhaes (UFU, Uberlândia/MG, Brasil) João Saramago (Universidade de Lisboa) José Borges Neto (UFPR, Curitiba/PR, Brasil) Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Laura Alvarez Lopez (Universidade de Estocolmo, Stockholm, Suécia) Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam, Amsterdã, Holanda) Laurent Filliettaz (Université de Genève, Genebra, Suiça) Leonel Figueiredo de Alencar (UFC, Fortaleza/CE, Brasil) Livia Oushiro (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Lodenir Becker Karnopp (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Luiz Amaral (UMass Amherst, Amherst/MA, Estados Unidos) Luiz Carlos Cagliari (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Luiz Carlos Travaglia (UFU, Uberlândia/MG, Brasil) Marcelo Barra Ferreira (USP, São Paulo/SP, Brasil) Marcia Cançado (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Márcio Leitão (Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa/PB, Brasil) Marcus Maia (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Antonieta Amarante M. Cohen (UFMG, Belo Horizonte/ MG, Brasil) Maria Bernadete Marques Abaurre (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR, Curitiba/PR, Brasil) Maria do Carmo Viegas (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Luíza Braga (PUC/RJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Maria Marta P. Scherre (UNB, Brasília/DF, Brasil) Miguel Oliveira, Jr. (Universidade Federal de Alagoas) Milton do Nascimento (PUC-Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil) Monica Santos de Souza Melo (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Patricia Matos Amaral (UI, Bloomington/IN, Estados Unidos) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP, São Paulo/SP, Brasil) Philippe Martin (Université Paris 7, Paris, França) Rafael Nonato (Museu Nacional-UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Raquel Meister Ko. (Freitag, UFS, Brasil) Roberto de Almeida (Concordia University, Montreal/QC, Canadá) Ronice Müller de Quadros (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Ronald Beline (USP, São Paulo/ SP, Brasil) Rove Chishman (UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Seung- Hwa Lee (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Sírio Possenti (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Suzi Lima (U of T / UFRJ, Toronto/ON - Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Tommaso Raso (UFMG, Belo Horizonte/MG-Brasil) Tony Berber Sardinha (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Vander Viana (University of Stirling, Stirling/Sld, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF, Niterói/RJ, Brasil) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL, Londrina/PR, Brasil) Vera Menezes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Vilson José Leffa (UCPel, Pelotas/RS, Brasil) Sumário / Contents Adjetivos graduais e a interpretação de maximizadores e minimizadores Gradable Adjectives and the Interpretation of Maximizers and Minimizers Luisandro Mendes de Souza .............................................................. 13 La variación en la representación del complemento verbal y la enseñanza de PB a hispanohablantes: un análisis de materiales didácticos de PLE The Variation in the Representation of the Verbal Complement and the Teaching of BP to Spanish Speakers: an Analysis of Didactic Materials of PFL Thaís Leal Rodrigues ......................................................................... 49 Pesquisa longitudinal: a evolução do uso lexical de uma criança dos 5 aos 22 meses de vida em um diário parental Longitudinal Research: lexical use evolution of a child from 5 to 22 months of age as documented in a parental diary Pedro Perini-Santos Lídia Ferreira Santos Adriana Nascimento Bodolay Jéssica Leal ........................................................................................ 73 A reinvenção da gramática em sala de aula The Reinvention of Grammar in the Classroom Gustavo Augusto Fonseca Silva ......................................................... 105 O gênero da expressão convencional ‘cabra’: um modelo categorial com extensões metafóricas e suas implicações de natureza cultural The Gender of the Conventional Expression ‘Cabra’: A Categorical Model with Metaphorical Extensions and Its Cultural Implications Fernanda Cavalcanti Luciane Ferreira ................................................................................. 137 Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção e percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and Perception of Lexical Stress in English by Brazilian Portuguese Speakers Filipe Modesto Plinio Almeida Barbosa ..................................................................... 165 Corpus CEFALA-1: Base de dados audiovisual de locutores para estudos de biometria, fonética e fonologia Corpus CEFALA-1: Audiovisual Database of Speakers for Biometric, Phonetic and Phonology Studies Arlindo Follador Neto Adelino Pinheiro Silva Hani Camille Yehia ............................................................................ 191 Efeito de treinamento de memória de trabalho em crianças sem diagnósticos de comprometimento cognitivo, estudantes das séries iniciais do Ensino Fundamental Working Memory Training Effect in Elementary School Children Without Diagnosis of Cognitive Impairment Lidiomar José Mascarello .................................................................. 213 Halliday’s Mood System: A Scorecard of Literacy in the English Grammar in an L2 Situation O sistema de modo de Halliday: um quadro de resultados sobre o conhecimento da gramática da língua inglesa como L2 Taofeek Olaiwola Dalamu ................................................................. 241 O enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”, do Jornal Extra: o signo ideológico “Guerra” em estudo The Verbivocobisual Utterance “Guerra do Rio”, of the Jornal Extra: the Ideological sign “War” in Study Grenissa Bonvino Stafuzza Giovanna Diniz dos Santos ................................................................ 275 Jurisprudência sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar: análise pragmático-cognitiva Jurisprudence About the Extension of the Scope of Maria da Penha Law to Heterosexual Men as Victims of Domestic and Family Violence: Cognitive-Pragmatic Analysis Fábio José Rauen Bárbara Mendes Rauen....................................................................... 299 Sistemas de discurso e eficácia na comunicação em contextos de promoção da saúde: contribuições da técnica do detalhamento acadêmico Discourse Systems and Efficiency in Communication in Health Promoting Contexts: The Academic Detailing Technique’s Contributions Dóris Cristina Gedrat Gehysa Guimarães Alves .................................................................. 333 Da Carta de Princípios (1979) à Carta ao povo brasileiro (2002): variações ethicas do Partido dos Trabalhadores From the Charter of Principles (1979) to the Letter Adressed to Brazilian People (2002): Ethical Variations of the Worker’s Party Melliandro Mendes Galinari Luciana de Souza Pereira ................................................................... 359 Análise do Discurso no blog RadFem: ser mulher para além do corpo RadFem Blog’ Discourse Analysis: Being a Woman Beyond the Body Rafael De Tilio Paola Marques Del Nero .................................................................... 401 Mulher, verão e cerveja: a produção de sentidos na peça publicitária da cerveja Itaipava, no Brasil Women, Summer and Beer: The Production of Meanings in the Itaipava Adds, in Brazil Tatiana Barbosa de Sousa Guilherme Beraldo de Andrade ......................................................... 423 Cronotopia: um fenômeno de largo espectro Chronotopy: a broad-spectrum phenomenon Maria Marta Furlanetto ...................................................................... 453 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 Adjetivos graduais e a interpretação de maximizadores e minimizadores Gradable Adjectives and the Interpretation of Maximizers and Minimizers Luisandro Mendes de Souza Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul / Brasil luisandro.mendes@ufrgs.br Resumo: O objetivo principal do artigo é mostrar que a distinção entre adjetivos graduais relativos e absolutos é relevante gramaticalmente em português, e o objetivo secundário é discutir a interpretação dos maximizadores como completamente e dos minimizadores como ligeiramente. Aplicamos os testes propostos por Kennedy (2007) e verificamos que os modificadores completamente e ligeiramente são sensíveis à estrutura da escala, como previsto. Contudo, diferentemente do inglês, os adjetivos relativos em português aceitam a modificação pelo minimizador ligeiramente na leitura gradual. Mostramos que isso é um efeito da sua semântica, que é sensível a padrões mínimos (sejam eles contextuais ou lexicais). Identificamos também que a classe dos adjetivos que geram escalas fechadas possui duas subclasses: pares como cheio/vazio possuem uma escala com lacuna extensional; enquanto um par como aberto/fechado possui transição natural entre os polos. Sobre a semântica dos modificadores, vemos que completamente possui duas leituras, uma mereológica e uma gradual, enquanto ligeiramente, além da leitura gradual, produz uma leitura pragmática de atenuação. Palavras-chave: semântica; adjetivos graduais; atenuadores; maximizadores. Abstract: The first aim of the paper is to show that the distinction between relative gradable adjectives and absolute gradable adjectives has grammatical import in Portuguese and the second aim is to discuss the interpretation of maximizers like completamente ‘completely’ and minimizers like ligeiramente ‘slightly’. We applied the tests suggested in Kennedy (2007) and we verified that the modifiers completamente and ligeiramente are sensitive to the adjectival scale structure, as predicted. However, unlike English, relative adjectives in Portuguese accept the modification by ligeiramente in the degree reading. We show that this is yield by its semantics, which is sensitive eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.13-48 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 to minimum standards (being them contextual or lexical). We identified that the class of adjectives which have closed scales has two subclasses: pairs like cheio/vazio ‘full/ empty’ have an extension gap; while pairs like aberto/fechado ‘open/closed’ have a natural transition between the sides of the scale. On the modifiers semantics, we saw that completely has two readings, one mereological and another gradable, whereas ligeiramente, besides the degree reading, yields a pragmatic attenuation reading. Keywords: semantics; gradable adjectives; attenuators; maximizers. Recebido em 23 de novembro de 2017 Aceito em 20 de março de 2018 Introdução A literatura sobre a semântica dos adjetivos, a partir de uma abordagem referencial do estudo do significado, divide o conjunto dos adjetivos graduais em dois subconjuntos: os relativos (1a) e os absolutos (2) (cf. KENNEDY, 2007; KENNEDY; McNALLY, 2005; DEMONTE, 2011; van HOOIJ, 2011; BURNETT, 2014). A diferença básica entre os dois é que os primeiros dependem de dois aspectos contextuais para determinarmos o valor de verdade de uma sentença como (1a), em que o adjetivo é o predicativo: qual é o padrão para os indivíduos serem considerados altos no contexto em que a sentença é proferida e qual é a classe de comparação, i.e., qual é o conjunto de indivíduos que o falante tem em mente quando afirma que x é A. Em essência, para saber o padrão, temos que saber a que classe de indivíduos João pertence na situação, pois o padrão para ser considerado (positivamente) alto pode mudar se João for um menino de dez anos ou um adulto do sexo masculino, por exemplo. Por outro lado, note que, para decidirmos se (2a) é verdadeira, basta que verifiquemos o estado da toalha. Estritamente falando, uma toalha seca é uma toalha sem umidade alguma. Já (2b) será verdadeira se a toalha apresentar qualquer grau de umidade. Isso mostra que adjetivos como os em (2) não dependem de fatores contextuais. Se há algum, ele parece residir na transição entre os polos da escala, como veremos.1 Note que no exemplo (1) usamos ser e nos exemplos em (2), estar. Ser ficaria estranho com as sentenças em (2). Não vamos discutir essa diferença no artigo, cf. Toledo e Sassoon (2011), mas veja que alto é um predicado que denota uma propriedade 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (1) João é alto. (2) a. A toalha está seca. b. A toalha está molhada. 15 Em resumo, enquanto para se decidir o valor de verdade de (1) dependemos do que se considera como alto (isto é, independe das propriedades físicas do sujeito da oração), para (2) basta que se avalie o estado da toalha (modulo, imprecisão, como veremos). Além dessa diferença entre as duas classes, muitos autores perceberam diferenças entre elas que parecem estar relacionadas com as escalas que os pares de adjetivos polares codificam. Foi essa a motivação de estudos como os de Rotstein e Winter (2004) ou de Kennedy e McNally (2005). Se esse for o caso, então podemos mostrar que essas duas classes de adjetivos envolvem escalas diferentes através de algum modificador que seja sensível à estrutura dessa escala. Os testes usados para identificar essas estruturas escalares baseiamse na diferença de interpretação e compatibilidade semântica que os adjetivos apresentam na combinação com modificadores sensíveis ao padrão natural dos adjetivos absolutos ou à ausência dele, no caso dos relativos. Em tese, em português, completamente e totalmente seriam exemplos típicos de modificadores de grau máximo, como seco, enquanto levemente e ligeiramente seriam sensíveis a adjetivos que requerem apenas um grau mínimo da propriedade, como molhado. Já os relativos, que não possuem padrões naturais/lexicais, devem ser anômalos com esses modificadores, segundo preveem Kennedy e McNally (2005) e Kennedy (2007). Mas será que o português brasileiro se comporta como a literatura prevê? Mostraremos neste artigo que a resposta é afirmativa para os testes propostos por Kennedy e McNally (2005), embora com algumas diferenças sutis. Nesse sentido, veremos que as expressões modificadoras também possuem funções pragmáticas, que precisam ser controladas para que o teste tenha o efeito esperado. Algo previsto, mas discutido rapidamente por Kennedy e McNally (2005). É a essa tarefa que o artigo se dedica na sua maior parte (seção 2). Embora assuma a distinção entre permanente (individual-level), enquanto seco/molhado são propriedades transitórias (stage-level). Toledo e Sassoon (2011) não exploram a fundo essa correlação, mas mostram que relativos tendem a ser predicados individual-level, enquanto absolutos tendem a ser predicados stage-level. 16 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 adjetivos graduais relativos e adjetivos graduais absolutos, os estudos de Quadros Gomes (2009, 2011, 2012, entre outros) não apresentam claramente os testes e as classes, nem discutem a interpretação dos modificadores maximizadores e minimizadores em seus aspectos semânticos e pragmáticos. Quadros Gomes (2009, 2011, 2012, e outros estudos) discute a interpretação de modificadores como todo, muito e bem e uma das suas conclusões é que os modificadores graduais em português parecem ser insensíveis à distinção entre adjetivos graduais relativos e absolutos, sem fazer uma discussão aprofundada das classes e dos testes para a sua identificação. Preencher esta lacuna é também um dos propósitos do presente artigo. Na primeira seção (1.1), fazemos uma rápida apresentação de alguns fundamentos da semântica dos adjetivos graduais, a partir de um modelo semântico que assume que temos na ontologia indivíduos como graus, de tipo <d>, que formam escalas, entendidas como conjuntos de graus ordenados ao longo de uma dimensão. Nessa perspectiva, a diferença entre alto e baixo se resume a uma diferença de perspectiva (ou ordenamento) ao longo da escala de altura (KENNEDY, 1997, 2007). Autores como van Rooij (2011) e Burnett (2014) buscam dar conta do comportamento dessa classe de adjetivos a partir de um modelo semântico que não assume entidades de tipo <d> ou escalas como entidades linguísticas. Sem aprofundar a discussão entre os dois modelos, o que demandaria um artigo inteiramente dedicado ao tema, na abordagem gradual adjetivos graduais são vistos como relações entre indivíduos e graus, predicados de tipo <d,et> (von STECHOW, 1984) – uma função de um grau a um indivíduo a um valor de verdade – ou tipo <ed>, na abordagem de Kennedy (1997, 2007) – uma função de um indivíduo a um grau. Numa abordagem sem graus, todos os adjetivos são de tipo <et> – funções de indivíduos a valores de verdade –, e a diferença entre os não-graduais e os graduais é que estes geram lacunas extensionais, isto é, o modelo precisa que algumas funções desse tipo sejam parciais (em algumas situações ela não leva nem ao verdadeiro nem ao falso) para explicar as diferenças entre as duas classes de adjetivos. Por fim, a seção (3) discute alguns aspectos da semântica do modificador de grau máximo completamente e do minimizador ligeiramente, visando explicar as leituras atestadas na aplicação dos testes na seção (2.1) e a relação com a semântica dos adjetivos graduais que modificam. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 17 1 Noções básicas da semântica da gradação 1.1 O que são adjetivos graduais Os adjetivos graduais são adjetivos que denotam propriedades que podem ser graduadas. Essa definição, tomada de Kennedy (1997), soa redundante porque o teste principal para identificar um adjetivo gradual é a possibilidade de ele ser modificado por graduadores lexicais (intensificadores como muito ou atenuadores como pouco) ou construções graduais (orações comparativas canônicas com mais/menos...que, tão... quanto; a oração consecutiva com tão... que), pelo menos no caso do português brasileiro e de línguas que exibem expressões graduadoras. O contraste entre (3) e (4) é bem claro. (3) a. O João é muito alto. b. O João é mais alto que todos os seus irmãos. c. O João é tão alto que precisa de calças sob medida. (4) a. #A mesa é muito retangular. b. #A mesa é mais retangular que a porta. c. #A mesa é tão retangular que poderá ser usada para a reunião. As sentenças em (4) são anômalas semanticamente. Não quer dizer que sejam não-interpretáveis ou agramaticais.2 Se interpretáveis, adjetivos não-graduais modificados por graduadores possuem uma leitura diferente da que atribuímos para os casos em (3). Por exemplo, (3a) expressa que “em relação ao conjunto de indivíduos que são positivamente altos no contexto, João se destaca entre eles”, ou “a altura de João excede significativamente o padrão contextual para os indivíduos que são positivamente altos no contexto”. Esta última é a paráfrase usualmente assumida para o papel semântico de expressões como very (cf. von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005; DOETJES, 2008); e a primeira seria a paráfrase numa abordagem sem Sobre a diferença, ver Heim e Kratzer (1998). Em tese, o sistema gramatical deveria gerar apenas sentenças bem formadas sintaticamente e estas seriam o input para a interpretação semântica. Contudo, podemos ter sentenças bem formadas sintaticamente que podem gerar problemas de interpretação. É nesse sentido que vamos nos referir a ‘anomalias semânticas’. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 18 graus (KLEIN, 1980). Não me parece haver motivos para acreditar que essa caracterização não se aplique ao português, pelo menos no caso da modificação adjetival.3 Agora, intuitivamente não faz sentido dizer que (4a) expressa que a mesa possui um alto grau da propriedade ‘retangularidade’ e que estou comparando esse grau com as outras mesas no contexto, ou que a mesa é a mais retangular entre as retangulares. (4a), se interpretável, expressa que o sujeito da predicação exibe um grande número de propriedades que é preciso que um objeto tenha para ser considerado um membro da classe dos objetos retangulares. Ou, de outro modo, que a mesa está muito próxima de um protótipo de um objeto retangular, cf. leitura de Demonte (2011). Na abordagem proposta por Kennedy (1997, 2007, inter alia), a diferença entre os adjetivos graduais e não-graduais é capturada assumindo que os não-graduais são funções de indivíduos a valores de verdade, tipo <e,t>, enquanto adjetivos graduais são funções de medida, funções (provavelmente parciais) de indivíduos a graus em uma escala, tipo <e,d>. Exemplificando, o adjetivo retangular tem a entrada lexical em (5a), que apresenta sua versão na representação usando lambdas, que explicita seu papel composicional, ou na representação usando a notação da teoria de conjuntos.4 (5) a. [[retangular]] = λxe. RETANGULAR = {x: x é retangular} b. [[alto]] = λdd. λxe. ALTURAalto(x) ≥ d = {d ∈ DALTURA & x ∈ XINDIVÍDUOS: x possui pelo menos o grau d na escala de altura} Nesse modelo semântico, o papel de transformar funções de medida em predicados adjetivais é da morfossintaxe gradual. Note que em (5b) não temos o significado esperado para um predicado de indivíduos, pois o primeiro argumento que a função alto requer é um Ver também Quadros Gomes (2009, 2012) para alguns argumentos de que o resultado da modificação de adjetivos em português brasileiro e inglês por modificadores como very e muito possui resultados semânticos diferentes. 4 Isso quer dizer que, para se tornar uma expressão completa, o predicado precisa ter seu argumento semântico, representado pela variável x, preenchido por alguma entidade do domínio discursivo, e que essa entidade precisa ser de tipo semântico <e>, i.e., que esteja dentro do conjunto dos indivíduos no universo do discurso. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 19 grau, não um indivíduo. Tornar a entrada lexical do adjetivo em (5b) uma função de indivíduos a valores de verdade é tarefa de um operador não pronunciado, pos (abreviação de ‘positivo’), cuja entrada lexical é dada em (6), adaptada de Kennedy (2007). (6) [[ pos ]] = λGed. λxe. ∃d[G(x) & d ≥ d’standard] O operador captura dois fatos cruciais: adjetivos graduais tendem a ser vagos (no sentido que pode haver situações em que é difícil decidir se x é A é verdadeira ou falsa), e o valor da variável d, o grau que o indivíduo exibe da propriedade, é relacionado com um valor contextual, um padrão – o grau d’ na fórmula em (6). O grau dado linguisticamente é chamado de ‘grau referencial’. Assim, pos, em essência, é a relação “maior ou igual” entre um grau referencial e um grau padrão. Esquematicamente temos o seguinte: pos(grau referencial, grau padrão). A relação entre os dois graus é expressa pelo símbolo ‘≥’ na entrada lexical. pos requer uma sintaxe como a que vemos em (7). Na Forma Lógica (FL), a relação entre o SN sujeito e o SA predicado é mediada por esse operador, um argumento sintático do adjetivo. (7) a. FL: [SF [SN x] [SV é [SA pos [A Adjetivo]]] c. [[ pos A ]] = λxe. ∃d[ESCALAADJETIVO(x,d) & d ≥ d’standard] Essa caracterização de pos é problemática formalmente, pois para alguns autores ele é uma estipulação abstrata (KLEIN, 1980). De qualquer forma, o operador é uma relação entre um grau de referencial e um grau padrão. No caso dos graduais relativos (que são vagos), esse grau provém do contexto (parece ser uma variável livre, como um pronome não ligado, por isso a variável d’ na fórmula (6) não está presa por um quantificador), mas no caso dos absolutos, o grau padrão é ‘natural’, num sentido que será explicado na próxima seção. Vejamos, então, algumas diferenças entre os adjetivos graduais relativos e os graduais absolutos. 1.2 Os absolutos e os relativos Na literatura sobre os adjetivos graduais, vários autores perceberam algumas diferenças entre pares de adjetivos dentro do conjunto. Contudo, a síntese dessa diferença só começou a ficar mais Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 20 clara a partir dos trabalhos de Rotstein e Winter (2004) e Kennedy e McNally (2005). Cruse (1980 apud ROTSTEIN; WINTER, 2004) percebeu que, no conjunto de adjetivos graduais, há alguns que possuem um comportamento diferenciado em relação à negação. Compare (8) e (9). Em (8a) temos a negação do elemento positivo do par, alto, e em (8b) a do negativo, baixo. Supondo que alto/baixo sejam perspectivas diferentes da escala de altura, a negação nos mostra que não há uma transição natural entre esses dois polos. Afinal, se eu nego que o sujeito é alto, como em (8a), não podemos inferir que o sujeito esteja no lado oposto da escala, pois ele pode estar num ponto intermediário (“-/->” simboliza a impossibilidade de se fazer essa inferência). O mesmo ocorre com a negação de baixo, que vemos em (8b). Na verdade, essa é uma característica fundamental da vagueza desse tipo de adjetivo: a lacuna extensional. Adjetivos dessa classe são vagos não porque o que conta como alto/baixo muda de um contexto para outro, mas porque há situações em que é difícil decidir se o indivíduo está num lado ou outro do espectro (pense em indivíduos que estão na média, comparando-se com outros da mesma classe) (van ROOIJ, 2011). (8) a. A Ana não é alta. -/-> A Ana é baixa. b. A Ana não é baixa. -/-> A Ana é alta. Vejamos o que ocorre agora quando negamos os pares de adjetivos absolutos limpo/sujo, que, em tese, como o par acima, também são perspectivas na mesma escala. O que vemos em (9) é que a negação de um acarreta o outro. Adicionalmente, note que no caso (9a) a negação possui um efeito de atenuação, que precisa ser deixada de lado, nesse caso. Por exemplo, ao invés de fazer a afirmação mais forte A toalha está suja, o falante escolhe a forma marcada A toalha não está limpa. Esse efeito pode ser explicado como uma implicatura. Se o falante está sendo cooperativo, e escolhe usar uma forma mais custosa, com mais material linguístico (violando, portanto, a Máxima do Modo), ele está querendo dizer mais do que disse. Comparando com (9b), vemos que esse efeito não surge, talvez porque suja é o elemento negativo (logo, o elemento marcado) do par. Ou seja, embora sejam sinônimas de conteúdo, as sentenças em (9) possuem efeitos pragmáticos diferentes. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (9) 21 a. A toalha não está limpa. → A toalha está suja. b. A tolha não está suja. → A toalha está limpa. Há alguns falantes que também consideram que podemos admitir como verdadeiro um proferimento como A toalha está limpa, mesmo que ela já tenha sido usada uma ou duas vezes (suponha que estamos falando de uma toalha de banho). Esse é o fenômeno que Kennedy (2007) vai chamar de ‘imprecisão’.5 Grosseiramente, a imprecisão se distingue da vagueza porque a transição entre os polos de pares que a geram é ‘natural’ (não temos lacunas extensionais). Tomado literalmente, qualquer grau de sujeira já é suficiente para decidirmos se x está sujo é verdadeiro ou não. Rotstein e Winter (2004), por outro lado, assumem que esse caso mostraria que mesmo pares absolutos como seco/molhado ou limpo/sujo estão sujeitos à influência contextual. É preciso considerar que em certas situações admitimos como limpos objetos que em outras situações poderiam ser considerados sujos. Note que, fundamentalmente, o que estamos mudando é o lugar em que a transição ocorre, em que momento algo passa a ser considerado sujo. Mas isso requer, como estamos vendo, alguma informação contextual: o que conta como limpo/sujo; e se há acordo (ou desacordo) entre os falantes em relação a essa transição.6 Isso quer dizer que o caso default é o que vemos em (9), não essa possível manipulação da transição entre limpo/sujo, que um amante de vagueza poderia usar para argumentar que esse par não é muito diferente de alto/baixo. Por fim, (10) mostra que, por ocorrerem naturalmente em orações comparativas, esses adjetivos são graduais. (10) A tolha azul está mais limpa/suja que a toalha branca. Um par curioso de adjetivos absolutos é cheio/vazio. Para decidir se uma sentença como O copo está cheio/vazio é verdadeira, não precisamos olhar para o contexto, apenas para quanto líquido o copo Uma noção que Kennedy atribui a Pinkal (1995). Esse fenômeno também pode ser enquadrado naquilo que Lasersohn (1999) vai chamar de ‘auréola pragmática’: admitimos como verdadeiras sentenças que, tomadas em sentido estrito, seriam falsas. 6 Isso poderá levar o leitor a se perguntar: mas isso não tornaria esses adjetivos também vagos, já que temos dependência contextual? Em certo sentido sim. A imprecisão seria um tipo de vagueza, em sentido mais amplo. De qualquer forma, tentarei mostrar que há uma diferença básica que separa as duas classes e isso se reflete na combinação com os modificadores. Mais sobre essa diferença ver Kennedy (2007). 5 22 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 contém. Isso quer dizer que esse par não apresenta vagueza, portanto, é um par de adjetivos absolutos por esse critério. Contudo, como vemos em (11) a negação de um elemento do par não acarreta o outro. (11a) mostra que negar que o copo não está cheio, não acarreta que ele esteja vazio. Note que não temos efeito de atenuação nesse caso, justamente pela existência dessa lacuna entre o limite do que conta como cheio e o limite do que conta como vazio. Para exemplificar, suponha que você tenha pedido um copo de suco em um restaurante, e o garçom lhe traga um copo com três quartos da capacidade do copo preenchido com o suco. Você achará a situação inusitada, pois, culturalmente, temos a expectativa de que o copo venha cheio, embora não absolutamente cheio, ou ‘até a boca’. Assim, admitimos que um copo de suco esteja cheio mesmo que ainda reste, digamos, uns 5ml de espaço no copo. (11) a. O copo não está cheio. -/-> O copo está vazio. b. O copo não está vazio. -/-> O copo está cheio. Esses fatos ainda são um pouco confusos e não separam claramente as classes: temos relativos sem transição natural, alto/baixo; absolutos com transição natural, limpo/sujo, seco/molhado; e absolutos com lacuna, portanto, sem transição natural, caso de cheio/vazio. Cruse (1980) divide esses adjetivos em dois conjuntos: os complementares, como limpo/sujo, e os não-complementares, como o longo/curto. Mas note que a única evidência até agora para a divisão da classe é o comportamento sob negação. Cruse (1980) também mostrou que há diferenças na compatibilidade com almost ‘quase’, um fato que Rotstein e Winter (2004) exploram com mais cuidado. Esse modificador pode aparecer com diferentes categorias. Por exemplo, em português ele também modifica verbos.7 No domínio adjetival, quase é anômalo com adjetivos graduais relativos, como longo/ curto, que não possuem um limite natural, nem mínimo, nem máximo, nem uma transição natural entre os polos, cf. (12a). Claro, podemos, Ver Cançado e Amaral (2016) para uma discussão sobre o papel de quase na semântica verbal. Esse modificador é sensível à estrutura interna dos eventos, por isso as autoras o usam como teste mais seguro na identificação de accomplishments. (i) possui duas leituras: o menino quase iniciou o processo de construir o castelo; ou o menino quase concluiu a construção do castelo de areia. (i) O menino quase construiu um castelo de areia. 7 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 23 linguisticamente, criar um limite, como em (12b), em que o suficiente para participar do concurso estabelece um grau máximo (suponha que 70 páginas seja o limite mínimo para participar de um concurso literário). (12b) será verdadeira se o livro tiver umas 60, ou entorno disso. (12) a. #Esse livro é quase longo/curto. b. Esse livro é quase longo o suficiente para participar do concurso. Comparemos agora com os adjetivos absolutos. Como limpo é o final da escala (ausência total de sujeira), um copo quase limpo é um copo que está próximo do grau máximo da escala, mas ainda não está lá. Em contraste, se sujo significa “qualquer grau mínimo na escala de sujeira”, ele não impõe um limite máximo natural do que conta como sujo, por isso a anomalia. O leitor poderia considerar que (13b) pudesse descrever um copo que ainda não estivesse sujo o suficiente. Mas veja que neste caso, provavelmente, a interpretação envolve algum limite posto na situação, algo como esse copo está quase sujo para ser trocado por outro limpo ou esse copo está quase sujo o suficiente. Veja que o par seco/molhado se comporta da mesma forma – supondo que seco é “ausência de umidade” (isto é, o grau 0 na escala de umidade) e molhado “qualquer grau mínimo de umidade”. (13) a. Esse copo está quase limpo. b. #Esse copo está quase sujo. (14) a. A toalha de banho está quase seca. b. #A toalha de banho está quase molhada. Claro. Há uma diferença importante aqui. Mesmo que possamos criar um contexto em que quase longo/curto seja aceitável, ou com quase sujo, não precisamos disso para quase limpo. Rotstein e Winter (2004) nomearam os adjetivos como limpo ‘totais’ (= nenhum grau de sujeira) e os como sujo ‘parciais’ (=algum grau de sujeira). E discutiram como a semântica de almost ‘quase’ se articula com a estrutura das escalas desses dois tipos de adjetivos. Para eles, almost é bom com totais e ruim com parciais porque requer um predicado que denote uma estrutura escalar com limite máximo. Na proposta deles, almost A denota um intervalo curto na escala associada a 24 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 A, que é disjunto à denotação de A, mas adjacente a ele. Uma toalha quase seca está muito próxima do grau máximo de seca, mas ainda não está lá. Uma tolha quase molhada é inaceitável porque qualquer grau mínimo de umidade já torna a toalha molhada. Assim, a escala de molhado supõe apenas um mínimo, mas não um valor máximo, deixando a modificação por almost indefinida, por isso a anomalia em exemplos como (15b) e (16b) – exemplos dos autores. (15) a. The towel is almost dry. b. #The towel is almost wet. (16) a. The towel is wet but it is almost dry. b. #The towel is dry but it is almost wet. Em essência, para os autores os adjetivos graduais estariam associados a três tipos de escalas: i) adjetivos relativos: escala aberta, com padrão mínimo contextual; ii) adjetivos totais: escala com padrão máximo lexical; ii) adjetivos parciais: escala com padrão mínimo lexical. Na proposta deles, a escala é particular a cada adjetivo, não ao par de adjetivos polares, como veremos em seguida. Por sua vez, Kennedy e McNally (2005) e Kennedy (2007) propõem que temos quatro tipos de escalas e que a estrutura da escala é única para cada par. Para eles, a diferença básica entre as duas classes pode ser resumida na forma como esses adjetivos requerem um padrão. Enquanto os relativos possuem um padrão que varia contextualmente e são vagos, os absolutos possuem um padrão natural/lexical e são imprecisos.8 A estrutura das escalas é representada da seguinte forma: a) totalmente aberta b) fechada no grau mínimo c) fechada no grau máximo d) totalmente fechada (-----) [-----) (-----] [-----] Isso gera um problema para a semântica de pos tal como definida na primeira seção. De alguma forma, pos é capaz de saber quando o padrão precisa ser buscado no contexto e quando ele é dado lexicalmente. A segunda parte do artigo de Kennedy (2007) é uma discussão profunda que tenta justamente lidar com esse aparente paradoxo no seu modelo: se absolutos não dependem de contexto, pos seria apenas uma função para transformá-los de funções de medida em predicados de indivíduos? 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 25 Se essas diferenças são relevantes linguisticamente, poderemos, então, mostrar que são detectáveis. Assim, teremos estruturas em que a codificação de uma escala ou outra se reflete na interpretação que o adjetivo possui quando modificado por algum graduador. Ou, ainda, que teríamos modificadores, como quase, que selecionam certos tipos de escalas e rejeitam outras,9 produzindo alguma anomalia. Passemos, então, aos testes. 2 Diferentes escalas adjetivais 2.1 Os testes Na seção anterior discutimos a motivação para separar o conjunto dos adjetivos graduais em duas classes a partir da descoberta de comportamentos diferenciados dos adjetivos graduais em relação a algumas expressões. Cruse (1980) mostrou que sob negação as inferências são diferentes e que almost ‘quase’ não é compatível com todos os adjetivos graduais por ser sensível a limites. Rotstein e Winter (2004) exploram esses testes e incluem ainda a compatibilidade com modificadores como completely e slightly. Vamos, nesta seção, partir da síntese dos testes feita por Kennedy e McNally (2005), que usam os modificadores maximizadores e minimizadores como diagnóstico para identificar padrões naturais. Iremos explorar esses testes e a interpretação dessa classe de modificadores em português brasileiro. Como dissemos na introdução, estudos como os de Quadros Gomes (2009, 2011, 2012) assumem a distinção entre adjetivos graduais relativos e absolutos para discutir a semântica de modificadores graduais como todo, muito e bem, mas sem discutir a semântica e a pragmática dos maximizadores e minimizadores, tarefa desta e da próxima seção. Kennedy e McNally (2005) propuseram testes para verificar se a escala possui um padrão mínimo ou máximo natural ou não. Se a escala Essa é uma hipótese discutida em Doetjes (2008), para explicar por que as línguas exibem modificadores que parecem transitar entre categorias próximas, caso de very e a lot ‘muito’, entre outros modificadores no inglês; enquanto outras línguas exibem modificadores que aparentam não fazer qualquer tipo de restrição de categoria, caso do nosso muito, que, apesar disso, faz seleção semântica. Isso explicaria porque very produz anomalias com alguns adjetivos não-graduais e adjetivos absolutos de grau máximo, como defendem Kennedy e McNally (2005). 9 26 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 possui como padrão um limite máximo, modificadores como completely ‘completamente’, 100% e fully ‘totalmente’, seriam sensíveis a esse máximo, seja ele presente no elemento positivo ou negativo do par. No uso em que essas expressões identificam o grau máximo, o acarretamento é que o máximo da escala foi atingido,10 por isso a anomalia em (17a). Note que em (17b) temos uma passiva adjetival que pode ser modificada por completamente. Esse também parece ser um uso gradual, embora não identifique um grau máximo (intuitivamente não há um grau máximo em que alguém possa estar encantado por outra pessoa), por isso a sentença (17b) não é anômala.11 (17) a. #A linha está completamente reta, mas dá para deixá-la ainda mais reta. b. Estou completamente encantado pela Maria, e aposto que se conhecê-la melhor ficarei mais encantado ainda. Por ora esse é o fato que nos interessa: completamente identifica o grau máximo na escala do adjetivo, mas apenas se ele estiver lá, na semântica do predicado. Veremos também ao longo desta seção que ele também possui uma leitura mereológica. Nessa leitura, todas as partes de x possuem a propriedade. Assim, uma linha descrita como completamente reta seria uma linha com todas as suas partes retas. Na terceira parte deste artigo, veremos mais detalhes sobre a semântica desse modificador. Kennedy (2007) propõe um teste adicional para identificar padrões mínimos com os modificadores slightly ‘ligeiramente’ e partially ‘parcialmente’. Assim, para que (18a) seja verdadeira, basta que a corda apresente um pequeno grau de curvatura. É esta a leitura que se espera que esse tipo de modificador capture. Mas logo veremos que parece haver outra, pelo menos em português. (18) a. The rope is slightly bent. b. The floor is slightly dirty. Na nossa visão, não estamos diante de um acarretamento, mas de uma pressuposição, como veremos na seção 3. 11 Para Kennedy e McNally (2005), a leitura gradual de (17b) é uma implicatura, já que literalmente a frase expressa que todas as minhas partes estão encantadas pela Maria. Se não for assim, esse uso é problemático para a semântica dessa expressão tal qual proposta aqui na seção 3. 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 27 A tabela 1 resume a previsão da compatibilidade. MIN/MAX são os tipos de modificadores, e Apos e Aneg correspondem ao adjetivo positivo e ao negativo num par de antônimos graduais. TABELA 1 – Compatibilidade entre modificadores e adjetivos graduais Aberta Fechada embaixo Fechada em cima Fechada Mod MIN MAX MIN MAX MIN MAX MIN MAX Apos # # OK # # Ok Ok Ok Aneg # # # Ok Ok # Ok Ok Fonte: baseada em Kennedy e McNally (2005). Vejamos se os equivalentes em português se comportam como previsto. Os testes foram aplicados aos adjetivos usados por Kennedy (2007) na sua tradução para o português e por simplicidade usei somente completamente como identificador de grau máximo e ligeiramente como identificador de grau mínimo. Escala totalmente aberta: como nesses adjetivos tanto o elemento negativo, quanto o positivo do par não possuem um grau máximo ou mínimo natural, a previsão é que sejam incompatíveis com modificadores que identifiquem esses graus. Contudo, não é isso que vemos abaixo, para os pares de adjetivos graduais alto/baixo e profundo/ raso.12 Compare com os exemplos do inglês em (21). Vou usar a convenção de apresentar sempre o elemento positivo à esquerda da barra, seguido pelo elemento negativo. Como sabemos quem é o positivo e o negativo num par de antônimos graduais requereria outro artigo. Como ilustração, cf. Leher (1985) para uma apresentação dos testes para se identificar quem é quem num par de adjetivos graduais, os “verdadeiros antônimos” para Cruse (1986) e Lyons (1977). Como exemplo, note que tendemos a formar perguntas usando o elemento positivo do par: (i) a. O quão profundo é o lago?/Qual a profundidade do lago? b. O quão raso é o lago?/#Qual a rasidade do lago? Note também que enquanto (ia) não pressupõe que o lago seja raso ou profundo, (ib) carrega a pressuposição de que o lago é raso. A noção de marcação também poderia ser relevante para distinguir os pares, sendo a forma positiva a não-marcada, enquanto a negativa seria a marcada. Note que a forma positiva possui usos mais amplos, inclusive neutralizados, como o uso nas questões em (ia). 12 28 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (19) a. Aquele homem é #completamente/ligeiramente alto. b. Aquele homem é #completamente/ligeiramente baixo. (20) a. Aquele lago é #completamente/ligeiramente profundo. b. Aquele lago é #completamente/ligeiramente raso. (21) a. #perfectly/#slightly {tall, deep} b. #perfectly/#slightly {short, shallow} Como não há um grau máximo de altura que algum indivíduo possa exibir a modificação por completamente é indefinida. Precisamos ter cuidado com esse caso porque o modificador é ambíguo entre uma leitura mereológica e uma gradual. A intepretação que nos interessa é aquela em que completamente identifica o grau máximo da propriedade. Um lago completamente profundo é um lago que em toda a sua extensão pode ser considerado profundo, não um lago que tem o grau máximo de profundidade. Assim (20a) é interpretável apenas na leitura mereológica, não na gradual. O que o ‘#’ representa em (19-20), e nos casos subsequentes, é que a sentença não possui a interpretação gradual desejada. Note que essa leitura não fica tão clara para o sujeito de alto/ baixo em (19), que é anômala nas duas leituras.13 As sentenças com ligeiramente não apresentam anomalia, em contraste com os exemplos do inglês. Por que essa diferença? Claro, temos que nos perguntar qual seria a interpretação intuitiva dessas sentenças. Note que exemplos “reais”, como (22), não nos ajudam, embora, nos dois casos, o garoto e o colesterol são altos e não há nenhum padrão funcional no contexto, como Solt (2011) sugere ser necessário para que minimizadores sejam aceitáveis com adjetivos relativos em inglês. Se fosse esse o caso, ligeiramente alto poderia descrever um indivíduo sem que ele seja positivamente alto, isto é, alto para um garoto. Um dos pareceristas questiona se seria possível prever que adjetivos gerariam a leitura mereológica. Não é fácil responder essa dúvida. Note que no caso dos pares de adjetivos relativos em (19-20), alto/baixo não geram leitura mereológica com completamente, enquanto raso/profundo sim. Veremos que com os adjetivos graduais absolutos sempre parece ser possível uma leitura mereológica com esse modificador, embora ela soe bem mais estranha do que com relativos como alto/baixo. No momento não tenho uma reflexão mais sistemática para explicar essa diferença e também desconheço quem tenha discutido o problema. 13 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 29 (22) a. [...] até que um garoto ligeiramente alto, de cabelos e olhos castanhos surgiu nervoso dentro do espelho. (A. Fantin, Kal Foster e o mestre das sombras, 2013) b. O colesterol está ligeiramente alto, ou seja, longe de ser motivo de preocupação. (http://bit.ly/2zqH08x) Ligeiramente baixo é um predicado que descreveria um indivíduo que apresenta um grau que é apenas um pouco maior do que o grau padrão de baixo. Comparemos (19a) e (19b) com (23a) e (23b), respectivamente. (23) a. Aquele homem é alto. b. Aquele homem é baixo. A questão é: estamos diante de uma leitura de atenuação ou uma leitura gradual? Se a leitura é de atenuação, não é essa leitura que queremos (afinal, ela é um efeito pragmático, portanto, pósproposicional), pois esperamos que esses modificadores identifiquem o grau mínimo da propriedade. Veja que (20a) poderia ter essa leitura. Ligeiramente profundo poderia servir para descrever um lago que é profundo, mas que por algum motivo (atenuação de uma proposição alternativa mais forte: “o lago é profundo”) o falante quer expressar que o grau de profundidade que o lago em discussão apresenta é apenas um pouco superior ao padrão de profundo. Também podemos pensar que as sentenças com ligeiramente são interpretáveis porque, para se estar na extensão positiva de um adjetivo relativo qualquer, é preciso estar pelo menos dentro do trecho da escala que envolve os indivíduos que possuem um grau mínimo qualquer para estar nesse conjunto, como vimos na seção 1.1. Assim, se o indivíduo é alto, ele possui um grau de altura que é maior ou igual ao padrão contextual, ou seja, ele possui um grau mínimo dentro do intervalo positivo na escala de altura. A leitura provável, então, é de atenuação, pois a leitura gradual soa redundante: se o indivíduo se qualifica como alto/ baixo na situação, se segue da semântica desses predicados que ele possui um grau mínimo na escala. Mas se quisermos insistir na leitura gradual, poderíamos considerar que a relação expressa por pos, “pelo menos”, deixe vaga a relação entre o grau que o indivíduo exibe e o grau padrão, e que ligeiramente opere nesse trecho da escala, deixando a declaração mais precisa. Dessa forma, a proposição expressa por (19a) deverá ser 30 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 algo como: “o grau que aquele homem exibe na escala de altura excede ligeiramente o grau padrão dado contextualmente para ser alto”. Ou seja, o minimizador poderia ter uma leitura gradual proposicional, e a leitura de atenuação surgiria como um efeito pragmático, se o contexto demandar, afinal, um lago ligeiramente profundo continua sendo um lago profundo. Solt (2011) nota que slightly (e outros modificadores de grau mínimo, como a bit ‘um pouco’) são interpretáveis, via coerção, com adjetivos dessa classe com uma leitura de excesso. Para a autora, intuitivamente, slightly tall é um predicado verdadeiro de um indivíduo se sua altura excede por um pequeno grau a altura máxima compatível com os propósitos da situação.14 Se é esse o caso, deveríamos esperar que sentenças como (24) não fossem contraditórias. Além disso, slightly tall não acarreta que o sujeito é alto. Parece-me que esse é o caso. Se em português for assim também, como vemos em (24b), isso quer dizer que não estaríamos diante de uma leitura gradual em (19a)? (24) a. John is slightly tall for 12 year old kid, but he is still a short guy. b. O João é ligeiramente alto para um garoto de 12 anos, mas ele ainda é um menino baixo. Acreditamos que não. Para um garoto de 12 anos é um sintagma que insere um padrão funcional na sentença. Assim, o que ligeiramente modifica não é alto, mas alto para um garoto de 12 anos, por isso (24b) não é uma contradição. Comparando com (19-20), ligeiramente, nos parece, possui uma leitura gradual mesmo na ausência de um padrão funcional implícito. Logo, vemos que alguns modificadores são, de fato, compatíveis com adjetivos de escalas abertas, mas as leituras que surgem são variadas. Ligeiramente pode ter uma leitura de atenuação ou uma leitura de “x apresenta um grau um pouco maior do que o padrão”. Além disso, há a influência de padrões funcionais. A influência desses padrões é geral em português, e parece ter efeito de tornar o adjetivo uma função de medida que mapeia o sujeito em um espectro na escala, sem se comprometer com Para dar conta dessa semântica, Solt (2011) assume também que temos outro tipo de padrão, um padrão funcional, ao lado do padrão contextual dos relativos e do padrão lexical (máximo ou mínimo) para os absolutos. 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 31 sua posição acima do padrão contextual. Comparemos (25a) e (25b), para ilustrar a diferença entre o padrão relativo e o funcional. (25) a. O João é muito alto para ser jóquei. b. O João é muito alto. Note que em (25a) o sujeito pode ser baixo que mesmo assim a sentença é verdadeira. Já em (25b) não. Vários autores (KLEIN, 1980; von STECHOW, 1984; KENNEDY; McNALLY, 2005) notam que desta sentença podemos inferir que o João é alto. Assim, a diferença entre o uso dos adjetivos em (a) e (b) acima é que o padrão de alto no primeiro caso é dado pela construção de finalidade, e nesse sentido é um padrão funcional, enquanto o padrão no segundo caso é dado situacionalmente, isto é, o que no contexto conta como “muito alto”, e nesse caso estamos diante de um padrão dito relativo. Na seção 3 voltaremos a discutir mais alguns aspectos da semântica de ligeiramente. Por sua vez, completamente também apresenta leituras em que a combinação com adjetivos relativos é interpretável e gramatical, mas apenas na leitura mereológica. Assim, um lago descrito como completamente profundo é um lago cujas todas as suas partes podem ser descritas como positivamente profundas. Abaixo, em (26) vemos a estrutura da escala com mais detalhes. A escala de altura também pode ter um parâmetro independente para os indivíduos que são considerados altos, um para os que são considerados baixos, e uma lacuna, onde estariam aqueles indivíduos que geram incerteza: não sabemos dizer se eles possuem ou não a propriedade de ser alto ou baixo no grau positivo. Como já vimos, alto e baixo podem ter parâmetros independentes. pb pa (26) Estrutura da escala: (-------------|----|------------------) altura: baixo alto onde: pb = padrão de baixo; e pa = padrão de alto Escala fechada embaixo: nesse caso, o polo positivo precisa apresentar apenas um grau mínimo da propriedade (Apos ≥ min), enquanto o negativo precisa estar no final da escala (ou muito próximo disso) (Aneg = max). Por exemplo, um arame curvo precisa apresentar um grau mínimo 32 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 de curvatura, enquanto um arame reto precisa apresentar o grau máximo da propriedade (ou o grau 0 na escala de curvatura). Em (27) temos o teste aplicado ao par curvo/reto e em (28) ao par ondulado/plano.15 (27) a. O arame está #completamente/ligeiramente curvo. b. O arame está completamente/#ligeiramente reto. (28) a. A estrada está #completamente/ligeiramente ondulada. b. A estrada está completamente/#ligeiramente plana. No caso de curvo/reto, contextualmente, podemos criar situações ‘imprecisas’, situações em que um arame com uma leve curvatura ainda possa ser considerado como reto. Podemos assumir, nesse caso, a proposta da ‘auréola pragmática’ de Lasersohn (1999). A auréola pragmática de um predicado engloba situações em que mesmo que a sentença seja falsa, estritamente falando, admitimos que ela seja verdadeira. Por exemplo, um arame com apenas uma leve curvatura ainda assim pode ser considerado como um arame reto, dependendo dos propósitos na situação, ou da tolerância dos falantes em admitir que ele está reto, mesmo que não completamente reto. Completamente curvo pode ser interpretado, mas não na leitura desejada. Um arame completamente curvo seria um arame com uma curvatura ideal, com a forma de uma parábola, digamos. Veja que é o mesmo que temos com (28a). Uma estrada completamente ondulada é uma estrada com ondulações em toda a sua extensão, não com o grau máximo de ondulação (que não é possível de se obter). Como a escala não possui um grau máximo, apenas um mínimo, os adjetivos positivos nesses dois pares são incompatíveis com completamente na leitura gradual. Note que ligeiramente é perfeito com os elementos positivos do par, como previsto na tabela 1 (Apos ≥ min). Esperamos que esse tipo de modificador identifique o grau mínimo, e é isso o que eles fazem nesses casos. Um arame ligeiramente curvo é um arame que apresenta um pequeno grau de curvatura; enquanto uma estrada ligeiramente Essa caracterização é contraintuitiva. Se curvo é o positivo e reto o negativo, a escala deveria ser fechada em cima: (-----]. Mas note que na representação das escalas o negativo aparece à esquerda e o positivo à direita. Vamos seguir com essa representação, pois é a costumeira na literatura. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 33 ondulada apresenta um pequeno grau de ondulação em algum ponto da sua extensão. É possível também termos uma leitura de atenuação com ligeiramente curvo/ondulado. Suponha que o interlocutor estivesse esperando o oposto, digamos, um arame completamente reto, e alguém lhe traz um arame com uma leve curvatura. Um arame ligeiramente curvo, isto é, com um grau pequeno acima do grau mínimo na escala de curvatura, já não é mais reto. Em (29) temos a estrutura da escala, em que a barra representa a transição natural. A imprecisão reside justamente nessa passagem, que aparentemente pode ser regulada, permitindo que objetos levemente curvados possam contar como retos em alguns casos. Alternativamente, como Rotstein e Winter (2004), podemos assumir que o lado positivo, a escala de reto, seja um intervalo que não envolva um único ponto (ou intervalo), deixando espaço para a imprecisão. A primeira opção me soa semanticamente mais econômica. (29) Estrutura da escala: curvatura [---|-------------------) Reto curvo Escala fechada em cima: nessa escala, o adjetivo positivo do par requer um grau máximo como padrão (Apos = max), enquanto o polo negativo requer um grau mínimo (Aneg = min). Exemplificando, no par seguro/perigoso16 para que um objeto seja seguro ele não deve apresentar nenhum grau de falta segurança, enquanto para que seja considerado perigoso ele precisa apresentar qualquer grau de falta de segurança. O mesmo vale para o par puro/impuro. O leitor poderá se perguntar por que nesse caso a oposição é entre seguro/perigoso e não entre seguro/inseguro. Note que inseguro parece ser um adjetivo que qualifica melhor seres animados, enquanto é esquisito com não-animados. (i) a. O carro é perigoso/#inseguro. (ii) b. O aluno é #perigoso/inseguro. Um ser humano chamado de inseguro é alguém que não tem segurança em si (ou nos outros), e alguém dito perigoso é alguém que pode causar perigoso para si e para outros. Essa é uma caracterização grosseira, obviamente. 16 34 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (30) a. O brinquedo novo do parque é completamente/#ligeiramente seguro. b. O brinquedo novo do parque é #completamente/ligeiramente perigoso. (31) a. A prata nesse anel é completamente/#ligeiramente pura. b. A prata nesse anel é #completamente/ligeiramente impura. Em (30a), a combinação com completamente seguro é ambígua. Temos a leitura mereológica, “todas as partes do brinquedo possuem o grau máximo na escala de segurança”, e a leitura gradual, “o brinquedo possui o grau máximo na escala de segurança”. Já ligeiramente seguro é estranha na leitura gradual. A sentença é perfeita se atribuirmos a ela uma leitura de atenuação: o brinquedo é perigoso (logo, não é seguro), mas como o falante não quer se comprometer com essa afirmação, usa a forma ligeiramente seguro. Talvez essa seja uma estratégia de controlar essa leitura “real”, digamos assim, da atenuação: ao invés de afirmar o oposto na escala, que seria a afirmação mais forte discursivamente, afirmo o outro lado da escala usando um atenuador. Comparando (32a) e (32b), poderíamos afirmar que elas são cognitivamente sinônimas (CRUSE, 1986), no sentido em que expressam a mesma proposição. Isso faz sentido se assumirmos como Rotstein e Winter (2004) que o padrão mínimo do adjetivo total (se isso for possível) é igual ao padrão mínimo do adjetivo parcial em um par – explicando a complementaridade atestada por Cruse (1980). Note que, se seguro é um adjetivo de grau máximo, não tem como ligeiramente identificar um grau acima do padrão. Daí a inferência que o ouvinte pode fazer de que o falante está se referindo ao outro espectro da escala. Alternativamente, se, como dissemos acima, o adjetivo total do par envolver um espectro na escala que envolve não apenas um grau máximo (um ponto), mas um intervalo, usos como (32a) poderiam ser considerados como modificação gradual regular – anulando a hipótese de sinonímia de conteúdo em (32). Note que podemos ter uma interpretação de atenuação, pois se o sujeito possui um grau de segurança, a expectativa é de que seja o grau máximo (ausência de periculosidade). Se a segurança que o objeto exibe é um pequeno grau, isso leva o ouvinte a inferir que ele possui também algum grau de insegurança. Afinal, se o falante tivesse evidências de que o brinquedo é completamente seguro ele teria usado a forma não marcada. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 35 (32) a. O brinquedo novo do parque é ligeiramente seguro. b. O brinquedo novo do parque é perigoso. Veja que com completamente perigoso temos uma leitura de ênfase, pois, em tese, não deveria ser possível um grau máximo de perigo, assim, se (30b) é interpretável, a leitura que temos não deve ser a de que o brinquedo apresenta o grau máximo na escala de perigo. Em (30b) ligeiramente perigoso gera ambiguidade. Temos a leitura de atenuação (afinal, o brinquedo é perigoso) e a literal, que identifica um grau mínimo: “o brinquedo apresenta um grau que excede ligeiramente o grau mínimo na escala de periculosidade”. Com o par puro/impuro os julgamentos já não me parecem tão simples. É provável que esses adjetivos tenham um uso relativo também.17 Na química, por exemplo, pode-se falar dos graus de pureza de uma solução. No caso que temos em (31), a declaração em (31a) é verdadeira se a prata não apresentar nenhum grau de impureza, se ela for 100% pura. No outro caso, talvez quimicamente uma solução possa ser ligeiramente pura, isto é, apresentar um grau mínimo de pureza, mas creio que estaríamos fazendo uma atenuação, ao invés de fazermos a afirmação mais forte e adequada descritivamente: a solução é impura. Por sua vez, em (31b) completamente impura gera anomalia porque se o metal no anel apresentar um grau máximo de impureza ele já não é mais prata e será outra coisa. Contrastivamente, ligeiramente impura é boa porque qualquer grau mínimo de impureza já conta como impuro. Por fim, é provável que a imprecisão com esses pares seja mais relaxada. Isso quer dizer que em algumas situações admitimos que x é puro mesmo que x apresente um grau considerável de impureza. (33) Estrutura da escala: (-----------------------|---] pureza: impuro puro Mesmo assim, admitir que no uso simples tenhamos um adjetivo absoluto e no uso modificado tenhamos um uso relativo, não me parece uma solução econômica do ponto de vista do léxico. Afinal, precisaríamos de algum tipo de operação que possibilitasse ao falante transitar entre esses diferentes ‘sentidos’ (supondo que o fenômeno seja um tipo de polissemia) do adjetivo, algo como uma operação de mudança de tipo. 17 36 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 Escala totalmente fechada: tanto a versão positiva quanto a negativa da escala possuem um limite máximo (Apos = max e Aneg = max). No exemplo abaixo, para que uma sala esteja cheia, ela deve estar com a sua capacidade completa, e para estar vazia, ela deve estar desocupada (modulo imprecisão). Há uma diferença importante entre os pares cheio/vazio e aberto/ fechado. Eles possuem comportamento diferenciado em relação à negação, como vimos em (11): negar que a sala esteja cheia não acarreta que a sala esteja vazia. Ou seja, isso nos mostra que a escala de cheio/ vazio não possui uma transição natural entre um polo e outro, e que ela envolve uma lacuna extensional. Já no outro caso, o par aberto/fechado apresenta uma transição natural, como os outros absolutos que vimos acima: se a porta não está aberta, então está fechada (e vice-versa). Essas diferenças são visíveis na interpretação com os modificadores em (34). (34) a. A sala está completamente/#ligeiramente cheia. b. A sala está completamente/#ligeiramente vazia. (34a-b) devem ser ambíguas com completamente (leitura mereológica e gradual), como os outros adjetivos absolutos que requerem um padrão máximo. Ligeiramente cheia/vazia só é interpretável na leitura de atenuação. A previsão de Kennedy (2007) era que os modificadores de grau máximo e mínimo fossem compatíveis com os dois polos e isso não se confirma. Ligeiramente não é totalmente aceitável com os dois elementos. Isso faz sentido, se pensarmos que não há um grau mínimo que conte como cheio ou vazio. Para um copo estar cheio, ele precisa estar na sua capacidade máxima (ou próximo disso), e para estar vazio precisa não conter nenhum conteúdo, ou uma quantidade ínfima. Assim, ser incompatível com modificadores que identificam graus mínimos é fruto da semântica dos adjetivos, explicando a anomalia. Agora, vejamos o que acontece com o par aberto/fechado, que como vimos envolve uma transição natural. (35) a. A janela está completamente/ligeiramente aberta. b. A janela está completamente/ligeiramente fechada. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 37 Aberto/fechado é compatível com os dois conjuntos de modificadores, mas completamente gera apenas a leitura gradual, enquanto ligeiramente talvez possa ter leitura de atenuação também. Isso é natural se pensarmos no tipo de situação que aberto/fechado descrevem. Uma janela completamente aberta é uma janela com o grau máximo de abertura. A leitura mereológica é estranha, pois uma janela completamente aberta parece pressupor que todas as partes que compõem a janela estejam abertas. Uma janela também pode estar minimamente aberta, por isso a combinação com ligeiramente é possível. Fechado não me parece exatamente a mesma coisa. Uma janela completamente fechada é uma janela sem nenhum grau de abertura. Mas o que seria uma janela ligeiramente fechada? Logicamente, deveria ser uma janela com apenas um grau mínimo de ‘fechadura’, isso quer dizer, então, que a situação descrita por (35b) também poderia ser descrita por (35a): ligeiramente aberta = ligeiramente fechada. Assim, essas duas sentenças são sinônimas, o que me soa razoável intuitivamente, assumindo a proposta de Rotstein e Winter (2004) que vimos acima: o padrão do polo que requer um grau máximo é igual ao padrão do outro lado do polo. Assim, minimamente aberto é igual a minimamente fechado. (36) a. Estrutura da escala: [----------|----------] abertura: fechado aberto b. Estrutura da escala: [-|-----------------|--] preenchimento: vazio cheio 2.2 Comentários sobre os testes Em relação aos testes de Kennedy (2007), esperamos ter mostrado que a distinção entre relativos e absolutos é gramaticalmente relevante em português. Até aí nenhuma novidade. Contudo, vimos duas diferenças: (i) os adjetivos relativos são compatíveis com minimizadores na leitura gradual; e (ii) parece-nos que dentro dos adjetivos de escala fechada temos um subgrupo que envolve adjetivos que possuem tanto um padrão mínimo quanto um padrão máximo, caso de fechado/aberto, que contrasta com vazio/cheio, cujo padrão é só o grau máximo na escala. Desta forma, a tabela 1, com os casos discutidos, fica revista como abaixo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 38 TABELA 2 - Combinação dos modificadores com escalas fechadas em PB Fechada embaixo Aberta Fechada em cima Fechada I (cheio/vazio) Fechada II (aberto/ fechado) Mod MIN MAX MIN MAX MIN MAX MIN MAX MIN MAX Apos Ok # OK # # Ok # Ok Ok Ok Aneg Ok # # Ok Ok # # Ok Ok Ok Fonte: o autor. O problema teórico consiste em capturar essas diferenças formalmente. Vimos que o padrão dos relativos é dado contextualmente, via pos. Assim, a semântica dos adjetivos graduais relativos é uma simples função de medida, que mapeia um indivíduo no grau que ele exibe na escala dada pelo predicado (no intervalo positivo ou negativo, dependendo do adjetivo). Um adjetivo absoluto, nesse modelo semântico, deveria ser uma função de medida, cujo grau de comparação é dado lexicalmente. Como vimos, para julgar se uma sentença como O arame está torto é verdadeira, não precisamos olhar para o contexto, precisamos olhar apenas para o grau que o sujeito exibe na escala de curvatura e se esse grau corresponde ao grau mínimo na escala. Já, para decidir se uma sentença como O arame está reto é verdadeira, também olhamos para o grau que o arame exibe na escala de curvatura, e vemos se esse grau é o máximo (no caso, 0 grau de curvatura). Portanto, o grau que pos requer para relacionar já é dado lexicalmente, como vemos nas entradas lexicais em (37) (cf. KENNEDY, 2007). (37) a. [[ Amin ]] = λdd. λxe. [ESCALAAdjetivo(x) = d & d ≥ min(EA)] b. [[ Amax ]] = λdd. λxe. [ESCALAAdjetivo(x) = d & d = max(EA)] Onde: EA = Escala do Adjetivo Queremos que a denotação do SA seja como vemos abaixo (cf. KENNEDY; McNALLY, 2005, p. 358). Embora ligeiramente diferentes, as denotações propostas para os adjetivos totais e parciais de Rotstein e Winter (2004) são similares a estas, com a única diferença que o grau padrão dos adjetivos totais é definido também pela relação parcial ≥: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 39 (38) a. [[ pos Arelativo ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d ≥ d’padrão] b. [[ pos AAbsmax ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d = max(EA)] c. [[ pos AAbsmin ]] = λxe. ∃d[ESCALAAdjetivo(x,d) & d ≥ min(EA)] Para que (37) vire (38), isto é, que funções de tipo <ed> virem funções de tipo <et>, basta que pos funcione como uma função de identidade na composição com os absolutos e que ligue existencialmente o grau referencial (cf. 37). (39) [[ pos AAbs]] = λGed. λxe. ∃d[P(x)(d)] O núcleo funcional de pos permanece: é uma função de predicados de grau a predicados de indivíduos, contudo, apenas na modificação de adjetivos relativos ele precisa introduzir o grau de comparação a partir do contexto, enquanto na composição com adjetivos absolutos ele só precisa garantir que o grau que irá saturar o grau pedido pelo predicado gradual denotado pelo adjetivo absoluto seja o próprio grau dado pela entrada lexical. O leitor poderá ficar cético em relação a todas essas operações necessárias para derivar a composição de sentenças cuja superfície parece tão simples. Como afirma Kennedy (2007): “[…] é um tanto paradoxal que a forma morfossintaticamente mais simples de um predicado gradual seja a mais difícil de se caracterizar adequadamente nos termos de uma análise semântica composicional”18 (tradução minha). E isso só nos mostra o quão interessante é o tema. Se a semântica desses adjetivos é essa (i.e., o padrão dos adjetivos relativos é contextual, enquanto o dos absolutos é lexical), qual é a contribuição de modificadores como completamente e ligeiramente? Se o grau que completamente pega é o grau máximo na escala, qual a diferença semântica entre (40a) e (40b)? Afinal, de acordo com a entrada lexical em (38b), um adjetivo absoluto de grau máximo é uma função que mapeia o seu argumento no grau máximo da escala do adjetivo. No original “[…] it is a bit paradoxical that the most morphosyntactically simple form of a gradable predicate turns out to be the hardest to adequately characterize in terms of a compositional semantic analysis”. [sem paginação no original] 18 40 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (40) a. O arame está reto. b. O arame está completamente reto. Passemos às respostas. 3 A semântica dos modificadores O desafio que está posto é entender por que modificadores como completamente são sensíveis a limites máximos, enquanto aqueles como ligeiramente são a padrões mínimos. Isso quer dizer que eles detectam o padrão dos adjetivos, ou seja, esses modificadores são capazes de “ver” como a escala se estrutura. Olhando com mais cuidado os modificadores, Rotstein e Winter (2004) percebem que slightly prefere adjetivos com padrão mínimo (41), embora se combine também com alguns de padrão máximo, caso de open/closed em (42a) e dry em (42b). Pelas glosas vemos que o mesmo ocorre em português. (41) a. The work is slightly incomplete/*complete. O trabalho está ligeiramente incompleto/*completo. b. The argument is slightly imperfect/*perfect. O argumento está ligeiramente imperfeito/*perfeito. (42) a. The door is slightly open/closed. A porta está ligeiramente aberta/fechada. b. The towel is slightly wet/dry. A toalha está ligeiramente seca/molhada. O que acontece em (42a) já vimos anteriormente. O caso complicado é (42b). A menos que seco/molhado seja um par em que seco tenha também um padrão mínimo ao lado de um máximo, precisaríamos explicar porque ligeiramente está modificando esse adjetivo sem anomalia. A minha intuição é que uma toalha ligeiramente seca não está seca. Assim, é como o caso que vimos anteriormente com seguro/inseguro em (30). Uma alternativa seria imaginar que a leitura de atenuação viria por violação da Máxima da Qualidade. O predicado ligeiramente seco aplicado à toalha na situação levaria ao falso, pois não Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 41 há um grau mínimo na escala de seco, apenas um máximo, o que leva o ouvinte a inferir que o falante está fazendo uma atenuação, ao invés de usar a forma mais forte: a toalha está molhada. Ou ainda, como vimos acima, o falante poderia estar pressupondo um padrão funcional (SOLT, 2011) – que não vemos expresso linguisticamente, mas que poderia ser inferido do contexto. Veja que os dados abaixo parecem confirmar a análise de atenuação. Se ligeiramente é uma atenuação, slighty dry deveria gerar alguma anomalia ao ser seguida por completely dry. As sentenças em (43) soam contraditórias. Isso quer dizer que ligeiramente A acarreta não completamente A. (43) a. #The door is slightly closed, and it is completely closed. #A porta está ligeiramente aberta, e está completamente fechada. b. #The towel is slightly dry, and it is completely dry. #A toalha está ligeiramente seca, e ela está completamente seca. Por sua vez, completamente A parece significar (ou implicar) “nenhum grau do oposto da escala”. Para os autores, isso se reflete no contraste em (44). Mas note que (44b), na verdade, é boa na leitura mereológica, e na leitura gradual ela deveria ser anômala, pois não há um grau máximo de umidade que uma toalha pode exibir. (44) a. #As duas toalhas estão completamente secas, mas a azul está mais seca que a vermelha. b. As duas toalhas estão completamente molhadas, mas a azul está mais molhada que a vermelha. Assim, vemos que os modificadores possuem cada um duas leituras. Completamente possui uma leitura gradual e uma mereológica; ligeiramente possui uma leitura gradual e uma leitura de atenuação. Aparentemente, esta última não prevista para sua contraparte em inglês, slightly. Se possui, Rotstein e Winter (2004) não atentaram para ela, tampouco Kennedy (2007) ou Solt (2011). Partindo agora para uma discussão mais formal, na proposta de Kennedy (1997) os modificadores graduais são relacionais. Vimos que pos, em essência, é uma relação, “maior ou igual”, entre dois graus, o 42 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 grau de referência e o grau padrão. Assim, podemos nos perguntar que tipo de relação os maximizadores e os minimizadores expressam. Na proposta de Rotstein e Winter (2004), a denotação de completamente é como vemos em (45a) – na minha leitura, pois a notação deles é diferente. Como comparação, a entrada lexical em (45b) é a oferecida por Kennedy e McNally (2005), que tem a mesma intuição, mas esse grau ao final da escala é o grau máximo. Afinal, como vimos, esse modificador seleciona semanticamente os absolutos de grau máximo. (45) a. [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = d no final da escala de A] b. [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = max na escala de A] Pelo formalismo em (45a), a função do modificador é expressar a relação de igualdade entre o grau que o indivíduo possui, o grau referencial, e um grau d, que é o grau ao final da escala. Os autores não se comprometem com a existência de graus máximos na definição do modificador. Note que essas denotações são problemáticas: se para a semântica dos absolutos de grau máximo precisamos que eles tenham o grau máximo para derivar as condições de verdade no uso simples, como explicar que a modificação por completamente não soe redundante? Nossa impressão é que essa questão fica negligenciada nesses dois estudos. Isso nos dá duas opções: há algo errado com a denotação dos adjetivos graduais absolutos de padrão máximo ou a semântica de completamente não pode ser nenhuma das opções em (45). Uma alternativa é assumir que a leitura de que um indivíduo possui o grau máximo na escala do adjetivo é uma inferência pragmática. Uma evidência nesse sentido é que essa inferência, aparentemente, pode ser cancelada, por isso sentenças como (46) não são anômalas nem redundantes. (46) a. O arame está reto, e na verdade está completamente reto. b. A toalha está seca, e na verdade está completamente seca. Casos como (47), que para Rotstein e Winter (2004) são levemente marginais (a contraparte em inglês, claro), são outra evidência disso. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 43 (47) O arame está reto, mas não completamente reto. A possível marginalidade pode ser atribuída à reinterpretação da sentença: temos que cancelar a inferência de que o arame está no grau máximo na escala de reto. Para os autores, o problema da leve estranheza da sentença é que o padrão máximo desses adjetivos é igual ao padrão mínimo no outro polo da escala. Se a transição é natural, esse tipo de sensação deveria ser comum, explicando os casos de imprecisão também. Afinal, se o grau que o indivíduo exibe está localizado exatamente na transição, os julgamentos deveriam ser confusos. Podemos assumir, então, que a denotação de um adjetivo dessa classe tenha como padrão um grau máximo, claro, mas que a relação entre o grau que o indivíduo exibe e o padrão não é uma função total, mas uma função parcial também, como é o caso dos adjetivos de padrão mínimo.19 (48) [[ pos AAbsmax ]] = λxe: ∃d[d ≥ max(EA)]. ESCALAAdjetivo(x,d) Note que isso não apaga a diferença entre os dois tipos de adjetivos absolutos, pois o padrão continua sendo um grau mínimo ou um grau máximo. A diferença fica por conta da inferência que os absolutos disparam no uso sem modificação: o grau que o indivíduo exibe é o máximo da escala e que na entrada lexical em (48) está como um pressuposto. Vejamos agora a semântica do atenuador. A entrada lexical, na minha leitura, oferecida por Rotstein e Winter (2004), é dada em (49a). Segundo os autores, slightly identifica um intervalo aberto no início da escala do adjetivo. Kennedy e McNally (2005) não dão a entrada lexical do atenuador, mas sugerem que ele identifique um grau mínimo na escala do adjetivo. Assim, suponhamos que seja como (49b). (49) a. [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = um intervalo no início da escala de A] b. [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = min na escala de A] O contraste relevante a ser capturado aqui é entre (50a) e (50b). Como temos um adjetivo de grau mínimo, qualquer grau de impureza já torna (50a) verdadeira. De acordo com (49b), seria de se esperar que ligeiramente A fosse redundante, o que vimos não acontecer. Na fórmula, max(EA) deve ser entendido como uma função que leva a um intervalo positivo na escala do adjetivo, não a um grau (ou um ponto) na escala. 19 44 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 (50) a. A solução está impura. b. A solução está ligeiramente impura. Para esse caso, a proposta de Rotstein e Winter (2004) me parece ser a que está na direção correta. Contudo, podemos colocar uma restrição adicional, a de que esse intervalo precisa ser curto, não apenas qualquer intervalo no início da escala do adjetivo de grau mínimo. De outra forma, a contribuição proposicional de ligeiramente, de acordo com (49a), seria praticamente nula. Assim, a denotação reformulada ficaria como vemos em (51). (51) [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = um intervalo curto no início da escala de A] “Um intervalo curto” não resolve muito a semântica do atenuador. Sendo mais preciso, podemos supor que aqui entraria a contribuição do adjetivo base do advérbio. Ligeiramente poderia ser interpretado como um predicado de intervalos, com a significação concreta do adjetivo ligeiro enfraquecida para que possa exercer essa função mais gramatical. Ele seria, então, um predicado de graus/intervalos, como vemos formalmente em (52): (52) [[ligeiramente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & d = min(EA) & CURTO(d)] Como vimos, ligeiramente também possui a característica de poder se combinar com adjetivos relativos. Isso mostra que esse modificador pressupõe que a escala tenha um limite mínimo, mesmo que dado contextualmente e não que o padrão do adjetivo seja um grau mínimo. Isso explicaria porque a combinação com adjetivos de grau máximo gera anomalia, disparando uma implicatura de atenuação. Em ligeiramente seguro teríamos um conflito com a pressuposição do adjetivo de grau máximo: o indivíduo exibe o grau máximo da propriedade na escala do adjetivo. Para salvar a estrutura o falante olharia para o outro lado do polo, o início da escala em que inseguro começaria. Note que poderíamos estender essa análise também para o significado de completamente, supondo, como Kennedy e McNally (2005) sugerem em nota, que o significado de “grau máximo na escala de A” tenha surgido como uma implicatura a partir do significado literal Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 45 “todas as partes de x são A”, isto é, estamos diante de uma ambiguidade lexical. (53) [[completamente A]] = λxe. ∃d[A(x,d) & COMPLETAMENTE(d)] Fica em aberto a questão do componente que estamos chamando de pressuposicional em (48): por que ele não se projetaria na estrutura em (53)? Vamos assumir que pos e completamente ocupem a mesma posição sintática, são argumentos do adjetivo, e que a pressuposição só surgiria como uma inferência convencional no uso não modificado de adjetivos graduais absolutos de grau máximo. Note que se ela for um componente da semântica desse tipo de adjetivo, por que não vemos redundância em expressões como completamente reto? Por ora, é a explicação que gostaríamos de oferecer. Considerações finais Utilizando uma abordagem para o tratamento da gradação e da modificação gradual que assume a existência de graus na ontologia, acreditamos ter mostrado que a distinção entre adjetivos graduais relativos e graduais absolutos é também gramaticalmente relevante em português brasileiro. Contudo, mostramos que há algumas diferenças em relação ao previsto pela literatura. A primeira é que adjetivos graduais relativos permitem modificação por minimizadores na leitura gradual; a segunda é que os pares de adjetivos que geram escalas fechadas podem ser divididos em dois conjuntos: os que possuem transição natural (aberto/ fechado) e os que possuem lacuna extensional (cheio/vazio). Na análise das diferentes classes vimos que os modificadores que identificam os subtipos são sensíveis ao padrão requerido (se máximo ou mínimo), evidenciando que eles são capazes de “ver” como a escala do adjetivo se estrutura. Isso implica que a seleção semântica que esses modificadores fazem é mais fina do que simplesmente selecionar adjetivos graduais e não-graduais (adjetivos que resistem a qualquer tipo de modificação gradual, como vimos na seção 1.1) e que eles parecem ser argumentos do adjetivo. Assim, os adjetivos é que fariam seleção dos modificadores e não o oposto. Note que a visão tradicional, pelo menos sintaticamente, é entender esses modificadores como adjuntos do SA (e adjunto não é uma categoria que costuma fazer seleção semântica) e não como argumentos do adjetivo. 46 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 Também mostramos que o maximizador completamente possui duas leituras, uma mereológica e outra gradual. Kennedy e McNally (2005) sugerem que a leitura gradual pode ter surgido como uma implicatura da leitura mereológica (mais concreta, em certo sentido). Por sua vez, o minimizador ligeiramente produz também dois tipos de leituras: uma de grau mínimo e uma de atenuação (via implicatura). Na última seção discutimos a semântica dos modificadores, objetivando explicar as interpretações resultantes dos testes. Vimos que a semântica normalmente atribuída para os adjetivos (em sentenças simples) entra em conflito com a semântica necessária para derivar as condições de verdade das sentenças com os modificadores. Sugeri que no caso dos adjetivos absolutos com padrão máximo esse grau é um pressuposto, não parte da entrada lexical, como proposto por Kennedy e McNally (2005) e Kennedy (2007). No caso de ligeiramente, que se combina com adjetivos absolutos de padrão mínimo, vimos que o grau que esse modificador requer, na verdade, é um intervalo curto no início da escala, não qualquer intervalo no início da escala do adjetivo. E, por fim, vimos que o caso de ligeiramente é mais geral, pois ele também é capaz de modificar adjetivos relativos. Embora esse grau provenha quase sempre do contexto, ele é regular, sempre está lá. O que é contextual é o lugar da escala em que ele se situa. Agradecimentos O autor gostaria de agradecer ao Gabriel de Ávila Othero por ter lido e comentado uma primeira versão deste artigo; aos participantes do Seminário de Teoria e Análise Linguística da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cujos comentários e dúvidas na apresentação de outro trabalho motivaram uma boa parte deste estudo; e aos dois pareceristas anônimos que leram atentamente o artigo e fizeram comentários que me fizeram esclarecer pontos cuja redação estava obscura e a redimir alguns problemas nas fórmulas e no texto. Referências BURNETT, Heather. A Delineation Solution to the Puzzles of Absolute Adjectives. Linguistics & Philosophy, v. 37, p. 1-39, 2014. Doi: https:// doi.org/10.1007/s10988-014-9145-9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 47 CANÇADO, Márcia; AMARAL, Luana. Introdução à semântica lexical. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. CRUSE, David. Antonyms and Gradable Complementaries. In: KASTOVSKY, D. (Ed.). Perspektiven der Lexikalischen Semantik: Beiträge zum Wuppertaler Semantikkolloquium vom 2-3, Dec. 1977. Bonn: Bouvier, 1980. p. 14-25. CRUSE, David. Lexical semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. DEMONTE, Violeta. Adjectives. In: von HEUSINGER, K.; MAIENBORN, C.; PORTNER, (Ed.). Semantics: an International Handbook of Natural Language Meaning. Berlin: Walter de Gruyter, 2011. p. 1314-1340. DOETJES, Jenny. Adjectives and degree modification. In: KENNEDY, C.; McNALLY, L. (Org.). Adjectives: Syntax, Semantics and Discourse. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. p. 123-155. HEIM, Irene; KRATZER, Angelika. Semantics in Generative Grammar. Blackwell, 1998. KENNEDY, Christopher. Projecting the Adjective. 1997 Dissertation (PhD) – University of California at Santa Cruz, 1997. KENNEDY, Christopher. Vagueness and grammar: the semantics of relative and absolute gradable adjectives. Linguistics and Philosophy, v. 30, n. 1, p. 1-45, Feb. 2007. Doi: https://doi.org/10.1007/s10988-0069008-0 KENNEDY, Christopher; McNALLY, Louise. Scale structure, degree modification, and the semantics of gradable predicates. Language, v. 81, n. 2, p. 345-381, 2005. Doi: https://doi.org/10.1353/lan.2005.0071 KLEIN, Ewan. A semantics for positive and comparative adjectives. Linguistics and Philosophy, v. 4, p. 1-45, 1980. Doi: https://doi. org/10.1007/BF00351812 LASERSOHN, Peter. Pragmatic halos. Language, v. 75, n. 3, p. 522-551, 1999. Doi: https://doi.org/10.2307/417059 LEHER, Adrienne. Markedness and antonymy. Journal of Linguistics, v. 21, n. 2, p. 397-429, Set. 1985. Doi: ttps://doi.org/10.1017/ S002222670001032X 48 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 13-48, 2019 LYONS, John. Semantics. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. v. I. PINKAL, Manfred. Logic and lexicon. Dordrecht: Kluwer, 1995. QUADROS GOMES, Ana Paula. O efeito grau máximo sobre os domínios: como ‘todo’ modifica a relação argumento-predicado. 2009. Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. QUADROS GOMES, Ana Paula. Uma proposta de distinção semântica para os intensificadores ‘muito’ e ‘bem’. Estudos Linguísticos, São Paulo, n. 40, v. 1, p. 379-394, jan.-abr. 2011. QUADROS GOMES, Ana Paula. Modificadores de adjetivos de grau em PB. In: SIMELP - A FORMAÇÃO DE NOVAS GERAÇÕES DE FALANTES DE PORTUGUÊS NO MUNDO, III. 2012, Macau (CHN). Simpósio 5: O português falado no mundo: investigações sobre a oralidade da língua portuguesa. Anais... Macau: Universidade de Macau, 2012. p. 5-1-5-11. ROTSTEIN, Carmen; WINTER, Yoad. Total adjectives vs. partial adjectives: Scale structure and higher-order modifiers. Natural Language Semantics, v. 12, p. 259-288, 2004. Doi: ttps://doi.org/10.1023/ B:NALS.0000034517.56898.9a SOLT, Stephanie. Comparison to arbitrary standards. In: SINN AND BEDEUTUNG, 16., 2011, Utrecht. Proceedings… Utrecht: Utrecht University, 2011. p. 557-570. TOLEDO, Assaf; SASSOON, Galit. Absolute vs. relative adjectives: variance within vs. between individuals. In: SALT: SEMANTICS AND LINGUISTIC THEORY CONFERENCE, 21., 2011. New Jersey. Proceedings… New Jersey: Rutgers University in New Brunswick, 2011. p. 135-154. Van ROOIJ, Robert. Vagueness in linguistics. In: RONZITTI, G. (Ed.). Vagueness: a guide. Berlim: Springer, 2011. p. 123-170. von STECHOW, Armin. Comparing Theories of Comparison. Journal of Semantics, Oxford University Press, v. 3, p. 183-199, 1984. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 La variación en la representación del complemento verbal y la enseñanza de PB a hispanohablantes: un análisis de materiales didácticos de PLE The Variation in the Representation of the Verbal Complement and the Teaching of BP to Spanish Speakers: An Analysis of Didactic Materials of PFL Thaís Leal Rodrigues Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro / Brasil leal.thais@hotmail.com Resumen: Este artículo tiene como tema la enseñanza de la representación del complemento verbal – objeto directo e indirecto – a hablantes de español. Se trata de hecho lingüístico variable en la lengua portuguesa de Brasil (PB), pues la enunciación del complemento verbal dentro de un texto o diálogo, en lengua portuguesa de Brasil, presenta varias posibilidades para su representación además del uso de los clíticos, prescripto por la gramática normativa. Se constituye, por lo tanto, un fenómeno en variación. Se pretende, en esta investigación, describir esa variable y evaluar sus implicaciones en el proceso de enseñanza y aprendizaje de PLE, así como examinar como este aspecto del PB ha sido tratado en los materiales didácticos dirigidos a la enseñanza de PLE. En otras palabras, se tiene el intuito de verificar como son presentados y enseñados los complementos verbales, en esos materiales, y averiguar si la variación lingüística está contemplada en el tratamiento de este tema. Se trata de una investigación que se basa en la teoría sociolingüística para analizar materiales didácticos, pues creemos que se debe presentar la lengua extranjera al alumno, de tal manera que se dé cuenta de toda su riqueza y variación, a fin de hacerlo capaz de interactuar en las diversas situaciones lingüísticas de habla y escritura. Palabras clave: Sociolingüística; enseñanza de portugués como lengua extranjera; hispanohablantes. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.49-72 50 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 Abstract: The key theme of this article is the teaching of the representation of the verbal complement, both direct and indirect objects. That is a linguistic variable fact in Brazilian Portuguese (BP). The enunciation of the verbal complement in a text or dialogue in Brazilian Portuguese presents several possibilities for its representation besides the use of clitics prescribed by the normative grammar. Therefore, it constitutes a phenomenon in variation. This research aims to describe this variable and assess its implications for the Portuguese as Foreign Language (PFL) teaching and learning process, as well as examine how this aspect of BP has been treated in the educational materials aimed at teaching PFL. In other words, the intent of this investigation is to verify how verbal complements are presented and taught in these materials and determine if linguistic variation is considered in the treatment of this subject. This research is anchored on sociolinguistic theory in order to analyse teaching materials because it is my view that a foreign language should be presented to students in such a way that they can see all its richness and variation and, therefore, help them to be able to interact in different linguistic situations through speech and writing. Keywords: sociolinguistics; teaching Portuguese as a foreign language; Spanishspeaking. Recebido em 13 de novembro de 2017 Aceito em 20 de março de 2018 1 Introducción El portugués y el español tienen el mismo origen latino, así que son lenguas muy próximas. Por eso es evidente que al aprender la lengua española un lusohablante presentará interferencias de su lengua materna en la fase inicial del aprendizaje y, de la misma manera, un hispanohablante será muy influenciado por el español, cuando aprenda el portugués, como afirma Santos: Se por um lado essa semelhança facilita o entendimento do português logo aos primeiros contatos, por outro impede, na maioria das vezes, que o falante de espanhol se comunique na língua alvo, o português, sem as constantes interferências da sua língua nativa. (SANTOS, 1999, p. 49) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 51 Para Maia González (2008), la proximidad entre las dos lenguas no es tan grande como se imagina, especialmente cuando se trata de la variedad brasileña del portugués: Se ha estudiado centenares de veces sobre la proximidad entre las lenguas española y portuguesa, pero esa cercanía parece ser, al menos en algunos aspectos, por lo menos moderada, sobre todo cuando se compara la variedad más estándar del español con el portugués de Brasil, incluso en el nivel de las variedades más informales de ambas lenguas. (MAIA GONZÁLEZ, 2008, p.1) Este artículo presenta los resultados de la investigación realizada sobre la enseñanza de la representación del complemento verbal a hablantes de español, ya sea el objeto directo, o el objeto indirecto, hecho lingüístico variable en la lengua portuguesa de Brasil (PB). El trabajo consiste en un análisis de materiales didácticos de enseñanza de portugués a extranjeros (PLE), con el fin de verificar como son presentados y enseñados los complementos verbales, en los referidos materiales, y averiguar si la variación lingüística está contemplada en el tratamiento de este tema. Varias investigaciones constataron que a partir del siglo XIX el PB empezó a presentar la pérdida del clítico acusativo de tercera persona del discurso. Paralelamente, los pronombres átonos comenzaron a ser reemplazados por los pronombres tónicos. Además, varios estudios (DUARTE, 2000; BERLINK, 1997; CYRINO,1997; TARALLO, 1983) demuestran el alto porcentaje de omisión de los objetos anafóricos. Tal hecho no ocurre en la lengua española, que, incluso en su expresión oral, presenta todos los objetos complementados por los pronombres átonos (MAIA GONZÁLEZ, 1999), lo que hace bastante limitada la posibilidad de ocurrir un OD anafórico sin representación por el pronombre. Según Maia González (2008, p. 1, 1999, p. 166), portugués y español presentan diferencias en el ámbito de la realización de los sujetos y de los objetos pronominales, constituyendo lo que se denomina “inversa asimetría”, esto es, una oposición que atañe a la presencia o ausencia de los pronombres personales sujeto y complemento en ambas lenguas. El ejemplo 1 (a, b) contiene la misma frase redactada en portugués y en español, para facilitar la comprensión de las diferencias comentadas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 52 1(a) Eu comprei um presente para você. Vou te/lhe entregar ø no dia do seu aniversário. 1(b) ø Te compré un regalo. Te lo voy a entregar el día de tu cumpleaños. El ejemplo indica que mientras el PB manifiesta una tendencia a la realización del sujeto por medio del pronombre, el español, al contrario, presenta una necesidad de enfatizar el objeto, retomándolo por medio de clíticos y, muchas veces, duplicándolo. Por otro lado, el PB se caracteriza por una tendencia a la omisión del OD, al paso que, en español, es común omitir el sujeto (sujeto nulo). Para Maia González (2008, p. 2), dicho fenómeno constituye “uno de los aspectos más problemáticos en el proceso de aprendizaje de cada una de ellas por parte de los hablantes de la otra.” Nos parece, entonces, importante investigar la realización de los objetos – directo e indirecto – hecho lingüístico que puede hacer confuso el aprendizaje del portugués por parte de hispanohablantes, si no es enseñado del modo adecuado. Concordamos con Santos (1999, p. 53) cuando afirma que: “o ensino de português para falantes de espanhol deve ser diferente daquele voltado para falantes de outros idiomas”. Eso se debe al hecho de que la enseñanza de portugués a hispanohablantes posee algunas especificidades, como la gran facilidad en la comprensión de la lengua extranjera, desde las primeras clases, y el proceso de aprendizaje más rápido, lo que puede causar una fosilización precoz de la interlengua. Por ello, hay una necesidad de desarrollar en los alumnos una consciencia metalingüística acerca las diferencias existentes entre las dos lenguas. 2 La muestra analizada Se analizaron diez libros de enseñanza de PLE. Para la selección de los materiales, buscamos elegir libros de tipos variados, con público meta diversificado, a fin de investigar posibles diferencias entre ellos, en lo que concierne al tratamiento lingüístico-gramatical. Optamos por libros actuales (publicados o con edición desde los 2000), para verificar si hubo alguna evolución en la producción de esos materiales, por influencia de los recientes estudios de la Lingüística en el área específica de PLE, en comparación con investigación anterior (RODRIGUES, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 53 2012). Los materiales elegidos están relacionados a continuación, en orden alfabético. 1) Aprendendo Português do Brasil: um curso para estrangeiros. 4. ed. / Maria Nazaré de Carvalho Laroca; Nadime Bara; Sonia Maria da Cunha Pereira. Campinas: Pontes, 2003. (APB) 2) Bem-vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação. 8. ed. / Susanna Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R. B. Andrade Burim. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2014. (BV) 3) Estação Brasil: português para estrangeiros. / Ana Cecília Bizon; Elizabeth Fontão. Campinas: Átomo, 2005. (EB) 4) Muito prazer: fale o português do Brasil. v. 2 intermediário. / Gláucia Roberta Rocha Fernandes; Telma de Lurdes Ferreira; Vera Lúcia Ramos. São Paulo: Disal, 2014. (MB) 5) Novo Avenida Brasil: curso básico de Português para estrangeiros 1. / Emma Eberlein O. F. Lima et al. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2009. (NAB) 6) Panorama Brasil: ensino de português no mundo dos negócios. / Susanna Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R. B. Andrade Burim. São Paulo: Galpão, 2006. (PB) 7) Passagens: Português do Brasil para estrangeiros. / Rosine Celli. Campinas: Pontes, 2002. (PAS) 8) Português Via Brasil: um curso avançado para estrangeiros. / Emma Eberlein O. F. Lima; Samira A. Iunes. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2005. (PVB) 9) Sempre amigos: fala Brasil para jovens. / Elizabeth Fontão; Pierre Coudry. Campinas: Pontes, 2000. (SA) 10) Tudo bem? Português para a nova geração. v. 1. 5. ed. / Susanna Florissi; Maria Harumi Otuki de Ponce; Silvia R. B. Andrade Burim. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2012. (TB) 54 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 3 Fundamentación Teórica Esta investigación se fundamenta en los presupuestos de la Sociolingüística, corriente lingüística que se inició en los Estados Unidos, en la década de 1960, como reacción al generativismo chomskyano y al estructuralismo saussureano. Esa teoría concibe la lengua como un hecho social y está relacionada a otros campos del conocimiento, como la antropología, la sociología y la geografía lingüística. Es en el libro Modelos sociolingüísticos que Labov (1983) presenta los principales conceptos de la nueva escuela, así como la metodología de su propuesta. Según la teoría laboviana, el componente social es fundamental en el análisis lingüístico, pues, como ya dijimos, en la Sociolingüística, la lengua está vista como fenómeno social. Otro aspecto importante de ese abordaje es que, para Labov, la lengua es un sistema heterogéneo. La heterogeneidad lingüística, pero no implica de ninguna manera un caos lingüístico, puesto que hay normas subyacentes a toda variación, así que puede ser sistematizada. La variación es inherente a las lenguas, sin embargo no compromete el buen funcionamiento del sistema lingüístico ni la comunicación entre sus hablantes En fin, para la Sociolingüística, jamás se puede considerar como irrelevante un fenómeno en variación. Además, un sociolingüista no puede tener una posición prejuiciosa respecto a alguna variedad. Lo que muchos consideran un “error”, para el sociolingüista es una variante, esto es, una posibilidad en la lengua. Por lo tanto, queda claro la importancia de la Sociolingüística en la formación docente. En Brasil, la vasta producción sociolingüística ha aportado importantes parámetros pedagógicos para la enseñanza de portugués como lengua materna, teniendo en cuenta el abismo existente entre el portugués estándar y el portugués hablado por los estudiantes, mayormente los de escuelas públicas. La contribución de los estudios sociolingüísticos para la educación brasileña se debe, sobre todo, a la investigación sociolingüista de Bortoni-Ricardo (1984 y 1993), que señaló la necesidad de que la escuela promueva la enseñanza bidialectal que busque facilitar el aprendizaje de los alumnos hablantes de dialectos no estándar. En la perspectiva de la Sociolingüística Educacional, el educador no puede tener una postura de falta de respeto en relación a los saberes del alumno y su manera de hablar. Ya no se puede pensar que es deber del profesor cohibir los usos de la lengua que se desvíen de la norma estándar, humillando a los alumnos. Como afirma Bortoni-Ricardo (2004, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 55 p. 38): “uma pedagogia que é culturalmente sensível aos saberes dos educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles representam e a da escola, e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de conscientizar os educandos sobre essas diferenças”. Uno de los presupuestos de la Sociolingüística Educacional es el reconocimiento de que la competencia lingüística de los individuos demanda que ellos dominen los diferentes modos de expresarse en su propia lengua. Es obvio que el aporte de los resultados de la investigación sociolingüística variacionista para el área de enseñanza y aprendizaje no se limita a la lengua materna. También podemos identificar su frontera con la adquisición de lengua extranjera y, específicamente, de PB, teniendo en cuenta que los análisis de las variedades de las diferentes comunidades de habla proporcionan una descripción mucho más realista acerca del funcionamiento de las lenguas, sus gramáticas tradicionales y también de la importancia de los aspectos sociales y culturales en el aprendizaje de una lengua extranjera. Una enseñanza de portugués de Brasil para extranjeros (PBE) que se base en la teoría variacionista posibilitará que los aprendices interpreten el significado de los usos variables de las formas lingüísticas identificadas en contextos marcados por la diversidad cultural. Esa clase de orientación pedagógica también hace que el alumno perciba la forma por la cual los hablantes nativos utilizan la variación para expresar sus identidades, especialmente cuando el aprendizaje se da en el contexto del país de la lengua aprendida. Sabemos que los Parámetros Curriculares Nacionales – PCN recomiendan que las clases de lengua extranjera les proporcionen a los alumnos: la competencia de “saber distinguir entre as variantes linguísticas” (BRASIL, 2000, p. 28) y un nivel de competencia lingüística que les propicie el acceso a informaciones de varios tipos, contribuyendo, así, para su formación como ciudadano. Destacamos, además, que uno de los criterios de adopción de libros didácticos de lengua extranjera exigido por el Programa Nacional del Libro Didáctico (PNLD) es que los mismos tengan “textos representativos das comunidades falantes da língua estrangeira”. Notamos que las orientaciones de esos documentos oficiales que reglamentan la enseñanza en Brasil ratifican la importancia de una conexión entre la Sociolingüística y enseñanza de lenguas. De este modo, no hay motivo para que materiales didácticos (MD) de enseñanza de PBE sigan basándose en descripciones nada realistas del portugués. 56 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 Los preceptos adoptados para la producción de MD de PBE deben ser los mismos recomendados para los libros didácticos de lengua materna y de lengua extranjera recomendados por el PNLD, ya que todavía no tenemos una medida específica para la enseñanza de PBE. Además, es importante tomar como referencial los exámenes CELPE-BRAS en la elaboración de materiales didácticos de PBE, a fin de mejor capacitar a los alumnos para la realización de esa evaluación Según Fragozo (2011, p. 156) “uma das contribuições da Sociolinguística para a Aquisição de LE está relacionada ao que se entende por língua-alvo, muitas vezes confundida com a língua padrão”. Para la autora, lengua estándar consiste en la variante de mayor prestigio en la sociedad y lengua objetivo, por otro lado, puede ser cualquier variedad de la lengua aprendida a la que el aprendiz está expuesto y que, por consiguiente, toma como modelo. Es cierto que no siempre el estudiante de lengua extranjera está expuesto a la lengua estándar, sino a otras variantes que influencian directamente su producción de la lengua. Por eso, Fragozo (2011) critica la exagerada valoración de la lengua estándar, en los materiales didácticos de enseñanza de lengua extranjera. Así, es importante que el profesor de PBE muestre al aluno los diferentes registros de la lengua portuguesa, para que este sea capaz de elegirlos conforme a la situación de comunicación. Gomes de Matos (2007) recomienda que se enseñen a los alumnos los usos formal e informal de la lengua objetivo. Es evidente que el conocimiento sociolingüístico es importante para la práctica pedagógica, ya que: Através deste conhecimento, o professor torna-se capaz de considerar as diferenças linguísticas e culturais entre os membros de uma comunidade, assim como seus valores sociais, de modo a desenvolver o currículo e o método mais adequados para determinados contextos de ensino. (FRAGOZO, 2011, p.166) Retomando al tema de nuestra investigación, en lo que concierne a la enunciación del objeto dentro de un texto o diálogo, en lengua portuguesa de Brasil, hay varias posibilidades para su representación aparte del uso de los clíticos. Por lo tanto, se constituye un fenómeno en variación. Pretendemos, en este artículo, presentar nuestra investigación, en la que examinamos como este aspecto del PB viene siendo tratado en los materiales didácticos dirigidos a la enseñanza de PBE. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 57 4 La realización del complemento verbal en PB Todas las lenguas habladas presentan variaciones. Así que eso ocurre tanto en portugués como en español. Sin embargo, en el caso del portugués de Brasil parece que hay una mayor distancia entre la lengua escrita y lengua hablada, variedad(es) estándar y variedad(es) no estándar (DUARTE, 2000). Tal abismo se debe a la manera como se estableció la norma culta en Brasil, en base a un modelo que no era el utilizado acá. Pero lo que nos interesa comentar es como esa diferencia puede interferir en el proceso de enseñanza/aprendizaje de portugués como lengua extranjera. Duarte (2000, p. 1) resalta: Isso fica patente, por exemplo, quando se vai ensinar português para estrangeiros. Já na primeira lição, o professor encontra problemas com as estruturas com o verbo ‘haver’, por exemplo. Ele ensina que o que a gramática diz é que “o certo” é: ‘há muita gente no jardim’, mas diz ao aluno que ele vai ouvir e falar ‘tem muita gente no jardim’. Ensina que “o certo” é ‘você foi ao cinema?’, mas que ele vai ouvir ‘você foi no cinema?’. Ensina que escrevemos/deveríamos escrever ‘nós não a vimos ontem’, mas falamos/ouvimos ‘a gente não viu ela ontem’. Ensina que a gramática prescreve ‘Contaram-me uma história’, mas ele vai ouvir ‘Me contaram uma história’. Vamos a limitarnos al penúltimo ejemplo, pues se refiere a nuestro tema. Según afirman muchos estudiosos (TARALLO, 1990; DUARTE, 2000), el cuadro de clíticos del PB viene sufriendo un proceso de cambio. Muchos están desapareciendo de la lengua oral, como es el caso del pronombre acusativo de 3ª persona “a”, utilizado en el ejemplo anterior, de tal modo que su uso queda restricto a situaciones más formales tanto en la modalidad oral como en la escrita. Como mostró Duarte (2000) con este ejemplo, en Brasil, es recurrente el reemplazo del clítico acusativo por un pronombre tónico. Otras estrategias de retomada del objeto directo también son frecuentes, como la repetición del sintagma nominal o la omisión del complemento (objeto nulo). Así, hay otras posibles realizaciones para la variable representación del objeto directo anafórico, además de “não vimos ela” son: “não vimos (a) Maria/a menina” o “não ø vimos”. En otro estudio, Duarte (1989) describe, en base a metodología cuantitativa, cuatro procesos de recuperación del OD. El pronombre 58 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 átono aparece como el menos usado para retomar el objeto directo, con un 4,9% de las ocurrencias; luego, el pronombre ele, con un 15,4% de las ocurrencias; después, el sintagma nominal anafórico, o sea, la repetición del objeto directo, con un 17,1% de las ocurrencias; y el proceso más usado, con un 62,6% de las ocurrencias es la categoría vacía. Tarallo justifica la preferencia por la omisión del objeto directo: Uma vez que os pronomes-objeto se encontram em fase de extinção no português falado do Brasil, a luta acaba sendo travada entre as duas formas não-padrão. Das duas a anáfora zero carrega estigma sociolinguístico menos acentuado. (Tarallo, 1990, p. 43) Por lo tanto, la incidencia mayor del objeto nulo se atribuye al hecho de la sustitución del clítico por un pronombre tónico ser estigmatizada socialmente. Tarallo (1990, p. 43) defiende que la preferencia es aún mayor cuando se trata de un objeto inanimado: Na substituição de pronomes clíticos, a língua falada favorece a anáfora zero, acelerando ainda mais o processo de sua implementação no sistema quando o SN pronominalizável (isto é, aquele já usado anteriormente e que deveria retornar como pronome) for inanimado. En lo que atañe a los pronombres anafóricos de objeto indirecto, también es posible afirmar que los clíticos están desapareciendo de la gramática del portugués brasileño, siendo también omitidos en la modalidad oral del portugués. (TARALLO, 1990, p. 43). Berlinck (1997) hizo una importante investigación sobre la realización del OI, con corpus de lengua hablada y énfasis en las ocurrencias en que el OI posee valor anafórico.1 La autora constató que, en este caso, la categoría vacía es más frecuente (57%), seguida del pronombre clítico (26%) y del sintagma preposicionado con pronombre tónico (17%). Berlinck (1997) buscó identificar los contextos que favorecen el uso de determinada forma en la posición de objeto indirecto, tales como: la persona gramatical a que se refiere el complemento, el tiempo verbal, distancia entre el complemento anafórico y su referente. El valor anafórico del OI es entendido por Berlinck (1997, p. 1, traducción nuestra) como la “relación de correferencia con un elemento mencionado anteriormente”. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 59 En cuanto a la persona a que se refiere el complemento, revela que hay una predominancia de la categoría vacía solo cuando el referente es de 1ª o 3ª personas gramaticales; el pronombre tónico aparece preferentemente con la 3ª persona del discurso; y el pronombre átono predomina con referente de 2ª persona. Al considerar el tiempo del verbo de que el objeto indirecto es complemento, la investigación de Berlink (1997) demostró un equilibrio entre la categoría vacía y el pronombre átono, con verbos en el presente de indicativo. Con verbos en los pretéritos perfecto e imperfecto de indicativo, hubo una mayor ocurrencia de la categoría vacía. El uso de los clíticos predominó con verbos en el futuro del presente de indicativo. La mencionada investigación también tuvo en cuenta la distancia entre el objeto indirecto anafórico y su referente. En oraciones con referente en la oración inmediatamente anterior, hay una preferencia por el objeto nulo, pero con referentes más distantes ocurre con más frecuencia el objeto lexicalizado. No podemos dejar de enfatizar el surgimiento de nuevas formas pronominales en el portugués brasileño, utilizadas tanto en la referencia del sujeto, como de los complementos verbales, a saber, você y a gente, en sustitución a tu y nós, respectivamente. Dicho evento promovió la posibilidad de varias combinaciones pronominales, algunas de uso estándar y otras de uso no estándar de la lengua portuguesa brasileña. Lopes (2007, p. 115) atribuye el cambio en el paradigma pronominal a la inserción de las formas innovadoras en el cuadro de pronombres: “É fato que a implementação de você e a gente no sistema de pronomes pessoais gerou uma série de reorganizações gramaticais, tanto no subsistema de possessivos, quanto no de pronomes que exercem função de complementos diretos ou indiretos”. Para la autora, el pronombre a gente es más usado que nós, tanto en la función de sujeto como en la de complemento. Además, afirma que tal forma es frecuentemente combinada con el pronombre oblicuo átono de primera persona del plural nos, incluso por hablantes cultos de la lengua. Igualmente, es común la correlación de você con el pronombre átono de segunda persona te, a pesar de que el uso estándar sea con el pronombre de tercera persona. No hay motivo para dejar de comentar tales hechos con los aprendices hispánicos, incluso porque la lengua española también pasa por fenómenos semejantes, como también observó Lopes (2007, p. 115): “A constituição do paradigma supletivo é resultado de um processo de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 60 mudança similar ao que ocorreu em outras línguas românicas, como é o caso, por exemplo, do voseo hispano-americano”. Almeida (2011), en un artículo sobre el pronombre lhe, afirma que este pronombre no está en desuso, como lo que ocurre con o(s), a(s), según afirman algunos estudiosos. En verdad, viene siendo menos utilizado en su función prototípica. Ocurre que el uso de esa forma alterna entre la segunda y la tercera persona y entre el dativo y el acusativo. Al empleo del pronombre lhe en función de objeto directo se da el nombre de lheísmo. Este fenómeno se puede justificar como una analogía al funcionamiento de las formas pronominales que no son de tercera persona. Al citar la investigación de Ramos (1999), Almeida (2011) comenta los tres comportamientos en el uso del pronombre lhe descriptos por aquella: 1) Rio-São Paulo: lhe usado para expresión del dativo de segunda persona del discurso, relación de respeto/cortesía y te para la relación familiar, aunque você sea usado tanto en las relaciones de respeto, como de familiaridad. 2) Maceió, Recife, Salvador y João Pessoa: lhe reemplaza te como dativo y como acusativo, su uso no está limitado a situaciones formales. 3) Región Norte y Maranhão: Você/lhe son usados en el tratamiento de cortesía y tu/te, en el tratamiento familiar. Los clíticos lhe y te son usados tanto para el dativo como para el acusativo. En la Gramática Brasileña para hablantes de español, Carvalho y Bagno (2015) presentan un cuadro muy completo de los pronombres personales de la lengua portuguesa hablada en Brasil, incluyendo você y a gente, así como la forma o senhor para el tratamiento formal. Los autores también comentan las correlaciones pronominales posibles, en la variedad brasileña del portugués. En lo que concierne a la representación del complemento verbal, que es el eje de este trabajo, Carvalho y Bagno (2015, p. 46) afirman que los pronombres de objeto directo, de tercera persona o(s), a(s) “ya no pertenecen a la lengua espontánea brasileña y los usan únicamente las personas con acceso a la educación formal. Su empleo se restringe a los textos escritos formales”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 61 Carvalho y Bagno (2015, p. 46) registraron que, para reemplazar el objeto directo de tercera persona, los brasileños prefieren usar los pronombres tónicos ele(s) y ela(s) o no utilizar ningún pronombre. Es importante mencionar que los autores constataron que el primer caso es bastante frecuente con verbos en imperativo. Algunos de los ejemplos dados son los siguientes: (a) Eu comprei um terreno aqui no interior por três mil, mas já vendi ele para um parente. (b) Eu comprei um terreno aqui no interior por três mil, mas já vendi ø para um parente. (c) Para de incomodar a Aninha. Deixa ela em paz! (imperativo) En relación a la segunda persona singular, Carvalho y Bagno (2015, p. 47) señalan las diversas posibilidades de formas oblicuas utilizadas en la correlación con você: CUADRO 1 – Formas oblicuas utilizadas en la correlación con você2 Objeto directo Se você quiser ir comigo, eu te levo. Objeto indirecto Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã vou te devolver. Se você quiser ir comigo, eu lhe levo.2 Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã vou lhe devolver. Se você quiser ir comigo, eu levo você. Sabe o dinheiro que você me emprestou? Amanhã vou devolver pra você. Fuente: Carvalho y Bagno (2015) Otra observación importante es la que se refiere al empleo de o(s), a(s) en sustitución a você. Carvalho y Bagno (2015, p. 48) dicen que ese uso es bastante formal y ocurre solamente con verbos en infinitivo. En cuanto al objeto indirecto de tercera persona, según Carvalho y Bagno (2015, p. 48), el pronombre átono lhe solo es utilizado en textos escritos formales. En su lugar, lo que se suele utilizar es también Los autores hacen el siguiente comentario acerca de ese ejemplo: “El empleo de lhe como objeto directo se restringe al habla informal de algunas variedades regionales” (CARVALHO; BAGNO, 2015, p. 47) 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 62 el pronombre tónico ele/ela, juntamente con una preposición para o a (para ele/a, ele). En verdad, sabemos que no se trata solo de una cuestión de situación formal/ informal o de modalidad escrita/oral. Las fronteras que delimitan las variedades son más tenues y se entrecruzan. Por ello, algunos autores (BORTONI-RICARDO, 2004; NEVES, 2003) prefieren hablar de continuos. Son los papeles sociales3 que desempeñamos que van a dictar la variante que utilizaremos. Por lo tanto, un mismo hablante puede usar el pronombre ele en función de objeto directo o indirecto y, en otra situación, dirigiéndose a otro interlocutor, utilizar la variante prescrita por la norma culta, o sea, los pronombres oblicuos o/a o lhe. Es evidente que este tipo de elección solo la puede hacer un hablante culto, que tuvo acceso a educación y tiene conciencia de la necesidad de variar su discurso, a fin de hacerse comprender 5 Análisis del Corpus Analizamos cualitativamente el contenido de los materiales didácticos antes mencionados, a fin de averiguar si se consideraron los presupuestos de la sociolingüística en su producción. Podemos describir los procedimientos adoptados de la siguiente manera:  Descripción del tratamiento dado a la cuestión de la representación del complemento verbal (CV), en cada material, con el fin de averiguar si la variación lingüística está contemplada en alguna de sus partes, ya sea en los ejercicios propuestos, en los textos, en los enunciados, o en la parte teórica.  Examen de la estrategia presentada para representación del CV a fin de verificar si corresponde solo al paradigma tradicional o toma en cuenta las otras variedades.  En el caso de que el material didáctico contemple la variación lingüística, verificar si ese abordaje ocurre de manera superficial, como una especie de comentario sobre una curiosidad de la lengua o como hecho lingüístico.  Discusión del paradigma pronominal presentado en los libros didácticos. 3 Sobre papeles sociales ver Bortoni-Ricardo (2004, p. 23) y Preti (2004, p. 14). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 63 El análisis de libros didácticos que realizamos evidenció la pobreza de esos materiales en lo que conciene al tratamiento de la variación lingüística. Ya es posible notar algún cambio en la producción de esos materiales en comparación a ediciones anteriores a las seleccionadas para esta investigación, en el sentido de introducir palabras y construcciones que antes eran totalmente despreciadas, por ser desprestigiadas. Se nota actualmente una preocupación en enseñar la lengua hablada, pues de los libros analizados la mayoría posee una declaración sobre eso. Buscamos esa información en la contraportada, en la Presentación o en la solapa de cada material analizado. Solo en dos libros no hemos encontrado la afirmación de que el método se propone a enseñar la lengua hablada: Panorama Brasil y Siempre Amigos. El primero se propone a enseñar el portugués del mundo de los negocios y, por ello, tiene enfoque en la enseñanza de la variedad culta del PB. El segundo libro no posee ninguna afirmación de que se propone a enseñar el portugués hablado, aunque su público objetivo sea adolescente y posea un lenguaje bastante informal. La tabla a continuación demuestra la contribución de los estudios lingüísticos en la producción de materiales didácticos de enseñanza de PBE. En muchos libros hay registros de variantes no estándar, no solo en lo que toca a la variable representación del CV en PB, sino especialmente en lo concerniente al léxico. Contradictoriamente, pocos presentan propuestas de ejercicios para la práctica de variantes no estándar. TABLA 1 – Contribuciones de los estudios lingüísticos en la producción de MD de PBE Libro Propone enseñar la lengua hablada Registro de variantes no estándar APB x x BV x EB x MP x NAB X Ejercicios para la práctica del uso de variantes no estándar x x x PB PAS x x PVB x x SA TB x x x Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 64 MP presenta actividades que contemplan variantes no estándar solamente sobre OI. Los ejercicios de OD son normativos. Las actividades propuestas en PAS son para la práctica de reemplazo de lhe por te, en la correlación con você y de la colocación pronominal no estándar. Otro punto en que podemos notar la contribución de los estudios lingüísticos en la producción de LD de PBE es la enseñanza de los usos de los pronombres personales. Se nota, por ejemplo, la introducción de la forma você al cuadro pronominal y, en algunos casos, también de la forma a gente. En lo concerniente al primer pronombre incluso notamos una preferencia por la enseñanza de esa forma y el desprecio del pronombre tu, lo que también consideramos una equivocación, ya que ambos los pronombres se utilizan todavía en PB. Sobre la enseñanza de los pronombres personales sujeto presentamos la siguiente tabla: TABLA 2 – Cuadro pronominal presentado – Pronombre sujeto Libro Incluye el pronombre você Incluye el pronombre tu APB x x BV x x MP x NAB x x PB x x PAS x SA x x TB x x Incluye la forma a gente Incluye o senhor, a senhora Incluye el pronombre vós x x x x x x x x x No se menciona EB en la tabla anterior, pues no presenta ningún tipo de contenido gramatical, incluyendo los pronombres. En PVB, que tampoco consta de la tabla, no hay sistematización de los pronombres personales nominativos. Con relación a la enseñanza de los pronombres de segunda persona singular, en el libro NAB, el pronombre tu aparece en un comentario que dice que “é usado em Portugal e em algumas regiões do Brasil”. Por otro lado, en TB, se comenta solo que el pronombre tu Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 65 es bastante usado en el sur de Brasil. En lo que atañe a la inclusión de la forma innovadora a gente, los libros PAS y SA poseen una advertencia sobre el hecho de tratarse de una expresión equivalente a nós. Sobre la enseñanza del tratamiento formal de segunda persona del discurso, en NAB y SA, o senhor/a senhora aparecen en un comentario y, en el libro PAS, esos pronombres están incluidos en el cuadro de pronombres de tratamiento y no en el de pronombres personales. Finalmente, en lo que concierne a la enseñanza del pronombre de segunda persona plural vós, solo en TB se aclara que este pronombre es encontrado en textos antiguos. Queda evidente que todavía falta darle al uso de los pronombres personales en PB la importancia que se le debe. No basta aparecer solo como comentarios y observaciones, como si fueran solo una curiosidad de la lengua. Es fundamental, por ejemplo, explicar las posibilidades combinatorias de los pronombres complemento con la forma você, como se demuestra en la siguiente tabla: TABLA 3 – Cuadro pronominal presentado – Pronombre complemento Libro Incluye el pronombre você Incluye la forma a gente APB Incluye o senhor, a senhora Correlación te + você = lengua hablada x x BV EB MP x x x NAB PB PAS x PVB SA TB x Vemos entonces que solo tres libros enseñan la posibilidad combinatoria de te y você, en el portugués hablado. En el libro PAS, esa información aparece en un cuadro donde se lee: “lhe = para você, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 66 informal = te”. También llama la atención el hecho de que, aunque la mayoría de los libros analizados incluya el pronombre você en la lista de pronombres personales sujeto, solamente dos lo incluyen en el cuadro de pronombres complemento. Siendo que MP lo integra solamente como OI y, en TB, el pronombre no aparece en el cuadro pronominal, sino como un ejemplo en una advertencia: “convidar vocês ou convidá-los”. Por último, con relación al tratamiento dado a la cuestión de la representación del objeto, proponemos la tabla a continuación para ilustrar nuestro análisis. TABLA 4 – Tratamiento dado a la cuestión de la representación del objeto Libro Solo representación por los clíticos APB x BV x Representación por pronombre tónico Alusión a la categoría vacía x EB MP x NAB x PB x PAS x PVB x SA x TB x Como se ve, la mayoría de los materiales analizados todavía posee un tratamiento normativo de la representación del complemento verbal, puesto que hay un predominio de la enseñanza de la representación por el clítico, que es la prescripción de la tradición gramatical. Sin embargo, se notan algunos comentarios importantes, como en BV, en que hay una observación sobre algunas frases que contienen clíticos: “Observe que o uso desses pronomes deixa o diálogo com um tom bastante formal” y, en el libro MP, en el que se exponen ejemplos y a continuación aparece la siguiente observación: “Não é usado na linguagem oral”. Por otro lado, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 67 solamente un libro menciona la posibilidad de objeto nulo, que es el modo más frecuente de representación del complemento verbal, en PB. En tal libro se alude a la categoría vacía por medio del siguiente comentario: “O pronome oblíquo4 é facultativo”. Ya en cuanto a la representación del OD por pronombre tónico, dos materiales registran esa variante, SA y TB. En esos libros, hay diálogos en que aparece el pronombre ele en la función de OD, seguidos de una advertencia sobre tratarse de lenguaje coloquial. En el libro TB, sin embargo, encontramos la frase “No use” antes de los ejemplos, sin especificar los contextos en que el uso no es apropiado. Queda evidente, entonces, que lo que predomina todavía es una visión normativa y no sociolingüística de la lengua, con enfoque en lo que es “equivocado”, no considerando factores pragmáticos como la adecuación del enunciado a la situación comunicativa. En otras palabras, en la mayoría de los manuales analizados, cuando alguna variedad no estándar aparece, es con la intención de señalar lo que no se debe decir o escribir (estamos refiriéndonos al tema de este estudio). Como vimos, el tema de los pronombres átonos y demás estrategias de representación del complemento verbal todavía no es contemplado en toda su complejidad, en los materiales didácticos de portugués para extranjeros. Aún es necesario detallar mejor las diferencias del continuo “habla y escritura”, que existen en el portugués brasileño. Asimismo enfatizamos la necesidad de la elaboración de un material didáctico específico para hispanohablantes, que parta del análisis contrastivo entre las dos lenguas. Sin embargo, debemos aclarar que no pretendemos desvalorar el conocimiento de la norma culta, en el proceso de aprendizaje de una lengua. Creemos sí en la enseñanza de la gramática, pero de forma contextualizada, pues es necesario considerar que nuestro discurso debe adecuarse al contexto de producción textual. Ello implica una práctica docente que se base en los diversos géneros textuales. Por lo tanto, el resultado que se espera es que el alumno que aprende una lengua extranjera sepa comunicarse adecuadamente, en las diversas situaciones comunicativas. 4 “Pronome oblíquo” es la denominación en portugués para el pronombre complemento. 68 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 6 Consideraciones finales Retomamos nuestra afirmación inicial de que, debido a la semejanza entre portugués y español, el alumno que aprende una de las dos lenguas como lengua extranjera (LE), presenta muchas dificultades para salir de la fase de interlengua, conocida popularmente como “portuñol”. De este modo, queremos proponer una enseñanza que tome como punto de partida el análisis contrastivo para la identificación de los elementos que pueden causar problemas en el desempeño lingüístico del hispanohablante aprendiz de portugués. Uno de esos elementos es la diferencia que existe entre el PB y el español en la representación del complemento verbal. Lo demostramos con la síntesis que hicimos, con base a gramáticas de ambas las lenguas. El resumen de algunos estudios sociolingüísticos sobre la representación del CV también evidenció dicha diferencia. Con todo, los materiales didácticos analizados en esta investigación no examinan ese punto de la gramática portuguesa, o sea, no describen toda la riqueza de las estrategias de retomada del CV posibles en PB. Algunos materiales solo mencionan el hecho de ser común el uso del pronombre tónico en la representación del objeto y también la omisión del CV, pero sin la necesaria profundización, solo como una observación. Eso es inadmisible si consideramos que el objeto nulo es la estrategia más utilizada para representar el CV. Por lo tanto, la variación en ese hecho lingüístico, indubitablemente, merece una explicación más detallada y contextualizada. La mayoría de los libros objeto de esta investigación posee un carácter meramente normativo, de enseñanza tradicional, con énfasis en factores estructurales, lo que contraría muchas veces las declaraciones encontradas en la parte introductoria o en la contraportada de los mismos materiales, que los describen como modernos y de metodología comunicativa. Muchas contraportadas exhiben la información de que el material preparará al alumno para comunicarse en diversas situaciones comunicativas, pero su contenido no describe todas las variedades. Al partir de la idea de que enseñar una lengua extranjera significa ampliar los horizontes del alumno, podemos afirmar que enseñarle solo la variedad estándar del idioma es hacer exactamente lo contrario, es limitarlo. Es necesario presentarle al discente el abanico de posibilidades y orientarlo a adecuarlas a las diversas situaciones de comunicación. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 69 Aún considerando la enseñanza de PBE en la perspectiva comunicativa de desarrollo de habilidades, se espera, delante de la escasez de materiales didácticos específicos para hablantes de español publicados en Brasil, que este estudio pueda colaborar para la planificación de estrategias de enseñanza, sirviendo como material de apoyo a profesores, o como base para la elaboración de materiales didácticos en general. Referencias ALMEIDA, Gilce de Souza. Prescrição gramatical e uso: o caso do pronome lhe no português brasileiro. Cadernos do CNLF, Rio de Janeiro: CiFEFiL, v. XV, n. 5, t. 3, p. 2398-2408, 2011. Disponible en: <http:// www.filologia.org.br/xv_cnlf/tomo_3/204.pdf>. Acceso el: 6 maio 2016. BERLINK, Rosane de Andrade. Sobre a realização do objeto indireto no português do Brasil. In: ENCONTRO DO CELSUL (CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL), II., 1997, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 1997. BIZON, Ana Cecília; FONTÃO, Elizabeth. Estação Brasil: português para estrangeiros. Campinas: Átomo, 2005. BORTONI-RICARDO, S. M. Problemas de comunicação interdialetal. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 78/79, p. 9-32, 1984. BORTONI-RICARDO, S. M. Educação bidialetal - O que é? É possível? In: SEKI, Lucy (Org.). Linguística indígena e educação na América Latina. Campinas: UNICAMP, 1993. p. 71-88. BORTONI-RICARDO, S. M. A variação linguística em sala de aula. In: ______. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. p. 37-44 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Enseñanza Médio – Linguagens Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 2000. CARVALHO, Orlene Lúcia S.; BAGNO, Marcos. Gramática brasileña para hablantes de español. São Paulo: Parábola, 2015. CELLI, Rosine. Passagens: Português do Brasil para estrangeiros. Campinas: Pontes, 2002. 70 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 CYRINO, Sonia Maria Lazzarini. O objeto nulo no português do Brasil: um estudo sintático-diacrônico. Londrina: Editora da UEL, 1997. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português brasileiro. In: TARALLO, F. (Org.). Fotografias sociolinguísticas. Campinas: Pontes; Editora da Unicamp, 1989. p.19-34. DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Enseñanza da língua em contexto de mudança. 2000. Disponible en: <http://www.filologia.org.br/anais/ anais%20iv/civ12_3.htm>. Acceso el: 8 mar. 2016. FERNANDES, Gláucia Roberta Rocha; FERREIRA, Telma de Lurdes; RAMOS, Vera Lúcia. Muito prazer: fale o português do Brasil. São Paulo: Disal, 2014. v. 2. FLORISSI, Susanna; PONCE, Maria Harumi Otuki de; BURIM, Silvia R. B. Andrade. Bem-vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação. 8. ed. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2014. FLORISSI, Susanna; PONCE, Maria Harumi Otuki de; BURIM, Silvia R. B. Andrade. Panorama Brasil: enseñanza de português no mundo dos negócios. São Paulo: Galpão, 2006. FLORISSI, Susanna; PONCE, Maria Harumi Otuki de; BURIM, Silvia R. B. Andrade. Tudo bem? Português para a nova geração. 5. ed. São Paulo: Special Book Services Livraria, 2012. v. 1. FONTÃO, Elizabeth; COUDRY, Pierre. Sempre amigos: fala Brasil para jovens. Campinas, SP: Pontes, 2000. FRAGOZO, Carina Silva. Cultura e sociolinguística no enseñanza e na aprendizagem de língua estrangeira. Fólio Revista de Letras, Vitória da Conquista, v. 3 n. 1, p. 151-67, jan./jun. 2011. Disponible en: <http:// periodicos.uesb.br/index.php/folio/article/view/529>. Acceso el: 28 jun. 2016. GOMES DE MATOS, Francisco. Influência da Linguística em materiais didáticos para Enseñanza de Português como língua estrangeira: uma perspectiva brasileira. Linguística - Revista de Estudos Linguísticos da Universidade do Porto, Porto, Portugal, v. 2, p. 47-59, 2007. Disponible en: <http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6864.pdf>. Acceso el: 29 jun. 2016. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 71 LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LAROCA, Maria N. de Carvalho. Aprendendo Português do Brasil: um curso para estrangeiros. 4. ed. Campinas: Pontes, 2003. LIMA, Emma Eberlein O. F. et al. Novo Avenida Brasil: curso básico de Português para estrangeiros 1. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2009. LIMA, Emma Eberlein O. F.; IUNES, Samira A. Português Via Brasil: um curso avançado para estrangeiros. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 2005. LOPES, Célia Regina. Pronomes pessoais. In: VIEIRA, Sílvia Rodrigues; BRANDÃO, Sílvia Figueiredo (Org.). Ensino de gramática: descrição e uso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 103-119. MAIA GONZÁLEZ, Neide. Sobre a aquisição de clíticos do espanhol por falantes nativos do português. Cad. Est. Ling., Campinas, n. 36, p. 163-176, jan./jun. 1999. Disponible en: <http://revistas.iel.unicamp. br/index.php/cel/article/view/1661>. Acceso el: 6 maio 2016. MAIA GONZÁLEZ, Neide. Portugués brasileño y español: lenguas inversamente asimétricas. SIGNOS ELE, Buenos Aires, n. 1-2, dic. 2008. [CELADA, María Teresa; Neide MAIA GONZÁLEZ (Coord. dossier). Gestos trazan distinciones entre la lengua española y el portugués brasileño.] Disponible en: <http://p3.usal.edu.ar/index.php/ele/article/ view/1394>. Acceso el: 12 abr. 2018. NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003. PRETI, Dino. Estudos de língua oral e escrita. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. RAMOS, Conceição de Maria Araújo. O clítico de 3ª pessoa: um estudo comparativo português brasileiro/espanhol peninsular. 1999. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 1999. RODRIGUES, Thaís Leal. Uso dos pronomes átonos em português por hispanofalantes. 2012. 20 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) – Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. 72 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 49-72, 2019 SANTOS, Percília. O enseñanza de português como segunda língua para falantes de espanhol: teoria e prática. In: SANTOS, Percília; CUNHA, M. J. Enseñanza e pesquisa em Português para estrangeiros. Brasília: EDUNB, 1999. TARALLO, Fernando. Relativization Strategies in Brazilian Portuguese. 1983. Tese (Doutorado) – University of Pennsylvania, EUA, 1983. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 Pesquisa longitudinal: a evolução do uso lexical de uma criança dos 5 aos 22 meses de vida em um diário parental Longitudinal Research: Lexical Use Evolution of a Child From 5 to 22 Months of Age as Documented in a Parental Diary Pedro Perini-Santos Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina, Minas Gerais / Brasil pedro.perini.santos@gmail.com Lídia Ferreira Santos Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina, Minas Gerais / Brasil lidiaferreirasantos@outlook.com Adriana Nascimento Bodolay Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina, Minas Gerais / Brasil adriananbodolay@gmail.com Jéssica Leal Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, Diamantina, Minas Gerais / Brasil jessicarolineleal@gmail.com Resumo: Este trabalho apresenta as primeiras indicações empíricas de pesquisa feita com corpus infantil longitudinal realizado com um informante brasileiro (G.), que mora em Couto de Magalhães, uma pequena cidade do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Os registros em áudio começaram a ser feitos no 5o mês de vida do informante e estenderam-se por 18 meses em sessões mensais regulares de 30 minutos cada. Trata-se de uma forma de diário parental que, através da metodologia de corpus com contagem de itens feita através de software, buscou obter dados referentes à sua evolução do uso eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.73-104 74 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 lexical e observar como se deram as variações no número de ocorrências das formas pré-lexicais, a saber: os balbucios, as pré-palavras e as proto-palavras, e no número de ocorrências das primeiras pré-palavras, proto-palavras, palavras e expressões holofrásicas. O material oral coletado foi transcrito de acordo com o padrão internacional CHAT. Durante o período estudado, foram consideradas 833 ocorrências produzidas pelo informante. Observou-se que houve queda proporcional do valor do número de pré-palavras e de proto-palavras, e aumento do valor proporcional do número de palavras e expressões holofrásicas. Os dados obtidos foram organizados, tabelados e comparados de acordo com o percentual de suas ocorrências. A eles, foi proposta uma interpretação interacionista dialógica. Palavras-chave: aquisição da língua materna; diário parental; registro oral; categorias lexicais e pré-lexicais. Abstract: This paper presents the first empirical results of a longitudinal corpus survey conducted with a child informant (G.) who lives in Couto Magalhães, a small city in the state of Minas Gerais, Brazil. The audio recordings started in the 5th month of the informant’s life and continued for 18 months in regular monthly sessions of 30 minutes each. Using corpus methodology, we sought to obtain data regarding the child’s variation in the number of occurrences of pre-lexical forms – babbling, pre-words and protowords – as well as his lexical evolution through the observation of pre-words, protowords and holophrastic expressions. The collected corpus was transcribed according to the CHAT international standard. Considering the 833 occurrences collected in our research, we observed that, during the investigated period, the proportional values of occurrence of pre-words and proto-words decreased, whereas the number of words increased. A dialogical interactionist interpretation was proposed to account for the data variation found. Keywords: mother tongue acquisition; oral registration; lexical and pre-lexical categories. Recebido em 15 de novembro de 2017 Aceito em 20 de março de 2018 1 Apresentação Este trabalho apresenta os primeiros resultados empíricos de uma pesquisa longitudinal desenvolvido pelo grupo CIL (Corpus Infantil Longitudinal) sobre a evolução do uso linguístico feita com uma criança. Durante 18 meses, desde o seu quinto mês de vida, o informante G. teve sua produção linguística espontânea gravada em áudio durante sessões Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 75 mensais regulares. Os registros aconteceram em sua casa com a presença da mãe, que fez as gravações em áudio e as anotações referentes aos contextos em que ocorreram as interações comunicativas.1 Trata-se, assim, de um diário parental organizado com o intuito de acompanhar a evolução do uso linguístico do filho e informante. Esta pesquisa usa a metodologia de corpus e organiza os dados a partir da seleção de ocorrências feitas através do software de reconhecimento e contagem de palavras gratuito AntConc. (O programa está disponível no endereça http://www.laurenceanthony.net/software/antconc/) Este artigo será organizado da seguinte forma: inicialmente, apresentaremos as referências que norteiam a pesquisa. Serão algumas notas sobre a prática de diários parentais que relatam aquisição da língua materna desde o século XVI. Também nessa seção, explicitamos a razão da escolha do interacionismo dialógico como quadro teórico para o desenvolvimento de nossa pesquisa que segue em curso.2 Na seção seguinte, a metodologia adotada para a coleta dos dados será enfocada, assim como o perfil do informante, as escolhas feitas para a transcrição, o software de contagem utilizado e as categorias descritivas utilizadas para o reconhecimento das ocorrências que foram manualmente etiquetadas. Na apresentação empírica do artigo, serão expostos os dados até aqui obtidos e locados nas categorias lexicais eleitas como pertinentes pela equipe para a organização e a interpretação da evolução do uso lexical do informante. As ocorrências lexicais coletadas foram organizadas em quatro categorias: (i) balbucios, (ii) proto e pré-palavras, (iii) holofrases e (iv) palavras. Para a realização da pesquisa, o grupo de pesquisa CIL (Corpus Infantil Longitudinal) obteve a autorização do Comitê de Ética [CAAE 57714216.5.0000.5108] e o consentimento da responsável legal pela criança, que assinou o devido TCLE. 2 Há uma importante discussão sobre a pluralidade do conceito de interacionismo. Um elemento que permite melhor identificação da proposta teórica à qual se filia é a distinção entre sociointeracionismo e interacionismo. Nos dois casos, considerar-se o outro participante da interação: o outro-social ou o outro-falante. Adjetivamos a nossa opção teórica como interacionismo dialógico com o intuito de explicitar que o foco de desta pesquisa não é social; o que estudamos é a fala da criança e sua relação com a fala de sua mãe e demais interlocutores. Endossamos assim a postura teórico-metodológica apresentada por Cláudia Lemos ao longo de sua obra, que discute a distinção acima relatada. (Sobre o tema, ver LEMOS, C. 1999; LEMOS, T., 2002; LIER-DEVITTO; CARVALHO, 2008; LEE et al., 2009). 1 76 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 2 Notas históricas sobre os diários parentais e a aquisição de língua materna 2.1 Sobre Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la jeunesse de Louis XIII Registra-se como um texto precursor dos diários parentais que relatam a aprendizagem da língua materna o diário escrito por Jean Héroard (1551-1628) sobre o cotidiano do futuro rei da França desde seu nascimento, em 1601, até 1628, ano em que morre o preceptor Héroard. Entre as narrativas e os comentários feitos a respeito do cotidiano do infante, constam em Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la jeunesse de Louis XIII (Diário de Jean Héroard sobre a infância e a juventude de Luís XIII) uma enorme quantidade de ocorrências lexicais e sentenciais produzidas pelo infante. Mesmo que haja ensaios de registros da fala na forma infantil – como “equivéz” (<“écrivez”), “vola” (<“voilà”); “Dondon”, ao dirigir-se à ama-de-leite, e “Mamanga”, nome dado à governanta “que ele gaguejou desde bem pequeno” (HEROARD, 1868, p. xi) –, ao material linguístico anotado não se atribui valor registro espontâneo, porque as anotações feitas por Héroard usam a língua padrão da época. Apesar disso, Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la jeunesse de Louis XIII, publicado apenas em 1868 é reconhecido como um marco histórico valioso para o feitio dos diários parentais. 2.2 Diários parentais: uma explosão de anotações familiares Após a publicação de Emílio, ou a educação (Rousseau, [1762] 1995), ocorre uma “explosão de diários sobre a aquisição de linguagem” (LEVELT, 2013, p. 120). Justifica-se a alusão feita pelo psicolinguista, porque em Emílio, ou a educação, expressa-se a importância dos estudos sobre a infância e suas consequências na lida com os alunos. Desde então, são publicados vários trabalhos feitos a partir da coleta de dados, ou impressões, em diários parentais. As obras L’Enfant dans la langue (Morgenstern, 2009) e A History of psycolinguistics (Levelt, 2013) apresentam vários diários parentais dedicados à evolução do uso linguístico infantil. Dentre eles, os autores fazem referência a Moritz von Winterfield (1744-1819), cujo texto descreve a evolução da fala de seus dois filhos e “a formação gradual da linguagem da simples gramática da criança” (von WINTERFIELD, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 77 1788, p. 405 apud LEVELT, 2013, p. 95); a Hippolyte Taine (1828-1893), que enfatiza e à ação criativa das crianças no uso linguístico; a Charles Darwin (1809-1882), que publica “Biographical Sketch” na revista Mind, em 1877, a partir de notas feitas sobre os anos iniciais de vida de seu primogênito William; e a Jean Piaget (1896-1980), cuja obra propõe etapas usadas para a descrição da aprendizagem infantil.3 Não são poucos os diários produzidos sobre o desenvolvimento da fala dos filhos.4 Se, por um lado, podem ser contestados em função do inerente envolvimento afetivo na escuta e na seleção das ocorrências anotadas, os diários, por outro lado, são produzidos em ambientes em que a interação comunicativa entre os filhos informantes e os pais pesquisadores ocorre da forma mais espontânea possível. A presença de pesquisadores externos à família nuclear resulta em alguma alteração do cenário natural de interação entre pais e filhos, como relatam Hart e Risley: “quando as observações se iniciam, as famílias e os observadores podem se sentir igualmente desconfortáveis” (Hart; Risley, 1995, p. 33). 2.3 Dos diários parentais às pesquisas feitas com corpora Opondo-se à prática dos diários, rotulados como aleatórios e pouco científicos – por não controlar o tempo, o horário, o local das observações, o perfil dos infantes e a representação das amostragens – são desenvolvidas, entre os anos 1920 e 1960, pesquisas que monitoram esses elementos e O diário parental de Darwin não traz conteúdo lexical ou sentencial específico que mereça destaque, mas alude ao uso da prosódia como recurso anterior à produção linguística em si: “antes do ser humano usar linguagem articulada, ele produz notas em uma verdadeira escala musical” (DARWIN, 1877, p. 293). A importância de seu relato deve-se à introdução do tema aquisição de linguagem como ramo de pesquisa para a biologia humana: “Após a publicação deste artigo, praticamente todos os autores que falam sobre a aquisição da linguagem fazem alusão à teoria da evolução em geral e à lei da filogenia (que sustenta ser a ontogênese uma recapitulação da filogênese)”. (LEVELT, 2013, p. 99). 4 Em Levelt (2013) e em Morgenstern (2009), são feitas referências aos diários parentais propostos pelos seguintes pesquisadores: Dietrich Tiedmann, Berthold Sigismund, Bernard Perez, James Sully, Jan Baudouin de Couternay, Antoine Grégoire, Oscar Bloch, Clara Stern, William Stern, Karl Bühler, Marcel Cohen, Ludwig Stümpell, George Romanes, Gabriel Compayré, Fritz Schultze, Gabriel Deville, Frederick Tracy, Kathleen Moore, Émile Egger, Wilhem Preyer, Wihelm Ament, Gustav Deville, Milivoïe Pavlovitch, Ovide Decroly, Paul Guillaume e Read Brain. 3 78 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 descrevem aspectos linguísticos mais específicos. Morgenstern (2009) elenca uma série de pesquisas empíricas que foram assim propostas: Smith (1926) estudou o tamanho dos enunciados produzidos por 124 crianças com idades entre 2 e 5 anos, com o mesmo objetivo, MacCarthy (1930) anotou a fala de 140 crianças entre 1 e 4 anos de idade; por sua vez, Day (1932) e Davis (1937) estudaram, respectivamente, 160 e 166 gêmeos em aquisição da língua materna; Young (1941) associou a classe social e o uso linguístico de 74 informantes infantis e Templim (1957) levou em consideração amostras da fala de 430 crianças entre 3 e 8 anos de idade e também se dedicou à análise da extensão e a evolução dos enunciados por elas produzidos. Pode-se inferir que tais pesquisas compõem uma etapa mediadora entre a confecção de diários parentais e a adoção da metodologia de corpus de fato. A partir de 1960, passa-se a registrar o áudio da fala infantil com o uso do gravador. O emprego dessa tecnologia permitiu a composição de corpora com valor documental. Surgiram projetos mais abrangentes e mais precisos nas escolhas temáticas. O uso das gravações em áudio gera mudanças importantes nos estudos sobre a fala infantil. Surge a necessidade de se convencionar padrões para as transcrições que torna possível o estudo quantitativo dos dados com a aplicação de softwares de reconhecimento e contagem das ocorrências infantis transcritas e etiquetadas de forma compatível com a linguagem do computador. Sobretudo, passam a fazer parte da agenda teórica e empírica da linguística perguntas sobre a natureza da fala infantil, sobre sua organização sintática e lexical, e sobre o reconhecimento das primeiras palavras infantis: quais devem ser consideradas e quais devem ser descartadas. Scollon (1976) ressalta que “a decisão sobre o que deve ser observado, e considerado, e o que deve ser descartado usualmente assume como base conceitos anteriores (“priori grounds”), de modo a se adequar à tradição vigente” (SCOLLON, 1976, p. 25). É nesse novo cenário que, em 1980, tem início o projeto CHILDES – The Child Language Data Exchange System (MACWHINNEY, 2000). O CHILDES usa o padrão de transcrição CHAT – Codes for the Human Analysis of Transcripts. O uso desse padrão permite que se convencionem etiquetas paras as notações, o que permite a comparação de dados de fala espontânea infantil em diferentes línguas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 79 3 Sobre as teorias de aquisição da língua materna: do inatismo ao interacionismo O inatismo propõe que o ser humano nasce provido de uma aptidão neurobiológica para a linguagem pronta para ser ativada. Assume que o uso linguístico que circunda o aprendiz oferece-lhe uma quantidade de input restrita, porém suficiente, para acionar os mecanismos da Gramática Universal (GU) que lhes são inatos. Essa capacidade biológica permite às crianças a geração de sentenças até então inéditas. A GU traduz-se em categorias sintáticas abstratas – como sujeito, verbo e complemento – a serem preenchidas e organizadas de acordo com os itens lexicais coletados durante a dita pequena experiência linguística que teve a criança. As asserções inatistas sobrepuseram-se às tradições epistêmicas anteriores que encontravam no uso linguístico infantil campos conceitual e empírico distintos do uso adulto (cf. JESPERSEN, 1922; BERKO, 1958; BRUNER, 1975, 1983; SNOW, 2014). A crítica interacionista enxerga na proposta inatista uma sobreposição conceitual. Assim, são aplicadas “categorias e regras gramaticais adultas (“adult-like”) na descrição da linguagem das crianças” (TOMASELLO, 2000, p. 1). O interacionismo não considera o uso linguístico infantil como um objeto homogêneo tal como é feito pelo inatismo. Em sua evolução, há etapas distintas, há processos complexos e há sobretudo uma quantidade muito significativa de experiências comunicativas que envolvem as crianças e amadurecem suas habilidades linguísticas e cognitivas. Se aceitarmos que a linguagem infantil tem etapas e que essas ocorrem dentro de um contexto comunicativo, histórico e cultural, onde ocorrem interações simbólicas e linguísticas, o estudo sobre a aquisição da língua materna deve levar em conta sua evolução comunicativa, histórica e cultural. O conceito do falante infantil ideal tornase, assim, figura hipotética estranha à pesquisa empírica sobre a aquisição da língua materna. Além disso, e tal aspecto concerne diretamente a esta pesquisa, o inatismo não elenca o léxico como traço relevante para a descrição da aquisição das línguas maternas (cf. VALLAURI, 2008; para argumento contrário, ver CAVALCANTE, 2017). Em função disso, os interacionistas optam por uma percepção estocástica que reconhece “os sistemas do universo”, como a linguagem, “abertos, dinâmicos, e, assim, inexoravelmente sujeitos à influência dos inputs externos” (LEE et al., 2009, p. 17). As regras gramaticais não são mais vistas como dispositivos mentais pré-existentes a serem preenchidos 80 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 com itens lexicais. As expressões linguísticas são formas partilhadas pelos falantes, inclusos os falantes mirins, no decorrer de sua evolução linguística na comunidade da qual participam. O uso de formas pré e proto-lexicais, de formas lexicais e de sentenças evolui com o passar do tempo e com as experiências comunicativas que envolvem as crianças e os adultos. Para Bruner (1975), o que ocorre é “uma construção progressiva” das práticas gramaticais engendradas por motivação comunicativa. As crianças constroem as proto-regras e as regras para as línguas que usam a partir da produção analógica e replicatória daquilo que escutam e compreendem ao seu modo e idade. Esta pesquisa esposa a proposta interacionista dialógica como referência para a análise realizada, bem como para a nomenclatura utilizada, uma vez que desenvolve um estudo longitudinal e empírico. Para tanto, consideram-se o tempo e os dados ilustrativos como ponto de partida para as análises e ilações possíveis. Conforme já relatado, G. tem sua produção linguística oral gravada, transcrita, etiquetada e anotada, de acordo com o padrão internacional CHAT, desde o seu 5o mês de vida. 4. Metodologia para a coleta dos dados 4.1 Sobre a obtenção dos dados em áudio Os dados considerados para este artigo foram coletados entre 15/05/2015 e 15/10/2016. G. é um garoto ativo, comunicativo, amável e interativo. Mora com a mãe e com a avó em uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais. Os registros em áudio foram acompanhados pela mãe. As sessões de gravação tiveram duração média de 30 minutos e ocorreram no início das terceiras semanas dos meses. O equipamento usado para o registro foi um gravador de voz digital portátil modelo Sony ICD-PX333. Não houve estímulo experimental, mudança de ambiente, de práticas cotidianas ou uso de artefatos que modificariam a conduta comunicativa de G. As falas da criança e dos adultos presentes no momento dos registros em áudio são espontâneas. 4.2 Sobre a transcrição das falas Seguindo o protocolo da metodologia de corpus, as gravações foram transcritas por duas das componentes da equipe. Por razão óbvia, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 81 dedicou-se maior detalhamento situacional na transcrição da fala de G. do que na fala dos demais envolvidos nas interações comunicativas. Os documentos foram identificados como G.01, G.02 etc. e salvos em .txt, formato comportado pelo software escolhido. A transcrição dos dados seguiu o padrão CHAT, usado pelo Projeto CHILDES. Anotam-se as ocorrências linguísticas usando o alfabeto latino. Não é uma transcrição fonética, mas mantém-se, na medida do possível, as formas sonoras usadas pelo informante. As falas dos participantes aparecem identificadas com MOT (para a mãe), CHI (para a criança), e GRA (para a avó do informante, que esteve presente em várias tomadas). Precede a transcrição o protocolo de registro da identificação do momento de interação entre os participantes: acrônimos em três letras, idade, gênero, local, língua, data, tempo de gravação e situação de ocorrência. Anotam-se essas informações, fazendo uso de acrônimos introduzidos pela marca @: FIGURA 1 – Cabeçalho da transcrição G.01.txt @Begin @Languages: por @Participants: CHI G. Child, MOT L., GRA M. Grandmother, INV L. Investigator @ID: Por | Diamantina | CHI | 0;5.01| Male | Target_Child ||| @ID: Por | Diamantina | MOT | 27;10 | Female | Mother ||| @ID: Por | Pedra Azul | GRA | 69;00 | Grandmother ||| @ID: Por | Diamantina | INV | 27;10 | Investigator ||| @Date: 15-08-2015 @Location: Couto de Magalhães, MG, Brasil @Time Duration: 12:14 – 12:35 @Situation: MOT dá banho em CHI Associada às ocorrências transcritas, há toda uma série de comentários que descrevem a situação na qual ocorreram as manifestações orais e gestuais. Antes dos comentários descritivos, aparece o símbolo %. Por exemplo, na primeira linha da Fig. 2, %exp introduz a ação desempenhada no ato da fala: a criança, CHI faz o movimento para morder a roupa da mãe. Em seguida, a mãe, MOT, fala “o desenho...”. O sinal (.) indica que houve pausa entre a primeira e a segunda fala da mãe; (..) uma pausa mais longa etc. Nas linhas iniciadas por *CHI, indica-se entre colchetes o momento inicial em que ocorreram as falas: 82 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 2 – Excerto da transcrição G.09.txt %exp: CHI abaixa para morder um desenho no short de MOT *MOT: o desenho não solta filho (.) cuidado senão você cai *CHI: da didi [01’22”] *MOT: não desliga o computador não por favor (..) você não consegue ligar de novo *CHI: dia dia [01’36”] *MOT: não consegue, tá desligado *CHI: di [01’45”] *MOT: para moço *CHI: di [01’47”] %exp: CHI apertando o botão de energia do notebook *MOT: não é pra desligar não A notação CHAT elenca uma ampla lista com marcas para a identificação de elementos contextuais que ocorrem durante a gravação. A marca %act indica as ações; %gpx indica gestos (handshapes); %sit indica situações, %bck indica a presença de objetos usados pelos falantes, %pho indica a transcrição fonológica, %par indica a ocorrência de manifestações paralinguísticas, como tosse e choro, e os movimentos faciais (gestos realizados pela cabeça; direcionamentos de olhar) são identificados por %fac. 5 Pesquisa empírica: pergunta central O objetivo deste estudo é acompanhar como se deu a evolução dos usos de (i) balbucios, (ii) pré e proto-palavras, (iii) holofrases e (iv) palavras do informante durante os 18 meses de gravação até agora realizados. Com esse intuito, a equipe considerou todos os enunciados produzidos por G. Ao todo, foram gravados 1.731 turnos de fala do informante infantil. Dessas ocorrências, 833 foram locadas nas categorias anteriormente apresentadas. Os demais 898 casos foram considerados como (v) vocalizações, que têm consistência fonética, mas necessitam de algum aporte visual para serem interpretados em exercício de função expressiva, comunicativa ou acional. Como se notará na exposição dos dados, ocorrem movimentos progressivos de substituição entre as frequências das categorias menos precisas, a saber, (i) balbucios e Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 83 vocalizações, pelas categorias semanticamente mais fortes, (ii) pré e proto-palavras, (iii) holofrases e (iv) palavras. 5.1 Sobre as categorias Optou-se por agrupar as ocorrências coletadas para a marcação deste corpus infantil nas seguintes categorias: (i) balbucios, (ii) pré e proto-palavras, (iii) holofrases, (iv) palavras e (v) vocalizações. A seguir, apresentamos definições e exemplos de cada uma delas. Categorizamos nossos dados de forma semelhante ao que propõe Bharadwaj et al. (2015), que descreve a evolução da produção linguística espontânea de 24 crianças hindus falantes de canarês durante doze meses a partir de seu primeiro ano de vida. (i) Balbucios No trecho a seguir (cf. Fig. 3), reconhecemos exemplos de balbucio nas linhas 1 e 6 da transcrição. Quando ocorre o balbucio, o informante reproduz o mesmo som repetidas vezes. No Glossário Temático proposto por Brooks e Kempe, “balbucios (canônicos) são vocalizações pré-verbais formadas pela repetição de sílabas como dadada ou bababa” (BROOKS; KEMPE, 2012, p. 288). Assim, os balbucios não têm uma referência no mundo, são formados geralmente por CV-CV, não apresentam tonicidade e não constituem díades, uma vez que não ecoam o uso adulto imediatamente anterior. FIGURA 3 – Excerto da transcrição G.06 *CHI: te tetetetetetetetetete [00‘01“] %par: risos *MOT: derrubou o copinho lá ó *GRA: safado sem vergonha %exp: GRA coloca uma garrafinha no chão para CHI desistir do gravador *CHI: de dedededede [00’27”] *MOT: larga a garrafinha da vovó e pega seu copinho Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 84 (ii) Proto e pré-palavras As proto-palavras são referencialmente estáveis e diferem do balbucio pela sua extensão – têm geralmente duas sílabas no formato CVCV – e pelas diferenças possíveis na intensidade e na duração das sílabas. Elas ocorrem após o uso adulto e representam o que a criança é capaz de produzir nesse momento de imaturidade no controle do mecanismo fonatório. Na Fig. 4, a forma papa é um exemplo de protopalavra. FIGURA 4 – Excerto da transcrição G.09 *MOT: *CHI: *MOT: *CHI: *MOT: *CHI: escreve aí: papel papa [22’52”] papel escreve papapa [22’57”] escreve papel papapapapapapapa [23’03”] As pré-palavras são foneticamente consistentes, apresentam variações acentuais e exercem função comunicativa. Geralmente ocorrem como resposta a uma fala adulta e do ponto de vista articulatório guardam semelhança com as palavras produzidas pelos adultos. No exemplo a seguir (Fig. 5), temos duas ocorrências de pré-palavra em situação dialógica: FIGURA 5 – Excerto da transcrição G.12 *MOT: *CHI: *MOT: *CHI: *MOT: *CHI: pega o pano pra limpa aqui pan[10’26”] é, o pano, pega o pano pra limpa, mamãe derramou água aga [10’33”] é água ma [10’36”] Na segunda linha, o informante tenta pronunciar a palavra pano; o faz de forma adaptada à imaturidade no controle do mecanismo fonatório e produz pan. Em seguida, nota-se a forma lexical aga, que é a forma produzida por G. para referir-se a água. Ambas pré-palavras acontecem em resposta à fala da mãe que usa os termos antes de G. Constituem Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 85 díades materializadas através do uso de itens pré-lexicais entre mãe e filho que podem ser interpretadas como indicações da interatividade comunicativa entre o adulto e o infante. (iii) Holofrases Holofrases acontecem quando uma ou duas palavras exercem a função de uma sentença completa, aqui compreendida como exercício de ato enunciativo. Como aparece na figura 6, o informante usa a palavra mais para dizer à avó que quer mais café. Como G. ainda não consegue proferir toda a sentença, faz o pedido usando apenas a forma “lexificada” que exerce a função holofrásica de solicitação.5 Interessante observar que G. usa a forma mais logo após a fala de sua mãe. Essa mesma fala é em seguida usada pela GRA, indicando, nos termos de Clark e Chouinard (2000), algo como uma “autorização” para a fala infantil. Esse fato é exemplo do caráter dialógico do uso linguístico infantil.6 FIGURA 6 – Excerto da transcrição G.14 %act: a avó oferece café a G. *MOT: fala assim: mais vovó *CHI: mais [05’00”] *GRA: mais o que? %par: risos *MOT: ô filho, Gabriel, Gabriel olha aqui pra mamãe, psiu, fala assim com a vovó: café Compreende-se a expressão “lexificação” de acordo com a proposta de Talmy (2001) que a define como a categorização e a expressão linguística de eventos, referências etc. Por esse motivo, a lexificiação e consequente uso de (novos) itens lexicais não podem ser vistos como algo inato, mas como processos diáticos, sociais e cognitivos (Sobre o tema ver TALMY, 2001; PERINI-SANTOS, 2007). 6 A holofrase no uso infantil não é um recurso linguístico de fácil definição. Considerando que a opção pela constituição de uma sentença canônica ou pelo uso de itens lexicais solos em função sentencial inexiste até que o infante desenvolva a habilidade de fazer tais composições. (Sobre o tema, ver DORE, 1975; SCARPA, 2009; MORGENSTERN, 2009). 5 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 86 Na figura 7, CHI usa a forma chai muito próxima foneticamente da forma sai para dizer para uma formiga sair de perto dele. Essa holofrase acontece dentro de um contexto dialógico. FIGURA 7 – Excerto da transcrição G.17 *CHI: *MOT: *CHI: *MOT: guinha chai chai [01’44”] não, sai não filho chai [01’47”] ela tá no lugar dela, você que tá errado Novamente, a fala de G. é retomada pela mãe com a forma fonética corrigida, sai, oferecendo assim ao infante a forma convencional para o verbo por ele ensaiado. (iv) Palavras Define-se palavra como uma sequência sonora socialmente partilhada à qual se atribui significados convencionais. Na figura 8, a forma mamãe é a primeira palavra proferida por G., com 10 meses e um dia de idade, que aparece em nossos registros. FIGURA 8 – Excerto da transcrição G.06 *MOT: *GRA: *CHI: *MOT: *GRA: cê tá ouvindo a vovó reclamar né uu mamãe [11’12”] oi amor que mamãe Na figura 9, G. utiliza duas formas de negação não e pode não. E, na figura 10, G. produz a forma verbal coloca. São exemplos de uso de palavras isoladas ou já em situação de combinação sintática inicial.7 Também sobre a nomenclatura referente às primeiras composições sentenciais infantis, Brooks e Kempe (2012) diferenciam “word combinations” e “word-specific formulae”. A primeira nomeação alude à ocorrência de verbos e preposições em expressões idiomáticas como given up; a segunda, “the schemas used to produce word combinations; these consist of a relational term and a slot (e.g. alll gone__ used to produce utterances such as all gone milk or all gone cookies.” (BROOKS; KEMPE, 2012, p. 302). Sobre o tema, ver Sobrinho da Silva (2011). 7 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 87 FIGURA 9 – Excerto da transcrição G.16 *CHI: não [!] um não [07’28”] *MOT: é, não pode mexe não (.) no telefone da mamãe, mamãe já falou também que não pode *CHI: pode não [07’36”] *MOT: é, não pode (.) moço cê só que mexe em coisa que não pode, computador também não pode, filho tira o dedinho daí, não pode, cê tá ouvindo a mamãe fala que não pode? Vai mexê com seus brinquedinhos. FIGURA 10 – Excerto da transcrição G.18 %par: *CHI: *MOT: *GRA: risos coloca [07’01”] coloca filho, de novo? aí*MOT: vai fica tirando e colocando? (v) Vocalizações As vocalizações são produções sem obstrução no nível do trato vocal que precisam de algum aporte visual para serem interpretadas no exercício de alguma função comunicativa. Nos trechos a seguir, as falas de CHI são exemplos de vocalizações. Especificamente para esses exemplos, as transcrições da fala do informante foram feitas de forma fonética, o que aparece indicado na Fig. 11 pela sigla do CHAT %pho.8 Parte significativa das vocalizações e das demais ocorrências produzidas pelo informante já foram transcritas fonologicamente para trabalho sobre a variação prosódica (cf. BODOLAY, A. et al., 2017). Pretende-se que todas as ocorrências do corpus produzidas pelo falante G. sejam assim transcritas. Para maiores discussões sobre o conceito de vocalização e suas interpretações, ver Bodolay et al. (2017). 8 88 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 11 – Excerto da transcrição G.01 *MOT: calma %exp: *MOT: %exp: *CHI: %pho: %exp: *MOT: *CHI: %pho: %par: *CHI: %pho: %exp: *MOT: *CHI: %pho: vamo tomar banho, pretinho (.) vamo? (..) pronto (...) CHI no trocador vamo tomar banho preto. (...) que foi? preparando CHI para o banho an [00’43’’] [] [00’43’’] GRA bate no copo e produz um som vocálico vovó fazendo graça filho (...) viu? eh [1’08”] (.) eh eh [1’12”] [] [1’08”] (.) [] [] [1’12”] barulho de beijo eh [1’15”] [] [1’15”] MOT arrumando as coisas do banho tira a mão da boca na [1’29”] [] [1’29”] 5.2 Os dados quantitativos tabelados Nosso estudo objetivou acompanhar a evolução do uso dos itens lexicais organizados em categorias lexicais infantis no decorrer dos 18 meses de gravações. Reconhecemos 1.735 turnos de fala de G. A contagem das ocorrências junto às transcrições foi feita com o auxílio do software AntConc. Nas gravações G.01, G.02 e G.03 – o que corresponde ao período entre o 5o e o 7o mês de vida – G. produz apenas vocalizações. Das categorias escolhidas para análise da evolução linguística do infante, os balbucios tiveram início no 8° mês de vida, que corresponde à transcrição G.04, e mantiveram-se presentes até a transcrição G.15. As pré e as proto-palavras apareceram em G.06, com uma única ocorrência e mantiveram-se presentes até o registro G.18, com 51 ocorrências. Essas formas diminuem à medida que o número de palavras aumenta (optamos por colocar as pré e proto-palavras na mesma categoria, pois não encontramos até agora diferenças claras o suficiente para justificar análise independente). As holofrases aparecem em G.13, com 4 ocorrências, e permanecem presentes até G.18, com 49 ocorrências. O vocativo mamãe Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 89 é a primeira palavra do informante G. que aparece em nossos registros. Aparece em seu 10° mês de vida e está transcrita em G.06. Essa forma de ocorrência aumenta marcadamente nos meses seguintes, como mostra a Tabela 1: TABELA 1 – Ocorrências por categorias Identificação dos registros Vocalizações Balbucios Pré e proto- Palavras Holofrases -palavras Total G.01 45 0 0 0 0 45 G.02 57 0 0 0 0 57 G.03 25 0 0 0 0 25 G.04 44 7 0 0 0 51 G.05 18 6 0 0 0 24 G.06 56 15 1 1 0 73 G.07 8 26 2 0 0 36 G.08 6 23 0 1 0 30 G.09 40 30 3 0 0 73 G.10 73 15 9 2 0 99 G.11 67 5 5 2 0 79 G.12 82 27 37 23 0 169 G.13 64 16 5 2 4 91 G.14 154 6 19 12 11 202 G.15 67 1 22 6 3 99 G.16 40 0 56 48 2 146 G.17 40 0 137 66 18 261 G.18 12 0 51 59 49 171 Total 898 177 347 222 87 1731 90 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 5.3 Análise dos gráficos comparativos Como a pesquisa seguiu durante 18 meses, foi possível observar a evolução de algumas categorias lexicais observadas na fala de G., além de possibilitar a realização de alguns cruzamentos de dados com o intuito de acompanhar de forma longitudinal como ocorrem as relações de substituição ou concomitância entre os recursos comunicativos usados pelo informante. Serão apresentados três gráficos com as seguintes associações categoriais: 5.3.1 balbucios, pré e proto-palavras e palavras; 5.3.2 vocalizações e balbucios e 5.3.3 holofrases e palavras.9 5.3.1 Balbucios, pré/proto-palavras e palavras Observe o gráfico 1 abaixo: GRÁFICO 1 – Balbucios, pré/proto-palavras e palavras O gráfico 1 mostra como estão distribuídas ao longo do tempo da pesquisa as ocorrências de balbucios, pré e proto-palavras e palavras. Considerando as três categorias, nota-se que os balbucios ocorrem entre G.03 e G.15 e são superados em número pelas outras categorias a partir do registro G.13. As pré e proto-palavras têm sua maior ocorrência em G.15 e G.16, e diminuem à medida que o número de palavras aumenta. Observa-se, assim, a substituição das duas primeiras categorias pela ocorrência de palavras: as categorias menos densas – os balbucios e as Não se intenta propor interpretação generalizante para o uso linguístico infantil aqui relatado. Nosso estudo tem cunho descritivo. Análises quantitativas mais robustas serão feitas no decorrer do projeto de pesquisa em curso. 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 91 pré e proto-palavras – são progressivamente substituídas pelas palavras, que são semanticamente mais fortes e morficamente mais estáveis. Especificamente sobre a relação entre as pré e proto-palavras e as palavras, observa-se a mesma substituição. Mesmo que haja redução do número total de ocorrências locadas nas duas categorias entre G.17 e G.18 – as pré e proto-palavras têm queda de 62% e as palavras decrescem em 11% – mantém-se a tendência supracitada. A redução do valor total nas duas categorias não afeta a interpretação relativa ao processo de substituição das formas menos densas pelas formas lexicais mais densas. 5.3.2 Vocalizações e balbucios Apresenta-se, abaixo, o gráfico 2 que mostra a evolução nos usos de balbucios e de vocalizações de G.: GRÁFICO 2 – vocalizações e balbucios Os balbucios são frequentes entre G.06 e G.12 e param de ocorrer a partir de G.15, quando o informante G. atinge a idade [01;07.01]. O mesmo movimento de decréscimo acontece com as vocalizações. Essas aparecem em todos os documentos de transcrições, mas diminuem a partir de G.15. Assim como já indica o gráfico 1, a expressividade linguística do informante torna-se mais lexical. As duas formas de expressão sonora não-lexical, balbucios e vocalizações, minguam e são substituídas pelas formas pré-lexicais e lexicais. 5.3.3 Palavras e holofrases A seguir, tem-se o gráfico 3 que apresenta a evolução no uso de palavras e holofrases na fala de G.: 92 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 GRÁFICO 3 – palavras e holofrases A primeira palavra reconhecida pela equipe aparece em G.06 [0;10.01] (cf. Fig. 8). O número de ocorrências de palavras tem um aumento considerável nos meses seguintes à sua inauguração lexical. No registro G.11 [01;03.01], foram encontradas 2 ocorrências; em G.14 [01.06;01], aparecem 12 palavras; em G.16 [01;08.01], aparecem 48 palavras; em G.17 [01;09.01], 66, e em G.18 [01;10.01] são reconhecidas 59 palavras. Essa rápida progressão no uso de itens lexicais é comumente nomeada pela literatura como “momento de explosão lexical”. Dale e Fenson (1996) apontam que esse momento tende a ocorrer entre o 11o e o 15o mês de vida. A “explosão lexical” de G. ocorre entre o 15o, registro G.11, e o 21o mês de vida, registro G.16; o que corrobora o comentário dos autores. As primeiras ocorrências holofrásicas foram registradas a partir da gravação G.13 [01;05.01]. Ocorre uma pequena curva de variação nos meses seguintes com os seguintes valores: 4 ocorrências, em G.13; 11 em G.14 e, em G.15, são observadas 3 ocorrências holofrásicas. Há um abrupto crescimento entre G.16 e G.17. Passa-se de 3 para 18 o número de holofrases registradas. Entre G.17 e G.18, passa-se de 18 para 45 ocorrências. É interessante observar a seguinte correlação: o aumento no uso de holofrases ecoa o aumento no uso de palavras ocorrido no mês imediatamente anterior. Ou seja, a ocorrência de 48 palavras em G.16 permitiu a produção de 18 holofrases em G.17. Por sua vez, as 66 palavras ocorridas em G.17 habilitaram o informante a produzir 45 holofrases no mês seguinte. Essa correlação – 48 palavras > 18 holofrases; 66 palavras > 45 holofrases – não nos parece acidental. O fato de ser munida de mais itens lexicais, de mais repertório cognitivo e expressivo, permite à criança reconhecer e designar Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 93 objetos, pessoas e eventos na realização de seus primeiros Atos de Fala fazendo uso de itens lexicais (cf. AUSTIN, 1962; para apropriação corpus-driven, ver RASO; MELLO, 2014; BOSSAGLIA, 2015). 6 Comentários finais 6.1 Sobre a “comparação” de dados Conforme mencionado anteriormente, optou-se pelas categorias propostas em trabalho longitudinal semelhante (BHARADWAJ et al., 2015). O autor acompanha a evolução da fala de 24 informantes durante 12 meses a partir do primeiro ano de vida. Considerando os 12 meses registrados o informante G. a partir de seus 11 meses de vida, ou seja, entre os registros G7. e G.18, observou-se, porém, que a evolução dos dados obtidos nas duas pesquisas divergem em alguns pontos. Em nossa pesquisa, o número de ocorrências de pré e protopalavras decresce de 76,5% para 32,1%; em Bharadwaj et al. (2015), passa-se de 14,5% para 2,7%. Sobre o número de palavras identificadas, em nossa pesquisa há um aumento de 0% para 32,1%; em Bharadwaj et al. (2015), ocorre um aumento de 8,3% para 35,4%. Sobre o uso de holofrases, em nosso estudo, passa-se de 0% para 30,8%; em Bharadwaj et al. (2015), há uma forte queda, passa-se de 9,3% para 1,04%. Três aspectos podem explicar as divergências. Primeiro: o estudo indiano registrou a fala de um número muito superior de informantes: foram 24 crianças falantes do canarês e nossa pesquisa acompanhou um único informante. Segundo: nossos dados são nominais; os dados da pesquisa correlata são apresentados em seus valores médios. Finalmente, os períodos etários das coletas de dados considerados para essa “comparação” são diferentes. O estudo brasileiro registra a fala do informante entre 5 e 22 meses de vida; o estudo indiano, entre os 12 e os 24 primeiros meses de vida dos informantes. Nesse sentido, não há de fato uma comparação, mas o aproveitamento de categorias analíticas pertinentes. Especificamente sobre a categoria holofrases, em que houve maior divergência na evolução dos dados das duas pesquisas, a interpretação das funções holofrásicas depende de elementos contextuais como as indicações dêiticas, a presença de objetos, as expressões faciais e gestuais dos falantes e, sobretudo, a presença e a atitude entre os interlocutores. Nas duas pesquisas, a indicação e a relação desses elementos com as 94 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 produções linguísticas são escassas. Isso é uma limitação metodológica à qual o nosso grupo de pesquisa está atento. Além disso, Luo et al. (2012), em pesquisa sobre as diferenças dialógicas entre mães americanas, tailandesas, chinesas e peruanas, e seus respectivos filhos, afirmam que não há homogeneidade nas díades produzidas entre esses interlocutores e consequentes interpretações. No uso de cada “manhês” específico, pode variar os números de verbos, de itens nominais, de frases curtas, de frases longas, de “tag questions”, de perguntas abertas, de ordens, de pedidos, de explicações, de esclarecimentos etc. Assim, a ocorrência dos Atos de Fala ditos holofrásicos e seu reconhecimento pelos pesquisadores estão sujeitos a interpretações socioculturais.10 6.2 Sobre o amadurecimento do corpus A cada releitura das transcrições, a cada nova interpretação dos dados já transcritos ou em transcrição, encontramos passagens que demandam reajustes e maior detalhamento. Esse movimento de amadurecimento é inerente à pesquisa de corpus. Os trabalhos de coleta, transcrição e marcação de corpora infantis realizados pelo grupo CIL têm, neste artigo, a sua primeira publicação que partilha sua pesquisa empírica em desenvolvimento. Progressivamente, temos incorporado aos corpora que efetivamos mais detalhes referentes aos contextos das ocorrências, à prosódia e às realizações fonética e gestual dos infantes investigados. Estamos cientes da complexidade multifacetada que envolve a análise dos dados referentes à fala infantil e os elementos que compõem a sua expressão. Agradecimentos Agradecemos a nossos informantes, à mãe, à avó e ao próprio G., que generosamente permitiram o registro de seu cotidiano. Agradecemos ao colega Patrik Vezali, pela atenta revisão feita no texto final. Agradecemos aos pareceristas desta revista pelos comentários críticos. Suas sugestões foram incorporadas à redação final deste artigo, o que permitiu o amadurecimento do texto e das reflexões aqui apresentadas. Agradecemos à FAPEMIG, que apoia esta pesquisa (processo 02621-16). Ainda sobre o tema das díades entre pais e filhos. Das poucas referências feitas sobre “a fala do pai”, vale registrar o que diz Rondal: “Les pères passent seulement quelques secondes ou quelques minutes par jour à parler à leurs enfants pendand les premiers mois d’existence” (RONDAL, 1978, p. 63). 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 95 Contribuição dos Autores Pedro Perini-Santos e Lídia Ferreira-Santos propuseram a presente pesquisa. P. Perini-Santos e L. Ferreira-Santos organizaram e monitoraram a coleta de dados, analisaram os dados, redigiram e escreveram o texto final do artigo. Jéssica Leal e L. Ferreira-Santos coletaram, transcreveram e revisaram a transcrição dos dados. Adriana Nascimento Bodolay transcreveu e analisou os aspectos fonéticos. P. Perini-Santos é o coordenador da pesquisa do grupo CIL (Corpus Infantil Longitudinal). Todos os colaboradores são membros do CIL e trabalham em um projeto de pesquisa mais amplo dedicado à construção e à análise de corpora infantis longitudinais. Referências AUSTIN, L. J. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1962. BERKO, J. The Child’s learning of English Morphology. Word, Taylor & Francis Online, v. 14, n. 2/3, p. 150-177, 1958. Doi: 10.1080/00437956.1958.11659661 BHARANDWAJ, S.; SUSHMA S.; SREEDVI N. True words, protowords and holophrasic words in typically developing Kannada speacking children: 12-24 months. Journal of Child Language Acquisition Development, Turkey, v. 3, n. 1, p. 47-57, 2015. BODOLAY, A.; PERINI-SANTOS, P; VEZALI, P. FERREIRASANTOS, L. LEAL, J; RIBEIRO, L. Descrição prosódica no processo de aquisição: análise preliminar baseada em corpora linguístico infantil. In: COLÓQUIO BRASILEIRO DE PROSÓDIA DA FALA, v VI., 2007, Mariana. Anais... Mariana: ICHS/UFOP, 2017. BOSSAGLIA, G. Orientação pragmática da sintaxe na fala espontânea: uma análise corpus-based da subordinação completiva e adverbial no português do Brasil. Domínios de lingu@gem, Uberlândia, v. 9, n. 5, p. 310-335, 2015. Doi: http://dx.doi.org/10.14393/DLE-v9n5a2015-16 BROOKS, P.; KEMPE, V. Language Development. Londres: PBS Blackwell, 2012. BRUNER, J. S. The acquisition of pragmatic commitments. In: GOLINKOFF, R. (Ed.). The Transition From Prelinguistic to Linguistic Communication. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1983. 96 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 BRUNER, J. S. The ontogenesis of speech acts. Journal of Child Language, Cambridge University Press, n. 2, p. 1-19, 1975. Doi: https:// doi.org/10.1017/S0305000900000866 CAVALCANTI, R. Alguns argumentos contra o inatismo linguístico – réplica a Lombardi Vallauri. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 25, n. 4, p. 2061-2093, 2017. Doi: http://dx.doi. org/10.17851/2237-2083.25.4.2061-2093 CLARK, E.; CHOUINARD, M. M. Énoncés enfantins et reformulations adultes dans l’acquisition du langage. Langages, Persée, n. 140, p. 9-23, 2000. DALE, P.; FENSON, L. Lexical development norms for young children. Behavior Research Methods, Instruments & Computers, Springer Link, n. 28, p. 125-127, 1996. Doi: https://doi.org/10.3758/BF03203646 DARWIN, C. A biographical sketch of an infant. Mind. A Quarterly Review of Psychology and Philosophy, Oxford University Press, v. 2, n. 7, p. 285-294, 1877. DAVIS, E. A. The development of linguistic skill in twins, singletons with siblings, and only children from age five to ten years. Minneapolis: University of Minnesota, 1937. (The Institute of Child Welfare Monograph Series, n. 14) DAY, E. The Development of Language in Twins: I. A Comparison of Twins and Single Children. Child Development, Hoboken, NJ, v. 3, n. 3, p. 179-199, 1932. Doi: https://doi.org/10.2307/1125457 DORE, J. Holophrases, speech acts and language universals. Journal of Child Language, New York, v. 2, n. 01, p. 21-40, 1975. DOI: https://doi. org/10.1017/S0305000900000878 HART, B.; RISLEY, T. R. Meaningful differences in the everyday experience of young american children. Baltimore: Brookes. MacWhinney, 1995. HEROARD, J. Le journal de Jean Héroard sur l’enfance et la jeunesse de Louis XIII. 1868 [1602-1627]. v. 1. Disponível em: <https://archive.org/ details/journaldejeanh01hruoft>. v. 2. Disponível em: <https://archive. org/details/journaldejeanh02hruoft>. Acesso em: jul. 2017. JESPERSEN, O. Language: it’s nature, development and origin. Londres: George Allen and Unwin, 1922. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 97 LEE, N.; MIKESELL, L.; JOAQUIN, A.; MATES, A.; SHCUMANN, J. The interactional instinct – the evolution and aquisition of language. Oxford; New York: Oxford University Press, 2009. LEMOS, C. Sobre o interacionismo. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 11-17, 1999. LEMOS, T. A língua que me falta. Campinas: Mercado de Letras, 2002. LEVELT, W. A history of psycholinguistics. Oxford; New York: Oxford University Press, 2013. LIER-DEVITTO, M. F.; CARVALHO, G. O interacionismo: uma teorização em aquisição da linguagem, In: FINGER, I.; QUADROS, R. (Org.) Teorias de Aquisição da Linguagem. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008. p. 115-146. LUO, Y. H.; SNOW, C.; CHANG, C.-J. Mother-child talk during joint book reading in low-income American and Twainese families. First language, Londres, v. 32, n. 4, p. 495-511, 2012. DOI: 10.1177/0142723711422631 MacCARTHY, D. A. The Language development of the preschool child psychology. Minneapolis: University of Minnesota, 1930. (The Institute of Child Welfare Monograph Series, n. 4) MACWHINNEY, B. The CHILDES project. Londres: Lawrence Erlbaum Associates, 2000. MORGENSTERN, A. L’enfant dans la langue. Paris: Presses de la Sorbonne Nouvelle, 2009. PERINI-SANTOS, P. Epistemologia cognitiva para o uso das preposições – o caso da preposição de do PB. 2007. Tese (Doutorado) –Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007. RASO, T; MELLO, H. (Ed.). Spoken corpora and linguistic studies. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2014. Doi: https://doi.org/10.1075/scl.61 RONDAL, J. A. L’interaction adulte-enfant et la construction du langage. Liège: Pierre Mardaga, 1978. ROUSSEAU, J-. J. Emílio, ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand, [1762] 1995. 98 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 SCARPA, E. M. O lugar da holofrase nos estudos de aquisição da linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 51, n. 2, p. 187-200, 2009. Doi: https://doi.org/10.20396/cel.v51i2.8637211 SCOLLON, R. Conversations with a one year: a case study of the developmental fondation of syntax. Hong Kong: University Press of Hawaii, 1976. SMITH, M. E. An investigation of the development of the sentence and the extent of vocabulary in young children. University of Iowa Studies in Child Welfare, Iowa, v. 3, n. 5, p. 1-90, 1926. SNOW, C. Input to interaction to instruction: three key shifts in the history of child language research. Journal of Child Language, New York, n. 41, p. 117-123, 2014. Doi: 10.1017/S0305000914000294 SOBRINHO DA SILVA, C. T. Primeiras produções infantis: como categorizá-las?. Revel, [s.l.], v. 9, n. 17, 2011. TALMY, L. Toward a Cognitive Semantics. Hong Kong: MIT Press, 2001. v. II. TEMPLIM, M. Certain language skills in children: their development and inter-relationships. Minneapolis: University of Minnesota, 1957. (The Institute of Child Welfare Monograph Series, n. 26) TOMASELLO, M. Acquiring syntax is not what you think. In: BISHOP, D.; LEONARD, L. (Ed.), Speech and language impairments in children: causes, characteristics, intervention, & outcome. London; New York: Psychology Press, 2000. VALLAURI, L. E. Alguns argumentos contra o inatismo. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 9-47, 2008. DOI: http://dx.doi.org/10.17851/2237-2083.16.1.9-47 von WINTERFIELD, M.A. Tagebuch eines Vaters über sein neugebohrenes Kind. Braunschweigisches: Journal Philosophischen, Philologischen und Pädagogischen Inhalts, Alemanha, n. 5, p. 404-444, 1789. YOUNG, F.M. An analysis of certain variables in a developmental study of language. Genetic Psychology Monographs, Bethesda, USA, n. 23, p. 3-141, 1941. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 99 ANEXO: trechos citados transcritos Seguem os excertos de exemplos transcritos e citados no decorrer do artigo. Neste Anexo, são ofertados períodos mais extensos em que ocorrem os exemplos analisados. As transcrições estão organizadas em acordo com a numeração da Figura. FIGURA 2 – Excerto da transcrição G.09.txt *MOT: que foi %par: choro de CHI *MOT: pega o carrinho (.) vai pega o carrinho lá aqui ó (..) vai comer o Poh vai comer o Poh delícia mamãe não quer não %exp: CHI tira o bonequinho da boca e coloca na boca de MOT %par: risos *MOT: que foi (.) que foi (..) não acredito que você vai comer o short da mamãe %exp: CHI abaixa para morder um desenho no short de MOT *MOT: o desenho não solta filho (.) cuidado senão você cai *CHI: da didi [01’22”] *MOT: não desliga o computador não por favor (..) você não consegue ligar de novo *CHI: dia dia [01’36”] *MOT: não consegue tá desligado *CHI: di [01’45”] *MOT: para moço *CHI: di [01’47”] %exp: CHI apertando o botão de energia do notebook *MOT: não é pra desligar não *CHI: di [01’50”] *MOT: não *CHI: dia[01’52”] *MOT: olha aqui não pode *CHI: di é di [01’55”] *MOT: para 100 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 3 – Excerto da transcrição G.06 %exp: CHI está sentado no chão brincando com um copinho quando vê MOT colocar o gravador no sofá e levanta para tentar pegar *CHI: te te te te te te te te te te te [00’01”] %par: risos *MOT: derrubou o copinho lá ó *GRA: safado sem vergonha %exp: GRA coloca uma garrafinha no chão para CHI desistir do gravador *CHI: de de de de de de [00’27”] *MOT: larga a garrafinha da vovó e pega seu copinho *GRA: deixa ele brincar %exp: CHI batendo a garrafinha no chão sons de televisão ao fundo *GRA: nossa quarenta e nove imóveis destruído (...) deve ser porque é gás encanado né *MOT: não sei não *GRA: por que diz que o povo desligou o gás *CHI: ma ma ma ah[!] be be be be bru bru de de de [!] [01’03”] FIGURA 4 – Excerto da transcrição G.09 %par: risos *MOT: o que Escreve pra mamãe toma a canetinha aqui escreve aí pra mamãe (.) escreve aí isso (.) do outro lado deixa a mamãe abrir pra você pronto %exp: CHI batendo a caneta na folha *MOT: vai rasgar não rasga não *CHI: bu bu bu ba bu [22’40”] *MOT: escreve aí papel *CHI: papa [22’52”] *MOT: papel escreve *CHI: pa pa pa [22’57”] *MOT: escreve papel *CHI: pa pa pa pa pa pa pa pa [23’03”] *MOT: deixa a mamãe escrever pra você *CHI: paa [23’11”] Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 101 FIGURA 5 – Excerto da transcrição G.12 *MOT: não pode *CHI: nannan [10’01”] *MOT: não ah derramou água pega o pano pra mamãe pega o pano pra mamãe limpa aqui vai *GRA: olá ó (..) oli ó (..) o pano *MOT: pega o pano pra limpa aqui *CHI: pan [10’26”] *MOT: é,o pano pega o pano pra limpa mamãe derramou água *CHI: aga [10’33”] *MOT: é água *CHI: ma [10’36”] *MOT: é pega o pano lá *CHI: pê [10’39”] *MOT: pano *CHI: pê [10’42”] *MOT: é FIGURA 6 – Excerto da transcrição G.14 *GRA: mais o que *MOT: pede a vovó mais pede *GRA: o que cê que fi *CHI: ma [04’56”] *GRA: ham *CHI: ma [04’58”] *MOT: fala assim mais vovó *CHI: mais [05’00”] *GRA: mais o que %par: risos *MOT: ô filho Gabriel Gabriel olha aqui pra mamãe psiu fala assim com a vovó café *CHI: bó [05’14”] *GRA: sua mãe disse que não gosta que dá ocê café porque que ela tá mandando eu dá (..) hein *MOT: dá a garrafinha de suco pra ele não não dá café ele não *GRA: não eu vou tomá uá *MOT: uá se cê for toma cê tem que dá ele então né fi olá a vovó vai dá filho olá *CHI: fé [05’30”] *MOT: é café (..) não não mexe aí não vovó dá lá olá 102 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 7 – Excerto da transcrição G.17 *MOT: é tudo da vovó não mexe mamãe já falou que isso aí não pode pegá filho não pode *CHI: abutatuadu a tuta [01’37”] *MOT: ó *CHI: a [01’42”] *MOT: olha a formiguinha *CHI: guinha chai chai [01’44”] *MOT: não sai não filho *CHI: chai [01’47”] *MOT: ela tá no lugar dela você que tá errado *CHI: ado [01’50”] *MOT: é *CHI: tudo ajundo qui casa [01’53”] *MOT: cuidado aí *CHI: cu chainha [02’03”] *MOT: é na folhinha FIGURA 8 – Excerto da transcrição G.06 *GRA: acho ruim por que é uma coisa que quebra *MOT: não não vai quebrar não pode ficar tranquila *CHI: um um um [10’53”] *MOT: o máximo que vai acontecer é ele bater na própria mão (..) ou para com isso [!] %exp: CHI batendo o vidro no chão *MOT: cê tá ouvindo a vovó reclamar né *GRA: uu *CHI: mamãe [11’12”] *MOT: oi amor *GRA: que mamãe oriege *CHI: um um rum rum [11’17”] *GRA: me dá aqui ó (..) Gabriel [!] *CHI: an um [11’26”] *MOT: fala assim não dou é meu a mamãe me deu *GRA: ô Biel (..) ô Biel %par: resmungando 103 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 9 – Excerto da transcrição G.16 *MOT: filho que cê tá fazendo (..) pode mexe nas coisas da vovó não (..) pode não fecha a gaveta da vovó fecha (..) fecha filho (..) não fecha cuidado com a mãozinha fecha *CHI: zinha [07’16”] *MOT: é mãozinha, tem que tomar cuidado senão cê machuca *CHI: amo [07’20”] *MOT: não não pode mexe nas coisas da vovó vovó vai briga vou lá conta pra ela que cê tá mexendo nas coisas dela *CHI: não [!] um não [07’28”] *MOT: é não pode mexe não (.) no telefone da mamãe mamãe já falou também que não pode *CHI: pode não [07’36”] *MOT: é não pode (.) moço cê só que mexe em coisa que não pode computador também não pode filho tira o dedinho daí não pode cê tá ouvindo a mamãe fala que não pode vai mexe com seus brinquedinhos *CHI: quedinho ma dim [07’52”] *MOT: é *CHI: madinho madinha madim [07’53”] *MOT: seu livrinho cadê *CHI: xinho [07’58”] FIGURA 10 – Excerto da transcrição G.18 *CHI: *MOT: %tim: *CHI: *MOT: %par: %tim: *CHI: *MOT: *GRA: *MOT: *GRA: %par: %tim: *CHI: a bobinha fala assim: carregador [06’57”] gadador do celular risos de MOT [07’01”] coloca colocá filho de novo aí vai fica tirando e colocando só pra vê a luzinha risos de MOT e GRA [07’11”] im dá 104 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 73-104, 2019 FIGURA 11 – Excerto da transcrição G.01 @Situation: MOT indo dar banho em CHI %sit: CHI está deitado na cama enquanto MOT prepara seu banho *MOT: vamo tomar banho pretinho (.) vamo (..) pronto (...) calma %exp: CHI no trocador *MOT: vamo tomar banho preto (...) que foi %exp: preparando CHI para o banho %tim: [00’43”] *CHI: an %pho: [] %exp: GRA bate no copo e produz um som vocálico *MOT: vovó fazendo graça filho (...) viu %tim: [01’08”] *CHI: eh %pho:[] %tim: [01’12”] *CHI: eh eh %pho: [] [] %par: beijo %tim: [01’15”] *CHI: eh %pho: [] %exp: MOT arrumando as coisas do banho *MOT: tira a mão da boca %tim:[01’29”] *CHI: na %pho: [] *MOT: que foi peraí filho %tim: [01’41”] *CHI: eh %pho: [e] %sit: GRA atendendo o telefone *GRA: alô (..) uá mas antes tava funcionando Lidinha (...) aí meu xxx %par: beijo Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 A reinvenção da gramática em sala de aula The Reinvention of Grammar in the Classroom Gustavo Augusto Fonseca Silva Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil fonsecaugusto@hotmail.com “Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto” FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. (1977). Resumo: As discussões sobre as falhas e inconsistências teóricas das gramáticas tradicionais ganharam impulso no Brasil nos anos 1980. Apesar disso, velhos problemas como definições incoerentes dos conceitos gramaticais ainda são encontrados em gramáticas recém-publicadas no país por autores como Amini Hauy, Mário Perini e Lorenzo Vitral. Em vista dessa situação, neste artigo explicita-se, com base nos textos do filósofo Ludwig Wittgenstein sobre “semelhanças de família” e nos trabalhos clássicos da psicóloga Eleanor Rosch sobre categorização, por que os conceitos gramaticais, de modo geral, não têm limites fixos nem podem ser coerentemente definidos. Além disso, considerando-se esse fato, e seguindo os princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, argumenta-se que o professor de língua portuguesa nos níveis fundamental e médio deve estimular os alunos a elaborar suas próprias classificações e definições gramaticais, em diálogo com o trabalho de nossos gramáticos e linguistas. Palavras-chave: ensino de gramática; conceitos gramaticais; categorização; pedagogia libertadora; Paulo Freire. Abstract: Discussions on flaws and inconsistencies in traditional grammar theories grew in Brazil in the 1980s. Notwithstanding, old issues such as incoherent definitions of grammar concepts can still be found in grammar books recently published by Brazilian authors such as Amini Hauy, Mário Perini, and Lorenzo Vitral. In light of that eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.105-136 106 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 matter, based on the work by philosopher Ludwig Wittgenstein on family resemblance and on classical works by psychologist Eleanor Rosch on categorization, this article explains why grammar concepts, generally speaking, do not have fixed limits nor can be coherently defined. Moreover, by also considering Pedagogy of Freedom by Paulo Freire, this paper argues that elementary, middle, and high school Portuguese teachers must encourage students to create grammar definitions and classes while conversing with works by Brazilian grammarians and linguists. Keywords: grammar teaching; grammar concepts; categorization; pedagogy of freedom; Paulo Freire. Submetido em 8 de março de 2018 Aceito em 4 de junho de 2018 1 Introdução Em sintonia com o trabalho de outros linguistas como Eglê Pontes Franchi (1996), Jânia Martins Ramos (1997) e Luiz Carlos Travaglia (2000, 2003), o professor Ataliba Teixeira de Castilho apresenta no livro A língua falada no ensino de português várias propostas para a integração da oralidade no estudo gramatical em nossas escolas de nível fundamental e médio. Seu objetivo central ao fazê-lo, assim como o de seus colegas pesquisadores, é dar respostas a alguns dos principais desafios que vêm sendo enfrentados desde os anos 1980 pelos nossos professores de português como consequência direta da inclusão educacional de crianças oriundas de grupos sociais historicamente marginalizados e discriminados. Entre esses problemas, a questão de como conciliar a valorização das variantes linguísticas desses alunos com o ensino da norma culta da língua, indispensável para o acesso ao ensino superior e a melhores oportunidades de trabalho. Com o intuito de promover essa conciliação, fazendo da aula um momento para a reflexão sobre a própria língua em vez de um claustro dedicado à memorização de classificações sintáticas e morfológicas, Castilho (p. 22) sugere que em primeiro lugar sejam observados e ordenados em regras descritivas os fatos linguísticos, colhidos de gravações de conversas, e apenas posteriormente se passe à discussão de regras prescritivas, correspondentes ao padrão culto da língua. Com esse cuidado de priorizar a descrição sobre a prescrição, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 107 conclui Castilho (2006, p. 23), “a gramática deixará de ser vista pelos alunos como a disciplina do certo e do errado, reassumindo sua verdadeira dimensão, que é a de esquadrinhar através dos materiais linguísticos o funcionamento da mente humana”. O professor, por sua vez, observa Castilho logo em seguida, não deveria filiar-se a um único quadro teórico em sua prática pedagógica, sendo-lhe mais saudável o ecletismo. Não obstante essa posição, Castilho (2006, p. 23) pondera que “é evidente que se requer previamente a habilidade de identificar as classes gramaticais por seus atributos morfossintáticos e semânticos, focalizados nos trabalhos de Perini (1985, 1989, 1995)”, e que, “num segundo momento, pode-se desenvolver uma argumentação formalmente orientada, em que as postulações pré-teóricas cedem espaço a um raciocínio guiado por condições estabelecidas de antemão” (2006, p. 23). Tendo em vista essas afirmações de Castilho, neste artigo primeiramente discutiremos tal “habilidade de identificar as classes gramaticais por seus atributos morfossintáticos e semânticos”, mostrando que essa identificação nunca pode ser feita de forma indubitável, já que as classes gramaticais são por princípio indefiníveis. Para tanto, serão analisados alguns aspectos do trabalho de Mário Alberto Perini a que se refere o professor Castilho, bem como aspectos de outros trabalhos mais recentes do próprio Perini e de outros autores. Em seguida, com base na constatação de que “as condições estabelecidas de antemão” de que fala Castilho são sempre controversas, proporemos que o professor de língua portuguesa leve os alunos a perceber que toda classificação gramatical é um constructo teórico e que, exatamente por isso, pode e deve ser questionada. Mais que isso: seguindo os princípios da pedagogia humanizante, libertadora e problematizadora de Paulo Freire (1977a, 1977b, 1979, 1980), e indo ao encontro de novas propostas metodológicas de ensino gramatical, como a de Oliveira e Quarezemin (2016), que enfatizam a importância de os alunos elaborarem junto com o professor gramáticas sobre fragmentos de línguas, defenderemos a ideia de que cabe ao professor de português encorajar e ajudar os alunos a construir suas próprias análises e classificações gramaticais, em diálogo tanto com as gramáticas tradicionais quanto com as gramáticas publicadas mais recentemente no Brasil (e.g. BAGNO, 2011; CASTILHO, 2010; HAUY, 2015; PERINI, 1995, 2010, 2016; VITRAL, 2017). Com essa proposta, complementar à de outros pesquisadores que têm se dedicado à reflexão sobre o ensino de língua materna e de gramática (e.g. BUNZEN et al., 2009; 108 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 DIONÍSIO; BEZERRA, 2005; UCHÔA, 2007; VIEIRA; BRANDÃO, 2016), esperamos ajudar os docentes de língua portuguesa a dar um passo adiante rumo à exortação do professor Castilho de que “a aula de gramática deve implicar numa atuação participante de professor e aluno, movidos pelo desejo da descoberta científica” (CASTILHO, 2006, p. 22). 2 Falta de coerência teórica Nos anos 1980, vários linguistas brasileiros publicaram trabalhos em que são apontadas as falhas e incoerências teóricas das gramáticas tradicionais (GTs) (e.g. HAUY, 1986; ILARI, 1986; PERINI, 1984, 1985). Entre esses autores, Perini destaca-se não somente por ter detalhado muitas das fragilidades teóricas das GTs, mas principalmente por ter construído novas teorias da língua portuguesa, tendo por objetivo superar as velhas lições expostas nos compêndios gramaticais. Sua Gramática descritiva do português, de 1995; sua Gramática do português brasileiro, de 2010; e sua Gramática descritiva do português brasileiro, de 2016, são marcos de seu grande projeto de construir uma gramática da língua portuguesa mais sólida do que as GTs. Para isso, Perini vem dedicandose há décadas com particular afinco para superar o que denominou de “falta de coerência teórica” das GTs: A falta de coerência teórica se manifesta, por exemplo, nas muitas definições que não podem ser seguidas se se deseja identificar as entidades que elas pretendem definir. Um dos exemplos dados no livro mencionado [Para uma nova gramática do português] é a definição de sujeito como “o termo do qual se afirma alguma coisa”; é bem fácil verificar que os termos usualmente analisados como sujeito frequentemente não exprimem o ser do qual se afirma alguma coisa. No entanto, continua mantendo-se tanto a definição quanto a análise, muito embora as duas estejam em contradição (PERINI, 1995, p. 21-22. A falta de coerência teórica, na verdade, é reconhecida até mesmo por alguns gramáticos tradicionais, como Celso Cunha e Lindley Cintra, que afirmam no sétimo capítulo (“Frase, oração, período”) de sua Nova gramática do português contemporâneo: O estudo da frase e o da organização dos elementos que a constituem pressupõem o conhecimento de alguns conceitos nem Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 109 sempre fáceis de definir. Essa dificuldade resulta não só da própria natureza do assunto, mas também das diferenças dos métodos e técnicas de análise adotados pela linguística clássica e pelas principais correntes da linguística contemporânea (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 120). Cientes da dificuldade de definir alguns dos conceitos pressupostos no estudo gramatical, mas sem a pretensão de discuti-la a fundo, muito menos de tentar resolvê-la, Cunha e Cintra prontamente advertem que seriam evitadas discussões teóricas que não trouxessem esclarecimentos ao estudo descritivo-normativo da sintaxe portuguesa (CUNHA; CINTRA, 2001), que era o principal objetivo deles naquele capítulo. Perini, por sua vez, diferentemente de Cunha e Cintra, tem justamente como uma de suas principais metas apresentar definições coerentes desses “conceitos nem sempre fáceis de definir”, o que representaria em sua opinião um importante avanço teórico em relação ao que é exposto nas GTs. Com esse objetivo em mente, já em 1985, no livro Para uma nova gramática do português, Perini apresenta o problema da falta de coerência teórica e uma definição provisória do conceito de sujeito: No momento, não disponho de uma definição realmente completa e adequada a todos os casos; mas acho que a seguinte é uma aproximação: Sujeito é o termo com o qual o verbo concorda1 (PERINI, 1985, p. 17). No entanto, como o próprio Perini reconhece, a definição acima não é adequada a todos os casos e por isso não resolve o problema da falta de coerência teórica do conceito de sujeito. Atento a isso, dez anos mais tarde, em sua Gramática descritiva do português, Perini apresenta outra definição de sujeito, levemente modificada: “Sujeito é o termo da A caracterização do sujeito como o termo que concorda com o verbo é apresentada por Perini anos antes da publicação de Para uma nova gramática do português em sua tese, intitulada Gramática do infinitivo português, defendida em 1974. Nessa obra, Perini analisa a sentença “Houve dinossauros antigamente” e afirma: “Podemos ver que o SN dinossauros não é o sujeito superficial porque o verbo não concorda com ele, ficando na 3a pessoa do singular” (PERINI, 1977, p. 120). 1 110 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 oração que está em relação de concordância com o NdP”2 (PERINI, 1995, p. 77). O sujeito, esclarece Perini, harmoniza-se com o NdP em número e pessoa, sendo justamente essa harmonia a relação de concordância entre os dois constituintes. Assim, em “Meus sobrinhos comeram a melancia” o sujeito (meus sobrinhos) concorda (harmoniza-se em número e pessoa) com o NdP (comeram). O mesmo acontece com o sujeito “meu sobrinho” em relação ao NdP “comeu” em “Meu sobrinho comeu a melancia”. Entretanto, como mais uma vez reconhece o próprio Perini, ainda há problemas com essa nova definição de sujeito: A aplicação da definição de sujeito, a bem dizer, deixa certos casos duvidosos. Talvez o mais sério seja o do gerúndio, que não comporta desinências de pessoa-número, mas ainda assim é usualmente analisado como sendo o sujeito em frases como “Marivânia chegando, a farra vai começar” (PERINI, 1995, p. 78). Longe de ser um caso isolado, ou o mais sério, há vários outros em que a definição de Perini traz problemas. Em “A maioria das meninas foram ao parque”, por exemplo, se seguirmos a definição de sujeito da Gramática descritiva do português, deveremos classificar “as meninas” como o sujeito, já que esse é “o termo da oração que está em relação de concordância com o NdP”, e não “a maioria das meninas”. E em “A maioria das meninas foi ao parque”, o sujeito seria “a maioria”, não “a maioria das meninas”. Além disso, existem sentenças em que mais de um elemento concorda com o verbo, o que nos impossibilita identificar o sujeito pela definição de Perini. Dessa forma, em sentenças como “Os brasileiros são eles” e “A maçã podre é aquela”, temos dois “candidatos a sujeito” (“os brasileiros” e “eles” e “a maçã podre” e “aquela”, respectivamente), sendo a definição de Perini incapaz de apontar claramente qual o sujeito das sentenças dadas. Além de deixar “certos casos duvidosos”, a definição de sujeito proposta por Perini peca por não ser original, como ele mesmo admitiu ainda nos anos 1980: “Definir o sujeito em termos de concordância verbal NdP (núcleo do predicado) é, grosso modo, o verbo da oração. Assim, os NdPs das sentenças “Pedro desenhou um girassol” e “Ricardo teceu importantes críticas ao relatório” seriam os verbos “desenhou” e “teceu”, respectivamente. Em sentenças como “Sarita está dormindo”, em que há uma locução verbal, Perini (1995) afirma que o NdP é “dormindo”, e “está” é um auxiliar. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 111 não é, claro, nenhuma novidade; a definição se encontra, implícita ou explicitamente, em muitos trabalhos” (PERINI, 1989, p. 74). Também se encontram em muitos trabalhos, ao menos desde os anos 1980, críticas a tal definição. Maria Teonilda F. A. Pinto, por exemplo, em sua dissertação de mestrado,3 defendida em 1981, critica a definição de sujeito proposta por Mattoso Câmara Júnior,4 baseada na concordância verbal. Conforme Pinto, em algumas sentenças a concordância verbal não é o suficiente para a identificação do sujeito, como em “A testemunha sou eu”, “Minha testemunha era uma amiga” e “Luísa disse que parte dos problemas foram resolvidos”. Pinto também ressalta a “hipercorreção” em sentenças como “Faziam três anos que eu não o via” e “Haviam muitos fregueses no bar”, além de mostrar a ambiguidade com que as GTs tratam sentenças como “São seis horas”. Em vista desses problemas, Pinto afirma que a concordância verbal não é controlada apenas pelo sujeito e, portanto, não é uma propriedade exclusiva para a sua identificação. Além do mais, como já explicitado, sujeitos de orações no gerúndio não concordam com o verbo, fato que obrigou Perini a justificar sua posição: “A rigor, seria necessário negar que haja sujeito em ‘Marivânia...’, já que aí o verbo não concorda com nenhum dos termos. No entanto, sob vários outros pontos de vista, Marivânia funciona como se fosse um sujeito, o que cria um problema quanto a sua análise” (PERINI, 1995, p. 78). Mais à frente, Perini continua: Acontece que o sujeito, definido por sua relação de concordância com o verbo, apresenta também alguns traços que, se não estão presentes em todos os casos, estão presentes na maioria deles; por conseguinte, esses traços contribuem para delinear o protótipo da função que chamamos sujeito (PERINI, 1995, p. 79). Em seguida, a fim de corroborar sua justificativa, Perini apresenta traços dos casos de sujeito que seguem sua definição: a posição logo antes do NdP e a possibilidade de o sujeito ser retomado por pronome reto. Mais: reiterando o primeiro traço, Perini aponta o fato de que “as Deve-se observar que a dissertação de Maria Teonilda Pinto, intitulada Critérios psicologicamente identificadores de SNs sujeitos em português, consta na bibliografia de Perini (1989). 4 “Em Português, é a concordância com o verbo em número e pessoa gramatical que essencialmente assinala o sujeito” (CÂMARA JÚNIOR, 1964, p. 176). “A concordância verbal é assim, em português, o mecanismo sintático fundamental para a indicação de um substantivo sujeito” (CÂMARA JÚNIOR, 1975, p. 250). 3 112 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 condições que governam a possibilidade de ocorrência do sujeito antes ou depois do NdP se aplicam igualmente aos casos evidentes de sujeito e a casos como o de Marivânia” (PERINI, 1995, p. 78) e exemplifica: Podemos dizer “Chegou um amigo meu de Cuiabá”, mas não “* Está desenhando um sobrinho seu na biblioteca”. O que acontece igualmente com as sentenças no gerúndio: “Chegando um amigo meu, por favor receba-o bem”, mas não “* Desenhando um sobrinho meu na biblioteca, tive que ficar no quarto” (PERINI, 1995, p. 78). Esses traços evidenciariam, segundo Perini, que sua análise de que há um sujeito em orações no gerúndio está de fato correta, apesar de sua definição desse conceito não abranger esses casos. Um tanto contraditoriamente, porém, Perini classifica como sem sujeito a oração “Vendi meu jegue”, “já que não existe aí nenhum termo explícito que esteja em relação de concordância com o verbo”5 (PERINI, 1995, p. 78). Entretanto, é possível afirmar que Perini poderia argumentar que “sob vários outros pontos de vista” há um sujeito naquela oração, já que existem traços presentes nela que justificariam tal análise. Perini poderia, por exemplo, dizer que naquela oração existe um termo implícito que está em relação de concordância com o verbo, e que é possível identificá-lo pela desinência verbal, que é a mesma de “Eu vendi meu jegue”, sentença em que o sujeito segue a definição proposta. Ele poderia ainda afirmar que as sentenças “Vendi meu jegue” e “Eu vendi meu jegue” possuem o mesmo agente – o que ele, a propósito, realmente faz, ponderando: “O sufixo de pessoa-número vale, para efeito da aplicação de regras semânticas, como um sujeito pronominal, marcado com os traços de pessoa e número do sufixo. (Nesses casos, por comodidade, falarei de sujeito vazio.) (PERINI, 1995, p. 287). De acordo com Perini, isso só se dá no plano semântico, não no sintático. Logo, sentenças como “Vendi meu jegue” e “Eu vendi meu jegue”, conforme Perini, podem ter o mesmo agente, mas não o mesmo sujeito. Ora, por que dessa restrição? A resposta Na verdade, as sentenças com sujeito oculto (na terminologia das GTs) demandaram de Perini uma árdua investigação, como a apresentada em sua Sintaxe portuguesa (p. 75-92), na qual ele pondera os prós e os contras de identificar um sujeito em sentenças do tipo “Vendi meu jegue”, o que contrariaria sua definição desse conceito. Mas, como exposto acima, Perini (1995) optou por negar a existência de um sujeito em “Vendi meu jegue”, seguindo à risca, neste caso, sua definição de sujeito. 5 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 113 parece ser que, se Perini assumisse que há um sujeito em “Vendi meu jegue”, assumiria mais uma vez que sua definição de sujeito é incoerente. Não por acaso, ele chega a afirmar: Se (a) [“Cheguei ontem de Goiânia”] tem sujeito, será preciso trocar a definição de sujeito como termo que está em relação de concordância com o verbo. Essa definição se refere a um termo explícito, e é claro que não há nenhum elemento explícito em (a) que esteja em relação de concordância com o verbo. Como não é essa minha opção, deixarei a quem pretenda defender a existência de sujeito em (a) o trabalho de formular uma nova definição (PERINI, 1995, p. 366). A pergunta óbvia a se fazer aqui é: mas então por que Perini não formulou uma nova definição de sujeito ao se deparar com sentenças como “Marivânia chegando...”, que não seguem sua definição desse conceito? E ainda: por que Perini não formulou uma nova definição de sujeito ao se deparar com a sentença “O urso que me mordeu era branco”, sobre a qual ele afirma que “há razões para se analisar que como o sujeito de mordeu” (PERINI, 1995, p. 152)? A razão principal para se analisar que como sujeito de [“O urso que me mordeu era branco”] – seguindo, aliás, a análise tradicional – é a seguinte: embora me mordeu seja aparentemente uma oração sem sujeito, não se pode acrescentar um sujeito a ela: * O urso que ele me mordeu era branco (PERINI, 1995, p. 152). No entanto, é evidente que o pronome relativo “que” não é “o termo da oração que está em relação de concordância com o NdP”. Aliás, “o urso”, seguindo a definição de Perini, deveria ser classificado como sujeito da oração (“O urso que me mordeu...”; “Os ursos que me morderam...”). Assim, por que Perini tampouco formulou uma nova definição de sujeito ao se deparar com sentenças cujos sujeitos não seguem sua definição desse conceito? Nenhuma resposta coerente a essa pergunta pode ser dada com base no que é apresentado na Gramática descritiva do português. Nem com base no que é apresentado na Gramática do português brasileiro ou na Gramática descritiva do português brasileiro, nas quais Perini mantém em linhas gerais sua análise do conceito de sujeito (cf. PERINI, 2010, p. 66ss; PERINI, 2016, p. 93ss). Dessa maneira, o conceito de sujeito sofre nas três gramáticas de Perini do velho 114 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 problema da falta de coerência teórica, assim como os demais conceitos gramaticais.6 Mais importante, porém, do que listar exaustivamente os casos de falta de coerência teórica encontrados nas gramáticas de Perini, nas gramáticas de outros linguistas e nas gramáticas tradicionais – o que o leitor pode fazer por si só com facilidade – é entender por que a existência de definições incoerentes dos conceitos gramaticais é um problema sem solução (logo, não é realmente um problema). 3 Das “semelhanças de família” wittgensteinianas à teoria dos protótipos de Rosch Dando continuidade às pesquisas de autores como M. A. K. Halliday (1961) e David Crystal (1967), multiplicaram-se nos anos 1970 os trabalhos de linguistas a respeito do fato de que os conceitos gramaticais não têm uma essência definidora, e sim características que estão presentes de maneiras variadas em seus exemplos (e.g. KEENAN, 1976; LAKOFF, 1973; ROSS, 1972, 2004 [1973]). Influenciaram-nos nesse debate tanto os artigos clássicos sobre categorização da psicóloga Eleanor Rosch (e.g. 1973, 1975a, 1975b, 1978) quanto os textos do filósofo Ludwig Wittgenstein sobre “semelhanças de família”,7 ideia apresentada por ele nos anos 1930 em seu Livro azul: Para uma discussão detalhada sobre a falta de coerência teórica nas GTs, na Gramática descritiva do português e no trabalho de outros teóricos da linguagem, ver Silva (2006). 7 Apesar de ser amplamente atribuída a Wittgenstein a autoria da ideia das “semelhanças de família” (e.g. ROSCH; MERVIS, 1975, p. 574-575), na realidade ele teria adquirido essa noção de Oswald Spengler, conforme Brian McGuinness (2012, p. 9, n. 16, e p. 301) e Ilse Somavilla (2010, p. 175). Hans-Johann Glock (1998, p. 324), por sua vez, cogita ainda outras duas fontes a que Wittgenstein pode ter recorrido para obter esse conceito: o livro Além do bem e do mal, de Friedrich Nietzsche, e o livro Geometry in the sensible world, de Jean Nicod. Independentemente de qual tenha sido o autor de quem Wittgenstein realmente adquiriu o conceito de “semelhanças de família”, o fato é que ele nunca lhe deu o devido crédito. A propósito, Wittgenstein muitas vezes apresentou como ideias próprias ideias de outras pessoas. No livro Wittgenstein in Cambridge (2012, p. 229), por exemplo, McGuinness explicita algumas observações feitas por Piero Sraffa a Wittgenstein que foram reproduzidas no Livro castanho sem que lhe fosse dado crédito algum. Já no Dicionário Wittgenstein (1998, p. 229), Glock informa que a comparação entre a linguagem e uma “velha cidade”, apresentada no § 18 das Investigações filosóficas, consta nos textos de dois autores que Wittgenstein 6 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 115 Sentimo-nos por exemplo inclinados a pensar que deve existir algo em comum a todos os jogos, e que esta propriedade comum é a justificação para a aplicação do termo geral ‘jogo’ aos diversos jogos; ao passo que os jogos formam uma família cujos membros têm parecenças. Alguns têm o mesmo nariz, outros as mesmas sobrancelhas e outros ainda a mesma maneira de andar; e estas parecenças sobrepõem-se (WITTGENSTEIN, 1992, p. 47-48). Nas Investigações filosóficas, livro publicado postumamente em 1953, Wittgenstein reapresenta as semelhanças de família de forma mais detalhada: Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiros, de cartas, de bola, torneios esportivos etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”, – mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense, mas veja! – Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de carta: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem. – São todos “recreativos”? Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou há em todos um ganhar e um perder, ou uma concorrência entre os jogadores? Pense nas paciências. Nos jogos de bola há um ganhar e um perder; mas se uma criança atira a bola na parede e a apanha outra vez, este traço desapareceu. Veja que papéis desempenham a habilidade e a sorte. E como é diferente a habilidade no xadrez e no tênis. Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento de divertimento está presente, mas quantos dos outros traços característicos havia lido: Ludwig Boltzmann e Fritz Mauthner. Nenhum crédito, porém, foi dado a eles por Wittgenstein. No próprio Dicionário Wittgenstein (p. 290), Glock também especula que a concepção defendida por Wittgenstein de que uma sentença é uma unidade mínima para a realização de um lance em um jogo de linguagem tenha sido inspirada em parte em Karl Bühler, apesar de ressaltar que a ideia se origina de uma visão anterior, partilhada por Platão, Aristóteles, Bentham e Frege: a de que somente as proposições, e não as palavras individuais, dizem ou comunicam algo. Novamente, porém, nenhum crédito foi dado a autor algum por Wittgenstein. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 116 desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanças surgirem e desaparecerem (WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 66). Com as semelhanças de família, Wittgenstein rompe com o modelo clássico de categorização, associado principalmente a Aristóteles (e.g. LAKOFF, 1987; ROSCH, 1975b; TAYLOR, 2003). Segundo esse modelo, as categorias são entidades claramente delimitadas e caracterizadas por uma essência definidora ou por um conjunto de traços definidores, sendo todos os membros da categoria igualmente representativos dela. Para Wittgenstein, como ilustrado com as semelhanças de família dos jogos, os exemplos de um conceito têm características variadas e sobrepostas, não havendo portanto algo em comum a todos eles que nos permitiria defini-lo ou delimitá-lo. Como consequência direta do fato de os conceitos não terem uma essência definidora, Wittgenstein sugere que todo conceito deve ser ensinado por meio de exemplos: Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Creio que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: ‘isto e outras coisas semelhantes chamamos de jogos’. E nós próprios sabemos mais? Será que apenas a outrem não podemos dizer exatamente o que é um jogo? – Mas isto não é ignorância. Não conhecemos os limites, porque nenhum está traçado. Como disse, podemos – para uma finalidade particular – traçar um limite. É somente a partir daí que tornamos o conceito útil? De forma alguma! A não ser para esta finalidade particular. Tampouco tornaria útil a medida de comprimento ‘um passo’ aquele que desse a definição: um passo = 75 cm. E se você me disser: ‘Mas antes não havia nenhuma medida de comprimento exata’, retrucarei: ‘Muito bem, então era uma medida inexata’. – Se bem que você ainda me deva a definição de exatidão (WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 69). E ainda: E exatamente assim explica-se o que é um jogo. Dão-se exemplos e quer-se que eles sejam compreendidos num certo sentido. – Mas com essa expressão não quero dizer que essa pessoa deva ver agora nesses exemplos o algo em comum que eu – por alguma razão – não posso exprimir. Mas sim que tal pessoa deva agora empregar esses exemplos de um determinado modo. A exemplificação não é aqui um meio indireto de elucidação, – na falta de outro melhor. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 117 Pois toda elucidação geral pode também ser mal compreendida. Eis como jogamos o jogo. (Refiro-me ao jogo de linguagem com a palavra ‘jogo’.) (WITTGENSTEIN, 1999 [1953], § 71) Convencidos pela argumentação de Wittgenstein, filósofos, antropólogos, linguistas e psicólogos levariam adiante toda essa discussão sobre semelhanças de família nos anos seguintes à publicação das Investigações filosóficas. Entre esses pesquisadores, Rosch sobressaiu não apenas pela consistência e amplitude de seus experimentos sobre categorização, mas também pelos desdobramentos dos resultados a que chegou, com destaque para a sua teoria dos protótipos. Conforme Rosch, uma categoria é “um número de objetos que são considerados equivalentes”8 (ROSCH et al., 1976, p. 383), sendo as categorias “designadas de modo geral por nomes, e.g., cachorro, animal”9 (ROSCH et al., 1976, p. 383). Dessa maneira, para Rosch, “uma categoria existe sempre que dois ou mais objetos ou eventos distinguíveis são tratados equivalentemente”10 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 89), recebendo o mesmo nome, por exemplo. De forma mais específica, Rosch (1978) afirma que o processo de categorização se dá em duas dimensões: uma vertical e uma horizontal. Para esclarecer seu ponto de vista, Rosch chama a atenção do leitor para objetos simples do cotidiano como uma cadeira. Segundo Rosch, a categoria cadeira está abaixo da categoria móveis e acima de categorias como cadeira de balanço. Em outros termos, a categoria cadeira é menos inclusiva do que a categoria móveis (que abrange cadeiras, mesas, camas, etc.) e mais inclusiva do que a categoria cadeira de balanço. Essas três categorias, no modelo teórico de Rosch, relacionam-se na dimensão vertical. Ainda de acordo com Rosch, a categoria cadeira também está no mesmo nível de outras categorias – isto é, na dimensão horizontal. Um exemplo seria a categoria de carro, que igualmente está abaixo da categoria mais inclusiva veículo (que abrange carros, motos, ônibus, etc.) e acima de categorias menos inclusivas como jipe. Um sério problema a essa teoria, porém, advém do fato de que “sujeitos individuais concordam que alguns exemplares de uma “a number of objects which are considered equivalent”. “are generally designated by names, e.g. dog, animal”. 10 “A category exists whenever two or more distinguishable objects or events are treated equivalently”. 8 9 118 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 categoria são mais representativos do que outros, e sujeitos diferentes consistentemente escolhem os mesmos exemplos como os mais representativos de uma categoria”11 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 96). Assim, “é aceitável dizer ‘Um papagaio é uma ave de verdade’, mas não ‘Um pinguim é uma ave de verdade’”,12 afirmam Mervis e Rosch (1981, p. 97) seguindo George Lakoff (1973). Para explicar esses fenômenos, Rosch desenvolveu sua teoria dos protótipos, definidos como “os casos mais claros, os melhores exemplos”13 (ROSCH, 1975a, p. 544). Segundo Rosch, a diferença de avaliação que as pessoas fazem sobre a categorização de um papagaio e de um pinguim como aves se dá porque o primeiro é um representante prototípico da categoria, mas o segundo não. Conforme Rosch, um representante prototípico é aquele que tem um grande número de características comuns à maioria dos membros da categoria. Por sua vez, “membros mais pobres das categorias costumam ter atributos de conjuntos de atributos correlacionados a outras categorias”14 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 101). O pinguim, por exemplo, apesar de pôr ovos e ter asas, não sabe voar, diferentemente de uma ave prototípica como o papagaio. Além disso, o pinguim apresenta características próprias a outras categorias, estando por exemplo apto a nadar e adaptado a viver sob baixas temperaturas, como os mamíferos foca e leão-marinho. 4 Semelhanças de família gramaticais Com base na filosofia de Wittgenstein e nas pesquisas de Rosch sobre categorização, podemos afirmar, como o fizeram alguns linguistas nos anos 1970, que os conceitos gramaticais, assim como os conceitos de jogos, de móveis, de aves, etc., têm vários traços que formam uma família, no sentido wittgensteiniano. Tome-se como exemplo mais uma vez o conceito de sujeito. O traço “ser sobre o qual se faz uma declaração” está presente em uma sentença afirmativa como “Maria está doente”, mas desaparece na interrogativa “Maria está doente?”. Há também os traços “Individual subjects agree that some exemplars of a category are more representative than others, and different subjects consistently choose the same examples as most representative of the category”. 12 “it is acceptable to say ‘A sparrow is a true bird’, but not ‘A penguin is a true bird’”. 13 “clearest cases, best examples”. 14 “Poorer members of categories are likely to contain attributes from the correlated attribute clusters of other categories”. 11 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 119 referentes às classes de palavras que podem ocupar a posição de sujeito: um substantivo (“Elisa quebrou a perna”); um pronome interrogativo (“Quem quebrou a perna?”); um pronome demonstrativo (“Isto é um problema”); um pronome indefinido (“Ninguém sabia o que fazer”); um pronome relativo (“Os brasileiros, que adoram futebol, comemoram mais uma conquista”); um verbo (“Ler é indispensável”); um numeral (“Ambos foram detidos”). Orações também podem ocupar a posição de sujeito (“É preciso que você saia”). E mesmo um termo elíptico (não materializado) pode ocupar a posição de sujeito (“Fomos acampar na praia”). Há ainda modos diferentes de esses “tipos” diferentes de sujeito se relacionarem com seus respectivos verbos: nuns casos há concordância (como em “Maria está doente”); noutros não há concordância (como em “Marivânia chegando, a farra vai começar”); em outros ainda apenas “parte” do sujeito concorda com o verbo (“A maioria das meninas quer/querem sorvete”). Semanticamente, o sujeito pode ser agente (“Ludmilla jogou a bola”), paciente (“A bola foi jogada por Ludmilla”), instrumento (“A chave abriu a porta”) e assim por diante. Além disso, o sujeito pode ser anteposto ao verbo (como em “Ninguém sabia o que fazer”) ou posposto (“Chegaram os meninos”). Dessa maneira, tal qual o conceito de jogos, não se pode definir o conceito de sujeito porque não há algo intrínseco a ele, uma essência definidora, e sim várias características (traços) dos mais diversos exemplos de sujeitos, as quais se sobrepõem. A fim de reforçar nossa argumentação, vejamos outros quatro conceitos gramaticais e seus traços sobrepostos, começando pelo conceito de numeral. Cunha e Cintra (2001, p. 369) apresentam a seguinte definição desse conceito: “Para indicarmos uma quantidade exata de pessoas ou coisas, ou para assinalarmos o lugar que elas ocupam numa série, empregamos uma classe especial de palavras – os numerais”. Ora, se os numerais são palavras que indicam quantidades exatas de pessoas e de coisas, frações e dízimas periódicas (3,222...) não poderiam ser classificadas como numerais. Além disso, se os numerais “assinalam o lugar que as pessoas ou coisas ocupam numa série”, o adjetivo “último” deveria ser classificado como numeral em “Paulo chegou em último lugar”, tal qual “sétimo” recebe essa classificação em “Paulo chegou em sétimo lugar”. Mais: se utilizássemos o traço “a classe das palavras que determinam quantidades” como o característico desse conceito, deveríamos incluir entre os numerais o substantivo “infinito”. Diante dessas características sobrepostas, fica nítida a impossibilidade de atribuir 120 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 um traço característico ao conceito de numeral ou de delimitá-lo com precisão, o que inviabiliza defini-lo coerentemente. Já os adjetivos geralmente são identificados pelo traço “palavras que atribuem qualidades aos substantivos”. Entretanto, nem tudo que atribui qualidade aos substantivos é um adjetivo, nem tampouco os adjetivos atribuem qualidades apenas a substantivos. Há verbos, em formas nominais, que podem atribuir qualidades a substantivos, especificando suas características, como em “dinheiro perdido” e “água borbulhando”. Além do mais, substantivos também podem modificar substantivos, especificando suas características, como em “cidade fantasma” e “menina mulher”. Orações subordinadas adjetivas restritivas igualmente modificam substantivos: “Aquele é o rapaz que perdeu a aposta”. E existem também locuções que modificam substantivos, como a locução “de ferro” (preposição + substantivo) em “panela de ferro”. Para complicar a situação, os adjetivos também podem modificar verbos (atribuir qualidades a eles), como ressalta Celso Pedro Luft (1985, p. 19). Outro traço dos adjetivos é sua “possibilidade de exercer as funções de predicativo e de adjunto adnominal” (CEGALLA, 1998, p. 154). Mas verbos, em formas nominais, também podem ser predicativos (“A água está borbulhando”; “O dinheiro está perdido”) e adjuntos adnominais (“O dinheiro perdido foi recuperado”; “A água borbulhando cozinhou as batatas”). Em vista dessas semelhanças de família, também fica clara a impossibilidade de atribuir um traço característico ao conceito de adjetivo. Os substantivos, por sua vez, frequentemente recebem uma definição próxima a “palavra com que designamos ou nomeamos os seres em geral” (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 177). Esse traço está presente em “flor”, “menino” e “anjo”, mas não em “música”, “dor” e “ciência”. O traço “palavra que serve de núcleo do sujeito, do objeto direto, do objeto indireto e do agente da passiva” (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 177) não nos possibilita definir esse conceito porque nem tudo que pode ser sujeito, objeto direto e indireto e agente da passiva é um substantivo (pronomes pessoais e interrogativos, por exemplo, podem assumir essas quatro funções sintáticas). Além disso, o traço presente nos substantivos de poder ser precedido por um determinante (artigo, pronome demonstrativo, etc.) também está presente nos pronomes relativos (o qual, os quais, o que, etc.), por exemplo. Dessa forma, mais uma vez as semelhanças de família nos impedem de definir coerentemente o conceito de substantivo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 121 Por fim, passemos aos advérbios, que Perini (1995, p. 342) considera a classe de palavras mais complexa e multifacetada de todas as estabelecidas nas GTs. Tradicionalmente, os advérbios são definidos como “palavras que modificam um verbo, adjetivo ou outro advérbio”. Mas novamente nem tudo que modifica um verbo, adjetivo ou outro advérbio é um advérbio, nem tampouco todo advérbio modifica um verbo, adjetivo ou outro advérbio. Nas sentenças “O problema, lamentavelmente, vem de muitos anos” e “Eu, francamente, não achava lá muita graça nas piadas de tio Angelim”, há advérbios que não modificam um verbo, adjetivo ou outro advérbio, ou seja, não possuem o traço utilizado para definir esse conceito (NEVES, 2003, p. 82). Além disso, como bem observa Perini (1995, p. 338-342), afirmar que um advérbio pode modificar outro advérbio traz à definição dessa classe um elemento de circularidade, o que a inviabiliza. Pior, completa Perini (1995, p. 342): como o conceito de modificação é vago, a definição de advérbio que o utiliza é também vaga. Sintaticamente, prossegue Perini, as palavras tradicionalmente classificadas como advérbios exercem funções bem diferentes: (a) negação verbal (“Seu tio não apareceu na estação”); (b) intensificador (“Almeida é muito magro”, “Almeida estava completamente bêbado” e “Essa proposta é francamente ilegal”); (c) adjunto circunstancial (“Ela ri muito”); (d) atributo (“Terminamos a pintura rapidamente”, “Ela me revelou tudo francamente”); (e) adjunto adverbial (“Ela decorou o apartamento completamente”) e (f) adjunto oracional (“Francamente, acho que ele nos enganou”). Perini chama ainda a atenção do leitor para o fato de que os advérbios de modo (“rapidamente”, “completamente” e “francamente”) são sintaticamente bem diferentes entre si. Diante de um quadro tão amplo de funções, Perini conclui ser possível haver não uma, mas várias classes de palavras sob o rótulo de advérbio. Essa possibilidade, claro, é uma consequência direta do fato de que os conceitos gramaticais têm vários traços que se sobrepõem. Outra consequência direta desse fato é a falta de limites rígidos entre os conceitos gramaticais, o que possibilita formar um sem-número de categorias gramaticais distintas das encontradas nas GTs. Mattoso Câmara Júnior, por exemplo, em sua Estrutura da língua portuguesa (1976), utiliza critérios morfossemânticos e funcionais (ou seja, de acordo com a função que o vocábulo desempenha na sentença) para estabelecer suas classes de palavras: nome (adjetivo e substantivo), verbo, advérbio, conectivo (coordenadores e subordinadores (preposição e conjunção)) e pronome. 122 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 Cristina Schneider, por sua vez, no artigo “Tentativa de classificação dos vocábulos segundo um critério morfológico”, vale-se do uso ou não de sufixos flexionais ou derivacionais15 para propor cinco classes de palavras: nomes (agrupando as tradicionais classes de substantivo, adjetivo e numeral, porque estas admitem flexão em gênero e número), pronomes, verbos, advérbios e conectivos (agrupando novamente, tal qual na proposta de Mattoso Câmara, as tradicionais classes de preposição e conjunção, porque estas não admitem derivação nem flexão). As tradicionais classes de artigo e de interjeição não são tidas como classes de palavras por Schneider porque, segundo ela, os artigos seriam apenas morfemas marcadores de gênero nos nomes (o artista, a artista, a criança, o livro) e as interjeições seriam simplesmente um elemento da linguagem emotiva e não da linguagem intelectiva. Já Miriam Lemle propõe 10 classes de palavras no livro Análise sintática: nomes, adjetivos, verbos, determinantes, quantificadores, preposições, advérbios, complementizadores, conjunções e antequessor (que abarca os pronomes relativos e as wh-words (when, who, what, etc.), isto é, palavras como “que”, “quem”, “qual”, “quando”, “quanto”, “como”, “cujo” e “onde”. Mais recentemente, em sua Gramática do português brasileiro (2010), Perini apresenta as classes dos nominais – que se subdividem em nomes (substantivos e adjetivos), pronomes, artigos, predeterminante (“todos”) e quantificadores (“cada”, “poucos”, “muitos”, etc.) –, verbos, adverbiais e conectivos – que se subdividem em preposições, conjunções e coordenadores (tradicionalmente chamados de “conjunções coordenativas”). No entanto, ressalva Perini, “trata-se mais de um programa de pesquisa do que de uma exposição de resultados – no atual momento, é o que se pode oferecer” (2010, p. 294). Na verdade, dadas as semelhanças de família gramaticais, não se poderá nunca oferecer uma lista definitiva das classes de palavras, bem como das demais categorias gramaticais. Nem se poderá defini-las coerentemente – com uma ou outra exceção, como a classe dos verbos, com os seus “sufixos característicos (andamos, andam, andava, andasse)” (PERINI, 2010, p. 307). Assim, é pura e simplesmente impossível elaborar uma gramática que seja “objetiva, coerente e uniforme”, como almejava Amini Hauy (1986, p. 4). Prova disso é que sua Gramática da língua portuguesa Para uma discussão sobre as dificuldades que o grau representa em português para a separação entre flexão e derivação, ver Gonçalves (2016). 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 123 padrão, publicada em 2015, não é objetiva, nem coerente, muito menos uniformiza as categorias gramaticais, como se atesta ao compará-la com as gramáticas de Bagno, Castilho, Perini, Vitral... 5 Um estímulo à investigação e ao ensino Conforme Hauy (1986, p. 4), a língua portuguesa deveria “ser objeto de um trabalho persistente de sistematização objetiva, coerente e uniforme, alicerçado numa atitude científica de análise dos fatos gramaticais”, a fim de que o ensino gramatical deixasse de ser “deficiente e improdutivo”. Considerando-se, porém, que não se pode estabelecer cabalmente quais são as categorias gramaticais, nem se pode defini-las coerentemente, a questão que imediatamente se coloca diz respeito a como então ensinar gramática de forma eficiente e produtiva em escolas de nível fundamental e médio. Afinal, como bem ponderou Perini ainda nos anos 1970, é fato que a estrutura da língua portuguesa não é cabalmente conhecida, mas isso não deve ser empecilho a que nos dediquemos ao seu estudo – longe disso, deve ser antes um estímulo à investigação. Mas, evidentemente, é preciso mudar nossa atitude diante da matéria: já não se trata de um corpo de conhecimentos preexistentes a ser assimilado de maneira passiva, mas uma teoria incompleta e insuficiente em muitos pontos (embora não desinteressante), que deverá ser criticada e desenvolvida, com base nos fatos da língua. Só essa mudança de atitude já será bastante para dar novo atrativo à disciplina; isso porque, apesar do que se diz, tanto o professor quanto o aluno têm, em geral, uma grande curiosidade e um desejo genuíno de aprender. Por outro lado, ao contribuir para o desenvolvimento do raciocínio independente e do espírito crítico, o estudo ativo da gramática terá utilidade precisamente em um ponto em que o nosso sistema educacional é lamentavelmente falho (PERINI, 1978, p. 4). Em face do desafio de apresentar métodos mais eficazes de ensinar gramática e ajudar a tornar a disciplina mais atrativa apesar de suas incoerências teóricas, pesquisadoras como Eunice Pontes (1986) e Maria Elizabeth Saraiva (1999) propuseram, com base na teoria dos protótipos de Rosch, a ideia de ensinar aos alunos em primeiro lugar os casos prototípicos dos conceitos gramaticais e só depois passar aos casos controvertidos, os 124 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 quais “mesmo linguistas têm dificuldades em decidir” (PONTES, 1986, p. 279). Como esclarece Saraiva em diálogo com Rosch, os casos prototípicos são aqueles em que os traços característicos de determinado conceito gramatical estão presentes. O conceito de sujeito, por exemplo, segundo Saraiva, além de ser semanticamente um agente e discursivamente um tópico, tem os seguintes traços sintáticos característicos: 1. a relação de concordância entre o sujeito e o verbo [+CV] 2. a posição típica pré-verbal [+ANT] 3. o caso nominativo que o sujeito recebe, o que pode ser expresso como a possibilidade do sujeito ser retomado (substituído) por pronome pessoal do caso reto [+Pr reto] (SARAIVA, 1999, p. 108). Esses traços prototípicos de sujeito, na verdade, já haviam sido apontados por outros autores, como Perini (1989, p. 93-94) e Francisco Saviolli (1985, p. 7). Além do mais, nem Perini, nem Saviolli, nem Saraiva conseguiram explicar convincentemente os critérios de que se valeram para propor esses traços. Sem fugir ao problema, Perini (1989) admite que ainda faltava uma definição rigorosa do que seja um protótipo, mas sugere alguns critérios para se apontar um traço gramatical como prototípico. Segundo Perini (1989, p. 60-61), podemos afirmar que determinado traço gramatical é prototípico quando ele é: a) especialmente frequente no discurso; ou b) especialmente frequente na descrição, ou seja, crucial para a formulação de grande número de regras, princípios e itens léxicos; ou c) crucial na formulação das regras “mais importantes” da gramática (o que coloca, evidentemente, a questão adicional de um critério de “importância” de regras). d) Especialmente frequente nas línguas do mundo, ou seja, presente em muitas gramáticas; ou e) Especialmente frequente e/ou importante em uma língua particular (o que faria com que determinadas entidades fossem prototípicas em uma língua, mas não em outra). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 125 Contudo, de acordo com o próprio Perini, (a), (b) e (c) enfrentam a dificuldade de esclarecer o que se entende por “frequência” ou “preponderância”. Já (d) e (e) “delineiam o campo de validade da noção, ou seja, o universo das línguas humanas ou cada língua em particular” (PERINI, 1989, p. 61). Dessa forma, temos em (e) uma caracterização de protótipo no âmbito de uma língua particular, e em (d) uma caracterização que leva em conta o estudo comparativo de línguas diversas. Diante desses obstáculos, Perini inicialmente tende a adotar (c) como a melhor conceituação de protótipo. Porém, tendo em vista a difícil distinção entre regras e princípios importantes e regras e princípios não importantes, ele passa a adotar (b) como uma caracterização mais satisfatória de protótipo. Apesar disso, Perini ressalta por fim que a caracterização do que seja um protótipo é um problema longe de uma solução definitiva. Haja vista as semelhanças de família, pode-se afirmar com segurança que se trata de um problema sem solução. Assim, não espanta que outros autores tenham proposto traços prototípicos de sujeito diferentes daqueles propostos por Saviolli, Perini e Saraiva. Maria Teonilda Pinto (1981, p. 108), por exemplo, baseando-se em pesquisas feitas entre alunos, chega à conclusão de que os sujeitos com as propriedades + agente, + tópico, + animado, + empatia “são mais altamente identificadores de um SN sujeito”. Eunice Pontes (1986, p. 170), por sua vez, afirma: “O sujeito mais típico em português me parece aquele que é agente na oração ativa”. Dado que não há critérios objetivos para decidir quais são os traços do sujeito prototípico, assim como dos demais conceitos gramaticais, a proposta de Pontes e de Saraiva de começar pelos casos prototípicos e só depois passar aos casos controvertidos não resolveria de vez o problema relativo a como ensinar gramática de forma eficiente e produtiva em nossas escolas de nível fundamental e médio. Isso não significa, porém, que a sugestão dessas autoras deva ser simplesmente descartada. Afinal, como bem observou o professor Castilho, o ecletismo é a opção mais saudável para os docentes de língua portuguesa. Mas mais importante: há muitos anos já se sabe com base em experimentos empíricos (e.g. HEIDER,16 1971, 1972; ROSCH, 1973) que “categorias são aprendidas mais facilmente e mais precisamente se a exposição inicial 16 Trata-se da mesma Eleanor Rosch, que assinou Heider em seus trabalhos até 1972. 126 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 à categoria se dá apenas por exemplos representativos”17 (MERVIS; ROSCH, 1981, p. 98-99). Assim, apesar de ser impossível estabelecer um limite claro de casos prototípicos dos conceitos gramaticais, é inegável que existem casos mais simples de analisar do que outros e que esses casos facilitam o aprendizado desses conceitos. Por isso, ao trabalhar com o conceito de sujeito, por exemplo, o professor poderia partir de casos indubitavelmente simples, como “João quer sorvete” e “Pedro chutou a gaiola”, e só depois passar para casos mais complexos, como “Quem quer sorvete?” e “Onde estão os meninos?”, até finalmente chegar aos casos duvidosos, como “A rainha sou eu”, em que 67% dos entrevistados por Maria Teonilda Pinto (1981) disseram que o sujeito é “a rainha” e 30%, “eu”. E, ao apresentar casos duvidosos, caberia ao professor explicar à turma como as semelhanças de família e a falta de limites rígidos dos conceitos gramaticais inviabilizam encerrar de vez a discussão sobre eles. Para demonstrar esse fato, sem nunca perder de vista que o estudo gramatical é uma “excelente oportunidade para o professor verificar com os seus alunos a validade ou não de certos conceitos de dada teoria” (UCHÔA, 2007, p. 74), o professor poderia inicialmente levar os alunos a “comparar gramáticas, item por item, verificando as incoerências, falhas e erros” (LUFT, 1985, p. 99). Depois disso, os alunos poderiam ser estimulados a elencar definições incoerentes encontradas tanto em gramáticas (tradicionais e não tradicionais) quanto em livros didáticos, confrontar algumas propostas de delimitar casos prototípicos, listar exemplos discrepantes dados por gramáticos e linguistas em suas análises... Sendo um pouco mais ousado, o professor, sobretudo no ensino médio, poderia provocar os alunos a se posicionar em relação a debates específicos que existem entre os pesquisadores da língua portuguesa. Schneider (1974) e Cunha e Cintra (2001), por exemplo, contrariando o que se estabeleceu na Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) de 1959, não consideram as interjeições uma classe de palavras. Mas os argumentos apresentados por esses autores para fundamentar esse parecer são satisfatórios? Perini, por sua vez, no ensaio “O adjetivo e o ornitorrinco”, afirma não acreditar ser possível distinguir as tradicionais classes de adjetivos e substantivos, havendo neste caso para ele “ou um grande número de classes ou, mais provavelmente, uma grande classe “(...) categories are learned more easily and more accurately if initial exposure to the category is through only representative exemplars”. 17 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 127 composta de membros cujas propriedades são muito variadas” (PERINI, 2001, p. 42). Essa polêmica declaração, porém, é respaldada por dados sólidos no próprio ensaio, bem como nas gramáticas do autor? E é convincente a afirmação do mesmo Perini (1995, 2010, 2016), contrária tanto às gramáticas tradicionais quanto por exemplo a Castilho (2010, p. 289), de que as frases “Vendi meu jegue” e “Rasguei o cheque” não tem sujeito, mas apenas agente, indicado pelo sufixo de pessoa-número (-ei)? E quais os prós e os contras da análise de Perini, da análise das gramáticas tradicionais e da análise de Castilho? Todas essas poucas propostas didáticas, que evidentemente podem ser multiplicadas sem dificuldades, são próprias ao “estudo ativo da gramática” de que fala Perini e atendem à necessidade de “procurar atividades que envolvam a observação e eventual manipulação de fatos da língua, com o objetivo de construir hipóteses a respeito deles” (PERINI, 2016, p. 57). No entanto, é necessário destacar que tais propostas didáticas, em conformidade com o ponto de vista pedagógico “não ortodoxo” e “dissidente” de Oliveira e Quarezemin (2016, p. 37), demandam “um professor criativo” (p. 26), que “leva o aluno a raciocinar, a construir suas hipóteses e testá-las, (...) que não apresenta as respostas e, acima de tudo, que está preparado para avaliar respostas que não eram esperadas, respostas originais dadas pelos alunos” (p. 26-27). Agindo assim, esse professor certamente contribuiria para o “desenvolvimento do raciocínio independente e do espírito crítico” de nossos alunos, cuja importância foi enfatizada não somente por Perini, mas por outros pesquisadores, como Sírio Possenti, que declarou: As sugestões [para trabalhar a língua portuguesa em salas de aula] se resumem a uma única grande ideia: fazer com que o ensino do português deixe de ser visto como a transmissão de conteúdos prontos, e passe a ser uma tarefa de construção de conhecimentos por parte dos alunos, uma tarefa em que o professor deixa de ser a única fonte autorizada de informações, motivações e sanções (POSSENTI, 1996, p. 95). Em outras palavras, uma tarefa em que não há espaço para a “educação bancária”, tão criticada por Paulo Freire, na qual o professor ensina e os alunos são ensinados; o professor sabe tudo e os alunos não sabem nada; o professor pensa para si e para os alunos; o professor fala e os alunos escutam; o professor impõe sua opinião e os alunos submetem-se a 128 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 ela; o professor é sujeito do processo de formação e os alunos são simples objetos dele (FREIRE, 1979, p. 79). Em contraposição a esse modelo pedagógico, Freire defende uma pedagogia humanizante, libertadora e problematizadora, que “está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se comprometem na procura e na transformação criadora” (FREIRE, 1979, p. 81). Em vista dessa resposta, Freire esclarece que os esforços do educador humanista “devem corresponder com os dos alunos para comprometer-se num pensamento crítico e numa procura da mútua humanização” (p. 80). Ou seja, “seus esforços devem caminhar junto com uma profunda confiança nos homens e em seu poder criador” e “para obter este resultado deve colocar-se ao nível dos alunos em suas relações com eles” (FREIRE, 1979, p. 80). Infelizmente, porém, o modelo pedagógico que ainda predomina em nossas escolas é o da educação bancária, mantendo atual o alerta de Freire de que “nada ou quase nada existe em nossa educação, que desenvolva no nosso estudante o gosto da pesquisa, da constatação, da revisão dos ‘achados’ – o que implicaria no desenvolvimento da consciência transitivo-crítica” (FREIRE, 1980, p. 94). Assim, prossegue Freire mais adiante, não há em nossa educação “quase nada que nos leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras. Tudo ou quase tudo nos levando, desgraçadamente, pelo contrário, à passividade, ao ‘conhecimento’ memorizado apenas, que, não exigindo de nós elaboração ou reelaboração, nos deixa em posição de inautêntica sabedoria” (p. 96). Em suma: Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhe uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção (FREIRE, 1980, p. 96-97). Não por coincidência em acordo com Freire, Oliveira e Quarezemin apontam para a importância desse esforço de recriação, de procura e de reinvenção com sua proposta de que “o aluno seja o Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 129 gramático, que ele construa gramáticas” (p. 18). Ao assumirem, porém, o arcabouço gerativista como fundamento de sua metodologia, Oliveira e Quarezemin acabaram por deixar em segundo plano o debate sobre os conceitos gramaticais básicos, já que “tem havido relativamente pouca discussão nos círculos gerativistas de uma questão que costumava ser considerada fundamental, qual seja, como definir unidades básicas como ‘palavra’, ‘substantivo’, ‘verbo’, etc.”18 (TAYLOR, 2003, p. 202).19 Com isso, assim como os gerativistas de modo geral, Oliveira e Quarezemin minimizaram o fato de que “a descrição da estrutura de uma língua depende crucialmente de classificações: classes de palavras, classes de sintagmas, classes de morfemas” (PERINI, 2016, p. 399). Jogar luz sobre essa dependência, geralmente desconsiderada pelos que refletem sobre o ensino de língua materna e de gramática, foi uma das motivações que nos levaram a propor que o professor ajude os alunos a perceber que toda classificação gramatical é um constructo teórico e, portanto, pode e deve ser questionada, recriada e reinventada. Uma percepção que, infelizmente, escapa à maioria dos próprios professores de língua portuguesa. 6 Considerações finais Na introdução deste artigo afirmamos que, com nossa proposta de que os professores de português estimulem os alunos a elaborar suas próprias análises e classificações gramaticais, no espírito da pedagogia libertadora de Paulo Freire e em concordância com novas metodologias de ensino gramatical, como a de Oliveira e Quarezemin (2016), esperamos ajudar esses docentes a fazer da aula de gramática um momento de construção do saber. Ao fim desta reflexão, é importante sublinhar o fato de que tanto Ataliba de Castilho quanto Oliveira e Quarezemin condicionam essa construção ao “desejo da descoberta científica” não “(...) there has been relatively little discussion in generative circles of an issue which used to be thought fundamental, namely, how to define such basic units as ‘word’, ‘noun’, ‘verb’, etc.”. 19 Para uma breve discussão de abordagens gerativistas das funções gramaticais de sujeito, objeto direto e indireto e de tópico alternativas às de Chomsky (1975 [1965], 1994 [1986], 1999 [1995]), ver Jackendoff (2003, seção 5.10). Para uma reanálise de viés chomskiano das classes de verbos, adjetivos e substantivos, ver Baker (2003). Para um resumo das reflexões sobre categorias gramaticais no âmbito gerativista, ver Travis (2005). 18 130 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 apenas por parte dos alunos, mas também por parte do professor. Sem esse desejo, o professor limitará suas aulas à exposição requentada de ideias e doutrinas de terceiros e impedirá que os alunos se tornem indivíduos críticos e intelectualmente independentes. Assim, a menos que o próprio professor seja também um pesquisador, no sentido pleno do termo, da língua materna em particular e da linguagem humana de modo geral, estará fadado ao modelo bancário de educação, no qual não há espaço para a reinvenção, a recriação, a reescrita da gramática em sala de aula. Referências bibliográficas AARTS, Bas; DENISON, David; KEIZER, Evelien; POPOVA, Gergana (Ed.). Fuzzy grammar: a reader. Oxford: Oxford University Press, 2004. BAGNO, Marcos. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2011. BAKER, Mark. Lexical categories: verbs, nouns, and adjectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. DOI: https://doi. org/10.1017/CBO9780511615047 BUNZEN, Clecio; MENDONÇA, Márcia; KLEIMAN, Angela (Org.). Português no ensino médio e formação do professor. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2009. CÂMARA JÚNIOR, J. M. Estrutura da língua portuguesa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1976. CÂMARA JÚNIOR, J. M. História e estrutura da língua portuguesa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1975. CÂMARA JÚNIOR, J. M. Princípios de linguística geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1964. CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2006. CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 41. ed. São Paulo: Nacional, 1998. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 131 CHOMSKY, Noam. Aspectos da teoria da sintaxe. Coimbra: Armenio Amado, 1975. CHOMSKY, Noam. O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso. Lisboa: Caminho, 1994. CHOMSKY, Noam. O programa minimalista. Lisboa: Caminho, 1999. COHEN, Henri; LEFEBVRE, Claire (Ed.). Handbook of categorization in cognitive science. Oxford: Elsevier, 2005. CRYSTAL, David. English. Lingua, Amsterdam, v. 17, n. 1-2, p. 24-56, 1967. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001. DIONÍSIO, Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora. O livro didático de português: múltiplos olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. FRANCHI, E. P. O conflito sociolinguístico nos primeiros anos de escolaridade. In: SIMPÓSIO NACIONAL DO GT DE SOCIOLINGUÍSTICA DA ANPOLL, II., 1995, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Timing Editora; UFRJ, Curso de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 1996. p. 117-132. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a. FREIRE, Paulo. Conscientização. Teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. FREIRE, Paulo. Considerações em torno do ato de estudar. In: FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 9-12. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977b. GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 132 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 GONÇALVES, Carlos Alexandre. Flexão e derivação: o grau. In: VIEIRA, Silvia Rodrigues; BRANDÃO, Silvia Figueiredo (Org.). Ensino de gramática: descrição e uso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016. p. 149-168. HALLIDAY, M. A. K. Categories of the theory of grammar. Word, New York, v. 17, n. 2, p. 241-292, 1961. HAUY, Amini B. Da necessidade de uma gramática-padrão da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Ática, 1986. HAUY, Amini B. Gramática da língua portuguesa padrão: com comentários e exemplários. São Paulo: Edusp, 2015. HEIDER, Eleanor H. “Focal” color areas and the development of color names. Developmental Psychology, Washington, v. 1, p. 175-200, 1971. HEIDER, Eleanor H. Universals in color namig and memory. Journal of Experimental Psychology, Princeton, v. 93, p. 10-20, 1972. DOI: https:// doi.org/10.1037/h0032606 ILARI, Rodolfo. A linguística e o ensino da língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986. JACKENDOFF, Ray. Foundations of language: brain, meaning, grammar, evolution. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2003. KEENAN, E. Towards a universal definition of subject. In: LI, C. N. (Ed.). Subject and topic. New York: Academic Press, 1976. p. 303-333. LAKOFF, George. Hedges: a study in meaning criteria and the logic of fuzzy concepts. Journal of Philosophical Logic, [s.l.], v. 2, n. 4, p. 458508, 1973. LAKOFF, George. Women, fire, and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago; Londres: The University of Chicago Press, 1987. DOI: https://doi.org/10.7208/chicago/9780226471013.001.0001 LEMLE, Miriam. Análise sintática: teoria geral e descrição do português. São Paulo: Ática, 1984. LI, C. N. (Ed.). Subject and topic. New York: Academic Press, 1976. LUFT, Celso Pedro. Língua & liberdade: o gigolô das palavras. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1985. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 133 McGUINNESS, Brian. (Ed.). Wittgenstein in Cambridge: letters and documents, 1911-1951. 4. ed. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012. MERVIS, Carolyn B.; ROSCH, Eleanor. Categorization of natural objects. Annual Review of Psychology, [s.l.], v. 32, p. 89-115, 1981. MOORE, T. (Ed.). Cognitive development and the acquisition of language. Nova York: Academic Press, 1973. NEVES, M. H. Moura. Que gramática estudar na escola? Norma e uso na língua portuguesa. São Paulo: Contexto, 2003. NOMENCLATURA GRAMATICAL BRASILEIRA. Rio de Janeiro: CADES, 1958. OLIVEIRA, Roberta Pires de; QUAREZEMIN, Sandra. Gramáticas na escola. Petrópolis: Vozes, 2016. PERINI, Mário Alberto. Sofrendo a gramática. 3. ed. São Paulo: Ática, 2001. PERINI, Mário Alberto. Algumas reflexões sobre as bases teóricas da gramática tradicional. Belo Horizonte, 1984. Mimeografado. PERINI, Mário Alberto. Gramática descritiva do português brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2016. PERINI, Mário Alberto. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1995. PERINI, Mário Alberto. Gramática do infinitivo português. Petrópolis: Vozes, 1977. PERINI, Mário Alberto. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. PERINI, Mário Alberto. Para uma nova gramática do português. São Paulo: Ática, 1985. PERINI, Mário Alberto. Sintaxe portuguesa: metodologias e funções. São Paulo: Ática, 1989. PERINI, Mário Alberto. Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 2º grau. Secretaria de Estado da Educação; Coordenadoria de Estudo e Normas Pedagógicas; São Paulo, 1978. v. IV: Variação Linguística e Ensino de Língua Materna. 134 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 PINTO, Maria Teonilda de F. A. Critérios psicologicamente identificadores de SNs sujeitos em português. 1981. 123f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1981. PONTES, Eunice. O sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo: Ática, 1986. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1996. RAMOS, Jânia Martins. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ROSCH, E.; LLOYD, Barbara B. (Ed.). Cognition and categorization. Hillsdale; Nova York: Lawrence Erlbaum, 1978. ROSCH, Eleanor. Cognitive reference points. Cognitive Psychology, Nashville, v. 7, p. 532-547, 1975a. DOI: https://doi.org/10.1016/00100285(75)90021-3 ROSCH, Eleanor. Cognitive representations of semantic categories. Journal of Experimental Psychology: General, Washington, v. 104, n. 3, p. 192-233, 1975b. DOI: https://doi.org/10.1037/0096-3445.104.3.192 ROSCH, Eleanor. On the internal structure of perceptual and semantic categories. In: MOORE, T. (Ed.). Cognitive development and the acquisition of language. Nova York: Academic Press, 1973. p. 111-144. ROSCH, Eleanor. Principles of categorization. In: ROSCH, E.; LLOYD, B. (Ed.). Cognition and categorization. Hillsdale; Nova York: Lawrence Erlbaum, 1978. p. 27-48. ROSCH, Eleanor; MERVIS, Carolyn B. Family resemblances: studies in the internal structure of categories. Cognitive Psychology, Nashville, v. 7, p. 573-605, 1975. DOI: https://doi.org/10.1016/0010-0285(75)90024-9 ROSCH, Eleanor; MERVIS, Carolyn B.; GRAY, Wayne D.; JOHNSON, David M.; BOYES-BRAEM, Penny. Basic objects in natural categories. Cognitive Psychology, Nashville, v. 8, p. 382-439, 1976. ROSS, John Robert. Nouniness. In: AARTS, Bas; DENISON, David; KEIZER, Evelien; POPOVA, Gergana (Ed.). Fuzzy grammar: a reader. Oxford: Oxford University Press, 2004. p. 351-422. 135 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 ROSS, John Robert. The category squish: Endstation Hauptwort. In: PHARES, Gloria C. (Ed.). Papers from the Eighth Regional Meeting Chicago Linguistic Society. Chicago: Chicago Linguistic Society, 1972. p. 315-328. SARAIVA, Maria Elizabeth. Notas sobre o conceito de protótipo e suas implicações para o ensino de gramática. Scripta, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 107-113, 1 sem. 1999. SAVIOLLI, Francisco P. Gramática em 44 lições. 9. ed. São Paulo: Ática, 1985. SCHNEIDER, Cristina. Tentativa de classificação dos vocábulos segundo um critério morfológico. Cadernos da PUC/RJ, Rio de Janeiro, v. 15, p. 65-77, 1974. SILVA, Gustavo A. F. Um olhar wittgensteiniano sobre os conceitos gramaticais. 2006. 224f. Monografia (Bacharelado em Linguística) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. SOMAVILLA, Ilse. Notas e comentários. In: WITTGENSTEIN, Ludwig. Movimentos de pensamento: diários de 1930-32/1936-37. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 165-252. TAYLOR, John R. Linguistic categorization. 3. ed. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 2003. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1o e 2o graus. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2000. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003. TRAVIS, Lisa deMena. Lexical, functional, crossover, and multifunctional categories. In: COHEN, Henri; LEFEBVRE, Claire (Ed.). Handbook of categorization in cognitive science. Oxford: Elsevier, 2005. p. 319-346. UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. O ensino da gramática: caminhos e descaminhos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. VIEIRA, Silvia Rodrigues; BRANDÃO, Silvia Figueiredo (Org.). Ensino de gramática: descrição e uso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2016. VITRAL, Lorenzo Teixeira. Gramática inteligente do português do Brasil: ilustrada e com exercícios. São Paulo: Contexto, 2017. 136 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 105-136, 2019 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1999 [1953]. (Coleção Os pensadores). WITTGENSTEIN, Ludwig. Movimentos de pensamento: diários de 193032/1936-37. São Paulo: Martins Fontes, 2010. WITTGENSTEIN, Ludwig. O livro azul. Lisboa: Edições 70, 1992. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 O gênero da expressão convencional ‘cabra’: um modelo categorial com extensões metafóricas e suas implicações de natureza cultural The Gender of the Conventional Expression ‘Cabra’: A Categorical Model with Metaphorical Extensions and its Cultural Implications Fernanda Cavalcanti Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro /Brasil cavalcanti7fernanda@gmail.com Luciane Ferreira Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil lucianeufmg@gmail.com Resumo: Este artigo apresenta discussão subsidiada por resultados obtidos com pesquisa sobre a natureza do pareamento entre forma e significado da expressão convencional ‘cabra’, sobretudo, a sua variação de gênero. À luz dos postulados da Teoria da Metáfora Conceptual, especialmente Goatly (2007), Kövecses (2010) e Lakoff (1987), examinam-se os aspectos de natureza cognitiva, cultural e histórica atuantes no processo de conceptualização de tal expressão, usada, sobretudo, no Nordeste do Brasil, para se referir tanto a animal de gênero feminino como a homem. Dessa forma, analisam-se definições dos primeiros dicionários gerais de língua portuguesa (BLUTEAU, 1712; SILVA, 1823) e contemporâneos (HOUAISS, 2008; FERREIRA, 2010), além de definições de dicionários etimológicos (MACHADO, 1952) e dados coletados a partir de aplicação de três questionários junto a 93 sujeitos, no período de 2010 a 2013. Há evidências de que a variação de gênero de tal expressão está relacionada ao situamento sociocultural dos falantes residentes no Nordeste do Brasil. Palavras-chave: pareamento forma e significado; variação de gênero; cabra; situamento sociocultural. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.137-163 138 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 Abstract: This article presents a discussion supported by the results obtained in a research about the nature of the link between form and meaning of the conventional expression ‘Cabra’, especially its gender variation. In light of the Conceptual Metaphor Theory approach, in special Goatly (2007), Kövecses (2010), Lakoff (1987) the cultural, historical and cognitive aspects involved in the conceptualization of such expression, mostly used in the Northeast of Brazil, to refer to bothfemale gender of animal and men were analysed. Therefore, definitions in the first general dictionaries of the Portuguese language (BLUTEAU, 1712; SILVA, 1823) contemporary dictionaries (HOUAIS, 2008; FERREIRA, 2010), etymological dictionaries (MACHADO, 1952) and also data collected from the application of three questionnaires to 93 participants from 2010 to 2013 were examined. The evidence found suggests that gender variation is related to the sociocultural situatedness of the members of the community from the Northeast of Brazil Keywords: form and meaning pairing; gender variation; cabra (goat); sociocultural situatedness. Recebido em 04 de abril de 2018 Aceito em 12 de junho de 2018 1 Introdução Discute-se, neste artigo,1 a natureza do pareamento entre forma e significado, especialmente a variação de gênero da expressão convencional ‘cabra’, tendo em vista que ela é usada, sobretudo, no Nordeste do Brasil, para se referir tanto a animal de gênero feminino como a homem. Para tanto, aborda-se o caráter polissêmico de tal expressão à luz da Teoria da Metáfora Conceptual. De acordo com essa teoria, a polissemia é compreendida como uma estrutura de natureza semânticoconceptual, isto é, uma categoria, aberta e dinâmica resultante de nossa cognição situada, ou ainda da interação entre a nossa configuração corpórea e o mundo físico e sociocultural situado (LAKOFF, 1987). Este artigo tem como base, pesquisa de pós-doutorado realizada no âmbito do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo objeto foi a variação de gênero da expressão polissêmica ‘cabra’. Ressalta-se que tal pesquisa se constitui em desdobramento de pesquisa de doutoramento da primeira autora, cujo objeto foi a polissemia tout court da expressão convencional ‘cabra’. A pesquisa nos dicionários gerais e etimológicos foi realizada no acervo de obras gerais da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 139 Para autores como Klein e Murphy (2001), a polissemia incide sobre a grande maioria das palavras, mesmo que em graus diferentes. Ou seja, a despeito do que afirmam linguistas e psicolinguistas, como Ruhl (1989) e Hino e Lupker (1996), que estudam o significado lexical, Klein e Murphy (2001) declaram que poucas são as palavras homônimas. Ou ainda, poucas são as palavras que apresentam significados individuais não relacionados, que compartilham da mesma representação fonológica, tal qual o célebre exemplo entre banco – ‘instituição financeira’ – e, banco – ‘objeto feito para sentar’. Nessa perspectiva, ambos os autores ponderam que, se os contornos de uma teoria voltada para a representação da homonímia são razoavelmente claros, o mesmo não ocorre em relação a teorias que tratam da representação da polissemia. Para os lexicólogos, por exemplo, há consenso em relação ao estabelecimento de diferentes entradas para palavras (ou lexias) homônimas, a despeito da maneira como o usuário percebe essa relação. No entanto, constata-se que, dentre esses especialistas, não existe tal consenso em relação a palavras (ou lexias) polissêmicas. Assim, no caso dos significados folha branca feita a partir da madeira e desempenho associados ao mesmo lema papel, não há consenso se tal caso se constitui em uma ou em duas entradas, já que se pondera que, embora os significados possam estar ontologicamente relacionados, referem-se a coisas distintas. Para Lakoff e Johnson (1980), as visões acerca da homonímia e da mononímia se constituem em estratégias utilizadas por linguistas e lógicos no sentido de não reconhecerem o caráter metafórico de conceitos mais abstratos. Ou seja, Lakoff e Johnson (1980) avaliam que as teorias relativas à organização de nosso léxico mental em temos de homonímia – uma forma para cada significado2 – ou em termos de mononímia3 – um único significado literal e abstrato para várias formas – seriam funcionalmente inadequadas por não considerarem as características próprias ao sistema conceptual humano, 2 Adota-se, aqui, definição de homonímia de Klein e Murphy para os quais: the outline of a theory of homonymic representation are fairly clear. The different meanings of bank or calf are considered to be different words, so it is generally believed that they are represented by different lemmas (lexical units – see LEVELT, 1989). In Lexecology, there also seems to be a belief that homonyms are different words, as indicated by separete dictionary entries (ZYGUSTA, 1971, p.74, also shown below). (KLEIN; MURPHY, 2001, p.260). 3 Adota-se, aqui, esse termo não convencionalizado em português do Brasil com base no que Lakoff e Johnson (1980) chamam de ‘abstraction’ e Klein e Murphy (2001) chamam de ‘core meaning view’ ou ‘monosemy’. 140 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 situado e metafórico. Com efeito, essas teorias negligenciariam padrões apresentados pelo nosso léxico, oriundos, por exemplo, da conceptualização de domínio mais abstrato, como ser humano, em termos de domínio mais experiencial, como cabra’. Em outras palavras, se, para os teóricos da Metáfora Conceptual, recursos cognitivos metafóricos próprios do funcionamento de nosso sistema conceptual se convencionalizam em função dos usos – a exemplo das Metáforas Conceptuais SER HUMANO É ANIMAL e COMPORTAMENTO HUMANO É ANIMAIL, que licenciam as metáforas verbais, como “Lula é jararaca” e “aos berros e aos gritos, os manifestantes entraram no plenário” – paraos teóricos da mononímia, não seria possível reconhecer a evidência de tais recursos. Ou seja, para os teóricos da mononímia, os significados de ser humano e cabra seriam estruturados, por exemplo, a partir de algum conceito nuclear, abstrato e neutro. Os teóricos da homonímia, por sua vez, não dariam conta de explicar a relação entre dois conceitos e os tratariam de modo independente e não relacionado. Além disso, não há nenhuma teoria da similaridade que possa lidar com tal tipo de fenômeno polissêmico, isto é, que fundamente a abordagem daqueles que defendem a existência de algum conceito comum entre ‘ser humano’ e ‘cabra’, por exemplo, (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Nesse sentido, tais autores, ao lançarem as bases do que viria a ser chamada, posteriormente, de Teoria da Metáfora Conceptual, doravante TMC, formularam princípios acerca da relação de não similaridade entre os conceitos, ou ainda de similaridade experiencial. Segundo tal princípio, mesmo compartilhando aspectos similares –devido à nossa interação de caráter sensório-motor com o meio físico ser, de modo geral, comum – as nossas experiências apresentam diferenças de cultura para cultura e dependem, normalmente, de uma compreensão baseada no cruzamento entre domínios conceptuais distintos. Ou seja, tais experiências determinariam as propriedades e similaridades das categorias de nosso sistema conceptual e, por consequência, o mapeamento metafórico de domínios distintos como no caso de ser humano e animal. Por outro lado, vale destacar que, de acordo com Gibbs (1994), a ubiquidade da linguagem figurada, ou ainda de metáforas verbais, na língua em uso, se constituiria em evidência de que esta seria primordialmente moldada por linguagem desse tipo. Diante de tal evidência, para Gibbs (1994) e demais teóricos da Metáfora Conceptual, a linguagem figurada seria instanciações de recursos cognitivos basilares, ou ainda de Metáforas Conceptuais, que desempenhariam, no âmbito de nosso sistema conceptual, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 141 o papel de formar conceitos, de motivar a mudança semântica e o significado das expressões metafóricas ou não. Nesse sentido, considera-se a expressão convencional ‘cabra’, uma metáfora verbal a exemplo da seguinte passagem encontrada no romance Fogo Morto:“Vá dizer a este mata-cachorro que eu agüento. Sou homem, cabra. Sou homem!” (RÊGO, 1982, p.72) Tal metáfora verbal é aqui tratada na condição de expressão convencional. A razão para tal decisão é porque se adota a definição de convencionalidade preconizada por teóricos da TMC, qual seja: metáforas conceptuais podem ser classificadas em termos de grau de estabilização assim como as suas manifestações linguísticas correspondentes. (KÖVECSES, 2010). Nesse sentido, evoca-se Freyre (2004), segundo o qual a figura do cabra teria relação com o nascimento do que chama de civilização da cana-de-açúcar, particularmente aquela que floresceu no Nordeste do Brasil. Considera-se, assim, que a metáfora conceptual, a exemplo de SER HUMANO É ANIMAL, que licencia a expressão cabra vêm sendo utilizada em tempo suficiente para ter sido internalizada e, consequentemente, já se encontraria devidamente estabilizada. Ou seja, é possível inferir que os usuários circunscritos à região em questão utilizam a expressão em foco de maneira automática e sem fazer esforço. Nessa perspectiva, lança-se a seguinte pergunta: qual seria o conceito nuclear abstrato e neutro que relacionaria os significados de animal e de homem de modo a estruturar a polissemia da expressão convencional ‘cabra’ e a sua variação de gênero? Ou ainda, quais seriam as similaridades abstratas compartilhadas entre os conceitos homem e cabra que estruturariam os significados polissêmicos apresentados pela expressão convencional ‘cabra’? A nosso ver, itens lexicais polissêmicos como a expressão convencional ‘cabra’ ilustram as várias relações do léxico com nosso aparato conceptual e com o nosso sistema de valores e crenças. Tal posicionamento contraria a ideia preconizada por gerativistas de que a descrição e a representação mental dos usos de um item lexical se apoiam na escolha de regras de derivação – linguísticas ou não – e/ou nas listas de (exceções) de entradas independentes (homonímias), o que Langacker (1987) chama de Falácia da Regra/Lista. Contraria, igualmente, o pendor formalista que, ao pleitear evidências de suposta cientificidade e economia, tratam as significações como genéricas e abstratas, o que Silva (2003) chama da Falácia da Generalidade. Assim sendo, organiza-se este artigo em três seções, além desta introdução, nas quais: apresentam-se os dados levantados para discussão de nosso objeto; sugerem-se algumas análises e conclusão à luz dos postulados da Teoria da Metáfora Conceptual, especialmente em Goatly 142 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 (2007), Kövecses (2010), e Lakoff (1987); são feitas as considerações finais, nas quais, com base nas evidências encontradas, apresenta-se a proposta de um esboço de um modelo categorial para ‘cabra’. 2 Método e dados Para discussão da natureza do pareamento entre a forma cabra e seus significados em termos de homem, especialmente no que diz respeito à mudança de gênero, foi feito levantamento de definições atribuídas a tal expressão constantes: nos primeiros dicionários gerais da língua portuguesa, a exemplo do Vocabulário portuguez e latino, de Rafael Bluteau (1712), do Diccionario da língua portugueza, de Antônio Moraes Silva (1823), em que ele revisa Bluteau (1712), e de suas edições mais recentes, Silva (1877; 1949); e nos dicionários gerais mais contemporâneos, a exemplo de Antônio Houaiss et al. (2008), e de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2009; 2010), além do dicionário etimológico de José Pedro Machado (1952). Ademais, ao se adotar perspectiva sincrônica, discutem-se as definições encontradas nos mencionados dicionários à luz de dados coletados por meio da aplicação de três questionários junto a 93 sujeitos, residentes em Fortaleza, entre o período de 2010 e 2013. Assim sendo, selecionaram-se (vide os três quadros abaixo): duas entradas relativas à expressão ‘cabra’ (1ª. e 7ª.) dentre as doze elencadas por Bluteau (1712);duas acepções (1ª. e 3ª.) dentre as quatro elencadas por Silva (1823) em sua entrada relativa à ‘cabra’; três (1ª. 2ª. e 5ª.) acepções dentre as 10 elencadas por Silva (1877) em sua entrada relativa à ‘cabra’; quatro acepções (1ª. 2ª. 3ª e 8ª) dentre as oito elencadas na primeira entrada relativa à ‘cabra’ em Silva (1949); a única acepção elencada na segunda entrada de ‘cabra’ em Silva (1949); as quatro acepções elencadas na terceira entrada relativa à ‘cabra’ em Silva (1949); duas acepções (1ª. e 3ª) dentre as 16 elencadas em Machado (1952) em sua entrada relativa à ‘cabra’; dez acepções (1ª.2ª.3ª.4ª.5ª.12ª.13ª.14ª.15ª. e 16ª.) dentre as 16 elencadas por Houaiss et al. (2008) em sua entrada relativa à ‘cabra’; e oito (1ª.3ª.4ª.6ª.7ª.8ª.9ª. e 10ª.) dentre as 11 elencadas por Ferreira (2010) em sua entrada relativa à ‘cabra’. Necessário destacar que apenas Houaiss et al. (2008) e Ferreira (2010) enumeram as suas acepções. No entanto, a título metodológico, isto é, em função de uma melhor manipulação dos dados, enumeraramse as acepções dos demais autores. Nesse sentido, vale destacar que o que se chama, aqui, de segunda acepção, constante na entrada relativa à ‘cabra’ em Machado (1952), trata-se, na verdade, de uma nota de rodapé na qual tal acepção é atribuída a Georg Friederich. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 143 QUADRO 1 – Definição do animal Bluteau Silva (1823) Silva (1877) Silva (1949) (1712) Machado Houaiss (2008) Ferreira (2010) (1952) Cabra: Cabra: Cabra: Cabra: Cabra: Cabra: Cabra: (1ª entrada) 1.f.f.Animal 1.s.f. (1ª entrada) 1. s. 1.s.f.(1278cf.IVPM) 1. s.f. [do lat. 1.Animal quadrúpede (do lat. s.f [do lat. do lat. desig.comum capra]. sf.1. doméstico dos menores, capra) capra] capra; aos mamíferos Mamífero quadrúpede, cornígero, Animal zool Gênero cabra; ruminantes do ruminante, cornígero, fêmea do quadrúpede de gen. a fêmea do fêmea do bode dos menores, mamíferos Capra, da fam. dos bode; cabrão, ou cabrão cornígero; ruminantes, bovídeos, com sete de focinho (...); fêmea de cornígeros e, spp. chato bode ou geralmente, selvagens que e rabo curto. cabrão; de ocorrem em pêlos áreas montanhosas compridos; da Ásia, África e Europa, e uma sp. domesticada encontrada no mundo inteiro (Capra hircus); 2. A fêmea da sp domesticada (Capra hircus); QUADRO 2 – Definição de cabra em termos de mulher Silva (1877) Silva (1949) Houaiss (2008) 2. fig. Mulher 2.fig.Rapariga de 3. fig.pej. Mulher pouco recatada, que berra modos muito desenvoltos lasciva, muito; rameira, prostituta; devassa; 3. Mulher de mau porte, 4. p.ext. tab.Rameira, prostituta; dissoluta ou muito Ferreira (2010) 3. pop. Mulher devassa; 4. fig. Mulher de mau gênio, irritadiça e escandalosa; berradeira; 5. fig.pej.Mulher escandalosa, temperamental, que se irrita facilmente e grita muito; Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 144 QUADRO 3 – Definição de cabra em termos de mulher e homem Bluteau (1712) Silva (1823) Silva (1877) Silva (1949) Machado (1952) Houaiss (2008) Ferreira (2010) (7ª. entrada) 3. Filho ou 5. O filho 8. Ser cabra, 3. Sobre o uso 12. Mestiço 6.bras.Mestiço Darão os filha de pai ou ser mau de cabra como indefinido, de de mulato e portugueses mulato, e filha de pai companheiro; dignidade de negro, índio ou negro; esse nome a mãe mãe mulato e índios branco, de pele alguns índios, preta ou mãe preta brasileiros, de morena clara porque os às avessas; ou às ascendência avessas; nobre e bravura acharam natural; ruminando, como cabra, a erva Betel que quase sempre trazem na boca. (2ª.entrada): adj. 13. Indivíduo Ruim, esperto, determinado; Sabido; sujeito, 7. v. Capanga; cara (3ª.entrada) 14. Indivíduo 8. v. 1.s.m.Bras. forte Cangaceiro Mestiço, filho de valente, negro ou mulato petulante; ou vice-versa; brigão. 14.1 (...) capanga; criminoso; pistoleiro 2. por ext. 15. Trabalhador 9.Morador de Indivíduo braçal agrícola, de propriedade petulante, rurícola. rural 3. Denunciante, 16. P. Espião de 10. Indivíduo; espião, testemunha polícia; sujeito comprometedora; alcaguete; 4. Cangaceiro denunciante valentão, provocador; Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 145 De acordo com as acepções selecionadas, observa-se que, além daquela relativa ao animal de gênero feminino, ‘cabra’ é definida: em termos de homem por Bluteau (1712) e por Machado (1952); em termos de homem e de mulher por Silva (1823; 1877; 1949), por Houaiss et al. (2008), e por Ferreira (2010). Interessante atentar, nesse sentido, para o fato de que, ao revisar Bluteau (1712), Silva (1823) não reproduz a sua acepção de ‘cabra’ como índio, além de acrescentar a tal acepção, o significado de cabra na condição de “filho ou de filha de pai mulato e de mãe preta ou às avessas”. Parece ser esse, então, o primeiro registro de ‘cabra’ definida como mulher e mestiço. Tal acepção será reproduzida por todos os dicionários a ele subsequentes aqui elencados. Encontram-se, contudo, algumas variações nessa reprodução, a exemplo de Silva (1949). Para os seus lexicógrafos Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, tal acepção seria um brasileirismo e significaria apenas filho nascido de pai mulato e mãe preta. Muito embora tenham retomado a acepção proposta por Silva (1949), Houaiss et al. (2008) incluem aí, uma nova etnia, a branca. Tal fato nos leva a inferir que o uso da expressão ‘cabra’ relativo a índio encontra-se apenas no português europeu (PE); e que o uso como mestiço ou mestiça encontra-se apenas no português do Brasil (PB), como afirmado pelos lexicógrafos de Silva (1949). Outro aspecto relevante é quanto ao registro das demais acepções de ‘cabra’ como mulher aparecer apenas nas edições tardias de Silva (1877; 1949). Observa-se, nesse sentido, que, ao que parece, tal expressão é definida: inicialmente, como mulher escandalosa de acordo com Silva (1877); e, em seguida, como mulher de baixa reputação, de acordo com Silva (1949). Vale salientar ainda o registro feito por Silva (1949) de acepções de cabra na condição de adjetivo e como homem violento e bandido. Essas últimas acepções foram reproduzidas por Houaiss et al. (2008) e por Ferreira (2010), além daquelas de cabra como mulher. Considerando que esses autores não datam o aparecimento de tais usos, é plausível supor que as primeiras acepções atribuídas a ‘cabra’ como homem e como mulher ganharam mais extensões no período entre a primeira e a edição mais recente de Silva (1823; 1949). Além disso, com a exceção de Machado (1952) e das acepções 13 e 10 constantes em Houaiss et al. (2008) e em Ferreira (2010) respectivamente, é preciso ressaltar que boa parte das acepções de cabra na condição de homem e de mulher possui caráter depreciativo e 146 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 pejorativo. É sabido que a condição de mestiço sempre foi avaliada como inferior pelos valores hegemônicos e eurocêntricos de nossa sociedade, assim como a de trabalhador e a de morador da zona rural. Nessa perspectiva, para autores como Cascudo (2009), por exemplo, a expressão cabra como filho de mulato e negra não goza de simpatia no folclore sertanejo. Por isso, “o tratamento de ‘cabra’ é insultuoso. Ninguém gosta de ouvir o nome. [...]. Todas as estórias referentes aos ‘cabras’ são pejorativas e são eles entes malfazejos, ingratos, traiçoeiros”. (CASCUDO, 2009, p. 60). Ainda a esse respeito, parece não ser trivial que a primeira acepção de cabra em termos de ser humano, à qual se teve acesso, se refira a índio. Vale destacar que tal acepção teria sido criada, segundo Bluteau (1712), a partir da comparação que os portugueses fizeram entre o hábito que determinado grupo de índios tinha em mascar erva e o ruminar das cabras. Vale lembrar que, por essas épocas, a Igreja Católica discutia se os índios teriam alma ou se seriam animais, tal qual foi por ela consideradosos negros. Outro aspecto que merece destaque é quanto ao fato de apenas Machado (1952) não informar sobre o gênero da entrada cabra. Tal informação se encontra indicada pelos demais autores, seja ela de natureza gramatical, seja ela na condição de definição de cabra como a fêmea do cabrão ou do bode. Salienta-seque as informações etimológicas acerca da expressão convencional ‘cabra’, fornecidas por quase todos os dicionários investigados – com a exceção de Bluteau (1712) e de Silva (1823) – convergem no sentido de sua origem ser a forma latina capra. Houaiss et al. (2008), por exemplo, indica que tal forma pode, igualmente, se remeter ao gênero de espécies selvagens e domésticas, no caso de Capra hircus. Os demais autores – Bluteau (1712), Machado (1952), Silva (1949) e Ferreira (2009) – informam, no entanto, que a origem latina das formas que nomearam o macho da cabra em português – ‘cabrão’ e ‘cabro’ –é outra diferentemente de capra (vide quadro abaixo). Bluteau (1712), Silva (1823), Silva (1949), Machado (1952) e Ferreira (2009) informam ainda que as formas ‘cabrão’ e ‘cabro’ teriam caído em desuso por terem sido substituídas pela forma‘bode’. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 147 QUADRO 4 – Origem e definição do macho da cabra Bluteau (1712) Silva (1823) Silva (1949) Machado (1952) Ferreira (2009) Cabram, Cabrão, s.m. bode, Cabrão,s.m.(do lat. Cabro, forma hoje Cabro [do lat. capru]. cabrão. Vide macho da espécie caprone).zool. desesusada por bode; s.m. bode cabrum bode cabrum// macho da cabra; do lat. capru – bode; [do lat.tar. caprunu]. adj. t.v. O que consente que bode// marido odor forte das axilas 2. bras. v. corno (9) sua mulher adultere cornudo Cabrão capado. câper,pri. Maje. Virg. Cabrão cornudo, consentido. vul. Cornudo Bode – O macho da cabra. Bode capado. cãper, pri Em suma, embora se observe que há divergência quanto à forma original latina da qual teria derivado ‘cabrão’ e ‘cabro’, os dicionários acima elencados atribuem, com exceção de Silva (1823), a essas formas anacrônicas, origem latina diferente daquela da qual se derivou ‘cabra’. Vale destacar que, assim como Bluteau (1712), Freund (1866), em seu Gran Dicctionaire de La Langue Latine, define as formas ‘cãper, pri’ como aquelas que se referiam ao macho da cabra. Ainda, segundo esse dicionário, diferentemente de Machado (1952), essas mesmas formas teriam aparecido em textos de autores latinos, se referindo, igualmente, ao forte cheiro exalado pelas axilas. Ao que parece, a forma latina relativa ao macho da cabra, além de se distinguir daquela atribuída à cabra, entrou na língua portuguesa se reportando tanto ao forte cheiro exalado das axilas como a marido que consente ser traído, o vulgo ‘corno’. Supõese que a acepção de corno atribuída a ‘cabrão’ se deva ao fato de ele ser capado, assim como afirmam Bluteau (1712), Silva (1823; 1949) e Ferreira (2009). 148 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 Por outro lado, de acordo com os dados levantados (vide os três quadros abaixo) por meio de três questionários aplicados juntos a 93 sujeitos residentes em Fortaleza, no período de 2010 a 2013, a expressão convencional ‘cabra’ se refere, para além do animal de gênero feminino, apenas a homem. Tais dados contrariam, assim, as acepções apresentadas pelos dicionários investigados. Importante ressaltar que o perfil desses sujeitos é majoritariamente de universitários, já que os questionários foram aplicados junto aos estudantes dos cursos de Educação Física, de Dança e de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), e do curso de Comunicação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). A escolha por tal perfil se deveu à razão de se pretender observar o uso dessa expressão em público jovem, escolarizado e urbano, já que se atribui que o uso de cabra na condição de homem estaria circunscrito a um público de perfil rural e de baixa escolaridade. Necessário ainda destacar que se encontram disponibilizadas, nos quadros seis (6) e sete (7), as respostas de parte das perguntas constantes nos segundo e terceiro questionários. Assim, embora o segundo questionário possua, originalmente, 13 perguntas, constam, no quadro abaixo (Quadro 6), seis perguntas acompanhadas de suas respectivas respostas. Quanto ao terceiro questionário, embora possua, originalmente, nove perguntas, constam, no quadro abaixo (Quadro 7), duas perguntas acompanhadas de suas respectivas respostas. Por essa razão, foi mantida a numeração de origem. Considerando que esses questionários foram formulados, inicialmente, para subsidiar questões de outra pesquisa por nós realizada, a decisão em selecionar uma parte das perguntas e respostas constantes nos segundo e terceiro questionários se deu em razão tantodo espaço aqui disponibilizado como, sobretudo, do objetivo que se tem com este artigo. Contudo, os questionários em sua íntegra se encontram disponibilizados nos anexos. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 149 QUADRO 5 – Primeiro questionário aplicado junto a participantes residentes em Fortaleza4 Perguntas Respostas 1. O que lhe vem à mente quando você ouve a palavra 45% dos 33 participantes responderam Animal; CABRA? 15,2% dos 33 participantes responderam Homem; Liste as palavras que lhe vem à cabeça? 9,1% dos 33 participantes responderam Cabra da Peste e 9,1% dos 33 participantes responderam Leite; 6,1% dos 33 participantes responderam Macho. 6,1% dos 33 participantes não responderam; 3,1% dos 33 participantes responderam Carneiro 3,1% dos 33 participantes responderam Ladrão 3,1% dos 33 participantes responderam Zona Rural. 2. Você acredita que o termo CABRA é usado para 6,1% designar individuo do sexo masculino? Sim Não 93,9% 3. O que é para você verdadeiramente um cabra? Ordene os termos abaixo em uma lista. (Cabra Macho, Cabra da Peste, Cabra Bom, Homem, Cabra, Raparigueiro, Cabra Véi, Um sujeito qualquer e Capanga)4 35,0% 30,0% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 33,3% 27,3% 15,2% 12,1% 9,1% 3,0% Um homem Cabra da Um sujeito peste qualquer Cabra macho Cabra bom AUSENTE 30,0% 18,2% 15,2% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 12,1% 12,1% 6,1% 10,0% 0,0% 9,1% 9,1% 12,1% 9,1% 6,1% 18,2% 20,0% 18,0% 16,0% 14,0% 12,0% 10,0% 8,0% 6,0% 4,0% 2,0% 0,0% 18,2% 15,2% 12,1% 18,2% 15,2% 15,2% 9,1% 3,0% 3,0% 36,4% 40,0% 20,0% 27,3% 30,0% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% Um homem Cabra da peste Um sujeito qualquer Cabra macho 24,2% 3,0% 33,3% 6,1% 6,1% 3,0% Cabra bom AUSENTE 35,0% 30,0% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 21,2% 12,1% 12,1% 12,1% 9,1% 3,0% 35,0% 30,0% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 12,1% 12,1% 15,2% 3,0% 33,3% 12,1% 15,2% Um homem Um sujeito qualquer 3,0% 35,0% 30,0% 25,0% 20,0% 15,0% 10,0% 5,0% 0,0% 9,1% 15,2% Capanga Cabra raparigueiro 9,1% Cabra vei 15,2% AUSENTE 33,3% 24,2% 18,2% 15,2% 6,1% Um sujeito qualquer Capanga Cabra bom 3,0% Cabra Cabra vei raparigueiro AUSENTE 4 As repostas mostram da primeira à oitava classificação de acordo com as listas produzidas pelos participantes. Os termos da lista não foram disponibilizados em ordem. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 150 QUADRO 6 – Segundo questionário aplicado junto a participantes residentes em Fortaleza Perguntas 4.Você concorda com a definição segunda a qual CABRA se refere a: Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino; Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro; Apenas, algum tipo de indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro Respostas 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0% 0,0% 6. Você acha que CABRA é usado também para se referir: Qualquer indivíduo de sexo feminino; Qualquer indivíduo de sexo feminino brasileiro Apenas alguns indivíduos de sexo feminino brasileiro Só se refere a individuo do sexo masculino 8. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um representante da mistura entre mulato e negro? 9. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um jagunço? 43,3% 43,3% 10,0% 3,3% Qualquer Qualquer Apenas, algum Não entendeu indivíduo/sujeito indivíduo/sujeito tipo de de sexo de sexo indivíduo/sujeito masculino masculino de sexo brasileiro masculino brasileiro 3,3% 10,0% Qualquer indivíduo de sexo feminino Apenas alguns indivíduos de sexo feminino brasileiro 86,7% Só se refere a indivíduo do sexo masculino 86,7% 90,0% 80,0% 70,0% 60,0% 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0% 0,0% 6,7% Não Não conhece 3,3% Parcialmente 3,3% Sim 73,3% 80,0% 70,0% 60,0% 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0% 0,0% 10. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um habitante da zona rural? 10,0% Parcialmente 3,3% Não Não conhece 13,3% Sim 10,0% 30,0% Parcialmente Não 60,0% 11. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um cangaceiro? 80,0% 70,0% 60,0% 50,0% 40,0% 30,0% 20,0% 10,0% 0,0% Sim 73,3% 6,7% Parcialmente 6,7% Não Não conhece 13,3% Sim Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 151 QUADRO 7 – Terceiro questionário aplicado junto a participantes residentes em Fortaleza Perguntas Respostas 7. Você acredita que seus pares (Avô, Pai, Marido, Companheiro, Amigos íntimos e em geral) possam ser chamados por você de Cabra? Por quê? 6,7% 43,3% Sim Não 50,0% Parcialmente 8. Você acredita que homens com os quais você não tem intimidade (Chefe, colegas de trabalho, anônimos na rua e no comércio e prestadores de serviços e autoridades de um modo geral) possam ser chamados por você de Cabra? Por quê? 3,3% 6,7% 13,3% Sim Não 76,7% Depende Parcialmente De acordo com os dados coletados a partir da aplicação desses três questionários, verifica-se que, para a maioria dos sujeitos, há uma tensão em relação ao significado prototípico da expressão em estudo. Pois, se por um lado, o significado mais saliente, ao que parece, é ‘indivíduo’; por outro lado, o seu uso é considerado por boa parte dos sujeitos como inapropriado em situações formais ou em tratamento dispensado a pais e a avós, devido ao fato de apresentar caráter regional. Além disso, a maioria dos sujeitos não reconheceu os significados ‘mulher’, nem ‘mestiço de mulato e negro’, tampouco ‘cangaceiro’, ‘capanga’ ou ‘morador e trabalhador da zona rural’ atribuídos à expressão ‘cabra’ por boa parte dos dicionários investigados. Vale ressaltar que o significado de tal expressão, em termos de indivíduo qualquer, é encontrado apenas em dois dos sete dicionários pesquisados: o de Houaiss et al. (2008) e o de Ferreira (2010), isto é, nos dicionários gerais contemporâneos. Tal fato pode nos levar a inferir que esses significados apresentariam caráter mais recente, assim como aquele relativo a trabalhador e a morador da zona rural. 152 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 À guisa de conclusão desta seção, verifica-se que, para a maior parte dos dicionários pesquisados, a origem latina relativa às formas masculina e feminina do animal em questão não é a mesma, ainda que os autores desses dicionários divirjam acerca de qual forma latina teria derivado ‘cabrão’ e ‘cabro’. Além disso, a despeito da divergência quanto ao significado prototípico de tal expressão, ela vem sendo usada, igual e efetivamente, para se referir a ser humano, ao seu comportamento ou à parte de seu corpo, Em outras palavras, percebe-se, de acordo com os dados, que embora os significados contemplados por tal expressão na condição de ser humano mudem quantitativamente ao longo de sua história, eles mantiveram e mantêm sempre a sua referência a ser humano. Critérios etimológicos ou mesmo históricos não dão conta de explicar tal padrão. Tampouco, teorias semânticas de caráter formalista e/ou estruturalista dão conta de explicá-lo, tendo em vista que essas teorias se atêm, normalmente, a critérios formais, independente das características próprias ao funcionamento cognitivo humano. Nesse sentido, Lakoff (1987) pondera que, ao negligenciarem as experiências resultantes entre o aparato sensório-motor humano e o mundo físico e socioculturalmente situado, as visões semânticas tradicionais supõem que o processo de significação humana poderia ser produzido por qualquer outro dispositivo animado ou inanimado, a exemplo de máquinas e robôs. 3 Algumas análises e resultados Em consonância com os dados levantados, nossa análise parte, de início, da hipótese de que a variação de gênero contemplada pela expressão convencional ‘cabra’ na condição de homem não poderia ter base etimológica. Ou seja, em conformidade com as informações fornecidas pelos dicionários investigados, foram formas latinas distintas que originaram as formas em português correspondentes à ‘cabra’, a ‘cabrão’ e a ‘cabro’. Assim sendo, levanta-se a hipótese de que tal variação se deu em função dos situamentos socioculturais dos falantes residentes, sobretudo, no Nordeste do Brasil. Nesse sentido e de acordo com todos os dicionários investigados, inclusive o dicionário Gran Dictionnaire de La Langue Latine, e com os sujeitos e usuários atuais da expressão convencional ‘cabra’, é evidentemente sistemática a relação motivada por extensão metafórica Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 153 entre os conceitos do animal cabra (e/ou ‘cabrão’ ou ‘cabro’) e de ser humano. Nessa perspectiva, postulamos, de acordo com a Teoria da Metáfora Conceptual, que as relações contempladas pelo léxico não se dão em termos de um significado linguístico único, literal e abstrato, até porque seria bastante implausível justificar que um único significado linguístico abstrato daria conta de estabelecer propriedades necessárias e suficientes comuns ao conceito de ser humano e de animal. Ao contrário, tais relações, apesar de contemplarem um significado convencionalizado ou prototípico em função dos usos e propósitos, ou ainda dos efeitos prototípicos (LAKOFF, 1987) das categorias homem e cabra, por exemplo, contemplam, sobretudo, os aspectos relativos à forma como nosso sistema conceptual é constituído e funciona. Assim, para a Teoria da Metáfora Conceptual, itens lexicais polissêmicos, como a expressão convencional ‘cabra’, seriam estruturados segundo processos de categorização situados. Nessa perspectiva, a categoria animal seria estruturada, primeiramente, com base no nível básico de categorização (ROSCH et al., 1976). Ou seja, há evidências, de acordo com vários estudos e experimentos (BERLIN; ROMNEY, 1964; ROSCH et al.,1976), de que os seres humanos estruturam, inicialmente, seu sistema conceptual a partir da interação com entidades com as quais possam tocar, cheirar e perceber o funcionamento de suas formas e partes em um mundo físico e/ou socioculturalmente situado. Assim, para estruturação do conceito de cabra, por exemplo, teria que ter havido interação motora humana com o animal cabra, em termos de tato e de cheiro, por exemplo, além de interação perceptual, relativa à percepção das formas desse animal em consonância com a funcionalidade de suas partes, a exemplo do leite que produz, e de compreensão de seu papel sociocultural na comunidade em que vive. Em suma, para que se estruturem tanto o nível categorial mais geral como mais específico do conceito cabra como, animal e cabra montês, respectivamente, parte-se do nível categorial básico cabra. Dito de outra forma, de acordo com a Teoria da Metáfora Conceptual, seria, inicialmente, fundamental para estruturação do conceito cabra que houvesse experiência não apenas sensório-motora com algo chamado cabra – percepção de sua forma e o contato com seu corpo e cheiro – como também compreensão do papel socioeconômico e cultural que tal animal exerce na comunidade onde vive para, em seguida, categorizá-lo como animal e/ou como uma determinada espécie desse tipo de animal. 154 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 Nessa perspectiva, e em conformidade com a ideia de que os níveis categoriais de generalização e de especificação são executores da imaginação (BROWN, 1965) a partir do nível básico, Lakoff (1987) postula que o processo humano de categorização se utiliza de recursos cognitivos metafóricos, a fim de dar significado às experiências com as quais seu aparato sensório-motor não consegue efetivamente interagir. Dessa forma, compreende-se que o léxico não poderia ser explicado na condição de lista de traços, tal qual postula a tradição gerativa, tampouco de abstração de significado único e literal, de natureza apenas linguística, tal qual postula a maior parte das teorias semânticas de base estruturalista e formalista. Ao contrário, ele seria motivado e projetado de acordo com as experiências corpóreas situadas dos seres humanos ou ainda de sua mente corpórea. No caso da expressão convencional ‘cabra’ usada para se referir a ser humano, além de animal de gênero feminino, as experiências dos falantes de português do Brasil – especialmente daqueles que vivem na região Nordeste – com o animal em questão, motivariam e estruturariam o seu caráter polissêmico, ou ainda os seus diversos significados relativos a homem e à mulher. Ou seja, ao se compreender, tal qual postula a Teoria da Metáfora Conceptual, os significados dos itens lexicais em termos de conceitos organizados nos três níveis categoriais acima discutidos, se teria, no caso da polissemia da expressão em estudo, um processo de extensão do significado de animal em termos de homem e de mulher com base em recursos metafóricos, especialmente com base em metáforas animais. As metáforas animais, segundo Kövecses (2010), se constituem em recursos conceptuais dos mais recorrentes. O autor acrescenta ainda que não apenas se verificou, em várias tradições linguísticas, que pessoas são conceptualizadas em termos de animais como também que, o comportamento humano é conceptualizado em termos de comportamento animal, além de partes do corpo humano serem, igualmente, conceptualizadas em termos de partes do corpo dos animais. Além disso, foram verificadas evidências de que as metáforas animais geralmente mapeiam características negativas dos animais. Dito de outra forma, as metáforas animais se constituiriam em recursos conceptuais utilizados, sobretudo, para se produzir conceitos de caráter negativo ou pejorativo acerca das pessoas, de seus comportamentos e de parte de seus corpos, tal qual se verificou nas diversas acepções encontradas na entrada relativa à cabra apresentadas pelos dicionários aqui investigados. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 155 Nessa perspectiva, vale ser feita a seguinte pergunta: Por que o animal cabra está sendo mapeado em termos de homem e de mulher pelos falantes de português do Brasil, especialmente por aqueles que vivem no Nordeste? De início, trata-se de um animal que teve e tem papel socioeconômico fortíssimo nessa região, tal qual assinala Cascudo: (...) o leite de vaca nunca foi popular no sertão. Ninguém o bebia. O leite coalhado e o queijo, sim, eram decisivos. Nunca o leito puro e sim acompanhado, como sopa, batatas, jerimum, farinha, adoçado com rapadura. O leite de cabra tinha o primeiro lugar. Era uma herança milenar, porque a cabra fora o animal leiteiro por excelência, cantado em Hesíodo, Virgílio, Teócrito, e não as vacas (CASCUDO, 2009, p.61). Além disso, se, por um lado, esse animal, sobretudo o seu leite, é compreendido como importante por alimentar uma parte considerável da região nordestina, ele é, por outro lado, compreendido como amaldiçoado. Novamente, de acordo com Cascudo (2009, p.61), “do convívio com tal animal, teriam surgido histórias segundo as quais tanto o bode quanto a cabra desapareciam por uma hora durante o dia para ir ter com ‘o coisa ruim’”. O autor avalia ainda que: Desta participação religiosa a cabra nunca se libertou. Não se aproximou de santo algum e não há lenda ou história em que figure como elemento favorável. Familiar, doméstica, da intimidade sertaneja, não inspira confiança integral ao povo. Em lenda alguma da literatura oral cristã comparece com a cabra num plano de boa educação ou afeto. Na etiologia de sua voz, uma condenação popular que tivemos de Portugal: ‘Cristo nasceu!’ – cantou o galo. ‘Onde’ – muge o boi. ‘Em Belém!’, baliu a ovelha. ‘Mentes, mentes’ – resmungou a cabra, guardando até hoje a negativa gaguejada e pagã. (CASCUDO, 2009, p. 61). Assim, é possível observar que as maldições não recaem apenas sobre o animal, recaem, igualmente, sobre o seu leite. Segundo nos informa mais uma vez Cascudo (2009), acreditava-se, sobretudo no Sertão do Nordeste, que o leite da cabra poderia transmitir “o caráter inquieto, buliçoso, arrebatado, da amamentadora. [Ou ainda de que] o menino, demasiado vivo, arteiro, endiabrado, tem a justificativa no leite da cabra”. (CASCUDO, 2009, p.62). 156 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 Desse modo, é plausível afirmar que a metaforização do ser humano em termos de cabra se dá para falantes dessa região do Brasil devido aos seus situamentos corpóreos e socioculturais, isto é, devido aos contatos físico-perceptuais com esse animal e a função socioeconômica e cultural que ele exerce nessa região. Verifica-se, nessa perspectiva, que são atribuídas características comportamentais pouco elogiosas à cabra, tais como o de ser misteriosa, pouco cristã, nada confiável, com poderes obscuros, inquieta, arrebatada, além de características físicas pouco interessantes como, a de emitir sons nada harmoniosos e exalar cheiro desagradável, muito embora se atribua a ela grande potencial sexual. Percebe-se, dessa forma, que falantes, sobretudo, da região do Nordeste do Brasil, estruturam o conceito cabra com extensões metafóricas relativas a ser humano ao mapearem características atribuídas ao animal em questão. Ou seja, cabra é ai, compreendida como mulher a partir do mapeamento das características sensualidade e berro atribuídas à cabra, de um lado, e das características lasciva, prostituta, escandalosa e que grita muito atribuídas a mulher, de outro lado. Cabra é, igualmente, aí compreendida como homem a partir do mapeamento das características amaldiçoada, pouco confiável e arrebatada atribuídos ao animal, de um lado e, das características mestiço, traiçoeiro, violento, valente, brigão e petulante, atribuídas a homem, de outro lado. Além disso, para Goatly (2007), as metáforas animais podem estar igualmente motivadas por sistema de valores ideológicos referendados por teorias de caráter evolucionista e eugenista segundo as quais o ser humano seria um animal superior aos demais animais; e os seres humanos caucasianos seriam, por sua vez, superiores aos demais seres humanos. Há evidências, nesse sentido, de textos reunidos por pesquisadores da Teoria da Metáfora Conceptual, disponibilizadas por Goatly (2007), que identificam a conceptualização de grupos de seres humanos fora do padrão caucasiano em termos de animais, como os imigrantes nos Estados Unidos. No entanto, é interessante notar que os falantes residentes na região do Nordeste do Brasil, ao considerarem a cabra como um animal importante para sua economia, mapeiam, igualmente, características positivas ao conceptualizarem cabra como homem. Ou seja, tal qual a cabra é compreendida como resistente e de fácil adaptação, o cabra é conceptualizado como determinado, corajoso e esperto. Nesse sentido, Freyre, ao se basear na definição do folclorista Rodrigues de Carvalho, afirma, que: [o cabra é] “o herói de um grande número de histórias de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 157 coragem e de aventuras de amor. É o ‘cabra danado’. O ‘cabra escovado’. O cabra bom. O cabra de confiança”. (FREYRE, 2004, p.172). Quanto à possibilidade do significado prototípico de tal expressão se ter deslocado para algo mais neutro como indivíduo ou homem qualquer, supõe-se que haja relação entre a intensificação do processo de urbanização pelo qual passou o Nordeste nas últimas décadas (MENEZES, 2010), e a variação no uso prototípico dessa expressão, isto é, ‘de mestiço de negro com mulato ou índio’, ou ‘de morador da zona rural’ para ‘indivíduo’ Nessa perspectiva, ao que parece, o uso de cabra como mulher não se urbanizou, mantendo-se circunscrito à zona rural ou a falantes nordestinos de muita idade. Isso ocorreu, a nosso ver, devido ao fato desse regionalismo não apresentar a mesma força pragmática do que aquele que se refere a homem. Nesse sentido, Freyre (2004) nos ensina que o cabra desempenhou função sócio-histórica contundente tanto na região do Nordeste do Brasil como no Brasil inteiro. Ou seja, se por um lado, segundo Freyre: A história social do Nordeste da Cana-de-Açúcar está ligada, como talvez a de nenhuma outra região de Brasil, ao esforço do mestiço, ou antes, do cabra. Um esforço que se tem exercido debaixo de condições duramente desfavoráveis. Mas, mesmo assim, notável pelo que tem construído e realizado. (FREYRE, 2004, p. 171). Por outro lado, ainda para Freyre (2004, p.50), teria sido o cabra, um dos primeiros representantes genuínos da civilização brasileira. Ou seja, segundo Freyre: “primeiro se fixaram e tomaram fisionomia brasileira os traços, os valores, as tradições portuguesas que, junto com as africanas e as indígenas, constituiriam aquele Brasil profundo, que hoje se sente ser os mais brasileiros”. (FREYRE, 2004, p.50) Em suma, conclui-se que o pareamento entre cabra e seus diversos significados em termos de homem se estrutura com base na maneira como o sistema conceptual humano se organiza e funciona, isto é, com base nas experiências corpóreas e socioculturalmente situadas dos falantes, no caso dos falantes residentes da região do Nordeste do Brasil. Dito de outra forma, os falantes residentes da região do Nordeste do Brasil não compreendem ‘cabra’ apenas em termos de animal per se. Eles a compreendem também em termos de sua função socioeconômica e de seu papel simbólico ou cultural; e em termos de determinado tipo de homem e mulher com base em processos metafóricos. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 158 Ademais, considerando que as metáforas animais produzem conceitos, sobretudo negativo acerca das pessoas, percebe-se pendor pejorativo e depreciativo na metáfora cabra na condição de homem. Necessário salientar a esse respeito que, de acordo com as diversas acepções apresentadas pelos dicionários investigados, as características mais marcadas são as de o cabra ser mestiço ou oriundo de etnias desprestigiadas. Como é sabido, pesam enormes preconceitos sobre ambas as condições, de ser mestiço e de ser índio. Diante de tais evidências, ratifica-se a hipótese de que a mudança do gênero contemplada pela expressão convencional ‘cabra’, isto é, o fato de homem não ser conceptualizado como bode e sim como ‘cabra’, estaria, efetivamente, relacionada com as motivações oriundas dos situamentos corpóreos e socioculturais dos falantes residentes na região do Nordeste do Brasil. Estaria, especialmente, relacionada com fato de esse homem ser filho de mulato e negra, isto é, um híbrido de etnias sobre as quais pesam enormes preconceitos. Nesses termos, Goatly (2007) assinala que homens que não apresentam padrão caucasiano são compreendidos como animais. No caso da mudança de gênero contemplada pela conceptualização de homem em termos de cabra, observa-se um aspecto a mais: ele é compreendido como um tipo invertido, um animal híbrido que não se coaduna com a visão clássica da divisão de gêneros. 4 Considerações finais Em consonância com os resultados obtidos com esta pesquisa, acredita-se que há evidências no sentido de que, para que se possa compreender a natureza do pareamento cabra em termos de homem, e de sua variação de gênero, é necessário que se examinem as correspondências entre pensamento, linguagem e cultura. Ou seja, a nosso ver, são consistentes os processos de natureza corpórea e socioculturalmente situados que motivam a conceptualização de homem em termos da expressão convencional ‘cabra’ bem como a sua variação de gênero. Por tal razão, considera-se tal expressão como polissêmica aos moldes da concepção de polissemia formulada por Lakoff (1987). Dessa forma, se propõe (ver abaixo diagrama) que os significados da expressão cabra’ se organizam a partir do agrupamento de duas categorias, ou de dois modelos cognitivos –animal e homem. Em outras palavras, propõe-se que os significados da expressão ‘cabra’ se encontram Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 159 organizados segundo um modelo categorial radial, de natureza aberta e dinâmica, de modo que: seu primeiro membro central é animal; e que,com base na metáfora animal SER HUMANO ÉANIMAL, se estabelece seu segundo membro central ‘ser humano’, cujo significado prototípico seria ‘indivíduo qualquer’ ou ‘homem’ e os significados periféricos seriam ‘cabra macho’, ‘cabra da peste’, ‘morador e trabalhador da zona rural’, ‘mestiço de mulato com negra’, capanga. O processo metafórico animal em termos de mulher (constante no diagrama abaixo) não se apresentou devidamente convencionalizado, segundo os sujeitos que responderam aos três questionários aplicados. Domínio Animal Generalização Demais significados Cabra da Peste 2. Cabra macho 1. Indivíduo; Homem Metáfora Animal (1):SER HUMANO É Conceito de nível básico: saliência perceptual/ interação e nomes curtos Metáfora Animal (2): SER HUMANO É ANIMAL 1. Homem: 1. Indivíduo qualquer; Homem; 2. Cabra Macho; 3. Cabra da Peste; 4. Morador e trabalhador rural; 5. mestiço de mulato e negra; 6. Capanga 2. Mulher À guisa de conclusão, os estudos voltados para itens polissêmicos, a exemplo da expressão convencional ‘cabra’, à luz dos postulados da Teoria da Metáfora Conceptual, mostram que o caráter arbitrário da relação entre significado e forma se encontraria mais distante do léxico mental do que se poderia imaginar. Nesses termos, o que poderia ser efetivamente arbitrário seria a sequência fonológica de cabra, por exemplo, e não o fato de essa sequência apontar para as relações conceptuais acima discutidas. Assim, vislumbra-se que uma visada arbitrária sobre a natureza dessa relação pode ser considerada bastante inconsistente. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 160 Por último, faz-se necessário salientar que, mesmo que se julgue importante a investigação dos processos psicológicos envolvidos na estruturação da relação dos significados polissêmicos em foco, estimase que, com este trabalho, contribui-se, ainda que modestamente, para a discussão acerca da arbitrariedade entre significado e forma. Declaração de autoria Declaramos que o texto foi redigido integralmente pelos dois autores. Fernanda Cavalcanti foi mais responsável pela ideia do tema, bem como das leituras teóricas no âmbito da Teoria da Metáfora Conceitual e da análise. Luciane Ferreira, por sua vez, foi responsável pela fundamentação teórica subsidiada pelos Teóricos da Metáfora Conceitual. Referências BERLIN, B; ROMNEY. K. A. Descriptive semantics of tzeltal numeral classifiers. In: ROMNEY. K. A.; D’ANDRADE, R. (Org.). Transcultural Studies in Cognition. New York: American Anthropologist Association, 1964. p.79-98. BLUTEAU, R. Vocabulário portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. BROWN, R. Social Psychology. New York: Free Press, 1965 CASCUDO, L. Coisas que o povo diz. 2. ed. São Paulo: Globo Editora, 2009. [1.ed. 1968]. FERREIRA, A. B. H. (de). Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010. FERREIRA, A. B. H. (de). Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4. ed. Curitiba: Positivo, 2009. FREUND, G. Grand Dictionnaire de la Langue Latine. Paris: Librairie de Firmin Didot Frères; Filset Cie., 1866. FREYRE, G. Nordeste. 7. ed. São Paulo: Global Editora, 2004. [1. ed. 1937] GIBBS, R. The poetics of mind: figurative thought, language, and understanding. New York: Cambridge University Press, 1994. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 161 GOATLY, A. Washing the brain, metaphor and hidden idelogy. Amsterdan; Philadelfia: John Benjamins Publishing Company, 2007. DOI: https:// www.jbe-platform.com/content/books/9789027292933 HINO, Y; LUPKER, S. J. Effects of polysemy in lexical decision and naming: an alternative to lexical access accounts. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, Washington, v. 22, n. 6, p. 1331-1356, 1996. DOI: http://dx.doi.org/10.1037/0096-1523.22.6.1331 HOUAISS, A. et al. Dicionário Houaissda Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. KLEIN, D.; MURPHY, G. The representation of polysemous words. Journal of Memory and Language, New York, v. 45, n. 2, p. 259-282, 2001. DOI: https://doi.org/10.1006/jmla.2001.2779 KÖVECSES, Z. Metaphor: a practical introduction. 2. ed. Oxford University Press, 2010. LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: University of Chicago Press, 1987. DOI: https:// doi.org/10.7208/chicago/9780226471013.001.0001 LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980. LANGACKER, R. Foundations of cognitive grammar: Theoretical Prerequisites. Stanford: Stanford University Press, 1987. v.1. LEVELT, W. Speaking. Cambrigde, MA: MIT Press, 1989. MACHADO, J. P. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência, 1952. MENEZES, E. D de. Das classificações temáticas da literatura de cordel:uma querela inútil. [s/d.]. Disponível em: <http://www.bahai.org. br/cordel/default.htm>. Acesso em: 15 jun. 2010. RÊGO, J. L. Fogo morto. 21. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1982. ROSCH, E.; MERVIS, C.; WAYNE, G.; JONHSON, D.; BOYESBRAEM, P. Basic objects in natural categories. Cognitive Psychology, Elsevier, v. 8, n. 3, p. 382-439, 1976. DOI: https://doi.org/10.1016/00100285(76)90013-X Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 162 RUHL, C. On monosemy: a study in a linguistic semantics. Albany: State University of New York Press, 1989. SILVA, A. M. Diccionario da Língua Portugueza. 7. ed. Lisboa: Typografia de Joaquim Germano de Souza Neves Editor, 1877. SILVA, A. M. Diccionario da Língua Portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1823. SILVA, A. M. Grande Dicionário da Língua Portuguesa. 10. ed. Lisboa: Editoria Confluência, 1949. SILVA, A. S. Sentidos múltiplos: polissemia, semântica e cognição. In: FELTES, H. P. de M. (Org.). Produção de sentido: estudos disciplinares. São Paulo: Annablume; Porto Alegre: Nova Prova; Caxias do Sul: Edurcs: 2003. ZYGUSTA, L. Manual of lexicography. The Hague: Mouton, 1971. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 137-163, 2019 163 ANEXOS Questionário 2 Questionário 3 1. Você acredita que o homem e a mulher são animais? 1. Você acredita que o homem é um animal? Por quê? 2. Se você acredita que tanto o homem quanto a mulher são animais, qual seria a diferença entre homem/mulher animal e os demais animais? 2. Você acredita que o homem possa ser representado por um animal? Qual seria e Por que razão? 3. Você acredita que haja diferenças entre o homem brasileiro nordestino e o homem brasileiro no geral? Por quê? 3. Você concorda com que a imagem do homem nordestino seja representada por Cabra? 4. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA se refere a: Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino. Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro. Apenas algum tipo de indivíduo/sujeito do sexo masculino brasileiro 4. Você vê alguma diferença quando um homem (nordestino?) é chamado de Cabra ao invés de somente “Homem”, “Cara”, “Rapaz”? Qual seria essa diferença? 5. Você acha que a expressão CABRA DA PESTE e CABRA MACHO se referem a: Qualquer invíduo/sujeito do sexo masculino Qualquer individuo/sujeito de sexo masculino brasileiro Qualquer indivíduo/sujeito de sexo masculino brasileiro e nordestino 5. Em sua opinião, qual seria o aspecto físico relativo a Cabra que você acredita que, em alguma medida, se assemelharia a de um homem? 6. Você acha que CABRA é usado também para se referir: Qualquer indivíduo de sexo feminino Qualquer indivíduo de sexo feminino brasileiro Apenas alguns indivíduos de sexo feminino brasileiro Só se refere a individuo do sexo masculino 6. Em sua opinião, qual seria o aspecto moral ou comportamental que, em alguma medida, se assemelharia a de um homem? 7. Quando você ouve a expressão CABRA BOM, que tipo de imagem lhe vem à cabeça? 7. Você acredita que seus pares (Avô, Pai, Marido, Companheiro, Amigos íntimos e em geral) possam ser chamados por você de Cabra? Por quê? 8. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um representante da mistura entre mulato e negro? 8. Você acredita que homens com os quais você não tem intimidade (Chefe, colegas de trabalho, anônimos na rua e no comércio e prestadores de serviços e autoridades de um modo geral) possam ser chamado por você de Cabra? Por quê? 9. Você concorda com definição segundo a qual CABRA é um jagunço? 9. Você acha que o Cabra tem nacionalidade ou naturalidade específica? 10. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um habitante da zona rural? 11. Você concorda com a definição segundo a qual CABRA é um cangaceiro? 12. Você concorda com a expressão que diz que “Não há doce ruim e cabra bom? 13. “Não me mete medo! Vá dizer a este mata-cachorro que eu agüento. Sou homem, cabra. Sou homem!”Ao ler essa passagem do romance FOGO MORTO, de José Lins do Rego, você acha que essa idéia de homem é adequada, é real? Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção e percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and Perception of Lexical Stress in English by Brazilian Portuguese Speakers Filipe Modesto Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil filipemodesto4@gmail.com Plinio Almeida Barbosa Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil pabarbosa.unicampbr@gmail.com Resumo: muitos adultos aprendizes de uma L2 possuem algum grau de sotaque. Contribui para esse sotaque a não adequada realização do acento tônico (AT), que tem papel preponderante para a estruturação prosódica da fala. 24 falantes do português brasileiro (PB) de quatro níveis autorreferidos de inglês americano (IA) participaram de testes de produção e percepção de AT. Os dados acústicos de produção dos participantes, assim como os escores na marcação da posição acentual foram coletados e comparados com um sujeito nativo. Os parâmetros acústicos de maior relevância para a realização do AT dos falantes do PB foram a duração, intensidade total e intensidade relativa das sílabas acentuadas. Os escores de percepção foram maiores do que os de produção, de modo geral. As palavras com acento inicial foram as que tiveram maior número de acertos tanto na produção quanto na percepção. Os falantes nativos do PB de todos os níveis empregam os mesmos parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA, sendo que estes tendem a se aproximar dos do nativo à medida em que o nível de inglês aumenta. O cognatismo não foi relevante para o uso dos parâmetros acústicos empregados na marcação do acento, mas influenciou os escores da posição acentual. Palavras-chave: sotaque estrangeiro; acento tônico; fonética acústica. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.165-189 166 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 Abstract: many adults who learn a second language have a foreign accent to some extent. The misproduction of lexical stress (LS), which plays an important role in the prosodic structure of speech, contributes to the perception of a heavier foreign accent. Twenty-four Brazilian Portuguese (BP) speakers of English of four different selfreported levels underwent tests of production and perception of LS. This study aimed to describe how production and perception of lexical stress happen to BP speakers of four different self-reported levels. Acoustic data, as well as the percentage of scores in stress placement, were collected and compared to the production of a native speaker of American English (AmE). Syllable duration, total intensity, and relative intensity were the most important parameters used by the BP speakers to stress syllables. Hits in the perception task were greater than the production task, overall. Initially stressed words had the greatest hits in both production and perception. Overall, the BP speakers from this use, in AmE, the same acoustic parameters used in BP for signaling LS. The production, in regards of acoustic parameters use, gets closer to the native when the proficiency level increases. Cognate words were not relevant in the acoustic parameters choice of the speakers, but they were relevant for the stress position hits. Keywords: foreign accent; lexical stress; acoustic phonetics. Recebido em 08 de março de 2018 Aceito em 11 de junho de 2018 1 Introdução A maioria dos adultos que aprendem uma segunda língua (L2) a falam com pelo menos algum grau de sotaque estrangeiro, especialmente se a fonética e a fonologia de L2 diferir significativamente do padrão de sua língua materna (L1) (FLEGE; HILLENBRAND, 1984). Um sotaque estrangeiro é percebido quando ouvintes nativos detectam divergências na produção fonética que ocorrem tanto no eixo segmental quanto suprassegmental (FLEGE, 1995). Ao longo dos anos, muitos fatores foram considerados como relevantes como relacionados ao sotaque estrangeiro, dentre eles: idade de aprendizado da L2, tempo de residência em país falante da L2, gênero, grau de instrução formal, motivação, aptidão para aprendizado de línguas e quantidade de uso da Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 167 L1. No entanto, dentre esses, apenas a idade de aprendizado da L2 e a quantidade de uso da L1 em relação à L2 foram considerados preditores significativos para o grau de sotaque (FLEGE, 1995; PISKE et al., 2001). Embora haja bastante discussão sobre a existência de um único período crítico para o aprendizado de uma L2 sem sotaque (LENNEBERG, 1967; SCOVEL, 1969, 1988; PATKOWSKI, 1980, 1990), outros estudos apontam para diversos períodos críticos ou ainda períodos sensíveis ao longo da vida que influenciam as habilidades linguísticas de cada sujeito. (FATHMAN, 1975; SELIGER, 1978; WALSH; DILLER, 1981, LONG, 1990; HURFORD, 1991). Embora tais períodos sejam importantes a serem considerados, a idade não se apresenta como fator limitante para que um falante atinja um alto grau de proficiência numa L2. Experimentos com falantes nativos de mandarim e espanhol recém chegados aos EUA e que já moravam há uma década, mostraram que as produções dos falantes experientes eram consideradas corretas por falantes nativos do IA não muito mais frequentemente que as produções dos falantes recém chegados (FLEGE; MUNRO; SKELTON, 1992). De qualquer forma, o sotaque estrangeiro pode causar diversas situações desagradáveis ao falante quando afeta a compreensão do conteúdo que se deseja comunicar. Um mecanismo que pode estar por trás do sotaque é a influência que as características fonéticas da L1 exercem sobre a L2 (FLEGE, 1995). A proximidade entre sons das duas línguas faz com que os participantes que aprendem a L2 em período pós-lingual estabeleçam uma relação alofônica dos sons de sua língua materna com os novos sons aprendidos, ao invés da criação de uma categoria fonológica distinta (FLEGE, 1995). Isso provoca as distorções de produção de consoantes e vogais e da prosódia da L2. Um exemplo disso ocorre quando da pronúncia palatalizada do [t] do inglês antes da vogal [i] ou semivogal [j] por parte de brasileiros (two/too/to [thu] sendo pronunciado [ʧu]). Tal influência é percebida por falantes nativos do inglês. Da mesma forma, a nível prosódico (suprassegmental), a palavra demonstrate é pronunciada DEmonstrate. Se pronunciada demonsTRATE, seguindo o padrão oxítono de acentuação dos verbos no infinitivo do PB, também será percebida com sotaque pelo falante nativo do IA. Além de alterações na produção de vogais e consoantes, uma relação entre os padrões prosódicos de uma língua e outra também se dá. Os parâmetros rítmicos, apesar de não serem facilmente percebidos pelos falantes não nativos, têm importante papel na detecção do sotaque 168 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 estrangeiro em inglês, mais importante que desvios a nível segmental e de estrutura silábica, nos termos de Anderson-Hsieh, Johnson e Koehler (1992). O acento lexical primário, que aqui chamaremos de acento tônico (AT), é a marca lexical que se realiza na cadeia da fala como marca de proeminência percebida de uma sílaba em relação a outra numa palavra com mais de uma sílaba (ARCHIBALD, 1993; MAJOR, 2001). Esse acento é frequentemente realizado por um aumento na frequência fundamental, duração e intensidade sonora da sílaba que o carrega. Cada língua que tem AT pondera diferentemente o peso de cada parâmetro acústico para marcar a proeminência desse acento. O papel do AT é fundamental na segmentação do sinal contínuo de fala e para o seu reconhecimento, se dando pela estruturação prosódica. A alternância entre sílabas fortes e fracas na fala colabora na tarefa de determinar constituintes no interior do enunciado (CUTLER, 1986, 1989; CUTLER; NORRIS, 1989). O papel da acentuação é ainda considerado como facilitador no acesso lexical (GROSJEAN; GEE, 1987). A acentuação não padrão de palavras leva a problemas na decisão lexical, que contribui para estabelecer a relação entre a imagem acústica da palavra e a representação mental da mesma. É mais considerado o papel do AT no reconhecimento de fala especialmente na ativação lexical inicial dos possíveis candidatos e também na desambiguação dos candidatos selecionados (COLOMBO, 1991). Para falarmos do AT em inglês por falantes brasileiros, é preciso antes examinar como se dá a realização acústica desse fenômeno prosódico em ambas as línguas. AT no Inglês O inglês é uma língua de acento com posição variável (HELAL, 2014; GIMSON, 1980; LADEFOGED, 1982) podendo recair sobre qualquer posição silábica numa palavra, embora o padrão inicial de acentuação (left-most) seja predominante no idioma (80% das palavras), especialmente em palavras dissilábicas (CUTLER; CARTER, 1987). Nos dissílabos do inglês, há uma relação morfológica derivacional frequente em palavras de mesmos constituintes segmentais: o acento na primeira sílaba se dá no substantivo (e.g., PROtest) e o acento na segunda sílaba se dá no verbo (e.g., proTEST). O acento primário no inglês é realizado por contraste de qualidade da vogal acentuada (plena vs. reduzida na Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 169 átona) bem como pelo frequente aumento da frequência fundamental, intensidade sonora e duração silábica na tônica. Além das características prosódicas, o AT no IA possui uma marca a nível segmental. As vogais de sílabas acentuadas são sempre vogais plenas, enquanto as de sílabas átonas são geralmente reduzidas e em sua maioria realizadas pelo schwa. Plag, Kunter e Schramm (2011), que fazem uma análise do acento primário e secundário no inglês tanto na situação da palavra com acento de pitch quanto na palavra não acentuada, reafirma o papel da duração na marcação do AT em IA. Apesar de o parâmetro ser importante para diferenciar sílabas acentuadas de átonas, não se encontrou diferença significativa do parâmetro capaz de distinguir os dois tipos de acento. O trabalho de Sluijter e van Heusen (1996) utilizou pares substantivo-verbo do IA que contrastam no acento em oito repetições de seis falantes do IA. Os autores encontraram que sílabas acentuadas eram geralmente mais longas que as sílabas átonas, sendo o parâmetro duração considerado de efeito na marcação do AT. No que diz respeito à intensidade total, as sílabas acentuadas eram mais intensas que as não acentuadas, nas duas condições experimentais usadas: com a palavra em foco e fora de foco linguístico. No entanto, quando o foco não estava na palavra, o aumento do parâmetro não era significativo, corroborando o argumento de que a intensidade está mais relacionada com acento de pitch do que com AT propriamente. Há grande discussão sobre a relevância ou não de F0 na marcação do AT em IA. Discute-se que o papel de F0 seria relevante na marcação do acento apenas nas palavras que se encontram em condição de foco. Apesar disso, não se nega a importância de F0 nessa marcação prosódica da língua. No momento da proeminência, ocorre o pico ou uma inflexão positiva da curva de F0 na sílaba acentuada. AT no Português Brasileiro No português brasileiro (PB), assim como no inglês, o acento também é contrastivo (CONSONI et al., 2006), como nos exemplos: SAbia, saBIa, sabiA. O PB tem três janelas possíveis de acentuação primária (as três últimas sílabas de uma palavra), sendo que há maior distribuição de palavras acentuadas na penúltima sílaba, constituindo aproximadamente 63% (ARAÚJO et al., 2007) do padrão de acentuação tônica da língua. A duração silábica é o parâmetro acústico mais importante para a realização do AT no PB, seguido da frequência e, por 170 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 último, a intensidade, como mostrado por Fernandes (1976), que realizou o estudo do AT em frases assertivas lidas, e outros autores (MASSINICAGLIARI, 1992; BARBOSA, 1996). Os correlatos acústicos variam sobretudo em função da força prosódica de uma palavra na frase, muito mais do que devido a um padrão pré-determinado de acentuação das palavras. Quando uma palavra está num grupo prosódico fraco, o AT se dá pela combinação de duração e intensidade. A intensidade, diferentemente da duração, cai drasticamente nas sílabas pós-tônicas. Quando uma oxítona se encontra em posição prosódica fraca dentro da frase, não há um parâmetro acústico específico para a marcação do AT. A frequência fundamental tem papel importante na marcação de proeminência, mas a nível frasal apenas (MORAES, 1998). É evidente que o inglês e o PB têm diversas diferenças de acento tônico não somente no que diz respeito ao padrão de acentuação, mas também na natureza acústica desse parâmetro prosódico. Portanto, esse artigo se propõe a estudar como se dá a realização do AT em inglês por falantes brasileiros que se julgam de diferentes níveis de proficiência, assim como avaliar como esses mesmos participantes percebem o AT do inglês quando falado por nativos, buscando estabelecer uma possível correlação entre a produção e a percepção do AT. 2 Métodos Participaram da pesquisa 24 participantes (15 mulheres e 9 homens), que se encaixaram no critério de inclusão: ser brasileiro, falante nativo da variante paulista do PB e ter algum conhecimento de inglês americano (IA). Após preencherem o termo de consentimento livre e esclarecido, todos os participantes responderam a um breve questionário com informações de onde haviam estudado o inglês, por quanto tempo e se haviam morado em país falante da língua, para traçar o perfil sociolinguístico do inglês da população estudada. Além disso, os participantes tinham que se atribuir uma nota que considerassem que melhor descrevesse o seu nível de inglês, numa escala crescente de 1 a 4. Feito isso, dava-se início às etapas de produção e percepção. Os participantes se distribuíram em 7, 5, 7, 5 nos níveis de inglês N1, N2, N3 e N4, respectivamente. Do total de participantes, 66,7% (n=16) afirmou que seu conhecimento de inglês vinha de escolas de idiomas e apenas um sujeito, de nível 3, declarou ter sido autodidata no Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 171 estudo da língua. A grande maioria (88%) nunca havia morado em país falante de língua inglesa. Para fins de comparação com os parâmetros acústicos obtidos dos falantes brasileiros, gravamos um falante americano com as palavras utilizadas na etapa de percepção do estudo. O sujeito é natural de Minneapolis-MN, Estados Unidos da América, com 22 anos na época da gravação e morava no Brasil há aproximadamente 6 meses, já havendo estudado português anteriormente. A análise confirma que o uso de parâmetros acústicos do IA segue o da literatura, não tendo tido, pelo menos até esse momento da gravação, influência do PB. 2.1 Etapa de Produção Uma lista contendo 45 palavras trissílabas do IA (22 cognatas; 23 não cognatas- ANEXO I) foi apresentada a cada sujeito na forma de uma apresentação de slides, em que cada slide continha uma palavra da lista na frase-veículo Say___again. As palavras utilizadas não foram controladas no que diz respeito aos afixos, mas buscaram seguir a proporção de posição acentual do inglês, que contém a maioria das palavras com padrão P3. Os slides eram aleatorizados pelo software e os participantes foram instruídos a lerem uma frase por vez, em seu ritmo de fala natural. Toda essa etapa foi gravada numa taxa de amostragem de 44,1 kHz, a 16 bits. As gravações não foram interrompidas e os participantes podiam repetir as frases quando ficavam disfluentes. As palavras foram então extraídas das frases-veículo e as camadas de anotação de “palavra”, “sílaba” e “tonicidade” foram criadas utilizando o software Praat (BOERSMA; WEENINK, 2018). Os parâmetros acústicos: mediana de F0 (em Hertz), duração (em ms), intensidade total e intensidade relativa (ambas em dB) foram extraídos para as sílabas através do script desenvolvido por Barbosa (2016) e a análise estatística feita através do programa R (R Development Core Team, 2011). A intensidade relativa, correlata do esforço vocal empregado na produção, foi obtida através diferença entre a energia até a frequência máxima disponível e a energia até 400 Hz (TRAUNMÜLLER; ERIKSSON, 2000). As medidas para cada sílaba foram associadas aos fatores tonicidade da sílaba (átona ou tônica), cognatismo da palavra (cognata ou não cognata) e o nível autorreferido de proficiência (N1, N2, N3, N4). 172 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 2.2 Etapa de Percepção As palavras da etapa de produção pronunciadas pelo falante nativo do IA foram usadas para montar um teste de percepção no computador através de um script do programa Praat. Para tanto, os participantes usaram fones de ouvido supra aurais para maior concentração. Na tela, três opções apareciam para os participantes sob a forma de retângulos contendo indicação da posição da sílaba tônica. Eles deviam clicar no retângulo que para eles indicasse a sílaba mais forte: no início da palavra (P3), no meio (P2) ou no fim (P1). Ao clicar numa posição, o programa automaticamente tocava o próximo estímulo. Cada palavra foi apresentada aleatoriamente três vezes com o objetivo de avaliar a consistência das respostas de cada sujeito. As respostas foram extraídas e computadas para cada sujeito, sendo uma resposta considerada válida quando pelo menos 2 das três escolhas foi feita pela mesma posição. Para a análise estatística dos dados da etapa de produção, por os modelos não terem passado no teste de normalidade necessário para atender às condições da análise de variância tradicional (2-way ANOVA), utilizamos a análise de variância não paramétrica de dois fatores, Scheirer-Ray-Hare (SHR), uma extensão do teste de Kruskal-Wallis, adotando-se nível de significância de 0,05, que também foi o mesmo usado nos testes post hoc de Wilcoxon com correção de Bonferroni, para os modelos com fator significativo. O teste de correlação de Spearman foi utilizado para comparar os escores da etapa de produção com os da percepção. A diferença mínima significativa entre os diversos níveis de inglês foi calculada para cada parâmetro com o teste de Duncan, afim de verificar se as diferenças na produção eram suficientes para classificar os participantes em grupos que se aproximam ou não do falante nativo. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, sob o número CAAE: 58189216.4.0000.5404. 3 Resultados e discussão Após a coleta de dados, apresentamos as informações acústicas obtidas nas gravações dos falantes PB, do nativo do IA, além dos escores obtidos nas tarefas de produção e percepção. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 173 3.1 Descrição dos dados de produção dos participantes e do falante nativo Os valores médios dos parâmetros acústicos na fala do sujeito americano, expressos na Tabela 1, mostram que há um aumento nos valores de frequência fundamental, intensidade total e especialmente de duração na realização do acento tônico, enquanto a intensidade relativa não se modificou com a tonicidade da sílaba. TABELA 1 – Dados acústicos brutos do falante nativo do IA (dif= diferença tônica - átona) Parâmetro Acústico Mediana de F0 (Hz) Duração (ms) átona tônica Nativo 197 235 dif 38 átona tônica 90 97 dif Intensidade total Intensidade relativa (dB) (dB) átona tônica 7 59 64 dif 5 átona tônica 2 dif 2 0 Foram elaborados quatro modelos de análise para o falante nativo (duração, mediana de F0, intensidade total e intensidade relativa normalizados) com o objetivo de investigar a relação entre os fatores (cognatismo e tonicidade) e a produção do acento tônico. A análise mostrou que os aumentos nos parâmetros acústicos da Tabela 1 foram significativos apenas para a intensidade total das sílabas tônicas de palavras cognatas do falante americano (Tabela 2). Assim, o fator cognatismo foi relevante para diferenciar apenas a intensidade total das palavras lidas, sendo que as palavras não cognatas tiveram intensidade média de 62 dB, contra 59 dB das palavras cognatas (p-valor< 0,05). TABELA 2 – Resultado da análise de variância não paramétrica de dois fatores para os dados acústicos do falante americano Nativo Duração Mediana de F0 Int. Total Int. Relativa tônica p= 0,005* tônica p= 0,00005* tônica p= 0,009*/ não-cognata p= 0,00002* - Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 174 Os parâmetros acústicos dos participantes dos quatro níveis foram extraídos das sílabas segmentadas. Os dados da Tabela 3 mostram que, de maneira geral, os falantes de todos os níveis aumentam duração, intensidade total e a intensidade relativa na realização do acento em inglês. Para os níveis 1, 2 e 4, a mediana de F0 foi significativamente mais alta nas sílabas átonas. Ainda assim, observa-se que o comportamento da frequência parece se aproximar daquele do falante nativo à medida em que o nível aumenta se considerarmos dois grandes grupos: falantes menos proficientes (N1 e N2) e falantes mais proficientes (N3 e N4), uma vez que a designação por grupo não foi robusta, se baseou numa autoavaliação. Para a duração silábica, o parâmetro mais importante na marcação da tônica em PB, embora todos os grupos tenham aumentado a duração da vogal nas sílabas tônicas, esse aumento foi visivelmente maior para os brasileiros de nível 1, e vai caindo com o aumento do nível. A diferença da média das durações de sílabas átonas e tônicas é exatamente a mesma nos falantes do nível 4 e no falante americano utilizado no estudo (dif= 38 ms). TABELA 3 – Dados acústicos brutos dos falantes do PB, por nível de inglês (dif= diferença tônica - átona) Parâmetro Acústico Nível Duração (ms) Mediana de F0 (Hz) Intensidade total (dB) átona tônica dif Intensidade relativa (dB) átona tônica dif átona tônica dif átona tônica dif 1 225 337 112 195 186 -9 68 69 1 8 10 2 2 217 309 92 202 192 -10 70 71 1 9 11 2 3 216 287 71 210 213 3 65 71 6 8 11 3 4 232 270 38 186 181 -5 71 73 2 8 11 3 geral 222 303 81 199 194 -5 69 71 2 8 11 3 Nativo 197 235 38 90 97 7 59 64 5 2 2 0 Os brasileiros aumentaram a intensidade total e relativa nas sílabas tônicas em todos os casos, sendo o aumento maior nos falantes de nível 3 (dif= 6 dB). O falante nativo estudado não utilizou a intensidade Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 175 relativa para diferenciar a tonicidade das silabas, mas a diferença de intensidade total entre sílabas de diferentes tonicidades (dif= 5 dB) é próxima da dos falantes de nível 3. O resultado dos modelos SHR para os parâmetros, com todos os participantes de cada nível incluídos se encontram na Tabela 4. Nível TABELA 4 – Resultado do teste SHR para os dados acústicos dos falantes brasileiros Duração Mediana de F0 Int. Total Int. Relativa 1 tônica p<0,01 átona p= 0,0008 tônica p=0,009 cognata p<0,01 tônica p<0,01 2 tônica p<0,01 átona p=0,006 cognata p=0,002 tônica p<0,01 3 tônica p<0,01 - tônica p<0,01 cognata p<0,01 tônica p<0,01 4 tônica p<0,01 - tônica p<0,01 cognata p<0,01 tônica p<0,01 geral tônica átona tônica/cognata tônica Nativo tônica p= 0,005* tônica p= 0,00005* tônica p= 0,009*/ não-cognata p= 0,00002* - Os parâmetros acústicos apresentados na Tabela 3 são de fato significativamente maiores nas sílabas tônicas dos falantes brasileiros, com exceção do aumento da mediana de F0 que havia ocorrido para o nível 3 e a leve diferença no parâmetro para o nível 4. Esse achado nos revela que a realização do acento pelos falantes brasileiros com esse parâmetro começa com uma diferença negativa significativa para falantes de nível mais baixo, passando para uma não diferença do parâmetro nos brasileiros de nível mais alto. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 176 A diferença de intensidade relativa da Tabela 3 é significativa em todos os níveis, colocando o esforço vocal como relevante na realização do acento tônico em inglês na fala dos brasileiros. A análise SHR mostrou ainda que, para todos os grupos, o fator cognatismo foi significativo para a realização das tônicas, sendo que os valores de intensidade são significativamente maiores para as tônicas não cognatas. Para investigar a parte de variância explicada por cada fator, calculamos a extensão de efeito para cada um dos parâmetros e níveis (Tabela 5) para avaliar qual fator (tonicidade, cognatismo) é mais determinante para explicar os valores médios de cada parâmetro acústico. TABELA 5 – Extensão de efeito dos parâmetros acústicos pelos fatores Ton= tonicidade e Cog= cognatismo, em %. (DUR= duração, F0MED= mediana de F0, TOTINT= intensidade total, RELINT= intensidade relativa) DUR F0MED TOTINT RELINT Ton Cog Ton Cog Ton Cog Ton Cog N1 22,3 NA 1,3 NA 0,7 5,3 2,4 NA N2 14,2 NA 1,2 NA NA 1,4 3,6 NA N3 11,6 NA NA NA 3,2 4,4 7,1 NA N4 3,8 NA NA NA 4,3 4,2 2,7 NA Nativo 5,6 NA 12 NA 13,6 5,1 NA NA NA= fator não significativo na análise SHR Os dados da Tabela 5 mostram que a parte da variância explicada pela tonicidade para participantes de nível 1 (N1) é definitivamente maior para o parâmetro duração que para F0 e intensidades total e relativa. Sendo assim, o parâmetro acústico mais importante para a marcação do acento na L1 é empregado para a mesma função na L2. Essa parte da variância vai diminuindo para esse parâmetro à medida em que o nível de proficiência aumenta, chegando a 3,8% em N4, próximo à parte da de variância da duração do falante nativo de acordo com a tonicidade (5,6%). No entanto, nenhum dos grupos se aproxima do falante nativo nos parâmetros acústicos que para ele tiveram maior variância explicada (mediana de F0 e intensidade total). Faz-se necessário, na análise da Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 177 maior contribuição de F0 e da intensidade total no caso do falante nativo, considerarmos dois pontos: o fato de termos nos baseado em dados de um único falante da língua e que nas frases lidas, a palavra das quais extraímos os parâmetros estava em condição de foco. Tal condição pondera em maior grau o peso que F0 e intensidade total recebem nas sílabas acentuadas no IA (SLUIJTER, 1996). O teste de Duncan (Tabela 6) foi realizado a fim de analisar como a distribuição dos parâmetros acústicos dos falantes do PB se aproximou ou não dos mesmos dados do falante americano, agrupando as médias de cada parâmetro de acordo com as diferenças mínimas significativas entre cada grupo, representado por uma letra. Grupos de mesma letra não diferem significativamente entre si. Para o parâmetro duração, os níveis N1 e N3 se diferenciaram entre si, com os grupos N2 e N4 tendo médias que se aproximam dos dois níveis iniciais e os falantes de N3 foram os que mais se aproximaram da produção do nativo. Para a mediana de F0, os grupos N2, N3 e N4 foram agrupados independentemente e N1 com valor de F0 próximo de N2 e N4. É preciso dizer no entanto, que o falante nativo era do sexo masculino, que tem frequência fundamental naturalmente mais baixa que a de mulheres (pelas particularidades fisiológicas das pregas vocais de cada sexo) e isso certamente influenciou o resultado da análise, tendo em vista que a maioria dos participantes eram do sexo feminino. Para a intensidade total, os grupos N1, N2 e N4 foram independentes, com N3 com valores pertencentes tanto a N2 quanto a N1. Este último foi quem mais se aproximou da produção do falante nativo. Para a intensidade relativa, todos os níveis foram agrupados juntos, sendo bastante diferentes do falante nativo (falantes do PB com intensidade relativa média de 9 dB e falante nativo do IA 2 dB). TABELA 6 – Agrupamentos dos dados acústicos dos níveis DUR F0MED TOTINT RELINT N1 a bc c a N2 ab b b a N3 b a bc a N4 ab c a a Nativo c d d b 178 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 Utilizamos nesse trabalho os dados acústicos de um único falante nativo do IA que se encontrava disponível no momento do estudo. Apesar de seus dados corroborarem a literatura clássica do que se espera para o acento no IA, temos de entender as limitações de fazer análises e comparações de grandes grupos com um único sujeito (e consequentemente um único sexo). 3.3 Escores da etapa de produção A marcação de acentuação das palavras produzidas pelos brasileiros foi comparada com o acento esperado da palavra em inglês para calcular o escore de produção de cada nível. Nessa análise foram consideradas além do nível autorreferido de inglês o cognatismo da palavra e a posição do acento, buscando analisar se alguma posição acentual era preferida pelos falantes. O acerto geral da tarefa de produção de todos os níveis foi de 51% na marcação do acento pelas 3 posições acentuais, independente da realização acústica de cada grupo, sendo que os participantes acertaram 44% do acento nas palavras que eram cognatas e 53% nas não cognatas. O acerto de posição acentual foi proporcional ao nível de inglês, com pequena queda de 2% do nível 3 para o nível 4 (nível 1: 39%; nível 2: 45%; nível 3: 62%; nível 4: 60%). É esperado tal aumento uma vez que quanto maior o nível de conhecimento da língua, mais familiar com a posição do acento tônico da língua estrangeira. Comparando a porcentagem de acertos por cognatismo na etapa de produção, vemos uma maior facilidade em acertar o acento nas palavras não cognatas (53%) do que nas cognatas (44%) corroborando a hipótese de que os participantes, ao lerem uma palavra cognata, seriam influenciados pela palavra no PB e ignorariam o acento no inglês. Refazendo a análise por nível (Gráfico 1), observamos novamente que a diferença entre a percentagem de acertos entre cognatas e não cognatas existe, mas que diminui conforme o nível de inglês aumenta. Isso fica bastante evidente ao compararmos os extremos (N1 e N4), em que, no primeiro nível, temos 28% de acertos das palavras cognatas e 50% das palavras não cognatas, enquanto que para o quarto nível houve 59% de acerto nos dois níveis de cognatismo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 179 GRÁFICO 1 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível (N1, N2, N3 e N4) e cognatismo (C= cognatas, NC= não cognatas) As três possíveis posições de colocação do acento, tendo em vista que todas as palavras eram trissílabas, eram P3 (posição inicial), P2 (posição medial) e P1 (posição final). A análise por posição acentual mostra que, de maneira geral, a posição de maior acerto por parte dos participantes foi P3 (56%), seguida de P1 (50%) e P2 (32%). Reorganizando os mesmos dados por nível (Gráfico 2), temos que para os níveis mais altos, o maior número de acertos de produção ocorre na posição inicial de palavras e vai caindo conforme a posição esperada do acento tende ao fim da palavra, provavelmente por estigmatizar que a maioria das palavras trissilábicas do inglês tem acentuação tônica em posição inicial (CUTLER; CARTER, 1987; CUTLER, 2015), o que é verdade e justifica o grande número de acertos em P3. No entanto, isso faz com que quando o acento de fato recai sobre outras posições, os brasileiros de nível mais alto ignorem a acentuação correta na produção. 180 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 GRÁFICO 2 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível (N1, N2, N3 e N4) e posição acentual (P3= inicial, P2= medial, P1= final) Já para os brasileiros de nível mais baixo, entendendo a grande influência da L1 em sua produção, vemos um baixo índice de acertos em P3 (34%), compreensível uma vez que esse padrão acentual é bastante incomum no PB (MASSINI-CAGLIARI, 1992). Ao contrário dos falantes de nível 4, então, a porcentagem de acertos em P1 é maior para os níveis 1 e 2. 3.4 Escores da etapa de percepção O teste de percepção foi subsequente à etapa de produção e contou com as mesmas palavras da primeira etapa para manter o rigor experimental. Nesse teste de escolha forçada, os participantes de todos os níveis escolhiam qual a posição acentual que julgavam ser a mais forte. O acerto geral dos 4 grupos foi de 68%, passando o acerto da amostra total na etapa de produção (51%), sendo que do total de palavras houve um acerto ligeiramente maior de cognatas (70%) que de não cognatas (67%). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 181 Os acertos no teste de percepção por nível foram nível 1: 64%, nível 2: 58%, nível 3: 75% e nível 4: 75%. Assim como na etapa de produção, o índice de acertos tende a subir com o nível de inglês, mas duas observações ficam claras ao observar o Gráfico 3: na etapa de percepção os índices são todos maiores que os de produção para todos os níveis e tendem a se estabilizar com o aumento do nível. Em outras palavras, embora perceber o acento tônico nas palavras seja aparentemente mais fácil para os brasileiros do que acertá-lo em suas produções, a diferença entre as duas (produção-percepção) vai diminuindo à medida em que o nível de inglês cresce. Essa relação entre os achados de produção e percepção também foi encontrada em estudos anteriores. BrawermanAlbini e Becker (2014) fizeram um estudo de produção e percepção no que diz respeito à população, mas utilizando um padrão incomum de acentuação (quarta e quinta sílabas, a contar do final), sendo todas as palavras cognatas com o PB. A relação entre o índice de acertos na produção e percepção (28% e 85%, respectivamente) foi paralela aos nossos resultados para a categoria de palavras cognatas (47% e 70% para produção e percepção, respectivamente). A população do estudo das autoras não contava com falantes de nível avançado. GRÁFICO 3 – Comparação do percentual de acertos nas etapas de percepção e produção por nível (N1, N2, N3 e N4) 182 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 A análise dos acertos em função do cognatismo (Gráfico 4) mostra que, apesar de ainda haver certa predominância no acerto de palavras não cognatas nos níveis mais baixos, como havia na produção (diferença C-NC em N1 na produção: 22%), ela diminui na percepção (diferença C-NC em N1 na percepção: 4%). GRÁFICO 4 – Percentual de acertos das palavras na etapa de percepção por nível (N1, N2, N3 e N4) e cognatismo (C= cognatas, NC= não cognatas) É interessante notar que os falantes de nível 4 também subiram o índice de acertos na tarefa de percepção, mas que ainda assim, não diferenciam pela via do cognatismo no processamento de acentuação no inglês. A comparação entre os dois gráficos nos permite ainda notar uma leve inversão da porcentagem de acertos de cognatas e não cognatas em N1 e N3 entre as tarefas de produção e percepção: na etapa de produção, as palavras não cognatas tiveram mais acertos que as cognatas sendo que o contrário acontece na tarefa de percepção. O Gráfico 5 traz a percentagem de acertos de percepção do acento de acordo com o nível e posição acentual da palavra. Na tarefa de percepção os acertos de P3 se concentram mais numa única região de acerto, entre 66-80%, enquanto que a mesma posição na tarefa de produção teve grande variação de acertos, 34-77%. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 183 GRÁFICO 5 – Percentual de acertos das palavras na etapa de produção por nível (N1, N2, N3 e N4) e posição acentual (P3= inicial, P2= medial, P1= final) Os acertos nas outras posições acentuais foram decrescentes e mais dispersos que em P3, sendo que os falantes de nível 4 acertaram 66% das palavras com acento final, enquanto os falantes de nível 1 acertaram apenas 29% das mesmas. É interessante ressaltar ainda que o alto índice de acertos em P3 em relação a P1 pode se relacionar ao fato de muitos brasileiros classificarem como tônico o acento secundário em P3 de algumas palavras, como in na palavra interact, quando na verdade a tônica se encontra em P1. 3.5 Produção x Percepção Os índices de acerto na tarefa de percepção foram maiores para todos os níveis de inglês que os índices da etapa de produção. Para verificar se existe uma possível relação entre os dados de produção e percepção ou se são independentes, foi realizado o teste de correlação de Spearman entre os índices gerais de acerto nas duas etapas do estudo. Embora a correlação seja positiva e de 0,87, esse valor não é significativo, devido ao pouco número de dados, pois consideramos um valor por nível. 184 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 4 Conclusão Os falantes nativos do PB de todos os níveis empregam os mesmos parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA (duração e intensidade). As diferenças acústicas realizadas na produção acentual tendem a se aproximar das realizadas pelo falante nativo do IA aqui estudado nos falantes de nível mais alto e o cognatismo da palavra afetou a realização do acento apenas para a intensidade da sílaba tônica em todos os níveis. A relação do nível de proficiência com o desempenho na produção acústica ocorre de maneira paralela aos achados de estudos anteriores que comparam a idade de aprendizado de falantes estrangeiros que foram imersos em países falantes da L2 (FLEGE, MUNRO, SKELTON, 1992; FLEGE, 1995), em que o falante mais proficiente se compara ao residente de maior tempo no país falante de IA. Os participantes do estudo mostraram maior facilidade em perceber a posição correta do acento tônico em inglês do que colocar o acento na sílaba certa, dado que os escores de acerto do acento foram maiores na percepção do que na produção em todos os grupos, embora tal diferença entre as duas tarefas diminua drasticamente para os falantes N2 em diante. Embora o cognatismo não tenha influenciado os parâmetros acústicos utilizados na produção do AT pelos participantes (apenas na intensidade), há diferenças no que diz respeito ao índice de acertos de cada grupo baseado no cognatismo. Os brasileiros menos proficientes acertaram metade das palavras não parecidas com o PB (50%), mas apenas uma pequena das palavras parecidas (28%) no que se refere à produção. Essa diferença não ocorreu nos participantes mais proficientes. Esses achados corroboram a hipótese da influência que a L1 exerce (FLEGE, 1995), especialmente nos falantes que se encontram num menor nível da L2. Esses falantes ignoram posições acentuais que diferem das posições de palavras cognatas da L1, fazendo com que errem o acento no IA e, quando se trata de uma palavra não cognata, buscam realizar o acento de maneira mais criteriosa. Palavras com acento em posição inicial tiveram o maior número de acertos tanto na produção quanto na percepção do AT. Para fazer maiores inferências sobre a proximidade da produção dos falantes de PB no IA é necessário controlar objetivamente o nível de proficiência (e não se basear apenas na auto percepção), aumentar o número de participantes nativos do IA (e variar o sexo) e controlar Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 185 os aspectos morfológicos das palavras utilizadas na interpretação dos resultados encontrados. As palavras monomorfêmicas constituem cerca de 7 % do corpus, sendo as demais bimorfêmicas. Embora esse fator venha a ser controlado em estudo posterior, observamos a possibilidade de atração de outra posição devido a acento secundário, como comentado anteriormente. Declaração de autoria Contribuição dos Autores Filipe Modesto e Plínio Almeida Barbosa, propuseram a presente pesquisa. F. Modesto organizou a metodologia experimental e coleta de dados sob a supervisão de P. Almeida Barbosa, coordenador do grupo de pesquisa, que também participou ativamente na análise de dados, redação e escrita do texto final do artigo. A tradução para o inglês foi realizada por F. Modesto. Ambos os autores são membros do Grupo de Estudos em Prosódia da Fala do IEL/UNICAMP. Referências ANDERSON-HSIEH, J.; JOHNSON, R.; KOEHLER, K. The relationship between native speaker judgements of nonnative pronunciation and deviance in segmentals, prosody, and syllable structure. Language Learning, [s.l.], v. 42, n. 4, p. 529-555, 1992. Doi: https://doi. org/10.1111/j.1467-1770.1992.tb01043.x ARAÚJO, G. A. et al. Algumas observações sobre as proparoxítonas e o sistema acentual do português. In: ARAÚJO, G. (Org.). O acento em português: abordagens fonológicas. São Paulo: Parábola, 2007. ARCHIBALD, J. Language learnability and L2 phonology: The acquisition of metrical parameters. Dordrecht; Boston; London: Kluwer Academic, 1993. Doi: https://doi.org/10.1007/978-94-011-2056-2 BARBOSA, P. A. At least two macrorhythmic units are necessary for modeling Brazilian Portuguese duration: emphasis on segmental duration generation. Cadernos de Estudos Linguísticos, Unicamp, v. 31, p. 33-53, 1996. BOERSMA, P.; WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer [Computer program]. Version 6.0.37, 2018. Disponível em: <http://www. praat.org/>. Acesso em: 03 fev. 2018. 186 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 BRAWERMAN-ALBINI, A.; BECKER, M. R. Perception and Production of English Stress by Brazilian Speakers. Concordia Working Papers in Applied Linguistics, Montreal, v. 5, p. 73-84, 2014. COLOMBO, L. The role of lexical stress in word recognition and pronunciation. Psychological Research, Leiden, v. 54, p. 71-79, 1991. Doi: https://doi.org/10.1007/BF00867334 CONSONI, F.; ARANTES; P.; BARBOSA, P. A.; NETTO, W. F. Hipóteses acerca do reconhecimento de acento lexical em palavras isoladas. Estudos Linguísticos, Assis, v. XXXV, p. 792-799, 2006. CUTLER, A. Auditory lexical access: Where do we start? In: W. MARSLEN-WILSON, W. (Ed.). Lexical representation and process. Cambridge, MA: MIT Press, 1989. p. 342-356. CUTLER, A. Forbear is a homophone: Lexical prosody does not constrain lexical access. Language & Speech, Ohio, v. 29, p. 201-220, 1986. Doi: https://doi.org/10.1177/002383098602900302 CUTLER, A. Lexical Stress in English Pronunciation. In: REED, M.; LEVIS, J. M. (Ed.). The Handbook of English Pronunciation. Oxford: Wiley Blackwell, 2015. CUTLER, A.; CARTER, D. M. The predominance of strong initial syllables in the English vocabulary. Computer Speech and Language, Sheffield, v. 2, p. 133-142, 1987. Doi: https://doi.org/10.1016/08852308(87)90004-0 CUTLER, A.; NORRIS, D. The role of strong syllables in segmentation for lexical stress. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, Washington, v. 14, p. 113-121, 1989. FATHMAN, A. The relationship between age and second language productive ability. Language Learning, [s.l.], v. 25, p. 245-253, 1975. FLEGE, J. E. Second language speech learning: Theory, findings, and problems. In: W. STRANGE, W. (Ed.). Speech perception and linguistic experience: Issues in cross‐language Research. Baltimore: York Press, 1995. p. 233-277. FLEGE, J.E.; HILLENBRAND, J. Limits on phonetic accuracy of foreign language speech production. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 76, p. 708-721, 1984. Doi: https://doi. org/10.1121/1.391257 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 187 FLEGE J. E.; MUNRO M. J.; SKELTON L. Production of the word-final English /t/-/d/ contrast by native speakers of English, Mandarin, and Spanish. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 92, n. 1, p. 128-143, 1992. Doi: https://doi.org/10.1121/1.404278 GIMSON, A. An introduction to the pronunciation of English. 3rd edition. London: Edward Arnold, 1980. GROSJEAN, F.; GEE, J. P. Prosodic Structure and Spoken Word Recognition. In: U.H. FRAUENFELDER, U. H.; TYLER, L. K. (Ed.). Spoken Word Recognition. Cambridge, MA: MIT Press, 1987. p. 135-155. HELAL, S. Stress in English: Prosodic and Rhythmic Complexity for Arab Learners. Concordia Working Papers in Applied Linguistics, Montreal, v. 5, p. 261-294, 2014. HURFORD, J. R. The evolution of the critical period for language acquisition. Cognition, USA, v. 40, p. 159-201, 1991. Doi: https://doi. org/10.1016/0010-0277(91)90024-X LADEFOGED, P. A course in phonetics. New Hartcourt: Brace, Jovanovich, 1982. LENNEBERG, E. H. Biological Foundations of Language. New York: Wiley, 1967. LONG, M. H. Maturational constraints on language development, Studies in Second Language Acquisition, Cambridge, v. 12, p. 251-285, 1990. Doi: https://doi.org/10.1017/S0272263100009165 MAJOR, R. C. Foreign accent: the ontogeny and phylogeny of secondlanguage phonology. Mahwah, NJ: Erlbaum. 2001. Doi: https://doi. org/10.4324/9781410604293 MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992. p. 95. MORAES, J. A. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D.; CRISTO, A. di (Ed.). Intonation Systems: a Survey of Twenty Languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 179-194. PATKOWSKI, M. S. Age and accent in a second language: a reply to James Emil Flege, Applied Linguistics, Oxford, v. 11, p. 73-89, 1990. Doi: https://doi.org/10.1093/applin/11.1.73 188 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 PATKOWSKI, M. S. The sensitive period for the acquisition of syntax in a secondary language. 1980. Dissertation (Doctoral) – New York University, New York, 1980. PISKE, T.; MACKAY, I. R. A.; FLEGE, J. Factors affecting degree of foreign accent in an L2: a review. Journal of Phonetics, Seoul, v. 29, n. 2, p. 191-215, 2001. Doi: https://doi.org/10.1006/jpho.2001.0134 PLAG, I.; KUNTER, G.; SCHRAMM, M. Acoustic correlates of primary and secondary stress in North American English. Journal of Phonetics, Seoul, v. 39, n. 6, p. 362-374, 2011. Doi: https://doi.org/10.1016/j. wocn.2011.03.004 SCOVEL, T. A time to speak: a psycholinguistic inquiry into the critical period for human speech. New York: Newbury House; Harper and Row, 1988. SCOVEL, T. Foreign accents, language acquisition, and cerebral dominance. Language Learning, [s.l.], v. 19, p. 245-253, 1969. SELIGER, H. W. Implications of a multiple critical periods hypothesis for second language learning. In: W. RICHIE, W. (Ed.). Second language acquisition research: issues and implications. New York: Academic Press, 1978. p. 11-19. SLUIJTER, A. M. C.; van HEUVEN, V. J. Acoustic correlates of linguistic stress and accent in Dutch and American English. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON SPOKEN LANGUAGE, 4th, 1996, Philadelphia. Proceedings… Philadelphia: IEEE, 1996. v. 3, p. 630-633. TRAUNMÜLLER, H.; ERIKSSON, A. Acoustic effects of variation in vocal effort by men, women, and children. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 107, n. 6, p. 3438-3451, 2000. Doi: https://doi.org/10.1121/1.429414 WALSH, T. M.; DILLER, K. C. Neurolinguistic considerations on the optimum age for second language learning. In: DILLER, K. C. (Ed.). Individual differences and universals in language learning aptitude. Rowley, MA: Newbury House, 1981. p. 3-21. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 ANEXO I – Lista de palavras alvo utilizada Palavras-alvo COGNATAS NÃO COGNATAS Photograph Fiance Basketball Dangerous Sympathy Employee Positive Saturday Portuguese Betrayal Musical Demeanor Amplitude Appraisal Metaphor Spendable Persistent Meaningless Protestant Furthermore Resume Challenger Abstinence Mastery Resistance Seasonal Interact Allowance Demonstrate Edible Memorize Mispronounce Summarize Overact Fantasize Understand Energize Reachable Authorize Standardize Specify Underact Dignify Overprice Outbalance 189 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 Unraveling Foreign Accent Prosody: Production and Perception of Lexical Stress in English by Brazilian Portuguese Speakers Desvendando a prosódia do sotaque estrangeiro: produção e percepção do acento tônico no inglês por falantes brasileiros Filipe Modesto Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil filipemodesto4@gmail.com Plinio Almeida Barbosa Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/UNICAMP), Campinas, São Paulo / Brasil pabarbosa.unicampbr@gmail.com Abstract: many adults who learn a second language have a foreign accent to some extent. The misproduction of lexical stress (LS), which plays an important role in the prosodic structure of speech, contributes to the perception of a heavier foreign accent. Twenty-four Brazilian Portuguese (BP) speakers of English of four different selfreported levels underwent tests of production and perception of LS. This study aimed to describe how production and perception of lexical stress happen to BP speakers of four different self-reported levels. Acoustic data, as well as the percentage of scores in stress placement, were collected and compared to the production of a native speaker of American English (AmE). Syllable duration, total intensity, and relative intensity were the most important parameters used by the BP speakers to stress syllables. Hits in the perception task were greater than the production task, overall. Initially stressed words had the greatest hits in both production and perception. Overall, the BP speakers from this use, in AmE, the same acoustic parameters used in BP for signaling LS. The production, in regards of acoustic parameters use, gets closer to the native when the proficiency level increases. Cognate words were not relevant in the acoustic parameters choice of the speakers, but they were relevant for the stress position hits. Keywords: foreign accent; lexical stress; acoustic phonetics. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.165-189 166 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 Resumo: muitos adultos aprendizes de uma L2 possuem algum grau de sotaque. Contribui para esse sotaque a não adequada realização do acento tônico (AT), que tem papel preponderante para a estruturação prosódica da fala. 24 falantes do português brasileiro (PB) de quatro níveis autorreferidos de inglês americano (IA) participaram de testes de produção e percepção de AT. Os dados acústicos de produção dos participantes, assim como os escores na marcação da posição acentual foram coletados e comparados com um sujeito nativo. Os parâmetros acústicos de maior relevância para a realização do AT dos falantes do PB foram a duração, intensidade total e intensidade relativa das sílabas acentuadas. Os escores de percepção foram maiores do que os de produção, de modo geral. As palavras com acento inicial foram as que tiveram maior número de acertos tanto na produção quanto na percepção. Os falantes nativos do PB de todos os níveis empregam os mesmos parâmetros acústicos de acentuação da L1 no IA, sendo que estes tendem a se aproximar dos do nativo à medida em que o nível de inglês aumenta. O cognatismo não foi relevante para o uso dos parâmetros acústicos empregados na marcação do acento, mas influenciou os escores da posição acentual. Palavras-chave: sotaque estrangeiro; acento tônico; fonética acústica. Submitted on March 8th, Accepted on June 11th, 2018 1 Introduction Most of the adults who learn a second language (L2) have a foreign accent to at least some extent, especially if L2 phonetics/ phonology differ significantly from his first language (L1) (FLEGE; HILLENBRAND, 1984). Foreign accents are perceived when native speakers of a language detect divergences in the phonetic production at both segmental and suprasegmental levels (FLEGE, 1995). Over the years, many factors have been considered relevant related to foreign accent: age of learning, time of residence in an L2 speaking country, sex, formal instruction level, motivation, aptitude for language learning, and the amount of L1 use. Nonetheless, the only predictive variables authors seem to agree upon are age of learning and amount of L1 use. Although it’s been vastly discussed the existence of a single critic period Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 167 to learn an L2 unaccented (LENNEBERG, 1967; SCOVEL, 1969, 1988; PATKOWSKI, 1980, 1990), other studies present the hypothesis of many critic periods or yet sensitive periods throughout one’s life, effecting the linguistic abilities of the subject (FATHMAN, 1975; SELIGER, 1978; WALSH; DILLER, 1981, LONG, 1990; HURFORD, 1991). Although these periods are important to be considered, age is not a limiting factor for the speaker to reach an advanced level of proficiency in an L2. Experiments involving native speakers of Mandarin and Spanish who had arrived in the USA within a few weeks and over a decade have been done. They showed that the production of the English nonnative speakers who had been in the US for a longer time was, overall, as correct as the production of the nonnative speakers who had recently arrived (FLEGE, MUNRO, SKELTON, 1992). Foreign accents may cause uncomfortable situations for the speakers, especially if it involves misunderstandings and if speech intelligibility is affected. A possible mechanism for the rational of foreign accents is the influence of phonetic features of the L1 over the L2 (FLEGE, 1998). The proximity between two languages causes post-lingual L2 learners to establish an allophonic relationship between sounds that are in fact different in both languages, instead of creating different phonological categories for each language (FLEGE, 1995). That results in distortions in the production of L2’s consonants, vowels, and prosody. An example of that occurs when Brazilians palatalize the [t] in English before [i]/[j] (two/too/to [thu] being pronounced as [ʧu]). Such distortions are noticed by native speakers of English. At a prosodic level, (suprasegmental), the word demonstrate should be pronounced DEmonstrate (in American English). If pronounced demonsTRATE, following the ultimate syllable stress pattern of verbs in the infinitive form in Brazilian Portuguese, an accent will also be perceived. The aforementioned interaction between phonological systems also occur for suprasegmental features of languages. The rhythmic parameters of speech, despite not easily noticed for nonnative speakers, play an important role in the detection of a foreign accent, being even more relevant than segmental distortions, and syllable structure (ANDERSON-HSIEH, 1992). Primary lexical stress, which we will simply call here Lexical Stress (LS) is the lexical mark that is made in the speech chain in order to realize prominence of a syllable in relation to another syllable within 168 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 a word (ARCHIBALD, 1993; MAJOR, 2001). This mark is usually realized by changing parameters such as fundamental frequency, duration, and sound intensity of a syllable. Every language with LS ponders differently the weight each parameter has on the realization of stress. LS is fundamental for the segmentation of continuous speech signal and its recognition, given by the prosodic structure. The alternating pattern of strong and weak syllables helps determining the constituents within a phrase (CUTLER, 1986, 1989; CUTLER e NORRIS, 1989). LS is also considered as a facilitator in the lexical access (GROSJEAN & GEE, 1987). The misplacement of word stress leads to problems in lexical decision, which contributes to establish a relationship between the acoustic image of words and its mental representation. The LS is more considered to speech recognition, especially concerning the initial lexical activations of the possible candidates and in the disambiguation of the selected candidates (COLOMBO, 1991). In order for us to discuss LS by Brazilian speakers, it is needed to discuss the acoustic realization of this prosodic phenomenon in both languages. LS in English English is a language with varied stress position (HELAL, 2014; GIMSON, 1980; LADEFOGED, 1982), and stress can fall on any syllable of a word. The initial stress pattern (left-most), however, is the most predominant one (80% of the words), especially in disyllabic words (CUTLER; CARTER, 1987). Besides, in English there is a frequent relationship of stress with derivational morphology in disyllabic word pairs that have the same segmental constituents, making different noun/ verb pairs: LS in the first syllable indicate nouns (e.g.: PROtest), and LS in the last syllable indicate verbs (e.g.: proTEST). LS in English is realized by contrasting vowel quality (full/reduced vowel), as well as the frequent increase in F0, sound intensity, and duration. Other than the prosodic features, LS can also be realized by changing parameters at the segment level. The vowel within a stressed syllable is always full, whereas surrounding unstressed vowels are frequently reduced as a schwa. Plag (2011), compares primary and secondary stress in AE in words both carrying and not carrying pitch accents, reaffirming the role of duration to mark stress in AE. Although the parameter was relevant Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 169 to mark stress, it was not significantly different between the two levels of stress studied. In 1996, Sluijter and van Heusen used the noun-verb pairs of AE that contrast in stress in eight repetitions of the same stimuli by native speakers of the language. The authors found that the stressed syllables were much longer than unstressed ones, making duration the most important factor to mark stress. Regarding total intensity, stressed syllable were always louder in both conditions studied: in and out of linguistic focus. Nonetheless, when focus was not on the word, the intensity increase was not significant, corroborating the hypothesis the intensity is more related to pitch accent than lexical stress per se. It is widely discussed how important F0 is to mark LS in AE, if it is not more related to pitch accent, just like total intensity. However, its importance to mark LS is undeniable. When prominence happens, the peak of F0 or a positive inflection of the F0 contour occurs. LS in Brazilian Portuguese In Brazilian Portuguese (BP), as well as in English, stress is also contrastive (CONSONI, 2006), as can be clearly observed in the examples SAbia (wise person, female), saBIa (past tense of “to know”, third-person singular), and sabiA (thrush bird). There are three possible primary stress positions in BP (the three last syllables of a word), and the distribution of syllables stressed in the penultimate position comprises approximately 63% of the stress pattern of the language (ARAÚJO et al., 2007). Duration is the most important parameter to mark stress in BP, followed by fundamental frequency and intensity as described by Fernandes (1976), who studied the phenomenon in assertive sentences, besides other authors (MASSINI-CAGLIARI, 1992; BARBOSA, 1996). The acoustic correlates vary in function of the prosodic strength of a word in a sentence, more than a pre-determined stress pattern, inherent to a word. When a word is in a week prosodic group, LS happens by an association between intensity and duration. When an oxytone is in a weak prosodic position within a sentence, there is no specific parameter to be used to mark LS. Fundamental frequency has its relevance for marking prominence in BP, but much more related to the phrasal level (MORAES, 1998). 170 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 It is evident that AE and BP differ greatly from one another considering LS, not only on the stress pattern but also on the nature of the acoustic realization of stress. Therefore, this article proposes to study the realization of LS in AE by BP speakers that believe to be of different levels of proficiency, as well as to analyze how these participants perceive LS spoken by native speakers of English, trying to establish a possible correlation between production and perception. 2 Methods In this research, 24 participants (15 female, 9 male) met the inclusion criteria: be Brazilian, native speaker of BP and have some knowledge of AE. After fully reading and signing the consent terms, all participants responded to a brief questionnaire with information regarding their study of English, such as where they had studied, for how long, and if they had ever lived in an English speaking country, so that we could establish a sociolinguistic profile of the studied population. In the end, the participants had to attribute a grade they believed to reflect their proficiency level in English. This grade was an integer number from 1-4, four being very fluent. After that, we ran the production and perception experiments. The participants were distributed in 7, 5, 7, 5 within the N1, N2, N3, and N4 levels, respectively, which represent a progressive scale of self-reported proficiency levels. Out of all of them, 66.7% (n=16) reported to know English from private language schools, and only one subject (N3) claimed to have self-taught the language. The great majority (88%) never had lived in an English speaking country. In order to compare the production data, a native speaker of English was recorded for the experiment. The male speaker was natural from Minneapolis-MN, USA, being 22 years old at the time of the study, had been living in Brazil for about six months, and had studied BP prior to his arrival in Brazil. Even though we only used one American subject, our analyses (that will be shown in the Results section) confirm that he behaves linguistically as a standard speaker of English, and his English was not influenced by his BP knowledge. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 171 2.1 Production A list with 45 three-syllable words of AE (22 cognates; 23 noncognates- APPENDIX I) was presented through a slide presentation to each subject within the carrier-sentence say____again. We did not control for the affixes of the words but we tried to keep the proportion of the stress pattern distribution, thus the majority of words were initially stressed. The slides were randomized by the computer and the sentences appeared one at a time on the screen. The participants were required to read them as natural as possible. This step was recorded at a sampling rate of 44.1 kHz, at 16 bits. The recordings were not interrupted and the speakers could repeat a sentence when they were disfluent or hesitant in a sentence. The target words were extracted from the sentence and the annotation layers for the acoustic analyses on Praat (BOERSMA; WEENINK, 2018) were “word”, “syllable”, and “tonicity”. The acoustic parameters: F0 median (in Hertz), duration (in ms), total and relative intensity (both in dB) were extracted for each syllable using a script developed by Barbosa (2016), and the statistical analyses were carried using the R software (R Development Core Team, 2011). The mentioned relative intensity is a correlate of the vocal effort in one’s production, obtained with the difference between the energy to the maximum frequency used and the energy until 400 Hz (TRAUNMÜLLER; ERIKSSON, 2000). The measures for each syllable were associated with tonicity factor (levels: stressed and unstressed), cognate relationship (levels: cognates and noncognates), and self-reported proficiency level (N1-4). 2.2 Perception The words used in the production task were pronounced by the American speaker and recorded in order to create the perception task, using another script in Praat. The Brazilian participants had to wear supra-aural headphones to improve their focus. On the screen, three options would show up to them, in the form of rectangles that indicated the stressed syllable position. Their task was to click on the rectangle that better represented their perception of the strongest syllable in the word: in the beginning of the word (P3), in the middle (P2), or the last part of the word (P1). When clicking on an option, the next stimulus would automatically play. Each stimulus was presented three times (in different moments) in order to analyze the consistency of their responses 172 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 for the same stimulus. The responses were extracted and computed for each subject, and they were only considered valid if the same position for a stimulus was chosen at least two out of the three presentations. The production data underwent statistical analysis. Since the data did not pass the conditional criteria for a regular 2-way Analysis of Variance (2-way ANOVA), we used a non-parametric technique, the Scheirer-Ray-Hare (SHR), an extension of the Kruskal-Wallis test, with a significance level of 0.05. We also used this significance level in the post-hoc tests of Wilcoxon with the Bonferroni correction, that is, for the models with significant factors only. Spearman’s correlation test was used to compare scores of the production and perception experiments. The minimum significant difference between the different levels of English for each parameter was calculated with the Duncan test, in order to verify if the average values of each parameter was close enough to group the levels (N1-4) in a category close to the native speaker. This research was approved by the institutional review board of the Faculty of Medical Sciences of the University of Campinas (CEP- FCM/UNICAMP), under the registration number CAAE: 58189216.4.0000.5404. 3 Results and Discussion After collecting all the data, we present in this section the acoustic data from the Brazilians, the native AE speaker, and the scores obtained in the production and perception tasks. 3.1 Description of the production data of the participants and the native AE speaker The mean values of the acoustic parameters of the native AE speaker are shown in Table 1, showing an increase in fundamental frequency, total intensity, and especially duration in the realization of LS, while relative intensity did not change with tonicity. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 173 Table 1 – Raw acoustic data of the native AE speaker (s0= unstressed; s1= stressed; dif= difference stressed - unsetressed) Acoustic Parameter Duration (ms) Native F0 Median (Hz) Total Intensity (dB) Relative Intensity (dB) s0 s1 dif s0 s1 dif s0 s1 dif s0 s1 dif 197 235 38 90 97 7 59 64 5 2 2 0 We elaborated four models, one for each parameter (normalized data for duration, F0 median, Total Intensity, and Relative Intensity) and the relationship between the two factors (tonicity and cognate relationship) and the realization of LS. The analysis show that the increased parameters in Table 1 were all significant to mark stress, and the cognate relationship only affected total intensity of the native AE speaker (Table 2), where the noncognates mean intensity was 62 dB against 59 dB of the cognates (p-value<0.05). Table 2 – Results for the non parametric analysis of variances of two factors for the acoustic data of the native AE speaker Duration F0 Median Total Intensity stressed stressed p= 0,009*/ p= 0,005* p= 0,00005* noncognates Relative Intensity stressed Native - p= 0,00002* The acoustic parameter of the participants of all four levels were extracred from the segmented syllables. Table 3 shows that, overall, duration, total and relative intensity were increased to mark stress in English. For levels 1, 2, and 4, F0 median was significantly higher in the unstressed syllables. Yet, the parameter seems to get closer to the American speaker if we consider only two major groups: least proficient speakers (N1-2) and more proficient speakers (N3-4), considering that the distribution within the proficiency levels was merely based on the auto evaluation of their own level of English. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 174 For the parameter syllable duration, the most important parameter to realize LS in BP, all groups increased the parameter in the stressed syllables, and it happened with more emphasis among N1 speakers, with the increase diminishing over the proficiency level increase. The difference between stressed and unstressed syllables is the exact same for the N4 speakers and the native AE speaker (dif= 38 ms). Table 3 – Raw acoustic data of the BP speakers per proficiency level (s0= unstressed; s1= stressed; dif= difference stressed - unsetressed) Acoustic Parameter Level Duration (ms) F0 Median (Hz) Total Intensity (dB) Relative Intensity (dB) s0 s1 dif s0 s1 dif s0 s1 dif s0 s1 dif 1 225 337 112 195 186 -9 68 69 1 8 10 2 2 217 309 92 202 192 -10 70 71 1 9 11 2 3 216 287 71 210 213 3 65 71 6 8 11 3 4 232 270 38 186 181 -5 71 73 2 8 11 3 mean 222 303 81 199 194 -5 69 71 2 8 11 3 Native 197 235 38 90 97 7 59 64 5 2 2 0 The Brazilian population increased total and relative intensity in all levels, more evident in N3 (dif= 6 db). The native AE speaker did not use relative intensity to differentiate the tonicity of the syllables, but the difference between syllables of different tonicities (dif= 5 dB) is close to the N3 speakers. The results in the SHR models for all four parameters, of all four levels of proficiency are shown in Table 4. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 175 Level Table 4 – Results for the SHR models for the acoustic data of the speakers Duration F0 Median Total Intensity Relative Intensity 1 stressed p<0,01 unstressed p= 0,0008 stressed p=0,009 cognate p<0,01 stressed p<0,01 2 stressed p<0,01 unstressed p=0,006 cognate p=0,002 stressed p<0,01 3 stressed p<0,01 - stressed p<0,01 cognate p<0,01 stressed p<0,01 4 stressed p<0,01 - stressed p<0,01 cognate p<0,01 stressed p<0,01 mean stressed unstressed stressed/cognate stressed Native stressed p= 0,005* stressed p= 0,00005* stressed p= 0,009*/ noncognate p= 0,00002* - The acoustic parameters presented in Table 3 are in fact significantly higher in the stressed syllables of the BP speakers, except the increase in F0 median that had happened for N3 and the slight difference for N4. This findings reveal that the realization of LS by Brazilian speakers begin with a significant negative difference in F0 of lower least proficient speakers, changing to no difference between them in more proficient speakers. The difference in relative intensity of Table 3 is significant for all four levels, meaning that vocal effort is indeed relevant when marking stress in English of BP speakers. The SHR analysis show yet, that for all groups, the cognate relationship was significant to the realization of stressed syllables, with the stressed noncognates being louder. To investigate the explained variation of each factor, we calculated the effect size for each parameter per level (Table 5), in order to evaluate Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 176 how each factor (tonicity or cognate relationship) helps determine the mean values of each acoustic parameter. Table 5 – effect sizo of the acoustic parameters by the factors Ton= tonicity and Cog= cognate relationship, in %. (DUR= duration, F0MED= F0 median, TOTINT= total intensity, RELINT= relative intensity) DUR F0MED TOTINT RELINT Ton Cog Ton Cog Ton Cog Ton Cog N1 22,3 NA 1,3 NA 0,7 5,3 2,4 NA N2 14,2 NA 1,2 NA NA 1,4 3,6 NA N3 11,6 NA NA NA 3,2 4,4 7,1 NA N4 3,8 NA NA NA 4,3 4,2 2,7 NA Native 5,6 NA 12 NA 13,6 5,1 NA NA NA= factor was not significant in the SHR analysis. The data in Table 5 show that part of the variation that can be explained by tonicity in N1 is significantly higher for duration than F0 and total and relative intensity. Therefore, the most important parameter used to mark stress in the L1 is also used for the same function in L2. The explained variation for duration diminishes as proficiency level increases, reaching only 3.8% for N4, very close to the native AE speaker (5.6%). However, none of the BP groups has a close production to the native AE speaker in the parameters with more explained variation for him (F0 median and total intensity). For that account, two things should be considered: our analysis are based in one speaker only, and that in the read sentences was always in the condition of linguistic focus. This condition ponders the weight of F0 and total intensity to a higher degree in stressed syllables in AE (Sluijter, 1996). The Duncan’s Multiple Range Test (Table 6) was done in order to analyze how the distribution of the acoustic parameters of the BP speakers related or not with the same parameters of the native AE speaker, grouping the means of each parameter according to the minimum significant difference between them, represented by a letter. Groups with the same letter do not differ significantly from each other. For duration, N1 and N3 differed from each other, with N2 and N4 having means that are close to Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 177 the two levels, and N3 was the closest to N4. It is necessary to say that the native AE speaker was a male, with fundamental frequency that is naturally lower than women’s (because of anatomical particularities of each sex), and that certainly had an influence in our results, given that most of the BP speakers were female. For total intensity, N1, N2, and N4 were independent groups, and N3 was grouped with N2 and N1. The latter was the one that was the closest to the American speaker. For relative intensity, all groups were put together, being very different from the American speaker (BP mean relative intensity was 9 dB, and the AE speaker’s was 2 dB). Table 6 – resulted groups from the Duncan’s test per parameter DUR F0MED TOTINT RELINT N1 a bc c a N2 ab b b a N3 b a bc a N4 ab c a a Native c d d b We used for this research the data of only one native AE speaker that was available at the time of the study. Even though he behaved as an expected speaker of English described in the literature regarding LS, we have to understand the limitations that are posed when we make analyses and comparisons with much larger groups with only one subject (and consequently only one sex). 3.3 Production task scores The stress placement of the words produced by the Brazilians was compared to the expected stress position of each word to calculate the production score of each level. For this analysis we considered other than the self-reported level of proficiency the cognate relationship of each word and stress position, in order to understand if a particular stress position was considered easier for the speakers. The overall score (of the four levels combined) was 51%, and the scores in this section disregard the acoustic parameters used to mark 178 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 stress. The participants placed stress correctly in 44% of the cognate words and 53% of the noncognates. The analyses per stress position increased proportionally to the proficiency level, with a slight 2% fall from N3 to N4 (N1: 39%; N2: 45%; N3: 62%; N4: 60%). It is expected such increase considering that the higher the proficiency level, the more familiar with the actual stress position the subject is. Comparing the scores of cognates in the production task, we can see that it was easier to get the right stress position in the noncognates (53%) than it was for the cognates (44%) corroborating our hypothesis that the participants, when reading a cognate word, are influenced by the word in BP, ignoring the stress position in AE. Separating this analysis per level (Graph 1), we can observe that this difference persists, but it reduces as the level of proficiency increases. That is evident if we compare the extreme groups (N1 and N4), where we have 28% of the cognates and 50% of the noncognates for N1 and 59% for both categories for N4. Graph 1– Percentage scores of the word in the production task per level (N1, N2, N3 e N4) and cognate relationship (C= cognates, NC= noncognates) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 179 The three possible stress positions were P3 (initial stress), P2 (medial position), and P1 (last syllable). The percentage analysis shows that, in general, the easiest position to assign stress was P3 (56%), followed by P1 (50%), and P2 (32%). Reorganizing the data per level (Graph 2), we can see that for the more proficient speakers, the initial position (P3) had the highest scores, and decreases as the expected stress position moves towards the end of the word. That is probably associated with the common stigma that most of the three syllable words in English bear stress in the first syllable (CUTLER; CARTER, 1987; CUTLER, 2015), which is true and justifies the high score density in P3. However, that assumption says that when stress is actually in a different syllable than P3, even N4 speakers ignore the right stress placement. Graph 2 – Percentage of scores in the production task per level (N1, N2, N3 e N4) and stress position (P3= initial, P2= medial, P1= final) 180 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 As for the least proficient speakers, trying to assimilate the influence of L1 in their production, we can see low scores for P3 (34%), comprehensible once this stress pattern is unusual in BP (MASSINICAGLIARI, 1992). Unlike N4 speakers, the percentage of P1 scores tend to be higher for the N1-2 groups. 3.4 Perception task scores The perception tests were subsequent to the production recordings, and the same words were used as the stimuli for it, to maintain the experimental control. In this multiple forced choice test, the participants of all levels had to choose the stress position they thought to be the strongest. The general percentage of correct answers was 68%, higher than the scores in the production test (51%), and the cognates (70%) were slightly higher than noncognates (67%). The scores in the perception test were N1: 64%; N2: 58%; N3: 75%, and N4: 75%. Just like in the production test, the scores tend to increase along the proficiency level, but two things are clear when observing Graph 3: scores of all levels are higher than the production test’s for all levels, and they tend to stabilize with the level increase. In other words, although perceiving LS is apparently easier than producing it correctly, the difference between production-perception scores reduces as proficiency levels increase. This relationship between productionperception was also found in previous studies. Brawerman-Albini and Becker (2014) made a production and perception study in English with an uncommon stress pattern in BP, stresses in the fourth and fifth syllables, from the end. All words were cognates with Portuguese. The relationship found between production and perception (28% and 85%, respectively) was parallel to our results for the same category (cognates), being 47% and 70% for production and perception, respectively. The population in the mentioned study did not count with advanced level speakers. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 181 Graph 3: Comparison of the perentage scores in the prodution and perception tests per level (N1, N2, N3 e N4) Perception Production The analysis of the scores in function of the cognate relationship shows that despite some predominance of the noncognate scores in the least proficient speakers, like in the production test (difference C-NC for N1 production= 22%), it decreases in the perception test (difference C-NC for N1 perception= 4%). Graph 4 – Percentage of scores in the perception test per level (N1, N2, N3 e N4) e cognate relationship (C= cognates, NC= noncognates) 182 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 It is interesting to note that N4 speakers also increased their scores in the perception task, but still LS in AE was not perceived differently whether the words cognates or noncognates (difference C-NC= 0%). The comparison between both graphs allows us to observe a slight inversion in the scores of cognates and noncognates in N1 and N3 in the production and perception tasks: in the production task, noncognates scores were higher than cognates, and the contrary occurs in the perception task. Graph 5 shows the percentage of LS perception scores according to level and stress position. For perception, P3 scores are more concentrated in the 66-80% area, whereas the same category was much wider for production, 34-77%. Graph 5: percentage of scores in production perlevel (N1, N2, N3 e N4) and stress position (P3= initial, P2= medial, P1= final) The scores in the other stress positions were lower and more disperse than for P3, and N4 speakers scored 66% of words with final stress, whereas N1 speakers did only 29%. We would like to emphasize Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 183 that one possible reason why many BP speakers classified some words as P3 when they were in fact P1, is that many of these words had secondary stress in P3, so that when the word was heard, they immediately clicked on P3, when the primary stress was actually in P1. 3.5 Production x Perception The scores in the perception test were higher for all levels of proficiency when compared to the production test’s scores. In order to verify a possible correlation between scores of both tasks or if they work independently from one another, we performed Spearman’s correlation test on the overall scores for each level in each test. Even though there was a positive correlation of 0.87, the low sample size made the test non significant (p-value> 0.05). 4 Conclusion Native BP speakers of all levels employ the same acoustic parameters of lexical stress of the L1 in AE (duration and intensity). The acoustic differences made to stress syllables that happened in production tend to get closer to the AE speaker here studied, when it comes to higher proficient level speakers. The cognate relationship of words only affected the total intensity of syllables when assigning stress. The relationship between the level of proficiency and the performance on the production task happens parallel to the findings of previous studies that compare the age of learning of foreigner speakers immersed in L2 speaking countries (FLEGE, MUNRO, SKELTON, 1992; FLEGE, 1995), in which the most proficient speakers get closer to the production of a native speaker of the L2. The participants of this study found it easier to perceive the correct LS than assigning the correct stress in their production, given the perception scores were higher in all groups (even though this productionperception difference reduces drastically from N2 on). Even though the cognate relationship of words did not influence the acoustic parameters used in the production of LS (except for the total intensity), there are differences in the percentage of scores in production. Least proficient BP speakers scored 50% of the words that did not have a reference in Portuguese, but only 28% of the words that did. That did not happen to higher level speakers. This corroborates the hypothesis of the influence that L1 exerts (FLEGE, 1995), especially in speakers of lower levels in 184 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 the L2. These speakers ignore the possible stress positions when they are not in the exact position as the reference word in their L1, causing them to misplace stress. When it comes to a noncognate word, they tend to do the task more criterious, increasing score rates. Our findings confirm that: initially stressed words (less often in BP) had much higher scores in both production and perception. For us to make any further inferences about the production of BP speakers in AE it is necessary to make some adjustments: objectively control proficiency level (with screening tests, for example), increase the number and sex of AE speakers controls, and the morphological aspects of the words in the corpus. Monomorphemic words comprised about 7% of our corpus, while all the others were bimorphemic. Even though this have been controlled in our current studies, we also bring attention for the possibility of the secondary stress of words interfering with the decisions made by the participants, as previously discussed. Authorship declaration This work counted with the contribution of authors Filipe Modesto and Plinio Almeida Barbosa, proposing the study. F. Modesto organized the experimental methodology and data collection under supervision of P. Almeida Barbosa, chair of the research group, who participated actively in the data analysis, text writing and proofreading of the final version. English translation was carried by F. Modesto. Both authors are members of the Study Group for Speech Prosody of IEL/UNICAMP. References ANDERSON-HSIEH, J.; JOHNSON, R.; KOEHLER, K. The relationship between native speaker judgements of nonnative pronunciation and deviance in segmentals, prosody, and syllable structure. Language Learning, [s.l.], v. 42, n. 4, p. 529-555, 1992. Doi: https://doi. org/10.1111/j.1467-1770.1992.tb01043.x ARAÚJO, G. A. et al. Algumas observações sobre as proparoxítonas e o sistema acentual do português. In: ARAÚJO, G. (Org.). O acento em português: abordagens fonológicas. São Paulo: Parábola, 2007. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 185 ARCHIBALD, J. Language learnability and L2 phonology: The acquisition of metrical parameters. Dordrecht; Boston; London: Kluwer Academic, 1993. Doi: https://doi.org/10.1007/978-94-011-2056-2 BARBOSA, P. A. At least two macrorhythmic units are necessary for modeling Brazilian Portuguese duration: emphasis on segmental duration generation. Cadernos de Estudos Linguísticos, Unicamp, v. 31, p. 33-53, 1996. BOERSMA, P.; WEENINK, D. Praat: doing phonetics by computer [Computer program]. Version 6.0.37, 2018. Disponível em: <http://www. praat.org/>. Acesso em: 03 fev. 2018. BRAWERMAN-ALBINI, A.; BECKER, M. R. Perception and Production of English Stress by Brazilian Speakers. Concordia Working Papers in Applied Linguistics, Montreal, v. 5, p. 73-84, 2014. COLOMBO, L. The role of lexical stress in word recognition and pronunciation. Psychological Research, Leiden, v. 54, p. 71-79, 1991. Doi: https://doi.org/10.1007/BF00867334 CONSONI, F.; ARANTES; P.; BARBOSA, P. A.; NETTO, W. F. Hipóteses acerca do reconhecimento de acento lexical em palavras isoladas. Estudos Linguísticos, Assis, v. XXXV, p. 792-799, 2006. CUTLER, A. Auditory lexical access: Where do we start? In: W. MARSLEN-WILSON, W. (Ed.). Lexical representation and process. Cambridge, MA: MIT Press, 1989. p. 342-356. CUTLER, A. Forbear is a homophone: Lexical prosody does not constrain lexical access. Language & Speech, Ohio, v. 29, p. 201-220, 1986. Doi: https://doi.org/10.1177/002383098602900302 CUTLER, A. Lexical Stress in English Pronunciation. In: REED, M.; LEVIS, J. M. (Ed.). The Handbook of English Pronunciation. Oxford: Wiley Blackwell, 2015. CUTLER, A.; CARTER, D. M. The predominance of strong initial syllables in the English vocabulary. Computer Speech and Language, Sheffield, v. 2, p. 133-142, 1987. Doi: https://doi.org/10.1016/08852308(87)90004-0 186 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 CUTLER, A.; NORRIS, D. The role of strong syllables in segmentation for lexical stress. Journal of Experimental Psychology: Human Perception and Performance, Washington, v. 14, p. 113-121, 1989. FATHMAN, A. The relationship between age and second language productive ability. Language Learning, [s.l.], v. 25, p. 245-253, 1975. FLEGE, J. E. Second language speech learning: Theory, findings, and problems. In: W. STRANGE, W. (Ed.). Speech perception and linguistic experience: Issues in cross‐language Research. Baltimore: York Press, 1995. p. 233-277. FLEGE, J.E.; HILLENBRAND, J. Limits on phonetic accuracy of foreign language speech production. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 76, p. 708-721, 1984. Doi: https://doi. org/10.1121/1.391257 FLEGE J. E.; MUNRO M. J.; SKELTON L. Production of the word-final English /t/-/d/ contrast by native speakers of English, Mandarin, and Spanish. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 92, n. 1, p. 128-143, 1992. Doi: https://doi.org/10.1121/1.404278 GIMSON, A. An introduction to the pronunciation of English. 3rd edition. London: Edward Arnold, 1980. GROSJEAN, F.; GEE, J. P. Prosodic Structure and Spoken Word Recognition. In: U.H. FRAUENFELDER, U. H.; TYLER, L. K. (Ed.). Spoken Word Recognition. Cambridge, MA: MIT Press, 1987. p. 135-155. HELAL, S. Stress in English: Prosodic and Rhythmic Complexity for Arab Learners. Concordia Working Papers in Applied Linguistics, Montreal, v. 5, p. 261-294, 2014. HURFORD, J. R. The evolution of the critical period for language acquisition. Cognition, USA, v. 40, p. 159-201, 1991. Doi: https://doi. org/10.1016/0010-0277(91)90024-X LADEFOGED, P. A course in phonetics. New Hartcourt: Brace, Jovanovich, 1982. LENNEBERG, E. H. Biological Foundations of Language. New York: Wiley, 1967. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 187 LONG, M. H. Maturational constraints on language development, Studies in Second Language Acquisition, Cambridge, v. 12, p. 251-285, 1990. Doi: https://doi.org/10.1017/S0272263100009165 MAJOR, R. C. Foreign accent: the ontogeny and phylogeny of secondlanguage phonology. Mahwah, NJ: Erlbaum. 2001. Doi: https://doi. org/10.4324/9781410604293 MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992. p. 95. MORAES, J. A. Intonation in Brazilian Portuguese. In: HIRST, D.; CRISTO, A. di (Ed.). Intonation Systems: a Survey of Twenty Languages. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. p. 179-194. PATKOWSKI, M. S. Age and accent in a second language: a reply to James Emil Flege, Applied Linguistics, Oxford, v. 11, p. 73-89, 1990. Doi: https://doi.org/10.1093/applin/11.1.73 PATKOWSKI, M. S. The sensitive period for the acquisition of syntax in a secondary language. 1980. Dissertation (Doctoral) – New York University, New York, 1980. PISKE, T.; MACKAY, I. R. A.; FLEGE, J. Factors affecting degree of foreign accent in an L2: a review. Journal of Phonetics, Seoul, v. 29, n. 2, p. 191-215, 2001. Doi: https://doi.org/10.1006/jpho.2001.0134 PLAG, I.; KUNTER, G.; SCHRAMM, M. Acoustic correlates of primary and secondary stress in North American English. Journal of Phonetics, Seoul, v. 39, n. 6, p. 362-374, 2011. Doi: https://doi.org/10.1016/j. wocn.2011.03.004 SCOVEL, T. A time to speak: a psycholinguistic inquiry into the critical period for human speech. New York: Newbury House; Harper and Row, 1988. SCOVEL, T. Foreign accents, language acquisition, and cerebral dominance. Language Learning, [s.l.], v. 19, p. 245-253, 1969. SELIGER, H. W. Implications of a multiple critical periods hypothesis for second language learning. In: W. RICHIE, W. (Ed.). Second language acquisition research: issues and implications. New York: Academic Press, 1978. p. 11-19. 188 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 SLUIJTER, A. M. C.; van HEUVEN, V. J. Acoustic correlates of linguistic stress and accent in Dutch and American English. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON SPOKEN LANGUAGE, 4th, 1996, Philadelphia. Proceedings… Philadelphia: IEEE, 1996. v. 3, p. 630-633. TRAUNMÜLLER, H.; ERIKSSON, A. Acoustic effects of variation in vocal effort by men, women, and children. Journal of the Acoustical Society of America, Washington, v. 107, n. 6, p. 3438-3451, 2000. Doi: https://doi.org/10.1121/1.429414 WALSH, T. M.; DILLER, K. C. Neurolinguistic considerations on the optimum age for second language learning. In: DILLER, K. C. (Ed.). Individual differences and universals in language learning aptitude. Rowley, MA: Newbury House, 1981. p. 3-21. 189 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 165-189, 2019 APPENDIX I – List of target words Target Words COGNATES NONCOGNATES Photograph Fiance Basketball Dangerous Sympathy Employee Positive Saturday Portuguese Betrayal Musical Demeanor Amplitude Appraisal Metaphor Spendable Persistent Meaningless Protestant Furthermore Resume Challenger Abstinence Mastery Resistance Seasonal Interact Allowance Demonstrate Edible Memorize Mispronounce Summarize Overact Fantasize Understand Energize Reachable Authorize Standardize Specify Underact Dignify Overprice Outbalance Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 Corpus CEFALA-1: Base de dados audiovisual de locutores para estudos de biometria, fonética e fonologia Corpus CEFALA-1: Audiovisual Database of Speakers for Biometric, Phonetic and Phonology Studies Arlindo Follador Neto Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Diamantina, Minas Gerais / Brasil arlindo.neto@ict.ufvjm.edu.br Adelino Pinheiro Silva Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil Instituto de Criminalística de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil adelinocpp@yahoo.com Hani Camille Yehia Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil hani@cpdee.ufmg.br Resumo: A fala humana tem sido estudada em diferentes áreas do conhecimento, as quais incluem desde biometria até fonética e fonologia. Nas pesquisas realizadas em tais áreas, amostras da fala são recursos necessários para a obtenção de resultados e validação de hipóteses. Para isso, amostras de diferentes locutores e conteúdos são armazenadas em arquivos de áudio e organizadas em bases de dados. Tais bases de dados permitem a continuidade, praticidade e confiabilidade de pesquisas, eliminando a difícil e demorada etapa de coleta de dados. Além disso, permitem comparações consistentes entre estudos diferentes. Entretanto, bases de acesso livre na língua portuguesa ou gravadas em ambiente controlado são raramente encontradas. Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi construir uma base de dados pública e gratuita do português brasileiro, nomeada Corpus CEFALA-1. A base de dados reúne 104 locutores orientados por um protocolo específico para coleta de amostras audiovisuais de fala gravadas em estúdio. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.191-212 192 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 Este trabalho apresenta as metodologias de processamento, segmentação e organização às quais as amostras de fala foram submetidas, além de análises estatísticas, aplicação à verificação biométrica e análises fonético-fonológicas preliminares do corpus. Palavras-chave: corpus de locutores; biometria; fonética e fonologia; base de dados audiovisual. Abstract: Human speech has been studied in different areas of knowledge, which range from biometry to phonetics and phonology. In research conducted in such areas, speech samples are necessary resources for obtaining results and validating hypotheses. For this, samples of different speakers and contents are stored in audio files and organized into databases. Such databases allow the continuity, practicality and reliability of studies, eliminating the difficult and time consuming step of data collection. Moreover, they allow consistent comparisons between different studies. However, free access databases in the Portuguese language or recorded in controlled environments are rarely found. The objective of this paper is to construct a free and public database of Brazilian Portuguese, named Corpus CEFALA-1. The database comprises 104 speakers guided by a specific protocol for the collection of audiovisual speech samples recorded in a studio. The paper presents the methodologies for processing, segmentation and organization of speech samples, statistical analysis, application to biometric verification and preliminary phonetic-phonological analyses. Keywords: corpus of speakers; biometry; phonetics and phonology; audiovisual database. Recebido em 10 de abril de 2018 Aceito em 12 de setembro de 2018 1 Introdução A utilização de informações biométricas de indivíduos é cada vez mais comum em diversas áreas de estudo. Na área de segurança, informações biométricas como impressão digital, íris, geometria da face e voz são empregadas em sistemas que visam verificar a identidade de seus usuários (e.g. bancos, dispositivos pessoais, acessos restritos, sejam eles físicos ou lógicos, urnas eletrônicas, controle de fronteira, etc). A voz, em especial, com sua grande entropia e baixo consumo de recursos para obtenção e processamento, tem sido utilizada em trabalhos inovadores e recentes como fonte de extração de parâmetros biométricos para sistemas de segurança (TRESADERN et al., 2012; WU et al., 2015). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 193 Diferentemente de seu uso para identificação biométrica, outras áreas do conhecimento, como a fonologia e a fonética, exploram a voz há muito mais tempo para outros fins. Nessas áreas as amostras da voz também são utilizadas para entender como os diferentes sons se organizam dentro da fala (SILVA, 1999; SILVA, 2016). Além da informação acústica, imagens do locutor durante a fala são fontes de estudo de expressões faciais. Tais estudos permitem compreender a dinâmica orofacial e consequentemente enriquecer a animação de desenhos, conhecer distúrbios, detectar emoções, dentre outras aplicações (HORNAK; ROLLS; WADE, 1996; ALEKSIC; KATSAGGELOS, 2006). As diferentes áreas de estudo que fazem uso de informações de locutores têm em comum a necessidade de utilização de bases de dados. Essas bases são recursos fundamentais para a aquisição de amostras, extração de características e obtenção de resultados. O emprego de tais bases de dados na pesquisa torna possível a validação dos métodos propostos. Entretanto, o acesso atual às bases de dados existentes é restrito, em sua grande maioria é pago e quase sempre em língua estrangeira. Ainda que a língua não seja um fator crucial para algumas áreas (e.g. verificação de identidade por biometria), a forma com que os dados das bases existentes foram obtidos (e.g. interceptações de ligações telefônicas, registros em ambientes ruidosos, etc) muitas vezes dificulta a execução da pesquisa, que depende da obtenção de amostras biométricas de indivíduos cooperativos em ambiente controlado. Nesse sentido, tendo em vista a dificuldade de se encontrar uma base de dados de locutores pública e gratuita na língua portuguesa e gravada em um ambiente profissionalmente controlado, o objetivo deste trabalho foi construir a base de dados nomeada Corpus CEFALA-1, por se tratar do primeiro corpus1 divulgado pelo Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e músicA (CEFALA). O Corpus CEFALA-1 contou com a participação de 104 indivíduos, dentre eles 49 do sexo feminino e 55 do sexo masculino. Cada indivíduo seguiu um protocolo de gravação que se dividiu em três diferentes etapas de locução: monólogo curto, leitura de parágrafo e leitura Coleção de amostras de registros de fala, que ocorrem naturalmente ou avocadas, organizadas sistematicamente para emular áreas de uso da língua (BIBER, 1999; HARRINGTON, 2010). 1 194 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 de sentenças. Essas diferentes etapas foram gravadas simultaneamente por cinco microfones, sendo eles um microfone de um smartphone, uma câmera de vídeo, um microfone sem fio, um microfone de lapela e um microfone condensador. A base de dados foi gravada em um estúdio profissional de gravação, com o objetivo de reduzir ao máximo o ruído e a reverberação ambientes durante todo o processo. Os detalhes a respeito do desenvolvimento do Corpus CEFALA-1 são apresentados na Seção 2. Na Seção 3, são apresentados e discutidos um conjunto de experimentos realizados a partir do corpus e na última seção são apresentadas as conclusões deste trabalho. 2 Metodologia O desenvolvimento da base de dados Corpus CEFALA-1 dividiuse basicamente em três etapas: i) preparação do estúdio utilizado para aquisição; ii) desenvolvimento de um protocolo de coleta de dados; e iii) processamento e organização dos dados coletados. As três fases do desenvolvimento da base ocorreram durante o primeiro semestre de 2017, sendo que os locutores foram convidados a comparecer para as gravações entre os meses de março e junho. Essas etapas do processo de desenvolvimento serão detalhadas adiante. 2.1 Estúdio de aquisição A utilização de um ambiente controlado para coleta de áudio permite a construção de uma base de dados de alta qualidade, tornando possível atender aos pré-requisitos do Corpus CEFALA-1, entre eles gravações com menor nível de ruído e reverberação reduzida. Dessa forma, os dados foram colhidos no estúdio do laboratório CEFALA (Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e músicA), localizado na Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Esse estúdio possui medidas físicas, em metros, de 2,8 (Largura), 2,9 (Comprimento) e 2,2 (Altura) e conta com revestimento especial para isolamento acústico e redução de reverberação. Utilizando um decibelímetro digital Polimed PM 1900, verificou-se que o ruído de fundo no estúdio era de 34 dB SPL. A Figura 1 exibe o interior do estúdio durante o processo de coleta da base de dados. O processo de coleta de dados de voz e imagem realizado no estúdio do CEFALA contou com a seguinte estrutura: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 • • • • 195 Um decibelímetro digital Polimed PM 1900. Uma TV LED Ultra HD 49” LG Modelo 49UB8550. A TV foi utilizada tanto na orientação do locutor quanto no acompanhamento do processo de coleta de dados. Um computador Mac Mini, com sistema operacional Mac OS X 10.9.5, processador Intel Core i5 2.5 GHz, 16 GB de RAM e 500 GB de espaço em disco rígido. O computador foi utilizado para processamento e armazenamento dos dados coletados. A opção por esse modelo específico foi em virtude do menor nível de emissão de ruídos, 12 dBA segundo especificação do fabricante. Uma mesa de aquisição de áudio M-Audio FireWire 1814, utilizada na digitalização simultânea dos microfones. FIGURA 1 – Posicionamento dos equipamentos no interior do estúdio de gravação do laboratório CEFALA Fonte: elaborado pelos autores A base de dados contou com a utilização de cinco microfones disponíveis no CEFALA e estão nomeados e especificados abaixo para utilização em todo trabalho: M1 Microfone de lapela da marca DYLAN, modelo DL-09 foi posicionado no peitoral do locutor a aproximadamente vinte centímetros dos lábios. M2 Microfone sem fio da marca STANER, modelo SW-481, posicionado a aproximadamente dois metros do locutor para coleta do áudio ambiente. M3 Microfone condensador da marca Brüel & Kjær, modelo 1065, posicionado à altura dos lábios a uma distância de 15 centímetros com 45 graus à direita do plano sagital. 196 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 M4 Smartphone Samsung Galaxy S2 Lite GT-i9070, utilizado na captação do áudio ambiente, simulando uma aquisição a partir de um dispositivo móvel que utiliza microfone com tecnologia MEMS (Micro-ElectroMechanical Systems). O smartphone foi posicionado à frente do locutor a uma distância de um metro e elevado a setenta centímetros do piso. M5 Câmera GoPro Hero 3+ Black Edition, utilizada para captura de vídeo com o codec H264 no formato 1280x720 em 60 FPS (Frames per Second) e áudio com codec AAC em 48 kHz com 32 bits/amostra. Essa câmera foi posicionada frontalmente ao locutor a uma distância de um metro, um exemplo das imagens obtidas por ela é apresentado na Figura 2. Apesar da construção da base de dados ter utilizado uma câmera de vídeo, descrita no microfone M5 da lista anterior, o material de vídeo adquirido será de uso restrito do Centro de Estudos da Fala, Acústica, Linguagem e músicA (CEFALA), conforme previamente esclarecido para os voluntários através da autorização de coleta, a qual faz parte do protocolo descrito na próxima seção. Embora a especificação dos microfones não tenha abrangido detalhadamente suas características técnicas, estas podem ser encontradas nos respectivos manuais fornecidos pelos fabricantes. A influência da utilização desses diferentes microfones não foi amplamente abordada neste trabalho, e está reservado para trabalhos futuros, no entanto a Seção 3.1 apresentará um comparativo da resposta em frequência, em módulo, dos microfones utilizados. FIGURA 2 – Posicionamento dos locutores em frente à câmera para aquisição do conteúdo audiovisual Fonte: elaborado pelos autores Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 197 2.2 Protocolo de coleta A utilização de um protocolo de coleta visa orientar os voluntários que tiveram sua fala registrada, tanto no sentido legal quanto no processo de coleta da base de dados. Dessa forma, o protocolo aqui adotado dividiu-se em quatro etapas fundamentais: I. Autorização de coleta: antes de iniciar o estudo foi apresentada aos participantes uma autorização de coleta de material sonoro a qual esclarecia, dentre outros termos, a finalidade pública dos dados de áudio da base. Tendo concordado com os termos apresentados, o participante assinava a autorização e seguia para o estúdio de coleta. O processo de coleta de dados consistiu em aproximadamente 5 minutos de leitura de texto em voz alta e fala espontânea, as quais são atividades corriqueiramente realizadas em sala de aula. Aprovação por comitê de ética não foi necessária, pois tais atividades não acarretam riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana e a identidade dos voluntários foi preservada.2 II. Fala espontânea: uma vez no estúdio de gravação, o locutor foi orientado a discorrer a respeito de um assunto de seu interesse (e.g. relato pessoal ou não pessoal, comentário sobre qualquer assunto, descrição de alguma atividade rotineira) por aproximadamente 2 minutos. O intuito desta primeira etapa de gravação foi que o voluntário atingisse o estado de fala espontânea. III. Leitura de texto: nesta etapa todos os locutores foram orientados a ler um mesmo trecho, com 153 palavras, do livro A vida de Galileu: o contemplador de estrelas (HARSANYI, 1957). Esse texto foi escolhido de forma a abranger um número maior de fonemas e também por misturar elementos da fala formal e informal, contendo palavras comuns do português brasileiro e também incluindo uma frase em língua estrangeira (i.e. Italiano). IV. Leitura de frases: nesta última etapa os locutores foram igualmente submetidos à leitura de vinte frases. A lista de frases apresenta uma média de sete palavras por frase, sendo 3 o mínimo e 19 o máximo de palavras por frase. A seleção das frases levou em consideração De acordo com o item 8.0.5 da American Psychological Association (2002) e do Artigo 1º da Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. 2 198 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 diferentes tamanhos, frases afirmativas, interrogativas, expressões populares e aliterações. A lista de frases pode ser obtida no protocolo de coleta disponível em http://www.cefala.org. O intuito das duas últimas etapas do protocolo de coleta foi a obtenção de fala a partir de texto pré-fixado, sendo possível posteriormente análises a respeito do comportamento do locutor durante cada elocução. 2.3 Organização da base de dados Após a coleta do material audiovisual de todos os voluntários da base, a tarefa subsequente foi o processamento e organização dos dados obtidos. Dessa forma, o primeiro passo consistiu em extrair o conteúdo de áudio dos arquivos em formato MP4, obtidos pela câmera (i.e. M5). O conteúdo de vídeo foi armazenado em seu formato original, enquanto o conteúdo de áudio, obtido no formato ACC, foi extraído e convertido para o formato padrão da base de dados: formato WAV com taxa de amostragem de 44,1 kHz e 16 bits por amostra. Uma vez organizados os arquivos de áudio de todos os microfones no mesmo formato, a tarefa seguinte foi alinhar os arquivos de todos os locutores, ou seja, fazer com que o áudio de um microfone de um locutor em um ponto específico fosse exatamente o mesmo para os demais microfones. Dessa forma, ainda na etapa de aquisição, antes mesmo do o locutor iniciar o protocolo de coleta, foi solicitado que este aguardasse a execução de um pulso de sincronismo utilizado para marcar o início da gravação em cada um dos microfones. Para o alinhamento foi utilizado o toolbox VOICEBOX3 para MATLAB®.4 Um exemplo do resultado final do processo é exibido na Figura 3. VOICEBOX é uma toolbox para processamento de fala com rotinas desenvolvidas para MATLAB®. 4 MATLAB® é um software interativo de alta performance aplicado ao cálculo numérico. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 199 FIGURA 3 – Zoom em um trecho de áudio de 5,5 segundos para exemplificar o resultado após procedimento de alinhamento dos microfones Fonte: elaborado pelos autores O alinhamento dos arquivos de áudio simplifica a etapa de organização posterior, que é a de segmentação. Uma vez alinhados, a segmentação que for realizada em um arquivo de áudio de um determinado microfone servirá para os demais arquivos dos microfones usados para gravar uma mesma elocução. Para a segmentação, o software de processamento e análise de fala Praat5 foi utilizado na criação de labels (rótulos) para cada segmento. Essa metodologia descarta a necessidade de fragmentar a base em pequenos arquivos de áudio para cada segmento. Dessa forma, os arquivos de áudio alinhados são preservados, e um novo arquivo contendo os labels da segmentação é criado para cada locutor. Essa metodologia permite que existam infinitas formas de segmentação para a mesma base de dados sem alterar os arquivos de áudio alinhados. A segmentação da base realizada neste trabalho foi nomeada SEG22, a qual dividiu as amostras em 22 trechos baseados no protocolo de coleta, sendo eles: o trecho de fala espontânea (i.e. label FALAESP); o trecho da leitura de texto (i.e. label TEXTO); e a sequência de vinte frases (i.e. labels de F01 a F20). A delimitação de cada trecho utiliza o formato TextGrid do Praat e tem a precisão da ordem de picosegundos (i.e. 10-12 segundos). Um exemplo de um arquivo de segmentação é apresentado na Figura 4. O Praat é um software aplicado na análise e síntese da fala desenvolvido na Universidade de Amsterdã. 5 200 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 A organização final dos arquivos da base de dados foi orientada por uma estrutura de diretórios com nomenclatura padronizada. Os diretórios de locutores são definidos por “Locutor_0XXX?”, onde “0XXX” é um número de sequência e “?” identifica o sexo do locutor, sendo M para Masculino e F para Feminino. Dentro de cada diretório de locutor estão presentes os arquivos de áudio com a nomenclatura “Locutor_0XXX?_MY_S.wav”, onde “MY” identifica o microfone, a letra “S” indica que o arquivo de áudio foi submetido ao processo de alinhamento e “.wav” que o formato do arquivo é WAV PCM (Pulse-Code Modulation). Finalmente, os arquivos no formato TextGrid, que também estão contidos dentro de cada diretório de locutor, seguem a nomenclatura Locutor_0XXX?_NOME.TextGrid, onde as diferenças são a palavra-chave “NOME” que representará o título da segmentação realizada e “.TextGrid” representa a extensão do arquivo, indicando que é o formato reconhecido pela aplicação Praat. Após a segmentação dos arquivos de áudio, foi estimada a quantidade de material sonoro presente no corpus. A Figura 5 a seguir apresenta o gráfico RDI (Raw-data Description and Inference) com a duração em segundos dos segmentos de fala espontânea, leitura de texto e leitura de frases. Nessa figura, os pontos representam a duração individual de cada amostra, as curvas laterais são a distribuição de probabilidade empírica, a linha preta horizontal a média e o retângulo escuro é o intervalo de confiança da média para α = 0,05. A Tabela 1 complementa as informações de duração dos segmentos de fala. FIGURA 4 – Exemplo de utilização do software Praat durante o processo de segmentação (i.e. SEG22) dos trechos de áudio da base de dados Fonte: elaborado pelos autores Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 201 3 Análises preliminares do corpus e exemplo de aplicação De posse da base de dados adquirida, processada, organizada e segmentada, experimentos foram desenvolvidos no sentido de se obter uma caracterização preliminar do seu conteúdo. Os resultados desses experimentos servem não apenas para identificar melhor os componentes da base de dados, mas também para exemplificar sua utilização em pesquisas voltadas para as áreas de biometria, fonética e fonologia. TABELA 1 – Duração em segundos com os valores mínimo, médio e máximo dos segmentos (i.e. SEG22) para o tempo total de áudio e para o tempo de fala (i.e. excluindo pausas) mínimo médio máximo Total Fala Total Fala Total Fala Áudio completo 202 112 273 171 412 251 Fala espontânea 55 31 116 78 208 144 Leitura de texto 51 36 66 46 132 70 Leitura de frases 42 33 56 43 99 56 Fonte: elaborado pelos autores FIGURA 5 – Gráfico RDI com a duração (em segundos) das etapas de cada amostra do Corpus CEFALA-1 Fonte: elaborado pelos autores 202 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 3.1 Resposta em frequência dos microfones no ambiente de gravação O primeiro experimento tem como objetivo verificar a resposta em frequência dos microfones usados na gravação. Para esse fim foi usado um pulso de varredura do tipo TSP (Time-Stretched Pulse) (SUZUKI et al; 1995). Para a reprodução do TSP foi utilizado um alto-falante da marca JBL by HARMAN do modelo Micro Wireless, que segundo dados do fabricante possui resposta em frequência de 150 Hz a 20 kHz com uma relação sinal ruído maior que 80 dB. A caixa de som foi posicionada simulando o local onde estarão os locutores, seu volume ajustado para reproduzir uma pressão sonora semelhante àquela observada durante a fala e a reprodução do TSP foi repetida seis vezes para uma maior aquisição de amostras para análise. Durante a reprodução do TSP foi preservada a montagem do estúdio que inclui a posição dos microfones conforme Figura 1. A análise da resposta em frequência de cada microfone foi realizada utilizando o software MATLAB® para aplicação do algoritmo FFT (Fast Fourier Transform). Este algoritmo calcula a transformada de Fourier a qual converte os dados do domínio do tempo para o domínio da frequência, tornando possível a análise de resposta em frequência em todo o espectro adquirido. Basicamente, dois fatores são responsáveis por influenciar a resposta em frequência dos microfones. O primeiro está relacionado às características construtivas do microfone, ou seja, sua faixa de passagem intrínseca. O segundo é o posicionamento do microfone no ambiente, uma vez que sons agudos são mais diretivos que os graves. A combinação desses fatores com a resposta em frequência do alto-falante resulta nas curvas apresentadas na Figura 6. Essa análise de resposta em frequência é importante no planejamento de futuros experimentos que venham utilizar amostras de microfones específicos deste corpus. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 FIGURA 6 – Resposta em frequência apresentada por cada microfone na execução do TSP Fonte: elaborado pelos autores 203 204 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 3.2 Desempenho de locutores em leitura de texto e frases Os experimentos seguintes direcionaram o foco para análises fonéticas e fonológicas. Inicialmente, buscou-se medir as taxas de elocução e de articulação presentes no corpus (GONÇALVES; 2013). O experimento teve como objetivo estimar duas medidas de execução: i) média de geração de sílabas por segundo; ii) tempo médio de pausas durante a fala. Estas estimativas foram obtidas a partir da contagem do número de sílabas e pausas presentes nas etapas de leitura de texto e frases. O processo de segmentação da base de dados e a técnica de VAD (Voice Activity Detection) permitiram que esta contagem fosse realizada com precisão, uma vez que sendo aplicado ele separará perfeitamente os trechos contendo fala e pausas dos arquivos de áudio. Em relação aos resultados, a taxa média de produção de sílabas oscila em torno de 5 sílabas por segundo, enquanto as pausas (ou tempo sem voz) têm duração média de pouco menos de 100 ms. FIGURA 7 – Gráfico RDI apresentado a taxa de sílabas por segundo dos falantes Fonte: elaborado pelos autores Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 205 FIGURA 8 – Gráfico RDI apresentado o tempo de pausa dos falantes Fonte: elaborado pelos autores 3.3 Estatísticas de frequência fundamental e formantes O Corpus CEFALA-1 também pode ser usado para analisar a distribuição dos valores da frequência fundamental (i.e. F0) e dos formantes (e.g. F1, F2, F3, ...) entre os locutores e entre elocuções. Como exemplo, foram realizadas análises dos formantes separados por sexo. Dessa forma, para os grupos masculino e feminino as análises espectrográficas foram desenvolvidas utilizando o método LPC (Linear Predictive Coding). O LPC é uma técnica de análise da fala que modela o sinal como um processo autorregressivo cuja ordem é suficiente para representar os pares de polos referentes aos formantes e inclinação espectral. A partir do LPC é possível encontrar os formantes, frequências em que o trato vocal ressoa em trechos de fala vozeados. Os formantes indicam a frequência, amplitude e largura de banda dessa ressonância do trato vocal. Levando em consideração o modelo do trato vocal como um tubo ressonante (FLANAGAN, 2013), é possível estimar a presença de um formante a cada 1 kHz de banda do sinal de voz. Assim, para o sinal de fala que foi subamostrado a 8 kHz, resultando na banda de 4 kHz, é possível estimar quatro formantes, os quais são excitados pelos harmônicos da frequência fundamental de vibração das pregas vocais. Para cada locutor foi extraída a frequência fundamental (F0) por quadro de 25 ms de voz. O algoritmo utilizado foi o Yet Another Algorithm for Pitch Tracking que foi publicado nos trabalhos de Kasi e Zahorian 206 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 (2002) e Zahorian e Hu (2008). Esse algoritmo retorna os valores da F0 ao longo dos quadros identificados como vozeados. Como o valor da F0 é variável ao longo da fala, cada locutor foi representado pela sua média. A Figura 9 apresenta os valores médios obtidos no gráfico RDI que separa a F0 entre os locutores do sexo masculino e feminino. Os valores de F0 para mulheres são aproximadamente o dobro dos observados para homens. Isso acontece porque as cordas vocais femininas são mais curtas e mais leves que as masculinas (TITZE, 1994). FIGURA 9 – Dispersão da F0 dos falantes divididos por sexo Fonte: elaborado pelos autores Os formantes foram obtidos por meio de análise LPC com refinamento dos polos, como descrito por Kim, Seo e Sung (2006). A Figura 10 mostra o gráfico RDI do valor médio dos formantes F1 a F4 de todas as amostras. O recorte entre locutores de diferentes sexos mostra que os locutores do sexo feminino apresentaram valores médios superiores aos locutores do sexo masculino para os primeiros formantes. Tal diferença ocorre devido a diferença anatômica entre os tratos vocais de homens, cujo trato vocal é mais longo, e de mulheres, cujo trato vocal é mais curto. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 207 3.4 Taxas de identificação de locutores O último experimento é focado na área de biometria e consiste na avaliação de desempenho da comparação automática de locutores utilizando a metodologia UBM-GMM (Universal Background Model – Gaussian Mixture Model). A metodologia UBM-GMM foi proposta por Reynolds et al. (2000) e baseia-se na separação de amostras de voz em pequenos quadros. Para cada quadro são calculados os coeficientes ceptrais na escala mel de frequências (MFCC – Mel Frequency Cepstral Coefficients) e suas variações temporais de primeira e de segunda ordens, denominadas Δ-cepstrum e ΔΔ-cepstrum. Inspirado na percepção humana para frequências sonoras, o MFCC é uma técnica de extração de parâmetros que utiliza a escala Mel para mapear o espectro da voz e que busca reproduzir a resolução espectral da cóclea, tubo ósseo em forma de caracol no qual regiões diferentes são sensíveis a frequências diferentes (PICONE, 1993). FIGURA 10 – Dispersão das frequências dos formantes dos falantes divididos por sexo Fonte: elaborado pelos autores Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 208 A partir dos valores MFCC, representados por x = {x(1), x(2), …, x(T)}, é possível construir uma função densidade de probabilidade que é aproximada por uma soma ponderada de gaussianas. Dessa forma, o modelo UBM consiste em uma mistura de gaussianas que se ajusta à dispersão dos valores MFCC de todos os locutores da base de dados, enquanto o modelo GMM é uma adaptação do modelo UBM para a dispersão dos valores MFCC de um locutor específico. Assim, a partir dos modelos UBM-GMM e de uma amostra de áudio é possível verificar a qual locutor essa amostra pertence. Nesse modelo a pontuação (score) é obtida em um processo que consiste na comparação de uma amostra de teste com todos os modelos GMM. Caso essa pontuação seja superior a um determinado limiar, a amostra é aceita como sendo do respectivo locutor que originou o modelo GMM. Essa pontuação é definida como o logaritmo da razão de verossimilhança (LLR - Log-Likelihood Ratio) e pode ser calculada como LLR(x) = p(H0 | x, λGMM, λUBM ) 1 = ∑ T [log (p(x(t) | λGMM ) ) – log (p(x(t) | λUBM))], p(H1 | x, λGMM, λUBM ) T t = 1 onde, p(x(t) | λGMM) e p(x(t) | λUBM) são as avaliações do t-ésimo MFCC dos modelos GMM e UBM. As hipóteses H0 e H1 da comparação são definidas como H: { HH :: xx ee λλ 0 GMM 1 GMM são provenientes do mesmo locutor para LLR(x) > η0 são provenientes de locutores diferentes para LLR(x) ≤ η0. Neste experimento a base de dados foi separada em dois grupos, sendo os dados divididos em conjuntos de treinamento e de teste. O conjunto de treinamento é utilizado na parametrização dos modelos UBM-GMM, enquanto o conjunto de teste é utilizado na obtenção dos resultados de verificação. Dessa forma, o conjunto de treinamento consistiu na concatenação dos dados da etapa completa de leitura de texto com 66% da etapa de fala espontânea, enquanto o conjunto de teste consistiu na concatenação dos 34% restantes da etapa de fala espontânea com a etapa completa de leitura de frases. Todo o experimento foi repetido para cada um dos cinco microfones, sendo que em todos os experimentos as amostras foram subamostradas para 8 kHz e restritas a faixa entre 300 e 3500 Hz (i.e. condições de comunicação por telefone). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 209 O procedimento de identificação de locutores mostrou-se sensível ao microfone utilizado. A Figura 11 a seguir apresenta a curva DET (Detection Error Tradeoff) para a identificação de locutores. Nesta simulação, apenas os microfones M1 e M4 foram capazes de identificar os locutores sem nenhum erro. TABELA 2 – Limiares de LLR onde obtém-se a menor taxa de mesmo erro e CLLR Limiar LLR [nepers] Taxa de Mesmo Erro [%] Limiar LLR [nepers] Mínimo CLLR [nepers] Microfone M1 0,81 0 0,20 0,25 Microfone M2 1,68 1,92 1,43 0,31 Microfone M3 1,26 0,06 0,91 0,27 Microfone M4 0,65 0 0,14 0,31 Microfone M5 0,32 0,28 0,10 0,35 Fonte: elaborado pelos autores FIGURA 11 – Curva DET para identificação de locutores com a variação do limiar de decisão Fonte: elaborado pelos autores Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 210 FIGURA 12 – Taxa de mesmo erro apresentada no experimento pela variação do limiar de decisão (i.e. valor do logaritmo da razão de verossimilhança). A linha pontilhada representa a taxa de falso negativo enquanto a linha contínua a taxa de falso positivo Fonte: elaborado pelos autores As curvas das figuras 11 e 12 mostram o desempenho dos diferentes microfones para a tarefa de verificação de locutor. Utilizando os microfones M1 e M4, foi possível verificar os locutores com uma acurácia de 100%, enquanto erros de verificação para os demais microfones foram observados. A Figura 12 e a Tabela 2 mostram os limiares de separação para cada um dos cinco microfones utilizados. 4 Conclusão Este artigo apresentou o Corpus CEFALA-1 desenvolvido como ferramenta de suporte para análise de locutores, seja em experimentos de biometria ou em análise fonético-fonológicas. Neste momento o corpus está sendo utilizado em duas teses de doutorado: a primeira na área de autenticação de locutores e a segunda na comparação forense de locutores. O processo de construção do corpus foi descrito tanto no que se refere à montagem utilizada do estúdio de coleta de dados quanto ao conteúdo e ao processamento das amostras coletadas. A utilização do corpus foi demonstrada através do levantamento das distribuições de valores da frequência fundamental, dos primeiros formantes, taxas de sílabas, tempo de pausa e de testes de verificação de locutor. Essas análises preliminares são úteis para apresentar o baseline do Corpus CEFALA-1, que servirá de baliza para trabalhos futuros. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 211 O objetivo principal deste artigo, entretanto, é difundir o Corpus CEFALA-1, que será disponibilizado sob a licença Creative Common BY-NC-ND mediante cadastro eletrônico em http://www.cefala.org. Espera-se que o Corpus CEFALA-1 torne-se um recurso público e gratuito que contribua tanto com o ensino e a pesquisa da fala em geral quanto do português brasileiro em particular. Referências ALEKSIC, P. S.; KATSAGGELOS, A. K. Automatic Facial Expression Recognition Using Facial Animation Parameters and Multistream HMMs. IEEE Transactions on Information Forensics and Security, [S.L.], v. 1, n. 1, p. 3-11, 2006. AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Ethical Principles of Psychologists and Code of Conduct. US: American Psychological Association, 2002. BIBER, D.; CONRAD, S.; REPPEN, R.; LEECH, G. Corpus linguistics: Investigating language structure and use. International Journal of Corpus Linguistics, [s.l.], v. 4, n. 1, p. 185-188, 1999. CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as especificidades éticas das pesquisas nas ciências humanas e sociais e de outras que utilizam metodologias próprias dessas áreas. Brasília, 2016. FLANAGAN, J. L. Speech analysis synthesis and perception. New York: Springer Science & Business Media, 2013. GONÇALVES, C. S. Taxa de elocução e de articulação em corpus forense do português brasileiro. 2013. 192f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. HARRINGTON, J. Phonetic analysis of speech corpora. Oxford: John Wiley & Sons, 2010. HARSANYI, Z. A vida de Galileu: (o contemplador de estrelas). Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1957. HORNAK, J.; ROLLS, E.; WADE, D. Face and voice expression identification in patients with emotional and behavioural changes following ventral frontal lobe damage. Neuropsychologia, [s.l.], v. 34, n. 4, p. 247-261, 1996. 212 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 191-212, 2019 KASI, K.; ZAHORIAN, S. A. Yet another algorithm for pitch tracking. In: IEEE INTERNATIONAL CONFERENCE ON ACOUSTICS, SPEECH, AND SIGNAL PROCESSING (ICASSP), 2002, Orlando. Proceedings… Orlando: IEEE. p. I-361-I-364. KIM, C.; SEO, K.-D.; SUNG, W. A robust formant extraction algorithm combining spectral peak picking and root polishing. EURASIP Journal on Applied Signal Processing, New York, v. 2006, p. 33-33, 2006. PICONE, J. W. Signal modeling techniques in speech recognition. Proceedings of the IEEE, [s.l.], v. 81, n. 9, p. 1215-1247, 1993. REYNOLDS, D. A.; QUATIERI, T. F.; DUNN, R. B. Speaker verification using adapted Gaussian mixture models. Digital Signal Processing, [s.l.], v. 10, n. 1-3, p. 19-41, 2000. SILVA, A. H. P. Língua Portuguesa I: fonética e fonologia. Curitiba: IESDE Brasil, 2016. SILVA, T. C. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 1999. SUZUKI, Y.; ASANO, F.; KIM, H. Y.; SONE, T. An optimum computer generated pulse signal suitable for the measurement of very long impulse responses. The Journal of the Acoustical Society of America, [s.l.], v. 97, n. 2, p. 1119-1123, 1995. TITZE, I. R. Principles of voice production. Englewood Cliffs: Prentice Hall, 1994. TRESADERN, P.; MCCOOL, C.; POH, N.; MATEJKA, P.; HADID, A.; LEVY, C.; MARCEL, S. Mobile biometrics (mobio): Joint face and voice verification for a mobile platform. IEEE pervasive computing, p. 79-87, 2012. WU, Z.; EVANS, N.; KINNUNEN, T.; YAMAGISHI, J.; ALEGRE, F.; LI, H. Spoofing and countermeasures for speaker verification: a survey. Speech Communication, [s.l.], v. 66, p. 130-153, 2015. ZAHORIAN, S. A.; HU, H. A spectral/temporal method for robust fundamental frequency tracking. The Journal of the Acoustical Society of America, [s.l.], v. 123, n. 6, p. 4559-4571, 2008. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 Efeito de treinamento de memória de trabalho em crianças sem diagnósticos de comprometimento cognitivo, estudantes das séries iniciais do Ensino Fundamental Working Memory Training Effect in Elementary School Children Without Diagnosis of Cognitive Impairment Lidiomar José Mascarello Rede Municipal de Florianópolis, Florianópolis, Santa Catarina / Brasil lidiomarjose@gmail.com Resumo: O propósito principal deste artigo é apresentar resultados de pesquisas que mostram a relevância de um treinamento da memória de trabalho em crianças sem diagnóstico de déficit de atenção ou outras complicações cognitivas. São crianças estudantes do segundo ano do Ensino Fundamental em processo inicial de aprendizagem de leitura e escrita. Participaram do estudo 165 sujeitos. Todos os participantes foram submetidos a pré e pós testes que avaliaram índices de memória de trabalho e desempenho em leitura silenciosa de palavras e pseudopalavras. Além da apresentação dos resultados objetivamos discutir questões referentes a estudos da memória de trabalho (MT) e suas implicações nos processos de aprendizagem de leitura. Os resultados das pesquisas indicam que crianças com maior capacidade de memória de trabalho apresentam melhor desempenho em tarefas de leitura que crianças com menor capacidade nessa memória, tais resultados são consonantes a outros estudos na área. Palavras-chave: memória de trabalho; efeito de treinamento; leitura. Abstract: This study aims to present research results that show the relevance of work memory training in children without a diagnosis of attention deficit or other cognitive complications. They are children of the second year of the Elementary School in the initial process of learning to read and write. 165 subjects participated in the study. All participants were submitted to pre and post tests that evaluated work memory indices and performance in silent word and pseudoword reading. In addition to the presentation of the results, we aimed to discuss issues related to working memory (TM) studies and eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.213-240 214 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 their implications for reading learning processes. The results of research indicate that children with higher working memory capacity perform better on reading tasks than children with lower memory capacity, such results are consonant with other studies in the area. Keywords: working memory; training effect; reading. Recebido em 08 de maio de 2018 Aceito em 04 de setembro de 2018 1 Introdução O estudo da memória humana é uma área de pesquisa que a psicologia cognitiva investiga há muito tempo. Um dos estudos mais antigos que se tem registro é o de Ebbinghaus em 1885 (apud BADDELEY et al., 2011, p. 83). Entretanto até hoje não é um campo em que há consenso sobre a conceituação e a definição do que é memória humana. Para autores como, por exemplo, Kandel (2009), a memória é a capacidade de reportar-se às lembranças e reminiscências registradas em nosso cérebro. Em outras palavras, podemos dizer que a memória é a capacidade humana de registrar, conservar e relembrar mentalmente experiências de vida, conhecimentos, conceitos, sensações e pensamentos experimentados no decorrer do percurso da vida. Contudo, defender tal ponto de vista implica fazer escolhas teóricas priorizando uma em relação a outras. Baddeley et al. (2011, p.14) defendem que a partir de novos estudos da Neurobiologia e da Psicologia Cognitiva, é possível falar de memórias e não apenas de memória como se fosse um sistema simples e único. O mesmo autor argumenta que, de fato, existem várias memórias, isto é, vários sistemas de memórias, pois há diversas fontes de armazenamento de dados em nossa mente, não limitadas em uma área determinada de nosso cérebro, mas inerentes a distintas atividades mentais (BADDELEY, et al., 2011). Assim como não há consenso na formulação de um conceito único sobre memória humana também não é tarefa simples determinar quais são os tipos de memória existentes e como devem ser identificados. Existem, na literatura sobre o tema, várias formas e sistemas classificatórios, sendo que alguns priorizam o sistema de funcionamento da memória, outros Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 215 a temporalidade, ou seja, o tempo de armazenamento da informação na mente humana, dentre outras formas e critérios para classificá-la (PURVES et al., 2004). Em comum, as diferentes linhas teóricas concordam que a memória é o funcionamento articulado de vários sistemas cerebrais responsáveis pelo registro e armazenamento de informações (por um período de tempo) que podem ser recuperadas (KANDEL, 2009). Para Baddeley et al. (2011), a memória humana está organizada em memória sensorial, memória de curto prazo, memória de trabalho e memória de longo prazo, definições nas quais me apoiei para a realização do estudo. A memória sensorial tem importância primordial que nos possibilita reconhecer padrões em gral, também conhecido como padrão sensorial. É um sistema de memória que através da percepção da realidade, pelos órgãos do sentido, retém por alguns segundos a imagem detalhada da informação sensorial recebida. Ela é responsável pelo processamento inicial da informação sensorial e sua codificação (BARKLEY, BENTON, 2011). A relação bem sucedida entre os órgãos do sentido e o cérebro é de extrema importância para a memória, segundo Barkley, Benton (2011) a memória não entra em ação só quando tentamos recordar algo, mas ela é um processo em constante construção e o nosso comportamento pode estimula-la ou não. Em relação à memória de curto prazo nos referimos à retenção temporária de pequenas quantidades de material por um breve período de tempo. Segundo Baddeley (2011, et al., p.31), [...] “é um sistema de memória responsável por receber as informações e retê-las por um curto período de tempo”. As informações aí retidas são as provenientes de qualquer órgão do sentido. A memória de curto prazo é responsável pela triagem das informações recebidas para que estas sejam utilizadas, descartadas ou mesmo organizadas para serem armazenadas. A memória de longo prazo ou longa duração é o sistema de memória que recebe as informações da memória de curta duração e as armazena por longos períodos de tempo. Para Baddeley et al. (2011), caso não haja danos cerebrais, o armazenamento pode ser por um prazo indeterminado, pois é uma memória considerada de capacidade ilimitada de armazenamento e, as informações ficam nela armazenadas por tempo também ilimitado. Em linhas gerais, a memória humana é constituída pela capacidade dos seres humanos de adquirir, conservar e evocar informações através de 216 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 dispositivos neurobiológicos e da interação social (BADDELEY, 1992). A memória é constituída de um conjunto de procedimentos que permite manipular e compreender o mundo, levando em conta o contexto atual e as experiências individuais, recriando esse mundo por meio de ações pessoais/individuais (BADDELEY, 1992). Em 1974, Baddeley e Hitch, ao estudarem os modelos de memória apresentados até então, constatam e demonstram por meio de novas pesquisas, que os modelos antecedentes, em especial o modelo de Atkinson e Schiffrin (1968) não consegue explicar uma série de fenômenos cognitivos e evidências neuropsicológicas. Com isso, Baddeley e Hitch (1974) propõem um novo modelo, denominado Modelo Multicomponencial. Baddeley e Hitch (1974) passam a defender a ideia de que além da memória de curto e de longo prazo existe uma memória capaz de manipular informações, isto é, uma memória de trabalho, um sistema temporário (de curta duração) que é capaz de operar, processar e manter informações na mente por um curto espaço de tempo. Esse novo modelo é composto inicialmente por três partes ou componentes de memória de trabalho: 1 – Circuito Fonológico; 2 – Bloco de Espaço Visuoespacial; e 3 – Executivo central. De acordo com este novo modelo, a Alça Fonológica é basicamente um componente de memória verbal de curta duração responsável pelos aspectos linguísticos nos processamentos cognitivos, aspectos relacionados desde a codificação semântica, articulação das palavras, estruturação e até aprendizagem de novas línguas. O Esboço Visuoespacial é o componente responsável pela manutenção temporária de informações visuais e espaciais. O componente Executivo Central é o gerenciador dos dois subsistemas Alça Fonológica e Esboço Visuoespacial articulando também a memória de longo prazo. Segundo Baddeley et al. (2011), o circuito fonológico é uma parte específica da memória de trabalho e pode ser considerado como um subsistema específico desta memória. O circuito fonológico ou alça fonológica é a parte da memória de trabalho que lida com informações provenientes de material escrito e falado. Ela pode ser usada para lembrar um número de telefone, por exemplo, e está organizada em duas partes principais. A primeira parte principal é o compartimento fonológico (ouvido interna), que está vinculado à percepção de fala e que, baseando-se no discurso, apresenta informações de forma (ou seja, palavras faladas) por 1-2 segundos. A outra parte é o processo de controle articulatório, (voz interior) e está ligada à produção da fala. O processo Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 217 de controle articulatório é utilizado para armazenar informações verbais do compartimento fonológico. O circuito ou alça visuoespacial lida com informação visual e espacial. Informação visual se refere ao que as coisas se parecem ou são no mundo real. É provável que esboço visuoespacial tem um papel importante para nos ajudar a manter o controle de onde estamos em relação a outros objetos, como nós nos movemos no meio em que vivemos (BADDELEY, et al., 2011). À medida que nos movimentamos, a nossa posição em relação aos objetos se modifica e é importante que possamos manter essas informações atualizadas: por exemplo, ter consciência de onde estamos em relação às mesas e cadeiras em uma sala de aula permite que não esbarremos nelas. Este circuito nos permite também resgatar informações visuais e espaciais da memória de longo prazo. O componente executivo central é o componente mais importante do modelo, embora não se tenha conhecimento completo sobre seu funcionamento e ainda estão sendo realizadas pesquisas para compreender melhor as suas características funcionais. De acordo com Baddeley et al. (2011), este componente é responsável pelo acompanhamento e coordenação da operação dos sistemas visuoespacial e circuito fonológico e os relaciona com a memória de longo prazo. O componente executivo central decide quais informações são atendidas e quais partes da memória de trabalho enviarão essa informação para ser executada. O componente executivo central é responsável por controlar o foco de atenção do indivíduo. O executivo central decide em que a pessoa, por meio do componente cognitivo memória de trabalho, presta atenção. Por exemplo, duas atividades às vezes entram em conflito, tais como dirigir um carro e conversar. Ao invés de atropelar um ciclista que está andando a sua frente, é preferível parar de falar e se concentrar na condução. O componente executivo central dirige a atenção e dá prioridade a atividades particulares. O componente executivo central é o componente mais versátil e importante do sistema de memória de trabalho. Baddeley et al. (2011) sugere que o componente executivo central age mais como um sistema que controla os processos de atenção e não como um armazenamento de memória. Isso é diferente da alça fonológica e a alça visuoespacial, que são sistemas de processamento especializados. O componente executivo central permite que o sistema de memória de trabalho seja seletivo. 218 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 Baddeley et al. (2011) usa a metáfora de um chefe de empresa para descrever o funcionamento do executivo central. O chefe da empresa toma decisões sobre questões que merecem atenção e o que deve ser ignorado. Ele também seleciona estratégias para lidar com problemas, mas como qualquer pessoa na empresa, o patrão só pode fazer um número limitado de coisas ao mesmo tempo. Como podemos observar, nesse novo modelo, a memória de curta duração deixa de ser um arquivo passivo, isto é, deixa de ser apenas um receptor de informações, um lugar em que apenas se guarda algo, para ser um local de trabalho em que a matéria/informação aí colocada está constantemente sendo manipulada, (re)combinada e transformada. Além disso, esse local de trabalho, esse espaço cerebral, contém tanto material novo/informação nova que chega do ambiente quanto material antigo/ memórias já anteriormente guardadas extraído da memória de longo prazo (BADDELEY, et al., 2011). Por apresentar essas características, muitas são as pesquisas que buscam identificar relações entre aspectos da linguagem considerados essenciais para a aprendizagem de leitura e dos sub processos necessários para a concretização do ato de ler e a memória de trabalho. Os pesquisadores das áreas cognitivas (neurolinguística, neuropsicologia, etc.) e psicolinguística concordam que a memória de trabalho é indispensável para o sucesso e bom desempenho em tarefas cognitivas. Embora haja essa concordância, não é consenso entre os estudiosos que é possível melhorar os índices dessa memória. Para alguns pesquisadores, a MT pode ser expandida, mas para outros não. Outra divergência gerada a partir desse posicionamento é a possibilidade de generalizar que, ao melhorar a MT, melhora-se consequentemente o desempenho em tarefas cognitivas. Tal posicionamento se dá pelo fato de os estudos serem julgados muito recentes e apresentarem dados considerados inconsistentes para comprovar essas evidências (segundo os pesquisadores que defendem que os índices da MT não podem ser melhorados). Tal posicionamento é adotado, por exemplo, pelo grupo de pesquisadores do Georgia Institute of Technology, sob a coordenação do Dr. Randall Engle, estuda Attention and Working Memory.1 Em estudo Outras informações sobre tal posicionamento podem ser encontradas no site <http:// englelab.gatech.edu/publications.html#2010-Present>. Nesse endereço são encontradas as principais publicações desse grupo de pesquisa. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 219 publicado em 2010, por exemplo, afirmam que não é possível ampliar a MT por treinamento adaptado e pela execução de tarefas, mas que as diferenças nos índices podem ocorrer a partir das diferenças individuais entre os sujeitos ou por falta de controle adequado nas variáveis cognitivas envolvidas no processo (SHIPSTEAD, 2010). Em contrapartida, grupos como o da Universiy of York que também estudam Working Memory and Attention, Language, and Learning, coordenados pela Dra. Susan Gathercole, defendem que programas de treinamento cognitivo podem ser aplicados como forma de intervenção para minimizar problemas de atenção e melhorar a MT (HOLMES; GATHERCOLE; DUNNING, 2009). E também do Departamento de Neuropediatria do Karolinska Institute, coordenado pelo Dr. Torkel Klingberg, ao estudarem crianças com dificuldades e deficit de atenção e MT, defendem que é possível melhorar os índices de MT. E o resultado da melhoria influencia também os resultados em outras atividades cognitivas como, a diminuição do tempo na execução de tarefas motoras em crianças com TDAH (KLINGBERG et al., 2002; KLINGBERG et al., 2005; SWANSON; SACHSE-LEE, 2001).2 Mesmo diante de divergências, pensamos que a MT pode ser melhorada. E por pensarmos dessa forma, filiamo-nos ao grupo que defende que, a partir de treinamento específico, a memória de trabalho pode ser expandida dentro de um limite e de um contexto. A MT, como elemento essencial da nossa cognição, ganhou ampla aceitação como principal indicador do desempenho acadêmico, profissional e pessoal, (GATHERCOLE; PICKERING, 2000). E, depois de anos de estudos, evidências dos resultados de pesquisas e sucesso clínico, efetuados também pelos dois polos de estudos há pouco referenciados, acreditamos que o treinamento para aumentar a capacidade de MT é considerado como um avanço nas pesquisas. Programas de treinamento cognitivo são aceitos como uma forma de intervenção para minimizar problemas de atenção (HOLMES; GATHERCOLE; DUNNING, 2009). Os programas são baseados em um conceito chamado “formação da memória de trabalho”. Em relação ao conceito de memória de trabalho adotamos o defendido como “o modelo Outras informações sobre tal posicionamento podem ser encontradas nas publicações no site: <https://pure.york.ac.uk/portal/en/researchers/susan-e-gathercole(21f554a609c5-4b57-a3a3-d1b870d90be1)/publications.html>. 2 220 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 multicomponencial” (BADDELEY, HITCH, 1974) e suas atualizações. Os autores defendem que na verdade a memória de curto prazo constituise de uma parte compreendida como uma memória de trabalho, isto é, um sistema temporário (também de curta duração) que é capaz de manipular, processar e manter informações na mente por um curto espaço de tempo (BADDELEY, 2003). Em relação ao aspecto da leitura, ou ao ato de ler, pode ser compreendido e estudado sob diferentes aspectos, pois, em algum modo, é polimorfo, isto é, o ato de ler pode ser entendido e apresentado de diversas formas e por diferentes perspectivas teóricas. Como já foi defendido em Mascarello (2016, p 69) “o estudo aqui apresentado está vinculado e relaciona-se com os diversos estudos que têm como fio condutor a visão de leitura como um processo cognitivo complexo, não resumido a um produto final a ser analisado”. Nesse sentido, parece-nos coerente que são necessários ou fazem parte do processo das operações cognitivas interligadas, os movimentos ascendentes e descendentes (que envolvem aspectos informativos tanto do texto quanto da experiência do leitor) situados no tempo e no espaço em constante interação. A leitura não é o produto simples da soma das contribuições do leitor e do texto. Além desses dois aspectos muito importantes, é preciso considerar também um terceiro elemento: o resultado proporcionado pelo encontro do leitor com o texto. Para compreender o ato da leitura, temos que considerar então “(a) o papel do leitor, (b) o papel do texto e (c) o processo de interação entre o leitor e o texto” (LEFFA, 1996, p. 17). Diante dessa possibilidade, de extrair e atribuir significados de um texto, surgem pelo menos duas ações ou dois modos de posicionamento diante do ato de ler: um que prioriza os aspectos e processos cognitivos e entende que a leitura é um processo cognitivo; e outro que prioriza os aspectos e os efeitos sociais ou de socialização que a leitura possibilita, entendendo que a leitura é uma prática social. Na perspectiva das teorias que priorizam os aspectos cognitivos, em diferentes áreas de estudos, entre elas a área da psicolinguística, alguns autores que estudam aprendizagem de leitura, por exemplo, Gough (1976), Souza (2004), Gathercole e Alloway (2006), Scliar-Cabral e Souza (2011), Souza e Garcia (2012) enfatizam mais os aspectos referentes ao processamento da informação que os benefícios sociais da leitura. Trabalhamos com três hipóteses: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 221 (1) Há relação entre a capacidade de memória de trabalho e o desempenho em leitura de crianças com idade entre 07 e 09 anos em processo de alfabetização, sendo que, crianças com maior capacidade de memória de trabalho apresentam melhor desempenho em tarefas de leitura que crianças com menor capacidade nessa memória; (2) A capacidade da memória de trabalho de crianças com desempenho baixo em leitura pode ser aumentada através de intervenção específica; (3) A expansão da capacidade de memória de trabalho de crianças com baixo desempenho em leitura tem efeitos positivos sobre esse desempenho acadêmico (MASCARELLO, 2016, p. 28,29). Em nosso estudo buscamos respostas para as perguntas: 1) Existe relação entre memória de trabalho e os processos cognitivos de decodificação e compreensão envolvidos na aprendizagem da leitura por crianças em processo de alfabetização na faixa etária de 07 a 09 anos de idade? 2) Se existe relação entre memória de trabalho e os processos cognitivos de decodificação e compreensão envolvidos na aprendizagem de leitura, crianças com baixo índice de memória de trabalho apresentam menor rendimento e maior dificuldade no processo de aprendizagem de leitura? 3) É possível melhorar, isto é, aumentar os índices de memória de trabalho através de intervenção específica para além do aumento considerado natural1 que ocorre nesta faixa etária? 4) Qual é o efeito de uma intervenção específica que objetiva melhorar a capacidade da memória de trabalho em crianças da faixa etária 07 a 09 anos sobre o desempenho em leitura? 5) A expansão da memória de trabalho tem efeito positivo sobre o desempenho em leitura? (MASCARELLO, 2016, p. 28). Na sequência do texto apresentamos os aspectos metodológicos, a análise dos dados e resultados obtidos no estudo. 222 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 2 Método 2.1 Participantes Para realizar o estudo foram adotadas algumas estratégias procedimentais, a saber: aplicação de um conjunto de testes com o intuito de avaliar a memória de trabalho e também testes para verificar estratégias e rotas de leitura. Foram executados pré e pós testes, intercalados por um período de intercessão de 10 semanas com o grupo experimental. Participaram da pesquisa 165 sujeitos, sendo n = 165. A média de idade dos 165 participantes foi de 7,3 anos no pré-teste e 7,7 anos no pós-teste, 76 participantes são do sexo masculino e 89 são do sexo feminino. Todos os participantes são estudantes do segundo ano do Ensino Fundamental. O local da coleta de dados foi em uma escola da rede estadual de ensino, localizada em Florianópolis, SC. 2.2 Instrumentos Os sujeitos que participaram e colaboraram com o estudo foram investigados e submetidos a tarefas que mediram seu desempenho e capacidade de leitura a partir do Teste de Competência de Leitura de Palavras e Pseudopalavras (TCLPP) (SEABRA; CAPOVILLA, 2010).3 Esse teste avalia a competência de leitura de itens escritos individuais e analisa processos de leitura em suas três vertentes: os processos ideovisuais logográficos, típicos do rudimentar estágio logográfico de leitura por reconhecimento primário e desprovido de qualquer decodificação; os processos perilexicais de decodificação grafêmica, típicos do estágio de leitura alfabético, e os processos lexicais de reconhecimento visual direto de formas ortográficas familiares, típicos do estágio ortográfico e sempre acompanhados da capacidade de decodificação já instalada (CAPOVILLA; CAPOVILLA; MACEDO, 2005; CAPOVILLA; CAPOVILLA; MACEDO, 2006). O TCLPP contém 70 itens, sendo dez itens para cada um dos sete subtestes distribuídos em ordem aleatória, isto é, não são apresentadas Estamos cientes de que tanto os testes de memória quanto os de leitura de palavras utilizados são passíveis de observações e críticas e que leitura não se limita a reconhecer e compreender palavras, mas os instrumentos foram julgados adequados considerando a idade e a escolaridade dos sujeitos e os objetivos do estudo. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 223 na sequência as 10 palavras corretas regulares, as 10 palavras corretas irregulares, etc. A pontuação máxima é de 70 pontos. Como há duas respostas possíveis para cada item, a pontuação casual é de 35 pontos brutos no total do teste e de 5 pontos brutos em cada subteste. Cada item é composto de uma figura e um elemento escrito. O participante deverá, ao realizar o teste, circular os itens corretos e cruzar com “X” os incorretos. Há dois subtestes com itens corretos: • • Palavras corretas regulares (CR) (ex. FADA sob a figura de uma fada) e Palavras corretas irregulares (CI) (ex. TÁXI sob a figura de um táxi). Há cinco subtestes compostos de itens incorretos: 1. 2. 3. 4. 5. Palavras semanticamente incorretas, que diferem das figuras às quais estão associadas, ou seja, vizinhas semânticas (VS) (ex., palavra GATO sob a figura de cão); Pseudopalavras estranhas (PE) (ex., MELOCE sob figura de palhaço); Pseudopalavras homófonas (PH) (ex., JÊNIU sob a figura de gênio); Pseudopalavras pseudo-homófonas com trocas fonológicas, ou seja, vizinhas fonológicas (VF) (ex., MÁCHICO sob a figura de mágico) e Pseudopalavras pseudo-homógrafas com trocas visuais, ou seja, vizinhas visuais (VV) (ex. TEIEUISÃO sob a figura de televisão). Para coletar os dados referentes à memória de trabalho utilizaramse os subtestes de memória da Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC-IV, 2013). Essa escala é considerada um instrumento clínico de aplicação individual, utilizado para avaliar a “capacidade intelectual e o processo de resolução de problemas em crianças entre 6 anos e 0 mês a 16 anos e 11 meses” (WECHSLER, 2013, p. 1). De acordo com o manual de instruções e o manual técnico, essa escala de avaliação é composta por quatro grupos de atividades chamados de índices. Cada índice avalia aspectos diferentes de elementos constitutivos da cognição humana, a saber: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 224 a) b) c) d) Índice de Compreensão Verbal (ICV); Índice de Organização Perceptual (IOP); Índice de Memória Operacional (IMO); e Índice de Velocidade de Processamento (IVP). O ICV é formado por subtestes que se “destinam à aferição das habilidades verbais por meio do raciocínio, da compreensão e da conceituação” (WECHSLER, 2013, p. 2). O IOP, índice de organização perceptual, mede a capacidade que o sujeito tem de se organizar e perceber seu contexto. O IMO, índice de memória operacional, avalia capacidade de atenção e concentração e a memória de trabalho em geral. O IVP, índice de velocidade de processamento, aponta índices de agilidade mental e processamento grafomotor. A bateria de testes WISC – IV é composta em sua totalidade por 15 subtestes, sendo 10 principais e 5 suplementares. Para a aferição da memória de trabalho foi feito uso dos testes Ordem Direta e Ordem inversa de números, Sequência de Números e Letras e Aritmética da Escala Wechsler Intelligence Scale for Children – WISC IV – para medir memória de trabalho. Os testes avaliam aspectos da memória de trabalho auditiva e visual, discriminação fonológica e a capacidade de manter e processar informações. 2.3 Procedimentos Os sujeitos foram divididos em 5 sub grupos. A divisão ocorreu a partir dos resultados dos dados dos pré-testes comparados aos valores da padronização estabelecidos pelos mesmos, sendo: 1) Experimental (31 participantes, os que obtiveram baixos índices nos testes de memória de trabalho e no teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras); 2) Controle (28 participantes, os que obtiveram baixos índices nos testes de memória de trabalho e no teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras); 3) Regular (56 participantes, os que obtiveram índices considerados dentro da normalidade padrão de acordo com idade e ano escolar nos testes de memória de trabalho e no teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras); Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 225 4) WmpobreLn4 (27 participantes, os que obtiveram baixos índices nos testes de memória de trabalho e índices normais no teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras); 5) LpobreWMn 5 (23 participantes, os que obtiveram baixos índices no teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras e índices normais nos testes de memória de trabalho) (MASCARELLO, 2016, p.94). A intervenção, para o grupo experimental, foi realizada a partir da utilização de um protocolo de intervenção constituído por 17 jogos com tarefas distintas. Os jogos foram aplicados alternadamente durante um período de 10 semanas. A duração foi de 35 minutos diários, repetidos 5 vezes na semana. Aqui o leitor pode perguntar-se: por que 35 minutos? É que em uma aula de 50 minutos só conseguíamos efetivamente trabalhar com as atividades por cerca de 35 minutos, o tempo restante da hora aula era ocupado com deslocamento dos estudantes e com a organização dos grupos na sala de atividades. Os alunos do grupo experimental eram deslocados de suas salas de aula para uma sala específica. A sala era previamente organizada e preparada para a realização das atividades. Os demais alunos, dos outros grupos, permaneciam em suas salas de aula realizando atividades de rotina. As atividades do grupo experimental sempre eram realizadas na primeira aula do período vespertino. Alguns desses jogos foram adaptados a partir de jogos de memória disponíveis online e outros foram jogos criados anteriormente por outros pesquisadores, ou ainda, jogos clássicos utilizados e adaptados para a aprendizagem em sala de aula. Os jogos respeitam os aspectos visuoespaciais, verbais, numérico-verbais e verbais e visuoespaciais ao mesmo tempo. 2.4 Protocolo de intervenção Nas Tabelas abaixo visualizam-se atividades propostas no protocolo de intervenção com características, domínios e com a ordem de realização das atividades. 4 5 A abreviação WmpobreLn significa memória de trabalho pobre e leitura normal. A abreviação LpobreWMn significa leitura pobre e memória de trabalho normal. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 226 TABELA 01 – Tabela referente ao protocolo de intervenção Atividade Tarefa Objetivo Habilidade requerida Material Domínio Dominó Aprender as regras e jogar dominó Treinar habilidade de atenção, flexibilidade cognitiva Atenção difusa, atenção concentrada, percepção visual Dominó tradicional colorido Visuoespacial, articulado pelo executivo central Dominó Adição Encontrar o resultado da soma indicada Treinar habilidade de atenção, memória, pensamento lógico Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho Dominó feito em papel cartão, (adaptado para idade e ano escolar) Memória visuoespacial e atenção; executivo central Dominó Subtração Encontrar o resultado da subtração indicada Treinar habilidade de atenção, memória, pensamento lógico Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho, raciocínio lógico Dominó feito em papel-cartão, (adaptado para idade e ano escolar) Memória visuoespacial e atenção; executivo central Dominó Multiplicação Encontrar o resultado da multiplicação indicada Treinar habilidade de atenção, memória, pensamento lógico Dominó feito em papel-cartão, (adaptado para idade e ano escolar) Memória visuoespacial e atenção; executivo central Dominó Divisão Encontrar o resultado da divisão indicada Treinar habilidade de atenção, memória, pensamento lógico Dominó feito em papel-cartão, (adaptado para idade e ano escolar) Memória visuoespacial e atenção; executivo central Jogo de memória Combinar pares com figuras e palavras substantivas Treinar a habilidade de atenção, memória, viso espacial, flexibilidade cognitiva Figuras e seus nomes em papelcartão para formar pares Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Jogo de memória Combinar figuras aleatórias Treinar a habilidade de atenção, memória, visuoespacial, flexibilidade cognitiva Pares de figuras em papel cartão. Memória visuoespacial; executivo central. Jogo de memória Combinar figuras com masculino e feminino Treinar a habilidade de atenção, memória, visuoespacial, flexibilidade cognitiva Figuras de animais indicando o “gênero” macho e fêmea; em papel Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho, raciocínio lógico Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho, raciocínio lógico Atenção concentrada, memória de trabalho, visuoespacial, flexibilidade cognitiva Atenção concentrada, memória de trabalho, visuoespacial, flexibilidade cognitiva Atenção concentrada, memória de trabalho, visuoespacial, flexibilidade cognitiva Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 Quebra Cabeça 01 Montar a figura apresentada através do encaixe de partes específicas Treinar habilidade de atenção, memória, visuoespacial Quebra Cabeça 02 Montar a figura apresentada através do encaixe de partes específicas Treinar habilidade de atenção e memória visuoespacial. Jogo palavra escondida Montar uma série de palavras entre letras distratoras Treinar habilidade de atenção e memória Jogo do mico de sílabas Desenvolver a percepção da sílaba como uma Montar palavras das unidades de a partir da formação das organização de palavras e melhorar cartelas a capacidade de compor e segmentar palavras Jogo quebra palavras Jogo das rimas Jogo alfabético silábico Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho, visuoespacial Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho e visuoespacial. Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho 227 Quebra-cabeça feito em papel Memória visuoespacial; executivo central Quebra-cabeça feito em papel, (diferente do anterior) Memória visuoespacial; executivo central Letras e sílabas impressas em papel e recortadas Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho Sílabas impressas em cartelas que, combinadas, formam substantivos com a imagem do referente também impressa em papel Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Montar e segmentar palavras O principal objetivo é desenvolver a consciência fonológica, de modo que o participante seja capaz de manipular fonemas de forma consciente, saiba compor palavras pelas pistas dadas Memória fonológica, circuito fonológico, memória visuoespacial e atenção Este jogo é composto por 35 palavras segmentadas em letras que formam 140 tiras. Combinadas, formam, além de palavras, uma paisagem como plano de fundo. Em papel Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Combinar palavras com rimas Reconhecer palavras que finalizam com o mesmo som, saber emparelhar palavras que finalizam com o mesmo som Memória fonológica, circuito fonológico, memória visuoespacial e atenção O jogo é composto por 45 peças que formam, a cada 3 peças, um cenário. Impressas em papel Memória visuoespacial, circuito fonológico, executivo central Formar palavras e frases Formar palavras, formar encontros vocálicos, formar pequenas frases reconhecendo as palavras Memória fonológica, circuito fonológico, memória visuoespacial e atenção Letras impressas em papel e recortadas Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 228 Jogo das bandeiras Jogo da lista de supermercado Combinar bandeiras com nome do estado correspondente Treinar habilidades de atenção e memória Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho Bandeira dos estados brasileiros e o nome dos estados impressos em cartelas de papel Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Ouvir palavras Treinar habilidades de atenção e memória Atenção difusa, atenção concentrada, memória de trabalho Atividade oral, não há material específico Memória visuoespacial, circuito fonológico; executivo central Fonte: Mascarello (2016). Protocolo de intervenção com características e domínios mencionados. TABELA 02 – Realização do protocolo de intervenção Atividade 1a sessão 2a sessão 3a sessão 4a sessão 5a sessão 1a semana Dominó + Dominó adição Dominó + Dominó adição Dominó + Dominó adição Dominó + Dominó adição Dominó + Dominó adição 2a semana Figuras e palavras (substantivos) + Jogo dos pares 1 Figuras e palavras (substantivos) + Jogo dos pares 1 Figuras e palavras (substantivos) + Jogo dos pares 1 Figuras e palavras (substantivos) + Jogo dos pares 1 Figuras e palavras (substantivos) + Jogo dos pares 1 3a semana Figuras e palavras (masc/fem) + Quebra-cabeça 2 Figuras e palavras (masc/fem) + Quebra-cabeça 2 Figuras e palavras (masc/fem) + Quebra-cabeça 2 Figuras e palavras (masc/fem) + Quebra-cabeça 2 Figuras e palavras (masc/fem) + Quebra-cabeça 2 4a semana Quebra-cabeça 1 Jogo dos pares 2 Quebra-cabeça 1 Jogo dos pares 2 Quebra-cabeça 1 Jogo dos pares 2 Quebra-cabeça 1 Jogo dos pares 2 Quebra-cabeça 1 Jogo dos pares 2 5a semana Jogo palavra escondida + Jogo do mico Jogo palavra escondida + Jogo do mico Jogo palavra escondida + Jogo do mico Jogo palavra escondida + Jogo do mico Jogo palavra escondida + Jogo do mico 6a semana Jogo quebra palavras + Jogo das rimas Jogo quebra palavras + Jogo das rimas Jogo quebra palavras + Jogo das rimas Jogo quebra palavras + Jogo das rimas Jogo quebra palavras + Jogo das rimas 7a semana Jogo alfabeto silábico + Dominó divisão Jogo alfabeto silábico+ Dominó divisão Jogo alfabeto silábico+ Dominó divisão Jogo alfabeto silábico + Dominó divisão Jogo alfabeto silábico + Dominó divisão 8a semana 9a semana 10a semana Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Jogo das bandeiras + Pares 1 Pares 1 Pares 1 Pares 1 Pares 1 Dominó multiplicação + Pares 2 Dominó multiplicação + Pares 2 Dominó multiplicação + Pares 2 Dominó multiplicação + Pares 2 Dominó multiplicação + Pares 2 Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração + Dominó subtração + Lista de Lista de Lista de Lista de Lista de supermercado supermercado supermercado supermercado supermercado Fonte: Mascarello (2016). Protocolo de Intervenção. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 229 2.5 Análise dos dados Para a análise e o tratamento dos dados foram utilizados dois programas de estatística, SPSS e STATISTICA. Do pacote estatístico SPSS (Statistical Package for Social Sciences) foi usada sua versão de número 20, e do STATISTICA foi usada sua versão 8.0. Após a elaboração dos histogramas, foram utilizados os testes de normalidade de Kolmogorov-Smirnov (K-S) e Shapiro-Wilk (S-W ou W). Os testes fornecem o valor de prova (valor-p, p-value ou significância), indicando a medida de grau de concordância entre os dados e a hipótese nula Ho correspondente à distribuição normal. Quanto menor o valor-p, menor a consistência entre os dados e a hipótese nula. Foi também utilizado um teste paramétrico, t (T-tests) de comparação múltipla para amostras de grupos emparelhados, além do Newman-Keuls, teste para medidas repetidas. Utilizou-se também a correção de Bonferroni (Fisher-Bonferroni) para diminuir a taxa de erro do grupo dos testes aplicados a fim de verificar a significância estatística das diferenças entre essas medidas dos grupos testados. Os dados foram submetidos, ainda, a uma análise de variância (ANOVA), Student-Newman-Keuls a,b para verificar se existe uma diferença significativa entre as médias dos dados dos grupos experimental e controle em cada teste, pré-testes e pós-testes. Foi também aplicado o teste Repeated Measures Analysis of Variance with Effect Sizes and Powers, Newman-Keuls test do GLM (modelo linear geral) para medidas repetidas. O GLM segue os mesmos padrões de uma análise de variância. O nível de significância, ou valor p, preestabelecido é de 5%, p = 0,05. 3 Resultados e discussão Os quadros 01 e 02 exprimem os resultados gerais obtidos pelos participantes da pesquisa sem discriminar os grupos a que pertencem. A tabela 01, por sua vez, apresenta os resultados de desempenho de cada subgrupo dos participantes em que MT indica a memória de trabalho (três sub testes) e TCLPP indica os resultados dos testes de leitura (sete sub testes). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 230 QUADRO 01 – Resultados gerais obtidos da aplicação dos pré-testes6 Todos os grupos – Estatística descritiva pré-teste Variável No válido Média Mediana Mínimo Máximo Desvio padrão Erro padrão WM DG1 165 8,32 9,00 1,00 18,00 2,70 0,21 WM SNL 165 8,79 9,00 1,00 17,00 2,89 0,23 WM AR 165 6,83 7,00 1,00 16,00 2,63 0,20 TCLPP total 165 88,06 84,69 37,61 122,03 16,61 1,29 Leitura CR 165 95,39 101,80 24,86 111,42 17,14 1,33 Leitura CI 165 95,23 94,53 0,00 117,09 17,29 1,35 Leitura VS 165 87,93 89,69 0,00 108,74 21,22 1,65 Leitura VV 165 91,02 92,52 0,00 113,12 19,13 1,49 Leitura VF 165 88,32 88,35 0,00 119,45 20,30 1,58 Leitura PH 165 80,77 85,12 0,00 123,35 29,01 2,26 Leitura PE 165 97,20 97,20 0,00 108,01 24,78 1,91 Fonte: Mascarello (2016, p.119). WM = memória de trabalho; DG = Teste Dígitos (pontuação, mínima 0, máxima 32 pontos); SNL = teste sequência de números e letras (pontuação, mínima 0, máxima 30 pontos); AR = teste aritmética (pontuação, mínima 0, máxima 34 pontos); TCLPP = teste de compreensão e leitura de palavras e pseudopalavras (pontuação obtida a partir de 01 a 70 acertos); CR = teste de palavras corretas regulares (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); CI - = teste de palavras corretas irregulares (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); VS = teste de palavras vizinha semânticas (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); VV = teste de palavras vizinhas visuais (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); VF = teste de palavras vizinhas fonológicas (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); PH = teste de pseudopalavras homófonas (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos); PE = teste de pseudopalavras estranhas (pontuação obtida a partir de 01 a 10 acertos). A pontuação dos testes de leitura, seja o TCLPP total sejam os subtestes, referem-se à pontuação padrão, que, para o segundo ano do Ensino Fundamental e para a média de idade do grupo, poderiam variar entre 11,63 e 123,65 pontos (no caso de zero é porque não houve nenhum acerto). 6 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 231 QUADRO 02 – Resultados gerais obtidos na aplicação dos pós-testes Todos os grupos – Estatística descritiva pós-teste Variável No válido Média Mediana Mínimo Máximo Desvio padrão Erro padrão WM DG 165 9,20 9,00 1,00 19,00 2,85 0,22 WM SNL 165 10,05 10,00 4,00 18,00 2,43 0,19 WM AR 165 8,07 8,00 2,00 18,00 2,75 0,21 TCLPP total 165 98,81 100,92 34,36 123,65 15,26 1,19 Leitura CR 165 103,67 111,42 44,10 111,42 11,38 0,89 Leitura CI 165 103,24 109,57 56,94 117,09 12,97 1,01 Leitura VS 165 97,17 99,21 0,00 108,74 16,16 1,26 Leitura VV 165 98,62 106,25 0,00 113,12 16,03 1,25 Leitura VF 165 96,52 94,57 0,00 119,45 17,12 1,33 Leitura PH 165 92,85 90,87 0,00 123,35 19,99 1,56 Leitura PE 165 99,69 108,01 0,00 108,01 15,59 1,21 Fonte: Mascarello (2016, p. 120). TABELA 03 – Resultados comparados, média de desempenho Grupo MT (Pré-teste) MT (Pós-teste) TCLPP (Pré-teste) TCLPP (Pós-teste) Experimental 5,83 8,44 70,03 96,23 Controle 5,43 6,21 67,25 76,11 Regular 10,36 10,88 101,79 107,61 WmpobreLn 7,33 8,94 98,45 100,8 LpobreWMn 8,72 9,11 79,6 98,9 Fonte: Mascarello (2016, p. 167).7 A padronização dos testes de memória de trabalho afirma que valores mais próximos de 5 pontos indicam baixos índices dessa O texto completo da tese com mais informações sobre os dados e com todos os resultados pode ser encontrado no site: <https://repositorio.ufsc.br/handle/12345678 9/169205?show=full> 7 232 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 memória e próximos de 10 pontos indica normalidade de desempenho nessa memória, quanto mais altos os índices mais próximos do conceito de superdotação (indivíduos com alta capacidade) e quanto mais baixos indicam incapacidade para preservação e operacionalização da informação. Em relação a padronização dos testes de leitura, abaixo de 84 pontos indica baixa capacidade para leitura e reconhecimento de palavras escritas (para o ano escolar e a idade dos sujeitos). Acima de 84 pontos e quanto mais próximos de 123 pontos indica desenvolvimento normal (aceito como adequado) para escolaridade e idade. Podemos observar na tabela 01 que de um modo geral todos os grupos apresentaram alguma alteração (para mais) nos valores dos pós testes, entretanto, destacamos os resultados obtidos pelos grupos Experimental e Controle. Esses grupos apresentaram um resultado baixo nos testes de memória de trabalho nos pré-testes: o grupo Experimental alcançou uma média de 5,83 e o grupo Controle 5,43 e, por consequência, baixo desempenho nos testes de leitura de palavras, 70,03 e 67,25 respectivamente. Ao observar os resultados, outra constatação é que os participantes que obtiveram os melhores índices gerais nos testes que avaliaram a MT, grupo Regular com 10,88 pontos também apresentaram os melhores resultados nos testes que avaliaram o desempenho geral em leitura 101,79 pontos no TCLPP e em todos os subtestes de leitura. Segundo Gathercole e Alloway (2008, p.15), “a memória de trabalho atua como uma ponte temporária entre as ações externas e as representações mentais geradas internamente nos indivíduos”.8 Considera-se que entre os elementos cognitivos, a memória de trabalho pode servir como um indicador de desempenho, em especial do desempenho escolar das crianças. Mascarello (2016, p. 52) relata que “tanto os estudos de Baddeley (1996, 2000) Baddeley et al. (2011) quanto os de Gathercole e Alloway (2008) e Dehn (2008) mostram que a aprendizagem depende de uma boa memória de trabalho.” Outras pesquisas, tais como, Alloway et al. (2006), Dollaghan et al. (1997) e Weismer et al. (2000), entre outros, afirmam que a partir da avaliação da memória de trabalho é possível identificar qual é o potencial ou a capacidade de aprendizagem de uma criança. Ao pesquisar crianças em idade escolar, aplicando testes em três grupos, sendo um grupo com idade entre 6 e 7 anos, outro entre Working memory [...]and that acts as a temporary bridge between externally and internally generated mental representations. Tradução do autor. 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 233 10 e 11 anos e o terceiro, adolescentes entre 13 e 14 anos, Gathercole e Alloway (2008), aplicando testes de memória de trabalho e avaliando o desempenho escolar desses mesmos estudantes nas disciplinas de leitura, matemática e ciências, as pesquisadoras perceberam que as crianças que obtiveram baixos índices nos testes de memória de trabalho apresentavam também baixos rendimentos na escola. O maior desafio enfrentado em sala de aula pelos estudantes que apresentam baixos índices na memória de trabalho, segundo Gathercole e Alloway (2008), é manter ativas na mente as informações suficientes que lhes permitam completar tarefas. Essa falta de manutenção ocasiona perdas de informações cruciais e provoca esquecimento de vários aspectos importantes, como as instruções que estão tentando seguir, os detalhes do que eles estão fazendo, o passo a passo de uma tarefa difícil de forma adequada e assim por diante. Quando ocorre uma interrupção no processamento, o único caminho possível, segundo Gathercole e Alloway (2006), é começar de novo o processo de entrada de informação na memória de trabalho. Para Just e Carpenter (1992), pesquisadores que iniciaram os estudos sobre as diferenças individuais, defendem a tese de que a compreensão da linguagem de uma pessoa depende de sua capacidade de memória e da constituição da sua individualidade, os sujeitos não agem da mesma forma diante de todos os fatos linguísticos. Para Gathercole e Alloway (2006), além das reações e das diferenças individuais, defendem também que a memória de trabalho não é igual em todas as pessoas, e que o limite dos índices da memória de trabalho não é idêntico em indivíduos da mesma idade, as experiências pessoais e as características individuais podem interferir na memória de trabalho, sendo que cada indivíduo tem uma capacidade relativamente fixa, que pode ser maior ou menor do que a dos outros. Assim, uma determinada atividade pode ser bem executada por um indivíduo, isto é, está de acordo com a capacidade de uma pessoa, mas superior à do outro. Segundo Daneman e Carpenter (1980) e, posteriormente, Gathercole, Lamont e Alloway (2006), os processos de memória de trabalho revelam diferenças individuais na capacidade de aprendizagem. A memória de trabalho será sempre ativada e necessária quando se deve aprender qualquer informação nova, pois aprendizagem requer manipulação de informação e armazenamento simultâneo dessas novas informações processadas. Os resultados dos dados da pesquisa são condizentes e corroboram com a literatura e pesquisas anteriores em que crianças que apresentaram 234 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 menor índice na memória de trabalho também apresentaram menor desempenho em leitura e reconhecimento de palavras. A partir dos resultados encontrados, parece evidente que quanto mais baixos os índices de memória de trabalho, maior é a dificuldade de aprendizagem dos processos de leitura. Com os índices pobres em memória de trabalho, o desempenho em leitura é afetado de tal modo que interfere nos processos mais básicos, como a decodificação e a diferenciação dos traços das letras. Outro aspecto constatado é que a partir da intervenção realizada com o grupo experimental os resultados dos índices melhoraram consideravelmente aproximando-se do grupo Regular, passando de 5,83 pontos para 8,44. À medida que o grupo Experimental melhorou os índices de MT, melhorou também os índices do TCLPP passando de 70,03 para 96,23, o que indica que passaram de baixa capacidade de leitura de palavras para capacidade normal, isto é, adequada para ano escolar e idade (diferença estatisticamente significativa). Uma pequena melhora também foi observada nos outros grupos. A diferença da melhora dos outros grupos é considerada uma melhora natural do desenvolvimento infantil (GATHERCOLE et al., 2008), entretanto, tal alteração não foi identificada como estatisticamente significativa. O grupo Controle, que não foi submetido ao experimento interventivo continuou apresentando muitas dificuldades. Os índices de MT continuaram baixos (de 5,43 para 6,21) e as dificuldades em leitura persistiram passando de 67,25 para 76,11, ainda abaixo do mínimo de 84 pontos, ou seja, não alcançaram os índices satisfatórios e necessários para o ano escolar e a idade. Ao analisar os dados observa-se a confirmação de que a MT tem papel crucial e relevante para a aprendizagem de leitura. Os resultados dos dados obtidos nessa pesquisa são consonantes com os resultados das pesquisas de Daneman e Merikle (1996). Ao tratar de MT e habilidade de compreensão da linguagem os pesquisadores verificaram que crianças com menores índices na MT apresentavam mais dificuldades de compreensão. Um dos primeiros e principais estudos da área de avaliação de MT e leitura de Daneman e Carpenter (1980) mostrou que a MT, além de ser de alta importância para a aprendizagem e compreensão de leitura, apresenta variação entre os indivíduos. Esse fato tem sido demonstrado por uma série de estudos subsequentes (ENGLE, KANE, TUHOLSKI, 1999; JUST, CARPENTER, 1980, 1992). Mais de uma década depois Gathercole e Alloway (2006) defendem e sustentam mesmo ponto de vista. Ademais, as autoras defendem também que a capacidade de MT pode aumentar naturalmente com o avanço da idade durante a infância até o final da adolescência. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 235 Em Mascarello (2016, p. 168), lemos: Estudos que avaliam habilidades cognitivas, como as baterias de testes cognitivos, como WISC-IV (2013), também apontam relação entre memória de trabalho e decodificação de leitura, compreensão de leitura, compreensão da linguagem, desenvolvimento vocabular, expressão escrita. Além do WISC-IV, pode-se observar em testes de Engle (1996); Engle, Kane, Tholski (1999); Gathercole, Alloway (2008), que defendem o mesmo ponto de vista sobre o tema referido. Como colocado, segundo esse enfoque, indivíduos com maior capacidade de memória de trabalho seriam mais aptos a desenvolver determinadas atividades propostas no cotidiano escolar ou fora da escola. Acreditamos que ao aperfeiçoar a MT, aperfeiçoa-se a capacidade de gerir a realidade, permitindo que se preste mais atenção ao ambiente em nosso entorno, à ocorrência dos fatos e ao tipo de informação que circula no tempo e no espaço em que nos encontramos. Todavia, como não é atribuição da MT gerar inventários para serem guardados, mas sim conservar de maneira consciente informações necessárias para que ocorra o entendimento da continuidade do texto (oral ou escrito). E, principalmente, porque tanto a medida quanto a intervenção para melhorar a MT são promovidas por ações indiretas, já que, segundo Izquierdo (2011, p. 26) “[...] a MT não é acompanhada por alterações bioquímicas [...] seu breve processamento parece depender da atividade elétrica dos neurônios do córtex pré-frontal”. Por essa razão, não queremos generalizar e categorizar que a melhoria de todos os índices dos resultados do grupo Experimental ocorreu exclusivamente pelo protocolo de intervenção executado, ainda que os resultados estatísticos mostrem uma estreita relação entre tais eventos. 4 Considerações finais O propósito central pretendido com este estudo, é contribuir com o debate que vem sendo travado em território nacional sobre os diferentes aspectos possíveis de serem analisados no ato de ler. Pretendemos também com esta pesquisa fornecer dados e ampliar a argumentação referente aos diferentes posicionamentos teóricos demandados e suscitados em decorrência dos diversos entendimentos do que é leitura e o papel da MT no desenvolvimento da habilidade de ler. Estamos cientes de que a leitura 236 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 “é objeto de conhecimento e também fonte, isto é, instrumento necessário para ampliar o conhecimento e meio de aprendizagem. O processo de aprendizagem de leitura é um processo interativo (leitor x texto), mas não um processo simples, pois para qualquer ato de leitura é necessário pelo menos um objetivo, uma meta que coloque o leitor em movimento, em outras palavras, toda leitura tem uma finalidade” (MASCARELLO, 2016, p. 182). Tal movimento demanda, entre outras coisas, uma capacidade de controle e autocontrole para que ao ler algo se tenha êxito (que o objetivo proposto seja alcançado sendo ele qual for). O controle e o autocontrole advêm e relacionam-se à aprendizagem de regras básicas da escrita e de domínio dos aspectos grafemo-fonológicos, além de outros conhecimentos necessários que garantam o êxito da realização do ato de ler, evitando, assim, o desespero advindo do não conhecimento mínimo que garanta a inserção no universo das letras. A partir dos métodos adotados e dos testes estatísticos aplicados para a análise dos resultados dos testes de MT e de leitura silenciosa de palavras e pseudopalavras dos sujeitos indivíduos colaboradores da pesquisa, ficou evidente que há uma estreita relação entre a capacidade de MT e o desempenho em leitura de palavras e pseudopalavras. De acordo com o argumentado e apresentado nos resultados e na análise de dados, percebe-se que os sujeitos que obtiveram resultados considerados normais nos testes de MT obtiveram também os melhores índices nos resultados dos testes de leitura de palavras e pseudopalavras, e, por sua vez, os sujeitos com índices mais baixos nos testes de MT apresentaram um pior resultado nos testes de leitura de palavras e pseudopalavras. Aferiu-se também que quanto mais baixos os índices de desempenho em MT, mais altas as dificuldades e menores os índices nos testes de leitura de palavra e pseudopalavras. Em virtude dessas indicações, entendemos que, para esse grupo pesquisado, e com as metodologias adotadas para a realização do estudo, a MT é um elemento ou componente cognitivo indispensável para o sucesso na aprendizagem de leitura. Os resultados obtidos nesta pesquisa não parecem resultados isolados, mas, ao contrário, corroboram os resultados de outras pesquisas (apresentados na revisão de literatura e na discussão dos resultados). Diante disso, defendemos que existe relação entre MT e aprendizagem de leitura e as hipóteses apresentadas no início do estudo foram confirmadas pelos dados, bem como as respostas obtidas pela Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 237 análise dos dados às perguntas postas foram satisfatórias. Sem embargo, o espaço delegado e delimitado para estudos cognitivos, neurocognitivos e neurocientíficos na maioria das escolas brasileiras ainda é escasso, é necessário ainda percorrer um longo caminho para que se amplie e se aprofunde a discussão sobre todos os aspectos dessa relação. Referências ALLOWAY, Tracy P.; GATHERCOLE, Susan E.; PICKERING, Susan J. Verbal and Visuospatial Short-Term and Working Memory in Children: Are They Separable? Child Development, [s.l.], v. 77, n. 6, p. 1698-1716, Nov./Dec. 2006. Doi: https://doi.org/10.1111/j.1467-8624.2006.00968.x ATKINSON, Richard; SHIFFRIN, Richard. Human Memory: A Proposed System and Its Control Processes. In: SPENCE, K.; SPENCE, J. T. (Ed.). The Psychology of Learning and Motivation. 2. ed. New York: Academic Press, 1968. Cap. 2. p. 89-195. BADDELEY, A. D.; HITCH, G. J. Working Memory. In: BOWER, G. H. (Ed.). The Psychology of Learning and Motivation. New York: Academic Press, 1974. v. 8, p. 47-89. BADDELEY, Alan. Working Memory: Looking Back and Looking Forward. Nature Reviews Neuroscience, [s.l.], v. 4, p. 829-839, 2003. BADDELEY, Alan. The Episodic Buffer: a New Component of Working Memory? Trends in Cognitive Sciences, [s.l.], v. 4, n. 11, p . 417-423, 2000. BADDELEY, Alan. Your Memory: A User’s Guide. 3. ed. London: Prion Books, 1996. BADDELEY, Alan. Working Memory. Science, [s.l.], v. 255, p. 556-559, Jan. 1992. BADDELEY, Alan; ANDERSON, Michael C.; EYSENCK, Michael. Memória. Tradução de Cornélia Stolting. Porto Alegre: Artemed, 2011. BARKLEY, Russell A.; BENTON, Christine. Vencendo o TDAH adulto. Porto Alegre: Artmed, 2011. CAPOVILLA, Fernando C.; CAPOVILLA, Alessandra Gatuzo S.; MACEDO, Elizeu. Recursos de reabilitação de distúrbios da comunicação e linguagem para melhor qualidade de vida em quadros sensoriais, motores e cognitivos. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 26-36, 2006. 238 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 CAPOVILLA, Alessandra Gatuzo S.; CAPOVILLA, Fernando C.; MACEDO, Elizeu. Funções executivas em crianças e correlação com desatenção e hiperatividade. Temas sobre Desenvolvimento, São Paulo, v. 14, n. 82, p. 4-14, 2005. DANEMAN, Meredyth; MERIKLE, Philip M. Working Memory and Language Comprehension: A Meta Analysis. Psychonomic Bulletin & Review, [s.l.], v. 3, n. 4, p. 422-433, 1996. DANEMAN, Meredyth; CARPENTER, Patricia A. Individual Differences in Working Memory and Reading. Journal of Verbal Learning and Verbal Behavior, [s.l.], v. 19, n. 4, p. 450-466, 1980. Doi: https://doi. org/10.1016/S0022-5371(80)90312-6 DEHN Milton. Working Memory and Academic Learning. Assessment and Intervention. Canadá: John Wiley, 2008. DOLLAGHAN, Chris et al. Reducing Bias in Language Assessment: A Processing-Dependent Measure. Journal of Speech, Language and Hearing Research, [s.l.], v. 40, p. 519-525, 1997. ENGLE, Randall W. Working Memory and Retrieval: An InhibitionResource Approach. In: RICHARDSON, John T. E.; ENGLES, Randall W.; HASHER, Lynn; LOGIE, Robert H.; STOLTZFUS, Ellen R.; ZACKS, Rose T. Working Memory and Human Cognition. New York: Oxford University Press, 1996. p. 89-119. Doi: DOI:10.1093/acprof:o so/9780195100990.003.0004 ENGLE, Randall W.; KANE, Michael J.; TUHOLSKI Stephen W. Individual Differences in Working Memory Capacity and What They Tell Us About Controlled Attention, General Fluid Intelligence, and Functions of the Prefrontal Cortex. In: MYAKE, Akira; SHAH, Priti (Ed.). Models of Working Memory. Mechanisms of Active Maintenance and Executive Control. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 102-134. GATHERCOLE, Susan E.; ALLOWAY, Tracy P. Working Memory and Learning: A Practical Guide. London: Sage Press, 2008. GATHERCOLE, Susan E.; ALLOWAY, Tracy P. Working memory and classroom learning. University of Durham: Elsevier, 2006. GATHERCOLE, Susan E.; LAMONT, Emily; ALLOWAY, Tracy P. Working memory in the classroom. In: PICKERING Susan (Org.). Working Memory and Education. Amsterdam: Elsevier, 2006. p. 219-240. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 239 GATHERCOLE, Susan E.; DURLING, Emily; EVANS, Matthew; JEFFCOCK, Sarah; STONE, Sarah. Working Memory Abilities and Children’s Performance in Laboratory Analogues of Classroom Activities. Applied Cognitive Psychology, [s.l.], v. 22, p. 1019-1037, 2008. GATHERCOLE, Susan E.; PICKERING, Susan J. Assessment of Working Memory in Six-and Seven-Year-Old Children. Journal of Educational Psychology, [s.l.], v. 92, p. 377-390, 2000. GOUGH, Philip B. One Second of Reading. In: SINGER, Henry; RUDDELL, Robert B. (Org). Theoretical Models and Processes of Reading. 2. ed. New York: International Reading Association, 1976. p. 509-535. HOLMES, Joni; GATHERCOLE, Susan E.; DUNNING, Darren L. Adaptive Training Leads to Sustained Enhancement of Poor Working Memory in Children. Developmental Science, [s.l.], v. 12, n. 4, p. 9-15, 2009. Doi: 10.1111/j.1467-7687.2009.00848.x. IZQUIERDO, Ivan. Memória. 2. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2011. JUST, Marcel Adam; CARPENTER, Patricia A. The Capacity Theory of Comprehension: Individual Differences in Working Memory. Psychological Review, [s.l.], v. 99, n. 1, p. 122-149, 1992. KANDEL, Eric R. Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. KLINGBERG, Torkel et al. Computerized Training of Working Memory in Children with ADHD – a Randomized, Controlled Trial. Journal American Academy Child and Adolescent. Psychiatry, [s.l.], v. 44, n. 2, p. 177-186, 2005. Doi: 10.1097/00004583-200502000-00010 KLINGBERG, Torkel et al. Increased Brain Activity in Frontal and Parietal Cortex Underlies the Development of Visuo-Spatial Working Memory Capacity During Childhood. Journal Cognitive Neuroscience, [s.l.], v. 14, n. 1, p. 1-10, 2002. Doi: https://doi.org/10.1162/089892902317205276 MASCARELLO, Lidiomar José. Memória de trabalho e desempenho em leitura: um estudo com crianças do ensino fundamental. 2016. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. PURVES Dale; AUGUSTINE George J.; FITZPATRICK, David; HALL, William C.; LAMANTIA, Anthony-Samuel; MCNAMARA, James O.; 240 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 213-240, 2019 WILLIAMS, Mark S. Neuroscience. 3. ed. Sunderland, MA: Sinauer Associates, 2004. LEFFA, Vilson. J. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolinguística. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1996. 105p. SCLIAR-CABRAL, Leonor; SOUZA, Ana Claudia. Língua portuguesa e ensino: alfabetização para o letramento e desenvolvimento da leitura. In: SOUZA, Ana Claudia; OTTO, Clarícia; FARIAS, Andressa da Costa (Org.). A escola contemporânea: uma necessária reinvenção. Florianópolis: NUP/CED, 2011. 179 p. SEABRA, Alessandra Gotuzo; CAPOVILLA, Fernando César. Teste de competência de leitura de palavras e pseudopalavras: (TCLPP). São Paulo: Memnon, 2010. SHIPSTEAD, Zach; REDICK, Thomas S.; ENGLE, Randall W. Does Working Memory Training Generalize? Psychologica Belgica, Georgia, n. 50, v. 3, p. 245-276, 2010. SOUZA, Ana Claudia; GARCIA, Wladimir Antonio Costa. A produção de sentidos e o leitor: os caminhos da memória. Florianópolis: NUP/ CED/UFSC, 2012. SOUZA, Ana Cláudia de. Leitura, metáfora e memória de trabalho: três eixos imbricados. 2004. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. SWANSON, H. Lee; SACHSE-LEE, Carole. Mathematical Problem Solving and Working Memory in Children with Learning Disabilities: Both Executive and Phonological Processes Are Important. Journal of Experimental Child Psychology, v.79, n. 3, p. 294-321, 2001. Doi: 10.1006/jecp.2000.2587 WECHSLER David. A Escala Wechsler de Inteligência para Crianças – WISC-IV. Adaptação Brasileira de Fabián Javier Marín Rueda, Ana Paula Porto Noronha, Fermino Fernandes Sisto, Acácia Aparecida Angeli dos Santos, Nelimar Ribeiro de Castro. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2013. WEISMER, Susan Ellis et al. Nonword repetition Performance in SchoolAge Children with and Without Language Impairment. Journal of Speech, Language, and Hearing Research, [s.l.], v. 43, p. 865-878, 2000. Doi: 10.1044/jslhr.4304.865 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 Halliday’s Mood System: A Scorecard of Literacy in the English Grammar in an L2 Situation O sistema de modo de Halliday: um quadro de resultados sobre o conhecimento da gramática da língua inglesa como L2 Taofeek Olaiwola Dalamu University of Lagos / Nigeria lifegaters@yahoo.com Abstract: It is no gainsaying that English is not only renowned in world affairs; its hegemony over other languages seems incontestable, and perhaps, unchecked. The domineering behavior has persuaded an L2 speaker to seek the knowledge of the language at all costs. It is fascinating to propose that the Halliday’s mood system could play a vibrant role in the understanding of the structures of English. This basis inspired the study to elucidate the arms of the mood system as consisting of grammatical structures of declarative, imperative, and interrogative; semiotic domains of Mood and Residue; and interpersonal grammatical transposition of MOOD. For a practical purpose, the study examined ten texts of advertisements processed through the mood system. The analysis revealed the verbal group as containing the finite and the predicator. Moreover, in a situation of fusion, both Finite and Predicator shared the verbal functional entity in terms of tense and natural ‘process’ statuses. Furthermore, Subject, Finite, Predicator, Complement, and Adjunct (SFPCA) are the components of the declarative, Predicator, Complement, and Adjunct (PCA) represent the jussive imperative; and SPCAs are units of the suggestive imperative. The study suggested that the appreciation of mood systemic sequences could quicken an L2 speaker to a better-cum-fuller understanding of English grammatical system. Keywords: English grammar; language acquisition; language learning; literacy; mood system. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.241-274 242 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 Resumo: Não é novidade que o inglês é reconhecido mundialmente; sua hegemonia parece incontestável e talvez, sem julgamento. A dominância dessa língua persuade seus falantes como L2 a buscarem conhecimento sobre ela de todas as formas. É fascinante propor que o sistema de modo de Halliday poderia ter um papel importante na compreensão das estruturas do inglês. Essa ideia inspirou esse estudo a elucidar o papel do sistema de modo, o qual consiste de estruturas gramaticais declarativas, imperativas e interrogativas; que pertencem ao domínio semiótico de Modo e Resíduo e à transposição gramatical interpessoal de MODO. Para o estudo dez testos de propagandas foram processados através do sistema de modo. A análise revelou que o grupo verbal contém formas Finitas e Predicadores. Ademais, numa situação de fusão, ambos o sistema Finito e Predicador dividiam a função verbal de entidade funcional em termos de tempo e processos naturais. Além disso, Sujeito, Finito, Predicador, Complemento e Adjunto (SFPCA) são componentes de declarativas; Predicador, Complemento e Adjunto (PCA) representam o imperativo jussivo; e SPCAs são unidades do imperativo sugestivo. O estudo sugere que a observação de sequências sistêmicas de modo poderiam agilizar o conhecimento de um aprendiz de inglês L2 do sistema gramatical da língua. Palavras-chave: gramática do inglês; aquisição de língua; aprendizagem de língua; letramento; sistema de modo Submitted on February 10th, 2018 Accepted on June 26th, 2018 1 Introduction Globalization has made English phenomenal in all facets of human endeavor. English, as a language, has assumed that status because of the functions that the world has assigned to it (GRADDOL, 1997). Functions such as expressive, signaling, argumentative, and descriptive elevate English in social domains of international law, mass media, aviation, academic affairs, internet, transfer of technology, etc. On top of all these, most academic research publications to develop the environment utilize English very virile, as a channel to propagate new thoughts and discoveries (SWALES, 1990). Given these responsibilities, literacy in English seems to have become irresistible to most people most especially in higher institutions of learning. That means people want to be knowledgeable in a language that has dominated the world affairs Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 243 beyond the rudimental level of alphabetical arrangements to form words (CRYSTAL, 1997). It interests the people to have the knowledge of how words are organized in English to produce good sentences that generate appropriate meanings and functions in global domains (GRADDOL, 1997). That quest propels people, especially in a second language (henceforth: L2) situation, to value literacy in English. The L2 environment understands the need to have strong communicative skills in spoken as well as written English in order to function well in global affairs as earlier mentioned. It is in that regard that Akere (1998) describes literacy as entailing; The acquisition of adequate knowledge of the formal grammatical features and their functions in the language, and ability to deploy this knowledge for use in reading and writing activities across a variety of educational, professional, and social contexts in a multilingual/multiethnic society in which English is used, as a second language (p. 16). The understanding of English at the literate level, according to Akere, is to possess sufficient abilities of utilizing the grammatical features of English. The literate level does not only accommodate acceptable standard in society; it rather communicates appropriately to the audience of different fields. Besides, the literacy in English bridges a social gap that multilingual and ethnic issues have probably created. So, English sometimes can serve as a peacemaker among the people of diverse social groups, beliefs, and norms, bearing in mind that language is socio-culturally inclined. Then, to have adequate knowledge of the grammatical features of English does not only remove the bars of chaos in clausal nexuses; it is as well as building relationships among the users of the language. Perhaps, in every L2 situation, acquiring/learning adequate knowledge of English poses a problem to those involved in its utilization due to grammatical rules. Language acquisition cannot be attained without adherence to its grammatical guidelines (AICKIN, 1693). That supposed challenge inspires the investigation to consider the Hallidayan mood system as a contributor to understand the nitty-gritty of the English language. Nonetheless, there are many studies on subject-specific literacy in various genres of mathematics, history, geography, media, visual arts 244 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 and sciences (GEROT; VAN LUEWEEN, 1986; LEMKE, 1990; GEE, 1990; MACKEN-HORARIK; ROTHERY, 1991; ROTHERY, 1993; MARTIN, 1993a, 1993c; UNSWORTH, 1997; CHRISTIE, 1999). Useful details are in Unsworth (2000, p. 246-259), and Bloor and Bloor (2004, p. 221-226). Going back to the basis, the mood system (as further expatiated later) describes the linguistic features of a clause in appropriate locations and forms. The system classifies the Subject and Finite as elements of Mood; whereas Predicator, Complement and Adjunct are devices of Residue. The characterization could influence the knowledge of the language leading to the user’s proficiency in lexemic grammatical classes of contents and functions. Akere (1998) explains that the former belongs to the open system and the later associates with the closed set of English. The semiotic slots that Halliday assigns to the different grammatical categories assist teachers, learners, and users of English to understand the positioning of the facilities in the clause and the functions that those components perform therein. In respect of that, the principles of Halliday’s mood system have stimulated the author to propose that adequate knowledge of the mood system terminologies has the capacity to influence the L2 to properly understand English. In the purview of the study, the L2 will be able to avoid haphazard organization of word classes, which could jeopardize adequate meaning potential in relation to certain cohesive connections. To achieve this, the writer exposes readers to the theoretical configuration of the mood system from purely Halliday’s perspectives. Thereafter, that application predicates on ten advertisements in order to display the applications of the mood system on texts. The choice of advertisements rests on, perhaps, the style of the advertising industry regarding textual constructs. 1.1 Language acquisition and learning The terminologies of acquisition and learning are two beds of a fellow. The two concepts are sometimes used interchangeably without given consideration to certain differences. Notwithstanding, the basis of such experience relies on the fact that both terms are ways of obtaining the modus operandi of the grammar of a language. On the one hand, acquisition refers to a process of gaining the knowledge of a language in a natural way. Such behavior is in infants, which is a gradual developmental process from being babbling to speaking the language. The speaking attitude is innate, on the ground, that it begins with a child from the sound Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 245 production known as cooing to holophrastic and to two-word stage, which observations report to begin from six months to barely two years of age. At that stage of two to three years, McLaughlin (1978), and Gabig (2013) argue that a baby begins to produce the telegraphic speech, perhaps, with the assistance of caretaker speech (ANDREWS, 1991; GRÜTER, 2014). After that stage the procedures of language acquisition become that of a child. At that point in time, Yule (1996) emphasizes, a child is at liberty to acquire the language on his/her own freewheel. This is accompanied with personal abilities to deploy both morphological and syntactic variables with necessary semantic implications. On the other hand, learning a language seems not to occur at infancy unlike acquisition. So, the course of accumulating language as mathematics, physics, etc. in school is accountable as learning. Learning is deliberate and not innate; as it might be artificial, so, learning requires the assistance of a tutor. These factors might pose some constraints to learners of different age grades. The operation occurs through tutorials most times and not through maternal or paternal practices. The adaptation of adult tongue to the pronunciation of certain sounds of the new language, as Widdowson (1978, 1983) remarks, is somewhat provocative. The age barrier, for instance, above the age of puberty, is a constraint to the language learning process because of what Brown and Yule (1983), and Rogers (2017) call brain lateralization. The lateralization enhances loss of flexibility to learn the qualities of the novel language (MÅRTENSSON, 2007). Apart from slow learning, which Brown (1973), Krashen and Terrell (1983) claim that takes place at the optimum stage of eleven, twelve to sixteen, the embarrassment of peers through selfconsciousness serves as a huddle to learning a language (also in ASHER; GARCÍA,1969; COLLIER, 2006). It is the explications, mentioned above, that one might say differentiate the acquisition of a language from its learning counterpart. The former indicates the first language acquisition of the mother tongue (henceforth: L1). The later demonstrates the learning of a language by the L2. In all these, the study has created a harmony by freely utilizing the terms without any constraints on the basis that acquisition and learning seem not to have a strong semantic border of elongated social parameters. In language use, to acquire and to learn are synonymous. However, in learning the English grammar, acquisition apparatuses such as grammar-translation procedure, direct methodology, and audio- 246 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 lingual methodology have been employed. The use of dictionaries and communicative approaches, as teaching aids, support the learning of a language. As Yule (1996) suggests, common errors of the L2 in using English ought to be tolerated because of the interference of the mother tongue; the development of interlanguage could be counted as a necessity for the development of a probable new language emergence (also in RICHARDS, 1974; CHAMBERS, 1995; TARONE, 2001). Then, one could reiterate that the appropriate knowledge of the mood system of English if well taught and understood in classrooms (HOWATT, 1984) has the strength to right some wrongs in the syntactic organizations and semantic abstractions of the clause. 1.2 Sensitivity of SFL to language acquisition/learning Choice is phenomenal in Systemic Functional Linguistics (SFL) because of a very strong relationship that the theory has with meaning potential derivatives. By choice, the study refers to the selection of certain lexicons in a particular socio-cultural context to communicate messages to recipients (DALAMU, 2017b). That is made possible owing to the remark of Bloor and Bloor (2004) that language consists of a set of systems, which offer a person an unlimited choice of ways of creating meaning. Meaning, based on that description, is central to any choice that a language user makes at any point in time (THOMPSON, 2014). No human being is born with language that is why a new born babe is incapable of speaking a language at the very point of birth. The language that human beings speak is first acquired after some years of birth (PAINTER, 1984). The learning of another language, perhaps, begins from adulthood. The stages of acquisition and learning might have persuaded Perret (2000) to attest that the study plans of a child language as accommodating certainty and that of adult as encircled with elements of uncertainty due to the learner’s abandonment, fossility, time taking, etc. A child makes choices in language acquisition at different levels of his/her age, as earlier stated. The choices, one could assert, are ‘grammatical.’ It is suggestible, then, that the choices of a child language can be drawn into systemic networks as that of the adult language, illustrated in Figure 1 below. On that ground, the protolanguage or telegraphic language has forms, organizations and semantic implications, as Halliday (2003a; 2003b) explains that acquisition is common to all children in exception of socially impaired ones. Thus, a child language, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 247 in the standpoints of Painter (2000) and Christie (2002), is coherent in all social contexts. As a child produces coherent texts so does an adult in language production, which is more coherent. The language has cohesive ties most especially in the L1 situation. However, the connections in the L2 atmosphere cannot also be compromised for reasons of maturity, analysis as well as appropriate meaning derivatives. In that regard, SFL constructs choice in the language of adults not only from a social perspective but also from the selection of linguistic facilities that build a structure of meanings. The relevance of SFL, concerning the concept of choice, is unwavering. Eggins (2004) submits that ‘formal grammatical approaches tended to prioritize the description of syntagmatic relations while functional grammatical approaches tend to prioritize the description of paradigmatic relations’ (p. 193). In consonance with Eggin’s comparative argument, SFL provides explanations for the vertical axis of texts; yet, it does not neglect the chain linearity that produces meaning. The axis of choice produces the axis of chain as interpreted in this study (KRESS, 1981, p. 4), as shown in Figure 1 below. FIGURE 1 – System and structure of adult language (DALAMU, 2018a) From Figure 1 above, the language dimension could be viewed from two perspectives as Kress argues that ‘The system network is the 248 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 grammar’ (KRESS, 1981, p. 3). The system operates in the Paradigmatic Order that produces the sequential linearity of the Syntagmatic Order. The Syntagmatic Order is of the horizontal axis, which refers to ‘what goes together with what’ (BARTHES, 1967, p. 58-59; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 22). In contrast, the Paradigmatic Order is of the vertical axis and refers to ‘what goes instead of what’ (p. 23). To associate with the claim of Halliday and Matthiessen that ‘the grammar of a language is represented in the form of system network’ (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 22; also in MATTHIESSEN, 1993, p. 230), the nexuses (morpheme, word, group, and clause) are connected to the Syntagmatic Order in a linear sequence. The Paradigmatic Order is shown through the linguistic elements of markedness, tense, polarity, etc. in a vertical order. That means, the nature of choice in language offers infinite applications as human beings communicate daily for different purposes (GREGORY; CARROLL, 1978, p. 76). Out of these options, the study has considered the mood system from Halliday’s (1995) insights to propagate literacy in English to an L2. 1.3 Halliday’s mood system Language, in the perspective of this study, is a means of communication between, at least two people. It is in that regard that one could consider that the main purpose of communication is to interact in order to enact meaning. Probably that view has influenced Kress and van Leeuwen (2003, p. 5) to argue that language cannot be viewed as a one-way system if a comprehensive analysis is going to be attained. Language seems to operate mutually between a speaker and the audience or a writer and the audience to exchange meaning. Ravelli (2000, p. 44) reports that ‘Every act of communication is always an interaction.’ The interaction at any point in time seems to have contents. The content may be for the purpose of influencing the character of a particular personality. It may be to provide information for somebody. The content of language choice may also be for the purpose of explaining things to somebody, etc. As mentioned earlier, the Interpersonal Metafunction provides insights into how to analyze and realize meaning from the exchange produced by the interactants. The concept, Interpersonal Metafunction, has been seen as a tool for explaining this aspect of ‘lexicogrammatical’ system in a textual interaction. In relation to interpersonal social interaction, Ravelli (2000) observes that: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 249 Language… constructs and conveys some kind of interpersonal relationship… the relevant contextual variable here is Tenor – the role relationships relevant to the situation of the content. The Tenor of the situation reflected in and constructed of the interpersonal meaning of the text: what kind of personal relationship is constructed between the interactants in the situation, the attitudes and opinions expressed, the degree of formality or familiarity and so on (p. 44). The Interpersonal Metafunction, in consonance with Ravelli’s (2000) claim, is concerned with the interaction between the speaker and listener(s). It is a grammatical resource for enacting social roles in general, and speech roles in particular, in dialogic interaction for establishing, changing and maintaining interpersonal relations. Halliday and Matthiessen (2014) explain that the speech functions of the Interpersonal Metafunction are meaningfully interconnected, as shown in the map below. FIGURE 2 – Mood semantic resources (THOMPSON, 2004; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014) Speech Functions Give α1 θ1 [M] Statement constitutive (Proposition) Initiating Role β1 θ2 Question Demand [N] α2 δ1 Offer Information [Y] ancillary (proposal) Commodity Goods-&services [X] β2 δ2 Command From the diagram in Figure 2.2 above, there is an indication of overlapping functions within the concepts. The ancillary portion covers the modulated interrogative and the imperative. The constitutive occupies a space for the declarative and interrogative clauses. The interrelationships come up where the modulated interrogative and declarative, as objects of offer and statement are employed by a speaker to give invitation to the audience to receive something (DALAMU, 2018b). The writer also Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 250 observes that the speaker deploys the imperative and interrogative to demand goods and services and information from the audience. From the foregoing, one could infer that there are distinctive factors, as Eggins (2004) argues, which explain interpersonal communication. These are known as fundamental speech roles that lie behind communicative interactions. Halliday (1994) recognizes speech roles, as ‘giving’ and ‘demanding’ (good & services or information) as demonstrated in Table 1 below for further explications. TABLE 1 – Basic speech roles (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014) Role in exchange Giving Demanding Commodity exchange (a) Goods-and- services (b) Information Offer I'll help you out. Command Listen to him. Statement We are nearly there. Question Are you considerate? The clauses in Table 1 above indicate that ‘Listen to me’ in associated with the ‘imperative clause’ demanding goods and services from the decoder. The remaining three ‘We are nearly there. Are you considerate? I’ll help you.’ are reflections of ‘indicative clauses’ giving information, and goods and services to the listener. In Halliday’s (1994) sense, the speaker is either giving a piece of information to a listener or the person is demanding something from an individual. Halliday (1994, p. 68) refers to ‘giving’ as ‘inviting to receive’, and ‘demanding’ as ‘inviting to give’. It seems that the speaker is not only doing something but also requiring something of the listener. Halliday further argues that, “…typically, there is an ‘act’ of speaking... something called ‘interact’: it is an exchange, in which giving implies receiving and demanding implies giving in response” (HALLIDAY, 1994, p. 68). Halliday and Matthiessen (2014) label the four speech functions as; offer, command, statement, and question. They further submit that in Interpersonal Metafunction, the principal grammatical system is that of Mood. The Mood is a technical term and does not have any relationship with everyday use of ‘mood’ i.e. a human feeling at a point in time (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 106-108). In respect of that, it necessitates that one deduces the important things from the mood system relevant to literacy in the L2 setting. First, the Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 251 grammatical Moods are matched with the speech functions of declarative, imperative, interrogative and modulated interrogative (EGGINS, 2004, p. 153). The speech functions demonstrate the participants’ contributions in the role relationship goings-on. Second, the grammatical Mood identifies the relevant structure in the system. Thompson (2014) argues that the Mood system could be complex and some part intrinsic. However, the Subject is a nominal group and the finite is part of a verbal group of the clause. The finite is the operator in the clause (THOMPSON, 2004, p. 49). In Thompson’s submission, the third aspect is the variants of mood in Systemic Functional Theory. Mood, with its ‘M’ is realized in the analysis of an independent clause as Subject + Finite. So, the functional logicality of mood in the Interpersonal Metafunction could be expatiated thus: MOOD = grammatical transpose; Mood = Subject + Finite; and mood = grammatical structures – declarative, interrogative, and imperative. Figure 3, below, expounds information of mood system in a graphical network. FIGURE 3 – Halliday’s Mood system network of English (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) Subject Mood Finite Interpersonal Metafunction [MOOD] Fused Elements Residue Predicator Complement Adjunct Nominal Group Clause Tense Do Be Have Modality Modalization Modulation Polarity [Negative] Indicative Declarative [Subj ^ Fin] Interrogative Imperative Imperative Jussive Suggestive [Let's] mood Positive Negative Yes/No [Fin ^ Subj] Wh[Wh; Wh ^ Fin] Unmarked [x ^ Predicator - intrinsic ] Marked [Subj ^ Predicator] [Adjunct ^ Predicator] Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 252 The system network above indicates two types of mood. The first mood exemplifies the core ideas of the constituent of a clause that contains the Subject, Finite, Modality, Fused Element and Residue. The second mood illuminates the type of clauses as illustrated below. It is argued that: It is usually relatively easy to identify the Subject, and only a little less difficult to identify the Finite, but in cases of doubt (at least in declarative clauses) we can establish exactly what the Subject and Finite of any clause are by adding a tag question (THOMPSON, 2004, p. 50). From Thompson’s view, it is clear that some analysts may encounter some challenges in the area of its Finite’s identification. It is shown that the Finite is the first functional element among the verbal group. It is most easily recognized in yes/no questions, since it is the auxiliary, which comes in front of the Subject. In few occasions, as earlier emphasized, the Finite is ‘fused’ with the lexical verb (THOMPSON, 2004, p. 49). Fourth, the Residue relates to recipients other functional elements of the interpersonal metafunction. These are: Predicator, Complement and Adjunct. The illustration in Figure 4 appreciates the resources of Residue in the clause. FIGURE 4 – Systemic resources of Residue (BLOOR; BLOOR, 2004) Predicator Residue Complement Adjunct -ing -de2; -en -en; -ing have + en +ing have + en + ing + en direct object intensive indirect object NG circunstantial Prep G conjunctive modal Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 253 Although there is a separation of the Finite and Predicator, as illustrated in Figure 3 and Figure 4, the two elements are resources of verbal group (VG). Except in a circumstance where operational fusion of verbs represents the present and past tenses, the first element of VG realizes the finite operator, while the remaining component functions as the lexical stem (THOMPSON, 2014). The Finite demonstrates the agreement of person and number as well as negative polarity. Predicator realizes the lexical verb. That has made Predicator significance in all major clauses. Complement is realized by a nominal group (NG), occurring in the forms of direct object, intensive, and indirect object. It is on that basis that Berry (1975) argues that Complement answers the question, who, whom or what? Bloor and Bloor (2013) elucidate Adjunct from an etymological point of view that it is something joined to another thing. As optional clause resources, there are circumstantial, conjunctive, and modal adjuncts realized by adverbial or propositional phrases. Nevertheless, in a case where an adverb or a preposition serves as the marker, the NG is most times functional to support the Adjunct (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014). A linguistic theory is about application. That means the significance of a theory rests on its diverse applications to solve some problems of human beings. Halliday (1994) attests to that by articulating a theory as leaning toward the applied rather than the pure, functional rather than the formal. It is the same orientation that Halliday (1985, p. 7) adds that ‘The value of a theory lies in the use that can be made of it, and I have considered a theory of language to be essentially consumeroriented’ (also in BLOOR; BLOOR, 2004, p. 231). Halliday’s claims persuade the author to consider the application of the mood system to advertising texts. The choice of advertising text, as mentioned earlier, is based on the deliberate choices that publicity experts deploy to sensitize consumers in order to patronize commodities. The intention underlying the construct of such texts can position the functional elements as useful resources in learning the structures of English. 254 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 2 Methodology 2.1 Participants Two people – Bonke and the researcher-author – participated in this study. The involvement of the second individual became a necessity in order to smoothen the advertisements’ collection process. Bonke, a 35 year old lady, assisted in driving the author round some streets in the Lagos metropolis. The engagement of the lady anchored on her dexterity in mastering the streets of Lagos as most billboards are placed in critical areas of the city. Her familiarization with the researcher and consistent cooperation stimulated the choice of the individual to partake in the data collection procedures. The choice of collecting some advertisements in Lagos was based on the fact that Lagos is Nigeria’s commercial nerve center that attracts communications of institutions. 2.2 Instruments and design Three separate electronic devices functioned in the collection procedures of the advertisements. These are: a Samsung® WB50F camera, an Etisalat® Internet modem and an hp® laptop. The researcher utilized WB50F camera to capture advertisements in billboards and the Punch newspaper while both the modem and the laptop assisted the data collector to download advertisements from the Internet. The idea of collecting the data from three domains was to ensure the gathering of a quantum of advertising resources very relevant to the study. In all, 30 advertisements were collected as the population. Through a sampling method, the advertisements were stratified into 10 parts in order to make appropriate choices from the advertising communications. 2.3 Procedures The researcher, as exemplified above, divided the population of 30 advertisements into 10 sub-groups, where one advertisement was selected from each stratum. Thus, 10 advertisements operate in the study, as the subjects of analysis. The motivation for the choice of the subjects rested on the organization of the grammatical components of the advertisements, the kind of clauses that the communications produced, and the semantic implication of the textual constructs. In addition, the choice of the texts is with the assumption that advertising employs texts Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 255 with freedom in relation to the poetic license of the industry. That, the author believes could provide readers variegated nature of texts’ utilization in the advertising workshop without probable checks. One could also reiterate that Bonke’s acquaintance with the author, mutual solidity, and common-ground firmness made the advertisements’ collection a fun of sort. A token of ₦10, 000. 00 (Nigerian currency) was paid to the second participant anytime we went out for data collection activities. Although the compensation was not the actual charges; the payment was meant for fueling the vehicle and personal maintenance for a moment. As presented below, as well as illustrated in Figure 5, the texts from 10 different advertisements were considered with the application of the Halliday’s mood system. The author appreciates the mood system as topical and conceptual so that an example of its application could be generated, as a choice that enhances learning possibilities of English. To expound the plausibility of the theoretical scope, as an entity that helps to report the frequency of each linguistic element in the semiotic slot (LEECH; SHORT, 1981), the investigation has employed tables and bar chart to account for the values of the analyzed sub-units. It is based on this report that the discussion becomes effective by giving consideration to the nature of the clause as well as the intertwining grammatical sequences. Of importance are the symbol ‘®’ and the notion ‘TEXT.’ The former annotates a registered company/product; while the latter denotes textual strings in the advertising plates. 2.4 Data presentation thus: This study displays the textual structures of the 10 advertisements TEXT 1: //Enjoy 205% #RealBonus on your recharges to call all networks.// TEXT 2: //Seize the Holiday.// Here’s a lineup of interesting stories from our 635 blog for your reading pleasure.// TEXT 3: //Just grow.// Something you don’t have to walk before you fly.// Zero COT account.// TEXT 4: //Nothing prospers without work.// May your work always bring you prosperity.// Happy Workers’ Day from all of us.// TEXT 5: //Art is not just what you see //but what you feel.// Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 256 TEXT 6: //Let’s celebrate our winning spirit.// TEXT 7: //Unity Bank celebrate Nigeria at 55.// TEXT 8: //Spread the love this season.// Send MTN data gift to friends and family.// TEXT 9: //The opportunity to create a better tomorrow starts with them.// Happy Children’s Day.// TEXT 10: //The future is bright.// Reach for Peak.// 2.5 Data analysis The figure below indicates the applications of the mood system to the structures of English. FIGURE 5 – Analysis of the organs of the mood system TEXT 1 Enjoy Predicator Residue 25%#RealBonus Complement TEXT 2 Seize Predicator Residue the Holiday Complement TEXT 3 Just grow Adjunct Predicator Residue on your recharges Adjunct Here Subject Mood always bring Adjunct Predicator Residue is not just what you see Finite Adjunct Complement Residue for your reading pleasure Adjunct don't have to walk before you fly Finite Predicator Adjunct without work prosper: Predicator Adjunct Residue Happy Workers' Day from all of us Adjunct Minor Clause Residue TEXT 5 Art Subject Mood a lineup stories from our 635 Finite Complement Adjunct Residue Residue TEXT 4 Nothing prospers Subject present: Finite Mood May your work Finite Subject Mood 's Something you Complement Subject Mood Zero COT Account Complement Residue to call all networks Adjunct you prosperity Complement Finite Subject Mood Adjunct Predicator Residue Complement Rev. Estud. Ling.,Workers' Belo Horizonte, Happy Day fromv.all27, of n. us 1, p. 241-274, 2019 Adjunct Residue Minor Clause TEXT 5 Art Subject Mood is not just what you see Finite Adjunct Complement Residue you but what Conj Adjunct Subject Residue Mood TEXT 6 Let's Subject Mood 257 celebrate Predicator Residue feel: Predicator Residue our winning spririt Complement TEXT 7 Unity Bank celebrates Subject present: Finite Mood TEXT 8 Spread Predicator Residue feel present: Finite celebrate: Predicator Residue the love this season Complement Adjunct Nigeria at 55 Complement Adjunct Send Predicator Residue MTN data gift to friends & family Complement Adjunct TEXT 9 The opportunity to create a better tomorrow starts Subject present: Finite Mood start: Predicator Residue with them Adjunct Happy Children's Day Minor Clause TEXT 10 The future Subject Mood is bright Finite Complement Residue Reach Predicator Residue for Peak Adjunct The multifaceted applications of SFL (CHRISTIE; UNSWORTH, 2000; BLOOR; BLOOR, 2004) have made it possible for the theory to be a resourceful device in interdisciplinary domains. As such, SFL accommodates resources of other disciplines to thrive along with them. Therefore, the study could illustrate the claim by allowing technological tools of the table and graph, following Dalamu (2017c), to assist in reporting the frequency (TYLER, 1994) of the mood systemic elements shown in Figure 5 above. In that regard, as an L2 recipient is learning the organs of English clauses exemplified through the mood system the individual is also understanding SFL as an ‘axe’ that breaks in pieces linguistic elements into exponential values as shown in the results below. 258 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 3 Results Table 2 and Figure 6, below, compute the recurrent grammatical components of the texts of the 10 advertisements analyzed in Figure 5 above. TABLE 2 – Calibration of the mood system devices Mood System Text 1 Text 2 Text 3 Text 4 Text 5 Text 6 Text 7 Text 8 Text 9 Text 10 Total Subject 0 1 1 2 2 1 1 0 1 1 10 Finite 0 1 1 2 2 0 1 0 1 1 9 Predicator 1 1 2 2 1 1 1 2 1 1 13 Complement 1 2 2 1 1 1 1 2 0 1 12 Adjunct 2 2 2 3 1 0 1 2 1 1 15 Minor Clause 0 0 0 1 0 0 0 0 1 0 2 Figure 6 translates the calibration in Table 2 to a table and bar chart to illustrate the recurring capacity of the mood system facilities. FIGURE 6 – Recurrence of Mood system devices There are three clear segments in Figure 6. That is, Mood, Residue and Minor Clause. Actually, Minor Clause is not part of the mood system; it is ‘sets’ in English. The inclusion of the Minor Clause only assists in accounting for the element, as being functional in the communication structures. The frequency of Mood is 19. Subject accounts for 10; while Finite records only 9. The second part is the Residue with a frequency of 40 times. In the structural domain, the contribution of Predicator is 13, Complement is 12, and Adjunct is 15 on the graph. On the one hand, Subject records the higher value in the Mood. On the other hand, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 259 Adjunct provides the highest value in the sphere of Residue. However, the operational values of Adjunct and Predicator are the highest in all the mood systemic devices. It refers that Adjunct and Predicator are the commonly deployed facilities in the advertising texts considered as samples. For an L2, one could quickly remark that Predicator appears as a norm in most communicative constructs in exception of punctuated components; its identification could augment a smooth learning procedure. 4 Discussions As the study focuses on an L2 situation, it becomes imperative to state that the discussion offers explanations to the analysis from three distinct perspectives. Having stated earlier in the theoretical review that the mood system nuances comprise the Mood (as Subject + Finite), MOOD (as the grammatical transpose of Interpersonal Metafunction), and mood (as the grammatical structures of the clause), in that light, the analyst provides explanations to the nature of the clause in the texts. In addition, the offering of the discussion examines the mood system, represented as MS, in the texts in relation to the residual devices, and how the structural organization could assist a learner of English in securing the knowledge of the second language especially in higher institutions. This has also been made possible by occasional referential interconnectedness, for instance, of TEXT 6 and TEXT 7. TEXT 1 260 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 The grammatical structure of TEXT 1 is imperative, functioning as command. It has enjoy as Predicator accompanied with Complement, 25%#RealBonus and two Adjuncts. The Adjuncts – on your recharges and to call all networks – are circumstantial communicative devices. All these elements flourish in the realm of Residue. Predicator, enjoy, is the central functional facility of the clause because the constituent points recipients to a particular event. That is, 25%#RealBonus, which is nominal group (NG) in the domain of Complement. The two circumstantial Adjuncts have on and to respectively as markers, qualifying the segments as prepositional phrases. Apart from the Complement, the significance of the NG is also obvious here. The NGs concretize the Adjuncts, as being prepositional phrase. The imperative clause of TEXT 1 directs recipients of the message to get engaged in the RealBonus for their satisfaction at an enhanced place and degree. MS = Predicator + Complement + Adjunct + Adjunct (PCAA). TEXT 2 Seize the Holliday in TEXT 2 is imperative that accommodates Seize, Predicator and the Holliday, Complement. The verb, Seize, functions as Predicator that enjoins readers to take advantage of an opportunity that the day provides for individuals. The seizure is on the Holliday as an intensifier. To this end, Holliday operates as an intensive Complement. The second clause, Here’s a lineup stories from our 635 for your reading pleasure, is a declarative. The structure offers a general statement on how readers will spend the Holliday with a lineup of stories, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 261 which is Complement. Here as ‘dummy’ Subject serves as a pointer referring the public to the plan of GTB® for the Holliday. The component further creates a locative setting. ‘S is the Finite of the clause with two Adjuncts from our 635 and for your reading pleasure. Both Adjuncts are circumstantial devices of purpose placed in the fields of prepositional phrase. MS + Predicator + Complement (PC); MS + Subject + Finite + Complement + Adjunct + Adjunct (SFPAA). TEXT 3 There are imperative and declarative clauses in TEXT 3. The imperative Just grow is a combination of Adjunct, Just and Predicator, grow. The semantic implication is a reference made to a crawling child in the advertisement’s frame to ensure that the individual develops in a simple way. It is a sort of encouragement, where clause two, Something you don’t have to walk before you fly, expatiates the Subject, you, as a pointer to the child. In that same Mood section, don’t operates as Finite. Don’t is a primary modal verb in negative polarity, as an indicator of objection to the Predicator, have to walk. Have is another modal verb, accompanied with a lexical verb in its ‘to infinitive’ form. The information of the declarative is joined with Adjunct. That is, before you fly, which represents a prepositional phrase. Before you is a circumstantial device of time, answering a question ‘when?’ Before is a prepositional marker of the Adjunct. The third component is an elliptical construct of NG. The 262 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 study places the component as Complement because of the information that Zero COT Account provides in the plate. MS = Adjunct + Predicate (AP); MS = Complement + Subject + Finite + Predicator + Adjunct (CSFPA); MS = Complement (C). TEXT 4 The three clauses in TEXT 4 consist of two declaratives and a minor clause. First, Nothing prospers without work is an embodiment of Subject, Finite, Predicator, and Adjunct. Nothing, as Subject, pinpoints inconsequential entity. The structural constituent demonstrates emptiness. The ‘process’, prospers, is fascinating because it is a fused element of two pieces of information – of Finite in the present form and Predicator in the zero verbal lexical level. The dual operations of the verb in its natural level seem to exhibit a distinction of SFL. The division of prospers into Finite and Predicator promotes the beauty of SFL ‘dicotomizing’ the verbal group into several variants, most especially, of the past and the present. The circumstantial Adjunct of without work is a prepositional phrase, indicating accompaniment in a negative way. Without work, as used in the clause, extends the message of the Mood. Second, May your work always bring you prosperity sounds prayer-like, else, one could have tagged the linguistic structure as an interrogative clause on the ground that it begins with the Finite, May, followed by the Subject, your work. The reversal is quite unlikely in declarative clauses. Nonetheless, in the corridor of spirituality, it is a declarative statement of exhortation. Always is a modal Adjunct for it Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 263 functions in the domain of the clause Mood. You prosperity is what the author could label as a compound Complement. This is on the basis that it is a combination of direct object, you, and indirect object, prosperity. The message sensitizes readers to hard work, as the authentic means of getting rich in life. Third, Happy Workers’ Day is a minor clause seconded with a prepositional phrase. Although, minor clause is not analyzable, the analysis separates the Adjunct out of it to show the source of the information. From all of us is a locative tool of a place. The structure assists recipients to pinpoint where the message comes from. The analysis of the circumstantial Adjunct supports a claim that if a minor clause cannot be investigated, any residual element around its configuration can be (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). MS = Subject + Finite + Predicator + Adjunct (SFPA); MS = Finite + Subject + Adjunct + Predicator + Complement (FSAPC); MS = Minor Clause + Adjunct (Minor A). TEXT 5 TEXT 5 contains a complex clause. In SFL courtesy demands that clauses must be considered in their simple forms. Thus, the analyst has segmented the complex units into simple clauses of Art is not what you see; but what you feel. Art and is not are Subject and Finite respectively in the present formation. Just is a modal Adjunct for the part occurs in the Mood domain. What you see could have been a separate clause unit; yet, 264 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 as it functions, the arrangement is Complement in the adverbial group. What is the marker-cum-adverbial that introduces the Complement. The second, but what you feel, is a bit similar to the first. Nonetheless, the introduction of Conjunction, but, in its paratactic stand demarcates the function of what in the first clause from the second one. The linker, but, introduces the second clause to negate the activity of the Complement in the first clause. As a result, what, as an adverbial, operates as Adjunct to the Mood, expressed as Subject, you and Finite, feel. The position of feel in TEXT 5 equates that of TEXT 4. Feel indicates the ‘presentness’ of Finite as well as the neutrality of the lexical verb, feel, serving as Predicator. Therefore, the message demonstrates not just a degree of perception, but also a great sensibility, appealing to readers’ emotional statuses. MS = Subject + Finite + Adjunct (SFA); MS = Adjunct + Subject + Finite + Predicator (ASFP). TEXT 6 Despite that the clause in TEXT 6 has a Subject, its grammatical condition remains as imperative. Once in a while, an imperative clause can have Subject. In that case, a commanding grammatical structure with Subject is known as ‘suggestive’, while the ordinary imperative is called ‘jussive’ (THOMPSON, 2014). Given that, Let’s, in TEXT 6, functions as a suggestive component. The structure is not only suggestive; it is as well as exhibiting subtleness of gentility of the narrator. The invitee which is Conoil®, perhaps, decides to avoid a commanding tone at this Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 265 point in time of festivity. It then becomes necessitated to shun the usual advertising language in order to adopt a communication of tenderness and amiability. Celebrate is Predicator, supported with our winning spirit, Complement. As such, the associative feelings of the advertiser might have influenced the mildness of the message. MS = Subject + Predicator + Complement (SPC). TEXT 7 The clause of items in TEXT 7 employs celebrates in a function different from the experience in TEXT 6. This is notable because the former is enclosed in the declarative clause; while the latter is accommodated in the imperative clause. Celebrates in the declarative in TEXT 7 has its distribution into Finite in the present form, and Predicator as an appreciation of the verb, celebrate, in its natural lexical atmosphere. The Subject is Unity Bank® with Nigeria as the Complement. As earlier mentioned, both Subject and Complement are NGs, participating in a similar event of a solemnized honor. The circumstantial Adjunct reveals the engagement of the entities in the joyful ceremony, factorized in relation to time. That is, at 55. The stipulated time enhances the information, deployed to recipients, as a creator of the needed understanding of a particular period of time. MS = Subject + Finite + Predicator + Complement + Adjunct (SFPCA). 266 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 TEXT 8 There are two imperative clauses in TEXT 8 appealing to readers to take an action in a certain direction. These are: Spread the love this season and Send MTN data gift to friends & family. The two imperatives utilize similar constructive grammatical sequences as Predicators – Spread, Send; Complements – the love; MTN data gift; and Adjuncts – this season, to friend & family. As these linguistic facilities operate in the spheres of Residue, it is striking that this season in the first clause functions as Adjunct. The basis is that this season indicates time. It is possible to place this season in parallel with Now, as a circumstantial Adjunct. It is in that respect that the study has considered this season, as a circumstantial Adjunct, pointing readers to the present happening of the environment. To friends & family in the second clause is also a circumstantial Adjunct, deploying to as the prepositional marker, referencing a location with complex NG. The semantic implication of the texts is that readers should disseminate affectionate message to various relatives using MTN communication tools. MS = Predicator + Complement + Adjunct (PCA); MS = Predicator + Complement + Adjunct (PCA). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 267 TEXT 9 The verbal fusion behavior is also available in TEXT 9. To recapitulate, the synthesis is a situation where the verb, starts, is shared to function as Finite in the present tense and Predicator, accepting the ‘process’ in its natural start status. The beauty of starts is that the lexeme operates in the domains of Mood and Residue at a go in order to accomplish dual purposes. The Subject, The opportunity to create a better tomorrow, is NG. The experience of its longevity rests on postmodification device of to create a better tomorrow that provides more information about the nominal components. That is, The opportunity, which functions as Head. At the end of the clause is a circumstantial with them. This circumstantial Adjunct assists in offering further information to Participants and Process of the clause. The second linguistic unit is Minor Clause, Happy Children’s Day, as a means of felicitating and commemorating with children. The text declares that children of today are the future leaders. That remark might influence the analysts to argue that profitable advancement in society relies on children (DALAMU, 2017a). MS = Subject + Finite + Predicator + Adjunct (SFPA); MS = Minor Clause (Minor). 268 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 TEXT 10 There are one declarative, The future is bright and one imperative, Reach for Peak®, in TEXT 10. The declarative makes a statement relevant to the future; while the imperative connects recipients to consumption of Peak milk. The future and is serve as Subject and Finite, as accommodated in the Mood section. Bright is Complement, as an illustration of how tomorrow will be illuminated. In that respect, The future, from the point of view of the stylist, holds goodies for readers provided consumption patronage of Peak is certain. That is the motive for sensitizing the public to Reach for Peak. The command appeals to recipients to buy Peak so that individuals can shine in all their future endeavors. Reach is Predicator and for Peak is a circumstantial Adjunct in the makeup of prepositional phrase. The Adjunct functions as an accompaniment to Reach. The declarative has Mood and Residue while the imperative has Residue only. The communication connects the patronage of Peak to the future in order to fascinate the audience. MS = Subject + Finite + Complement (SFC); MS = Predicator + Adjunct (PA). 5 Conclusion The Halliday’s mood system elucidates the components of the English grammar in clear terms that make the learning of English easy for an L2. Observations from the analyzed texts show that adequate knowledge of the language enhances its deployment in organizational structures that users desire. On the one hand, the study demonstrates that Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 269 SFL appreciates finite elements as either been past or present. The creation of semiotic slots for clausal organs is a ‘good as gold’ strategic pattern to understand the nitty-gritty of the segments of English, exhibiting grammatical structures of the imperative, declarative, and interrogative facilities. On the other hand, besides the Adjunct that intrudes into the Mood arena, Subject and Finite mostly operate in the Mood; whereas the domain of the Residue consists of Predicator, Complement, and Adjunct only irrespective of the manner that users organize the grammatical structures. In addition to that, a normal structure of the declarative is SFPCA; while the jussive imperative is PCA. Therefore in some respect, the appropriate studying on the English structures through the linguistic instruments that the mood system offers could assist an L2 not only to understand the language but also to employ its structures in personal thematized ways. This conceptual insight could also reduce the challenge of an L2, organizing and communicating the English structural sequences in haphazard manners in social practices. References AICKIN, J. The English Grammar. England: Scolar Press, 1693. AKERE, F. The English Language: Knowledge and Tool for Developing a Literate Society. Akoka, Yaba: University of Lagos Press, 1998. ANDREWS, I. Telegraphic Language, 1991. Available from: <http:// ian-ndrews.org/texts/telegraphic.pdf>. Accessed on: Jun. 26, 2016. ASHER, J. J.; GARCÍA, R. The Optimal Age to Learn a Foreign Language. The Modern Language. Journal, [s.l.], v. 53, p. 334-341, 1969. Available from: <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1540-4781.1969. tb04603.x/abstract>. Accessed on: Apr. 12, 2014. BARTHES, R. Elements of Semiology. London: Cape, 1967. BERRY, M. Introduction to Systemic Linguistics 1: Structures and Systems. London: Batsford, 1975. BLOOR, T.; BLOOR, M. The Functional Analysis of English. Great Britain: Hodder Arnold, 2004. Doi: https://doi.org/10.4324/9780203774854 BLOOR, T.; BLOOR, M. The Functional Analysis of English. Abingdon: Oxon; Routledge, 2013. 270 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 BROWN, G.; YULE. G. Teaching the Spoken Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. BROWN, R. A First Language: The Early Stages. Harvard: Harvard University Press, 1973. Doi: https://doi.org/10.4159/ harvard.9780674732469 CHAMBERS, J. K. Sociolinguistic Theory. Oxford, England: Blackwell, 1995. CHRISTIE, F.; UNSWORTH, L. Developing Socially Responsible Language Research. In: UNSWORTH, L.; CHRISTIE, F. (Org.). Researching Language in Schools and Communities, London: Cassell, 2000. p. 1-26. CHRISTIE, F. (Org.). Pedagogy and Shaping of Consciousness: Linguistic and Social Processes. London: Cassell, 1999. CHRISTIE, F. Classroom Discourse Analysis: A Functional Perspective. London; New York: Continuum, 2002. COLLIER, V. P. The Effect of Age on Acquisition of a Second Language for School, 2006. Available from: <http://www.thomasandcollier.com/ assets/1988_effect-of-age-on_acquisition-of_l2-for-school_collier02aage.pdf>. Accessed on: Sep. 30, 2015. CRYSTAL, D. English as Global Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. DALAMU, T. O. Nigerian Children Specimens as Resonance of Print Media Advertising: What for? Communicatio, [s.l.], v. 11, n. 2, p. 79-111, 2017a. DALAMU, T. O. Narrative in Advertising: Persuading the Nigerian Audience Within the Schemata of Storyline. Anu. Filol. Lleng. Lit. Mod., [s.l.], v. 7, p. 19-45, 2017b. DALAMU, T. O. 135, A Discourse Analysis of Language Choice in MTN® and Etisalat® Advertisements in Nigeria. 2017. Thesis (PhD) – School of Postgraduate Studies, University of Lagos, Lagos, 2017c. DALAMU, T. O. Creativity as Choice in Etisalat Advertising Texts. Lagos Review of English Studies: A Journal of Language and Literary Studies, Lagos, v. 18, n. 1, p. 147-172, 2018a. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 271 DALAMU, T. O. Illuminating Systemic Functional Linguistics as a Viable Tool of Digital Humanities. Digital Studies/le champ numerique, 2018b. In press. EGGINS, S. Introduction to Systemic Functional Linguistics. London: Continuum, 2004. GABIG, C. S. Telegraphic Speech. In: FRED R. V. (Org.). Encyclopedia of Autism Spectrum Disorders. New York: Springer, 2013. p. 30763086. GEE, J. P. Social Linguistics and Literacies: Ideology in Discourses. London: Falmer Press, 1990. GEROT, J. O.; VAN LUEWEEN, T. (Org.). Working Conference on Language in Education: Language and Socialization. Sydney: Macquarie University, 1986. GRADDOL, D. The Future of English? London: British Council, 1997. GREGORY, M.; CARROLL, S. Language and Situation. Boston: Routledge & Kegan, 1978. G R Ü T E R , T. H o w d o C h i l d re n L e a r n L a n g u a g e ? 2 0 1 4 . Available from: <http://theresgruter.homestead.com/Gruter2014_ HowDoChildrenLearnLanguage.pdf>. Accessed on: Dec. 19, 2014. HALLIDAY, M. A. K. Systemic Background. In: BENSON, J; GREAVES, W. (Org.). Systemic Perspectives on Discourse XV. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1985. p. 1-15. HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. Great Britain: Arnold, 1994. HALLIDAY, M. A. K. An Introduction to Functional Grammar. Great Britain: Arnold, 1995. HALLIDAY, M. A. K. On Language and Linguistics. London; New York: Continuum, 2003a. (Collected Works of Michael Halliday, v. 3). HALLIDAY, M. A. K. Language of Early Childhood: London; New York: Continuum, 2003b. (Collected Works of Michael Halliday, v. 4.) HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, M. I. M. C. An Introduction to Functional Grammar. Great Britain, Hodder Arnold, 2004. 272 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, M. I. M. C. Halliday’s Introduction to Functional Grammar. Abingdon, Oxon: Routledge, 2014. Doi: https://doi.org/10.4324/9780203783771 HOWATT, A. P. R. A History of English Language Teaching. Oxford: Oxford University Press, 1984. KRASHEN, S. D.; TERRELL, T. D. The Natural Approach. Oxford: Pergamon Press, 1983. KRESS, G. Halliday: System and Function in Language. London: Oxford University Press, 1981. KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. The Grammar of Visual Design. London and New York: Routledge, 2003. LEECH, G. M.; SHORT, M. H. Style in Fiction. London: Longman, 1981. LEMKE, J. Talking Science: Language, Learning and Values. Norwood, New Jersey: Ablex Publishing Corporation, 1990. MACKEN-HORARIK, M.; ROTHERY, J. Developing Critical Literacy: A Model for Literacy in Subject Learning. Sydney, Metropolitan East Disadvantaged School Program. Erskine Ville: NSW, 1991. MÅRTENSSON, F. Lateralization of Language Functions in the Human Brain. Neurolinguistics, 2007. Available from: <http://course.sol.lu.se/ FON218/Postrar_neurolingvistik_VT07/Frida_Maartensson.pdf>. Accessed on: Jul. 26, 2016. MARTIN, J. R. Genre and Literacy: Modeling Context in Educational Linguistics. Annual Review of Applied Linguistics, Cambridge, v. 13, p. 141-74, 1993a. Doi: https://doi.org/10.1017/S0267190500002440 MARTIN, J. R. Literacy in Science: Learning to Handle Text as Technology. In: HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. (Org.). Writing Science: Literacy and Discourse Power. London: Palmer, 1993b. MARTIN, J. R. Life As a Noun: Arresting the Universe in Science and Humanities. In: HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. (Org.). Writing Science: Literacy and Discourse Power. London: Palmer, 1993c. MATTHIESSEN M. I. M. C. Register in the Round: Diversity in a Unified Theory of Register Analysis. In: GHADESSEY, M. (Org.). Register Analysis: Theory and Practice. London; New York: Pinter Publisher, 1993. p. 221-293. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 273 MCLAUGHLIN, B. Second Language Acquisition in Childhood. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1978. PAINTER, C. Into the Mother Tongue: A Case Study in Early Language Development. London: Pinter, 1984. (Open Linguistics Series) PAINTER, C. Researching First Language Development in Children. In: UNSWORTH, L. (Org.). Researching Language in Schools and Communities. London; New York: Continuum, 2000. p. 65-86. PERRET, G. Researching Second and Foreign Language Development. In: UNSWORTH, L. (Org.). Researching Language in Schools and Communities. London; New York: Continuum, 2000. p. 87-110. RAVELLI, L. Getting Started with Functional Analysis of Texts. In: UNSWORTH, L. (Org.). Researching Language in Schools and Communities. London; New York: Continuum, 2000. p. 27-63. RICHARDS, J. C. Error Analysis: Perspectives on Second Language Acquisition. England: Longman Press, 1974. ROGERS, L. J. A Matter of Degree: Strength of Brain Asymmetry and Behavior. Symmetry, 2017. Available from: <file:///C:/Users/user/ Downloads/symmetry-09-00057.pdf>. Accessed on: Jun. 18, 2017. ROTHERY, J. Exploring Literacy in School English. Sydney, Metropolitan East Disadvantaged School Program. Erskine Ville: NSW, 1993. SWALES, J. M. Genre Analysis: English in Academic and Research Settings. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1990. TARONE, E. E. Interlanguage. In: MESTHRIE, R. (Org.). Concise Encyclopedia of Sociolinguistics. Oxford: Elsevier Science, 2001. p. 475-481. THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. Great Britain: Hodder Arnold, 2004. THOMPSON, G. Introducing Functional Grammar. Abingdon, Oxon: Routledge, 2014. Doi: https://doi.org/10.4324/9780203785270 TYLER, A. The Role of Syntactic Structure in Discourse Structure: Signaling Logical and Prominence Relations. Applied Linguistics, Oxford, v. 15, p. 243-262, 1994. Doi: tps://doi.org/10.1093/applin/15.3.243 274 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 241-274, 2019 UNSWORTH, L. Sound Explanations in School Science: A Functional Linguistic Perspective on Effective Apprenticing Texts. Linguistics and Education, [s.l.], v. 9, n. 2, p. 199-226, 1997. UNSWORTH, L. Investigating Subject-Specific Literacies in School Learning. In: UNSWORTH, L. (Org.). Researching Language in Schools and Communities. London; New York: Continuum, 2000. p. 245-274. WIDDOWSON, H. G. Teaching Language as Communication. Oxford: Oxford University Press, 1978. WIDDOWSON, H. G. Learning Purpose and Language Use. Oxford: Oxford University Press, 1983. YULE, G. The Study of Language. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 O enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”, do Jornal Extra: o signo ideológico “Guerra” em estudo The Verbivocobisual Utterance “Guerra do Rio”, of the Jornal Extra: the Ideological sign “War” in Study Grenissa Bonvino Stafuzza Universidade Federal de Goiás, Catalão, Goiás / Brasil grenissa@gmail.com Giovanna Diniz dos Santos Universidade Federal de Goiás, Catalão, Goiás / Brasil dsgiovanna@gmail.com Resumo: Aborda-se no presente estudo algumas contribuições teóricas do Círculo de Bakhtin para a análise de enunciados verbovocovisuais, uma vez que o discurso tomado como objeto de análise se constitui e se realiza por elementos verbais, vocais e visuais em um todo arquitetônico que significa. Sob essa perspectiva, analisa-se o enunciado “Guerra do Rio” que constitui a editoria do Jornal Extra lançada em 2017, composto por três materialidades – i) o vídeo intitulado “Isso não é normal”, publicado no site do Jornal Extra; ii) o editorial e; iii) a capa do Jornal Extra –, considerando os sentidos que emanam do signo ideológico guerra na construção do discurso jornalístico sensacionalista do jornal em questão. Palavras-chave: Círculo de Bakhtin; enunciado verbovocovisual; discurso jornalístico sensacionalista; Jornal Extra. Abstract: This study addresses some theoretical contributions of the Bakhtin Circle for the analysis of verbivocovisual utterances, since the discourse taken as object of analysis is constituted and put into practice by verbal, vocal and visual elements in an architectonic whole which means. From this perspective, we analyzed the utterance “Guerra do Rio”, which constitutes the editorial of the newspaper Extra launched in 2017, composed of three materialities – i) the video entitled “Isso não é normal”, published in the website of the Extra; ii) the editorial e; iii) the cover of Jornal Extra –, considering the senses eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.275-298 276 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 that emanate from the ideological sign war in sensationalist journalistic discourse of the newspaper in question. Keywords: Bakhtin Circle; verbivocovisual utterance; sensationalist journalistic discourse; Jornal Extra. Recebido em 15 de fevereiro de 2018 Aceito em 18 de abril de 2018 1 Introdução A cidade do Rio de Janeiro é presença constante em noticiários. Configurada em um mosaico de imagens que evocam o carnaval, as praias e o samba, a cidade também é imersa por discursos contraditórios que tentam caracterizá-la como um espaço repleto de tensões, o que faz com que a cidade seja compreendida no imaginário popular como um lugar violento,1 dominado pelo crime e pelas favelas2 ou comunidades.3 Sobre isso, ver a matéria do Jornal GGN. Disponível em:<https://jornalggn.com.br/ noticia/o-preconceito-contra-a-favela>. Acesso em: 18 fev. 2018. 2 O discurso do senso comum fundamentado na visão hegemônica sócio-econômicocultural pensa a favela como um espaço violento, de extrema pobreza, marginalizado e desprovido de infraestrutura, um lugar em que se opera o tráfico no Brasil, sendo, portanto, berço de criminosos. De acordo com o Observatório de Favelas do Rio de Janeiro (criado em 2001 por pesquisadores e profissionais oriundos de espaços populares, sendo composto atualmente por trabalhadores de diferentes espaços da cidade, o Observatório é desde 2003 uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP). Com sede na Maré, no Rio de Janeiro, sua atuação é nacional): “(...) as favelas constituem moradas singulares no conjunto da cidade, compondo o tecido urbano, estando, portanto, integrado a este, sendo, todavia, tipos de ocupação que não seguem aqueles padrões hegemônicos que o Estado e o mercado definem como sendo o modelo de ocupação e uso do solo nas cidades. Estes modelos, em geral, são referenciados em teorias urbanísticas e pressupostos culturais vinculados a determinadas classes e grupos sociais hegemônicos que consagram o que é um ambiente saudável, agradável e adequado às funções que uma cidade deve exercer no âmbito do modelo civilizatório em curso”. (Disponível em: <http://oqueefavelaafinal. blogspot.com.br/2009/08/o-que-e-favela-afinal.html>. Acesso em: 18 fev. de 2018). Link para acesso ao site do Observatório: http://observatoriodefavelas.org.br/ 3 Birman (2008, p. 106), em seu texto “Favela é comunidade?”, trabalha como a concepção de comunidade é usada por determinados grupos e se relaciona com a identidade dos 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 277 Dentro dessa dinâmica, o discurso jornalístico trabalha constantemente na cobertura e na divulgação da violência, geralmente dedicando um espaço exclusivo às notícias que se relacionam com a temática, como é o caso do Jornal Extra, com a sua editoria “Casos de Polícia”. Em 16 de agosto de 2017, o Jornal Extra publicou um editorial e uma reportagem de capa para divulgar a escolha em relação a uma nova nomenclatura para essa mesma editoria. A partir daquela data, as notícias de violência seriam alocadas na editoria “Guerra do Rio”. Essa escolha foi justificada no texto do editorial e em um vídeo publicado no site do Jornal Extra intitulado “Isso não é normal”, contendo depoimentos do diretor de redação, Octavio Guedes, e do repórter Rafael Soares, responsável pela reportagem de capa.4 Além disso, a divulgação de um “dossiê secreto do estado” revelando o domínio de 843 territórios pelo crime organizado apareceria com destaque na capa do jornal impresso, mostrando um discurso institucional revelado como “furo”, como novidade. O presente estudo fundamenta-se na perspectiva dialógica da linguagem sob o viés das reflexões teóricas do Círculo de Bakhtin, considerando a construção do enunciado verbovocovisual a partir do diálogo entre as três materialidades discursivas – o editorial “Guerra no Rio”, sua capa e o vídeo divulgado no site do Jornal Extra. Sob essa perspectiva, o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de uma determinada esfera da atividade humana de utilização da língua: não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua como os recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais, mas também, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. (BAKHTIN, [1979] 2011, p. 261-262) moradores: “Empregado pela mídia, pelo governo, pelas associações locais, pelas ONGs, o termo comunidade muitas vezes explicita a dificuldade dessa operação de levar em conta o que pensam os que se veem nomeados de uma forma negativa”. 4 Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/isso-naonormal-21711104.html>. Acesso em: 18 fev. 2018. 278 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 O enunciado “Guerra do Rio” reflete e refrata discursos socialmente inscritos como o jornalístico, o midiático, o sensacionalista, uma vez que seu conteúdo temático (o recorte que se opera em relação ao gênero), seu estilo (midiático, próprio da autoria do Jornal Extra) e construção composicional (vídeo, editoria, capa; relato jornalístico com tom de denúncia e de “furo de reportagem”; presença do verbal, do vocal e do visual) fundamentam os sentidos que emanam do enunciado “Guerra do Rio”, ao enunciar sobre uma guerra em curso no Rio de Janeiro, não reconhecida pelo governo. Logo, tanto em sua editoria, quanto na capa de “Guerra do Rio”, o Jornal Extra estabelece o que seriam crimes “que ocorrem em qualquer metrópole do mundo: homicídios, latrocínios, crimes sexuais...” e o que seriam crimes “que só vemos no Rio” e “que foge ao padrão da normalidade civilizatória”. Ao sugerir que crimes como homicídios, latrocínios e crimes sexuais são crimes recorrentes e, portanto, que obedecem a uma normalidade civil, o jornal cria uma expectativa de espetacularização dos crimes que pretende relatar em sua editoria “de guerra”. O objeto de estudo da nossa pesquisa, o Jornal Extra, é um veículo popular, que atende o estado do Rio de Janeiro e é considerado um dos jornais populares mais lidos do país.5 Para entender o funcionamento desse tipo de jornalismo e suas características, destaca-se Prevedello (2008) quando define os novos jornais surgidos no Brasil nos anos 90 de acordo com seu público e estilo de linguagem e diagramação da seguinte maneira: Destinados prioritariamente aos públicos das classes B, C e D, [...] os novos jornais apresentam maior voltagem de cor na diagramação, textos sintéticos, várias seções de prestação de serviços e uma mescla entre temáticas de entretenimento, casos policiais e a redução, quando não exclusão, das tradicionais editorias de Política e Economia. Recursos clássicos do sensacionalismo, como a prevalência de fotos aos textos, de letras em fonte maior e de diagramação carregada em cor e com elementos para facilitar a leitura, permanecem válidos no novo jornalismo popular (PREVEDELLO, 2008, p. 27-28). Esses dados foram retirados do site da Infoglobo, grupo a que pertence, entre outros veículos, o Jornal O Globo, o Jornal Extra. Disponível em: <https://www.infoglobo. com.br/Anuncie/ProdutosDetalhe.aspx?IdProduto=92>. Acesso em: 18 fev. 2018. 5 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 279 Dessa forma, analisa-se o Jornal Extra dentro dessa categoria de jornalismo sensacionalista e sua relação com os sentidos evocados no tratamento dado às notícias. O editorial divulgado no site do jornal, por exemplo, dá maior destaque ao vídeo do que ao texto; a capa do jornal que divulga a escolha do nome da editoria usa como ilustração da capa “É guerra” escrito em letras garrafais, no meio do título “Dossiê secreto do estado revela” e “Rio já perdeu 843 áreas para o crime”. Mais adiante, analisa-se também a relação entre essas escolhas e os enunciados que, entre si, revelam sentidos e provocam o leitor em relação ao tema tratado. 2 O signo ideológico “guerra” no enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio” O termo “verbovocovisual” tem sua origem na literatura de James Joyce, em Finnegans Wake (“verbivocovisual”6), tendo sido apropriado pela poesia concreta nos anos 50 do século XX por Décio Pignatari e os irmãos Campos. Conforme o próprio Augusto de Campos: Junto com a música popular brasileira, ouvimos, no início dos anos 1950, Webern, Schönberg, Berg, Cage e Varèse. Billie Holiday, Dizzy Gillespie e Miles Davis. Quando João Gilberto chegou, em 1959, foi logo entendido. Era o Webern cool da canção brasileira. Essa informação musical foi fundamental para uma poesia que se pretendeu, desde o início, “verbivocovisual”, expressão que extraímos do Finnegans Wake, de Joyce. Embora a sua face mais chamativa fosse a visual, a verdade é que a poesia concreta brasileira formou-se sob a influência da música, e foi “cantofalada”, antes de ser exposta, entrequadros, na exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1956.7 No original: “Up to this curkscraw bind an admirable verbivocovisual presentment of the worldrenownced Caerholme Event has been being given by The Irish Race and World”. (JOYCE, 1975, p. 458). 7 Esse excerto é parte do texto que marca a divulgação do evento “Poemúsica”, idealizado pelo poeta brasileiro Eucanaã Ferraz e realizado pelo Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, em 30 de março de 2010, contendo textos do poeta Augusto de Campos, do músico Cid Campos e também uma entrevista com a compositora e cantora Adriana Calcanhoto. Disponível em: <http://www.adrianacalcanhotto.com/poemusica/ index.html>. Acesso em: 18 fev. 2018. 6 280 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 Ao extrair o “verbivocovisual” da literatura joyciana, a poesia concreta ganha consciência do movimento de linguagem que se desenvolve nas esferas verbal, vocal e visual tanto na literatura, na recepção crítica e teórica, como nas performances dos poetas, músicos e artistas que dela participavam. Pignatari (2005, p. 21), ao explicar a noção de ritmo, entende que “é um ícone que resulta da divisão e distribuição no tempo e no espaço – ou no tempo-espaço – de elementos ou eventos verbovocovisuais (= verbais, vocais, visuais)”. Nesse caso, pode-se pensar a verbovocovisualidade como abordagem de análise da poesia que surge a partir de um profícuo debate teórico e experimental entre poetas, músicos, artistas e estudiosos dos campos da música e da literatura. Nos estudos de análise de discursos de corrente bakhtiniana, que nos interessa aqui, apesar de Bakhtin e seu círculo não tratarem de “verbovocovisualidade”, nem de “discursos verbovocovisuais” em termos, seus escritos trazem importantes contribuições para se entender o “verbovocovisual” como um procedimento de análise discursiva, uma vez que o discurso tomado como objeto de análise se constitui e se realiza por elementos verbais, vocais e visuais, sendo a obra do Círculo suporte para análises. Ao pensar a verbovocovisualidade como um procedimento de análise discursiva, considera-se de antemão que a expressão verbovocovisual denomina o todo arquitetônico do discurso midiático “Guerra do Rio”, editoria do Jornal Extra, que se constitui e se realiza por elementos verbais, vocais e visuais em dialogicidade. Torna-se lícito esclarecer que Bakhtin pensou a arquitetônica a partir do estudo da obra literária. O todo arquitetônico diz respeito à construção de uma obra entendida como interação entre material, forma e conteúdo. O “todo” relaciona-se com o acabamento que se opera a partir do excedente de visão como elemento constitutivo fundamental dessa interação, bem como da atividade autoral. De acordo com Bakhtin ([1979]2011), a arquitetônica da visão artística é a responsável pela organização do espaço-tempo-sentido, bem como a concepção da obra como objeto estético. Aqui, ao estudar o discurso jornalístico sensacionalista do Jornal Extra, apropria-se da noção de arquitetônica pensada por Bakhtin para os estudos literários por se compreender sua potencialidade teórica também para o estudo de outros discursos como o jornalístico-midiático, representado pelo Jornal Extra, a partir de sua arquitetônica, ou seja, da Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 281 criação do todo integrado – editorial, vídeo e capa da editoria “Guerra do Rio”8 – que significa. Volochínov (2013), ao descrever como a palavra possui, em seu uso, memória histórica da posição de classe dos falantes e de determinada visão de classe, afirma que: [...] todo discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, à sua compreensão e à sua efetiva resposta potencial. Essa orientação a um outro, a um ouvinte, pressupõe inevitavelmente que se tenha em conta a correlação sócio-hierárquica entre ambos os interlocutores [grifos do autor]. (VOLOCHÍNOV, 2013, p. 168.) Ao tomar a linguagem como uma atividade humana multifacetada e mediadora da relação do sujeito com a sociedade e a história, que tem com os signos uma relação de devir, compreende-se que a natureza dialógica da linguagem configura os próprios sentidos sígnicos, uma vez que o sujeito fala sob determinados signos, calcados no princípio de que os sentidos na linguagem são moventes, apesar de sua relativa estabilidade. A palavra organiza os sentidos no discurso como, por exemplo, a esfera jornalística que se apresenta sob a forma de instituições distintas e especializadas como, por exemplo, a imprensa, que determina conhecimentos e práticas, assim como os posicionamentos que o sujeito jornalista deve tomar para falar a partir desse lugar. Observa-se, sobretudo, que a concepção dialógica da linguagem, concepção nodal de Bakhtin e do Círculo, confere à expressão enunciativa um caráter social e ideológico que, determinada pelo meio externo, estrutura e orienta a atividade mental do sujeito. Isso significa dizer que o entendimento dos signos presentes no mundo se instaura a partir de uma situação social imediata, bem como o meio social mais amplo no processo de materialização e realização da linguagem, no processo de interação discursiva que é, sobretudo, um processo social. De acordo com Volóchinov (2017, p. 95, grifo do autor), O texto do editorial que se encontra publicado no site logo abaixo da publicação do vídeo e o texto da capa são o mesmo texto. No entanto, investiga-se também a capa para pensar os destaques dados pelo Jornal Extra para a editoria “Guerra do Rio”. 8 282 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 (…) a compreensão de um signo ocorre na relação deste com outros signos já conhecidos; em outras palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com signos. (...) Essa cadeia ideológica se estende entre as consciências individuais, unindo-as, pois o signo surge apenas no processo de interação entre consciências individuais. E a própria consciência individual está repleta de signos. Uma consciência só passa a existir como tal na medida em que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é, pelos signos, portanto apenas no processo de interação social. A palavra – em sua função interlocutiva – dirige-se a um interlocutor e varia dependendo do grupo social a que se destina (se for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos etc.). Nesse sentido, o entendimento dos signos, que perpassam e constituem a palavra no ato de interlocução, depende também da sociabilização desses signos. Compreende-se que o centro organizador e formador da compreensão dos signos não se situa na consciência individual, mas no exterior, sendo, portanto, de caráter social: não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua orientação, que elabora o pensamento. Ao teorizar sobre a interação discursiva, uma vez que consciência individual e meio social revelam processos interdependentes de significar o mundo, de dar sentido à vida, de acionar sentidos para a ação dos signos no mundo, Volóchinov (2017) aponta que não existe atividade mental sem o condicionante social; eis que o grau de consciência, de clareza, de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social. Se a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente a estrutura da enunciação, aborda-se aqui a relação “interior” (consciência individual) e “exterior” (meio social) de maneira dialogada, e não da primazia de um sobre o outro. Além disso, a perspectiva bakhtiniana observa a importância de olhar para um sistema de signos com os olhos de outro sistema de signos, a exemplo do estudo sobre as origens da estética de Rabelais (Ver Bakhtin, 2010) que ilustra a relação de transposição entre os signos não-verbais do carnaval para os signos verbais da literatura carnavalizada. Se os signos nascem no território interindividual, ou seja, na interação entre consciências individuais, constituem um fenômeno, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 283 sobretudo, do mundo exterior. Cada campo do conhecimento – científico, artístico, político, religioso, jornalístico etc. – possui uma função específica dentro da unidade da vida social, no entanto, é o caráter semiótico, a forma como significam na vida social, que torna os signos ideológicos transitáveis e mutáveis entre as esferas (BAKHTIN/ VOLOSHINOV, 1976, p. 20). O signo “guerra” ao mesmo tempo em que participa da esfera política, por exemplo, não se restringe à ela, podendo ser acionado em outras esferas, como a médica, a econômica, a midiática, a jornalística, a jurídica,9 etc., configurando a sua função ideológica de significar socialmente. De acordo com Sobral e Giacomelli (2017, p. 230), Na formulação bakhtiniana, o produto ideológico é a um só tempo parte de uma realidade, natural ou social, e reflexo e refração de outra realidade que lhe é exterior. (...) A ideologia não está na consciência, porque, como a compreensão só ocorre tendo por objeto um material semiótico e como a direção do signo sempre o faz remeter a outro signo, a própria consciência só surge e constitui um fato possível na concretude material dos signos (...). Entende-se por esse viés que os signos fazem sentido a depender dos próprios sentidos que foram construídos sócio-culturalmente sobre esses signos. Ainda, pensa-se em quais conjunturas sociais acontecem determinadas interferências que fazem com que os sentidos cristalizados de determinados signos se transformem (ou se desestabilizem). O interlocutor, real e determinado socialmente, por sua vez, encontra-se como sujeito desse processo interativo denominado interação discursiva: o sujeito engloba em sua atividade mental não apenas a consciência interior por meio da expressão enunciativa de signos, mas ratifica a inter-relação entre a evolução social e a linguística, tendo em vista que uma outra forma de relação social requer uma outra forma de interação discursiva, o que repercute mudanças na língua. Assim, pode-se verificar, no horizonte social dialógico, a base da atividade mental do interlocutor: Dentro dessas esferas, há diversos sentidos que emanam do signo guerra, dependendo da sua função ideológica. Na esfera jurídica, por exemplo, distante dos processos e julgamentos de crimes de guerra arrolados pelo corpo jurídico, o signo guerra pode significar, por exemplo, disputas conjugais em separações litigiosas (“Ex-cônjuges estão em guerra no tribunal”) por partilhas de bens, entre outros, caracterizando a função semiótica do signo na linguagem, que é intrinsecamente vinculada ao social, portanto, ideológica. 9 284 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 a consciência individual é construída coletivamente, pois se estrutura na e pela interação entre sujeitos, em um determinado meio social e ideológico. Medviédev (2012, p. 56), ao abordar uma série de problemas fundamentais da ciência marxista das ideologias, afirma que O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de ‘objetos-signo’ dos mais diversos tipos e categorias: de palavras realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante. O pensador denomina de meio ideológico tudo isso que constitui a realidade material e imaterial que envolve a vivência e a experiência humana no mundo social. De modo mais assertivo, “o meio ideológico é a consciência social de uma dada coletividade, realizada, materializada e exteriormente expressa” (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56). Sob essa perspectiva, compreende-se que uma consciência individual se torna consciência social quando colocada em interação com o meio ideológico que reflete e refrata as condições de existência socioeconômica e natural dos sujeitos. Sendo a palavra o signo ideológico par excellence, aborda-se, no presente estudo, a palavra guerra, deslocada da esfera política ou de conflito, dentro da esfera jornalística, midiática, de caráter sensacionalista. O signo ideológico guerra reflete e refrata outros sentidos quando se analisa o enunciado verbovocovisual em destaque composto pelo editorial “Guerra do Rio”, o vídeo de divulgação da editoria intitulado no site de “Isso não é normal” e a capa do Jornal Extra. Entende-se que os sentidos evocados pela palavra guerra extrapolam uma normalidade colocada como convencional para a sociedade; portanto, guerra aparece sumariamente vinculada a crimes surpreendentes, chocantes, aterrorizantes que se distanciam de “crimes comuns, normais”, como aqueles citados pelo jornal (“homicídios, latrocínios, crimes sexuais”). Esses sentidos possíveis para guerra podem ser compreendidos através dos diálogos que o jornal estabelece entre as três materialidades que compõem o enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 285 3 Mídia em tempos de “guerra” A mídia trabalha com a opinião pública de modo a defender seus interesses comerciais e/ou políticos, que estejam alinhados ao editorial do veículo. Dessa forma, a mediação da realidade pela notícia obedece a estruturas fixas de agendamento e escolha das pautas abordadas. A mass media (termo utilizado para definir os veículos de comunicação que atingem um grande público) utiliza da linguagem jornalística para alcançar esse público e despertar nele condutas em relação à realidade que ele está inserido. Durante o período que sucedeu o ataque às torres gêmeas em Nova Iorque, a mídia teve participação efetiva no debate sobre terrorismo e a “guerra ao terror” empreendida pelo ex-presidente americano George Bush. Os efeitos da veiculação massiva de imagens do atentado, das torres, dos feridos e mortos causou efeito devastador na opinião pública, o que levou os americanos a apoiarem as medidas tomadas pelo expresidente em relação à busca por Osama Bin Laden e invasão do Iraque (REZENDE, 2013). A mídia desempenha um papel importante na divulgação dos fatos de guerra. Essa função está diretamente ligada aos interesses do Estado em manter o consenso da população civil para garantir o apoio e causar comoção pública (ALDÉ, 2003). Durante a segunda guerra mundial, os meios de comunicação de massa – rádio e jornal impresso, naquela época – foram responsáveis pela constante divulgação dos esforços de guerra, perdas, baixas e de propaganda dos interesses de cada país envolvido no conflito. Hoje, com o desenvolvimento das mídias televisiva e digital, as informações circulam em ritmo ainda mais acelerado, mas o crescimento desses suportes também trouxe pluralidade de discursos e veículos de linhas editoriais divergentes. Durante a Guerra ao Iraque, apesar dos efeitos causados na opinião pública, que tornaram possível a realização da Guerra, a existência de diversas opiniões foi mobilizada, de acordo com Aldé (2003, p. 2) por “uma imprensa polarizada e atenta, pressionada por novos emissores, como as redes árabes de televisão, e pela comunicação dinâmica e descentralizada da Internet.” Durante um conflito, seja ele internacional entre dois países, ou nacional numa guerra civil, por exemplo, os enquadramentos feitos pela mídia irão obedecer às versões oficiais do fato, divulgadas por 286 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 agências estatais de notícias ou por fontes ligadas ao Estado. Esses enquadramentos, segundo Aldé (2003) podem ser de diversas ordens, em especial, destaca-se os enquadramentos militar e humanista, que abordam as estratégicas de guerra e seus efeitos sobre as populações envolvidas nos conflitos, respectivamente. Os dois tipos trabalham com a carga dramática e a comoção do público frente à guerra, surtindo efeito no posicionamento da opinião pública em relação às ações do governo. No vídeo de divulgação da editoria “Guerra do Rio”, Octavio Guedes, diretor de redação, inicia o vídeo lendo em sua tela de computador os significados que aparecem no dicionário10 para a palavra “guerra” ao mesmo tempo em que tece comentários sobre esses significados em relação ao interesse da editoria ao adotá-la como título da editoria e sua temática: Olha, a definição clássica de guerra aqui no dicionário: “luta armada entre nações”, não é o caso. “Ou entre partidos de uma mesma nacionalidade ou de etnias diferentes, com o fim de impor supremacia ou salvaguardar interesses materiais ou ideológicos”. Criar uma editoria de guerra depois de 30 anos convivendo com jornais do Rio de Janeiro e dar enfoque à polícia é uma sensação de derrota. Então, você chegar nesse estágio e dizer assim “olha, eu tenho uma editoria de guerra”, não é orgulho nenhum, é um fracasso. Aliás, o Extra deve ser o único jornal do planeta que tem uma editoria de guerra, num país que não reconhece a guerra. (00min00s-00min55s) Ao pensar sobre o signo ideológico no funcionamento do discurso jornalístico sensacionalista do Jornal Extra em estudo, observa-se como em momentos de conflitos sociais, a definição de guerra pode funcionar na voz da mídia. Ao trazer os significados do dicionário de guerra, o diretor de redação tece um comentário que desaprova o primeiro significado de “luta armada entre nações” como significado de representação da editoria “Guerra do Rio” do Jornal Extra. “Não é o caso” (00min05s), afirma Octavio Guedes de modo a situar os possíveis significados de “guerra” que poderiam configurar no editorial em divulgação. Há, sobretudo, Os significados de guerra advindos da leitura em tela de computador, realizada pelo diretor de redação, encontram-se facilmente por meio de uma rápida pesquisa no Google, ao digitar na busca “o que é guerra”. Trata-se do dicionário do Google, uma ferramenta informal que a plataforma disponibiliza para os usuários. 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 287 uma preocupação em responder ao enunciado sobre a possibilidade de significados que o dicionário permite aos usuários da língua em relação à palavra guerra, de modo a enunciar qual seria o significado mais adequado ou expressivo para a configuração da editoria colocada em divulgação. No entanto, na continuidade da leitura digital dos significados, o diretor de redação não se posiciona verbalmente quando conclui a leitura dos próximos significados: “Ou entre partidos de uma mesma nacionalidade ou de etnias diferentes, com o fim de impor supremacia ou salvaguardar interesses materiais ou ideológicos” (00min07s-00min17s). De modo que esse silêncio acompanhado de um rememorar histórico da sua profissão de jornalista no Rio de Janeiro há 30 anos faz emergir sentidos que sugerem uma situação dramática vivenciada pelo sujeito: a criação de um editorial de guerra que dá “enfoque à polícia”, para o jornalista, significa “derrota”, “fracasso”, não sendo “orgulho nenhum”. Nesse sentido, esse segundo significado lido pelo jornalista pode configurar uma possibilidade de significar a editoria “Guerra do Rio” em divulgação no enunciado: trata-se de uma guerra em que a polícia é protagonista. A situação dramática amplia-se e efetiva-se com outros elementos que constituem o todo arquitetônico enunciativo do projeto de dizer do Jornal Extra como, por exemplo, a música clássica de fundo do vídeo. Trata-se da peça “Sarabande” que compõe a suíte para violoncelo N°2 em ré menor de Bach:11 quando o compositor quer dar um caráter mais triste ou melancólico a uma música, recorre às tonalidades menores. Logo, encontra-se em diálogo a sonoridade musical de uma suíte clássica de Bach ao significado que o Jornal Extra constrói sobre guerra: o signo ideológico guerra ao mesmo tempo em que reflete a tristeza da suíte clássica em ré menor conjuntamente à entonação angustiante de denúncia do jornalista, refrata essa mesma tristeza ao autoproclamar um ineditismo jornalístico que coloca o Jornal Extra em uma posição de vanguarda editorial ao dar enfoque à guerra, pois “(...) o Extra deve ser o único jornal do planeta que tem uma editoria de guerra, num país que não reconhece a guerra”. (grifos nossos). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ycF8OtRjYlE>. Acesso em: 18 fev. 2018. 11 288 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a tristeza se apresenta marcada pela música clássica, pela entonação angustiante de depoimento de quem sente a “derrota”, o “fracasso” e não tem “orgulho nenhum” na profissão de jornalista que assina uma editoria de guerra, emerge a contradição, pois, ao se dar voz a uma editoria de guerra, o Jornal Extra afirma-se no campo jornalístico e midiático como um jornal original que se coloca como pioneiro na elaboração de um editorial de guerra no Brasil, quando nem o próprio país “reconhece a guerra”. Assim, o Jornal Extra se coloca como um jornal que utiliza de seu espaço editorial para denunciar a omissão do Estado em não admitir uma guerra vigente no país, de modo a se colocar como porta-voz institucional dessa guerra que tem a polícia como foco no Rio de Janeiro. Ao concluir a leitura dos significados de guerra no computador e estabelecer esse diálogo entre os significados possíveis de representar a editoria do Jornal Extra e – ao som sorumbático da suíte em ré menor de Bach – sua experiência profissional, a cena em questão conclui-se com elementos sonoros e imagéticos que também fazem coro com a tonalidade dramática da editoria e constituem o enunciado verbovocovisual: ouvese tiros de metralhadora, bombas, a voz de uma jornalista noticiando a violência sobreposta a voz de um jornalista noticiando crimes praticados por traficantes, sirenes de carros de polícia, tiros de revólver e helicóptero em sobrevoo ao mesmo tempo em que imagens de várias edições do Jornal Extra aparecem retroprojetadas em flashes e o enunciado “É GUERRA” na cor branca com o fundo escuro, riscado na parte inferior, fixa-se no centro do vídeo. Entendendo a linguagem como fenômeno sócio histórico, que se modifica no movimento das trocas entre os falantes de determinada língua, na interação discursiva, ao mesmo tempo em que acompanha as mudanças da vida social, pode-se abranger os variados sentidos que o signo ideológico pode remeter em determinado contexto, como é o caso do signo “guerra” utilizado pelo Jornal Extra: não se trata de uma guerra institucionalizada pelo estado, mas sim de uma posição editorial de apontar que o que acontece no Rio de Janeiro é guerra. Dessa forma, entende-se que é preciso estudar como a palavra foge a uma concepção monológica do mundo, sendo ela plurivalente e polissêmica. Essa relação entre a mídia e o Estado é responsável pelo sentimento de patriotismo durante esses conflitos e também pela manutenção da imagem do governo e de suas ações que justificam uma guerra. Práticas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 289 de agendamento da opinião pública, ou o agenda-setting12 também são comuns não só em momentos de guerra, mas toda vez que determinado assunto está – ou por interesse de determinado veículo jornalístico ou do Estado pretende estar – em pauta. O editorial de um jornal – seja ele impresso, digital ou televisivo – é responsável por traduzir a opinião desse veículo também em momentos de conflito. Para Marques de Melo (2003), o editorial não pretende apenas mobilizar a opinião pública, mas também defender os interesses corporativos e financeiros do veículo jornalístico e dialogar com o Estado para dizer “como gostariam de orientar os assuntos públicos”, alinhados a esses interesses. No caso do editorial divulgado pelo Jornal Extra, o interesse é se posicionar em relação ao “dossiê secreto do Estado” e à ação da polícia nas comunidades. 4 “Guerra do Rio”: É GUERRA O Jornal Extra, conforme retratado, trabalha em seu editorial o conceito de “guerra” de modo a fazer repercutir que a guerra do Rio de Janeiro encontra-se em um outro patamar de guerra. O diálogo realizado entre a capa do jornal impresso e a publicação do site do jornal, que contém o mesmo texto e um vídeo, tratados aqui como enunciado verbovocovisual, produz sentidos, ainda, quando o Jornal Extra enuncia com destaque “dossiê secreto do Estado revela Rio já perdeu 843 áreas para o crime” – “Isso não é normal”, entremeado pela ilustração escrita “é guerra” em letras garrafais, com a tipografia riscada, igual ao designer gráfico do enunciado “É GUERRA” que aparece no vídeo, já mencionado anteriormente: Essa é uma hipótese formulada por McCombs e Shaw (2000), que afirmam que a mídia pauta o que é dito pela opinião pública seguindo práticas específicas para selecionar os temas que serão discutidos pela sociedade em determinado momento, através da escolha e enquadramento de notícias sistematicamente divulgadas. 12 290 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 FIGURA 1 – Imagem da capa do Jornal Extra disponível no Acervo Extra13 A escolha da diagramação da capa cria ambiguidade, pois podese entender que o dossiê secreto é responsável pela revelação, por parte do Estado, de uma guerra não institucionalizada. O Extra, ao escolher o nome da editoria como “Guerra do Rio”, também trabalha com essa mesma pluralidade de sentidos. O uso da preposição “do”, por exemplo, pode indicar origem ou lugar (guerra localizada no Rio de Janeiro); ou pode ser usada para qualificar o substantivo “guerra”, indicando um tipo de “guerra” que é característico do Rio de Janeiro. Os dois Disponíavel em: <http://acervo.extra.globo.com/resultados/?a=Dossi%C3%AA+ secreto&pg=4&o=relevance>. Acesso em: 18 fev. 2018. 13 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 291 sentidos são possíveis ao verificar a voz autoral presente no enunciado verbovocovisual que constrói o todo arquitetônico “Guerra do Rio”, situando culturalmente, socialmente e historicamente, o projeto de dizer jornalístico, midiático e sensacionalista do Jornal Extra na construção de uma editoria “de guerra”. O título “Isso não é normal”, por exemplo, que aparece também nas três materialidades que formam o enunciado “Guerra do Rio”, resume as ideias que o Jornal Extra coloca no texto em relação à violência. Ele traça um paralelo entre o que seria a violência fora do comum e outra, dentro do padrão de normalidade. Esse padrão seria definido, segundo o Extra, pela “normalidade civilizatória” e seria visto apenas na cidade do Rio de Janeiro: guerra seria exclusividade do Rio. Outros crimes, noticiados pelo jornal, como “homicídios, latrocínios, crimes sexuais” acontecem “em qualquer metrópole do mundo”. Outra oposição aparece também quando é mencionada uma “barbárie”. Por essa razão, o jornal define porque essa “guerra” ou “barbárie” merece destaque de crimes considerados “normais”: Um feto baleado na barriga da mãe não é só um caso de polícia. É sintoma de que algo muito grave ocorre na sociedade. A utilização de fuzis num assalto a uma farmácia não pode ser registrada como uma ocorrência banal. A morte de uma criança dentro da escola ou a execução de um policial são notícias que não cabem mais nas páginas que tratam de crimes do dia a dia. Essa mudança comentada pelo jornal é caracterizada como uma tomada de posição do veículo e também direcionada pelos jornalistas envolvidos com o tema. No começo, “nossos jornalistas evitavam: guerra do Rio”, o que, com a mudança, passa a ser encarado de outra forma: “Não se trata de uma simples mudança na forma de escrever, mas, principalmente, no jeito de olhar, interpretar e contar o que está acontecendo ao nosso redor”. O jornalista, segundo essa concepção, é responsável pelo olhar e interpretação da realidade representada no jornal. Mais adiante, no terceiro parágrafo do texto, esse posicionamento é coletivizado pelo uso do pronome na primeira pessoa do plural “nosso olhar jornalístico”. Mais uma vez, observa-se o apelo à ética jornalística definida pela voz autoral do editorial do Jornal Extra. O jornal também faz uso de algumas palavras que dão o tom alarmante à notícia de uma editoria de guerra que apelam às emoções do leitor: “berrar”, “esperança”, “paciência”. O uso dessas palavras e de 292 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 pronomes na primeira pessoa do plural cria uma aproximação do editorial “Guerra do Rio” ao leitor do Extra. Ao se posicionar como um veículo que defende “a guerra baseada na inteligência no combate à corrupção policial, e que tenha como alvo não a população civil, mas o poder econômico das máfias e de todas as suas articulações”, o Jornal Extra posiciona-se favorável a uma guerra com estratégias que protejam a população civil, no entanto, sabe-se que em eventos de guerra a população civil não é poupada. Definir a violência da guerra focada no inimigo e a população civil protegida de balas perdidas, de bombas, do acesso ao consumo de drogas etc., soa a princípio como ingenuidade do editorial que não é aleatória, pois há, sobretudo, um diálogo instaurado com o leitor quando o jornal apresenta o editorial “Guerra do Rio” de posicionar-se a favor da vida da população, da vida do seu leitor consumidor. A partir do momento em que há um editorial próprio para os crimes “de guerra” assim definidos pelo Jornal Extra e destacados do editorial “Casos de Polícia”, o jornal lucra com a guerra que noticia, bem como com a sua espetacularização. Outros sentidos para guerra apresentam-se no enunciado verbovocovisual de “Guerra do Rio” quando o editorial afirma que “guerra pressupõe vitórias, derrotas, avanços, recuos, acertos e erros”, adotando uma posição conformista com os eventos que envolvem essa “guerra”, em especial: “sabemos que não há solução fácil nem mágica para o problema”. Os esforços do jornal em noticiar a violência e nomeá-la para definir o que seria um padrão de normalidade se encerram no editorial com um certo grau de distanciamento da sua responsabilidade de: i) enunciar sobre uma guerra em curso; ii) destacar um “dossiê secreto do estado” quando afirma que o próprio estado não “reconhece a guerra” (elemento de contradição, mas também de crítica ao Estado); ii) afirmar ter “esperança” de perder “o título de ser o único diário do planeta a ter uma editoria de guerra” (soa como autopromoção às avessas: ao mesmo tempo em que o jornal afirma ser o único diário do planeta a ter uma editoria de guerra, vê a existência dessa editoria – que ele mesmo criou – com tristeza). Ao afirmar que “o Estado não tem controle do território”, o enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio” fundamenta-se em um documento institucional, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro intitulado “Letalidade violenta e controle ilegal do território no Rio de Janeiro” (GONÇALVES, 2017), que traz os dados relatados por Rafael Soares no vídeo. O repórter demonstra surpresa ao tomar conhecimento dos dados apontados no documento, sendo, sobretudo Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 293 esse documento o objeto que se configura o “dossiê secreto do estado” mencionado. Outra contradição se instaura entre um estudo do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro encontrar-se publicado nos Cadernos de Segurança Pública desde julho de 2017, com acesso público pela internet, e a denominação de “dossiê secreto do estado” em agosto de 2017 com a chamada para a reportagem “documento que está sob sigilo até 2021” pelo Jornal Extra. Cria-se, sobretudo, uma atmosfera de intrigas envolvendo o governo e a sociedade envoltas em mistério em uma tentativa de ser inaugural ao falar sobre um “dossiê secreto do estado”, onde o estado “revela é guerra” na capa do Jornal Extra. Assim, mais uma contradição pode ser apontada: o estado revela que é guerra nesse “dossiê secreto” ao mesmo tempo em que não reconhece a guerra na voz do Jornal Extra. De acordo com Rafael Soares, o repórter do Jornal Extra responsável por trazer aos leitores do jornal os dados do artigo “Letalidade violenta e controle ilegal do território no Rio de Janeiro”, de autoria do geógrafo e pesquisador do Instituto de Segurança Pública, Luciano de Lima Gonçalves, o controle pelo crime nos territórios dominado pelo tráfico, concomitantemente com a presença das Unidades de Polícia Pacificadora, é “assustador”, uma vez que demonstra a perda do controle pelo Estado. O enunciado “Guerra do Rio” constitui-se de linguagem sensacionalista e de recursos sonoros e visuais – imagem computadorizada dos mapas das comunidades que aparecem juntamente com a voz do repórter citando os nomes das comunidades, que também aparecem grafadas na tela com o som de tiro e de helicóptero em sobrevoo, além da suíte para violoncelo N°2 em ré menor de Bach – para aumentar a carga dramática e apelo emocional ao público, que se comove com o enquadramento humanista utilizado. O Jornal Extra, portanto, utiliza vários recursos (verbais, visuais, sonoros) para estabelecer o conceito de “guerra” que encontra espaço de existência enquanto evento situado socialmente na e pela voz do Jornal Extra em suas notícias a partir do momento em que enuncia do lugar de denunciante de uma guerra em curso. Ao contrapor que “uma coisa é polícia, outra coisa é guerra”, o diretor de redação do jornal separa casos policiais “de rotina” dos casos de guerra definidos pelo texto do editorial como “fora da normalidade”. No entanto, mesmo assim, na estrutura do site do Jornal Extra verifica-se que a editoria “Guerra do Rio” se encontra dentro da editoria “Casos Policiais” trazendo à tona mais uma 294 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 contradição, dentre as diversas aqui citadas, revelada pelo posicionamento do jornal antes e depois do editorial divulgado. O Jornal Extra, como explica no texto do editorial, já possuía o costume de noticiar crimes diversos, através da sua editoria “Casos Policiais”. Apesar disso, o enquadramento dado a essas notícias era de “normalidade civilizatória”, considerando a divulgação dessas notícias como algo comum da rotina jornalística e também da rotina da cidade do Rio de Janeiro. Com a divulgação do editorial e a escolha do uso da palavra “guerra” pelo jornal, os crimes que eram divulgados são banalizados em nome de uma essência sensacionalista e de furos de reportagem que fazem parte do conteúdo temático do jornal. Assim, observa-se através do diálogo entre os enunciados verbovocovisuais analisados que o signo ideológico “guerra” explicita as contradições do posicionamento do jornal em relação à realidade que ele divulga. 5 Considerações finais Peter Pál Pelbart, em seu texto Estamos em Guerra, discute os sentidos de uma guerra política, que é “total, embora camuflada” (PELBART, 2017, p.4), uma guerra que atinge diversos grupos sociais, mas que é invisível aos olhos da mídia, que trata essa realidade como se fosse “a mais estrita e pacífica normalidade institucional, social, jurídica, econômica.” (PELBART, 2017, p. 5). A estratégia desse silêncio e normalização observados pelo autor também torna possível a inversão de sentidos e “uma corrosão da linguagem” (PELBART, 2017, p. 5), “em que guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil” (PELBART, 2017, p. 5). Nessa mesma guerra a que se refere Pelbart, a mídia e, no caso desse artigo, o Jornal Extra, são responsáveis por fazerem uso da linguagem de modo a mobilizar a opinião pública a respeito da violência e ocupação de territórios pelo crime. Ao mesmo tempo, também define o que deve ou não ser divulgado, o que é “guerra”, que são “casos de polícia”, como são nomeadas as editorias do jornal. A palavra, ou o signo ideológico, funciona nessa dinâmica em que a linguagem é usada ora para anunciar guerras, ora para definir padrões de normalidade e violência. Assim, entende-se pela análise que os sentidos de “guerra” evocados pelo Jornal Extra têm como função orientar a opinião pública a respeito da violência e criminalidade no Rio de Janeiro. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 295 Ao divulgar o nome da editoria de “Guerra do Rio” e relacionar com os territórios ocupados pelo crime, o jornal define essa mesma “guerra” com diferentes estratégias: o territorialismo, a truculência policial, a ação das máfias. Essas contradições põem em cheque o posicionamento do jornal, ora ligado ao Estado e sua presença nas comunidades através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), ora fazendo críticas à ação “corrupta” e “truculenta” da polícia. A palavra “guerra” surge nesse contexto, portanto, como demonstrativo do posicionamento do jornal frente à realidade posta: para o jornal, essa mesma realidade se transforma em mercadorias à venda em forma de notícias de guerra. O Jornal Extra, ao definir o que seria “guerra” e violência “fora da normalidade civilizatória”, não só se posiciona a respeito de um tipo determinado de crime, mas também banaliza os crimes que eram tratados até o momento pelo jornal em sua editoria “Casos de Polícia”. A editoria “Guerra no Rio”, por sua vez, é constituída por crimes noticiados que fazem parte de um agendamento feito pelo jornal, ou seja, pertencem a um padrão espetaculoso que caracteriza o Extra como jornal popular. A violência, os casos policiais, os crimes advindos ou não do tráfico de drogas, são parte de uma realidade social que dá sentido à existência de editorias afins no jornalismo sensacionalista. Dessa maneira, no enunciado verbovocovisual estudado, os sentidos da palavra “guerra” mostram o posicionamento ideológico do Jornal Extra e sua relação com a população civil, assim como aponta o projeto de dizer do jornal. O discurso apresentado pelo jornal anuncia a guerra atrelada a políticas de combate ao silêncio do estado e à ação da polícia, ao mesmo tempo observa-se que os sentidos construídos através do todo arquitetônico do enunciado exaltam a voz do jornal e do jornalismo em relação a uma tomada de posição sobre a realidade, caracterizada, sobretudo, pelo tom de denúncia. Nesse sentido, o jornal apresenta uma estratégia para promover sua própria visão do que é cotidiano em uma cidade como o Rio de Janeiro. Ressalta-se que através do enunciado verbovocovisual “Guerra no Rio” a construção dos sentidos de guerra emerge da negação de outros significados da palavra e através da afirmação do seu novo uso como nome da editoria, para tipificar os casos de violência que o veículo irá noticiar a partir daquele momento como “crimes de guerra”. Para Volóchinov (2017, p. 224), “a língua é um processo ininterrupto de formação por meio da interação sociodiscursiva dos falantes”, assim, é 296 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 o uso da palavra em determinado contexto social que irá determinar seu sentido. No caso da palavra guerra, por exemplo, o jornal tenta construir novos sentidos apoiando-se em diversos elementos constituintes do enunciado verbovocovisual como: a entonação de voz dos jornalistas de tristeza e de denúncia; o uso da peça “Sarabande” da suíte para violoncelo N°2 em ré menor de Bach; a imagem das comunidades focadas no estudo realizado pela secretaria de segurança do Rio de Janeiro como espaços exclusivos de violência e de guerra dominadas pelo tráfico e ignoradas pelo estado; a voz do jornal centrada como voz da verdade sobre a realidade social, acima do estado por denunciar a omissão dos governantes; a forma de grafar É GUERRA na capa e na contradição entre denunciar um dossiê secreto do estado que encontra-se publicado em domínio público na internet; entre outros elementos, caracterizam todos a voz sensacionalista do Jornal Extra. A significação, portanto, se encontra no movimento feito pelo uso cultural da palavra guerra e do direcionamento sensacionalista dado pelo jornal ao usá-la. Dessa forma, a palavra não é parte de um sistema de sentidos cristalizados, mas do uso social e histórico que é feito dela. É por essa razão que a palavra guerra apresenta-se como signo ideológico, pois “[o signo ideológico] não é somente uma parte da realidade, mas também reflete e refrata uma outra realidade sendo por isso mesmo capaz de distorcê-la, ser-lhe fiel, percebê-la de um ponto de vista específico e assim por diante” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). Logo, por meio da análise do enunciado verbovocovisual “Guerra no Rio”, pode-se compreender que os sentidos evocados com o uso da palavra guerra pelo jornal revelam, em uma macro instância, que crimes vendem jornais e crimes de guerra podem vender mais jornais. Esse trabalho busca evidenciar, então, como a guerra enunciada pelo jornal é também uma tomada de posição com diversos sentidos, dentre os quais se encontra a guerra enquanto produto a ser comercializado. Agradecimentos A primeira autora agradece ao professor Ms. Thiago de Souza Ferreira, professor de instrumento (bateria e percussão) no Conservatório Estadual de Música Cora Pavan Capparelli (Uberlândia-MG) pelo imprescindível diálogo sobre Johann Sebastian Bach e sua suíte. A segunda autora agradece à CAPES pela concessão de bolsa de estudos para cursar o Mestrado em Estudos da Linguagem na Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão (Processo 1710949). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 297 Contribuição dos Autores Giovanna dos Santos Diniz foi responsável pela ideia do tema e do corpus de análise, bem como das leituras teóricas do jornalismo e da comunicação e parte da análise. Grenissa Bonvino Stafuzza, por sua vez, foi responsável pela fundamentação teórica advinda do Círculo de Bakhtin, descrição e análise do corpus com vistas ao estudo do enunciado verbovocovisual “Guerra do Rio”. Referências ALDÉ, A. A mídia e a Guerra do Iraque. Revista Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 1-14, 2003. BAKHTIN, M.; VOLOSHINOV, V. N. El signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Buenos Aires: Nueva Visión, 1976. BAKHTIN, M. M. Cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. 7. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010. BAKHTIN, M. M. [1979]. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BIRMAN, P. Favela é comunidade? In: SILVA, L. A. M. da (Org). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008. p. 99-114. ISSO NÃO é normal. Jornal Extra, Rio de Janeiro, 16 ago. 2017. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/ isso-nao-normal-21711104.html>. Acesso em: 15 fev. 2018. JOYCE, J. Finnegans Wake. London: Faber and Faber, 1975. GONÇALVES, Luciano de Lima. Letalidade violenta e controle ilegal do território no Rio de Janeiro. Cadernos de Segurança Pública, Instituto de Segurança Pública, Rio de Janeiro, Ano 9, n. 8, jul. 2017. Disponível em: <http://www.isprevista.rj.gov.br/download/Rev20170804.pdf>. Acesso em: 18 fev. 2018. MARQUES DE MELO, J. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. revista e ampliada. Campos de Jordão: Editora Mantiqueira, 2003. 298 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 275-298, 2019 McCOMBS, M. E.; SHAW, D. L. [1972]. A função do agendamento dos media. In: TRAQUINA, N. (Org.). O poder do jornalismo: análise e textos da teoria do agendamento. Coimbra: Minerva, 2000. p. 47-61. MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: uma introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Américo e Sheila Camargo Grillo, São Paulo: Contexto, 2012. PELBART, P. P. Estamos em guerra. São Paulo: N-1 Edições, 2017. (Série de Cordéis Políticos Pandemia) Pignatari, D. O que é comunicação poética. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. PREVEDELLO, C. Representações no jornalismo popular: a cidadania no discurso do Extra (RJ). 2008. 160f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Centro de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Federal de Santa Maria, 2008. REZENDE, Maria Paula. Mídia e Terrorismo: uma análise acerca do papel da mídia no pós-11 de setembro. 2013. Disponível em: <https:// pucminasconjuntura.wordpress.com/2013/11/11/midia-e-terrorismouma-analise-acerca-do-papel-da-midia-no-pos-11-de-setembro>. Acesso em: 18 fev. 2018. SOBRAL, A.; GIACOMELLI, K. Linguagem e ação: a contribuição bakhtiniana em diálogo. In: FERNANDES JÚNIOR, A.; STAFUZZA, G. B. (Org.). Discursividades contemporâneas: política, corpo, diálogo. Campinas: Mercado de Letras, 2017. (Série Estudos da Linguagem, p. 219-254) VOLOCHÍNOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 Jurisprudência sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar: análise pragmático-cognitiva Jurisprudence About the Extension of the Scope of Maria da Penha Law to Heterosexual men as Victims of Domestic and Family Violence: Cognitive-Pragmatic Analysis Fábio José Rauen Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil fabio.rauen@unisul.br Bárbara Mendes Rauen Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil barbararauen@gmail.com Resumo: Analisamos neste artigo jurisprudências sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar. Para dar conta desse objetivo, aplicamos o aparato descritivo e explanatório da teoria de conciliação de metas e da teoria da relevância em cinco acórdãos sobre conflitos de competência selecionados dos tribunais de justiça da região sul do Brasil a partir de 2010. Os resultados sugerem haver uma interpretação categórica segundo a qual a Lei Maria da Penha deve ser aplicada somente em casos onde o sujeito passivo de violência doméstica e familiar é mulher (sexo), de modo que os respectivos processos não devem ser julgados por tribunais especiais. Palavras-chave: pragmática cognitiva; teoria de conciliação de metas; teoria da relevância; Lei Maria da Penha; jurisprudência. Abstract: We analyze in this article the jurisprudence about the extension of the scope of the Law 11.340/06—Maria da Penha Law—to encompass heterosexual men as victims of domestic and family violence. We apply the goal-conciliation and relevance-theoretic descriptive and explanatory apparatus on five selected cases of jurisdiction conflicts from the courts of justice of the southern region of Brazil since 2010. The results suggest a eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.299-332 300 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 categorical interpretation according to which the Law should be applied only in cases where the passive subject of domestic and family violence is female (sex), in such a way the cases should not be judged in special courts. Keywords: cognitive pragmatics; goal-conciliation theory; relevance theory; Maria da Penha law; jurisprudence. Recebido em 07 de março de 2018 Aceito em 1o de maio de 2018 1 Introdução1 A Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – traduz-se em avanço significativo ao proteger mulheres vítimas de violência doméstica e familiar em geral promovida por companheiros e familiares masculinos. Apesar desse mérito inequívoco, persistem aspectos teóricos relevantes sobre sua aplicação, entre os quais o argumento de que fere o princípio da igualdade, uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal (BRASIL, 1988), ao proteger somente vítimas femininas. Mesmo que o dispositivo legal possa ser aplicado com certa latitude a transexuais femininas, travestis, drag queens e transformistas (RAUEN, B., 2017), ainda assim pode deixar em desabrigo vítimas heteroafetivas masculinas. Pelicani (2007) segue justamente esse argumento no artigo A Lei Maria da Penha e o princípio da igualdade: interpretação conforme a Constituição, ao propor harmonizar a Lei Maria da Penha com a Constituição, evitando discutir sua possível inconstitucionalidade e, assim, estender sua aplicação a homens vítimas de violência doméstica e familiar. A extensão do escopo do abrigo da Lei Maria da Penha a vítimas travestis, transexuais e transgêneros do sexo feminino vem sendo acolhida Este artigo foi elaborado como requisito parcial para a conclusão de pesquisa de iniciação científica do Programa Unisul de Iniciação Científica (PUIC). O estudo decorre de pesquisa intitulada Extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens vítimas de violência doméstica e familiar em Pelicani (2007): análise de viés pragmático cognitivo (RAUEN, B., 2015) e está abrigado no Projeto Processos interacionais e conciliação de metas, do Grupo de Pesquisa em Pragmática Cognitiva GPPC (Unisul, IFC, IFSC, Unibave) do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Unisul. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 301 pela jurisprudência e encontra fundamento no caput do artigo 5º da própria Lei em comento, segundo o qual, “para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: [...]” (grifos nossos). Para Rauen e Rauen (2016), a escolha dos itens lexicais ‘mulher’ e ‘gênero’ produz efeitos de sentido. Ao estudarem a interpretação de Dias e Reinheimer (2011) sobre o tema, os autores argumentam que somente “mediante uma interpretação ad hoc do item lexical ‘mulher’ como gênero, o escopo da Lei” pode ser estendido “a travestis, transexuais e transgêneros do sexo feminino”. A extensão proposta por Pelicani (2007) é ainda mais controversa, pois elege como escopo central da Lei Maria da Penha a violência doméstica e familiar em si mesma e deixa em segundo plano o sexo ou o gênero da vítima. No artigo Extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens vítimas de violência doméstica e familiar em Pelicani (2007): análise pragmático-cognitiva (RAUEN; RAUEN, 2018, inédito), estudamos como o argumento da autora é lógica e epistemologicamente elaborado, ficando por verificar qual é a posição que os colegiados de instâncias superiores assumem em lides nas quais se reivindicam o abrigo da Lei a homens heteroafetivos. Posto isso, analisamos neste artigo jurisprudências sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar com base no aparato descritivo e explanatório da teoria de conciliação de metas de Rauen (2013, 2014) e, de modo subjacente, da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1995 [1986]). Em outras palavras, pretendemos investigar como os tribunais acolhem esta hipótese de extensão, observando o contínuo argumentativo que procede da instauração do processo até a publicação do acórdão. Assumindo a teoria de conciliação de metas de Rauen (2013, 2014), este estudo se inscreve em proposição recente no domínio da pragmática cognitiva, no qual processos inferenciais abdutivos guiados por metas presumidas sustentam processos interpretativos dedutivos guiados pelas noções cognitiva e comunicativa de relevância. Posto isso, nossa hipótese é a de que a jurisprudência é guiada por uma meta presumida que não somente visa a pacificar o dissenso sobre determinado tema, mas impõe determinada interpretação da Lei sobre outras, a serem silenciadas e interditadas – exercendo, simultaneamente, vigilância epistêmica e deôntica (SPERBER 302 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 et al., 2010). Por hipótese, essas condições contextuais devem impor constrições sobre as premissas relevantes mobilizadas abdutivamente na argumentação. Assim sendo, este trabalho testa a pertinência das teorias de conciliação de metas e de relevância conjugadas para descrever e explicar a passagem do texto da Lei para o texto da jurisprudência. Para dar conta de todas essas demandas, este texto foi organizado em mais quatro seções, dedicadas a observações sobre o escopo da Lei Maria da Penha, à arquitetura descritivo-explanatória, à análise de cinco jurisprudências selecionadas e às considerações finais. 2 O escopo da Lei Maria da Penha O preâmbulo da Lei Maria da Penha a seguir estampa como objetivo do dispositivo legal a criação de mecanismos para coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Com a Lei, pretende-se amparar vítimas femininas de violência doméstica, familiar e das relações íntimas de afeto e, assim, diminuir a incidência desse tipo de coação. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, 2006, grifos nossos). A promulgação da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006) reverbera inúmeras iniciativas em direção à diminuição da violência doméstica e familiar, incluindo tratados e convenções assinadas pelo país no sentido de amparar os direitos das mulheres. Esse é o caso, por exemplo, da I Conferência Mundial sobre a Mulher (1975), que culmina com a Convenção de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres ou Convenção da Mulher (1984), dispondo sobre os direitos humanos das mulheres, buscando igualdade de gênero e evitando discriminações (PIMENTEL, 1979, p. 2). Mais recentemente, destaca-se a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica ou Convenção de Belém do Pará (1994) que, reconhecendo como fundamentos os Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 303 direitos humanos consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), assume que qualquer violação desses direitos restringe as liberdades fundamentais, desrespeita a Declaração e ofende o princípio da dignidade da pessoa humana (OEA, 1994). Mesmo diante de todo esse esforço, é apenas em 7 de agosto 2006 que se promulga no Brasil uma Lei específica para combater a violência doméstica e familiar contra mulheres: a Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Maria da Penha Maia Fernandes sofria agressões de seu excompanheiro. Entre 1997 e 1998, apoiada pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional e pelo Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher, formalizou denúncia contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA (SOUZA, 2009, p. 25), gerando o Relatório 54/01. Diante da inadimplência e por quedar-se inerte perante a acusação, “o Estado brasileiro se viu obrigado a criar uma Lei que desse amparo às mulheres no âmbito da violência intrafamiliar” (RAUEN, B., 2017, p. 24). Que o escopo da Lei Maria da Penha é o de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher é explícito. Entretanto, a escolha dos itens lexicais ‘mulher’ e ‘gênero’ no art. 5º sugere estender o amparo da Lei a vítimas do gênero feminino como transexuais femininas, travestis, drag queens e transformistas. Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: [...]. (BRASIL, 2006, grifos nossos). Rauen, B. (2017) sugere que essa extensão é acolhida nos tribunais. Estudando dois casos de jurisprudência sobre o tema em Tribunais de Justiça Estaduais e quatro decisões em primeira instância, concluiu que os tribunais admitem a aplicação da Lei nesses casos, fazendo prevalecer a noção de gênero sobre a noção de sexo e amparando esse entendimento nos princípios da igualdade e da defesa da dignidade da pessoa humana. A extensão de escopo para vítimas masculinas, entretanto, encontra resistência mais severa. Para Bianchini (2014, p. 64), a aplicação da Lei 304 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 a homens enquanto sujeitos passivos2 é indevida, uma vez que “são as especificidades da violência de gênero (não vislumbradas quando o homem é vítima) que devem servir de fundamento para a incidência da Lei”.3 Segundo Larrauri (1994 apud BIANCHINI, 2014, p. 64), a violência praticada por mulheres a seus companheiros no âmbito doméstico e familiar possui quatro características em geral: menor intensidade de danos, finalidade de defesa de sua integridade ou da integridade de seus filhos, motivação pontual sem pretensão de castigo ou intimidação do agredido e ausência de produção de temor perdurável. Pelicani (2007), por sua vez, defende uma extensão radical de escopo, independente de vulnerabilidade, e fundamenta sua argumentação no princípio formal de igualdade estampado no art. 5º da Constituição Federal, onde se lê que todos devem ser iguais perante a Lei, e reforçado no inciso I, onde se lê que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, [...]: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; [...]. (BRASIL, 1988, grifos nossos). Conforme a autora, uma vez que a Lei Maria da Penha elege um gênero como objeto de abrigo legal, ela poderia ser objeto de ação de inconstitucionalidade. Para superar esse impasse, Pelicani (2007) propõe harmonizar a Lei à Constituição pelo princípio da igualdade e, desse modo, estender seu escopo de proteção a vítimas de violência doméstica e familiar, independente de sexo ou gênero do sujeito passivo (cf. RAUEN; RAUEN, 2018. Inédito). Mesmo o apelo ao princípio da igualdade pode ser rebatido, uma vez que pode ser tratado como mera isonomia formal. Conforme Caixeta (2011, p. 20), uma “[...] igualdade dita formal tem caráter absoluto, podendo gerar inúmeras injustiças, pois esquece que os destinatários da norma têm suas peculiaridades e diferenças”. A consideração de peculiaridades e diferenças encontra respaldo na definição aristotélica de Conforme Nucci (2013, p. 187), os titulares protegidos pelo tipo penal incriminador violado. 3 Se isso pode estar correto para homens heteroafetivos adultos saudáveis, ainda assim valeria questionar a extensão de escopo em casos de vulnerabilidade, quando a vítima masculina é incapaz, menor ou idosa. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 305 igualdade, segundo a qual devemos dar um tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais na medida de suas desigualdades, embora Tavares (2009, p. 570) ressalve que essa definição é antes hipotética, visto que não informa de que maneira ocorre a distinção entre desiguais e iguais. Segundo Araujo e Nunes Júnior (2003, p. 96): A locução, conquanto correta, parece não concretizar a explicação adequada quanto ao sentido e ao alcance do princípio da isonomia, porque a grande dificuldade reside exatamente em determinar, em cada caso concreto, quem são os iguais, quem são os desiguais e qual a medida dessa desigualdade. Os autores (2003, p. 97) afirmam que é preciso harmonizar três elementos para aplicar corretamente o princípio da igualdade: o critério discriminador, a correlação lógica entre fator discriminador e tratamento jurídico e a afinidade dessa correlação com valores albergados pela Constituição. Maia e Bezerra (2017, p. 1703), por sua vez, posicionam-se da seguinte forma quanto à efetividade do princípio da igualdade: A igualdade efetiva representa a articulação entre a igualdade perante a lei, a redistribuição e o reconhecimento. Nessa perspectiva, revela que a igualdade almejada pela norma não se restringe a um tratamento uniforme a todos, sendo necessário observar as particularidades de cada pessoa individualmente diante das desigualdades do caso concreto, dando passagem às diferenças entre os indivíduos, ou seja, pressupõe tratar diferentemente os desiguais, mas uma diferença que não instigue desigualdades, ao contrário, sob a perspectiva do direito ao reconhecimento. (grifos nossos). Fundamentadas no princípio da igualdade, Maia e Bezerra (2017, p. 1704) argumentam em favor da extensão de escopo da Lei Maria da Penha às transexuais femininas: A igualdade como reconhecimento da pessoa transexual significa o respeito a sua identidade e as suas diferenças, de modo a rechaçar as injustiças sociais que lhes atingem, que as fazem detentoras de menor respeito e prestígio social, em virtude de padrões culturais arraigados que as inferiorizam, que as excluem e as rejeitam, perpetuando a dominação cultural, o não reconhecimento ou mesmo o desprezo da pessoa humana transexual. 306 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 Para Bianchini (2014, p. 129), o artigo 5º caput da Constituição Federal, ao dispor que todos são iguais perante a Lei “sem distinção de qualquer natureza”, viabiliza uma interpretação da Lei Maria da Penha fundamentada na noção de gênero. Textualmente: Os direitos das mulheres são indissociáveis dos direitos humanos: não há que se falar em garantia universal de direitos sem que as mulheres, enquanto humanas e cidadãs, tenham seus direitos específicos respeitados. Tal afirmação é corolário do princípio da igualdade, que determina não poder a Lei fazer qualquer distinção entre indivíduos, o que inclui a distinção entre os sexos ou entre os gêneros. Essa extensão, todavia, não colide com a distinção essencial proposta pela Lei, uma vez que merecem amparo de igual modo mulheres definidas de maneira biológica e social. Postas essas questões, apresentamos na seção seguinte as ferramentas descritivo-explanatórias de que nos utilizaremos na análise das jurisprudências. 3 A arquitetura descritivo-explanatória Assumimos neste estudo que a elaboração de uma decisão de segunda instância pode ser modelada ex-post-fato como produto de um plano de ação intencional em direção à consecução ótima de uma meta. Conforme Rauen (2014), um plano de ação intencional pode ser descrito e explicado em quatro estágios: o primeiro estágio consiste em projetar uma meta e é assumido como axiomático; os demais três estágios consistem em formular, executar e checar pelo menos uma hipótese abdutiva antefactual. Os três primeiros estágios são abdutivos. O estágio [1] equivale a uma descrição do tipo x é Q na qual certo estado x no futuro satisfará uma expectativa de se alcançar certo estado de meta Q. O estágio [2] consiste na abdução de pelo menos uma hipótese do tipo P é Q, contendo uma ação antecedente P provavelmente suficiente para atingir esse estado de meta Q. Segue disso que x é P, estágio [3], e o indivíduo i se sente autorizado a executar a ação P na expectativa de atingir Q.4 Conforme Rauen (2018, p. 17), essa noção de abdução a priori ou antefactual é resultado de uma analogia com abduções explicativas produzidas a posteriori ou pós4 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 307 Os três últimos estágios, por sua vez, são dedutivos, na medida em que a hipótese abdutiva antefactual (P é Q) passa a ser tratada pelo indivíduo i como uma premissa maior no estágio [2], a ação antecedente x é P passa a ser tratada como premissa menor no estágio [3], deduzindose daí a conclusão x é Q no estágio [4]. Essa arquitetura pode ser vista na figura a seguir. FIGURA 1 – Arquitetura abdutivo-dedutiva da teoria de conciliação de metas Abdução [1] Dedução Q [2] P [3] P [4] Q Q’ Nota: Q’ representa a consecução da meta Q. Fonte: Elaboração dos autores. Para ilustrar como isso ocorre, vamos analisar a concessão de liminar em agravo de instrumento do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, de 16 de setembro de 2011, citada por Bianchini (2014, p. 65).5 Nesta liminar, o Des. Dorival Renato Pavan aplica as disposições da Lei Maria da Penha por analogia, deferindo solicitação de proibição de aproximação de esposa agressora, de quem o marido está em processo de separação. A primeira etapa da análise consiste em arbitrar a meta em questão. Dado que o Des. Dorival Renato Pavan provê agravo de instrumento, assumiremos que sua meta Q é a de julgar procedente agravo de instrumento impetrado por vítima homem de agressora mulher nos termos da Lei Maria da Penha.6 Para atingir essa meta Q, ele abduz que a decisão deve aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa P. factuais: “Em abduções explicativas, os indivíduos i observam um evento Q e, ex-postfacto, estabelecem uma hipótese de conexão nomológica entre certa causa antecedente P e esse evento, que é tomado como um estado consequente Q decorrente dessa causa antecedente P.” Decorre disso que a causa P é a melhor explicação (ou, pelo menos, uma explicação ótima ) para a emergência desse evento consequente Q (PSILLOS, 2002; HARMAN, 1965). 5 Essa liminar não compõe o corpus de jurisprudências selecionadas neste estudo. 6 Cabe aqui explicar que a definição de metas e submetas de um plano de ação intencional tem de ser arbitrada conforme o nível de acuidade exigido pela descrição. Sempre é 308 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 Segue disso que ele executa essa ação P em direção ao provimento do agravo de instrumento Q’. [1] Q – Julgar procedente agravo de instrumento impetrado por vítima homem de agressora mulher nos termos da Lei Maria da Penha, Desembargador. [2] P – Aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa, Desembargador. [3] P – O Desembargador aplica a Lei Maria da Penha por analogia inversa. [4] Q – Julgar procedente agravo de instrumento impetrado por vítima homem de agressora mulher nos termos da Lei Maria da Penha, Desembargador. Q’ – O Desembargador julga procedente agravo de instrumento impetrado por vítima homem de agressora mulher nos termos da Lei Maria da Penha. Conforme Rauen (2014), dois conceitos emergem no quarto estágio do modelo: o conceito de conciliação de metas e o conceito de confirmação de hipóteses. Há conciliação de metas7 sempre que o estado Q’ do ambiente satisfaz, coincide com ou corresponde com a meta Q e inconciliação de metas nos casos onde isso não ocorre. Visto que a ação antecedente pode ou não ser executada, há (in)conciliações ativas em casos de ação e (in)conciliações passivas em casos de inação. No caso em pauta, dado que a decisão acolhe o agravo de instrumento aplicando a Lei Maria da Penha por analogia inversa, podemos dizer que, do ponto de vista do Desembargador, houve uma conciliação ativa. Há confirmação de uma hipótese abdutiva antefactual sempre que o estado da realidade Q’ satisfaz, coincide com ou corresponde com a hipótese abdutiva antefactual Ha, de forma que o resultado da ação P a reforça.8 No caso em pauta, houve confirmação de hipótese, pois, do possível, reconhecemos, não somente considerar submetas cada vez mais detalhadas como também metas de nível mais alto. 7 O termo metas está sendo usado em sentido próximo do utilizado em Ciências Contábeis em termos como conciliação bancária ou de balanço. 8 Conforme o autor, quando a ação P é suficiente, necessária e certa para a consecução Q, as hipóteses são categóricas P⇔Q; quando a ação P é suficiente, necessária, mas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 309 ponto de vista do Desembargador, a elaboração do provimento reforça a hipótese que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada por analogia inversa a casos de vítimas homens de agressoras mulheres. O exemplo, até aqui, revisa o que Rauen (2014) chama de autoconciliação, uma vez que o Desembargador, ele mesmo, elabora a hipótese abdutiva antefactual de aplicação da Lei Maria da Penha por analogia inversa e verifica a pertinência dessa hipótese para a conciliação de sua meta. Aspecto diverso é a interpretação dessas consecuções por outras pessoas, que é abrigada pelo conceito de heteroconciliação, especialmente porque a interpretação da Lei Maria da Penha por analogia inversa habilita em caráter liminar a utilização dos dispositivos da Lei Maria da Penha para proteger o marido vítima de agressão, mas não garante seu acolhimento. Conforme Rauen (2014), toda heteroconciliação de metas demanda por processos comunicacionais sem os quais é impossível às outras pessoas avaliarem a consecução de metas e a confirmação de hipóteses abdutivas antefactuais. Para descrever e explicar esses processos em teoria de conciliação de metas, consideram-se três camadas de intenções, de tal forma que todo estímulo comunicativo corresponde a uma intenção comunicativa superordenada por uma intenção informativa superordenada por pelo menos uma intenção prática. No caso em pauta, a intenção prática P de aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa – como subetapa da meta de nível mais alto Q de julgar procedente agravo de instrumento – superordena uma intenção informativa de tornar manifesta ou mais manifesta essa proposição à audiência; e esta intenção informativa superordena a intenção comunicativa de, mediante a formulação do voto, tornar mutuamente manifesto para ambos, desembargador e audiência, que o desembargador comunica essa proposição.9 Para a audiência avaliar a proposição do desembargador, é preciso recuperar essas camadas de intenções. Para esse propósito, a teoria de não é certa para a consecução Q, as hipóteses são bicondicionais P↔Q; quando a ação P é suficiente, mas não é necessária para a consecução Q, as hipóteses são condicionais P→Q; quando a ação P é necessária, mas não é suficiente para a consecução Q, as hipóteses são habilitadoras P←Q; e, por fim, quando a ação P não é nem suficiente nem necessária para a consecução Q, as hipóteses são tautológicas P-Q. 9 Sobre as noções de manifestabilidade e manifestabilidade mútua, ler Sperber e Wilson (1995, p. 38-46). 310 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 conciliação de metas apropria-se do mecanismo de compreensão guiado pela noção teórica de relevância. Em teoria da relevância, define-se por relevância uma função entre efeitos cognitivos positivos maximizados e esforços de processamento minimizados. Os efeitos cognitivos positivos, ou seja, efeitos que contribuem positivamente para o preenchimento de funções ou objetivos cognitivos, são gerados quando processamos um estímulo num contexto de suposições cognitivas prévias. Um estímulo pode fortalecer essas suposições, contradizer e eliminá-las ou ainda gerar implicações – conclusões inferenciais que decorrem da combinação desses estímulos com o contexto cognitivo. Admite-se que, em idênticas as condições, a relevância é maior quando os efeitos cognitivos positivos são maiores e os esforços de processamento necessários para gerar esses efeitos são menores.10 A teoria da relevância organiza-se em dois princípios: o princípio cognitivo de que a mente humana maximiza os efeitos cognitivos e o princípio comunicativo de que enunciados, enquanto estímulos ostensivos abertos, são presumidos como otimamente relevantes. Um enunciado é otimamente relevante quando é pelo menos suficientemente relevante para merecer processamento e quando é o estímulo mais relevante que o falante se dispôs a ou foi capaz de produzir. Admitindo-se essa presunção, o intérprete segue uma rota de esforço mínimo com base na decodificação linguística, enriquece o estímulo para obter um significado explícito, sempre que necessário, e completa esse significado em nível implícito, sempre que pertinente. Procedimento de compreensão guiada pela noção teórica de relevância Siga um caminho de menor esforço na computação de efeitos cognitivos: 2a. Considere interpretações em ordem de acessibilidade; 2b. Pare quando sua expectativa de relevância é satisfeita. (WILSON, 2004, lição 5, p. 1). Sobre as noções de efeitos cognitivos positivos e esforço de processamento, ler especialmente o posfácio da 2ª edição de Relevance: communication and cognition (SPERBER, WILSON, 1995). Há uma tradução brasileira deste texto em Sperber e Wilson (2005). 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 311 Como relata Bianchini (2014, p. 65),11 tendo verificado haver provas suficientes das agressões físicas e psicológicas, o desembargador usou cinco premissas para o acolhimento do agravo de instrumento, dentre as quais destacamos um excerto da primeira premissa. Para dar conta de como se dá a interpretação do excerto conforme o procedimento de compreensão guiado pela relevância, ele foi descrito em quatro versões progressivamente mais complexas. Na versão (1a), representamos a forma linguística do enunciado; na versão (1b), encaixamos a estrutura linguística do enunciado em uma forma lógica; na versão (1c), desenvolvemos a forma lógica a fim de obter sua explicatura; e, na versão (1d), encaixamos a explicatura numa descrição de nível mais alto, que leva em conta a atitude proposicional do falante:12 (1a) Forma Linguística: A inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito, [...]. (1b) Forma Lógica: (ser x (prever x, z), y). (1c) Explicatura:13 A inexistência de regra específicax que [regra específica ] x preveja medida protetiva de não aproximação Não obtivemos acesso ao acórdão ou às informações posteriores sobre o processo. Em nota de rodapé, a autora cita o endereço <http://www.tjms.jus.br/notícias/materia. php?cod=20132> e a data de acesso 2 ago. 2012. 12 A descrição em quatro etapas sucessivas não deve levar a inferir que a audiência segue essa ordem na interpretação de enunciados, ou seja, primeiro processando a forma linguística para então processar a forma lógica, a explicatura e a atitude proposicional. Assumindo a hipótese de que um conceito cognitivo pode ser acessado por entradas linguísticas, lógicas e lexicais pelo menos, o processamento de um enunciado consiste, em essência, no emparelhamento de entradas linguísticas fornecidas pelo estímulo ostensivo com entradas enciclopédicas da memória, no contexto de uma estrutura ou forma lógica constituída de entradas lógicas. Conforme prevê o procedimento de compreensão guiado pela relevância, esse processo ocorre em ordem de acessibilidade de modo que os estímulos ostensivos linguísticos, na medida em que são processados, fornecem pistas para a atribuição de entradas lógicas, e a formulação lógica fornece hipóteses sobre o emparelhamento de entradas enciclopédicas adequadas e hipóteses antecipatórias sobre a estrutura sintática subsequente e, desse modo, hipóteses antecipatórias sobre entradas linguísticas e enciclopédicas subsequentes. 13 Conforme Silveira e Feltes (2002, p. 18), apresentamos entre aspas simples as expressões linguísticas quando referenciadas (‘Maria’), em versalete minúsculo as entradas enciclopédicas (maria) e sem qualquer indicativo as referências no mundo (Maria). 11 312 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) [vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar]z não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito [de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar]y. (1d) Explicatura expandida: o desembargador dorival renato pavan afirma que a inexistência de regra específica que [regra específica ] preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens ( gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar. Para interpretar a premissa em pauta, assumimos que o intérprete encaixa o enunciado linguístico (1a) numa forma lógica (1b) segundo a qual algo x é algo y, tal que esse algo x prevê algo z. Na versão (1c), por sua vez, vemos como essa forma lógica vai sendo sucessivamente enriquecida para tornar-se plenamente proposicional e, assim, constituir-se como explicatura do enunciado do juiz.14 Para isso, é necessário atribuir o referente regra específica ao pronome relativo ‘que’ da sentença encaixada; atribuir o referente vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar aos itens lexicais ‘homens’ e ‘gênero masculino’, uma vez que a eles se refere a suposta previsão da lei; e atribuir referente concessão de medida protetiva... ao item lexical ‘pleito’. Além disso, o intérprete encaixa essa explicatura numa descrição de nível mais alto (1d) que inclui o ato de fala, algo como o desembargador afirma que P, tal que P equivale à respectiva explicatura. Admitindo-se a correção da descrição em (1d), perceberemos que sua enunciação só faz sentido se a audiência for capaz de encaixá-la Conforme a teoria da relevância, em geral, os enunciados linguísticos são menos que plenamente proposicionais. Em função disso, eles necessitam ser on-line e pragmaticamente interpretados para constituírem uma proposição completa para a qual é possível atribuir um valor de verdade. Por explicatura de um enunciado, define-se essa proposição completa passível de ser verdadeira ou falsa. 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 313 numa cadeia inferencial contendo premissas e conclusões implicadas15 cujo resultado é o acolhimento do agravo de instrumento. Algo como: S116 – O Desembargador Dorival Renato Pavan afirma que a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar (premissa implicada derivada da explicatura do enunciado do desembargador). S 2 – A Lei Maria da Penha prevê medidas protetivas de não aproximação destinadas ao resguardo dos direitos das mulheres (gênero feminino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar (premissa implicada da memória enciclopédica). S3 – As medidas protetivas de não aproximação destinadas ao resguardo dos direitos das mulheres (gênero feminino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar Lei Maria da Penha pode ser aplicada por analogia a homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3).17 S4 – As medidas protetivas de não aproximação destinadas ao resguardo dos direitos das mulheres (gênero feminino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar Lei Maria da Penha Sperber e Wilson (1995 [1986]) assumem que os cálculos inferenciais são formados por suposições S1-Sn concebidas, conforme o caso, como premissas ou conclusões implicadas. 16 Por razões de caráter estético, as suposições, embora compostas exclusivamente por entradas enciclopédicas, não estão escritas em versalete ou caixa alta. 17 Em teoria da relevância, admite-se que há um módulo interpretativo de caráter dedutivo com livre acesso a suposições da memória ou do ambiente. Este módulo opera, entre outras, por regras como as de eliminação-e e modus ponens. Numa regra de eliminação-e, se consideramos verdadeiras duas suposições P e Q em conjunto, cada uma delas é verdadeira em separado. Em termos próprios da lógica proposicional: “P∧Q, P” ou “P∧Q, Q” (tal que ∧ representa a operação lógica de adição). Numa regra de modus ponens, onde há uma relação de implicação entre duas suposições P e Q, se a primeira suposição é afirmada P, segue-se necessariamente a afirmação da segunda suposição Q. Em termos próprios da lógica proposicional: “P→Q, P, Q” (tal que → representa a operação lógica de implicação). Por vezes, é possível combinar as duas regras como é o caso do modus ponens conjuntivo: “(P∧Q) →R, P→R, R” ou então “(P∧Q) →R, Q→R, R”. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 314 podem ser aplicadas por analogia à lide (conclusão implicada por modus ponens: S3→S4). Assumindo que a suposição S1 representa a intenção comunicativa e que S4 representa a intenção prática em questão, essa cadeia de inferências pode ser descrita em termos de um plano de ação intencional da seguinte forma. Intenção Comunicativa Intenção Informativa [1] Intenção Prática P – Aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa, Desembargador. [2] O – Informar que a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar, desembargador. [3] N – Afirmar que a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar, desembargador. O – Informar que a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar, desembargador. P – Aplicar a Lei Maria da Penha por analogia inversa, desembargador. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 315 [4] N – O desembargador afirma: “A inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) não é justificativa plausível ao indeferimento de tal pleito”. [5] [6] O’ – O desembargador informa que a inexistência de regra específica que preveja medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar não é justificativa plausível ao indeferimento do pleito de concessão de medida protetiva de não aproximação destinada ao resguardo dos direitos dos homens (gênero masculino) vítimas de agressão no âmbito doméstico e familiar. P’ – O desembargador aplica a Lei Maria da Penha por analogia inversa. Em síntese, o plano de ação intencional do desembargador consiste de acolher o agravo de instrumento aplicando a Lei Maria da Penha por analogia inversa. Para sustentar essa decisão, ele assume como premissa a inexistência de regra protetiva para o resguardo de vítimas masculinas. Havendo dispositivos na Lei Maria da Penha aplicáveis em circunstâncias similares a mulheres vítimas de agressão doméstica e familiar, em tese, eles podem ser aplicados a homens por analogia. Se isso é verdadeiro em abstrato, é verdadeiro para a lide em questão, razão pela qual resta justificado o pleito. 316 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 4 Análise das jurisprudências Conhecidas, ainda que em linhas gerais, as arquiteturas descritivoexplanatória da teoria de conciliação de metas e da teoria da relevância, estamos em condições de analisar os casos de jurisprudência sobre o tema. Como vimos, o caso destacado por Bianchinni (2014) defere por analogia a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha à vítima masculina de violência doméstica e familiar. Todavia, consulta no acervo de jurisprudências dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná sugere entendimento inverso. Diante da quantidade de acórdãos que caminhavam no mesmo sentido, optamos por selecionar cinco jurisprudências contendo conflitos de competência entre varas especiais que tratam de casos da Lei Maria da Penha e varas que abrangem demais situações do Direito Penal. Assumindo que as cinco decisões de segunda instância podem ser modeladas pela arquitetura abdutivo-dedutiva de Rauen (2014), todas elas visam a julgar procedente o conflito de competência – a meta prática Q de nível mais alto em questão. O voto dos relatores sugere uma argumentação em dois níveis. Para julgar procedente o conflito, eles argumentam pela inaplicabilidade da Lei Maria da Penha aos casos (submeta P) e, para concluir que a Lei é inaplicável aos casos, eles destacam que os sujeitos passivos são homens (submeta O). [1] Q – Julgar procedente conflito de competência, desembargador. [2] [3] P – Argumentar que a Lei Maria da Penha é inaplicável aos casos, desembargador. O – Destacar o fato de que o sujeito passivo nos casos é homem, desembargador P – Argumentar que a Lei Maria da Penha é inaplicável aos casos, desembargador. Q – Julgar procedente conflito de competência, desembargador. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 [4] 317 O – O desembargador destaca o fato de que o sujeito passivo nos casos é homem. [5] P’ – O desembargador argumenta que a Lei Maria da Penha é inaplicável aos casos. [6] Q’ – O desembargador julga procedente conflito de competência. Apresentado em linhas gerais como se organiza o plano de ação intencional nessas decisões, vale identificar como ocorre a argumentação. A rigor, e supostamente porque se trata de uma lide entre heteroafetivos, o que se percebe é um recuo a uma interpretação default ou mais “literal” do item lexical ‘mulher’ no texto do art. 5º da Lei, enquanto ser humano do sexo feminino. Dado que a vítima de agressão não é mulher, resta concluir por negação do consequente ou modus tollendo tollens18 que a Lei é inaplicável às lides em questão. Esse primeiro raciocínio pode ser modelado pelo seguinte argumento condicional: P→Q Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então a vítima deve ser mulher. ¬Q A vítima não é mulher (neste caso). ¬P A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada (neste caso). Uma vez que a Lei Maria não deve ser aplicada a vítimas masculinas, conclui-se que o conflito de competência é procedente. Esse Conforme Rauen (2015, p. 91), “por negação do consequente ou modus tollendo tollens (significando ‘modo de negar o negado’) define-se um argumento condicional válido que consiste em negar o conteúdo da proposição consequente na segunda premissa. A ideia é que, ao destruir a proposição condicionada ou consequente, destróise a condição antecedente” (itálicos no original). 18 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 318 segundo raciocínio pode ser modelado por afirmação do antecedente ou modus ponendo ponens.19 ¬P→Q Se a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada, então o conflito de competência é procedente. ¬P A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada (neste caso). Q O conflito de competência é procedente (neste caso). Apresentada a linha de argumentação, estamos agora em condições de verificar como esses planos convertem-se em intenções informativas e comunicacionais nos cinco acórdãos selecionados. Nesse propósito, para efeitos de simplificação da exposição, julgamos que o leitor é capaz de inferir que estamos assumindo dois pressupostos em cada uma das análises. O primeiro deles é o de que, do ponto de vista da teoria de conciliação de metas, os textos dos relatórios consistem em estímulos ostensivos comunicacionais (a intenção comunicativa propriamente dita) com os quais os desembargadores tornam mutuamente manifesto para eles próprios e para a audiência (notadamente, os demais juízes e as partes litigantes) que eles tornaram manifesto certo conjunto de informações {I} (a intenção informativa) que, por sua vez, está a serviço de intenções práticas. O segundo deles é o de que, do ponto de vista da teoria da relevância, a interpretação dos estímulos comunicacionais pode ser descrita e explicada pelo procedimento de compreensão guiado pela relevância, de tal modo que esses enunciados podem ser encaixados em formas lógicas, a partir dessas formas lógicas podem ser depreendidas as respectivas explicaturas e, a partir dessas explicaturas assumidas como premissas implicadas, podem ser derivadas cadeias de implicaturas. A primeira jurisprudência20 refere-se a inquérito policial sobre suposta ameaça praticada por A. A. G. e V. L. G. contra M. R. V.21 Os Confira-se a nota 16. PARANÁ. Tribunal de Justiça. Conflito de competência crime nº 647.834-8. Relator: Des. Luiz Osório Moraes Panza, 25 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www. tjpr.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. 21 Embora públicos, optamos por abreviar os nomes dos litigantes. 19 20 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 319 autos foram remetidos ao 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, e o Juízo determinou a remessa do feito ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. O conflito de competência, que obtém parecer favorável da Procuradoria Geral de Justiça, decorre do fato de a vítima ser do sexo masculino. O Des. Luiz Osório Moraes Panza inicia seu relatório retomando a ementa da Lei Maria da Penha. Em seguida, destaca os sujeitos ativos e passivos a que a Lei se refere. Esta lei aplica-se sempre quando se tratar de violência cometida no âmbito das relações domésticas e familiares, [...], independentemente do gênero do sujeito ativo. Contudo, no que tange ao sujeito passivo, a questão é resolvida de forma bastante simples ao verificarmos que a Lei Maria da Penha, em toda a sua redação, refere-se apenas à mulher como vítima. (grifos nossos). Como se pode observar, ao definir “de forma bastante simples” que o sujeito passivo tem de ser mulher, o desembargador conclui que a lei é inaplicável ao caso. S1 – A Lei Maria da Penha refere-se [Lei Maria da Penha] apenas à mulher como vítima de violência cometida no âmbito das relações domésticas e familiares em toda a sua [da Lei Maria da Penha] redação (premissa implicada derivada da explicatura do enunciado do desembargador). S2 – A vítima M. R. V. é homem no conflito de competência22 (premissa implicada proveniente da memória enciclopédica ou dos estímulos ostensivos dos autos). S3 – As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha não devem ser aplicadas no conflito de competência porque a vítima M. R. V. é homem (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3). A rigor: “no conflito de competência entre o 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba e o Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher”. Neste e nos demais casos de remissão às lides, optamos por simplificar a exposição. 22 320 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 Segundo o desembargador, “como o próprio nome diz”, compete ao Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher processar e julgar os “crimes decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e respectivas medidas protetivas de urgência”. Sendo assim, decide-se que a “a competência para processar e julgar o presente caso se firme no 2ª Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba”, razão pela qual e com máxima urgência, devem-se “adotar as providências necessárias no sentido de agilizar a marcha processual”. A respectiva cadeia de inferências pode ser assim modelada. S1 – As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha não devem ser aplicadas no conflito de competência porque a vítima M. R. V. é homem (premissa implicada). S 2 – O Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher não é competente para julgar o caso de M. R. V. (conclusão implicada por modus ponens: S1→S2). S3 – O conflito de competência procede (conclusão implicada por modus ponens: S2→S3). S 4 – A competência para processar e julgar o presente caso deve firmar-se no 2ª Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (conclusão implicada por modus ponens: S3→S4). S5 – O 2º Juizado Especial Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba deve adotar as providências necessárias no sentido de agilizar a marcha processual (conclusão implicada por modus ponens: S4→S5). A segunda jurisprudência refere-se a conflito negativo de competência suscitado pelo Dr. Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da Comarca de Pelotas face a redistribuição do feito determinada pelo Dr. Juiz de Direito do JECRIM23 da mesma Comarca, ao entender que a competência para julgamento é do Dr. Juiz de Direito do JECRIM.24 Segundo o suscitante, o feito trata, em tese, de crimes tipificados nos Por JECRIM, sigla de Juizado Especial Criminal, define-se um órgão da Justiça Ordinária com competência para julgar crimes considerados de menor potencial ofensivo. 24 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de Jurisdição nº 70044908549. Relator: Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, 10 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. 23 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 321 artigos 147 e 163 do Código Penal. Uma vez que o sujeito ativo neste processo é M. S. C., de 26 anos, e o sujeito passivo é seu pai N. P. C., de 60 anos, argumenta que a Lei Maria da Penha não se aplica ao caso. A Procuradoria de Justiça opinou pela procedência do conflito. O Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa começa seu voto, tornando mutuamente manifesto o Boletim de Ocorrência 6047/2010 da Delegacia de Polícia Civil de Pelotas, que originou o procedimento. Segundo Canosa, “Resulta, daí, que há noticia criminis relativa à prática dos delitos de dano e ameaça, sendo apontado como autor M. S. C. (filho da vítima), constando como vítima seu pai, N. P. C.” (grifos no original, abreviaturas nossas). Em seguida, o desembargador profere sua conclusão: “Constando como vítima um homem – no caso, o pai do acusado –, não há incidência da Lei 11.340/06”. Para fundamentar sua decisão, Canosa opta por tornar mutuamente manifesto três casos precedentes da Corte. “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. VÍTIMA. HOMEM. A lei Maria da Penha foi criada para dar proteção à mulher. Quando a vítima do crime for um homem, não se aplica a Lei Maria da Penha.. CONFLITO DE COMPETÊNCIA PROCEDENTE.” (Conflito de Jurisdição Nº 70042334987, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 19/05/2011) - destaquei “CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE MAUS TRATOS PRATICADO PELA MÃE CONTRA O CASAL DE FILHOS. NÃO INCIDÊNCIA DA LEI 11.340/06. Havendo estatuto próprio de proteção da criança vítima de violência, não se pode aplicar indistintamente uma lei criada com a finalidade de proteger a mulher da violência masculina, em razão, principalmente, da sua inferioridade física. Aliado a isso, a aplicação da Lei Maria da Penha só ocorre quanto aos fatos praticados por homem contra mulher, o que inocorre in casu, devendo o feito ser apreciado pelo juízo comum suscitado. CONFLITO NEGATIVO JULGADO PROCEDENTE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO.” (Conflito de Jurisdição Nº 70046682498, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em 09/02/2012) - destaquei 322 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 “CONFLITO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LEI Nº 11.340/06. DESCABIMENTO. JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL COMPETENTE PARA INSTRUIR E JULGAR O FEITO. AUSÊNCIA DE FATOS QUE ENSEJEM A INCIDÊNCIA DAS MEDIDAS PREVISTAS NA LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DE HOMEM CONTRA HOMEM. RÉU DENUNCIADO POR INFRAÇÃO AO ART. 129, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL, AINDA QUE, EM TESE, O FATO DEVESSE SER ENQUADRADO NO § 9º DAQUELE DISPOSITIVO. Conflito de jurisdição julgado improcedente.” (Conflito de Jurisdição Nº 70040055972, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Manuel José Martinez Lucas, Julgado em 16/03/2011) – destaquei. (grifos no original). Em comum, os três casos precedentes da corte referem-se à inaplicabilidade da Lei quando o sujeito passivo é homem, seja adulto, seja criança, independentemente de o sujeito ativo ser mulher ou homem. Segue disso o voto no sentido de “julgar procedente o conflito, para fixar como competente para exame da matéria o Juiz de Direito do JECRIM da Comarca de Pelotas”. Posto isso, o argumento pode ser assim modelado. S1 – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada em casos nos quais a vítima é homem (premissa implicada). S2 – Três precedentes da Corte consideram inaplicável a Lei Maria da Penha em casos de vítimas masculinas (premissa implicada). S3 – A vítima é homem no conflito de jurisprudência entre 3ª Vara Criminal da Comarca de Pelotas e o JECRIM da Comarca de Pelotas (premissa implicada). S4 – O conflito de jurisprudência entre a 3ª Vara Criminal da Comarca de Pelotas e o JECRIM da Comarca de Pelotas é procedente (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2∧S3→S4). S 5 – O Juiz de Direito do JECRIM da Comarca de Pelotas é competente para julgar o caso (conclusão implicada por modus ponens: S4→S5). A terceira jurisprudência trata de conflito de competência, com parecer favorável da Procuradoria de Justiça, suscitado pelo Juiz da 2ª Vara Criminal de Caxias do Sul, contra decisão do magistrado do Juizado Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 323 Especial Criminal, que “determinou a redistribuição do feito àquele Juízo, por entender tratar o caso dos autos de matéria relativa à violência doméstica e familiar contra a mulher”.25 O caso refere-se à prática do delito de ameaça de A. F. S. contra J. M. O., seu ex-companheiro. O Des. Luiz Mello Guimarães relata que o conflito de competência deve prosperar, uma vez que considera “não ser aplicável na hipótese dos autos a Lei nº 11.340/2006,26 pois a vítima, no caso, é do sexo masculino” (grifo nosso). Nesse excerto, o argumento subjacente pode ser assim modelado: S1 – A vítima J. M. O. no caso de conflito de competência suscitado pelo Juiz da 2ª Vara Criminal de Caxias do Sul contra decisão do magistrado do Juizado Especial Criminal é do sexo masculino (premissa implicada com base na explicatura dos enunciados do desembargador). S2 – A Lei nº 11.340/2006 [Lei Maria da Penha] não é aplicável na hipótese dos autos conflito de competência (conclusão implicada por modus ponens S1→S2). S 3 – O conflito de competência deve prosperar (conclusão implicada por modus ponens S2→S3). A constatação de que a vítima é homem sustentará, em seguida, o encaminhamento do processo para o Juizado Especial Criminal de Caxias do Sul. Ora, o juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher não é competente para o julgamento de crime de ameaça, mesmo que no âmbito doméstico, contra a vítima homem. [...]. Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o conflito de competência para declarar competente o juízo do Juizado Especial Criminal da Comarca de Caxias do Sul. Esse argumento pode ser assim modelado: RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70062842471 (n° CNJ: 0476810-53.2014.8.21.7000). Relator: Des. Luiz Mello Guimarães, 12 de fevereiro de 2015. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. 26 Mais adiante, o desembargador afirma que “Assim, em sendo vítima um homem – no caso, o ex-companheiro da acusada –, não há incidência da Lei 11.340/06”, citando o artigo 5º da Lei 11.340/06 como fundamento. 25 324 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 S1 – A vítima J. M. O. no caso de conflito de competência é do sexo masculino (premissa implicada com base na explicatura dos enunciados do desembargador). S 2 – O juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher não é competente para o julgamento de crime de ameaça contra a vítima homem mesmo que no âmbito doméstico (premissa implicada com base na explicatura dos enunciados do desembargador). S3 – Guimarães julga procedente o conflito de competência de competência para declarar competente o juízo do Juizado Especial Criminal da Comarca de Caxias do Sul (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3). O quarto caso refere-se a “recurso de apelação interposto em face do indeferimento de medidas protetivas pleiteadas em favor de D. S. G.” (abreviatura nossa)27. O apelante argumenta ser vítima de violência doméstica e que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada por analogia por tratar-se de idoso vulnerável. O Des. Jayme Weingartner Neto assim se posiciona: A fixação de competência no âmbito dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, criados pela Lei 11.340/06, depende da análise de três vetores que indicam, quando presentes de forma cumulativa, a incidência da cognominada Lei Maria da Penha. A um, a existência de relação íntima de afeto entre agressor e vítima; a dois, a violência de gênero, direcionada à prática delitiva contra mulher; e, a três, a situação de vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor. No caso dos autos, tratando-se de vítima do sexo masculino, inviável reconhecer a incidência da Lei nº 11.340/06 que visa coibir a violência de gênero. Portanto, em se tratando de lei que visa à proteção especial às mulheres, inviável acolher o presente pleito. (negritos no original). RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação crime nº 70063020689 (n° CNJ: 0494631-70.2014.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 11 de março de 2015. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. 27 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 325 Neste excerto, observamos que o desembargador apresenta no consequente do condicional28 a conjunção de, nos seus termos, três vetores para a aplicação da Lei Maria da Penha: relação íntima de afeto entre agressor e vítima, violência de gênero direcionada à prática delitiva contra mulher e situação de vulnerabilidade da vítima em relação ao agressor. Isso implica dizer que, conforme o relator, a Lei somente pode ser aplicada na presença cumulativa dos vetores. O caso não atende explicitamente ao segundo consequente do enunciado condicional, ou seja, trata-se de “vítima do sexo masculino”. Resta evidente que, “em se tratando de lei que visa à proteção especial às mulheres”, é “inviável acolher o presente pleito”.29 S 1 – O desembargador afirma que a fixação de competência para julgar casos de violência doméstica e familiar no âmbito dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, criados pela Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha], depende da análise de três vetores [relação íntima de afeto, violência de gênero contra mulher e vulnerabilidade] que [relação íntima de afeto, violência de gênero contra mulher e vulnerabilidade] indicam, quando [relação íntima de afeto, violência de gênero contra mulher e vulnerabilidade] estão presentes de forma cumulativa em casos de violência doméstica e familiar, a incidência da cognominada Lei Maria da Penha [Lei 11.340/06] (premissa implicada derivada da explicatura do primeiro enunciado do voto do desembargador). S2 – O desembargador vota que é inviável reconhecer a incidência da Lei nº 11.340/06 [Lei Maria da Penha] que [Lei Maria da Penha] visa coibir a violência de gênero no âmbito doméstico e familiar no caso dos autos de apelação interposto em face do indeferimento de medidas protetivas pleiteadas em favor de D. Dada uma formulação condicional padrão do tipo ‘Se P, então Q’ ou ‘P implica Q’, definem-se por antecedentes do condicional os termos representados por P que sucedem a conjunção ‘se’ e definem-se por consequentes do condicional os termos representados por Q que sucedem a conjunção ‘então’. 29 Para reforçar o argumento, o desembargador acrescenta decisão precedente do STJ, segundo a qual o “sujeito passivo da violência doméstica, objeto da referida lei, é a mulher” e do TJ/RS, segundo a qual “a Lei nº 11.340/2006 se aplica em proteção apenas às vítimas do sexo feminino, de modo que as medidas protetivas de urgência por ela reguladas não podem ser requeridas pelo homem em desfavor da mulher”. 28 326 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 S. G., uma vez D. S. G tratando-se de vítima do sexo masculino (conclusão implicada por modus ponens S1→S2). S3 – O desembargador vota que é inviável acolher o pleito de recurso de apelação interposto em face do indeferimento de medidas protetivas pleiteadas em favor de D. S. G (conclusão implicada por modus ponens S2→S3).30 O quinto caso refere-se a “conflito de competência suscitado pelo Juiz de Direito da 6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre contra o Juiz de Direito do 1º Juizado Especial Criminal do Foro Central de Porto Alegre”, que também foi analisado pelo Des. Jayme Weingartner Neto.31 O Desembargador inicia seu voto colacionando parecer do Procurador de Justiça para, nos seus termos, “evitar tautologia”. Seguem excertos do parecer. Ocorre que, no caso, não se trata de delito previsto no âmbito da Lei 11.340/06. Não houve violência de homem contra mulher, houve, em tese, lesão corporal de natureza leve e ameaça praticadas por uma mulher contra um homem. A Lei Maria da Penha trata da violência contra a mulher no âmbito familiar, mais especificamente, da violência de homem contra mulher. Logo, por não se tratar, no caso, de fato relacionado à violência do gênero, não está paliado por tal diploma legal. O sujeito passivo da violência doméstica, objeto da Lei 11.340/06, é a mulher, de modo que, em se tratando de vítima de gênero masculino, não se aplica tal diploma legal, o que retira a competência do juízo suscitante. [...] Dessa forma, está-se a tratar, em tese, diante dos delitos previstos no art. 129, caput, e 147, ambos do Código Penal, a competência Em lógica proposicional, esse argumento poderia ser assim modelado: P→(Q∧R∧S) – Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então dever haver relação íntima de afeto, violência de gênero contra mulher e vulnerabilidade; ¬R – Não há violência de gênero contra mulher neste caso; ¬P – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso; ¬P→T – Se a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso, então é inviável acolher apelação; T – É inviável acolher apelação. 31 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70075577759 (nº CNJ: 0321890-19.2017.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 29 de novembro de 2017. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. 30 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 327 para julgar o fato é do Juizado Especial Criminal, ope legis.32 (grifos no original). Nesse voto mais recente, Weingartner Neto produz um argumento condicional diferente daquele exarado em 2015. A aplicação da Lei Maria da Penha agora só é admitida quando houver “relações domésticas e familiares” e violência contra mulher. Nos seus termos, “ainda que se trata de delito envolvendo relações domésticas e familiares”, o caso se refere a “vítima do sexo masculino”, razão pela qual é “inviável a aplicação do rito da Lei Maria da Penha” e, por consequência, a competência do caso não deve ser do Juizado Especial Criminal. Em síntese, o sexo do sujeito passivo é, outra vez, suficiente para não aplicar a Lei. O primeiro excerto pode ser assim modelado: S1 – Houve, em tese, lesão corporal de natureza leve e ameaça praticadas por uma mulher contra um homem no caso de conflito de competência... (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). S2 – Não houve violência de homem contra mulher no caso de conflito de competência (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). S3 – O caso de conflito de competência ... não constitui delito previsto no âmbito da Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha] (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S1∧S2→S3). S 4 – A Lei Maria da Penha trata, mais especificamente, da violência de homem contra mulher no âmbito familiar (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). S 5 – O caso de conflito de competência... não trata de fato relacionado à violência do gênero S6 – O caso de conflito de competência... não está paliado por tal diploma legal [Lei Maria da Penha] (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S4∧S5→S6). S7 – O sujeito passivo da violência doméstica e familiar objeto da Lei 11.340/06 [Lei Maria da Penha] é mulher. S 8 – A vítima [sujeito passivo da violência doméstica e familiar] é de gênero masculino [homem] no caso de conflito de competência... (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). 32 Expressão latina que significa “por força da lei”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 328 S9 – Não se aplica tal diploma legal [A Lei Maria da Penha] ao caso de conflito de competência... (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S7∧S8→S9). S10 – O fato de a Lei Maria da Penha não se aplicar ao caso de conflito de competência... retira a competência do juízo suscitante [6ª Vara Criminal do Foro Central de Porto Alegre] (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). S11 – O caso de conflito de competência... trata de delitos previstos no art. 129, caput, e 147, ambos do Código Penal (premissa implicada da explicatura dos enunciados do voto). S12 – A competência para julgar o fato é do Juizado Especial Criminal Criminal do Foro Central de Porto Alegre, ope legis (conclusão implicada por modus ponens conjuntivo: S10∧S11→S12).33 Weingartner Neto complementa: Em suma, é da essência do conceito legal de violência doméstica e familiar, para efeitos de aplicação da legislação especial protetiva (e, vale lembra, mais gravosa para o sujeito ativo do delito, o que implica cuidado com o princípio constitucional da reserva legal), ação ou omissão, contra mulher, baseada no gênero, independente de orientação sexual – mas não do sexo (artigo 5º, “caput” e parágrafo único da Lei 11.340/2006). Tratando-se, portanto, de vítima do sexo masculino, inviável a aplicação do rito da Lei Maria da Penha, ainda que se trata de delito envolvendo relações domésticas e familiares. (grifos nossos). 5 Considerações finais Considerados os avanços da Lei Maria da Penha (2006) para a proteção de vítimas femininas de violência doméstica e familiar em geral, persistem em aberto aspectos teóricos sobre sua aplicação, entre os quais Em lógica proposicional, esse argumento poderia ser assim modelado: P→(Q∧R) – Se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada, então dever haver relações domésticas e familiares e a vítima deve ser mulher; ¬R – Não há vítima mulher neste caso; ¬P – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada neste caso; ¬P→Q – Se a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada ao caso, então o conflito de competência deve ser acolhido; ¬P – A Lei Maria da Penha não deve ser aplicada ao caso; Q – O conflito de competência deve ser acolhido. 33 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 329 a questão de escopo. Se, de um lado, tem-se admitido na jurisprudência uma interpretação mais alargada que acolhe transexuais femininas, travestis, drag queens e transformistas e faz prevalecer uma interpretação do item lexical ‘mulher’ como gênero, aspecto mais controverso é sua aplicação por analogia a vítimas heteroafetivas masculinas. Posto isso, analisamos jurisprudências sobre a extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens heteroafetivos vítimas de violência doméstica e familiar com base no aparato descritivo e explanatório da teoria de conciliação de metas de Rauen (2013, 2014) e teoria da relevância de Sperber e Wilson (1995 [1986]), investigando se os tribunais acolhem esta hipótese de extensão e observando a respectiva argumentação. Tendo sido selecionados cinco casos, os resultados sugerem haver uma interpretação categórica sobre o tema nos tribunais da região sul do Brasil, segundo a qual a Lei Maria da Penha deve ser aplicada somente em casos onde o sujeito passivo de violência doméstica e familiar é mulher. Em comum, as decisões referem-se a conflitos de competência entre varas especiais que tratam de violência doméstica e familiar e varas que abrangem demais situações do Direito Penal. Para dirimir esses conflitos (meta Q), todos os relatores utilizaram-se de argumentos em dois estágios, de tal modo a se posicionam em favor da inaplicabilidade da Lei (submeta P), destacando que o sujeito passivo nesses casos é masculino (ação O). Em essência, há um recuo a uma interpretação default ou mais “literal” do item lexical ‘mulher’ no texto do art. 5º da Lei, enquanto ser humano do sexo feminino. Uma vez que a vítima de agressão não é mulher, resta concluir por negação do consequente que a Lei é inaplicável às lides; e uma vez que a Lei Maria não deve ser aplicada a vítimas masculinas, resta concluir por afirmação do antecedente que procede o conflito de competência. Agradecimentos Os autores agradecem as contribuições pertinentes dos consultores da Revista de Estudos da Linguagem para o aperfeiçoamento do presente texto e assumem integral responsabilidade pelos equívocos remanescentes. Ademais, agradecem o Programa Unisul de Iniciação Científica (PUIC) pela viabilização do estudo. Declaração de autoria 330 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 Declaramos que o texto foi redigido integralmente pelos dois autores. O primeiro autor é mais diretamente responsável pelo aporte teórico e pela metodologia descritivo-explanatória. O segundo autor é mais diretamente responsável pelo aporte das informações do campo do direito e pela prospecção e seleção do corpus. Referências ARAUJO, L. A. D.; NUNES JÚNIOR, V. S. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. BIANCHINI, A. Lei Maria da Penha: Lei N. 11.340/206: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 ago. 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 23 maio 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 23 maio 2014. CAIXETA, M. M. Violência doméstica contra o gênero masculino. 2011. 81 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2011. DIAS, M. B.; REINHEIMER, T. L. Da violência contra a mulher como uma violação de direitos humanos – artigo 6º. In: CAMPOS, C. H. de (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista. São Paulo: Lumen Juris, 2011. p. 195-200. HARMAN, G. The inference to the best explanation. Philosophical Review, Durham, v. 74, p. 88-95, 1965. Doi: https://doi.org/10.2307/2183532 LARRAURI, E. Mujeres, derecho penal y criminología. Madrid: Siglo Veinteuno, 1994. MAIA, A. P.; BEZERRA, L. P. Transexuais e o direito à identidade de gênero: a interlocução entre os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da liberdade. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 1688-1717, 2017. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 331 NUCCI, G. de S. Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Caso 12.051, Relatório 54/01, Maria da Penha Maia Fernandes. Brasil, 2001. Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/299_ Relat%20n.pdf>. Acesso em: 22 out. 2017. PARANÁ. Tribunal de Justiça. Conflito de competência crime nº 647.8348. Relator: Des. Luiz Osório Moraes Panza, 25 de fevereiro de 2010. Disponível em: <http://www.tjpr.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. PELICANI, R. B. A Lei Maria da Penha e o princípio da igualdade: interpretação conforme a Constituição. Revista do Curso de Direito, São Paulo, v. 4, n. 4, p. 237-262, 2007. PIMENTEL, S. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher. 1979. Disponível em: <http://www. onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw. pdf>. Acesso em: 22 out. 2017. PSILLOS, S. Simple the best: A Case for Abduction. In: KAKAS, A. C.; SADRI, F. (eds.). Computational Logic: Logic Programming and Beyond. Berlin: Springer-Verlag, 2002. p. 605-626. Disponível em: <http://www. phs.uoa.gr/~psillos/>. Acesso em: 2 set. 2013. RAUEN, B. M. Aplicação da Lei Maria da Penha em casos envolvendo vítimas transexuais femininas: análise fundamentada no conceito de violência de gênero em jurisprudências selecionadas de tribunais de justiça. 2017. 82 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2017. RAUEN, B. M. Extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens vítimas de violência doméstica e familiar em Pelicani (2007): análise de viés pragmático cognitivo, 2015. 5 f. Projeto (Iniciação Científica) – Faculdade de Direito, Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2015. RAUEN, F. J. Por uma modelação abdutivo-dedutiva de interações comunicativas. In: TENUTA, A. M.; COELHO, S. M. (Org.). Uma abordagem cognitiva da linguagem [livro eletrônico]: perspectivas teóricas e descritivas. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2018. p. 13-29. RAUEN, F. J. Hipóteses abdutivas antefactuais e modelação proativa de metas. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 38, n. 65, p. 188-204, 2013. 332 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 299-332, 2019 RAUEN, F. J. For a goal conciliation theory: ante-factual abductive hypotheses and proactive modelling. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 14, n. 3, p. 595-625, 2014. RAUEN, F. J. Roteiros de iniciação científica: os primeiros passos da pesquisa científica desde a concepção até a produção e a apresentação. Palhoça: Ed. da Unisul, 2015. RAUEN, F. J.; RAUEN, B. M. Extensão do escopo da Lei Maria da Penha a homens vítimas de violência doméstica e familiar em Pelicani (2007): uma análise pragmático-cognitiva. 2018. Inédito. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70075577759 (nº CNJ: 0321890-19.2017.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 29 de novembro de 2017. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de jurisdição nº 70062842471 (n° CNJ: 0476810-53.2014.8.21.7000). Relator: Des. Luiz Mello Guimarães, 12 de fevereiro de 2015. Disponível em: <http://www. tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação crime nº 70063020689 (n° CNJ: 0494631-70.2014.8.21.7000). Relator: Des. Jayme Weingartner Neto, 11 de março de 2015. Disponível em: <http:// www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Conflito de Jurisdição nº 70044908549. Relator: Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa, 10 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 11 dez. 2017. SILVEIRA, J. R. C. da; FELTES, H. P. de M. Pragmática e cognição: a textualidade pela relevância. 3. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2002. SOUZA, S. R. de. Comentários à lei de combate à violência contra a mulher. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2009. SPERBER, D.; CLÉMENT, F.; HEINTZ, C.; MASCARO, O.; MERCIER, H.; ORIGGI, G.; WILSON, D. Epistemic vigilance. Mind & Language, Wiley Blackwel, v. 25, n. 4, p. 359-393, 2010. SPERBER, D.; WILSON, D. Relevance: communication and cognition. 2nd. ed. Oxford: Blackwell, 1995. [1st ed. 1986]. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 Sistemas de discurso e eficácia na comunicação em contextos de promoção da saúde: contribuições da técnica do detalhamento acadêmico Discourse Systems and Efficiency in Communication in Health Promoting Contexts: The Academic Detailing Technique’s Contributions Dóris Cristina Gedrat Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade Luterana do Brasil, Canoas, Rio Grande do Sul / Brasil. doris.cristina10@gmail.com Gehysa Guimarães Alves Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade Luterana do Brasil, Canoas, Rio Grande do Sul / Brasil. gehysa@terra.com.br Resumo: Considerando-se a comunicação como um processo intercultural, o objetivo deste artigo é mostrar a presença da comunicação interdiscursiva nas interações sociais e profissionais, destacando o detalhamento acadêmico como técnica que visa à aproximação do sistema de discurso da área de comércio e vendas de medicamentos com o sistema de discurso médico. Buscou-se fundamento na análise do discurso etnometodológica, com foco na comunicação entre profissionais da saúde, considerandose esta essencialmente intercultural. Conclui-se que o detalhamento acadêmico contribui para melhorar o uso racional de medicamentos e otimizar a eficiência de sistemas de saúde porque promove uma interação entre sistemas de discursos diferentes, que têm objetivos e focos diferentes, almejando chegar ao melhor resultado possível considerando os usuários do sistema. Palavras-chave: sistemas de discurso; detalhamento acadêmico; promoção da saúde; interdisciplinaridade. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.333-358 334 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 Abstract: Taking communication as an intercultural process, the purpose of this essay is to show how interdiscourse communication is present in social and professional interactions, highlighting academic detailing as a technique that aims at bringing together the drug market and the medical discourse systems. The scientific basis is found in ethnomethodological discourse analysis, focusing communication among health professionals, viewed as essentially intercultural. The main conclusion is that academic detailing contributes to improve rational use of medications and to enhance efficiency in health systems because it promotes an interaction among different discourse systems, which have different aims and foci. It aims at the best possible results considering the system’s users. Keywords: discourse systems; academic detailing; health promotion; interdisciplinarity. Recebido em 01 de março de 2018 Aceito em 05 de julho de 2018 1. Introdução Qualquer ação social é realizada por alguma ou várias formas de comunicação, pois o próprio termo, “ação social”, deixa implícito, em primeiro lugar, um sistema de significado comum compartilhado e, em segundo, a comunicação. No entanto, esta não é algo simples de se explicar, e isso ocorre em função de duas razões em especial: as pessoas frequentemente não expressam o que realmente pensam, ou não acreditam no que dizem (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). No entanto, não se está, neste momento, considerando a desonestidade ou falta de sinceridade, e sim o fato de a linguagem ser complexa e essencialmente ambígua, principalmente quando as pessoas que se comunicam pertencem a diferentes sistemas de discurso. Nessa perspectiva, pretende-se refletir, à luz da análise linguística de discurso de base etnometodológica, sobre a comunicação intercultural em situações de interação social e profissional, destacando como exemplo ilustrativo o detalhamento acadêmico, técnica que utiliza metodologias de mudança de comportamento para fornecer educação e informação de forma objetiva (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Assim, buscou-se na etnometodologia um subsídio que mostra a comunicação entre os sistemas de discurso da área médico-clínica e os das áreas de vendas, comércio e marketing de medicamentos. O fenômeno Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 335 está relacionado ao fato de que, na comunicação, há continuamente a interação entre diferentes sistemas de discurso: comunicação intercultural (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012; JONES, 2013). O foco ou objetivo de um grupo pertencente a um sistema de discurso nem sempre é o mesmo do grupo que utiliza outro sistema que pertence a outra cultura. O detalhamento acadêmico auxilia na aproximação de sistemas de discurso diferentes, no caso do presente estudo, o da área de comércio e vendas de medicamentos por um lado, e, por outro, o sistema de discurso médico, que prescreve medicamentos em função do diagnóstico clínico (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Considera-se aqui a perspectiva da linguística aplicada quanto aos conceitos de cultura, discurso e interação. Entende-se a comunicação como um processo de interação social entre grupos ou pessoas de ocupações diferentes. Quando pessoas com diferentes ocupações se comunicam, é mais difícil derivarem-se as inferências envolvidas no ato da comunicação e, portanto, o processo torna-se mais propenso ao insucesso do que quando os participantes são do mesmo grupo. Para essa reflexão, resgatam-se, da área da análise etnometodológica do discurso, as noções de sistemas de discurso e interdiscurso (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012; JONES, 2013). A etnometodologia, segundo Jones (2013), é o ramo da sociologia que mais influenciou a linguística aplicada em abordagens da comunicação sobre saúde e risco. Seu iniciador, o sociólogo Harold Garfinkel (1967), enfocava as atividades diárias como métodos através dos quais as pessoas compreendem o mundo social e se fazem compreender umas pelas outras. Por sua vez, o psicólogo social Eliot Mishler está entre os mais influentes pesquisadores da linguística aplicada à comunicação sobre saúde e risco (MISHLER, 1984; MISHLER; AMARASINGHAM; OSHERSON; HAUSER; WAXLER; LIEM, 1981), com a clássica observação de que os encontros médicos frequentemente envolvem uma “luta” entre “vozes” que competem entre si: a voz do mundo do paciente e a voz do mundo da medicina. Essa competição serve como ponto de partida para muitas investigações sobre comunicação clínica. O que Mishler quer dizer com “vozes”, claro, vai muito além do que aquilo que médicos e pacientes específicos dizem durante uma consulta. Para ele, “a voz” representa uma ordem normativa (MISHLER, 1990), uma forma não apenas de dizer algo, mas também de ver a vida, de organizar o conhecimento e de se relacionar com outras pessoas. A esse respeito, 336 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 vozes são similares ao que Gee (2011) chamaria de “Discursos” (com D maiúsculo), definidos como formas de combinar e integrar linguagem, ações, interações, maneiras de pensar, acreditar, valorar e de utilizar vários símbolos, ferramentas e objetos para encenar um tipo particular de identidade socialmente reconhecível (p. 201, apud JONES, 2013, p. 9). A observação de Mishler, de que o poder e a autoridade dos médicos vêm não apenas do que eles são e sabem, mas de como eles falam, incitou uma forma totalmente nova de pensar sobre encontros de saúde. 2. Comunicação intercultural e interdiscurso O termo “cultura” é carregado de significados, muitas vezes diversos. A cultura pode ser identificada com a posse de certos conhecimentos (línguas, arte, literatura, ser alfabetizado), ou tem o propósito de habilitar alguém a ocupar um posto ou cargo. Ambas são noções que sugerem que ter cultura ou ser culto é o mesmo que ser importante ou superior. Outras definições indicam cultura não como uma propriedade de um indivíduo, mas como qualidade de uma coletividade. Também é interessante observar que a coletividade aparece como um adjetivo qualificativo para distinguir tipos de cultura, que têm diversos tipos de expressão artística, cultural e de linguagem. (CHAUÍ, 2010). Segundo Williams (1981), cultura, originalmente, definia o cultivo de plantas e o cuidado com animais e com a terra (agricultura), a educação das crianças, o cuidado com os deuses (culto) e com os ancestrais e seus monumentos (sua memória). No final do século XVIII, o termo passou a ser relacionado ao estilo de vida de um povo, à civilização. No século XIX, a ideia de cultura predominante continua designando uma forma de viver totalmente distinta. Desde então, houve um intenso desenvolvimento da noção de cultura enquanto cultivo ativo da mente: um estado desenvolvido da mente (uma pessoa “de cultura”); os processos desse desenvolvimento (“atividades culturais”); os meios para esses processos (as artes, por exemplo). Tais noções convivem com o uso antropológico e, por extensão, sociológico, de cultura indicando o modo de vida de um povo ou de grupos sociais. Hoje, além do espírito informativo, existe uma visão de cultura enquanto sistema significativo através do qual uma ordem social é comunicada, reproduzida, experienciada e explorada (WILLIAMS, 1981). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 337 No presente estudo, opera-se com a noção de cultura enquanto ferramenta para pensar (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012), que divide as pessoas em grupos de acordo com alguma característica que auxilia a se compreender algo sobre elas e como são diferentes ou parecidas com outras pessoas (de outros grupos): A “cultura norte-americana” e a “cultura chinesa” não são as únicas culturas envolvidas num diálogo entre um japonês gay que mora nos EUA e um chinês heterossexual. Nós também estamos lidando com a cultura japonesa, a cultura gay, a cultura do estudante universitário, a cultura cristã de um deles e a cultura budista do outro, as culturas de gênero e geração, as culturas de vários websites e de grupos de afinidade que se criam ao redor de produtos específicos e a cultura popular. (SCOLLON, SCOLLON, JONES, 2012, p. 2) Assim, toda comunicação, de alguma forma, é intercultural (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Pensando em cultura dessa maneira, como algo que se faz, pode-se concluir que ela se expressa distintamente em diferentes momentos ou contextos. E, para compreender comunicação intercultural, é necessário focar não tanto nas pessoas, mas tentar descobrir algo sobre elas com base na “cultura” a que pertencem (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). As pessoas pertencem a diferentes grupos – famílias, comunidades, instituições como escolas e trabalho –, cada um dos quais utiliza um tipo de sistema de comunicação à disposição, sendo que as ideias e a forma como são transmitidas dependem desses sistemas específicos de comunicação. Quando os utilizam, estão fazendo algo de determinada maneira e expressando que são membros de um grupo social que fornece as ferramentas para o processo de comunicação. Esses grupos, ao se comunicarem, estão revelando a sua identidade. Tais ferramentas culturais utilizadas pelos indivíduos para se comunicarem uns com os outros e encenarem diferentes identidades culturais são chamadas de “sistemas de discurso”. Esses são caracterizados como uma “caixa de ferramentas com ideias e crenças, formas convencionais de tratar as pessoas, formas de comunicação com textos e linguagens diversas e mídia e métodos que apontam como se utilizam essas ferramentas” (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012, p. 8). Jones (2013) argumenta que, quando atitudes e crenças afetam a maneira como as pessoas se comunicam, os linguistas aplicados tendem 338 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 a enxergá-las não como conjuntos de suposições estáticos, mas sim como parte de um discurso ativo de que as pessoas lançam mão para reivindicar identidades em situações específicas: Aplicações dessa perspectiva geralmente levam a uma das duas abordagens analíticas seguintes: uma focando a maneira como as pessoas de diferentes grupos administram as interações sobre saúde e risco com respeito a coisas como enquadramento, posicionamento e organização da conversação, uma abordagem que se debruça fortemente em fundamentos da sociolinguística interacional; a outra focando aspectos mais amplos do discurso (incluindo coisas como ideologias, sistemas faciais e concepções culturais do self e da comunicação) e como pessoas os utilizam para atingir certas metas interacionais, uma abordagem que se aproxima da antropologia linguística. (JONES, 2013, p. 158) Todo grupo que utiliza uma caixa de ferramentas específica pode ser considerado participante de um sistema de discurso particular. Além disso, cada pessoa participa, simultaneamente, de um número de sistemas culturais diferentes: é membro de um grupo corporativo particular, de um grupo profissional ou ocupacional particular, uma geração, um gênero, uma região e uma etnia, todos associados a diferentes sistemas de discurso. Como resultado, virtualmente toda comunicação atravessa algumas fronteiras que distribuem os indivíduos de acordo com os sistemas de discurso dos quais participam (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Nessa perspectiva, o que usualmente se consideram diferenças “culturais” entre pessoas (país ou língua de origem, por exemplo) na comunicação é menos significativo do que as diferenças oriundas do fato de que todos são participantes de vários sistemas de discurso simultaneamente. Esses sistemas não são usualmente considerados ao tratar-se de “comunicação intercultural”, ou seja, não se leva em consideração que estão associados a gêneros diferentes, sexualidades, gerações, locais de trabalho e profissões. Além da participação simultânea de cada um em vários sistemas de discurso, constata-se que valores e comportamentos associados a um sistema de discurso em que um indivíduo participa podem entrar em conflito com os de um sistema de discurso em que outro participa, podendo inclusive haver contradições entre dois sistemas utilizados por uma mesma pessoa, que terá de lidar com esses conflitos e encontrar uma forma de conciliação para a situação. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 339 A comunicação interdiscursiva é a comunicação entre diferentes sistemas de discurso e, considerando as possibilidades acima, ela pode ser vista também como algo que ocorre internamente, dentro de cada sujeito (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). A essência da análise intercultural e interdiscursiva propõe focar seu olhar nas pessoas, realizando ações em tarefas particulares e concretas e perguntar, sem pressupor, qual é o papel dos sistemas de discurso em suas ações e como são produtivas em termos de “cultura” ou de participação em sistemas de discurso específicos. Além disso, investigar se essas ações são significativas para indivíduos pertencentes a diferentes sistemas discursivos e como essas ações, tarefas ou práticas estão posicionadas dentro de quais sistemas de discurso (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). A análise intercultural da comunicação é importante para que este estudo alcance sua meta. Em primeiro lugar, porque, como se mostrará adiante, o detalhamento acadêmico é, essencialmente, baseado na comunicação enquanto interação social entre indivíduos. Além disso, os processos de comunicação focalizados são os que ocorrem entre profissionais da saúde, e esses processos são multidisciplinares e, portanto, interculturais (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012), uma vez que os participantes originam-se de grupos profissionais diferentes e, por isso, pertencem a sistemas de discurso diferentes. Conforme já se pontuou anteriormente, o atravessamento de diferentes sistemas de discurso pode produzir conflitos de identidade para participantes dos sistemas, o que pode levar a confusões ou desentendimentos na comunicação. Esses conflitos e identidades múltiplas não são problemas a serem solucionados, são características de todas as situações de comunicação profissional. Em praticamente todos os sistemas de discurso orientados por um objetivo, os indivíduos serão, simultaneamente, participantes tanto dos sistemas de discurso corporativos quanto dos profissionais. Em alguns casos, a participação em um sistema tenderá a menosprezar ou questionar a participação total em outro sistema (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Isso é verdadeiro para membros de grande variedade de sistemas de discurso profissionais ou ocupacionais, como o dos engenheiros, dos administradores da indústria de viagens, dos motoristas, dos profissionais do comércio exterior, dos jornalistas de esporte, dos fotógrafos de publicidade, dos eletricistas e carpinteiros, ou dos músicos de orquestra. Em cada caso, 340 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 há o problema em potencial: as pessoas são, simultaneamente, membros do sistema de discurso de seu grupo profissional ou ocupacional e do sistema de discurso institucional, organizacional ou corporativo. Dessa forma, identidades atravessadas existem e operam na maior parte da comunicação entre colegas de profissão ou entre membros da mesma estrutura corporativa. À medida que as pessoas participam simultaneamente de múltiplos sistemas de discurso que se atravessam, é necessário que elas estejam constantemente sintonizando e ajustando sua identidade e sua adesão a cada sistema de forma que todos ou quase todos os objetivos sejam pelo menos minimamente alcançados (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Isso ficará evidente, mais adiante, ao apresentar-se o detalhamento acadêmico, técnica que permite uma análise linguística, de base etnometodológica, que demonstra como o discurso influencia positiva ou negativamente a comunicação sobre saúde e risco. Ela prevê situações de conversação entre profissionais pertencentes a diferentes culturas e, portanto, usuários de diferentes sistemas de discurso, que utilizam ferramentas diferentes para fazer coisas diferentes e lá estão, frente a frente, para negociar significados sobre saúde. Quando existem pessoas de várias práticas sociais e profissionais interagindo, também se tem comunicação intercultural, segundo a perspectiva aqui adotada (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Por isso, dizer que o cuidado em saúde está se tornando uma empresa cada vez mais multicultural não quer dizer apenas que ela envolve pacientes e promotores da saúde de diferentes países interagindo, mas também que cada vez mais pessoas de diferentes grupos profissionais estão trabalhando juntos (MÁSEIDE, 2007). Os funcionários do hospital podem compartilhar práticas interpretativas em virtude de sua participação comum em um sistema de discurso institucional ou corporativo. No entanto, eles também têm diversos tipos de conhecimentos e habilidades diferentes, assim, engajam-se em diferentes formas de interações e utilizam diferentes características de discurso baseadas nos sistemas de discurso profissional dos quais participam. O cuidado em saúde é cada vez mais caracterizado como um fenômeno no qual pessoas com diferentes modos de construção discursiva do conhecimento e de comunicação sobre ele trabalham juntas e negociam significados (IEDEMA; RHODES; SCHEERES, 2006). O estudo da comunicação profissional em medicina tem como questão-chave o modo como os indivíduos de diferentes profissões se Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 341 organizam para interagir de forma bem-sucedida, isto é, de maneira que consigam negociar os significados próprios dos sistemas de discurso a que pertencem, atingindo, assim, os seus alvos. Outra questãochave é a forma como as instituições facilitam essas interações, sem comprometer a autonomia e a identidade profissional. Essas questões tocam a prevalência da interdiscursividade em comunicação sobre saúde e risco, o atravessamento de diferentes sistemas de discurso aos quais diferentes profissionais pertencem, ou diferentes sistemas de discurso em que um mesmo profissional participa. Criam-se desafios e oportunidades quando essas vozes diversas e às vezes concorrentes interagem e, simultaneamente, relacionamentos e identidades vão se estabelecendo através do discurso (JONES, 2013). No detalhamento acadêmico isso ocorre intensamente, uma vez que médicos que prescrevem medicamentos interagem em conversações com profissionais do comércio e marketing. Além de todas as diferenças pessoais entre eles, uma vez que podem ter religiões diferentes, hobbies diferentes, gêneros diferentes e crenças em geral, eles também pertencem a culturas profissionais diferentes e utilizam ferramentas discursivas distintas ao interagir linguisticamente. Portanto, no detalhamento acadêmico, vê-se a tentativa de se superarem questões discursivas problemáticas na comunicação, já que o confronto de diferentes identidades ocorre por meio de diferentes sistemas de discurso, instaurando-se a comunicação intercultural (JONES, 2013; SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012) A técnica do detalhamento acadêmico é utilizada em contextos de saúde relacionada à prescrição de tratamentos. Considera-se que os médicos que prescrevem medicamentos, os prescritores, para o fazerem com qualidade, necessitam de informações atualizadas e de fontes confiáveis acerca da efetividade comparativa, segurança e custos dos tratamentos disponíveis. Devido a limitações como restrição de tempo, dificuldades com o acesso a informações em português e demandas diversas que consomem tempo, eles muitas vezes tendem a utilizar fontes mais convenientes de informação, tais como as apresentadas pelos representantes de indústrias farmacêuticas (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). No entanto, esta é uma área que tem muito conflito de interesse, na qual sistemas de discurso com objetivos bem distintos interagem. Finalmente, sustenta-se, neste artigo, que, do ponto de vista da comunicação, o detalhamento acadêmico contribui para melhorar o uso 342 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 racional de medicamentos e otimizar a eficiência de sistemas de saúde porque promove uma aproximação interdiscursiva. A metodologia utilizada no detalhamento acadêmico leva a uma interação entre sistemas de discursos diferentes, que têm objetivos e focos diferentes, e que almeja chegar ao melhor resultado possível considerando os usuários do sistema. Em outras palavras, a técnica reconhece que a comunicação é intercultural e opera com base nas diferenças culturais de cada interlocutor (JONES, 2013; SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). Nessa perspectiva, o objetivo deste estudo é mostrar, à luz da análise linguística de discurso de base etnometodológica, que a comunicação é um processo intercultural, portanto interdiscursivo. Além disso, tem o propósito de destacar, como exemplo prático de superação das questões problemáticas na comunicação, o detalhamento acadêmico, visto como técnica que visa à aproximação do sistema de discurso do comércio e vendas de medicamentos com o sistema de discurso médico que prescreve os medicamentos em função do diagnóstico clínico. 3. O interdiscurso na técnica do detalhamento acadêmico Este estudo tem como foco os sistemas de discurso voltados para saúde e risco, por isso orienta-se pelo método da etnometodologia, que é a área da sociologia mais influente nas abordagens da comunicação sobre saúde e risco. A principal contribuição desta abordagem aos estudos de saúde e risco é a atenção que dedica à forma como as identidades sociais, e outros fatos sociais, como doença e risco, constituem-se momento a momento, à medida que as pessoas se engajam em seus encontros rotineiros umas com as outras. Assim, a etnometodologia propõe que se observe o papel do enfermo como algo que é realizado organizacionalmente, através de atuações repetitivas de várias práticas sociais e profissionais (JONES, 2013). O detalhamento acadêmico é uma estratégia que propõe visita educativa cuja realização envolve a interação face a face entre dois profissionais. Utiliza metodologias de mudança de comportamento para fornecer educação e informação de forma objetiva e uma abordagem baseada em serviços (ao invés do foco em vendas), que pode ser diretamente relacionada às situações clínicas vivenciadas por um profissional de saúde (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 343 É realizado por universidades ou instituições sem fins lucrativos e visa minimizar a lacuna existente entre a melhor ciência disponível e a prescrição na prática real. Deve ser executado por profissionais da saúde qualificados nessa perspectiva, os quais devem passar por um treinamento específico, que os torna “facilitadores”, apresentando-se para as visitas munidos de identificação da instituição promotora e de material de apoio apropriadamente preparado para esta finalidade. Para a aplicação do detalhamento acadêmico, seguem-se as etapas na Figura 1: FIGURA 1 – Etapas do processo envolvido para realização de detalhamento acadêmico Fonte: Costa, Brasil, Afonso Júnior (2015, p. 13). A etapa 1, prospecção e identificação de problemas, diz respeito aos problemas que geram demanda pelo detalhamento acadêmico, ou seja, aqueles relacionados a um distanciamento entre o que as evidências científicas ou protocolos clínicos recomendam e o que é realizado na prática clínica devido a outras influências, como a da indústria farmacêutica. Tais problemas podem ser identificados por meio de consulta com especialistas, entrevistas telefônicas, análise de bancos de dados, estudos de utilização de medicamentos, informes e alertas da vigilância sanitária, revisão de literatura ou pela detecção de problemas similares observados em outros países. A técnica do detalhamento acadêmico é considerada eficaz quando a solução para o problema 344 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 identificado depender de uma mudança de comportamento e para o qual outras técnicas mais simples, como lembretes em sistemas informatizados ou disseminação de informes, não forem suficientes. Na etapa 2 do processo, define-se a finalidade da realização do detalhamento acadêmico. O objetivo das visitas dos facilitadores aos prescritores deve ser o de resolver um problema específico que seja mensurável e as finalidades da referida técnica variam de desenvolvimento e divulgação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas a alterações em padrões de prescrição de medicamentos, dentre outros. As visitas podem ser direcionadas aos profissionais de saúde (individualmente ou em grupo), à comunidade ou aos pacientes. Evidências quanto à eficácia dessa técnica são encontradas no Brasil e no exterior. Por exemplo, com a finalidade de desenvolvimento e implementação de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, foi aplicado o detalhamento acadêmico para cumprimento de protocolo clínico para triagem pré-natal de Streptococos B (SILVA; STEIN; SCHÜNEMANN; BORDIN; KUCHENBECKER; DRACHLER, 2013) e nos Estados Unidos para triagem de câncer colorretal (CURRY; LENGERICH; KLUHSMAN, 2011). Com a finalidade de alterar o padrão de prescrição de medicamentos, seu uso auxiliou na redução de prescrições inadequadas em um hospital com relação aos critérios legais na Austrália (SHAW, HARRIS, KEOGH, GRAUDINS, PERKS, THOMAS, 2003) e do uso de antibióticos de amplo espectro em um centro acadêmico, nos Estados Unidos (SOLOMON; VAN HOUTEN; GLYNN; BADEN; CURTIS; SCHRAGER; AVORN, 2001). Para a etapa 3, estimativa de orçamento, elaboração de cronograma e designação de equipe, uma equipe técnica deverá ser formada, composta por, no mínimo, um especialista no assunto a ser abordado, além de pesquisadores e estagiários, sendo um dos integrantes o coordenador da equipe, o qual acompanhará todas as etapas, gerenciando o processo de forma homogênea e orientando os demais membros da equipe. Além disso, é responsável pelo treinamento dos facilitadores. A equipe definirá o número de visitas necessárias, os materiais a serem produzidos e/ou adquiridos, a abrangência da execução do detalhamento acadêmico (local ou nacional) e o orçamento. A etapa 4 trata da elaboração e aquisição de materiais de apoio, que devem ser atrativos, objetivos e simples. Eles serão utilizados como suporte para a visita e como material informativo a ser fornecido ao prescritor, o qual geralmente tem pouca disponibilidade de tempo, por ser Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 345 muito ocupado. O material utilizado com profissionais deve ser elaborado com linguagem técnica e seu conteúdo deve ser estruturado a partir da definição de mensagens-chave, ser baseado em revisão sistemática da literatura, conter evidências científicas e informações de apoio à tomada de decisão terapêutica, estudos de caso e referências. Deve ser revisado por pares antes de utilizado. Destacam-se, para o presente estudo, as etapas 5 e 6, voltadas, respectivamente, para a identificação dos prescritores e para a seleção e treinamento dos facilitadores. Quanto à escolha dos prescritores a serem visitados, muitas vezes não é possível abranger todos os existentes entre a população alvo. Neste caso, um bom critério é a seleção daqueles que possam servir como multiplicadores do processo, para melhor disseminar a informação, ou podem-se selecionar os que apresentam problema com a sua prescrição. Como pode haver recusa ou não localização do prescritor, devem-se sempre selecionar mais prescritores do que o número mínimo necessário. É recomendado que cada facilitador não faça mais do que quatro visitas por dia. Na etapa 6, recrutam-se os profissionais da saúde que farão as visitas aos prescritores: os facilitadores. Para ser um facilitador, é importante que o candidato seja um bom comunicador, tenha disponibilidade, seja simpático, tenha noções de conceitos relacionados à Medicina Baseada em Evidência (MENDES; SILVEIRA; GALVÃO, 2008), conheça o fluxo de atendimento do sistema de saúde no qual irá atuar, possua experiência prática no assunto, compreenda e internalize a importância do trabalho a ser desenvolvido, a fim de executar as visitas com convicção e eficiência, e possua veículo próprio para locomoção (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Os facilitadores recebem um treinamento que os prepara para as visitas aos prescritores. Esse treinamento tem a duração aproximada de 12 horas e inclui as etapas descritas abaixo. (1) Estudo sobre a técnica do detalhamento acadêmico e sobre o problema das barreiras à mudança de prescrição. Neste momento, eles também tentarão formular suas próprias mensagens-chave para a abordagem durante as visitas. 346 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 (2) Treinamento sobre técnicas de visitação. Os facilitadores vêm a conhecer métodos de abordagem (técnicas de visitação) a serem utilizadas durante a visita médica do detalhamento acadêmico e poderão contar com a participação de convidados externos com experiência no tema, como representantes de indústrias farmacêuticas (drug detailers) ou profissionais que já realizam detalhamento acadêmico. (3) Treinamento sobre os conteúdos a serem abordados nas visitas. Pode haver a participação do especialista na área dos prescritores a serem visitados. (4) Aplicação de teste individual sobre as técnicas de visitação e o conteúdo. Este momento tem como objetivo que o facilitador faça uma revisão sobre seu conhecimento a respeito da técnica, das evidências científicas apresentadas aos prescritores sobre a necessidade de mudanças nas prescrições, além de outras informações que possam ser questionadas durante a visitação. (5) Simulação da visita. Os facilitadores atuam ora como prescritor, ora como facilitador, exercitando o manuseio e a entrega do material a ser utilizado nas visitas. Essas simulações poderão ser gravadas e assistidas para serem avaliadas e podem contar com a presença de um especialista da área atuando como prescritor (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Finalmente, na etapa 7 são realizadas as visitações médicas para detalhamento acadêmico. Os facilitadores recebem uma lista de prescritores a serem visitados, com suas informações de contato. Antes da visita, cada facilitador liga para o prescritor, em seu ambiente de trabalho, e agenda um horário em que o médico não tenha pacientes, estimando a duração da visita entre 15 e 20 minutos. A visita para o detalhamento acadêmico deve passar pelas etapas listadas na Figura 2: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 347 FIGURA 2 – Estrutura geral das visitas Etapa Ações Introdução • Criar um ambiente adequado para a visita • Atender às necessidades imediatas do prescritor • Praticar a arte da “conversa fiada” para estabelecer rapportc • Demonstrar atenção por meio de sua linguagem corporal • Explicar o motivo da sua visita • Confirmar se o tempo/disponibilidade para a visita ainda é conveniente para o prescritor Construir confiança e estabelecer a sua credibilidade • Mencionar suas credenciais • Ressaltar imparcialidade e independência • Basear a visita na assistência clínica • Apresentar informações credíveis e relacionadas à assistência ao paciente • Demonstrar empatia, honestidade, empenho, competência Identificar as necessidades dos prescritores • Utilizar perguntas abertas para que o prescritor fale • Utilizar mínimos encorajadores para manter a conversa fluindo •Repetir o que ouviu para demonstrar que está prestando atenção e verificar se entendeu corretamente • Fornecer informações, mas também conhecer a opinião, os sentimentos e as ideias Apresentar as características e benefícios das “mensagenschave” • Apresentar as principais mensagens da visita na medida em que perceba as crenças, necessidades, valores e interesses dos prescritores • Transformar fatos ou características das mensagens em benefício/ valor para o prescritor e paciente • Orientar a superação de barreiras para a mudança Superar objeções e lidar com quaisquer respostas desafiadoras • E.g. raiva ou indiferença que sejam obstáculos para que o prescritor “compre a ideia” • Estar alerta (ouvindo, observando sinais não-verbais) para os obstáculos à sua mensagem Fechar o ciclo de comunicação • Utilizar de repetições para garantir que suas mensagens tenham sido recebidas • Oferecer mais apoio • Ganhar credibilidade para a próxima visita • Oferecer os materiais impressos e de apoio Continuar e manter o relacionamento • Filosofia servidora • Comprometer-se com os objetivos mútuos • Importante para a mudança de comportamento Fonte: Costa, Brasil, Afonso Júnior (2015, p. 26) 348 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 A experiência profissional do facilitador é menos importante do que suas habilidades de comunicação e a solidez e amplitude de sua compreensão da terapêutica clínica e barreiras à mudança de prescrição. Caso o facilitador não domine os conceitos teóricos necessários, eles deverão ser abordados em treinamento. Observa-se nesse método a tentativa de aproximação entre diferentes sistemas de discurso, procurando-se facilitadores que tenham perfil apropriado para a área de vendas, mas que sejam provenientes da área médica, logo pertencentes a este sistema de discurso. As características relativas à atitude de um bom comunicador têm prevalência em relação às outras. A técnica do detalhamento acadêmico lida com o interdiscurso, elemento integrante da comunicação intercultural que diz respeito à interação entre sistemas de discurso de diferentes naturezas, utilizados por diferentes pessoas participantes do discurso (JONES, 2013). Por essa razão, a referida técnica foi escolhida aqui para exemplificar como a análise do discurso pode contribuir para a eficácia da comunicação em contextos de saúde. Como mostram os fluxogramas que representam a operacionalização do detalhamento acadêmico, o facilitador atua como mediador entre sistemas de discurso pertencentes à área médico-clínica e sistemas de discurso das áreas do comércio, vendas e marketing. Esses dois grupos de sistemas de discurso visam objetivos bem diferentes e, portanto, a chance de haver concorrência e desacertos na comunicação é grande. Com base nisso, o facilitador tem a incumbência de fazer uma aproximação entre esses sistemas de discurso, atuando diretamente no interdiscurso, minimizando diferenças e proporcionando oportunidades para entendimento. Ele o faz, por exemplo, ao seguir um protocolo para as visitas que se aproxima da conduta médica, com horário marcado, com visita no próprio consultório do prescritor, e com a utilização de evidências científicas para destacar as propriedades dos tratamentos alternativos que demonstra ao seu alvo. Por outro lado, ele também utiliza procedimentos próprios da área das vendas e marketing ao portar materiais de divulgação de alta qualidade, que atraiam os olhos e a atenção do prescritor, e demonstrar conhecimento a respeito dos medicamentos e procedimentos médicos contemplados nas entrevistas. Este procedimento visa uma apropriação, por parte dos facilitadores, das ferramentas próprias do sistema de discurso dos profissionais de áreas como marketing e vendas, com o intuito de cativarem seus colegas de profissão, pertencentes ao sistema de discurso Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 349 da área médica. Os facilitadores já possuem e utilizam as ferramentas culturais próprias desse sistema, para o qual um dos alvos é o tratamento de problemas com base nas melhores evidências científicas. Ao inseriremse no contexto do marketing e das vendas, assimilando as expressões e construções discursivas que este grupo utiliza para atingir seus fins, o facilitador passa a criar um novo grupo ocupacional, aquele que articula os profissionais da medicina e os profissionais do comércio, e cuja caixa de ferramentas culturais contém material de ambos os grupos, possibilitando que ele atinja objetivos de ambos (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). 4. Discussão e considerações finais A técnica do detalhamento acadêmico vem sendo utilizada no Brasil e no exterior, apresentando resultados surpreendentes no que tange à adesão de prescritores em seu comportamento frente a tratamentos e medicamentos sobre os quais obtiveram informações detalhadas e baseadas cientificamente (SILVA; STEIN; SCHÜNEMANN; BORDIN; KUCHENBECKER; DRACHLER, 2013; SHAW; HARRIS; KEOGH; GRAUDINS; PERKS; THOMAS, 2003; AVORN, 2007; VASUDEV; LAMOURE; BEYAERT; DUA; DIXON; EADIE; HUSAREWYCH; DHIR; TAKHAR, 2017; BRENNAN; MATTICK, 2012). Os profissionais que efetuam as visitas, os facilitadores, e sua equipe não possuem relação financeira com a indústria que produz os medicamentos e os comercializa. A técnica não consiste numa estratégia de vendas, mas sim de mudança de atitude em relação à prescrição, sendo, portanto, conduzida pelas entidades promotoras da saúde que desejam essa mudança. O método consiste numa visita de um profissional da saúde, treinado para este fim, a outro que prescreve, prescritor, durante a qual ele informa a este as melhores evidências e diretrizes clínicas sobre o que deve ser feito para determinada situação clínica, com vistas a possibilitar a utilização de uma prescrição baseada na melhor evidência científica. O objetivo desta prática é melhorar o cuidado dispensado ao usuário do sistema de saúde (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Escolheu-se, neste estudo, a técnica do detalhamento acadêmico porque ela ilustra bem o que a perspectiva da análise linguística do discurso que embasa este estudo diz a respeito da comunicação intercultural e do interdiscurso. Dessa forma, faz-se aqui uma tentativa 350 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 de explicar como essa comunicação pode ser utilizada para promover a saúde ao invés de vulnerabilizá-la. Como exemplificação dos processos linguísticos envolvidos na proposta metodológica apresentada, descrevem-se, a seguir, as duas situações: (1) a atuação de um representante da indústria farmacêutica (RIF) num encontro regular com um prescritor, para divulgar os produtos de seu laboratório; (2) a atuação de um profissional da saúde enquanto facilitador (F) num programa de detalhamento acadêmico: (1) RIF: utiliza linguagem de mercado e recursos cativantes do marketing e vendas sobre a vantagem de se adquirem determinados medicamentos, tentando convencer o prescritor a utilizar a avaliação indicada pelo laboratório que ele representa; menciona que os laboratórios financiam eventos para os profissionais que indicam os seus produtos, como forma de sedução para o consumo dos produtos indicados. (2) F: faz a mediação entre a linguagem do mercado e as vantagens científicas relacionadas ao produto. A linguagem é clara, coloquial, mas embasada em conhecimentos científicos. O facilitador utiliza material escrito atraente, como no ramo de marketing e vendas, que informam sobre as descobertas científicas relacionadas aos produtos em questão. Em ambos os casos, o prescritor é responsável pela escolha do melhor produto. Como os benefícios dos produtos são muito semelhantes de uma indústria para a outra, a forma como ele escolherá pode estar relacionada à eficácia da comunicação exercida por um ou por outro. Defende-se, aqui, que o discurso do facilitador é mais eficaz para a promoção da saúde dos indivíduos que recebem os tratamentos dos prescritores do que o do representante da indústria farmacêutica. O facilitador transita entre dois sistemas de discurso diferentes, como mediador, criando um terceiro sistema de discurso, o que articula as características do discurso da indústria farmacêutica e as informações por ela veiculadas de um lado e, de outro, as características do discurso baseado em evidências próprio da academia. Dessa forma, vê-se a comunicação intercultural exemplificada e a atuação do interdiscurso na área da promoção da saúde. O sistema de discurso do marketing e vendas sozinho, utilizado pelo representante da indústria farmacêutica, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 351 tem eficácia no que tange a persuadir o prescritor a comprar o que é de interesse dos laboratórios, não repercutindo, no entanto, em benefício para a promoção da saúde da população. A prática do detalhamento acadêmico aos prescritores, como meio de melhorar a qualidade das decisões sobre a terapia medicamentosa e a redução de despesas desnecessárias, foi iniciada há cerca de trinta anos pelos Drs. Jerry Avorn e Stephen Soumerai da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. De acordo com eles, algumas das características mais importantes desse método incluem: realizar entrevistas para investigar o conhecimento e as motivações para os padrões de prescrição vigentes; focar os programas em categorias específicas de médicos, bem como em seus líderes de opinião; definir claramente os objetivos educacionais e comportamentais, assim como evitar o sobretratamento; estabelecer credibilidade através de uma identidade organizacional respeitada, fazendo referência a fontes oficiais e imparciais de informações e apresentando ambos os lados de questões controversas; estimular a participação ativa do prescritor durante as visitas; utilizar materiais educativos gráficos concisos, destacando e repetindo as mensagens essenciais e fornecer reforço positivo das práticas melhoradas em visitas subsequentes (COSTA; BRASIL; AFONSO JÚNIOR, 2015). Todos os passos descritos acima convergem na direção de minimizar os conflitos naturais na comunicação intercultural, a fim de que os diferentes sistemas de discurso, ao entrarem em contato, possam otimizar o entendimento entre as partes interagentes. Assim, estaria ocorrendo o que Jones (2013) descreve como a questão-chave na comunicação profissional em medicina, isto é, a negociação de significados próprios dos sistemas de discurso em interação a fim de atingir seus alvos. No caso do detalhamento acadêmico, o alvo dos promotores da saúde é o de atender aos usuários do sistema de saúde da melhor forma, maximizando seu bemestar e, para isso, prescrevendo os melhores tratamentos e medicamentos, segundo o que eles acreditam e sempre fizeram. Por seu turno, o alvo dos profissionais que fazem as visitas, os facilitadores, além do bem-estar dos usuários, é fazer valer a voz do discurso próprio das vendas, a fim de desmistificar padrões rígidos de comportamento nas prescrições médicas e abrir espaço para o entendimento de que a mudança é positiva e de que há opções de substâncias e medicamentos cientificamente comprovados bem diferentes daqueles comumente utilizados, considerando que estes podem estar superados. 352 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 Os temas saúde e risco não são meramente uma questão de escolha individual, mas discursivamente construídos dentro de grupos sociais com diferentes tamanhos e formatos (JONES, 2013). Para a maioria das pessoas, embora a família seja o grupo social principal, existem vários outros aos quais elas pertencem, como grupos que se formam ao redor de certos tipos de atividades que podem impactar na saúde, tais como usuários de drogas, ou esportes extremos, grupos profissionais como os médicos, enfermeiros e promotores da saúde, instituições como hospitais e companhias de seguro, redes sociais que os conectam através de teias complexas de relacionamentos a pessoas que não conhecem e talvez nunca encontrem. Todos eles podem ter um impacto sobre como se pensa, se fala e se age em relação à saúde e ao risco, e essas questões também podem funcionar como ferramentas para a manutenção desses grupos e a construção de barreiras entre eles (DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982). A metodologia do detalhamento acadêmico opera com base nos atravessamentos discursivos permanentemente presentes na comunicação interdiscursiva. Uma vez que todos os indivíduos pertencem a diferentes sistemas de discurso, isso impacta em sua identidade e, consequentemente, em seu pensamento, fala e comportamento frente a temas como saúde e risco. Neste momento é possível observar-se a contribuição da análise da língua e do discurso conforme a visão da linguística, baseada na etnometodologia, que leva em conta o uso da língua no momento em que o sujeito está atuando em uma situação determinada, em um contexto naturalístico. A partir de excertos de conversações entre profissionais da saúde, médicos e pacientes, promotores da saúde e usuários do sistema de saúde, pode-se constatar a presença de diferenças entre sistemas de discurso que criam conflitos e afastam as pessoas ao invés de convergir o discurso para o mesmo objetivo. É importante alertar as pessoas sobre este fato e incentivá-las a alterarem seu comportamento, no sentido de serem mais tolerantes com o discurso do outro, compreendendo que sua cultura (as ferramentas das quais o outro lança mão para exercer as suas funções e interagir profissional e socialmente) o levam a utilizar tal sistema de discurso. A sociolinguística interacional foca sua reflexão no fato de que as pessoas de diferentes grupos podem ter diferentes expectativas durante interações sobre o que estão fazendo e quem estão sendo (GUMPERZ, 1982; TANNEN, 2005). As pessoas podem iniciar interações sobre saúde e risco, por exemplo, com ideias diferentes sobre como a informação Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 353 deveria ser organizada, que tópicos são permitidos, como as sequências de fala como narrativas deveriam ser estruturadas, como a mudança de tópico deveria ser sinalizada e como coisas como respeito e empatia devem ser demonstradas. Essas expectativas diferentes são frequentemente manifestadas com sinais sutis como a escolha das palavras, as pausas, ritmo e entonação, olhar, gestos e outros comportamentos não verbais (GUMPERZ, 1982). Por isso, dificuldades nessas interações são às vezes um sentido mais sutil de mal entendimento, ou seja, um sentimento de que a interação não progrediu tão suavemente ou de forma tão bemsucedida como poderia (SCHEGLOFF, 1987). Em função disso, tais dificuldades em comunicação intercultural são frequentemente difíceis de serem detectadas. Uma questão incômoda relacionada à comunicação intercultural não é tanto a que ocorre entre pessoas, mas aquela que ocorre dentro delas à medida que lutam para reconciliar as expectativas por vezes conflitantes sobre o que elas estão fazendo e quem elas estão sendo trazidas para dentro das interações (JONES, 2013). Isso acontece em todos os contextos em que as pessoas interagem, portanto, em contextos promotores da saúde também. Aqui, mais uma vez, vê-se a contribuição da linguística aplicada à comunicação sobre saúde e risco, compreendendo esta como essencialmente intercultural, na qual interagem vozes frequentemente concorrentes. Segundo Jones (2013), através disso, criam-se desafios e oportunidades e estabelecem-se relacionamentos e identidades. Compreendendo essas propriedades intrínsecas da comunicação intercultural e da interação entre diferentes sistemas de discurso, a linguística fundamentada na etnometodologia abre caminhos para mudança através da análise dessas interações. Ao fazer isso, o foco será aproveitar as oportunidades criadas para o estabelecimento de relacionamentos e de identidades para promover a saúde e não para vulnerabilizá-la. Os diferentes profissionais integrantes das equipes promotoras da saúde, com base nesse conhecimento, terão a oportunidade de conscientizarem-se da importância de entrarem em contato com a cultura de seus parceiros, com as ferramentas diferentes que cada um usa para pensar, passando a compreender um pouco, dessa forma, algo sobre eles, como são diferentes ou parecidos uns com os outros (SCOLLON; SCOLLON; JONES, 2012). A partir do conhecimento da cultura do outro, será mais fácil entender e aceitar as diferenças e, consequentemente, a comunicação poderá atingir mais consenso e menos conflito. 354 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 A contribuição do detalhamento acadêmico aparece no sentido de reconciliar expectativas por vezes conflitantes que os comunicadores possuem na comunicação intercultural. Como foi destacado na Figura 1, a etapa 6 do processo envolvido na técnica é o recrutamento de facilitadores, profissionais da área médica e farmacêutica, e a realização de seu treinamento. Este tem como objetivo inseri-los no contexto discursivo dos profissionais que, originalmente, fazem a divulgação e as vendas dos medicamentos aos prescritores. Enquanto a falta de comunicação intercultural sobre saúde e risco é muitas vezes o resultado das crenças diferenciadas que as pessoas têm sobre coisas como o funcionamento do corpo e os mecanismos de contágio, é possível que com mais frequência ela seja uma questão de diferença de crenças do funcionamento do discurso sobre como diferentes aspectos de saúde e risco deveriam ser representados, quem deve dizer o que para quem, quando, onde e como, e como textos e conversações deveriam ser estruturados (JONES, 2013). Isso pode ser compreendido apenas a partir da definição de “cultura” como sistemas de discurso. A linguística aplicada lançou uma definição mais modesta, porém em certo sentido mais prática, de cultura. Culturas são vistas não como sistemas de crença e comportamento, mas como sistemas de discurso. Recursos que as pessoas têm à sua disposição para construir discursivamente várias práticas sociais e identidades sociais e para encenar essas práticas e reivindicar essas identidades em interações sociais situadas. (JONES, 2013, p. 157) Os facilitadores, a partir de sua imersão no sistema de discurso do comércio e das vendas de medicamentos, não simplesmente utilizam as mesmas palavras e frases-chave, mas interagem com o comportamento e as crenças sobre o funcionamento do discurso pertencentes ao sistema de discurso dos comerciantes, passando a enxergar o mundo com uma lente nova, que irá se ajustar àquelas que eles já possuem nos sistemas de discurso aos quais pertencem. Dessa forma, o entendimento intercultural pode melhorar e os mesmos alvos de médicos e farmacêuticos quanto à prescrição de medicamentos podem se concretizar através do ajuste discursivo. Assim, pode haver a mudança de comportamento almejada pelos que aplicam a técnica do detalhamento acadêmico. A linguagem e o discurso têm importância fundamental na construção identitária e na tomada de atitudes nas práticas sociais voltadas à promoção da saúde. O discurso e o comportamento produzidos pelos Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 355 diferentes sistemas de discurso vinculam-se diretamente à convicção de que, à medida que a saúde evolui de um fragmentado sistema centrado em ferramentas de serviço e pagamento para uma visão mais holística de cuidado e cobertura compreensivos, o detalhamento acadêmico poderá fortalecer o seu papel de fornecer as informações não comerciais e essencialmente baseadas em evidências que ajudarão a melhorar a base científica e o acesso ao cuidado que se quer para pacientes (IEDEMA; RHODES; SCHEERES, 2006) Mesmo quando questões como atitudes e crenças afetam a maneira como as pessoas se comunicam sobre saúde e risco, os analistas do discurso tendem a enxergá-las não como conjuntos de suposições estáticos, mas sim como parte de um discurso ativo de que as pessoas lançam mão para reivindicar identidades em situações específicas (ROBERTS, 2010). Ao realizar a técnica do detalhamento acadêmico, profissionais de diferentes áreas do conhecimento estão construindo uma identidade discursiva que agrega ferramentas culturais diversas, utilizadas para se atingirem metas antes pertencentes ora ao sistema discursivo médico-farmacêutico, ora ao sistema discursivo de comércio e vendas. Com essa aproximação interdiscursiva, entende-se que o uso racional de medicamentos e a eficiência de sistemas de saúde podem ser qualificados, atingindo-se, portanto, melhores resultados para os usuários do sistema. Declaração de autoria Ambas as autoras participaram de todas as etapas do artigo; porém Dóris Cristina Gedrat encarregou-se mais da discussão dos resultados, enquanto Gehysa Guimarães Alves ocupou-se principalmente da revisão e aprovação da versão final do trabalho. Referências AVORN, J. Academic Detailing: “Marketing” the Best Evidence to Clinicians. JAMA: The Journal of the American Medical Association, [s.l.], v. 317, n. 4, p. 361-362, 2007. Doi: 10.1001/jama.2016.16036 BRENNAN, N.; MATTICK, K. A Systematic Review of Educational Interventions to Change Behaviour of Prescribers in Hospital Settings, with a Particular Emphasis on New Prescribers. British Journal of Clinical Pharmacology, [s.l.], v. 75, n. 2, p. 359-372, 2012. 356 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 14. ed. São Paulo: Ática, 2010. COSTA, J.; BRASIL, C. C. A.; AFONSO JÚNIOR, A. G. Detalhamento acadêmico. Diretrizes. Belo Horizonte: UFMG, 2015. CURRY, W. J.; LENGERICH, E. J.; KLUHSMAN, B. C. et al. Academic Detailing to Increase Colorectal Cancer Screening by Primary Care Practices in Appalachian Pennsylvania. BMC Health Services Research, [s.l.], v.11, p.112, 2011. Doi: 10.1186/1472-6963-11-112. DOUGLAS, M. E.; WILDAVSKY, A. Risk and Culture: An Essay on the Selection of Technical and Environmental Dangers. Berkeley, CA: University of California Press, 1982. GARFINKEL, H. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1967. GEE, J. P. An Introduction to Discourse Analysis: Theory and Method. 3. ed. New York: Routledge, 2011. GUMPERZ, J. Discourse Strategies. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9780511611834 IEDEMA R.; RHODES, C.; SCHEERES, H. Surveillance, Resistance, Observance: The Ethics and Aesthetics of Identity (at) Work. Organization Studies, [s.l.], v. 27, n. 8, p. 1111-1130, 2006. JONES, R. H. Health and Risk Communication. An Applied Linguistic Perspective. London: Routledge, 2013. Doi: https://doi.org/10.4324/ 9780203521410 MÁSEIDE P. Discourses of Collaborative Medical Work. Text and Talk, [s.l.], v. 27, n. 5-6, p. 611-632, 2007. MENDES, K. D. S.; SILVEIRA, R. C. C.; GALVÃO, C. M. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 17, p. 758-764, 2008. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-07072008000400018 MISHLER, E. G. The Discourse of Medicine: Dialectics of Medical Interviews. Norwood, NJ: Ablex Publishing, 1984. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 357 MISHLER, E. G. The Struggle Between the Voice of Medicine and the Voice of the Lifeworld. In: CONRAD, P.; KERN, R. (Ed.). The Sociology of Health and Illness: critical perspectives. New York: St. Martin’s Press, 1990. MISHLER, E. G.; AMARASINGHAM, L. R.; OSHERSON, S. D.; HAUSER, S.T.; WAXLER, N. E.; LIEM, R. (Ed.). Social Contexts of Health, Illness, and Patient Care. Cambridge: Cambridge University Press, 1981. ROBERTS C. Intercultural Communication in Healthcare Settings. In: MATSUMOTO, D. (Ed.). APA Handbook of Intercultural Communication. New York: Walter de Gruyter, 2010. SCHEGLOFF, E. A. Some Sources of Understanding in Talk-inIntereaction. Linguistics, [s.l.], v. 25, n. 1, p. 201-218, 1987. SCOLLON, R.; SCOLLON, S. W.; JONES, R. H. Intercultural Communication: A Discourse Approach. Oxford, UK: Wiley-Blackwell, 2012. SHAW, J.; HARRIS, P.; KEOGH, G.; GRAUDINS, L.; PERKS, E.; THOMAS, P. S. Error Reduction: Academic Detailing as a Method to Reduce Incorrect Prescriptions. European Journal of Clinical Pharmacology, [s.l.], v. 59, n. 8-9, p. 697-699, 2003. SILVA, J. M.; STEIN, A. T.; SCHÜNEMANN, H. J.; BORDIN, R.; KUCHENBECKER, R.; DRACHLER, M. L. Academic Detailing and Adherence to Guidelines for Group B Streptococci Prenatal Screening: A Randomized Controlled Trial. BMC Pregnancy Childbirth, [s.l.], v. 13, p. 68, 2013. SOLOMON, D. H.; VAN HOUTEN, L.; GLYNN, R. J.; BADEN, L.; CURTIS, K.; SCHRAGER, H.; AVORN, J. Academic Detailing to Improve Use of Broad-Spectrum Antibiotics at an Academic Medical Center. Arch Intern Med., Chicago, v. 161, n. 15, p.1897-1902, 2001. Doi: https://doi.org/10.1001/archinte.161.15.1897 TANNEN, D. Conversational Style: Analyzing Talk Among Friends. 2. ed.. New York: Oxford University Press, 2005. 358 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 333-358, 2019 VASUDEV, K.; LAMOURE, J.; BEYAERT, M.; DUA, V.; DIXON, D.; EADIE, J.; HUSAREWYCH, L.; DHIR, R.; TAKHAR, J. Academic Detailing Among Psychiatrists – Feasibility and Acceptability. International Journal of Health Care Quality Assurance, v. 30, n. 1, p. 79-88, 2017. Doi: https://doi.org/10.1108/IJHCQA-04-2016-0047 WILLIAMS, R. The Sociology of Culture. Chicago: University of Chicago, 1981. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Da Carta de Princípios (1979) à Carta ao povo brasileiro (2002): variações ethicas1 do Partido dos Trabalhadores From the Charter of Principles (1979) to the Letter Adressed to Brazilian People (2002): ethical variations of the Worker’s Party Melliandro Mendes Galinari Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, Minas Gerais / Brasil melliandro@yahoo.it Luciana de Souza Pereira Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, Minas Gerais / Brasil pereira.s.luciana@gmail.com Resumo: O Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil, tem sido estudado por diversos historiadores e cientistas sociais, além de ser avaliado constantemente pelas mídias e pelo senso comum quanto a mudanças de postura político-discursivas ao longo de sua existência. Neste artigo, temos como objetivo analisar o ethos institucional do PT em dois momentos históricos distintos, a saber, no momento precedente à sua fundação (1979), a partir da chamada Carta de Princípios, e no ano eleitoral em que obteve a vitória para a Presidência da República (2002), com base na Carta ao Povo Brasileiro. Com isso, pretende-se apontar como foram construídas, retoricamente, as diferentes imagens do partido nesses dois documentos, estabelecendo um contraste linguístico-discursivo panorâmico. Inicialmente, o artigo situa o surgimento do PT no contexto brasileiro e seu percurso até chegar à Presidência da República. Em seguida, Vale ressaltar, desde já, que a palavra “ethica”, grafada com “h”, é uma derivação proposital da palavra grega “ethos”, não devendo, assim, ser confundida com o vocábulo “ética”, tal e qual entendido no senso comum, ou seja, como traço de “boa moral” ou “honestidade”. As variações ethicas do Partido dos Trabalhadores, nesse sentido, dizem respeito tão somente às “imagens de si” decorrentes de seus discursos, sejam elas quais forem, sem que com isso haja uma atribuição de avaliações positivas ou negativas. 1 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.359-400 360 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 no sentido de contextualizar as suas históricas mudanças, são trazidos apontamentos de cientistas políticos e historiadores, com o intuito de apresentar, por amostragem, pontos de vista controversos sobre as metamorfoses do PT. Enfim, o trabalho se atém à análise propriamente dita das cartas mencionadas, no sentido de apreender como o ethos é construído enquanto dimensão retórica. A conclusão mostra, dentre outras coisas, que, na Carta de 1979, constrói-se um partido de feição radicalmente classista, posicionando-se ao lado das massas exploradas contra as elites dominantes. Na Carta de 2002, por sua vez, tal conflito é silenciado, sobressaindo-se um ethos de caráter nacionalista e conciliador. Palavras-chave: Partido dos Trabalhadores (PT); discurso Político; Análise do Discurso; ethos; Retórica. Abstract: Since its foundation the Brazilian worker’s party (PT) has been studied by several historians and social scientists. It has also been constantly probed by the media and common sense due to political-discursive changes of its posture. The purpose of his article is to analyse the institutional ethos of PT in two distinctive historical moments. Firstly, the moment before its foundation (1979), beginning with the so called Charter of Principles, and secondly, the election year when victory to the presidency of the republic was achieved (2002), based on the letter to the Brazilian people. Thus, it is intended to point in these two moments how the different images of the party were rhetorically constructed by establishing a linguistic-discursive panoramic contrast. Initially the article sets the party’s origin in the Brazilian context and its course to the presidency of the republic. Hence, for contextualization of its historical changes, notes of political scientists and historians are brought up with the intention of presenting, by sampling, controversial points of view on the party metamorphoses. Ultimately, this paper is concerned to the analysis of the letters which have been mentioned with the intention of apprehending how the ethos is constructed as a rhetorical dimension. The conclusion shows, amongst other things, that in the 1979 letter a party radically classicist is built, it also posits itself next to the exploited mass against the dominant elite. In the 2002 letter, however, such conflict is silenced, highlighting a nationalist and conciliator ethos. Keywords: Worker’s Party (PT); political discourse; Discourse Analysis; ethos; Rhetoric. Recebido em 02 de abril de 2018 Aprovado em 09 de setembro de 2018 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 361 1 Introdução Este artigo pretende averiguar, a partir de uma análise discursiva, como se deu, retórica e linguisticamente, uma guinada identitária na imagem institucional (ou ethos) do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo-se como amostragem dois conhecidos documentos emitidos por essa instância política (em anexo): a Carta de Princípios, assinada pela Comissão Provisória no dia 1 de maio de 1979 (momento que antecedeu a fundação oficial da sigla, em 10 de fevereiro de 1980), e a Carta ao Povo Brasileiro, lançada à população em junho de 2002, em função das eleições presidenciais daquele ano, disputadas por Luís Inácio Lula da Silva (PT) e José Serra (PSDB), dentre outros. Para tanto, usaremos como parâmetro teórico de análise a noção de ethos desenvolvida nos âmbitos teóricos da Retórica e da Análise do Discurso, que pressupõe, em termos gerais, que toda tomada de palavra, seja pelo conteúdo, seja pela forma da enunciação, implica (direta ou indiretamente) a construção de “imagens de si”. Buscaremos ressaltar, dessa forma, que o ethos pode ser apreendido não apenas em função de um orador/locutor individual, mas, também, em relação a uma instância institucional, como o PT e partidos políticos (ou instituições) em geral. Em 1979, como se sabe, o Presidente Figueiredo enviou finalmente para o Congresso, em meio a pressões pela redemocratização do país, a Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Sancionada no final daquele ano, a Lei reestabelecia o pluripartidarismo no Brasil e, dessa forma, o bipartidarismo vigente no Regime Militar, representado pela ARENA (frente de apoio ao Regime autoritário) e pelo MDB (frente de oposição), foi extinto, dando voz e vez à estrutura partidária tal e qual conhecemos hoje.2 A ARENA (Aliança Renovadora Nacional) se transformou no Partido Democrático Social (PDS), que, em função de dissidências, gerou o Partido da Frente Liberal (PFL, atual DEM). Mais adiante, o próprio PDS foi rebatizado algumas vezes até se tornar o Partido Progressista (PP), tal e qual conhecemos hoje. Foi nessa mesma dinâmica que outros partidos foram surgindo, como, por exemplo, o PSDB. Quanto ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro), houve apenas o acréscimo do “p” de Partido, tornando-se conhecido, durante décadas, como PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Porém, poucos meses antes do fechamento deste artigo, no dia 19/12/2017, decidiu-se em convenção nacional da legenda que esta voltaria às origens, rebatizando-se como MDB, sua designação atual. 2 362 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 É nesse contexto que se pretende criar um partido novo: o Partido dos Trabalhadores (PT).3 De acordo com alguns documentos de fundação, teria sido a partir da desigualdade entre as classes sociais, da necessidade da classe explorada oferecer resistência e se defender, de forma organizada, da opressão e dos privilégios das classes dominantes e, ainda, da carência de oferecer aos trabalhadores uma expressão política unitária, que se solidificou fortemente a ideia de se instituir e construir um partido de base independente. Isso porque o MDB, partido que se opunha ao Regime Militar, já não cumpria, aos olhos da base idealizadora do PT, o papel de funcionar autenticamente como um instrumento de luta dos trabalhadores, em função de sua composição altamente heterogênea e contraditória, isto é, composta por setores empresariais e trabalhistas a um só tempo. Nessa direção, em 1º de maio de 1979, exatamente em um Dia do Trabalhador, foi tornada pública a Carta de Princípios do PT,4 no sentido de conduzir o movimento de consolidação e legalização do partido. Segundo o documento, o MDB, por sua origem, por sua ineficácia histórica, pelo caráter de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória, em que se congregam industriais e operários, fazendeiros e peões, comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos interesses são incompatíveis e nas quais, logicamente, prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares de “tomar de assalto” o MDB é muito mais que insensata: é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de Para exemplificar os movimentos que se articulavam e que viriam a contribuir para a origem do Partido dos Trabalhadores (PT), podemos falar da inquietação de eclesiásticos de esquerda da Igreja Católica quanto ao modelo autoritário e econômico vigente, acrescentando-se a liderança do Movimento Revolucionário Trotskista, extinto oficialmente pelo Regime Militar, e representações de grupos que participaram ativamente da luta contra o Regime como a Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil/Ala-PC do B, a Ação Libertadora Nacional/ALN, a Ação Popular MarxistaLeninista/AP-ML, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário/PCBR, o Movimento de Emancipação do Proletariado/MEP. 4 A Carta de Princípios do Partido dos Trabalhadores faz parte dos Anexos deste artigo e foi extraída do sítio: <https://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2014/03/ cartadeprincipios.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 363 setores de nossas classes dominantes. Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras, o MDB tem-se revelado, num passado recente, um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras. (Anexo I, linhas 121-133) Buscando, portanto, uma “terceira via” representativa, isto é, fora da dicotomia ilusória entre ARENA e MDB, o Movimento Pró-PT aprovou, em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion/SP, o lançamento oficial da legenda. Como sugere o Manifesto de Criação, o Partido dos Trabalhadores nasceria da necessidade sentida por milhões de brasileiros de intervir na vida social e política do país para transformá-la, (...) da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados.5 Com essa pequena introdução, somada à própria leitura do Anexo I deste trabalho, podemos ter já uma ideia da vitalidade, da identidade e da energia dessa nova instituição: tratava-se de um partido de massas, que visava atuar não apenas nas disputas eleitorais, mas, também, no dia a dia dos trabalhadores, dentro de uma nítida concepção de luta de classes. No entanto, com o passar dos anos, mais claramente a partir da campanha presidencial de 2002, algumas contradições se apresentaram, acompanhadas de vivas críticas de vários setores da esquerda. A Coligação “Lula Presidente” (2002) teria sido composta, tempos depois da Carta de Princípios, justamente pelas mencionadas forças contraditórias, num gesto de alianças políticas até então bastante criticado pela práxis usual do partido. Além do PT, do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB) – âmbitos tradicionais da esquerda –, a frente eleitoral encabeçada pela candidatura Lula, em 2002, foi incrementada pelo Partido Liberal (PL) – legenda do então candidato a vice, o megaempresário José Alencar –, pelo Partido da Mobilização Nacional (PMN), incluindo (ainda que extraoficialmente) o apoio de outros setores conservadores, como aqueles ligados à família de José Sarney (PMDB), O Manifesto de Criação do Partido pode ser visto no sítio: <http://csbh.fpabramo.org. br/uploads/manifestodelancamento.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018. 5 364 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 quadros do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e do Partido Progressista (PP). Interessantemente, na Carta ao Povo Brasileiro,6 de 2002 (Anexo II), um trecho é bastante representativo dessa polêmica estratégia política: a crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país. (Anexo II, linhas 30-37) (itálicos nossos) O fato é que, da Carta de 1979 à Carta de 2002, mudanças significativas no plano discursivo parecem ter acontecido, e muito se tem falado, durante essa trajetória, em reconstrução de imagens (ou ethos) do PT, o que vem dividindo as opiniões entre uma crítica visceral à legenda e, no sentido oposto, uma sofisticada justificativa política para corroborar essa guinada comportamental. Nessa perspectiva, cientistas políticos (e/ou historiadores) como Fausto (2012), Vianna (2006), Sader (2005), Reis (2007), Petit (2006) e Mattoso (2013), dentre outros, além de atores políticos diversos e movimentos sociais, têm apontado metamorfoses no discurso petista, com argumentos que indicam discrepâncias significativas no decorrer dos anos, ora pelo sabor das circunstâncias, ora pelas transformações da realidade brasileira. A partir desse controverso dilema, e isentando-nos de fazer uma contextualização histórica mais pormenorizada do PT entre 1979 e 2002 (arco de tempo dos documentos em anexo), buscaremos resgatar, na sequência do artigo, algumas “vozes” que se debruçaram sobre o problema da mudança de postura ethica do PT. Com isso, temos como objetivo, concomitantemente, (i) atestar a relevância sócio-política da questão aqui abordada em escala nacional, (ii) fornecer um quadro contextual (por amostragem) de como o problema tem sido visto/avaliado e (iii) apresentar um parâmetro mínimo para as análises dos Anexos A Carta ao Povo Brasileiro foi extraída do sítio: <http://novo.fpabramo.org.br/uploads/ cartaaopovobrasileiro.pdf>. Último acesso em: 28 mar. 2018. 6 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 365 presentes na terceira parte do artigo, momento em que buscaremos apresentar a contribuição específica da Análise do Discurso e da Retórica para esse debate. 2 As Críticas da Metamorfose, as Metamorfoses da Crítica Inicialmente, é comum observar que o PT teria passado, pouco a pouco, de “partido de militantes” a um “partido de funcionários”, à medida que foi conquistando pleitos oficiais, principalmente após a sua chegada à Presidência da República, em 2002: os que antes eram líderes de movimentos sociais, agora se tornam prefeitos, assessores ou deputados; os que antes alimentavam esses movimentos, agora se veem como articuladores da política profissional. Segundo Reis (2007, p. 16), não se quer afirmar que estas metamorfoses tivessem se realizado de forma integral. Que características presentes na gênese do PT tivessem se dissolvido no ar. Mas é como se as novas referências [...] estivessem agora predominando, conferindo à dinâmica do Partido um rumo distinto, diferentes e imprevistos horizontes. Petit (2006), por exemplo, nos fala dos encontros que Lula e seus assessores nutriram, após ocupar a Presidência da República – senão antes, como sugere a Carta de 2002 –, com representantes de setores da elite econômica, tais como empresários, banqueiros etc., no sentido de sinalizar que um Governo do PT se esforçaria para controlar a inflação, acalmar os mercados e/ou garantir espaços para representações políticas estranhas à sua própria história, construindo, assim, uma governabilidade de coalizão. Nessa perspectiva, alianças petistas foram vistas por pensadores como Fausto (2012) e Petit (2006) como “oportunistas”, tais como as alianças com o PMDB ou concessões políticas feitas às bancadas Evangélica e Ruralista nas casas legislativas. Tais acertos teriam impactado em medidas de cunho econômico que teriam conduzido o partido ao “centro” político (ou, até mesmo, à “direita”), como muitos sustentaram. Isso nos levaria facilmente à percepção de que o PT teria modificado as teses que outrora eram defendidas, assim como o seu discurso. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, muitas das críticas não se abstiveram em admitir, sem alguma polêmica, os avanços dos governos Lula no plano da política social, a partir de programas como o Bolsa 366 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Família e o Fome Zero (que, dentre outras coisas, retiraram milhões de pessoas da linha da pobreza), a expansão do crédito para as classes médias e mais necessitadas, a política de cotas, a construção de novas universidades etc. Ainda em um direcionamento crítico, Sader (2005) considera que o Partido dos Trabalhadores teria surgido como uma legenda forte de esquerda, mas que perdera essa força ao caminhar para o “centro”, mantendo a continuidade da política econômica neoliberal do governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Petit (2006) nos lembra, voltando ao passado, que o PT, nas eleições de 1989, não obteve apoio significativo do empresariado brasileiro. No entanto, desde o início dos anos 1990, o partido teria iniciado uma modesta (porém contínua) aproximação com a classe empresarial do país. Dessa forma, na visão do cientista, as candidaturas do PT de 1994 já teriam sido custeadas pela metade por empresários e banqueiros. De um ponto de vista um pouco diferente, Nobre (2013) afirma que, no momento em que o governo de Fernando Henrique se aliou ao PFL (hoje DEM), foi estabelecida uma corrente de forças em que, ao Partido dos Trabalhadores, só restariam duas alternativas diante de eleições futuras: permanecer na oposição indefinidamente ou caminhar em direção ao centro, à maneira do PMDB. Esse caminhar ao centro é um típico movimento do sistema político brasileiro e caracterizaria, assim, para o PT, uma estratégia nova e mais flexível de alianças após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil (1989, 1994 e 1998). Nessa perspectiva, já haveria, no contexto das eleições presidenciais de 1994, uma sinalização de que o PT estaria prestes a tomar essa direção. Nas palavras do pesquisador, se permanecesse em oposição inflexível, o PT estaria afastado do poder, fosse por um longo período, fosse indefinidamente, mas garantindo com isso a polarização necessária para manter a estrutura fundamental do novo sistema. Se, ao contrário, o PT fizesse o movimento em direção ao peemedebismo, também a continuidade do novo arranjo deveria estar de alguma maneira garantida, já que significaria a aceitação da lógica do Plano Real e seu novo padrão de desenvolvimento econômico subordinado para o país. (NOBRE, 2013, p. 54) Podemos observar que este percurso de caminhar ao centro (ou à direita, como denunciaram os “mais radicais”) é tradicional na política brasileira. Mais do que isso, o conteúdo citado seria também Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 367 a base de algumas justificativas – desta vez enunciadas como positivas – da mudança de postura do PT: o partido precisaria chegar ao poder para realizar transformações sociais defendidas historicamente, ainda que parcialmente. Entretanto, na conjuntura brasileira, tal escalada não seria possível se o partido continuasse a insistir naquela imagem dura, inflexível e radical de sua fundação. Mesmo assim, Vianna (2006, p. 94) considera que, em 1998, a esquerda brasileira ainda se abstinha de consolidar alianças na direção do centro político. Chegando em 2002, “a esquerda busca o centro, seja em sua política de alianças, seja no discurso moderado”. Nessa linha de raciocínio, o autor aponta a importância da articulação do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002, ao afirmar que o “movimento de ‘ida ao centro’ por parte do PT pôde credenciálo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana” (VIANNA 2006, p. 98). Dessa maneira, e voltando às críticas, constantemente nos é dito que o PT teria entrado no pleito de 2002 para vencer a disputa a qualquer preço, não se importando com os novos rumos aos quais o partido se subordinaria. Reis (2007, p. 17) acrescenta, nesse sentido, que o PT preparou-se profissionalmente para a campanha de 2002. Na condição de grande partido, que já era, arrecadou finanças consideráveis. Em seguida, moderou o discurso político, um processo que já vinha se desdobrando, desde a campanha de 1994, mas que alcançaria, em 2002, com a Carta aos Brasileiros, um novo patamar. Finalmente, articulou assessoria de marketing que viabilizaria a proposta do candidato através dos meios de comunicação, além de tratar do seu visual, despindo Lula de quaisquer vestígios que o pudessem assimilar a uma liderança radical. (itálicos do autor) Dessa forma, estudiosos apontam o ano de 2002 como um marco na materialização das mudanças de direção do Partido dos Trabalhadores, tanto com a moderação de pautas de cunho mais radical de esquerda, quanto com a atuação de profissionais de marketing que puderam atuar na imagem e na própria campanha de um modo geral. Considerando as consequências da vitória de Lula, Iasi (2014a) visualiza a gestão do PT por outro ângulo, considerando que, quando o assunto era a questão social, o governo buscou proximidade com setores da grande “burguesia monopolista”. Para ele, nessa dinâmica, parte da burguesia teria “sequestrado” a representação da classe trabalhadora. Assim, a gestão 368 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 do PT teria ofuscado a importância da luta de classes, tão alimentada por ele em sua fundação e anos posteriores, priorizando uma administração mais preocupada com o capital. Para o autor, essas ações limitaram o governo do PT, que atalhou pelo caminho do “reformismo fraco”, em detrimento de um “reformismo forte”. Dessa forma, para não romper com as exigências do mundo do capital, isto é, com os anseios da burguesia monopolista, o governo petista precisou contingenciar consideravelmente as demandas dos trabalhadores. Consequentemente, o PT, arquitetado tradicionalmente sob um viés socialista (ou de defesa dos direitos e interesses dos oprimidos), teria se transformado no articulador da burguesia monopolista no país. Iasi (2014b) afirma, desse modo, que, na gestão do PT, o Brasil teria finalmente transitado do status da dominação burguesa “sem hegemonia”, para o status de dominação burguesa “com hegemonia”. Nas palavras do pesquisador, o preço da governabilidade e do aparente sucesso de governo é o desarme das condições políticas, organizativas e de consciência de classe que poderiam apontar para uma ruptura com a ordem do capital. O que presenciamos aqui é, paradoxalmente, o fato que a experiência do PT se não levou à meta socialista suposta inicialmente, cumpriu factualmente uma outra tarefa: encerrou o ciclo de consolidação da revolução burguesa no Brasil (IASI, 2014b, p. 17). Isso pode ser explicado, também, em função de várias críticas que partidos políticos tidos como “mais à esquerda”, tais como o PCB, o PSTU ou o PSOL, por exemplo, fizeram à gestão petista após 2002: o partido teria investido no aumento de crédito e na solução dos impasses sociais mais pela via do consumismo desenfreado do que por reformas estruturais profundas (como as reformas política, agrária, urbana, previdenciária e tributária); mais pela via do ajuste do salário mínimo acima da inflação do que pelos caminhos de um salário mínimo tal e qual sugerido, por exemplo, pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).7 Nesse sentido, Safatle (2013) No link a seguir se pode ver o valor do salário mínimo sugerido pelo DIEESE, baseado na cesta básica, desde 1994: <http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/ salarioMinimo.html>. 7 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 369 avalia, de forma também crítica, que o governo do PT (2003-2010) demonstrou uma evidente incapacidade de gerenciar os impasses do presidencialismo de coalizão brasileiro. Para ele, é como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de sempre (SAFATLE, 2013, p. 14). Por outro lado, Mattoso (2013) considera que o que houve foi um novo modelo de política que, de maneira sutil, deixava de priorizar a indústria e o crescimento econômico sob o viés das exportações; priorizava, um pouco diferentemente, a expansão do mercado interno, valorizando o papel do Estado, popularizando o crédito e ampliando as políticas sociais nos primeiros 10 anos em que esteve à frente do país. Dessa maneira, o governo buscava mostrar o reconhecimento geral de que as políticas sociais beneficiavam, além da inclusão social, a redução da desigualdade e da pobreza, favorecendo a economia e o crescimento do PIB. Nessa direção, o pesquisador faz a seguinte consideração, de cariz mais positivo: na verdade, o evidente sucesso dos governos eleitos após 2002 não se deveu exclusivamente à esfera da economia ou do social, mas ao uso de políticas inovadoras capazes de articular o econômico e o social e potencializar o crescimento, a produtividade e a institucionalidade, gerando algo inexistente ao longo das duas décadas anteriores, o desenvolvimento... Depois de anos de neoliberalismo, de subordinação aos interesses rentistas e de ausência de políticas econômicas pró-desenvolvimento, fortaleceu-se o uso de políticas desenvolvimentistas e de combate à pobreza, mais intensamente após 2006, com a mais efetiva articulação do econômico e do social e com o enfrentamento das crises internacionais com políticas inovadoras e anticíclicas. (MATTOSO, 2013, p.119-120) Como se vê até aqui, estamos longe de um consenso sobre o problema, ou melhor, são complexas as críticas da mudança, assim como as mudanças da crítica. Sem entrar em maiores detalhes, esse pequeno panorama pôde nos dar uma ideia mínima da relevância da questão aqui abordada, assim como da densidade e/ou variedade de pontos de vista 370 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 (mais ou menos negativos ou positivos). O que podemos perceber com esses apontamentos é que a transformação do Partido dos Trabalhadores salta aos olhos daqueles que acompanham o percurso da legenda – ou seja, a mudança em si não é contestada –, embora essa transformação venha acompanhada de julgamentos distintos nos planos social e acadêmico. Como se pode constatar, o problema é bastante complexo e não desprovido de emotividade, se observamos os julgamentos variados da metamorfose discursiva e comportamental do PT. Outro complicador é o que poderíamos entender por certos termos citados neste artigo, que dizem respeito a uma filosofia político-discursiva, tais como “direita”, “esquerda” e, até mesmo, “centro”. Nesse caso, Bobbio (1995) nos esclarece que a tão difundida dicotomia – direita e esquerda – foi considerada obsoleta por vários pensadores, após a queda do muro de Berlim. Não obstante, afirmar isso categoricamente seria algo temerário, uma vez que a díade se encontra no cerne do debate político contemporâneo, sendo reivindicada como bandeira por vários setores políticos e movimentos sociais. Dito de outra forma, os termos direita e esquerda são ainda largamente utilizados para fazer menção a diferenças no pensar e no agir políticos. O ponto complicador é que não se pode chegar a uma verdade definitiva ou essencial sobre o binômio, visto que “direita e esquerda não são conceitos absolutos mas historicamente relativos” (BOBBIO, 1995, p. 81). Citando Marco Revelli, o autor ainda arremata: “Direita” e “esquerda” não são conceitos absolutos. São conceitos relativos. Não são conceitos substantivos ou ontológicos. Não são qualidades intrínsecas ao universo político. São lugares do “espaço político”. Representam uma determinada topologia política, que nada tem a ver com a ontologia política: “Não se é de direita ou de esquerda no mesmo sentido em que se diz que se é ‘comunista’, ‘liberal’, ou ‘católico’”. Em outros termos, direita e esquerda não são palavras que designam conteúdos fixados de uma vez para sempre. (BOBBIO, 1995, p. 91-92) Esse é um grande problema que também atravessa o nosso objeto de análise: enquanto muitos definem o PT da Carta de 2002 como uma instituição que caminhou para o centro (e até mesmo para a direita), seus partidários continuam reivindicando a etiqueta de partido de esquerda, não obstante mudanças significativas tenham ocorrido no discurso e no agir político da legenda, desde a Carta de 1979. Sendo assim, não cabe a este trabalho definir categoricamente o que seria “direita” ou “esquerda”, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 371 pois se trata de noções históricas cambiantes. Prova disso é que são catalogadas várias tipologias de direita (“autoritária”, “conservadora”, “liberal” etc.) e “esquerda” (“reformista”, “revolucionária”, para ficar com dois exemplos). Com a ajuda de Bobbio, no entanto, poderíamos traçar linhas ou princípios gerais que poderiam, pelo menos, funcionar como um guia básico para a nossa reflexão, independentemente das flutuações históricas. Nesse sentido, o autor, com base em outros tantos pensadores, nos informa que a direita possui ainda um apego sistemático à tradição, ou seja, às práticas tradicionais e conservadoras do fazer político, agarrando-se correntemente à manutenção da ordem e às hierarquias (ou desigualdades sociais). Isso implica obviamente dizer que as suas práticas efetivas no campo social caminhariam nessa direção, independentemente de qualquer discurso eleitoral. Já os valores da esquerda desembocariam na emancipação dos homens, principalmente dos mais explorados, no sentido de libertar os indivíduos das amarras impostas pelos privilégios de raça, casta, classe etc. Essa diferenciação básica, apesar de problemática, parece estar na origem das críticas ao PT vistas acima, principalmente a partir de 2002. O seu vínculo ao campo da tradição estaria denunciado pela aliança ao empresariado (representada, como já visto, pelo vice de Lula, José Alencar), mas também pela apregoada continuidade da política econômica neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, passando pelas concessões a setores conservadores, como as bancadas evangélica e ruralista. Parece ser nesse sentido, curiosamente, até mesmo a avaliação positiva empreendida por Vianna (2006, p. 98), ao afirmar que o “movimento de ‘ida ao centro’ por parte do PT pôde credenciá-lo a estabelecer alianças com significativos setores dessa tradição republicana”. (grifo nosso) No entanto, como foi afirmado, setores de diversos movimentos sociais (como o Movimento dos Sem Terra [não sem críticas pontuais]) e apoiadores do PT, ainda continuaram a considerá-lo, mesmo assim, como um partido “autenticamente” de esquerda, o que prova mais uma vez que os conceitos são cambiantes, e que não caberia a este trabalho encerrar (ou julgar) essa questão. Nesse caso, os critérios para se definir o seu estatuto legítimo de esquerda estariam no combate à pobreza e na amplitude das políticas sociais. Contornando essa questão, portanto, nosso objetivo a seguir será apenas mostrar, de forma panorâmica, o que uma leitura retórico-discursiva poderia acrescentar sobre o entendimento 372 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 das mudanças simbólicas do partido, a partir de nossos Anexos, até mesmo para contribuir para debates futuros. 3 O que dizem as cartas: o ethos do PT em perspectivas Como se sabe, o ethos se define, retoricamente, como as “imagens de si” decorrentes de acontecimentos discursivos (AMOSSY, 2008, 2010). Como diria Maingueneau (2008), os textos (orais e escritos) atribuem, explicita ou implicitamente, um “tom” específico ou uma determinada “corporalidade” aos seus enunciadores, não apenas em função do conteúdo que escolhem/proferem, mas, também, em função de como eles enunciam, o que nos coloca diante de seleções linguísticas significativas do ponto de vista retórico. Por conta dos limites deste artigo, e por ser uma noção já bastante abordada em textos sobre a Retórica e a Análise do Discurso, não faremos uma explanação teórica mais ampla sobre a noção de ethos. Ao leitor não familiarizado com a questão, sugerimos a consulta dos textos de Galinari (2012), Maingueneau (2008) e Amossy (2008), com os quais este artigo se encontra em consonância. Sendo assim, a seguir, buscaremos mostrar, em termos bem gerais, as imagens partidárias produzidas pelas Cartas do PT de 1979 e 2002, respectivamente.8 Em termos linguísticos, buscaremos nos ancorar em mecanismos diversos presentes nos textos, mas, em um grau um pouco maior, nos chamados índices de modalização, direcionando-os para a construção do ethos com alguns esclarecimentos conceituais oportunos em notas de rodapé.9 Por serem textos relativamente extensos, não faremos uma análise minuciosa (linha a linha), mas apenas discutiremos alguns trechos que julgamos serem representativos do “conjunto de cada obra”. Nessa perspectiva, o artigo também não contém um investimento teórico denso sobre o ethos e demais categorias conceituais da linguística. Por um lado, por se tratarem de categorias já bastante conhecidas e, por outro, para que a análise de nosso objeto principal – o conteúdo dos Anexos – não fique prejudicada. 9 O fenômeno linguístico da “modalização” permite-nos realizar o caminho que vai do enunciado à enunciação. Trata-se, aqui, de uma série de elementos da língua que não se referem propriamente ao “que se diz”, ou seja, ao conteúdo asseverado pelas sentenças, mas ao “como se diz”. Para tanto, a linguagem possui “termos ou expressões modalizadoras” que nos ajudam a apreender, no discurso, as marcas linguísticas de sua instância produtora. Os índices linguísticos de modalização podem ser de várias ordens: a organização frástica (assertiva, interrogativa, imperativa, exclamativa), modos e tempos verbais, expressões adverbiais, predicados cristalizados com adjetivos (“é 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 373 3.1 A Carta de 1979 – Anexo I No Anexo I, de 1º de maio de 1979, nota-se que a modalidade enunciativa10 predominante é composta por asserções em 3ª pessoa, intercaladas em alguns momentos com o uso do “nós” (linhas 55-62 e 144-151, sobretudo). O manejo dominante da 3ª pessoa promoveria, a nosso ver, um certo efeito de objetividade para o discurso, seja para se descrever o próprio PT (como se este estivesse “fora da enunciação”), seja para se construir uma análise crítica da conjuntura brasileira, tematizando pontos fulcrais como a própria sociedade, a exploração dos oprimidos pelas elites, os processos de luta dos trabalhadores ou os perfis políticos de partidos como o PTB e o MDB. Vejamos um trecho inicial: a ideia da formação de um partido só dos trabalhadores é tão antiga quanto a própria classe trabalhadora. Numa sociedade como a nossa, baseada na exploração e na desigualdade entre as classes, os explorados e oprimidos têm permanente necessidade de se manter organizados à parte, para que lhes seja possível oferecer resistência séria à desenfreada sede de opressão e de privilégios das classes dominantes. (Anexo I, linhas 1-6) Além da tematização da nova ideia de formação de um partido “só” de trabalhadores (“organizados à parte”),11 o fragmento é sintomático de um conteúdo – um “ele(s)” – que se encontra repisado durante toda a Carta, de alta relevância para a edificação do ethos. Trata-se da dicotomia certo”, “é preciso”, “é necessário”), performativos (“eu ordeno”, “eu prometo”, “eu te proíbo”), verbos auxiliares (poder, dever, ter que/de, haver de, precisar de), verbos de atitude proposicional (“eu creio”, “eu sei”, “eu duvido”, “eu acho”), a entonação e demais marcadores prosódicos etc. Para maiores detalhes, ver Neves (2011), Paveau e Sarfati (2006) e Galinari (2018). 10 A partir de Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002, p. 182-184), além de outros estudos variados em linguística, podemos dizer que as modalidades enunciativas referemse ao manejo dos pronomes pessoais, de modo a mostrar um maior ou menor grau de subjetividade/objetividade no discurso. Nesse caso, a enunciação em 1ª pessoa produziria um efeito de subjetividade; a enunciação em 2ª pessoa, um efeito de interlocução; a enunciação em 3ª pessoa, um efeito de objetividade. 11 Expressões adverbiais como “à parte” ou “só” fazem parte das modalidades epistêmicas, comentadas mais adiante neste artigo. Neste momento, o foco incide sobre a modalidade enunciativa em terceira pessoa, que permite ao texto tratar de referentes no mundo social e político. 374 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 retórica profunda, e de feições classistas, entre “os de baixo” e “os de cima” (linhas 111-113). Os primeiros, colocados sempre na dinâmica da “luta”, seriam os “explorados e oprimidos”, como se vê no fragmento acima. Esses objetos de referência encontram-se atualizados ao longo de todo o texto, designados por outras expressões retóricas: “o operariado e os setores proletarizados de nossa população” (linhas 13-14), “o povo brasileiro” (linha 63), as “massas trabalhadoras, exploradas e oprimidas” (linhas 113, 144, 192 e 233). Já “os de cima”, por seu turno, apresentados na citação anterior como as “classes dominantes”, atualizam-se também, no desenrolar do texto, a partir do uso de expressões também carregadas de sentido: “os patrões e o governo” (linha 27), os “partidos e governos criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas” (linhas 67-68) [como o PTB de Vargas e o MDB, com seu programa “pró-capitalista”], “os detentores do poder” (linha 91), as “elites privilegiadas” (linha 165), o “modelo econômico vigente” (linha 156) e os “setores do empresariado nacional” (linhas 198-199). Dessa forma, o novo partido se funda radicalmente com um ethos classista, isto é, engajado na luta pelos trabalhadores e, além disso, corajoso, colocando-se de forma destemida à disposição dos mais necessitados para os embates necessários contra os famigerados patrões e os programas pró-capitalistas da burguesia dominante. Trata-se, assim, de um partido “só” de trabalhadores (organizados “à parte”), advérbios que modalizam um tom convicto quando combinado ao estilo assertivo em 3ª pessoa, assegurando categoricamente um ethos de “partido de massas”, expressão presente explicitamente na linha 192. Nessa toada, na continuidade do fragmento acima apresentado, o PT se mostra também seguro em relação àquilo que diz, isto é, sem deixar margens para dúvidas, descrevendo (após a linha 7) o processo emancipatório de combate dos trabalhadores contra o jugo servil da elite, incluindo as greves deflagradas, as tentativas de sabotagem do governo e dos patrões, o posicionamento de outros partidos, a situação do país etc. Podemos acrescentar que essa “análise de conjuntura”, descrita minuciosamente não apenas no início, mas também ao longo de toda a Carta de 1979, daria retoricamente ao PT e seus signatários ares de expertise, de conhecimento aprofundado da realidade brasileira, apontando tanto para um ethos politizado, quanto para a imagem (“quase técnica”, oriunda do vocabulário dos cientistas sociais) de um bom observador crítico de seu tempo e de sua história. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 375 Em função do quadro político brasileiro, da opressão sofrida pelos mais necessitados, o novo partido é posto, como se vê também na citação anterior, como uma necessidade de sobrevivência da classe operária (“têm permanente necessidade de”), mostrando mais uma vez o grau acentuado de certeza e de convicção da instância oratória, engajamento que se repete a seguir: é por isso que a ideia de um partido dos trabalhadores, ressurgindo no bojo das greves do ano passado e anunciado na reunião intersindical de Porto Alegre, em 19 de janeiro de 1979, tende a ganhar, hoje, uma irresistível popularidade. Porque se trata, hoje, mais do que nunca, de uma necessidade objetiva para os trabalhadores. (Anexo I, linhas 46-49) Devemos entender a “irresistível popularidade” do PT justamente diante do quadro adverso para os mais pobres, quadro descrito em praticamente toda a Carta, o que, necessariamente, exige uma organização “à parte” da classe trabalhadora. Dessa forma, o ethos de “conhecimento aprofundado” da realidade brasileira (dos pobres) e de consciência política, assim como de firmeza e engajamento classista, teria despertado determinadas reações dos outros partidos que ostentariam “fachadas democráticas” (para usar uma expressão da linha 68), receosos do crescimento da nova sigla. As classes dominantes, portanto, cientes da organização partidária crescente dos trabalhadores, ou melhor, do próprio PT, (...) se apressam a sair a campo com suas propostas de PTB. Mas essas propostas demagógicas já não conseguem iludir os trabalhadores, que, nem de longe, se sensibilizaram com elas. Esse fato comprova que os trabalhadores brasileiros estão cansados das velhas fórmulas políticas elaboradas para eles. Agora, chegou a vez de o trabalhador formular e construir ele próprio seu país e seu futuro. (Anexo I, linhas 50-55) O trecho é bastante significativo, mais uma vez, do comportamento enunciativo (ou ethos) da nova instância partidária: mostra-nos uma arguta capacidade de análise conjuntural do país, perscrutando as dinâmicas sociais de ação e reação de forças políticas antagônicas. Uma postura firme de coragem e empenho se apresenta, assim, em forma de denúncia de propostas demagógicas vãs, incapazes de iludir a classe trabalhadora, o que corrobora um ethos de enunciador seguro, convicto e propenso 376 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 a transmitir confiança a quem o lê ou escuta. Além do “tom” assertivo em 3ª pessoa, com verbos semanticamente carregados no presente do indicativo, esse ethos é amplificado pelo uso de modalidades linguísticas epistêmicas,12 tais como (na citação acima) a expressão adverbial “nem de longe”, “agora” (“chegou a vez de...”) ou, ainda, fórmulas como “esse fato comprova que”, com as quais o enunciador mostra um grau acentuado de certeza/firmeza diante do conteúdo asseverado. Expressões ou advérbios já salientados como “só”, “à parte” e “têm permanente necessidade de” também atestam esse grau acentuado de certeza epistêmica, podendo assumir também um caráter deôntico de palavra de ordem, apontando mais uma vez para um ethos convicto/militante. Procedimentos semelhantes são adotados quando o assunto é o MDB, com o acréscimo das chamadas modalidades apreciativas13 (em itálico): o MDB, por sua origem, por sua ineficácia histórica, pelo caráter de sua direção, por seu programa pró-capitalista, mas sobretudo por sua composição social essencialmente contraditória, em que se congregam industriais e operários, fazendeiros e peões, comerciantes e comerciários, enfim, classes sociais cujos As chamadas modalidades epistêmicas, com base em Neves (2011), se caracterizam como elementos linguísticos imbuídos de um valor modal referente à possibilidade e à necessidade, em termos da expressão do conhecimento e da crença, da certeza e da incerteza, do possível e do impossível. Uma série de advérbios ou expressões adverbiais as caracterizam (certamente, possivelmente, com certeza, quem sabe, talvez etc.), dando ao enunciador um caráter convicto ou duvidoso diante do conteúdo proposicional asseverado. 13 A partir de Paveau e Sarfati (2006), podemos afirmar que as modalidades apreciativas são caracterizadas por uma série variada de expressões, nomes/substantivos, adjetivos, advérbios (e até mesmo verbos) propícios a qualificar algo. Dito de outra forma, ao serem escolhidos ou combinados, tais elementos podem apreciar seres, objetos ou eventos, mostrando, de certa forma, a subjetividade do enunciador (ou o seu ethos) diante dos referentes construídos pelo discurso. Nesse sentido, é importante esclarecer que certas expressões já destacadas acima, produzidas em uma moldura enunciativa em terceira pessoa, como “os de baixo”, os “explorados e oprimidos” versus “os de cima”, as “classes dominantes”, as “elites privilegiadas” etc., são exemplos vivos de modos de apreciação específicos. Não podemos esquecer que as modalidades se interpenetram e só possuem sentido em um contexto, em que, por exemplo, o efeito de objetividade em terceira pessoa pode formar um quadro enunciativo propício para a emergência retórica de qualificadores de elementos no mundo. 12 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 377 interesses são incompatíveis e nas quais, logicamente, prevalecem em toda a linha os interesses dos patrões, jamais poderá ser reformado. A proposta que levantam algumas lideranças populares de “tomar de assalto” o MDB é muito mais que insensata: é fruto de uma velha e trágica ilusão quanto ao caráter democrático de setores de nossas classes dominantes. Aglomerado de composição altamente heterogênea e sob controle e direção de elites liberais conservadoras, o MDB tem-se revelado, num passado recente, um conduto impróprio para expressão dos reais interesses das massas exploradas brasileiras. (Anexo I, linhas 121-133) (Itálico nosso) Aqui podemos encontrar, portanto, além dos indícios epistêmicos de acentuada convicção e militância (“jamais poderá ser”, “é muito mais que”), algo representativo do que acontece no documento como um todo: uma série de expressões nominais e adjetivas (em itálico) destinadas a qualificar fenômenos sociais da realidade brasileira – no caso, o MDB –, reforçando um ethos de conhecimento profundo (e crítico) do contexto político nacional, com feições de enfrentamento corajosamente classista. Passando adiante, essa seria a moldura ethica de uma série de atos de fala emparelhados sistematicamente da linha 156 até o final do documento, trecho também preenchido por diversos indícios de convicção epistêmica. Referimo-nos à repetição exaustiva, obstinada, de uma mesma estrutura sintática significativa, tendo como sujeito o “PT” (ou o “Partido dos Trabalhadores”) e uma predicação verbal asseverativa. A nosso ver, esse longo repisar sintático, presente do começo ao fim do trecho assinalado, seria capaz de somar às dimensões ethicas já vistas um caráter obstinado e incansável, o que poderia demonstrar, institucionalmente, tenacidade, firmeza e empenho pela própria forma da enunciação. Sem entrar em maiores detalhes, pela extensão do trecho referido, basta atentarmo-nos para os seguintes fragmentos: o “PT” (sempre como sujeito) “denuncia” (linha 156), “defende” (linha 159), “entende” (linhas 162, 166 e 174), “proclama” (linhas 171, 177 e 184), “afirma” (linha 186 e 211), “se declara” (linha 190 e 230), “recusa-se” (linha 197), “define-se” (linhas 208 e 210), “(não) pretende” (linhas 207 e 227), “se constituirá” (linha 215), “respeitará” (linha 216) “irá promover” (linha 220) etc. Ressaltamos, aqui, o tom explícito de promessa dos últimos quatro verbos assinalados, a maior parte deles conjugada no futuro, o que assinala um ethos de engajamento e compromisso público, mas não apenas: outros atos de fala se interpenetram, sempre a partir da linha 156, num misto de 378 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 promessas, asserções/definições, declarações, proclamações, denúncias, recusas etc., mostrando-nos um partido assertivamente “sem patrões” (linha 195), predestinado a “acabar com a relação de exploração do homem pelo homem” (linha 205), além de solidário para com “as massas oprimidas do mundo” (linhas 232-233). Dito isso, cabe-nos ressaltar, ainda, um último aspecto do ethos também presente na Carta de 1979, em particular nos trechos enunciados na primeira pessoa do plural: nós, dirigentes sindicais, não pretendemos ser donos do PT, mesmo porque acreditamos sinceramente existir, entre os trabalhadores, militantes de base mais capacitados e devotados, a quem caberá a tarefa de construir e liderar nosso partido. Estamos apenas procurando usar nossa autoridade moral e política para tentar abrir um caminho próprio para o conjunto dos trabalhadores. Temos a consciência de que, nesse papel, neste momento, somos insubstituíveis, e somente em vista disso é que nós reivindicamos o papel de lançadores do PT. (Anexo I, linhas 55-62) (Itálico nosso) A primeira pessoa do plural (“nós”) reforça mais claramente um ethos de enunciador coletivo, até mesmo pela assinatura no final do documento (“a Comissão Nacional Provisória”). No entanto, esse “nós” é bem delineado por um aposto singular: os “dirigentes sindicais”, o que confere à nascente instituição uma imagem não apenas classista, mas, sobretudo, de sindicalistas. Curiosamente, mesmo assim, tal instância busca produzir um efeito de modéstia e de posicionamento democrático/ inclusivo: não reivindicam para si uma propriedade do partido, pois acreditam ser essa a tarefa dos próprios trabalhadores, postos como mais “capacitados” e “devotados” para conduzir o seu próprio combate. O PT se colocaria, assim, como uma instância aberta, inclusiva e democrática, sendo os dirigentes sindicais “insubstituíveis”, mas apenas na medida em que cumprem um papel de pontapé inicial para a fundação da legenda, devido à sua “autoridade moral e política” de defensores históricos da classe trabalhadora. Isso só viria corroborar, mais uma vez, o ethos classista e coletivo que vínhamos sublinhando para o partido, ainda não personificado simbolicamente na figura singular de um líder (como o próprio Lula, por exemplo). Como veremos a seguir, algo diverso acontece, em termos de ethos, na Carta ao Povo Brasileiro, de 2002. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 379 3.2 A Carta de 2002 – Anexo II Como se sabe, a Carta ao povo brasileiro, assinada por Luiz Inácio Lula da Silva, data de 22 de junho de 2002, momento precedente às eleições presidenciais daquele ano. No plano enunciativo, não notamos uma predominância quase exclusiva de asserções em 3ª pessoa (“ele”), como vimos no Anexo I. Tal modalidade enunciativa, embora significativa, convive agora com mais intensidade com o uso da 1ª pessoa do plural (“nós”) e, ainda, com a aparição emblemática da 1ª pessoa do singular (“eu”). Essa “mixagem” enunciativa do Anexo II já pode ser notada nas palavras iniciais, a partir das quais mostraremos como se dá a construção de referentes importantes e significativos para o ethos do PT nesse documento, em contraste com a Carta de 1979: o Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas. (Anexo II, linhas 1-8) (Itálico nosso) Sem perder de vista a pertença do texto a um ano eleitoral (2002), assim como a sua possibilidade de interferência no ethos institucional do PT (e não apenas do candidato Lula, que não é o nosso objeto específico), podemos observar que o referente central aqui talhado já não é mais composto pela mesma dicotomia encontrada anteriormente. A pujante antítese cunhada em 1979 entre “os de cima” e “os de baixo”, ou seja, entre as elites dominantes e as massas exploradas, encontra-se agora substituída por outra forma de polarização: o “atual modelo” (linhas 5, 14, 18, 26, 49, 61), representado pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), e o “novo modelo” (linha 54), aglutinado pela figura de Lula, ou melhor, pela “nossa candidatura” (linha 30). A gestão do PSDB, também atualizada como “atual ciclo econômico e político” (linhas 3-4), “governo Fernando Henrique Cardoso” (linha 67) ou, simplesmente, como “atual governo” (linhas 88 e 123), é descrita de forma objetiva e crítica em diversas partes do 380 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 documento. O “atual modelo” é figurado, por exemplo, como uma enorme “decepção”, por frustrar esperanças e descumprir promessas (linhas 5-8); é posto como um modelo político esgotado e fracassado, tendo submetido o país ao risco iminente de uma “estagnação crônica” (linhas 13-19); foi incapaz de tomar as necessárias medidas (“corajosas e cuidadosas”) para a mudança que a sociedade desejava (linhas 24-26); nesse sentido, é posto também como responsável pela crise econômica, financeira e social pela qual o país atravessava, por não tomar as providências pertinentes diante das turbulências do mercado (linhas 60-62; 68-70; 88-92). De forma semelhante ao Anexo I, notamos no PT, a partir da assinatura de Lula, um ethos firme de partido crítico, combativo e engajado num projeto político para o país, dada a riqueza de modalidades apreciativas presentes nos trechos assinalados acima. Encena-se com tudo isso, mais uma vez, uma imagem enunciativa de conhecedor profundo, tanto da realidade brasileira, quanto de seus adversários. Mas o que chama a atenção, nessa dinâmica, é o desaparecimento do ethos classista de outrora. Ou seja: o combate se dá, agora, entre modelos de gestão (“atual modelo” x “novo modelo”), e não mais entre classes sociais que deveriam organizar-se “à parte” (“os de cima” x “os de baixo”). Isso fica ainda mais claro em trechos como os seguintes: O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar (Anexo II, linha 1) (Itálico nosso) A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país. (Anexo II, linhas 30-37) (Itálico nosso) Em primeiro lugar, curiosamente, notamos que termos como “operariado”, “trabalhadores”, “massas exploradas” (“oprimidas”), “setores proletarizados” (etc.), além da palavra “luta”, não se encontram grafados no Anexo II, que opta por expressões mais genéricas/abstratas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 381 para se referir à população, esvaziadas de um possível conteúdo classista, tais como “o Brasil” (linha 1), “nosso povo” (linha 9), “povo brasileiro” (vide título, linhas 7, 38, 106).14 O mesmo se pode averiguar em relação a expressões como “classes dominantes”, “elites”, “patrões” etc., também silenciadas no texto de 2002. Sendo assim, poderíamos cogitar que, no lugar do ethos classista de antes, temos agora a construção retórica de um caráter mais nacionalista para o partido (“o Brasil”, “defesa do Brasil”, “nosso povo”, “povo brasileiro”), baseado em uma política de coalização e pacificação dos conflitos ideológicos. Além dos termos acima em itálico, atestam essa postura ethica (pacificadora/nacionalista/conciliadora) expressões como “autêntica aliança pelo país” (linha 57), a disposição para “dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo” (linha 105), a proposta de construção de “um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos” (linha 119), além do gran finale enunciado por Lula: “chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis” (linhas 156-157) (itálico nosso) . Contrariamente aos velhos tempos, portanto, o PT, outrora ancorado em uma “autoridade moral e política” de sindicalistas, isto é, de defensores históricos da classe trabalhadora (a serviço de uma organização partidária dos oprimidos, independente), assume agora o papel de aglutinador de uma “vasta coalizão” (“suprapartidária”), composta por setores ideologicamente difusos (empresários e trabalhadores, setores de variados matizes ideológicos etc.). Como nos mostram, mais uma vez, os termos em itálico (acima), trata-se de uma postura institucional (ou ethos) diametralmente oposta às imagens de si projetadas pelo Anexo I: como ressaltamos (Anexo I, linhas 121-133), o que se rechaçava em 1979 era justamente a crença ilusória na possibilidade de qualquer partido de composição sócio-ideológica heterogênea – no caso, o MDB –, representar verdadeiramente as camadas exploradas. Em 2002, porém, a luta de classes e a exortação a uma organização “à parte” dos trabalhadores, como solução de mudança e bem-estar social, são substituídas pelas ideias patrióticas de “solidariedade”, “fraternidade” e “união” (de “todos”) em prol de “mudanças corajosas e responsáveis”. A palavra “massas” encontra-se na linha 41, mas associada ao “consumo de massas”, e não a uma classe social laboriosa propriamente dita. 14 382 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Encaixando-se, ao que parece, no próprio perfil anteriormente combatido, o PT de 2002 também aparenta ostentar, diferentemente de seus primórdios, um conhecimento aprofundado, mas desta vez no plano jurídico-econômico e/ou financeiro-administrativo, o que possivelmente esclarece o significado da expressão “mudanças responsáveis”, referida logo acima. Se antes os jargões predominantes eram aqueles do cientista social, propensos a descrever sócio-politicamente a conjuntura em que se vivia e a situação dos explorados, dentro de um viés acentuadamente classista, a “corporalidade” do enunciador da Carta de 2002, para usar uma terminologia de Maingueneau (2008), já irradiaria uma expertise técnica característica dos campos econômico e mercadológico. Sem entrar em detalhes, notamos isso em diversas e exaustivas expressões próprias dessas esferas, que se interpenetram continuamente na manutenção temática de tópicos de gestão ao longo do texto:15 “voltar a crescer”, “gerar empregos”, “redução de nossa vulnerabilidade externa”, “mercado interno”, “consumo de massas”, “novo contrato social”, “crescimento com estabilidade”, “respeito aos contratos”, “mercado financeiro”, “dívida interna e externa”, “endividamento público”, “nervosismo dos mercados”, “especulação”, “Banco central”, “aplicações financeiras”, “investidores”, “populismo cambial”, “ancora fiscal”, “finanças públicas”, “exportações”, “importações”, “combate à inflação”, “geração de empregos”, “juro alto”, “oscilação cambial”, “dívida pública”, “equilíbrio fiscal”, “superávit primário” etc. Como se pode notar, o ethos aqui projetado, embora não descarte a questão social, se sedimenta substancialmente dentro da competência na área financial e econômica, possibilitando uma imagem partidária favorável no que tange ao mérito da gestão eficiente, responsável e competente. Por um lado, pode-se cogitar, teríamos com tal atitude uma resposta (ou promessa) diante da “crise econômica” e do “nervosismo dos mercados” que abalavam a sociedade brasileira em 2002 (o chamado “Risco Brasil”). Isso porque pairava no ar, como se sabe, uma suposta ameaça de que Lula, com a sua vitória, não honraria os contratos, podendo, assim, arremessar o Brasil em apuros jurídico-institucionais. Mas, por outro lado, essa nova postura ethica teria visado, eleitoralmente, Vide principalmente, mas não apenas, os fragmentos entre as linhas 19-23, 38-41, 56-74, 80-83, 88-96, e praticamente todo o trecho em que Lula fala em primeira pessoa a partir da linha 114 até o final do documento. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 383 construir uma imagem do PT não apenas afeita à competência estrita na área político-social, como rezava a sua reputação (ou ethos prévio): precisava-se associar a legenda, também, a uma capacidade de gestão eficiente e responsável. É nesse quadro descrito até agora, caracterizado por uma imagem enunciativa nacionalista, suprapartidária e técnica do ponto de vista econômico-administrativo, que o PT se lança como modelo alternativo à “gestão atual” com a promessa de mudar o Brasil. O comportamento promissivo e oscilante entre ousadia (plano social) e responsabilidade (plano econômico) pode ser constatado, de modo bem representativo, nos seguintes trechos: o novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade. (Anexo II, linhas 54-60) (Itálico nosso) Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos. (Anexo II, linhas 117-119) (Itálico nosso) Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social. (Anexo II, linhas 148-152) (Itálico nosso) Fica claro aqui, a partir das expressões e conectivos em itálico (“mas”, “com”, “e”), a assunção de um ethos conciliador e aglutinador de um “novo contrato social”, capaz de alcançar pretensamente as tão sonhadas/ousadas mudanças sociais (“responsabilidade social”, “geração de emprego”, “distribuição de renda”, “justiça social”), porém (“mas”) “com” estabilidade econômica “e” controle da inflação. É nesse sentido, também, que podemos entender as diversas promessas equilibradas entre a ousadia (plano social) e a responsabilidade (plano econômico), tais como: o “incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes 384 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 e criativas”, o compromisso com as reformas (“estruturais”) tributária, agrária, previdenciária, trabalhista e urbana (linhas 38-48); a valorização do agronegócio e, a um só tempo, da agricultura familiar (linhas 97-98); a promoção do equilíbrio fiscal e/ou preservação do superávit primário como “meio” para o crescimento e não como “fim” (linhas 131-137). Com tudo isso, emerge a convicção política de que “um Brasil de todos” poderia ser construído apenas com medidas capazes, aparentemente, de agradar a totalidade absoluta das frações da sociedade, plasmadas solidariamente em uma única entidade abstrata: o povo, o Brasil. Dito isso, podemos ainda afirmar que, além desse ethos de conciliação nacionalista (não-classista), imbuído de uma competência técnica tanto na área social, quanto, sobretudo, no campo responsável da gestão técnica, econômica e jurídica, o PT se diferencia em 2002, apresentando-nos uma imagem institucional já encarnada na figura emblemática do líder. Esse efeito de personificação do partido é possibilitado, podemos cogitar, seja pela assinatura particular de Lula (e não mais da instituição, como em 1979), seja pela enunciação em primeira pessoa (do singular, principalmente, e do plural): Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas. Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. (Anexo II, linhas 88-93) (Itálico nosso) Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores. (Anexo II, linhas 114-116) (Itálico nosso) Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos. (Anexo II, linhas 135-137) (Itálico nosso) O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 385 mudanças corajosas e responsáveis. (Anexo II, linhas 155-157) (Itálico nosso) A primeira pessoa do plural é oscilante em todo o documento: ora o “nós” inclui, em seu espectro semântico, o enunciador Lula, o PT e os interlocutores – a nação brasileira (“estamos de novo atravessando um cenário semelhante”) –, ora se reserva apenas a Lula e o PT (como na promessa “vamos preservar o superávit primário”). Mas o fato é que Lula se faz presente em todos esses usos e, particularmente, se impõe de forma inequívoca como figura de destaque a partir do “eu” que se aflora em diversos fragmentos. É interessante observar que esse novo ethos do PT, personificado na figura do líder (carismático), tem sido denominado, por muitos estudiosos das ciências políticas, como lulismo, fenômeno que conta, singelamente, ao lado de outros recursos retóricos, com a assunção generalizada da primeira pessoa em documentos do partido. Não é por acaso que, segundo Ricci (2010, p. 23), o lulismo teve início na campanha de 1994, mas atingiu sua configuração como engenharia política em 2002, quando se arquitetou a campanha presidencial, cristalizando-se com a divulgação da Carta ao Povo Brasileiro, em junho daquele ano. Alterou profundamente o projeto inicial petista, que se orientava por um discurso estratégico afiliado à lógica dos movimentos sociais que emergiram nos anos 1980 que, por sua vez, sustentavam-se na declarada autonomia política e na organização horizontalizada (com prevalência dos mecanismos de democracia direta), cujo discurso assentava-se no anti-institucionalismo e anticapitalismo. Dessa forma, é possível notar um projeto vertical de poder em vias de se institucionalizar, principalmente com a vitória de Lula nas eleições de 2002, sendo o lulismo uma estratégia retórica significativa nesse processo. O PT, assim, funde-se com a imagem de seu principal expoente, a partir de uma via carismática de identificação diante da população como um todo, como se vê nos trechos já assinalados: “como todos os brasileiros”, Lula quer a verdade; com todos os brasileiros (“nós”), atravessa um cenário de crise e acredita na mudança a partir do esforço e da consciência de todos; o líder sabe ainda, como ninguém (ou melhor, como os mais pobres), dos malefícios da inflação. Dessa forma, com essa autoridade pessoal (e não mais sindical), um PT encarnado na figura de Lula conclama a nação para se unir ao redor 386 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 de um “programa de mudanças corajosas e responsáveis”. Em suma, o apanágio da esperança, como instrumento de mudança, deixaria de ser a organização político-institucional coletiva e “à parte” (o partido, como em 1979), para se cristalizar no indivíduo e em sua epopeia pessoal (a pessoa, como em 2002). Enfim, tecemos até aqui um cenário de variação ethica do Partido dos Trabalhares da Carta de 1979 à Carta de 2002. Mesmo sem ter condições, por questões de limites, de abordar mais detalhadamente os dois documentos, acreditamos termos tido condições de salientar essas mudanças em termos gerais e significativos com o auxílio de alguns elementos linguístico-discursivos. Dessa forma, passamos finalmente às nossas derradeiras reflexões. 4 Considerações finais Podemos afirmar que mudanças discursivas significativas ocorreram, ao longo dos anos, nas imagens de si do Partido dos Trabalhadores. Em ambos os Anexos analisados, notamos a presença substantiva de um ethos engajado, militante e convicto diante dos conteúdos asseverados, em função de asserções sólidas e de ocorrências de mecanismos linguísticos de forte sobrecarga epistêmica e apreciativa. O tom de “promessa” atravessa, com variações de conteúdo, ambos os documentos. Entretanto, as diferenças na postura parecem ser bem maiores no que tange a várias outras questões politicamente relevantes. Em termos gerais, a Carta de 1979 nos apresenta um partido de feição radicalmente classista, desnudando o conflito entre as elites e as massas exploradas (os “de cima” x os “de baixo”). Aproximando-se dos menos favorecidos, repisando a ideia de uma organização independente com o povo trabalhador, o PT se coloca como um partido de massas e como um instrumento coletivo de luta, no sentido de “acabar com a exploração do homem pelo homem”. Nessa perspectiva, trata-se de um partido sem patrões, assentado em uma representatividade plural/deliberativa/ democrática, ou seja, não encarnada, ainda, nesse ou naquele expoente individual de liderança. Notamos assim, com a ajuda de Bobbio (1995), que nesta Carta a postura do PT se enquadra mais prototipicamente (pelo menos) nos ideais básicos da chamada “esquerda”, pois, voltando-se explicitamente contra a tradição de exploração do homem pelo homem, encarna a ideia de emancipação e de libertação da classe trabalhadora. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 387 A Carta de 2002, por sua vez, nos apresenta um ethos de envergadura nacionalista e de feições pacificadoras: silenciando o conflito entre as classes sociais, colocando em seu lugar uma dialética de modelos de gestão (“atual modelo” x “novo modelo”), o partido constrói para si uma imagem de administrador eficiente, pautada numa vasta erudição em terminologias financeiras/mercadológicas. Em defesa do Brasil, e erigindo-se como um aglutinador de uma vasta coalizão suprapartidária (formada por todas as classes, patrões e empregados), o PT, ao mesmo tempo, assenta o seu caráter na figura emblemática de Lula. Tal personagem, no lugar do partido, passaria a ser o fiador das esperanças de mudança política. Isso, a principio, vincularia o partido (ou aproximaria) do campo da tradição (nacionalismo, conciliação de classes, personalismo etc.), âmbito prototípico da chamada “direita” (ou “centro”, para alguns). No entanto, não nos cabe aqui produzir categoricamente essa classificação, uma vez que, como vimos, os conceitos de direita e esquerda são relativos e cambiantes historicamente. Construindo mais uma ponte com o conteúdo da segunda parte deste artigo, restaria saber se tais mudanças ethicas foram positivas/ necessárias ou se representaram uma “traição” ao povo trabalhador, constituindo, na melhor das hipóteses, um “erro” profundo da legenda ao longo da história. Dito de outra forma, seriam mesmo essas variações discursivas representativas da consolidação da burguesia monopolista no país, a partir de uma governabilidade que teria desarmado as condições políticas, organizativas e de consciência de classe dos trabalhadores? (IASI, 2014b). Teriam, dessa forma, conduzido a esquerda nacional “a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular direta e com eleições que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de sempre”? (SAFATLE, 2013, p. 14). Ou tais variações ethicas, que viam se delineando desde 1994, seriam representativas de uma estratégia nova, necessária e mais flexível de alianças, após três derrotas sucessivas de Lula à presidência do Brasil, partindo-se do pressuposto de que o partido precisaria chegar ao poder para realizar, pelo menos, parte das transformações sociais defendidas historicamente? Nessa perspectiva, teriam sido importantes (positivas) as articulações políticas do PT na conquista do pleito eleitoral de 2002, tendo o “movimento de ida ao centro” credenciado o partido a estabelecer alianças com setores significativos de nossa tradição republicana? (VIANNA, 2006, p. 98). 388 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Optamos, neste trabalho, por deixar tais questões em aberto. Não nos cabe aqui dizer se tais mudanças sóciodiscursivas foram “positivas” ou “negativas”, como muito se discute nas esferas sociais e acadêmicas do Brasil, mas apenas ressaltar como as variações ethicas do PT realmente se deram, por contraste. Acreditamos que a simples chamada de atenção para os textos analisados (ainda pouco explorados) possui grande valor, não só no sentido de evidenciar que as Ciências da Linguagem (e uma Revista como esta) têm algo a contribuir para as discussões políticas, mas também para reforçar a necessidade de sempre (re)colocar a questão na ordem do dia, devido a sua relevância social naquilo que concerne aos comportamentos discursivos pertinentes às esquerdas em geral e, em particular, ao PT dentro de sua história. Vivemos, no momento de fechamento deste texto, um período conturbado, em que a Presidenta do Brasil, Dilma Rousseff (PT), foi afastada por um processo de impeachment, tendo assumido o seu lugar, em 2016, o Vice-Presidente Michel Temer (PMDB). Como se sabe, isso deu vazão a grandes discussões sobre a viabilidade ou não de alianças, por parte da chamada esquerda, com partidos mais ao “centro”, ou até mesmo de “direita”, além de suas possíveis consequências econômicas, sociais e políticas. Dessa forma, acreditamos que o trabalho pode ser pertinente tanto para a compreensão teórica do ethos (associado às instituições partidárias), quanto para servir de material para a reflexão sobre comportamentos político-discursivos mais interessantes ao futuro de nosso país. Declaração de Contribuição de Cada Autor Declara-se, para os devidos fins, que os dois autores – Melliandro Mendes Galinari e Luciana de Souza Pereira –, contribuíram igualmente na confecção de todas as partes do artigo: desde a feitura, idealização e reformulação da parte teórica, até as análises e reanálises do objeto de investigação, incluindo a escrita e a reescrita conjuntas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 389 Referências AMOSSY, Ruth. L’argumentation dans le discours. 3. ed. Paris: Armand Colin, 2010. AMOSSY, R. O ethos na intersecção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 119-144. BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995. FAUSTO, B. A História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. GALINARI, M. M. Sobre ethos e AD: tour teórico, críticas, terminologias. Revista Delta – Documentação e Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 51-68, 2012. GALINARI, M. M. O Funcionamento Retórico-Discursivo dos Índices de Modalização: a construção do ethos. In: Rivista di Studi Portoghesi e Brasiliani. PISA/ROMA: Fabrizio Serra Editore, v. XX, p. 85-97, 2018. IASI, M. L. O escravo da Casa Grande e o desprezo pela esquerda. Rio de Janeiro, jun. 2014a. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com. br/2014/06/16/o-escravo-da-casa-grande-e-o-desprezo-pela-esquerda/>. Acesso em: 10 fev. 2016. IASI, M. L. O PT e a Revolução Burguesa no Brasil. 2014b. Disponível em <https://docs.google.com/file/d/0B_s4202oxQXfNzkxN2hWb2VQSlE/ edit?pli=1>. Acesso em: 11 fev. 2016. MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 69-92. MATTOSO, J. Dez Anos depois. In: SADER, E. (Org.). 10 Anos de Governos Pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 115-125. NEVES, M. H. M. Imprimir marcas na linguagem. Ou: a modalização na linguagem. In: ______. Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2011. p. 151-221. 390 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 NOBRE, M. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. PAVEAU, M. A.; SARFATI, G. E. As grandes teorias da linguística. São Carlos: Claraluz, 2006. p. 182-184. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PETIT, P. A esquerda petista, os intelectuais e o governo Lula. In: DIAS, M. R.; PÉREZ, J. M. S (Org.). Antes do vendaval: um diagnóstico do governo Lula antes da crise política de 2005. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p. 179-220. REIS, D. A. O Partido dos Trabalhadores: trajetória, metamorfoses, perspectivas. 2007. Disponível em: <http://www.historia.uff.br/ culturaspoliticas/files/daniel4.pdf>. Acesso em: 06 out. 2014. RICCI, R. Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2010. SADER, E. Brasil: A Esquerda e o Governo Lula. São Paulo, maio 2005. Disponível em: <http://www.voltairenet.org/article125237.html>. Acesso em: 08 set. 2015. SAFATLE, V. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013. VIANNA, L. W. Esquerda brasileira e tradição republicana: estudos de conjuntura sobre a era FHC – Lula. Rio de Janeiro: Revan, 2006. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 ANEXOS 391 392 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 393 394 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 395 396 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 397 398 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 399 400 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 359-400, 2019 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 Análise do Discurso no blog RadFem: ser mulher para além do corpo RadFem blog’ Discourse Analysis: Being a Woman Beyond the Body Rafael De Tilio Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais / Brasil rafaeldetilio.uftm@gmail.com Paola Marques Del Nero Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, Minas Gerais / Brasil pamarqdel@hotmail.com Resumo: Sendo a internet um campo de disputas, há também, nesse sentido, espaço para os movimentos sociais. A popularização da internet permitiu a consolidação de redes de contatos que se constituíram como organizações políticas e grupos feministas. Valer-se das mídias sociovirtuais para fazer feminismo é, potencialmente, aproximar mais pessoas das discussões. Nos campos teórico e político, ao problematizar a categoria mulher (ou mulheres), perguntando quem são as mulheres, as feministas têm enfrentado o debate contemporâneo sobre identidade (e sujeito) de diferentes maneiras, sendo variadas, também, as posições teóricas e políticas. Sendo assim, o objetivo dessa pesquisa foi compreender os efeitos de sentidos produzidos sobre a categoria mulher e suas interlocuções no blog RadFem (feminismo radical), a partir da Análise do Discurso (AD) de Michel Pêcheux. Perante o que foi exposto na análise, faz-se possível elencar alguns efeitos de sentidos presentes no blog RadFem sustentados em discursos pautados em concepções binárias de perspectiva biológica e opressoras para caracterizar o que se entende por mulher. Assim, ressalta-se que a AD mostra-se como uma possibilidade de interpretação para a abordagem dos temas que relacionem sexualidade, gênero e Psicologia Social. Palavras-chave: análise do discurso; feminismo radical; blog; mulher. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.401-422 402 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 Abstract: Word Wide Web is a field of disputes and a space for social movements. The popularization of the internet allowed the consolidation of networks that constituted themselves as political organizations, alike the feminist groups. Feminism by virtual sexual networks (as internet) potentially bringing people closer to the discussions. In the theoretical and political fields, by questioning the category of woman (or women) – asking who are women feminists have faced the contemporary debate on identity (and subject) in different ways, and theoretical and political positions have also varied. The objective of this research was to understand the effects of senses produced (discourses) on the woman category and their interlocutions in a blog post RadFem (radical feminism), from Michel Pêcheux’s Discourse Analysis (AD). It is possible to list some effects of senses present in the blog RadFem sustained in discourses: based on binary conceptions of biological perspective and oppressors to characterize what is meant by woman. Thus, it is emphasized that the AD is shown as a possibility of interpretation approach to sexuality, gender and Social Psychology. Keywords: discourse analysis; radical feminism; blog; woman. Recebido em 09 de julho de 2018 Aceito em 16 de setembro de 2018 1 Introdução A chamada primeira onda do feminismo moderno teve seu início a partir das últimas décadas do século XIX, quando as mulheres, primeiro na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo o primeiro deles o direito ao voto, assim como no Brasil. Este feminismo inicial perdeu força a partir da década de 1930 e só aparecerá novamente, com importância, na década de 1960 (PINTO, 2010). Durante a década de 1960, na Europa e nos Estados Unidos, o movimento feminista ressurge potencializado, e as mulheres pela primeira vez falam diretamente sobre a questão das relações de poder entre homens e mulheres. O movimento aparece, então, como algo libertário, que não quer só espaço (no trabalho, na vida pública, na educação) para a mulher, mas que luta por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, para que esta tenha liberdade e autonomia sobre sua vida e seu corpo. Isso aponta para o fato de que existe outra forma de dominação (além da de classe), a de gênero, e que uma não pode ser representada pela outra, devido às suas características próprias. Este fato caracteriza a reivindicação mais original do movimento (PINTO, 2010). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 403 Enquanto na Europa e nos Estados Unidos o cenário era propício para o surgimento de movimentos libertários, principalmente aqueles que lutavam por causas identitárias, no Brasil ocorria um momento de repressão da luta política, obrigando muitos grupos sociais a irem para a clandestinidade e partirem para a guerrilha. Foi durante o regime militar que aconteceram as primeiras manifestações feministas no Brasil na década de 1970 (PINTO, 2010). Com a redemocratização dos anos 1980, o feminismo no Brasil entrou em uma fase de efervescência na luta pelos direitos das mulheres: inúmeros grupos e coletivos passaram a tratar de uma gama ampla de temas – violência, sexualidade, trabalho, igualdade no casamento, direito à terra, à saúde materno-infantil, luta contra o racismo, direitos sexuais (PINTO, 2010). É importante esclarecer que o projeto feminista teve sua origem histórica ligada à tradição moderna. Borges (2014), por exemplo, elenca três elementos centrais na construção teórica do feminismo, oriundos das teorias sociais modernas: a premissa de uma experiência de opressão e dominação compartilhada por todas as mulheres; a aposta na criação de um ator coletivo, portador de interesses, demandas, reivindicações; a criação de uma utopia emancipatória das mulheres. Estas ideias, atualmente, constituem um denso campo de controvérsias e disputas. Durante a segunda onda do feminismo, surge o Feminismo Radical, nos Estados Unidos, nas décadas de 1960 e 1970, caracterizando uma corrente rica em reflexão e investigações acadêmicas sobre a origem das desigualdades sexuais, além da forte militância contra todas as formas de opressão feminina originárias do sistema patriarcal, nominalmente a luta pelos direitos das mulheres, o repúdio contra as violências sexuais e domésticas. Sendo assim, afirma que a raiz da desigualdade social em todas as sociedades é o patriarcado, a dominação do homem sobre a mulher. Para vencer a opressão feminina, as feministas radicais defendem que é fundamental concentrar os esforços na busca das explicações sobre as diferenças entre os sexos e a subordinação da mulher no sistema patriarcal e que as mulheres devem se unir na luta contra os homens, assim como devem rejeitar o Estado e todas suas instituições por serem produto do homem e, portanto, de caráter patriarcal (SANDERBERG, 2002). Uma das questões sobre as quais as feministas (não apenas as radicais) têm se debruçado refere-se à suposição de uma identidade comum e universal entre as mulheres. Nos campos teórico e político, ao 404 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 problematizar a categoria mulher (ou mulheres), perguntando quem são as mulheres, as feministas têm enfrentado o debate contemporâneo sobre identidade (e sujeito) de diferentes maneiras, sendo variadas, também, as posições teóricas e políticas. Uma das características do feminismo pósmoderno consiste em desautorizar qualquer apelo a noções identitárias calcadas numa essência interna fixa ou fora da história, da linguagem, da cultura e das relações de poder. Se, em um primeiro momento, o feminismo apostou na ideia de uma mesma opressão e de uma mesma identidade, num momento posterior esta universalidade foi duramente criticada, pois foi denunciada como um feminismo produzido por mulheres brancas, heterossexuais, de classe média e intelectualizadas (BORGES, 2014). Assim, as mulheres que participavam desses movimentos utilizando a categoria gênero como sinônimo de mulher reforçavam a ideia de que as diferenças entre homens e mulheres não dependiam do sexo biológico e sim dos fatores culturais nos quais as pessoas estavam inseridas (ABDO; PEREIRA; SPIZIRRIL, 2014). O emprego do termo gênero facilitou a observação dos papéis sociais e das relações entre feminino e masculino e foi ponto de apoio na composição de subjetividades políticas, públicas e/ou relacionais (ABDO; PEREIRA; SPIZZIRRI, 2014). Porém, Butler (2012), assim como outros autores, faz uso de uma inversão no debate feminista sobre a categoria gênero, com base em seus questionamentos e problematizações. Assim, ao invés de conceder a divisão binária existente entre “gêneros feminino e masculino” como um dado prévio, a autora busca realizar uma genealogia feminista da categoria gênero, com a finalidade de expor e desconstruir sua suposta naturalidade. Nesse sentido, aposta no conceito de gênero performativo, ou seja, não entende o gênero como um conjunto de elementos essencialmente ligados à natureza dos corpos, nem apenas como um conjunto de características culturalmente impostas (ANJOS; LIMA, 2016). Assim, conforme Butler (2012), o gênero e sua divisão binária são performativamente constituídos no sentido em que só existem a partir do momento mesmo de sua expressão. Dessa maneira, o gênero não estaria ligado a uma essência atemporal de um determinado corpo ou alma, mas é construído a todo o momento pela repetição de uma performance estilizada de feminilidade e/ou masculinidade (ANJOS; LIMA, 2016). Ainda, Butler (2012) constrói uma crítica radical e incisiva à formulação de um conceito fundamental para a história do movimento feminista, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 405 sendo este o próprio conceito de gênero. Contudo, a autora não o faz com fins de dissolver o movimento feminista, mas sua crítica é realizada exatamente na perspectiva de potencialização política do movimento feminista, em contraposição ao seu processo de cristalização pautado pelo enraizamento de suas ações em determinadas formulações essencialistas do conceito gênero. Butler (2012) questiona a suposta necessidade de regularidade e coerência da categoria “mulheres” como essencial para a conquista dos objetivos políticos do movimento feminista. Isso devido ao fato de que, primeiramente, pela própria noção que orienta a busca de um sujeito uno e coerente: a noção de representação. Ou seja, quando se admite previamente a representação como fundamento para a legitimação de um sujeito jurídico, sendo um apelo a uma identidade unificadora das demandas e opressões vividas pelas “mulheres”, é uma estratégia política que se encontra atrelada à obrigação da representatividade. Quando a política é tomada nesses termos, tem-se que, desde o momento de partida, as regras do jogo estão limitadas por princípios de uma formação discursiva a qual tem por base mecanismos de exclusão. Assim, para que se possa ser representado, é necessário que se atenda às exigências requeridas para ser reconhecido enquanto sujeito (ANJOS; LIMA, 2016). Porém, Anjos e Lima (2016) ainda questionam: até que ponto essa estratégia de política representacional adotada pelo movimento feminista não traria consigo a controversa consequência de tornar concretas as normas de relações de gênero até então instituídas? Dessa forma, de acordo com Coelho (2016), se as formas de produção de existência podem ser mutáveis, a compreensão sobre as questões de gênero pode originar críticas aos binarismos. Nesse sentido, os movimentos sociais transgêneros (doravante trans) problematizam suas categorias universalistas a partir da crítica ao binarismo feminino/masculino, contrariando a ontologia biologicista preponderante na epistemologia da ciência moderna (ALVES, 2017). A inconsistência epistemológica de um modelo universal de mulher tem conquistado posição nos estudos contemporâneos de gênero, produzindo dissidências no próprio movimento feminista, tais como o feminismo negro, ecofeminismo, transfeminismo, feminismo lésbico, putafeminismo e feminismo jovem. O conceito de interseccionalidade (HENNING, 2015), surgido no âmbito das reivindicações de direitos dos movimentos feministas em interface com raça e classe social, considera tais identidades múltiplas e susceptíveis às diversas formas de 406 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 desigualdades, nomeadamente o sexismo, o racismo e a xenofobia, que funcionam juntas, mas de maneiras específicas (ALVES, 2017). Nesse contexto, as mídias sociovirtuais se tornaram instrumentos de produção e difusão de ideias e podem servir como espaço de ataques e ameaças. Portanto, ser sujeito nas mídias sociovirtuais reflete um processo de comunicação, de relacionamentos, mas também um processo político. Sendo a internet um campo de disputas, há também, nesse sentido, espaço para os movimentos sociais. Desde 1990, década do advento da internet comercial, são comuns referências ao termo ciberfeminismo, sendo que vários grupos foram aglutinados dentro dessa categoria (tecnofeminismo, pósfeminismo, transfeminismo, ciberpunk, póspornografia e ativismo riotgrrrl). Essa movimentação se associa à terceira onda do movimento feminista, quando houve renovação prática e teórica sobre os “feminismos” e também sobre a participação das mulheres nos meios tecnológicos (COELHO, 2016). A popularização da internet permitiu a consolidação de redes de contatos que se constituíram como organizações políticas e grupos feministas (COELHO, 2016). Quando movimentos sociais e sociovirtuais são abordados, estes devem ser vislumbrados do ponto de vista das continuidades e descontinuidades, uma vez que valer-se das mídias sociovirtuais para fazer ativismo político feminista é aproximar mais pessoas das discussões. Utilizar a plataforma digital é uma tentativa de romper com possíveis ciclos de violência e com as tentativas de silenciamento. É preciso que, pessoalmente ou mediados pela interface digital, seja possível fazer um feminismo com mulheres, mas não contra mulheres. É preciso que “esse” ou “aquele” feminismo não se perca ou se afaste da gênese do movimento e que lute por uma sociedade mais igualitária. É preciso ainda que o feminismo seja uma teoria e uma prática que agreguem mulheres e não que as isolem ou as apartem (COELHO, 2016). Nesse sentido, o objetivo dessa pesquisa foi compreender os efeitos de sentidos produzidos sobre a categoria de mulher no blog “RadFem” (feminismo radical) a partir da Análise do Discurso de Michel Pêcheux. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 407 2 Dispositivo teórico A Análise do Discurso (AD) reúne três regiões do conhecimento: a teoria da sintaxe e da enunciação, a teoria da ideologia e a teoria do discurso (determinação histórica dos processos de significação), todas atravessadas por uma teoria do sujeito de natureza psicanalítica. Essa perspectiva teórica e metodológica visa compreender como os sentidos são produzidos a partir de uma análise dos próprios gestos de interpretação que ela, a AD, considera como atos no domínio simbólico. Sendo assim, a AD não se limita à interpretação, mas considera os mecanismos de produção de sentidos como parte dos processos de significação. Logo, não há chave de interpretação, mas sim método e construção de um dispositivo teórico e analítico (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Em resumo, a AD visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, ou seja, como ele está investido de significância para e por interlocutores (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Assim, propõe considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo e o que é dito de outro, procurando compreender o não-dito naquilo que é dito, como uma presença de uma ausência necessária. Isso é compreendido na AD por intermédio do conceito de Esquecimento Número 2, sendo este da ordem da enunciação: ao falarmos de determinadas maneiras, famílias parafrásticas são mobilizadas ao longo de nosso dizer que indicam que o dizer poderia ser outro (isto é, poderia ser dito de outra(s) maneira(s)). Tal “esquecimento” produz em nós a impressão da realidade do pensamento, que faz acreditar existir uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, fazendo com que pensemos que o dito só pode ser dito daquela exata maneira e não de outra (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997, PÊCHEUX, 2014). Quando a memória é pensada em relação ao discurso, aquela é tratada como interdiscurso, ou seja, como aquilo que fala antes, em outro e de outro lugar, independentemente. Isso constitui a memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível. Assim, o interdiscurso disponibiliza sentidos que afetam o modo como a significação afeta o sujeito em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). 408 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 Portanto, o dizer não é propriedade particular do(s) indivíduo(s). As palavras significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa que controla o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo como os sentidos se constituem nele e por ele. Assim, deduz-se que há uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo, que é a que existe entre o intradiscurso (aquilo que estamos dizendo naquele momento, em condições dadas), e o interdiscurso, ou seja, entre a constituição do sentido e sua formulação. Assim sendo, a constituição (interdiscurso) determina a formulação (intradiscurso), e é nessa tensão que os sentidos são constituídos (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Além disso, pelo funcionamento do interdiscurso, suprime-se, por assim dizer, a exterioridade como tal para inscrevê-la no interior da textualidade, uma vez que esse mecanismo determina aquilo que, da situação, das condições de produção, é relevante para a discursividade. Isso significa que é o interdiscurso que especifica as condições nas quais um acontecimento histórico é suscetível de vir a inscrever-se no espaço potencial de coerência próprio a uma memória discursiva (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Dessa dita “ilusão” de autoria do discurso, compreende-se o que, na AD, é nomeado como Esquecimento Número 1, sendo este o resultado do modo como somos afetados pela ideologia, sendo este esquecimento da instância do inconsciente. Assim, temos a ilusão de sermos a origem do que dizemos quando, na realidade, os sentidos são retomados do pré-existente. Os sentidos são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela vontade individual. Desse modo, podemos dizer que os esquecimentos (número 1 e 2) são estruturantes, uma vez que eles partem da constituição dos sujeitos e dos sentidos (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Os discursos (compreendidos na AD como efeitos de sentidos entre interlocutores) ocorrem a partir de relações de força. Segundo essa concepção, pode-se considerar que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. Esse mecanismo repousa nas formações imaginárias (FImag). Estas explicitam que não são os sujeitos, nem seus lugares empíricos como são inscritos na sociedade que funcionam no discurso, mas sim que os sentidos são constituídos por Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 409 meio de imagens desses sujeitos, que resultam de projeções. São essas projeções que permitem passar das situações empíricas (os lugares dos sujeitos) para as posições dos sujeitos no discurso. Sendo assim, o que significa no discurso são essas posições, e elas significam em relação ao contexto sociohistórico e à memória (o saber discursivo, o já-dito). Esse mecanismo produz imagens dos sujeitos, assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sociohistórica (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Desse modo, com base em um determinado contexto social e histórico, que abrange valores e sentidos de referências (Formação Ideológica – FI), as palavras/expressões/termos mudam de sentido de acordo com as posições discursivas daqueles que as empregam (Formação Discursiva – FD), determinando o que pode ou não pode ser dito. É importante ressaltar que a FI (assim como as FD e as FImag) é inconsciente e interpela os indivíduos em sujeitos dos discursos. Ou seja, quando falamos em FI, é impossível (porque o analista do discurso também é interpelado pela ideologia) ter consciência/conhecimento total desse processo, mas apenas de alguns dos seus indícios. Assim, podemos compreender que o discurso se constitui em seus sentidos, uma vez que aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma específica FD e não em outra, para ter um sentido. Dessa forma, conclui-se que as palavras não possuem sentidos nelas mesmas, pois derivam seus sentidos das FD em que se inscrevem. A partir disso, as FD representam no discurso as FI (ORLANDI, 2007; PÊCHEUX; FUCHS, 1997; PÊCHEUX, 2014). Portanto, numa FI há várias FD. E dentro da sua FD de referência os interlocutores (automática e inconscientemente na tentativa de estabilizar seus discursos) se pautam em antecipações dos seus sentidos e dos sentidos dos interlocutores – ao que se denomina FImag, conforme mencionado. 3 Procedimentos Metodológicos Este estudo classifica-se como qualitativo de caráter exploratório. De acordo com Leite (2008), a pesquisa qualitativa permite analisar os fenômenos considerando o contexto ao qual eles estão inseridos, as causas e interrelações que possam permear entre a análise e as conclusões. O caráter exploratório, como o próprio nome sugere, explora algo novo; além disso, é utilizado quando se tem poucos estudos e conhecimentos científicos sobre o tema. 410 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 Um blog (contração de web e log) pode ser compreendido como um sítio eletrônico que permite a rápida atualização de informações referentes a um autor, assunto ou tema, permitindo participação coletiva ou não, a depender das funcionalidades elegidas e permitidas pelos seus administradores. No caso, o blog RadFem define-se como o site oficial acerca do feminismo radical no Brasil, mas ele recebe/recebeu poucos acessos (apesar de os dados sobre número de sites existentes no mundo, quantos estão hospedados no Brasil, tempo de duração/ existência e acesso aos sites etc. não serem exatos), sendo considerado uma plataforma de pouco expressão e limitado alcance (SIMILARWEB, 2018), provavelmente restrito aos seus interessados ou sectários do movimento. Igualmente, não há no blog quaisquer informações referentes aos seus idealizadores e responsáveis, o que lhe fornece uma impressão de universalização, hegemonia e consenso acerca do material e dos argumentos postados. Assim, no processo de escolha e definição do corpus, foi realizada uma leitura cuidadosa de todos os posts do blog (desde junho de 2014 até dezembro de 2017), visando selecionar alguns que enfatizassem a argumentação a respeito da definição da categoria “mulher” a partir da vertente do Feminismo Radical. Por fim, foram selecionadas duas postagens do blog, ambas de 2015: (1) uma postagem intitulada Saindo do culto trans (RADFEM, 2015a), publicada originalmente em 11 de Maio de 2015 (este texto foi originalmente publicado em outro blog de nome Purple Sage e traduzido para o português com a permissão da autora) e que discorria acerca da não aceitação de mulheres transexuais no movimento, assim como o relato do processo pelo qual a autora (uma autodesignada TERF, acrônimo para transexclusionary radical feminist) passou a defender tal argumento; (2) um fragmento destinado ao esclarecimento de dúvidas, intitulado RADFAQ (RADFEM, 2015b) e que dispõe da seguinte introdução “Olá! Este é um lugar para tirar dúvidas. Essa seção será constantemente atualizada. Se você tem alguma dúvida que ainda não foi sanada abaixo, deixe nos comentários”. Isto posto, algumas questões foram respondidas pela autora como por exemplo: “Qual a visão de gênero de vocês radfem?”; “Então vocês acham que ter vagina é o que faz de uma mulher, mulher?”; “Mas e as pessoas intersexo?”; “E as pessoas trans?”; entre outras. Sendo assim, tais questões são respondidas e esclarecidas abertamente. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 411 Em termos de etapas para realização da análise do discurso (GOMES, 2007; ORLANDI, 2007), após a seleção das materialidades linguísticas, os analistas consideraram as ocorrências do interdiscurso e do Esquecimento Número 2 na composição dos efeitos dos sentidos (transposição da superfície linguística para objeto discursivo), estabelecendo as FD dominantes nas quais esses objetos discursivos se inscrevem. Após essa etapa, é revelada a Formação Ideológica (FI) que sustenta as FD e as influências das FImag que interpelam os sentidos, valendo-se da análise do Esquecimento Número 1; a esse último movimento (desvelamento da FD e da FI) dá-se o nome de processo discursivo. 4 Resultados e Discussão - Formações Discursivas, Objetos Discursivos e Processos Discursivos As diferentes concepções referentes ao que se conceitua como mulher, sendo estas pautadas em categorias biológicas e/ou sociais, caracterizam a primeira FD, nomeada como FD1. Dessa maneira, para exemplificar as FD1, foram recortados alguns trechos de uma das postagens (RADFEM, 2015a), destacando duas superfícies linguísticas, especificadas como S1e S2: S1: “Li livros sobre transgeneridade e finalmente me decidi que “mulher” era uma categoria social, mas isso nunca foi fácil de explicar” (RADFEM, 2015a, § 02) S2: “Pensei que eram apenas mulheres que aconteceu de nascerem com as partes erradas” (RADFEM, 2015a, § 02). E para exemplificar a hipótese de que as ditas TERF, que dizem lutar pelos direitos das mulheres, passam a se comportarem de maneira opressiva em seu discurso, reproduzindo, consequentemente, a opressão do patriarcado, foram retiradas duas superfícies linguísticas que caracterizam a FD2. S3: “O que muitas feministas radicais estão dizendo na verdade é que não concordam com as políticas transgêneras porque as políticas transgêneras em geral são prejudiciais às mulheres, mas elas não desejam que nenhum mal aconteça a quem é transgênero. Elas 412 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 estão apenas se preocupando com as mulheres, o que é algo que as feministas sempre fizeram” (RADFEM, 2015a, § 04) S4: Foi recortado o seguinte trecho: “o feminismo deveria libertar as fêmeas humanas da opressão” (RADFEM, 2015a, § 08). 4.1 Superfícies Linguísticas e Objetos Discursivos Em relação à FD1, na S1, que constitui um dos efeitos de sentidos da FD1, torna-se possível pressupor que a autora do post se mostra confusa em relação à definição de mulher segundo uma concepção que a caracteriza como uma “categoria social”, e também a considera uma questão “difícil de explicar”. Podemos inferir aqui que definir mulher segundo uma categoria social implicaria uma discussão referente ao gênero. Assim, devemos partir do pressuposto de que o conceito gênero não é homogêneo dentre as variadas perspectivas teóricas, sendo um objeto de muitos questionamentos (DE TILIO, 2014). Dessa forma, entender que o conceito gênero possui variados sentidos, sustentados em diversas concepções teóricas, implica ampliar as possibilidades de compreensão desse conceito e não adotar uma única explicação como verdade. No mais, podemos pressupor aqui uma concepção de gênero entendida como uma categoria social, a partir dos argumentos de Scott (1995), que propôs uma das primeiras teorizações sobre gênero. Scott (1995) define gênero como o conjunto dos sentidos dinâmicos (não biologicamente determinados) que são construídos nas relações de poder que embasam as relações entre homens e mulheres. Dentro desta perspectiva teórica, a história e os agrupamentos humanos, por meio da cultura e da socialização, organizam de diversas maneiras as relações sociais, e, assim, o gênero não seria a diferença sexual, mas sim as representações e as relações (de poder) produzidas a partir da discutida e polêmica diferença sexual e, portanto, passíveis de alteração. Dessa maneira, não seria a diferença sexual por si só que organiza as relações entre homens e mulheres, mas sim são as relações de poder que definem como os sexos devem manter suas interações e, mesmo que o binarismo (de sexo) continue, o essencialismo biológico de gênero pode ser extinto (DE TILIO, 2014). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 413 É importante ressaltar que, nesse contexto, Butler (2012) pressupõe que a genealogia, em uma perspectiva foucaultiana, toma o gênero e a análise relacional, por ele sugerida, como efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de origem são múltiplos e difusos. Além disso, Butler (2012) destaca que suas críticas reflexivas ao gênero e ao feminino se baseiam em duas instituições: o falocentrismo e a heterossexualidade compulsória. O feminino, assim como o masculino, não é mais considerado como uma noção estável, nem genuína ou autêntica, assim como o próprio conceito de mulher. Nesse sentido, a autora propõe repensar e problematizar o suposto sujeito universal feminismo (ALVES, 2017). Isso exemplifica como as produções de sentidos sobre gênero e sexo estão instruídas e condicionadas às FD e FI, que ditam diversas concepções sobre o que torna uma pessoa mulher ou homem, elencadas em compreensões biológicas e/ou representadas por papéis sociais. E, apesar do fato de haver múltiplos significados da categoria gênero, que reverberam, portanto, em disputas teóricas e se materializam em políticas públicas que podem encarnar uma concepção biologizante das identidades, ressalta-se que, para Butler (2012), o gênero não está passivamente inscrito sobre o corpo como um recipiente sem vida. O que se supõe como uma característica natural dos corpos é algo que se antecipa e que se produz mediante certos gestos corporais naturalizados – performatividade (BENTO, 2012). Ou seja, exemplificando, mulheres se comportam como mulheres, agem como mulheres, pois estão inseridas em uma sociedade (FI) que dita quais são determinados papéis para serem executados por uma mulher, e o mesmo vale para os homens. Outro efeito de sentido nesse primeiro trecho é provocado pelo uso da expressão “finalmente me decidi”, que logo se contradiz com “mas isso nunca foi fácil de explicar”, já que a autora se convence a priori de que mulher se constitui como uma categoria social. Porém, pode-se pressupor que isso não esclarece integralmente, para ela, o que se define como “ser mulher”, valendo-se de explicações biologizantes. Tal concepção será posteriormente analisada, em outro recorte selecionado. Essas diferenças de concepções se pautam em diferentes FImag a respeito da categoria “mulher”, construídas e constituídas socialmente. Assim, podemos identificar o efeito do interdiscurso que disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. Nesse contexto, o fato de o já-dito sobre mulher ser uma 414 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 categoria social (segundo a qual a autora do post se convenceu a partir de leituras feitas por ela mesma) afeta a maneira como ela significa para atribuir sentidos e expressar sua opinião a respeito do que se considera mulher. Dessa forma, fica evidente, conforme Orlandi (2007), que o dizer não é propriedade particular e que significa pela história e pela língua. Em relação à S2 podemos inferir que a autora equivale as mulheres trans aos homens, pois elas nasceram com corpos masculinos ao passo que mulheres de verdade nascem com vagina e útero – e por isso são mulheres de verdade. Portanto, como as mulheres trans nasceram e foram socializadas como homens não poder participar dos movimentos feministas por mais que aleguem que nasceram com um corpo errado. As FD e FI que circunscrevem esse efeito de sentido argumentam que é a biologia dos corpos (a natural diferença sexual) que determina os papéis de gênero e a vivência da sexualidade. Maneira mais adequada de dizer isso é considerar que as performatividades normativas são inscritas nos corpos como verdades biológicas (ALVES, 2017). Fica assim explícita a concepção de sexo e gênero defendida pela autora do post, o que diverge de considerações que afirmam que nem sempre as expectativas sociais relacionadas às pessoas nascidas com determinadas configurações biológicas (femininas ou masculinas) redundarão na identificação com certo gênero (homem ou mulher), conforme argumenta Bento (2012) em seus estudos sobre a vivência transexual. E, no que se refere às mulheres transexuais, é notório que, em nossa sociedade pautada em uma concepção patriarcal, machista e binária, elas não recebem o mesmo tratamento dado às mulheres cisgênero1, tidas como mulheres “de verdade”, uma vez que possuem útero e vagina, tampouco as mesmas oportunidades, de modo que as mulheres transexuais, além de serem vitimadas pelo machismo, também o são pelo sexismo, de base biologizante, que lhes nega o estatuto da feminilidade. Agora, em relação à FD2, foram mobilizadas duas superfícies linguísticas. Na S3, ao afirmarem que “não desejam que nenhum mal aconteça a quem é transgênero”, estão atribuindo sentido ao termo “mal” a partir de seus interesses e necessidades pessoais, ignorando a opressão que causam aos transexuais, mais especificamente às mulheres Denomina-se cisgênero ou “cis” pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 415 trans, que se deparam com um feminismo conservador, o qual rompe com a possibilidade de se viver o gênero fora dos marcos das identidades genitalizadas (ALVES, 2017). Podemos identificar, então, relações de força presentes nesse objeto discursivo, uma vez que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz. E estas ditas relações de forças, sustentadas no poder desses diferentes lugares, se fazem valer na “comunicação”. Ou seja, a autora da postagem, ao afirmar que não deseja que nenhum mal aconteça a quem é transgênero, desconsidera o sofrimento e a negação de direito que causa a essas pessoas não serem reconhecidas como mulheres e serem desapropriadas de um lugar no movimento feminista, similarmente ao que o patriarcado provoca nas mulheres. Mas é importante dizer que nem todas as feministas radicais são TERF. Todavia, no caso da autora da postagem, é evidente a desrresponsabilização das TERF pela opressão das mulheres (mesmo as trans) realizada por mulheres que, ao seu ver, lutam por direitos das mulheres. Conforme Zirbel (2007) argumenta, para as feministas radicais, o patriarcado era um sistema sexuado de poder e dominação no qual os homens possuem privilégios e controle sobre a sociedade e sobre o corpo das mulheres, utilizando-se dos mais diversos meios para este fim (pornografia, estupro, violência doméstica, assédio sexual, leis restritivas sobre a contracepção, esterilização e aborto, etc.). De acordo com Zirbel (2007, p.7), o patriarcado estaria presente “(...) em todas as sociedades históricas e em todas as relações sociais, sendo responsável pela exclusão sistemática das mulheres de todas as instâncias de poder e pela permanente desvalorização dos papéis e tarefas a elas atribuídos”. Ainda, ao afirmar que “estão apenas se preocupando com as mulheres, o que é algo que as feministas sempre fizeram”, isso pode ser assemelhado ao funcionamento do Esquecimento Número 2 e, assim, podemos identificar um “não-dito”, caracterizado como um não dizer, já que o dito traz consigo necessariamente um pressuposto, não-dito mas presente (ORLANDI, 2007), o qual reafirma a posição da autora do post quanto à relevância de um determinismo biológico em detrimento das construções sociais e sexuais dos indivíduos. Dessa forma, poderiam ter dito que estão apenas se preocupando com as mulheres “de verdade” (detentoras de útero e vagina), uma vez que excluir mulheres trans (entendidas por elas como homens) do movimento garantiria uma proteção dos direitos de pessoas biologicamente mulheres. O funcionamento 416 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 do Esquecimento Número 2 esclarece que, se outras palavras fossem utilizadas, outros seriam os efeitos de sentidos produzidos (ORLANDI, 2007). Já na S4, o sentido atribuído pela autora, ao utilizar do termo “deveria”, ilustra o funcionamento do Esquecimento Número 2, que poderia vir a expressar sua opinião a respeito de sua insatisfação de aceitação de mulheres trans no movimento. Podemos, assim, pressupor que a autora considera a participação de mulheres trans como uma opressão provocada por homens, sendo esta a mesma opressão praticada por homens que se reconhecem como homens. Ou seja, para elas, mulheres trans no movimento feminista provocam um desfalque dos interesses das consideradas, por elas, como mulheres “de verdade”. Desta forma, poderia ter sido dito: “o feminismo deveria libertar as mulheres com útero e vagina da opressão causada por homens”, sendo estes considerados os que possuem pênis, independente de sua categoria social e desejos. Ainda, a partir dessa S4, é possível presumir que a opinião da autora do post pode vir a reproduzir a mesma opressão que o feminismo combate: a do patriarcado. Nesse sentido, com a proliferação dos movimentos feministas (pautados numa luta por uma sociedade livre do patriarcado, que espera que as mulheres não sofram mais com a opressão de gênero, que as relações sociais entre homens e mulheres não sejam tão assimétricas, que as mulheres sejam ensinadas a se empoderarem e não se alienem diante de seu gênero), fica contraditório excluir uma parcela dessas mulheres, ditas aqui como tal, por não possuírem em sua constituição biológica útero e vagina, sendo consideradas mulheres “ilegítimas”, uma vez que uma dada configuração do corpo (entende-se aqui como corpo biológico) não deveria condicionar a um modo de estar no mundo, sentimentos, comportamentos ou inclinações eróticas. 4.2 Processo Discursivo Na perspectiva da AD, a compreensão do processo discursivo visa explicitar as condições materiais de produção dos sentidos, ou seja, quais são as principais FD, FImag e FI concernentes à produção dos discursos (ORLANDI, 2007). Ou seja, como o Esquecimento Número 1 interpela a produção dos sentidos entre os interlocutores. Dessa forma, o analista constrói um percurso que procura relacionar as FD com a FI (GOMES, 2007). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 417 Sendo assim, ressalta-se que, a partir do Esquecimento Número 1, sendo este da instância do inconsciente, tem-se a ilusão de sermos a origem do que dizemos, quando, na verdade, sentidos já definidos interpelam os sujeitos (ORLANDI, 2007). Esse esquecimento também é conhecido como esquecimento ideológico e, na AD, o indivíduo é interpelado pela ideologia, para que se produza o sentido, situando-os em FD específicas. Nesse contexto, é importante destacar a(s) influência(s) da Ideologia e da(s) ideologia(s)2 (PÊCHEUX, 2014) na constituição do sujeito e dos sentidos. Assim considerada, a ideologia é a função da relação necessária entre linguagem e mundo (ORLANDI, 2007). Portanto, no processo discursivo, revelam-se quais FI que sustentam as FD e quais as influências das FImag, valendo-se da incidência do Esquecimento Número 1. Após a análise das superfícies linguísticas (S1 a S4), depreendese que a sociedade patriarcal machista e autoritária caracteriza um dos principais aspectos da FI da nossa sociedade, que sustenta a argumentação da autora do post, quando esta se mostra contra a inclusão de mulheres trans no movimento feminista radical e, assim, passa a reproduzir (mesmo sem se dar conta disso) o que o patriarcado provoca nas mulheres: opressão. De acordo com Zirbel (2007), o argumento do patriarcado começa a ser utilizado no final do século XIX, entre as feministas radicais estadunidenses, como explicativa para a subordinação das mulheres. Ainda segundo a autora, o conceito de patriarcado se mostrou útil do ponto de vista da mobilização política e foi importante na medida em que distinguia forças específicas na manutenção do sexismo, tendo como objetivo demonstrar que a subordinação da mulher não era natural, mas enraizada nas práticas sociais. O patriarcado traz implícita a noção de relações hierarquizadas entre indivíduos com poderes desiguais e oferece os dispositivos Ideologia [em geral, com i maiúsculo] é “uma estrutura e um funcionamento tais que fazem dela uma realidade não-histórica, no sentido em que esta estrutura e este funcionamento se apresentam na mesma forma imutável em toda história”, ou seja, é a interpelação (inconsciente) que transmuta o indivíduo em sujeito (PÊCHEUX, 2014, p. 137); e ideologia(s) (com i minúsculo) seria a série de valores destacada e reconhecida, em grupos/sociedades específicas, como a desejável de ser incorporada/ exercida pelos sujeitos. 2 418 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 para explicações referentes às desigualdades e a dominação/opressão (ZIRBEL, 2007). Nesse sentido, é possível que mulheres transexuais, por não possuírem útero e vagina em sua constituição biológica natural, sejam consideradas como homens (uma vez que foram socializadas segundo os esquemas masculinizatórios) e, inferiores, por algumas feministas radicais. Dito de uma maneira mais explícita, as feministas radicais propõem uma análise de gênero partindo da raiz das opressões (o patriarcado), mas, ao ignorarem a existência das diversidades de identidades de gênero3 (SILVA, 2015), reproduzem uma opressão de cunho similar à proveniente do patriarcado, porém com mulheres trans. Nesse sentido, seguindo os argumentos de Praun (2011), a ideologia dominante difundida consegue manter uma ordem social que perpetua as relações de poder dissimétrica entre os sexos. Disso se infere outra FI, que sustenta concepções biologizantes sobre o que se considera ser mulher. De acordo com Zirbel (2007, p. 46), “(...) as feministas radicais trabalhavam com uma categoria universal de mulher que incluía traços biológicos e aspectos socialmente construídos, criando uma identidade coletiva válida para diferentes culturas e tempos históricos”. Os elementos em comum (pautados em aspectos biológicos/ essencialistas) equivaleriam em sentidos para caracterizar alguém como mulher. Nesse sentido, essa FI pautada no essencialismo biológico atesta as FD referentes às discussões do feminismo radical acerca da exclusão de mulheres trans, uma vez que essas (por não possuírem útero e vagina) não são consideradas mulheres de verdade, embora se sintam e se autodeclarem como tal. Sendo assim, as ditas TERF passam a reproduzir padrões e estereótipos cisgêneros e sexistas, enfatizando que aspectos biológicos seriam determinantes para a construção da sexualidade humana assim como das relações de poder. Afinal, segundo Alves (2017), o que leva a legitimidade de um modelo de mulher ser pautado na presença ou não de vagina e útero? A identidade de gênero pode ser traduzida pela convicção de ser masculino ou feminino, conforme os atributos, comportamentos e papéis convencionalmente estabelecidos para machos e fêmeas. As identidades definem-se em termos relacionais e, enquanto categorias, podem organizar e descrever a experiência da sexualidade das pessoas. Na sociedade contemporânea, as identidades tornam-se instrumentais para reivindicação por legitimidade e respeito. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 419 A partir do que foi exposto, podemos compreender a diferença entre homens e mulheres como não-determinada biologicamente e, por isso mesmo, imutável, passando a considerá-la do ponto de vista psicossocial e, assim, como algo sujeito à mudança (PRAUN, 2011). De acordo com Alves (2017, p. 09), a partir das explicações de que existem diversas práticas discursivas (médica, psicológica, jurídica, autobiográfica) que ampliam as discussões a respeito das diferentes perspectivas teóricas sobre o universo trans: Se não existe uma essência sexual [...], se a heterossexualidade não é a única norma social viável [...], se a narrativa autobiográfica consiste num fator determinante na expressão de gênero [...], se o corpo pode ser moldado pela tecnologia [...] e pelo desejo [...], definitivamente, não há mais espaço para um discurso de naturalização e legitimação de um único modelo de mulher. Partindo desta concepção, não é possível conceber um gênero original e muito menos genuíno ou essencialista. Sendo uma mulher cisgênero ou uma mulher transgênero, torna-se possível pensar apenas em gêneros flexíveis, múltiplos e instáveis, gêneros - escrito no plural, pois, assim grafados, afirmam a pluralidade e a diversidade, promovendo rupturas e fissuras no enquadramento reducionista, higienista e eugenista de sujeitos e corpos. É importante ressaltar que as concepções hegemônicas de masculinidade e feminilidade dependem do momento histórico, das leis, das religiões, da organização familiar e política, dentre outras. São esses fatores que levam a sociedade a construir, em determinado momento histórico, a concepção de gênero considerada verdadeira, normal e adequada, sendo por meio da linguagem (e do discurso) que se estabelecem e se mantêm as relações sociais e de poder. 5 Considerações Finais Ressalta-se que a AD mostra-se como uma possibilidade de interpretação para a abordagem dos temas relacionados à sexualidade, gênero e Psicologia Social. Assim, a linguagem passa a ser um elemento envolvido na elaboração do pensamento e na interpretação da mensagem comunicada e não apenas um código para a comunicação humana, sendo responsável por guiar as percepções dos indivíduos, construindo e criando as interações sociais, além de permitir a cristalização das 420 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 relações de poder. Nesse sentido, ela (a linguagem) seleciona quem tem mais poder para atribuir sentidos, provocando uma naturalização dos sentidos atribuídos. Perante o que foi exposto na análise, faz-se possível elencar alguns efeitos de sentidos presentes no blog RadFem sustentados em discursos pautados em concepções binárias, essencializantes e opressoras para se caracterizar a mulher. Assim, foi interpretado que a autora do post passa a considerar relevante um determinismo biológico em detrimento das construções sociais e sexuais dos indivíduos, já que não identifica como mulher indivíduos que não possuem útero e vagina desde o nascimento. Em função disso, não considera o direito de participação de mulheres trans no movimento feminista radical e reproduz, mesmo sem se dar conta disso, uma opressão similar à que o patriarcado provoca nas mulheres. Contudo, essa repressão de uma dita “minoria”, no caso, mulheres transexuais, coloca em pauta a discussão acerca da necessidade de construir políticas públicas para assim conceber mudanças em variados segmentos sociais: no plano jurídico, no sistema de saúde, no âmbito escolar, assim como incentivar pesquisas sobre as diversidades sexuais. Por fim, é relevante destacar que, apesar de as mídias sociais atuarem como campos de disputas e aproximarem mais as pessoas de discussões, essa pesquisa possui a limitação de ter utilizado apenas um blog como instrumento. Além disso, esta pesquisa abordou apenas quatro trechos de uma postagem de um blog específico que discorre sobre interesses da vertente feminista radical. Nesse sentido, uma AD de outros textos e contextos que abordem a questão do que se compreende ser mulher (e suas interfaces) se faz necessária e interessante para uma compreensão mais ampla referente ao tema. Outra potencialidade seria incluir na análise relatos e opiniões de mulheres trans para ampliação de discussões a respeito das diferentes possibilidades de se compreender o ser mulher. Por fim, compreender os diferentes modos de se expressar no mundo é permitir refletir a respeito da fluidez e da multiplicidade possível de existência de distintas identidades sexuais. Contribuição dos autores Os autores contribuíram igualmente em todas as etapas (concepção, delineamento metodológico, coleta e análise dos dados e redação científica) desta pesquisa e artigo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 421 Referências ABDO, C. H. N.; PEREIRA, C. M. A.; SPIZZIRRI, G. O termo gênero e suas contextualizações. Diagnóstico & Tratamento, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 42-44, 2014. ALVES, C. E. R. Mulheres cisgênero e mulheres transgênero: existe um modelo legítimo de mulher? In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO, 11; WOMENS’ WORLDS, 13th., 2017, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2017. ANJOS, K. P. L.; LIMA, M. L. C. Gênero, sexualidade e subjetividade: algumas questões incômodas para a psicologia. Psicologia em Pesquisa, Juiz de Fora, v. 10, n. 2, p.49-56, 2016. BENTO, B. Sexualidade e experiências trans: do hospital à alcova. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 10, p. 2655-2664, 2012. BORGES, L. S. Feminismos, teoria queer e psicologia social crítica: (re)contando histórias. Psicologia Social, Belo Horizonte, v. 26, n. 2, p. 280-289, 2014. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000200005 BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2012. COELHO, M. P. Vozes que ecoam: Feminismo e mídias sociais. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João del Rei, v. 11, n. 1, p. 214-224, 2016. DE TILIO, R. Teorias de gênero: principais contribuições teóricas oferecidas pelas perspectivas contemporâneas. Revista Gênero, Niterói, v. 2, n. 14, p. 125-148, 2014. GOMES, A. M. T. Do discurso às formações ideológica e imaginária: análise de discurso segundo Pêcheux e Orlandi. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 555-562, 2007. HENNING, C. E. Interseccionalidade e pensamento feminista: as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 97-128, 2015. LEITE, F. T. Metodologia científica: métodos e técnicas de pesquisa: monografias, dissertações, teses e livros. Aparecida: Idéias & Letras, 2008. 422 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 401-422, 2019 ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2007. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Unicamp, 2014. PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, F.; HAK, T. (Org.). Por uma análise automática do discurso. Campinas: Unicamp, 1997. p. 163-252. PINTO, C. R. J. Feminismo, história e poder. Revista Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, 2010. Doi: https://doi. org/10.1590/S0104-44782010000200003 PRAUN, A.G. Sexualidade, gênero e suas relações de poder. Revista Húmus, São Luís, n.1, p.55-65, 2011. RADFEM. Saindo do culto trans. 2015a. Disponível em: <http://radfem. info/2015/05/>. Acesso em: 08 maio 2018. RADFEM. RADFAQ. 2015b. Disponível em: <http://radfem.info/ radfaq/>. Acesso em: 08 maio 2018. SANDENBERG, C. Estudos feministas: um esboço crítico. In: SIMPÓSIO CEARENSE DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE A MULHER E RELAÇÕES DE GÊNERO, I, 2002, Fortaleza. Anais... Fortaleza: UFC, 2002. SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v.20, n.2, p.72-89, 1995. SILVA, C. G. Orientação sexual, identidades sexuais e identidade de gênero. [Apostila do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica Módulo 3 Sexualidade e Orientação Sexual]. São Paulo: COMFOR, 2015. SIMILARWEB RadFem Info. 2018. Disponível em: <https://www. similarweb.com/website/radfem.info>. Acesso em: 05 jul. 2018. ZIRBEL, I. Estudos feministas e estudos de gênero no Brasil: um debate. 2007. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Sociologia Política, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2007. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Mulher, verão e cerveja: a produção de sentidos na peça publicitária da cerveja Itaipava, no Brasil Women, Summer and Beer: The Production of Meanings in the Itaipava Adds, in Brazil Tatiana Barbosa de Sousa Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais / Brasil tatianabsg@gmail.com Guilherme Beraldo de Andrade Universidade do Estado de Minas Gerais, Passos, Minas Gerais / Brasil guilhermeberaldo@hotmail.com Resumo: Com o intuito de analisar o funcionamento de sentidos produzidos pela excessiva exposição da imagem da mulher como apelo comercial nas propagandas da marca Itaipava no Brasil e compreender como se dão os efeitos de sentidos causados pelo uso da imagem da mulher no meio publicitário, analisaremos recortes de peças publicitárias desta marca, tomando como base teórica a semântica histórica da enunciação, tal como proposta por Guimarães, além de outros conceitos fundamentais para este estudo que se estabelece em diálogo constante com a análise de discurso. Neste artigo, compreendemos como o processo de produção de sentidos se dá em outras formas significantes para além do texto e como esses efeitos de sentido afetam, direta e indiretamente, o comportamento do homem na relação para/com a mulher na nossa sociedade. Palavras-chave: semântica histórica da enunciação; análise de discurso; imagem da mulher; efeitos de sentido. Abstract: In order to observe the work of meanings that are produced by the excess of the image of the women as a commercial appeal in the advertisings made by the brand Itaipava in Brazil, and understand how the effects of meanings caused by the use of the eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.423-452 424 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 image of women in the marketing area we will analyze pieces of advertisement used by this brand, having as the theoretical basis the studies in the Historical Semantics of Enunciation, as presented by Guimarães, besides other essential concepts to this study that is established in the constant possible dialogue with the discourse analysis. In this article, we try to understand how the process of production of meanings happen in other meaningful ways that are out of the text, and how these meaning effects affect, directly and indirectly, the behavior of the men in relation to/with the women in our society. Keywords: historical semantics of enunciation; discourse analysis; women image; effects of meaning. Recebido em 10 de julho de 2018 Aceito em 16 de setembro de 2018 1 Considerações Iniciais Nossa proposta, neste artigo, é abordar o tema da exposição do feminino na propaganda de cerveja. Temos observado que a imagem da mulher foi, ao longo de várias décadas, e ainda é um recurso midiático que vem sendo utilizado de maneira que pode ser considerada depreciativa e machista, na maior parte das vezes. Ao longo do tempo, a mulher vem recebendo, por parte daqueles que produzem as peças publicitárias, uma significação que a coloca não exatamente numa posição de fragilidade e submissão, mas o de mulher fatal – “mulherão” –, mulher cobiçada sexualmente e considerada o grande objeto de consumo e desejo dos homens. Com essa ressignificação, fez-se a abertura de um viés comercial em que a imagem da figura feminina se relaciona diretamente ao consumo de um produto, em especial, as cervejas brasileiras. Refletir sobre a imagem da mulher nas peças publicitárias de cerveja no Brasil significa tocar em uma questão delicada e complexa, uma vez que estamos em uma esfera do saber que contempla questões ideológicas que afetam e produzem efeito sobre as práticas na/da sociedade brasileira, e deixam transparecer a formação predominantemente machista e patriarcal em que estamos inseridos. Entendemos que aquilo que é ideologicamente estabilizado ecoa de modo natural entre os dizeres, como se aquele dizer fosse o único a ser aceito como certo e/ou verdadeiro. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 425 Assim, detectaremos, por meio das análises propostas, que o funcionamento discursivo nas peças publicitárias afirma posições machistas e preconceituosas em relação à capacidade da mulher e indiciam a repetição na significação da mulher como a apresentada nas epígrafes deste texto. Observamos a existência de um cuidado prático/técnico que visa ao apagamento do machismo e dos preconceitos por parte dos que formulam a propaganda cervejeira em geral, aqui representada pela peça da cerveja Itaipava, que mostra no seu funcionamento os ecos de uma memória de dizeres e nos remete a uma formação machista estabilizada ao longo do tempo, em nossa sociedade. 2 A mulher na sociedade brasileira O discurso verbal e imagético que circula nas mais diferentes peças publicitárias de cerveja traz um eco de significação daquilo que se espera das mulheres. Na maioria das vezes, jovens, brancas e magras, loiras e de cabelos lisos despontam como objeto de desejo, tanto de homens que visam tê-las para a satisfação dos seus prazeres, quanto de mulheres que buscam, por meio de diferentes maneiras e uso de artefatos, aproximarem-se dessa imagem vendida como a verdadeira beleza da mulher, sem que necessariamente essa caracterização corresponda ao padrão da mulher brasileira. Quando falamos em padrão da mulher brasileira, queremos fazer lembrar que o povo brasileiro e, assim, a mulher brasileira, é a mistura de várias raças. A miscigenação de muitos povos que aqui em nosso país se instalaram é marca da diversidade brasileira. Desde a colonização/invasão do território brasileiro, e queremos pontuar que isso é efeito dos modos como a mulher é significada no mundo, a miscigenação se deu, em grande parte, por meio da prática de estupro de mulheres negras, de índias e de outras etnias consideradas inferiores às dos invasores europeus. Conforme destaca Moreno: E, no entanto, a mulher brasileira é hoje resultante de uma mescla de raças e etnias, em que se amalgamaram brancas, negras e índias, com uma pitada posterior de japonesas, árabes e tantas mais. Nossa beleza vem justamente da diversidade. E nossa diversidade tem características absolutamente diferentes do modelo eurocêntrico 426 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 idealizado com que nos bombardearam. Somos brancas, negras, mulatas, índias, mestiças, nisseis, sanseis. Temos curvas generosas que advêm dessa mistura de raças/etnias que nos compõem. Somos magras e gordas; crianças, jovens e velhas – nossa população já exibe índices respeitáveis de mulheres de terceira idade; somos altas, baixas, de estatura mediana. Temos o frescor da juventude e a beleza da maturidade. E somos, fundamentalmente, uma nação de mulheres em movimento (MORENO, 2008, p. 37-38). Fazendo com que, portanto, a dificuldade de se chegar a um padrão seja acentuada, essa prática midiática, frequentemente vista como inofensiva e despretensiosa por aqueles que consomem o produto (nesse caso, a cerveja), faz com que a imagem da mulher seja estereotipada e banalizada, o que contribui, entre tantas outras coisas, para o seu desmerecimento no mercado de trabalho, no respeito dispensado pelos demais e no reconhecimento familiar, por exemplo. É por ter sua sustentação em pilares machistas que a sociedade brasileira, em geral, acata esses dizeres como “normais” ou até mesmo “engraçados”, já que aquilo que é ideológico transita naturalmente entre os costumes e dizeres de uma sociedade, no caso de nossa análise, a sociedade brasileira, especialmente a parcela masculina e consumidora de cerveja. Podemos perceber que, em algumas publicações lançadas recentemente, têm havido uma tentativa de ruptura com este modo de veicular a imagem da mulher na mídia. Tal movimento pode ser compreendido com uma resposta das empresas anunciantes ao crescimento do número de mulheres atuantes no mercado de trabalho, em posições de prestígio em grandes empresas, nas mesas dos bares, lado a lado com o público masculino que mencionamos acima. Porém, os efeitos de sentidos que temos observado nas propagandas de cerveja, especialmente, fazemnos interpretar que a imagem do feminino nas peças publicitárias não retrata a imagem da mulher consumidora de cerveja, ou da mulher que contribui diretamente no funcionamento da sociedade, mas, ao contrário, significa a mulher a partir de um padrão de beleza praticamente inatingível, equiparada a um objeto, ou até mesmo alimento, que o homem consumidor daquela marca será capaz de conquistar ou “possuir”. A partir dessa consideração, voltamos para o que vem sendo difundido como fundamento da ordem publicitária e entendemos que as campanhas utilizam um modelo de beleza que, como dito anteriormente, não representa, em sua essência, o perfil estético da mulher brasileira, mas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 427 funciona a partir de uma memória de sentidos de uma mulher idealizada no imaginário masculino, e fazendo com que este modelo de beleza torne-se um objeto de persuasão para a venda. Assim, a fim de alcançar o objetivo da nossa pesquisa, analisamos o funcionamento discursivo produzido na excessiva exposição da imagem da mulher como apelo comercial em um vídeo da marca Itaipava, veiculado no Brasil, e seus efeitos. Além disso, mostraremos como se dá a significação da imagem da mulher no meio publicitário como argumento de venda, ou seja, usada para garantir as vendas do produto como uma forma de alcançar o imaginário do consumidor de cerveja, especialmente o masculino. É pela atualidade do tema e sua discussão que consideramos a pertinência desse estudo no campo das ciências da linguagem. Nosso interesse é observar, pelo diálogo possível entre os pressupostos teóricos da análise de discurso e os dispositivos teórico-metodológicos da semântica histórica da enunciação, por meio de recortes do corpus elencado para análise, como se dão os efeitos de sentidos veiculados com a ideação da mulher “gostosa” – “mulherão” – como inspiração de vendas. Desse modo, buscamos mostrar como o processo de produção de sentidos se dá em outras formas significantes para além do texto e como esses efeitos de sentido influenciam, direta e indiretamente, o comportamento do homem na relação para/com a mulher na nossa sociedade. Faremos este estudo observando a relação tecnologia e linguagem, tomando a tecnologia como um ponto simbólico, político e ideológico, tal como proposto por Dias (2013, p. 50): “uma instância de produção de discursos, de relação de poder”, pois “as questões de tecnologia são uma forma de reivindicar um sentimento comum da comunidade” (SFEZ, 2002, p. 24). A partir disso, pensamos que a relevância do presente estudo está em mostrar os efeitos, na sociedade, do processo de produção de sentidos quando se parte da imagem (estereotipada) da mulher, julgando-a e impondo a essa mulher um lugar social de objeto a ser comprado e consumido. 3 O vídeo e a tecnologia de linguagem Neste artigo, olhamos para o filme publicitário como base material utilizada para a veiculação de peças publicitárias de uma marca 428 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 de cerveja, a Itaipava, a qual constitui o nosso corpus de análise. Levandose em consideração que o vídeo-filme é, para nós, uma tecnologia de linguagem, mostraremos como ela funciona como parte do processo de significação dentro da análise proposta. Podemos observar, ao longo da evolução tecnológica que tem ocorrido nas últimas décadas, que a utilização da tecnologia é um fator determinante na modificação na maneira como os homens relacionam-se entre si, com o meio em que vivem e com as máquinas, o que nos chama a atenção para uma nova maneira de significação do sujeito diante de si mesmo. Este ponto torna-se relevante uma vez que estamos inseridos em uma sociedade imersa no excesso de informação e conhecimento. Isso nos move a compreender as peças publicitárias também afetadas por uma tecnologia de linguagem específica, a partir da qual se podem produzir outras diferentes significações; aqui, para nós, como o vídeo produz e faz circular conhecimento e/ou significação acerca da mulher. No campo dos estudos das Ciências da Linguagem, o estudo de diferentes bases materiais como tecnologias de linguagem adquire grande importância na década de 90, de acordo com Orlandi (2013), pois, além de se fazerem significar de diversos modos, “re-organiza[m] a vida intelectual, re-distribui os lugares de interpretação desloca o funcionamento da autoria e a própria concepção de texto” (p. 62-63). Com o advento da utilização de outras tecnologias, como o computador e o smartphone, passou a ser importante, dentro do processo de significação, entender como acontece a construção dos sentidos e como estes circulam e se fazem significar na sociedade. Neste viés, a base material utilizada para fazer com que os sentidos circulem ganha destaque. Orlandi explica que: O corpo da palavra se estende até os seus limites tensionada pelas tecnologias. A dimensão do virtual, tão explorada em nosso cotidiano e em nosso imaginário de usuários (ou não) dos discursos eletrônicos e para-eletrônicos nos levam a compreender que a materialidade da linguagem – seus múltiplos significantes – em sua plasticidade incorpora os modos de existência do concreto nas suas diversas modalidades: formal (abstrato), empírico, virtual. E todas elas nos confrontam com o significante: com seus limites, com seus delimites, com suas falhas, seus equívocos, sua incompletude incontornável (ORLANDI, 2013, p. 66) (grifo nosso). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 429 Ora, se diferentes materialidades produzem significações diversas, conforme explicitado acima, é importante apontarmos para o fato de que o vídeo contribui para a produção dos sentidos identificados no processo analítico desenvolvido neste trabalho. Uma vez que partimos de uma materialidade que circula no âmbito midiático (o vídeo), e sendo esse lugar de dizer diretamente afetado pelas tecnologias, faz-se necessário considerar que os sentidos que são apreendidos acerca da imagem da mulher na sociedade brasileira através da circulação desta peça midiática são uns, e não outros, porque são produzidos e veiculados nesta e a partir desta materialidade específica. Sendo assim, retomando os estudos de Levy (1996), o autor afirma não haver fronteiras entre o mundo virtual e o mundo real. Analisar esta materialidade como tecnologia de linguagem no discurso midiático – em que se enfatiza a relevância da comunicação digital como mediadora e/ou influenciadora de comportamentos humanos – apresenta-se como uma consideração pertinente na relação sujeito/linguagem no processo de significação. 4 A mulher estereotipada Para chegarmos ao entendimento do que é ou de quem é esta mulher estereotipada, buscaremos a compreensão acerca do termo estereótipo, que, por estar intimamente relacionado à repetição e à memória, é uma das formas materiais pelas quais podemos abarcar os nossos gestos de interpretação. Conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: V.t.d.1. Imprimir estereotipia. 2. Tip. Converter em estereótipo. 3. Tip. Imprimir com estereótipos. 4. Reproduzir fielmente. 5. Tornar fixo, inalterável: Para se popularizar, conseguiu estereotipar o sorriso. P. 6. Tornar-se fixo, inalterável: De tão repetida a frase estereotipou-se (FERREIRA, 1986, p.720) (grifo nosso). A palavra, de etimologia grega, é utilizada para descrever comportamentos, ideias generalizadas ou padrões que determinem modelos fixos (conforme vimos na definição do dicionário acima), relacionados a pessoas – tornar um modelo inalterável de modo que ele possa ser reproduzido fielmente. 430 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Já no senso comum, a palavra estereótipo ganha significações que vão além dessas já estabilizadas pelo dicionário. Traremos aqui, como uma ilustração dessa afirmação, definições que foram colocadas para a palavra “estereótipo” no dicionário informal, disponibilizado pela plataforma Google. Vejamos as cinco primeiras entradas que aparecem na página para a palavra estereótipo: 1) Ideia, conceito ou modelo que se estabelece como padrão./Ideia de Preconceito./ Coisa que não é original e se limita a seguir modelos conhecidos. /O estereótipo do japonês é ser inteligente. 2) 1.chapa ou clichê usado em estereotipia./2.trabalho impresso por meio de estereotipia. / 3.modelo conceitual rígido que se aplica de forma uniforme a todos os indivíduos de uma sociedade ou grupo, apesar de seus matizes e divergências. 3) Refere-se a opinião preconcebida a respeito das coisas e das pessoas. Estereótipo revela uma imagem simplificada as margens das individualidades. 4) Estereótipo são generalizações que as pessoas fazem sobre comportamentos ou características de outros. Estereótipo significa impressão sólida, e pode ser sobre a aparência, roupas, comportamento, cultura etc. Estereótipo são pressupostos sobre determinadas pessoas, baseados em generalizações de situações que aconteceram anteriormente, mas sem ligação com a atual, e muitas vezes eles acontecem sem ter conhecimento sobre grupos sociais ou características de indivíduos, como a aparência, condições financeiro, comportamento, sexualidade etc. O Estereótipo também é muito usado em Humorismo, como um conceito pré-concebido, sendo muito mais aceito quando manifestado desta forma, situações que poderiam ser consideradas normalmente como manifestação de racismo, xenofobia, machismo, misandria, intolerância religiosa e homofobia, possuindo salvo-conduto e presunção de inocência para atingir seu objetivo. 5) Estereótipo é base cognitiva do preconceito. É a representação mental de grupos sociais e do agir de seus membros. / Um exemplo de estereótipo seria a representação mental que grande parte da população tem frente às brasileiras como sendo somente carne (bunda, seios e nada mais) (DICIONÁRIO INFORMAL, 11 de agosto de 2016). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 431 Temos que o entendimento social acerca da palavra “estereótipo”, em sua maioria, remete a algo ruim, que nos leva ao preconceito que se propaga por sentidos estabilizados ao longo do tempo na sociedade e tem como consequência, por exemplo, o machismo, a homofobia e outros citados acima. De acordo com as observações de Carrozza (2011, p. 12) “o estereótipo se reafirma no seu acontecimento, enquanto repetição”. Podemos então afirmar que é eco de um comportamento ou dizer que faz com que ele se torne naturalmente verdadeiro e/ou aceitável entre um grupo de pessoas. A carta que Pero Vaz Caminha enviou aos portugueses, na ocasião do descobrimento do Brasil, data do ano de 1.500, é um dos mais antigos documentos de que se tem registro sobre o país. Nele encontramos, com detalhes, como a mulher brasileira era significada, aos olhos de Caminha, naquela ocasião: Acudiram a praia dezoito ou vinte homens. A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados. Andam nus, sem cobertura alguma [...]. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha [...]. E uma daquelas moças [...] era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. (CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA, 1500). A fim de melhor compreender os sentidos acerca do imaginário do que é ser a mulher brasileira, desde a época da colonização/invasão, esboçaremos aqui um DSD (Domínio Semântico da Determinação) dessa citação, dividido em dois recortes, que nos auxiliarão no processo analítico. Cada um dos recortes será parafraseado em busca da construção dos sentidos que aqui se constituem, conforme abaixo: 432 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Recorte 1: Acudiram a praia dezoito ou vinte homens. A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados. Andam nus, sem cobertura alguma [...]. 1’ Os homens são pardos. 1’’ Os homens brasileiros são pardos. 1’’’ Mulheres brasileiras são pardas. 1’’’’ Ser brasileiro é andar nu. 1’’’’’ Ser brasileira é andar nua. 1’’’’’’Os homens portugueses não são pardos. 1’’’’’’’As mulheres portuguesas não são pardas. Recorte 2: Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha [...]. E uma daquelas moças [...] era tão bemfeita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. 2’ Ser moça é ser gentil. 2’’ Estas moças são gentis. 2’’’ Ser mulher brasileira é ser gentil. 2’’’’ Estas moças têm a vergonha alta, cerrada e limpa da cabeleireira. 2’’’’’ Ser mulher brasileira é ter a vergonha alta, cerrada e limpa da cabeleireira. 2’’’’’’ Estas moças não têm vergonha (pelo) 2’’’’’’’ As mulheres brasileiras não têm vergonha. 2’’’’’’’’ Ser mulher portuguesa é ter pelo. 2’’’’’’’’’ Ser mulher brasileira é causar vergonha. 2’’’’’’’’’’ Ser mulher europeia (portuguesa) é ter pudor. Com estas paráfrases, vamos propor o seguinte DSD acerca do imaginário da mulher presente no discurso de Caminha: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 433 DSD1: Cor Parda – | Andar Nua –| Ser Gentil –| Ter a vergonha (...) cabeleireira –| Não ter vergonha (pelo) –| Causar Vergonha –| MULHER BRASILEIRA ___________________________ Mulher Portuguesa Logo no início, se contrastarmos os recortes (1) e (2), perceberemos que o número de homens era superior ao número de mulheres. Sabemos que as mulheres sobre as quais Pero Vaz escreve em sua carta são as índias que habitavam nossa terra naquela época e que, por traços de sua cultura, andavam nuas ou seminuas (dependendo de sua tribo) e, por característica racial, tinham a pele de cor parda. Essas características chamavam a atenção dos europeus naquele momento, por terem a sua cor de pele bem mais clara. Tais diferenças, somadas à gentileza que lhes era característica, conforme relatado na carta acima, são as primeiras marcas que remetem à repetição de uma ideia que pode, possivelmente, ter levado à formação de um imaginário, o estereótipo da mulher brasileira. Em outras palavras, há aqui já na descrição de Caminha uma memória de sentidos sobre a mulher brasileira. Esse imaginário é potencializado pela mídia cada vez que uma peça publicitária, que reforça o estereótipo de uma mulher de beleza padronizada, não respeitando a diversidade cultural aqui encontrada e que está sempre com o corpo à mostra, é veiculada. Percebemos, portanto, que estereótipo é um termo que está diretamente relacionado à ideia de repetição, o que nos leva a pensar em uma estabilização de sentidos. Guimarães (2010, p. 11) afirma que “o sentido deve ser considerado a partir do funcionamento da linguagem no acontecimento da enunciação”. Isso quer dizer que o sentido é produzido no acontecimento por relações de determinação que envolvem uma exterioridade que não é expressa diretamente naquele enunciado dito, mas pelas relações que determinam os elementos deste enunciado. 434 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Carrozza (2011) explica que a publicidade utiliza-se constantemente da ideia de estereótipo, já que é um artifício que contribui para que diversos consumidores sejam atraídos de uma só vez e que isto só é válido uma vez que a formulação posta seja automaticamente compreendida pelo público consumidor e os sentidos apresentados sejam administrados pela marca que veicula a campanha publicitária. Em relação à imagem da mulher inferiorizada, pertencente à dominação do imaginário masculino que circula em nosso país, discursos de caráter religioso afetavam e autorizavam o homem a ter poder sobre o corpo da mulher para a reprodução. Sabemos que, outrora, ser casada significava uma relação de autoridade e submissão e, como destacamos acima, tal direito era garantido por Deus aos homens. Foi entre os séculos XIX e XX que a família conseguiu a possibilidade de assumir diversos formatos como conhecemos hoje. Através das modificações no cenário econômico que foram trazidas pelas guerras, revoluções, fim da escravidão e etc., as mulheres vislumbraram a necessidade da sua inserção no mercado de trabalho para complemento ou, até mesmo, garantia do sustento familiar. Esta modificação ocorreu porque os homens precisaram buscar trabalhos em outros lugares e, muitas vezes, não voltavam, deixando suas famílias abandonadas. Esse movimento provocou um importante deslizamento acerca do imaginário existente até então daquele papel desempenhado pela mulher na nossa sociedade. Porém, ao enfrentar o mercado de trabalho, as mulheres assumiam o risco de ter sua identidade de “mulher honesta” colocada em xeque, já que agora elas não seriam mais classificadas como “bela, recatada e do lar”.1 “Bela, recatada e do lar” é um conjunto de atributos que a revista Veja confere, em sua manchete de 18 de abril de 2016, à Marcela Temer, esposa do atual (2018) presidente do Brasil, Michel Temer, e vem seguido pela foto de uma mulher jovem, com sorriso sereno e expressão tranquila, sugerindo que qualquer mulher que não possua tais adjetivos, considerados positivos pela redação da revista, estivesse longe de um modelo aceito e/ou esperado acerca do padrão do que é “ser mulher”, como se aquela única mulher retratada pela imagem publicada pudesse revelar a realidade de todas as outras mulheres brasileiras. De acordo com o site www.revistas.com.br, em 22 de junho de 2016, a Veja é uma das revistas semanais da Editora Abril, e, no Brasil, com tiragem superior a um milhão de exemplares, a de maior circulação no país, com variedade de reportagens que tratam de temas recorrentes na atualidade do Brasil e do mundo. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 435 Saad, sobre a alteração no cenário urbano e familiar, esclarece que A urbanização acentuada pelo êxodo rural, a elevação nas taxas de desemprego e a proliferação dos condomínios verticais reorganizaram a arquitetura das cidades, reduzindo o espaço físico das residências e agrupando mais a família nuclear. Nessa época de incertezas políticas, de aumento da violência urbana, as dificuldades econômicas enfrentadas hoje pelo casal, a necessidade e o desejo feminino de instruir-se, produzir e obter resultados financeiros, aliados à diminuição do tempo de dedicação ao lar, à possibilidade de planejamento familiar, ao receio de não bem cumprir suas funções maternas, de não poder prover adequadamente o sustento da prole, conduzem à redução do número de filhos (2010, p. 21). Tais mudanças trouxeram para este novo cenário a influência de novos paradigmas veiculados pelos meios de comunicação em massa que acabaram por transformar costumes e padrões. A partir desta transição, a mulher foi capaz de conquistar, pelo menos teoricamente, direitos que até então eram unicamente garantidos aos homens, tais como: acesso à educação, respeito igualitário de deveres e direitos perante a sociedade e a Igreja, o Estado e, também, o marido. O que se constata, na prática, porém, é que, ainda hoje, meados de 2018, o status do casamento garante à mulher a aceitação da sociedade como uma mulher de bem e “de respeito”. Isso acontece porque Foi longo o caminho percorrido pela ascensão feminina à condição de pessoa, de pessoa capaz, de pessoa capaz e livre. A dificuldade da mulher para ser considerada e respeitada, pelos familiares, pelo marido e pela sociedade, com fundamento em sua condição humana e não somente pela aptidão biológica para a maternidade, encontrou óbice nos costumes e na cultura. O discurso masculino e religioso sobre a clássica divisão entre mulher de família e a mulher da vida, entre a mulher honesta e a teúda e manteúda propagou o preconceito e impôs e incentivou comportamentos condicionantes da moralidade limitadoras de direito (SAAD, 2010, p.29). Apresentaremos um DSD para o melhor entendimento da construção dos sentidos desta citação. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 436 Recorte 3: Foi longo o caminho percorrido pela ascensão feminina à condição de pessoa, de pessoa capaz, de pessoa capaz e livre. A dificuldade da mulher para ser considerada e respeitada, pelos familiares, pelo marido e pela sociedade, com fundamento em sua condição humana e não somente pela aptidão biológica para a maternidade, encontrou óbice nos costumes e na cultura. 3’ Ser mulher é não ser pessoa. 3’’ Ser mulher é não ser capaz. 3’’’ Ser mulher é não ser livre. 3’’’’ Ser mulher é não ser respeitada. 3’’’’’ A cultura é desrespeitosa com a mulher. 3’’’’’ Os costumes são desrespeitosos com a mulher. DSD2: MULHER _______________________ Ser pessoa Ser capaz Ser livre Ser respeitada |– Cultura e Costumes Pela relação de antonímia que se estabelece no DSD acima, percebemos que mulher e respeito, ao longo do tempo, andam em linhas opostas. Esse distanciamento é determinado pela cultura e pelos costumes que ganham força na medida em que são reforçados pelo uso e pela repetição, ecoando sentidos e sedimentando com naturalidade que a mulher não deve/merece ser respeitada fora da esfera da maternidade, conforme a citação de Saad acima. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 437 Recorte 4: O discurso masculino e religioso sobre a clássica divisão entre mulher de família e a mulher da vida, entre a mulher honesta e a teúda e manteúda propagou o preconceito e impôs e incentivou comportamentos condicionantes da moralidade limitadoras de direito. 4’ Há uma divisão entre mulher de família e mulher da vida. 4’’ A divisão entre mulher de família e mulher da vida é clássica. 4’’’ O discurso masculino e religioso é um divisor entre a mulher de família e a mulher da vida. 4’’’’ O discurso masculino e religioso é um divisor entre mulher honesta e mulher teúda e manteúda. 4’’’’’ Ser mulher de família é ser mulher honesta. 4’’’’’’ Ser mulher da vida é ser mulher desonesta. 4’’’’’’’ Ser mulher da vida é ser teúda e manteúda. 4’’’’’’’’ Ser mulher de família é não ser teúda e manteúda. 4’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso é propagador de preconceito contra a mulher da vida. 4’’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso impõe um comportamento condicionante da moralidade. 4’’’’’’’’’’ O discurso masculino e religioso incentiva um comportamento condicionante da moralidade. 4’’’’’’’’’’ O discurso religioso é masculino. DSD 3: Preconceito├ discurso masculino ┤ Preconceito ├ discurso religioso ┤ Comport. moral ├ discurso masculino ┤ Comport. moral ├ discurso religioso ┤ Mulher da vida _____________ MULHER DE FAMÍLIA ├ Ser desonesta ├Ser teúda e manteúda ├ Ser Honesta ├Não ser teúda e manteúda Entendemos, pelas relações estabelecidas neste DSD, que o discurso religioso, que é masculino, impõe maneiras de ser e de ver, 438 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 diferentemente, mulheres que são classificadas como “de família”, aquelas que seguem os padrões de filhos e casamento impostos pela igreja, e “da vida”, aquelas que fogem a este padrão, ao estereótipo determinado em séculos anteriores pelo discurso religioso dominante da época. Este longo percurso, mencionando pela autora, deixou em nossa sociedade uma memória de sentidos que afeta os sujeitos e se faz ecoar através dos discursos. Essas diferentes redes de sentido, as significações, são possíveis uma vez que então inscritas na memória discursiva (interdiscurso). O interdiscurso pode ser definido como um conjunto de implícitos, tudo aquilo que já foi dito e esquecido, mas que é determinante daquilo que está na superfície do discurso, o intradiscurso. Portanto, conforme já formulado por Pêcheux (2009[1975], p. 167), “o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discurso prévio”. Assim sendo, afirmamos, então, que, independentemente da conquista alcançada pela mulher, o fio condutor do discurso alçará uma memória que nos leve a esta imagem de submissão outrora imposta a ela. 5 Das considerações teóricas Para alcançarmos os objetivos deste estudo, tomamos como ponto de partida o funcionamento do discurso publicitário no mercado cervejeiro. Embora existam órgãos para regulamentá-lo, percebemos que este é um espaço de dizer que nem sempre obedece às regras determinadas e fere, muitas vezes, a integridade de um grupo social, especialmente a das minorias, ponto que permeia as questões de discussão do grupo de pesquisa “Discurso, Sentidos e Sociedade” (DISENSO), neste artigo, representada pelas mulheres. Na busca pela compreensão de como se configuram política e socialmente as minorias do século XXI, temos observado ecos da história do conceito de “ser mulher” que são mantidos, reescritos e (re)significados nos diferentes discursos que circulam na sociedade contemporânea, além de perceber como a diferença e o preconceito materializam, na linguagem, os equívocos, não-ditos e/ou ditos. Assim, chegamos aos efeitos da significação que, na historicidade dos discursos2 analisados, conduzem a 2 Conforme Orlandi (2005, p. 21) “Discurso é efeito de sentido entre locutores”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 439 novos sentidos que se irrompem e instalam o mesmo de modo diferente, possibilitando ressignificações e deslocamentos das e sobre as minorias. Podemos perceber que a influência midiática atinge a todas as faixas etárias e utiliza-se de técnicas que façam com que seu público fique seduzido pelo produto anunciado, levando-o à compra, independentemente do meio de veiculação: televisão, rádio, impressos, internet, etc. Carrozza (2011) esclarece que a beleza é um dos recursos utilizados para a sedução do público consumidor pelo mercado publicitário. Podemos entender que a campanha publicitária precisa de um modelo de beleza que seja reconhecido pela sociedade, ou seja, reconhecido (e aceito) por grande número de pessoas e, assim, será um objeto persuasivo. Para melhor compreender como a linguagem funciona neste processo enunciativo, apresentaremos aqui alguns conceitos chave da Semântica Histórica da Enunciação que se farão necessários para a análise do corpus selecionado. Tomando como ponto de partida o estudo daquilo que fora excluído por Saussure (2002), os estudos da linguagem vêm abordando, ao longo dos anos, diferentes aspectos, resultando em teorias distintas, dentre elas, a Semântica Histórica da Enunciação, inicialmente proposta por Guimarães e em pleno desenvolvimento no Brasil. Embora a presença do elemento subjetivo da linguagem tenha sido incluída nos estudos, a história ainda havia sido mantida fora de observação. Guimarães (2010, p. 66) explica que a Semântica Histórica da Enunciação trata “a questão do sentido como uma questão enunciativa em que a enunciação seja vista historicamente”, não no aspecto temporal, mas pela historicidade, de uma maneira que sempre remete a alguma coisa. Para tanto, o sentido, visto como discursivo, deve ser apreendido a partir do acontecimento enunciativo. Ele define: Um acontecimento enunciativo cruza enunciados de discursos diferentes em um texto. A enunciação, então, se dá como o lugar de posições do sujeito que são os liames do acontecimento com a interdiscursividade. Deste modo aquilo que se significa, os efeitos de sentido, são efeito do interdiscurso no acontecimento. [...] A enunciação em um texto se relaciona com a enunciação de outros textos efetivamente realizados, alterando-os, repetindoos, omitindo-os, interpretando-os. (GUIMARAES, 2010, p. 68). 440 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 As noções de discurso como “efeito de sentido entre locutores.” (ORLANDI, 2005, p. 21) e de interdiscurso como “[...] o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido.” (PÊCHEUX, 2009, p. 166), já trabalhadas pela Análise de Discurso, tanto por Pêcheux quanto por Orlandi, foram adotadas pela semântica histórica. Um discurso, que é exterior à língua e ao sujeito, se produz em relação a outros discursos. Sob a perspectiva semântica, o sentido em um acontecimento enunciativo é resultado da presença do interdiscurso, ou ainda, resultado dos cruzamentos de distintos discursos no acontecimento. A presença de posições de sujeito no acontecimento enunciativo determina a unidade de sentido da enunciação, o que é chamado de dispersão do sujeito e ocorre, afirma Guimarães (2010), como consequência da dispersão de discursos diversos (recortes de interdiscurso), formadora do texto. Observa-se que “pela interdiscursividade e sua necessária intertextualidade, o sentido não é formal, mas tem uma materialidade, tem historicidade” (GUIMARAES, 2010, p. 68). O funcionamento da língua, que está exposta ao interdiscurso, acontece porque ela é afetada pela posição de sujeito que o individuo ocupa no acontecimento, produzindo sentidos. O sentido não é apenas a memória; são efeitos de memória e do presente do acontecimento. Outro ponto importante para a semântica histórica que foi levantado por Guimarães (2010) é o da argumentatividade. O autor busca nos legados de Oswald Ducrot (1973) as bases para a estruturação desse conceito. O semanticista afirma que é pela interdiscursividade que ocorre a produção da argumentatividade em um acontecimento específico, ou seja, ela independe da intenção do sujeito e se dá para esse sujeito através da interdiscursividade. Diferentemente dos estudos retóricos, a semântica, apoiada no viés estabelecido por Anscombre e Ducrot (1976), considera que a argumentação é uma relação de linguagem e significação, que remete a um já-dito do interdiscurso. Na retórica, a argumentação pode ser entendida, além de um recurso pedagógico para acesso a determinado conhecimento, como uma maneira através da qual se adquire conhecimento sobre algo, ou, ainda, uma estratégia de convencimento. Em qualquer uma dessas abordagens, argumentar é apresentar algo como o pressuposto para que alguém aceite algo que não é linguagem, mas uma conclusão. No processo de convencimento, destaca-se o chamado auditório, aqui para nós o possível consumidor, que vem a ser “o conjunto de pessoas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 441 que queremos convencer e persuadir” (ABREU, 2009, p. 41). É função do auditório a recepção ou não da argumentação do orador. É, pois, a quem se orienta todo o discurso e, se cabe ao auditório a aceitação ou não mídia a ser veiculada, é necessário que a peça apresentada seja muito bem formulada para que o objetivo final, a venda do produto, seja alcançado. Ainda neste sentido, Massmann (2009, p. 30, grifo nosso) afirma que “para persuadir e/ou convencer, é preciso dominar a arte da palavra, conhecer seus segredos, seus artifícios e suas técnicas”. Além da importância de dominar a arte da palavra, conforme citado acima, ressalta-se, também, a presença e importância da persuasão imagética encontrada em um audiovisual. Esses recursos estão diretamente relacionados ao tipo de público a ser atingido e ao tipo de imagem à qual a empresa deseja vincular sua marca e seu produto. Já para a Semântica Histórica da Enunciação: O argumento não é algo que indica um fato que seja capaz de levar a uma conclusão. Um argumento é um enunciado que, ao ser dito, por sua significação, leva a uma conclusão (uma outra significação). Mais especificamente, argumentar é dar uma diretividade ao dizer (GUIMARAES, 2010, p. 78). Assim, argumentar objetiva uma finalidade que conduz o texto a um futuro. O enunciado representa a diretividade natural da língua, que deve conter como unidade de significação a argumentatividade. O interdiscurso, que coloca a língua em funcionamento, é o constituinte do sentido da argumentação, o que demonstra que a língua possui uma autonomia relativa e permite dizer que ela é histórica. Então, “o que se diz pela argumentação não significa só o que a relação de orientação argumentativa parece sustentar” (GUIMARAES, 2010, p.79). O autor reforça que é pelo interdiscurso como memória no acontecimento que a argumentação deve ser observada e que a posição de onde um sujeito fala é o argumento decisivo. Observaremos, no momento da análise, que fazer semântica é tratar a questão da significação, que é a língua colocada em funcionamento pelo interdiscurso no acontecimento, como linguística, histórica, e considerar o sujeito que enuncia. Assim, deve-se perceber que, conforme posto acima, a linguagem funciona determinada pelo que está fora dela e não se confunde com o momento em que seus elementos acontecem. O acontecimento constitui o sentido e tem sua autonomia relativa: traz em sua interioridade marcas de exterioridade. 442 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Nossa inquietação neste trabalho ocorre, na medida em que a imagem da mulher que é veiculada nas propagandas cervejeiras é tomada pelo viés sexual, apresentada como fonte do prazer, associada à marca da cerveja, pronta para ser consumida pelos homens, assim como o próprio produto a ser comprado (a cerveja) e disponível à sua satisfação, ao seu consumo. Porém, Mary del Priore (2012, p.7) define que “as mulheres do século XXI são feitas de rupturas e permanências”. As rupturas são os movimentos que garantem a elas a possibilidade do fortalecimento e da conquista. Já as permanências evidenciam as suas fragilidades, que não deixam que elas sejam vistas além do foco masculino; consequências de pertencerem a uma sociedade patriarcal e machista. Como analistas da linguagem, faremos a busca pela compreensão do processo de produção de sentidos dos enunciados e do texto a partir dos pressupostos metodológicos da Semântica Histórica da Enunciação, lugar de observação dos acontecimentos de linguagem. 6 Um lugar de análise O corpus escolhido para a análise deste artigo é um dos vídeos que compõem a campanha publicitária da Cerveja Itaipava, veiculada no Brasil, no ano de 2016. A marca Itaipava, um dos produtos do Grupo Petrópolis, entrou no mercado nacional brasileiro em 1994 e ocupa hoje posição de destaque entre as cervejas mais vendidas no país. Além desses fatores, a Itaipava garante oferecer um ingrediente que nenhuma outra cerveja tem: o verão! Desde 2014, a modelo Aline Riscado, a personagem Verão, assumiu a identidade da marca nas propagandas da cerveja e tem levado o público masculino ao delírio desfilando com pouca roupa, muitas curvas e esbanjando sensualidade ao servir a cerveja nos bares por onde passa. Tal estratégia aumentou o número de vendas da marca, apontam os resultados. Temos observado que, com o fortalecimento dos grupos feministas nos últimos anos, com a facilidade e rapidez de dissipar comentários bons e ruins pelas redes sociais e com o crescente número de mulheres consumidoras de cerveja, pode-se notar uma sutil alteração no modo de como as marcas têm abordado o feminino em suas enunciações, naquilo que é posto no intradiscurso. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 443 Como nossa análise pauta-se no discurso publicitário e os anúncios fazem-se significar tanto pela linguagem verbal quanto pela não verbal, algumas características da imagem (a linguagem não verbal) também serão apontadas durante a análise. No vídeo observado,3 de trinta e um segundos de duração, percebemos que a cena acontece em um bar, aparentemente frequentado por um público de classe média, onde trabalham um garçom e uma garçonete. Já no primeiro segundo de exibição da imagem, podemos notar que o garçom está vestido com camisa branca de mangas compridas, enquanto sua colega de trabalho, a famosa Verão, exibe curvas e sensualidade em um uniforme nada tradicional para uma garçonete. Outro fator que chama a atenção, ainda logo no início do vídeo, é a presença de um casal no bar. Este já é um movimento de ruptura com as peças anteriores, nas quais os bares eram frequentados apenas pelo público masculino e, quando havia a presença de mulheres, eram grupos de mulheres solteiras, também belas e com pouca roupa, garantindo que o ambiente estivesse perfeito aos olhos dos homens bebedores da cerveja Itaipava. As falas entre as personagens se iniciam, e é interessante observar que, através de algumas enunciações e gestos das personagens, podem ser percebidas tentativas de afastamento do memorável de uma sociedade machista e patriarcal, conforme mencionamos no início deste artigo. Porém, também é percebido um eco dos dizeres de outrora. Na mesa em que há apenas homens, eles chamam a garçonete de Verão. Já na mesa em que está o casal, dois pontos chamam a nossa atenção: o primeiro deles é que a namorada toma a iniciativa de pedir a bebida (bem gelada), o que demonstra, em nosso entendimento, uma não submissão ao namorado e, além disso, ela direciona o pedido ao garçom que está no caixa do bar. Porém, a atitude da namorada é imediatamente interrompida pelo namorado, que, amavelmente, sugere que a cerveja, para ser mesmo boa (uma Itaipava 100%), tem que ser pedida para a garçonete Verão e que o garçom deveria ficar lá no caixa onde estava (longe do casal). A namorada, que por suas expressões faciais demonstra entender as reais intenções do namorado, expressa confiança e independência ao chamar a garçonete, que sorri, também demonstrando compreender Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=A4ouBKy0GHE>. Acesso em: 17 jul. 2016. 3 444 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 a “tolice” masculina manifestada através de tal atitude do cliente, que agradece a sua namorada enviando um beijinho. Em relação aos elementos que compõem o cenário, as roupas escolhidas para as duas personagens do gênero feminino também merecem destaque. Há a diferença no figurino escolhido para uma e outra. Isso acontece porque, embora o namoro representado no vídeo seja, pelo intradiscurso, um namoro moderno, sem traços machistas, sabemos que há uma memória de sentidos que dita a regra que mulher que exibe corpo em bar não “serve” para namorar. Esta memória confirma-se através da comparação dos dois figurinos e da necessidade do cliente em ter a garçonete (o corpo dela) perto de sua mesa servindo-o, mas não o de sua namorada à mostra para os outros homens que ali estão. O uso da imagem do feminino como um objeto de sedução e prazer, associado ao consumo da cerveja, é um argumento de convencimento. As roupas curtas e provocantes e as poses insinuantes fazem com que o público masculino tenha a sensação de possuí-la assim que ingerir a bebida e isto funciona como um argumento para o consumo da cerveja. Temos uma cena enunciativa em que o locutor, predicado como Cerveja Itaipava, anuncia seu produto. Nessa enunciação, a marca enuncia cerveja no modo de dizer específico, determinando que cerveja só é 100% cerveja se for com a Verão. Na enunciação “É que cerveja 100% é com a Verão” e na imagem, que podemos parafrasear pelo enunciado “uma mulher chamada Verão e com pouca roupa serve cerveja”, o acontecimento é atravessado pelo publicitário e pelo político. Podemos dizer que “Verão” caracteriza a “cerveja 100%” e instala um acontecimento que interpretamos como “ao comprar Itaipava, você está adquirindo também a/o Verão”. Na cena enunciativa, a enunciação determinante do dizer circunscrevese a todo o público consumidor da marca Itaipava. O locutor dessa enunciação, predicado como Cerveja Itaipava, regula que “todos os consumidores de Itaipava consumirão a Verão” e, nessa enunciação, “Verão” é uma determinação para a cerveja 100%. O político, o embate, funciona no sentido de que quem consome Itaipava consome Verão, aqui personificado por uma mulher que exibe seu corpo; uma mulher – “mulherão” – representando todas as outras mulheres “gostosas” que os homens consumidores da cerveja Itaipava poderão deliciar ao fazer uso da cerveja. Há a regulação por um acontecimento que projeta “os consumidores da Itaipava consomem este corpo”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 445 Nesse acontecimento, o dizer está no tempo fora do tempo produzido pela enunciação. O locutor anuncia seu produto, “Cerveja 100% é com a Verão”, por uma formulação, uma enunciação que enuncia algo cristalizado, que não é novo nas peças publicitárias cervejeiras, evocando a memória no tempo do acontecimento. Nessa cena enunciativa, o político está presente na contradição entre aquilo que está enraizado em uma memória de que quem consome cerveja é o público masculino e aquilo que é mostrado, através do intradiscurso: uma namorada que toma a frente do consumo de cerveja do casal, em um bar, ambiente também pertencente ao público masculino em nossos dizeres, que ecoam características machistas e patriarcais que regem nossos discursos, como já escrevemos acima. A enunciação põe a afirmação pela regulação do locutor Itaipava no seu modo de dizer específico de que Itaipava e Verão são sinônimos. Temos a normatividade e a afirmação de pertencimento do/da Verão à Cerveja Itaipava. O memorável pode trazer ecos de sentido que nos levem a pensar que mulheres que frequentam bar estão ali para se oferecer aos homens. Isso é uma projeção do acontecimento que é expandida pela imagem, na qual “mulher gostosa com pouca roupa serve a cerveja Itaipava”. O acontecimento e o político estão entrelaçados para mostrar que a Verão é um produto a ser consumido pelos clientes da Itaipava. Essa projeção é histórica e ocorre na medida em que acontecimento e língua funcionam afetados pelo memorável. É neste ponto de encontro que a enunciação se faz no dissenso e no acontecimento, que consumir Itaipava é consumir mulher gostosa. Essa normatividade exclui as outras ideias de mulheres bebedoras de cerveja e frequentadoras de bar postas no intradiscurso e, a imagem, no equívoco, projeta a ideia do consumo do corpo feminino. A partir desta descrição da cena, queremos saber, pelo processo de designação, o que a palavra “Verão” designa. Assim, observaremos quais sentidos “Verão” apresenta neste acontecimento enunciativo, considerando o memorável recortado pelo presente do acontecimento e a interpretação que é projetada, ou seja, a futuridade de sentidos que é anunciada pela temporalidade do acontecimento. Para isto, faremos o DSD do recorte (5), abaixo: 446 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Recorte 5: Cliente Masculino 1: Verão? Verão: Oi! Já vou aí. Cliente feminino (namorada): Por favor! (para o garçom, que acena para ela). Você traz uma Itaipava bem gelada para a gente? Cliente Masculino 2 (namorado): Não, pera aí! É que cerveja 100% é com a Verão ali. Não, e sem falar que o rapaz está no caixa, né? Alguém tem que ficar lá. Cliente feminino (namorada): Tá bom. Verão... Cliente Masculino 2 (namorado) Manda um beijo para a namorada como “agradecimento” por ela ter chamado a garçonete. 5’ Cerveja 100% é Itaipava 5” Cerveja 100% é servida pela Verão 5”’ Verão é a garçonete 5”” Verão é mulher 5””’ Verão é gostosa 5’’’’’’Verão é mulher com pouca roupa 5’’’’’’’ Mulher para namorar não exibe seu corpo 5’’’’’’’’ Verão não é para namorar Inicialmente, podemos considerar que a palavra Garçonete determina Verão, que se articula por elipse. No texto da enunciação, “Verão” é reescrito por expansão por “cerveja 100%” que especifica o sentido de “Verão”. “Verão” está articulado ao enunciado cerveja 100% por predicação, caracterizando-o. Podemos parafrasear “cerveja 100%” por “Itaipava”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 DSD 4: Itaipava ┤ _ Cerveja 100% ┤ Mulher fácil _ VERÃO Mulher para namorar 447 ├ garçonete ├ pouca roupa ├ mulher gostosa ├ não mostrar o corpo A imagem que acompanha a cena enunciativa também lhe determina sentidos, determinando assim o que “Verão” significa. Como vimos acima, a imagem foi parafraseada por “uma mulher chamada Verão e com pouca roupa serve cerveja”. No momento em que o namorado manda o beijo como agradecimento pela atitude madura de sua namorada em concordar ser atendida pela bela Verão, a cena é interrompida pelo enunciador, e a câmera fecha a imagem na personagem central da propaganda, a cerveja Itaipava. A enunciação “Aqui é Verão 100% do ano” pode nos levar à compreensão de várias significações, ainda depreendidas do que foi estabelecido pelo DSD (4), esboçado acima. Ora, se Itaipava tem uma relação de sinonímia com cerveja 100% e esta cerveja determina Verão, a garçonete “gostosa” com pouca roupa que serve Itaipava, podemos entender que o enunciado, na verdade, faz a publicidade não da cerveja que será ingerida pelo possível consumidor, mas da mulher a que ele terá acesso, o ano todo, se comprar esta cerveja. Vejamos como isto pode ser confirmado em um diálogo que acontece no final da propaganda, conforme o recorte (6). Recorte 6: Cliente Masculino 2 (namorado): Só tá faltando um tira gosto, né amor? Verão! (e faz um sinal com o dedo chamando a garçonete até a mesa). Cliente feminino (namorada): (Suspira, sem acreditar no que estava vendo/ouvindo). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 448 Para este recorte, vamos propor as seguintes paráfrases: 6’ Tira gosto é comida 6’’ Em um bar come-se tira gosto 6’’’ Verão serve tira gosto 6’’’’ Ao pedir tira gosto, terei a Verão perto de mim 6’’’’ A Verão é um tira gosto 6’’’’’ A namorada sabe que quem serve tira gosto é a Verão 6’’’’’’ A namorada desaprova o pedido do namorado DSD 5: comida┤ bar┤ ┤ TIRA GOSTO ├ Verão Observando-se o DSD acima, confirmamos o que explicitamos na descrição do DSD de número 4, em relação à utilização da imagem da mulher como argumento de vendas de um produto, aqui como se ela fosse uma comida, ou melhor, um tira gosto que acompanharia os deleites do bebedor da cerveja Itaipava. Sabendo-se que tira gosto é uma comida que está diretamente relacionada à personagem Verão, entendemos que, neste vídeo, Verão é, também, um tira gosto. Na linguagem informal, comer alguém é o mesmo que manter relações sexuais com esta pessoa. Porém, o jargão é utilizado em situações que expressem o caráter ativo do homem nestas relações, destacando, mais uma vez, a falta de respeito com que a mulher é tratada nestas propagandas como consequência da memória discursiva enraizada em uma sociedade com pilares essencialmente machistas. Ao suspirar profundamente, a namorada demonstra a consciência de que a verdadeira intenção de seu namorado é ter a Verão mais próxima a ele e não o petisco propriamente dito, uma vez que já estava claro, ao longo do vídeo, que toda vez que um produto é pedido a personagem Verão vem até a mesa, dando ao cliente, neste caso o namorado, a sensação de ter o pertencimento de seu corpo. O que nos chama a atenção nesta análise é a percepção de que não há, ainda, a ruptura com o padrão midiático coercivo de uma memória machista e patriarcal. Ao expor o corpo feminino e igualá-lo a um produto, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 449 a cerveja, a empresa anunciante, aqui representada pela cerveja Itaipava, desconsidera o respeito que deveria dispensar àquela parcela de mulheres que escolheram ser apreciadoras de seu produto. O corpus constituinte deste artigo apresenta características muito peculiares, pois, além de trazer as marcas de um enunciado linguístico, apresenta também enunciados cuja materialidade não é linguística; eles produzem sentido pela maneira como lidam com a exposição da imagem da mulher em relação à divulgação da marca da cerveja. Há um apagamento da identidade da mulher como sujeito que passa a ser vista (tanto pelo locutor, quanto pelo público consumidor) como um produto de consumo e objeto de divulgação da mídia. As enunciações significam uma vez que constituem a cena enunciativa. Através da exposição da imagem do feminino nos anúncios cervejeiros, somos rememorados à ideia da dominação masculina e à diferença entre as identidades de gênero. Assim, as práticas discursivas que predominam nas propagandas evidenciam a dominação masculina e fortalecem que a imagem da mulher esteja atrelada à submissão nos diversos setores da sociedade, ainda no século XXI, lugar de permanências e rupturas, como já posto anteriormente neste artigo. 7 Considerações Finais O presente estudo torna-se relevante ao evidenciar que a imagem da mulher que é veiculada pela empresa, na peça observada, não é a da mulher que bebe a cerveja, além de desconsiderar quem é a mulher brasileira nos diversos setores da sociedade, especialmente aquela que é consumidora de cerveja, ressaltando a memória da mulher objeto, a mulher para consumo. Compreendemos, através das análises abordadas, que embora tenha havido uma tentativa de deslizamento no modo de significar o feminino, as significações trazidas pela memória discursiva de séculos anteriores ainda são muito presentes neste discurso da atualidade. Este discurso que circula, predominantemente, é contrário às mudanças, à heterogeneidade, à ressignificação de sentidos. Pode-se observar que, embora se tenha rompido, no intradiscurso, com padrões de comportamentos e estereótipos impostos às mulheres no passado, há, ainda, presentes no acontecimento de dizer, as marcas fortes de uma sociedade patriarcal e machista. 450 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 Tem-se, pelas enunciações e pelos implícitos, que o corpo feminino é um recurso utilizado pela mídia como uma manifestação discursiva atrelada à sedução do público masculino, que pela materialidade do vídeo em que é veiculada, garante o sucesso das vendas do produto. Amparados pelos dizeres de Guimarães (2010, p.47), supracitados, em que “o passado faz com o presente e o futuro sejam significados”, podemos compreender como a repetição da ideia da utilização da exposição da imagem da mulher como um produto de consumo (igualada à cerveja, ou ao petisco) provoca a compreensão das enunciações das propagandas de cerveja. A exposição da imagem do corpo feminino na propaganda observada nos mostra um distanciamento entre o que é veiculado pela mídia e o papel da mulher na sociedade do século XXI, aquela quem tem optado, entre outras coisas, por ser consumidora assídua do mercado cervejeiro. Declaração de contribuição de cada autor: Esse é um artigo escrito em coautoria pelos dois autores no início citados (Tatiana Barbosa de Sousa e Guilherme Beraldo de Andrade), durante nosso processo de doutoramento e aprofundamento de conhecimento no âmbito das Ciências da Linguagem, especialmente em Semântica Histórica da Enunciação. Referências ABREU, Antônio S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 13. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. ANSCOMBRE, Jean Claude; DUCROT, Oswald. L’Argumentation dans La Langue. Langages, [s.l.], v. 42, p. 5-27, 1976. CARROZZA, Newton Guilherme Vale. Consumo, publicidade e língua. Campinas: Editora RG, 2011. CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA (1500). Disponível em: <carreiradaindia.net/seccao/carta-de-pero-vaz-de-caminha/>. Acesso em: 10 jul. 2016. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 451 DIAS, Cristiane. Linguagem e tecnologia: uma relação de sentidos. In: PETRI, Verli; DIAS, Cristiane (Org.). Análise de Discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Ed da UFSM, 2013. p. 49-62. DICIONÁRIO InFORMAL. Estereótipo. Disponível em: <https://www. dicionarioinformal.com.br/estere%C3%B3tipo/>. Acesso em: 11 ago. 2016. DUCROT, Oswald. As escalas argumentativas. In: DUCROT, Oswald. Provar e dizer. São Paulo: Global, 1973. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. 4. ed. Campinas: Editora RG, 2010. LEVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996. MASSMANN, D. R. H. Línguas-culturas e retórica: análise comparada de produções dissertativo-argumentativas em língua portuguesa e língua francesa na esfera escolar. 2009.498 f. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. MORENO, Rachel. A beleza impossível: mulher, mídia e consumo. São Paulo: Editora Ágora, 2008. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2005. ORLANDI, Eni. O que é linguística. São Paulo: Brasiliense, 2013. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. PRIORE, Mary Del. História e conversas de mulheres. São Paulo: Cultura, 2012. SAAD, Martha Solange Scherer. A evolução Jurídica da mulher da Família. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANDREUCCI, Ana Claudia Pempeu Torezan (Org.). Mulher, sociedade e direitos humanos. São Paulo: Rideel, 2010. 452 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 423-452, 2019 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidora Blikstein. 24. ed. São Paulo: Cultrix, 2002. SFEZ, Lucien. Técnicas e ideologia: uma questão de poder. Trad. Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 Cronotopia: um fenômeno de largo espectro Chronotopy: A Broad-Spectrum Phenomenon Maria Marta Furlanetto Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, Santa Catarina / Brasil mmartafurlanetto@gmail.com Resumo: Este estudo tem o objetivo de explorar o fenômeno da cronotopia a partir de seu inacabamento teórico, conforme a experiência realizada por Bakhtin com o gênero romance, abrindo vias para estudiosos da área. Estabelece vínculos com campos de estudo das ciências sociais e da linguagem e propõe um olhar que parte da concepção de metáfora como figuração, abordando autores que perspectivaram o tempo e o espaço em contextos histórico-sociais. A título de experiência de abordagem, mostra uma possibilidade de análise cronotópica (estudo de caso), estabelecendo um quadro em que faz convergir o olhar sociológico, histórico, discursivo no panorama cultural, modo de funcionamento dos cronótopos para estudo figurativo da vida social. Palavras-chave: figuração; metáfora; cultura. Abstract: This study aims to explore the phenomenon of chronotopy from its theoretical unfinishing, according to Bakhtin’s experience with the novel, opening ways for scholars of this area. It establish links with fields of study of social sciences and language and proposes a view that starts from the conception of metaphor as figuration, approaching authors who have looked at time and space in historical and social contexts. As an experience of approach, it shows a possibility of chronotopic analysis (case study), establishing a framework in which converges the sociological, historical, discursive look in the cultural panorama, mode of functioning of the chronotopes for the figurative study of social life. Keywords: figuration; metaphor; culture. Recebido em 1º de junho de 2018 Aceito em 29 de agosto de 2018 eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.1.453-482 454 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 1 Introdução Inicio a reflexão sobre cronotopia – conceito retomado com muita frequência pelos estudiosos de Bakhtin – apresentando um recorte de discussão sobre o tempo feita entre dois personagens na obra 1Q84, de Haruki Murakami (2013, Livro 3): a fala de Tengo em interação com Aomame: Os homens concebem o tempo como uma linha reta. É como marcar uma haste de madeira reta e comprida e definir que o que está do lado de cá é o passado e do de lá é o futuro. E que aqui e agora é o presente. (MURAKAMI, 2013, p. 50) Na prática, porém, o tempo não é linear. No amplo sentido da palavra, o tempo não possui forma. (p. 51) Talvez o tempo não seja linear como supomos ser. Pode ser que ele tenha o formato de uma rosca trançada (...) (p. 51) A concepção de cronótopo é bem mais complexa que a visão de tempo crônico; neste ensaio, o propósito é tentar melhor compreender Bakhtin (2014a) em sua elaboração e possibilidades do conceito na obra Questões de literatura e de estética, também para além da literatura. O cronótopo seria, hipoteticamente, um mediano entre o tempo crônico e o linguístico, produzindo figurações (em um plano metafórico) por suas marcas históricas (tempo) e sociais (lugares/espaços/sujeitos). A discussão entre os dois personagens de Murakami (Tengo e Aomame), em todo caso, se justifica por eles estarem, na narrativa, envolvidos em uma situação extraordinária que implica mundos paralelos (1984 e 1Q84). Não é, porém, a análise do romance o tema deste trabalho. Dada tal configuração, tomo como noções centrais as de figuração (conforme Elias (2001), excedência (ou exotopia), eventicidade – seguindo inspiração proveniente de uma releitura de Morson (2015); e faço uma experiência de análise cronotópica de obra literária do século XVII (Astrée), a partir do exame realizado por Elias (2001) em perspectiva histórico-sociológica. Figurações concentrariam uma forma que resume, conceitualmente, uma representação, um foco em que tempo/espaço/ser humano se amalgamam. Na definição possível de cronótopo no sentido artístico-literário, Bakhtin diz que “ocorre a fusão dos indícios espaciais Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 455 e temporais num todo compreensivo e concreto.” (BAKHTIN, 2014a, p. 211).1 É, portanto, no sentido de unidade espaçotemporal que Bakhtin fala de cronótopo, que funciona como centro irradiador (históricocultural) numa obra. Tais unidades compõem valores cronotópicos, ou, se quisermos, manifestação de valores (axiologia) por figurações, já que representam “medida” e forma das experiências humanas, como que vistas do alto e numa escala temporal ampla. A validade dessa perspectiva é que, sendo diferentes os pontos de vista, os valores subjetivos em uma mesma sociedade ou grupo diferem, como diferem estes de outros sujeitos de uma cultura alheia, mesmo que numa porção geográfica considerada um país ou uma nação, sobretudo se a época (cronologicamente) é outra. As noções complementares surgirão, mais ou menos explicitamente, no curso da discussão. Para desenvolver o trabalho, a) contextualizo o tema, mostrando as influências de autores e teorias recebidas por Bakhtin para elaborar o conceito de cronótopo e explorá-lo na literatura romanesca; b) apresento sinteticamente o conceito de espaço-tempo como tratado na teoria da Relatividade Geral, com base em trabalho de Stephen Hawking; c) exploro a relação entre a ordem das coisas do mundo e a ordem dos signos; d) delineio o estudo da temporalidade tal como perspectivada por Benveniste, em sua relação com a subjetividade; e) mostro a relação, perspectivada por Bakhtin, entre exotopia (distanciamento) e cronotopia, propondo uma análise cronotópica a partir de estudo sociológico efetivado por Norbert Elias na obra romanesca Astrée (século XVII), com apoio da noção de figuração. Na conclusão, sintetizo o que a reflexão teórica e a análise realizada mostram como possibilidades para o tratamento cronotópico de material discursivo. 2 Contextualização Clark e Holquist (1998) explicam que Bakhtin manifestou a preocupação com o espaço e o tempo ao perceber a imediaticidade com que essas categorias são sentidas na experiência real. Essa experiência foi trasladada para uma “poética histórica do romance” com a introdução do Na edição americana: “Forms of time and of the chronotope in the novel” (BAKHTIN, 1981, p. 84). 1 456 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 termo cronótopo,2 “uma unidade para estudar textos de conformidade com a razão e a natureza das categorias temporais e espaciais representadas.” (p. 296). Trata-se de um conceito construído exatamente para engajar a realidade, com base na ideia de que as pessoas organizam seu mundo em certo número de figurações tal como o experimentam – imagens construídas em função, essencialmente, do tempo e do espaço. A ideia de Bakhtin teria sido inspirada, conforme Clark e Holquist (1998), pela sugestão de Hermann Minkowski (Cf. 2012), matemático alemão (1864-1909), sobre uma quarta dimensão – tempo como a quarta dimensão do espaço, trabalho desenvolvido no início do século XX –, e então ele estabeleceu a indissociabilidade dessas categorias e sua dimensão histórica. Como essa modelagem seria paradigmática justamente na literatura de tempos passados, elas constituiriam lugares ideais para a análise dessas figurações cronotópicas: “os autores são inelutavelmente forçados a empregar as categorias organizadoras dos mundos que eles próprios habitam.” (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 296). Por exemplo: a conhecida expressão Tempo é dinheiro expõe uma maneira específica de valorar o mundo contemporâneo capitalista; Viver é lutar corresponde a uma crença ou modo de encarar o mundo em muitos contextos e figurações grupais. Como essa metáfora, as formas específicas de organização do mundo pela linguagem mostram direções de compreensão das culturas, representando caminhos sintéticos do modo de percepção humano e das ações correspondentes. Metáforas sintetizam uma ligação entre campos e domínios que parecem, à primeira vista, mais ou menos distantes uns dos outros – daí a ideia de transposição (meta-). Como dizia Lacan (1994, p. 487, grifo no original), “Uma palavra por outra, tal é a fórmula da metáfora”.3 Não quero, contudo, ao fazer apelo ao conceito de metáfora, meramente admitir a equivalência de cronótopo e metáfora; quero, Embora encontremos as duas formas – cronótopo e cronotopo – em textos de língua portuguesa, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) não registra nenhuma delas. Opto pela forma acentuada, registrando a alternativa que possa surgir em citações. 3 Nessa óptica, o que seria a fagulha criadora brotaria “entre dois significantes dos quais um substituiu outro, tomando seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto continua presente por sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia.” (LACAN, 1994, p. 487). Desse jogo resulta que a metáfora se localiza no ponto em que o sentido surge exatamente do não sentido. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 457 antes, pensar a respeito de seus pontos de contato. Em sentido amplo, a cronotopia se aproxima da metáfora, justamente pela figuração, modos de contato em sua união de elementos categorizados como distintos pela percepção humana, transplantados na linguagem: espaço, tempo, humanidade; mas seu espectro, seja na literatura, seja em outras esferas,4 tem uma complexidade própria. Assim, tenho percepção da figuração cronotópica como uma imagem alargada das metáforas mais localizadas. Seria como ver um panorama histórico-social (um universo) ao lado de uma situação localizada. Uma imagem astronômica poderia ser: olhar a Terra em si mesma e, alternativamente, olhá-la pela óptica do sistema solar ou do Universo, buscando compreendê-la como parte de um enorme e complexo conjunto espaçotemporal. Sigo ainda, abaixo, a explanação de Clark e Holquist, inserindo outros autores e comentários pessoais. Bakhtin (2014a, p. 212) explicita o que deve a Kant por ter mostrado a importância do espaço e do tempo como categorias primárias da percepção – embora não como “transcendentais”, como o filósofo as apresenta, mas como realidade imediata; a inspiração conduzia-o justamente para a compreensão cotidiana da vida. A outra influência marcante é do fisiologista Ukhtômski, pela importância atribuída a essas categorias na experiência humana, ou seja, no modo de o corpo representar o mundo. Ou seja, psicológica e neurologicamente há um padrão que “enforma nossa percepção do universo” (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 297). É assim que se formam cronótopos particulares de mundos particularmente percebidos. Desse modo, o cronótopo funciona como ponte entre o mundo real (o real impossível, inatingível) e o mundo representado – melhor, simbolizado. Essa é a forma de o tempo e o espaço tomarem corpo, e de serem, finalmente, figurados na vida pela atividade humana. Sabe-se que Bakhtin, ao tratar do cronótopo, fixou-se no elemento artístico-literário, abstendo-se de relacioná-lo com “outras esferas da cultura” (BAKHTIN, 2014a, p. 211). Isso permite inferir que em qualquer outra manifestação o fenômeno ocorre, até porque foi essa observação, na vida cotidiana, que o levou ao estudo em uma esfera de interesse imediato. É também o comentário de Pechey (2007, p. 84, tradução minha) a respeito: “Ele parece, contudo, implicar que todo discurso é cronotópico na medida em que, de alguma forma, deve tematizar suas próprias inescapáveis condições [...]”. 4 458 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 Assim, remontando à época helenística, Bakhtin procura mostrar como ocorreu o advento do romance, detectando cronótopos particulares nos romances gregos; por exemplo, o tempo de “aventuras de provações” (de caráter abstrato), porém com um desenlace feliz. Pode-se associar essa abstração às histórias contadas no interior da cultura popular. “A realização da metáfora do caminho da vida, com suas diversas variantes, desempenha um papel importante em todos os tipos de folclore.” (BAKHTIN, 2014a, p. 242). Outro cronótopo detectado por Bakhtin em histórias da época helenística é o do “tempo de aventura da vida cotidiana”. “Em termos de tempo, a aventura particular torna-se agora algum gênero de metamorfose. Em termos de espaço, alguma forma de espaço social substitui a paisagem física.” (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 300). O tempo, neste caso, diz respeito a mudanças que marcam uma crise no curso da vida individual, e então Bakhtin vê o espaço que se desenrola como uma estrada – uma metáfora. O “tempo biográfico” é outro cronótopo, embora não existissem na época clássica romances biográficos propriamente ditos. Seriam dois os tipos básicos: o “tempo platônico” – curso da vida de quem busca o conhecimento verdadeiro, e parte de fontes folclóricas – formando-se um espaço simbólico que inclui dificuldades de progredir na caminhada; e o “tempo de família”, incluindo histórias de clãs e famílias. O espaço típico desse cronótopo é a ágora (praça pública em Atenas) (cf. BAKTHIN, 2014a, p. 250-251). Porém, além desse investimento específico no mundo literário, Bakhtin tem uma perspectiva ampla do cronótopo, visto ser ele determinante do que se entende hoje como os recortes da textualidade que são os gêneros. Os gêneros são “ícones que fixam a Weltanschauung das eras de onde brotam. (...) Um gênero, por conseguinte, encarna uma ideia historicamente específica do que significa ser humano.” (CLARK; HOLQUIST, 1998, p. 293). Assim, pode-se afirmar que o tratamento cronotópico é válido para os gêneros de ordem diferente do literário, embora não se encontre comumente essa perspectiva de análise, pelo menos com o uso específico do conceito. Os gêneros têm, pois, uma existência cultural, como destaca Machado (2005, p. 159), exprimindo o grande tempo das culturas e civilizações – o que prescinde de um nascimento original e da morte definitiva, caracterizando, pois, ao mesmo tempo o inacabamento e a eventicidade. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 459 No final de seu estudo (introdutório, conforme explicita) sobre os cronótopos, Bakhtin (2014c, p. 355) aponta, como significado fundamental dessa categoria, o temático. “Eles são os organizadores dos principais acontecimentos temáticos do romance. É no cronotopo que os nós do enredo são feitos e desfeitos. (...) Ao mesmo tempo salta aos olhos o significado figurativo dos cronotopos.” Eles funcionam então, pode-se acrescentar, como uma malha abstrata de texto, uma grelha [grille] de leitura e interpretação (ver algo como, quer dizer, formar uma tela para ver através dela – metáfora, enfim) – portanto, de nível meta. Como expressa Bakhtin, uma “imagem-demonstração dos acontecimentos.” (p. 355). Ele assume que a linguagem, como tesouro de imagens, é essencialmente cronotópica (p. 356). Outro aspecto do tema é que os cronótopos mais fundamentais podem incluir em si, como em camadas, cronótopos pequenos, com seu próprio tema, e que podem também se cruzar, se entrelaçar, permutar, coexistir. Um cronótopo interessante é o “da soleira”, já metafórico, definido por Bakhtin como da crise e da mudança de vida (BAKHTIN, 2014c, p. 354). Outros são o “da escada”, “do corredor”, “da rua”, “da praça” – onde ocorrem movimentos fundamentais dos personagens (crises, quedas, renascimentos).5 Na obra Symboles et allégories, de Matilde Battistini (2004), que é apresentada como um guia das artes, encontram-se fotos de trabalhos artísticos da Idade Média, do Renascimento e do mundo moderno, organizando-se em quatro seções temáticas, que privilegiam exatamente as visões cronotópicas: símbolos do tempo com suas personificações; símbolos do homem com os arquétipos do imaginário cultural; símbolos do espaço com seus lugares mágicos; e alegorias, com os temas iconográficos da história da arte (vícios, virtudes, amor, artes, ciências). Cada um desses grandes temas, por sua vez, se desdobra em subtemas. A escada, por exemplo, referida por Bakhtin (2014c, p. 354), e que remete Com relação a esse acréscimo bem mais recente (apêndice ao trabalho anterior) sobre a cronotopia, Holquist (2015, p. 35) esclarece que, ao fazê-lo, Bakhtin estendeu seu interesse na aplicação literária para uma categoria epistemológica mais ampla – o que produziu um efeito contrário ao que se esperaria: em vez de clarificar o conceito, parece tê-lo tornado mais opaco, apresentando asserções contraditórias. Apesar disso, Holquist julga possível que se chegue, dialogicamente, a uma concepção unificada das duas perspectivas. 5 460 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 a subir, funciona imaginariamente como elevação espiritual, intelectual e moral; pode representar uma iniciação e ascensão em níveis, como podemos ver em algumas propagandas modernas. Na obra de Battistini aparecem ainda, por exemplo: o além, a viagem, a montanha, o jardim, a floresta, o labirinto. Quanto ao tempo, aparecem desdobramentos como as estações, a noite, a vida, a morte, a aurora. A cronotopia vincula-se à exotopia (excedência/distância/ distanciamento), na perspectiva de Bakhtin. Amorim (2006) nota que, relativamente à exotopia, o tempo (como quarta dimensão do espaço) é, para Bakhtin, o princípio predominante do cronótopo; é sua própria concepção que ele procura no decurso do tempo de formação do romance, o que leva, por extensão, à concepção de humanidade, de identidade e de mudanças identitárias. Isso presume encarar o mundo da cultura na grande temporalidade, que projeta e historiciza as atividades humanas, assim coletivizadas. E ao prender-se aos gêneros, uma análise que identifica um cronótopo acaba levando a uma perspectiva de identidade humana. Amorim também destaca, em seu texto, que exotopia e cronótopo são conceitos que se marcam menos ou mais nos textos das diversas linguagens: poesia, romance, filme, pintura... com graus de profundidade – como mostra a autora ao analisar parte da filmografia do iraniano Kiarostami. O importante nessa questão, para Bakhtin (2003, p. 225), era “a capacidade de ler os indícios do curso do tempo em tudo, começando pela natureza e terminando pelas regras e ideias humanas (até conceitos abstratos).”. Quando Bakhtin estuda os romances que ele chama de educação, destaca exatamente aqueles em que a formação humana não é tratada como um assunto particular, pelo contrário: O homem se forma concomitantemente com o mundo, reflete em si mesmo a formação histórica do mundo. O homem já não se situa no interior de uma época mas na fronteira de duas épocas, no ponto de transição de uma época a outra. Essa transição se efetua nele e através dele. Ele é obrigado a tornar-se um novo tipo de homem, ainda inédito. (BAKHTIN, 2003, p. 222) Por esse motivo, Bakhtin vê nisso algo que considera especial: a força que organiza o futuro, que dá um peso histórico aos acontecimentos. E por isso também atribuiu um lugar especial a Rabelais, ao lado de Goethe, tendo este autor atingido, para ele, a quintessência “da visão do Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 461 tempo histórico na literatura universal” (2003, p. 226), com a realização de cronótopos em sua forma mais límpida. Também vemos esse fenômeno contraditório e heterogêneo na observação da análise históricosociológica realizada por Norbert Elias ao focalizar as figurações de grupos e comunidades durante o Ancien Régime na França – o que aponto, adiante, retomando a análise sociológica de um romance de época efetuada por ele. Galé (2014) procura focalizar a construção e a descrição do observador na elaboração do texto autobiográfico de Goethe Viagem à Itália, afirmando que aí é possível observar a formação de um homem renascido. “Goethe parece querer mostrar seu trajeto formativo na esteira de uma alternativa ao mergulho no eu, característica central da era moderna” (2014, p. 51), em oposição, portanto, ao romantismo. Assim, ele procura relacionar-se com a natureza de modo tenso, como observador interessado, mas que não pode fiar-se meramente em seu interior, em sua subjetividade. Ele passará a dar importância ao olhar, como observou Bakhtin (2003) em O tempo e o espaço nas obras de Goethe. E com essa atitude o olhar “se aguça e se educa simultaneamente, para em seguida voltar para o fenômeno que novamente afeta o olhar que se aguça, e assim por diante.” (GALÉ, 2014, p. 53). Desse modo, Goethe quer conhecer-se melhor atentando para o exterior, para as coisas que vê em sua relação com o que teriam sido no grande tempo (daí a relação espaçotemporal destacada por Bakhtin), e isso inclui as grandes construções do passado e as artes como uma segunda natureza, e não como coisas arbitrárias – como é possível perceber na obra de Battistini (2004), retratando símbolos e alegorias de mundos em transformação. Como a definição de cronótopo, em Bakhtin, não está claramente exposta, e não há protocolo, em seus trabalhos, para a identificação e análise dos cronótopos, várias direções ficaram abertas aos estudiosos para a pesquisa do tema e tratamento de uma heurística. Bemong e Borghart (2015, p. 20) apontam, no trabalho de Scholz sobre cronótopos e suas conexões com a filosofia de Kant, a seguinte orientação: Scholz observa corretamente que “[os] significados se revelam gradualmente à medida que o argumento progride e os exemplos se acumulam. Termos bakhtinianos, em outras palavras, são frequentemente encontrados ‘em uso’, sem declaração explícita das regras que regem tal uso”. 462 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 É possível tirar duas lições dessa observação: 1. Bakhtin estava em plena experiência de demonstração de um conceito em seu inacabamento teórico, abrindo vias para os estudiosos, ao mesmo tempo estimulando sua criatividade em observação, análise e refinamento teórico; 2. em outra direção, pondo sob a lente o próprio material de análise (e seus gêneros específicos), somos os interessados em percorrer o labirinto das obras para, sabedores de como dirigir o olhar – cultural, histórico, sociológico –, detectar no que se oferece para análise as possibilidades, sugerindo os níveis (do micro ao macro e vice-versa) e as designações. Os cronótopos, certamente, não são previstos pelos autores das obras – eles aparecem sob análise. Por isso mesmo hão de surgir, de modo interessante, muitos nomes e muitos níveis de abstração.6 Trata-se, aqui, de explorar um pouco essas direções. 3 O espaço-tempo na teoria da Relatividade Geral – nota intermédia Hawking explica que Isaac Newton foi quem primeiro forneceu um modelo matemático de tempo e espaço em sua obra Principia Mathematica, de 1687. No modelo de Newton, tempo e espaço constituíam um fundo no qual se desenrolavam os eventos, porém sem serem afetados por eles. O tempo era separado do espaço e considerado uma única linha, como um trilho de trem, infinito em ambas as direções (...). O tempo era considerado infinito, no sentido de que sempre tinha existido e de que existiria para sempre. (HAWKING, 2009, p. 32)7 Entretanto, a crença comum das pessoas, no período (mas não só), era de que a criação do universo físico se teria efetuado basicamente como se mostra hoje, e há uns poucos milhares de anos – o que trouxe Um exemplo de trabalho que adota essa postura é o de Falconer (2015). Isso remete à nossa experiência de senso comum conforme a fala do personagem de Murakami (2013) na abertura deste texto, e que também é visualizada no estudo da temporalidade em Benveniste, em seção mais adiante. 6 7 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 463 à baila o questionamento: se o universo foi criado, por que teria havido “uma espera infinita antes da criação?” (HAWKING, 2009, p. 32). Essa foi uma preocupação filosófica de Kant. O outro lado da questão é: se o universo existisse desde sempre, “por que tudo que iria acontecer já não tinha acontecido, significando que a história tinha acabado?” (p. 32). E ainda: por que não havia equilíbrio térmico no universo? Essa contradição lógica, vis-à-vis do modelo de Newton, desaparece no contexto da relatividade geral, formulada em 1915 por Einstein (1879-1955), pela qual tempo e espaço estão constitutivamente interligados. “Não se pode curvar o espaço sem também envolver o tempo. Assim, o tempo tem uma forma.” (HAWKING, 2009, p. 35). O tempo fica combinado às três dimensões do espaço para formar o espaço-tempo. É por isso que Bakhtin apreciou a sugestão de Minkowski, que contribuiu com fundamentos matemáticos para a teoria especial da relatividade, de considerar o tempo como uma quarta dimensão do espaço, embora, em seu estudo da evolução do romance, tenha inicialmente se voltado mais para Kant. “Bakhtin estava obcecado pela interconexão de espaço e tempo.”, destacam Clark e Holquist (1998, p. 295). A teoria da relatividade geral inclui o efeito da gravidade, “afirmando que a distribuição de matéria e energia deforma e distorce o espaço-tempo, de modo que ele não seja plano.” (HAWKING, 2009, p. 35). É claro que Bakhtin não adotou o sentido específico do fenômeno na teoria da relatividade, apenas fez uma transmutação para a crítica literária, entendendo o processo como “quase metáfora” (BAKHTIN, 2014a, p. 211). O cronótopo, teoricamente encarado, poderia ser uma metáfora conceitual na teoria de Bakhtin, remetendo a uma figuração em formas semióticas diversas (umas mais visíveis, outras menos), dando suporte e visibilidade aos movimentos culturais e sócio-históricos. Segundo seu efeito de realidade, teríamos uma metáfora, não de caráter retórico, mas como tela cuja arquitetura pode ser compreendida em caráter de metadiscurso. Seria possível mostrar, assim, de modo mais ou menos consciente, como se manifestam as épocas, pelo aparecimento, desenvolvimento e transformação de seus gêneros, e a própria forma de desenvolvimento da história social. A tipificação, em Bakhtin (2014a), foi operada em seu estudo do romance, mas é extensível a qualquer manifestação cultural – servindo, aliás, em conjunção com as manifestações ideológicas, para operar e construir certa escala de visibilidade desse fenômeno nos vários campos da vida social. Assim, a 464 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 visibilidade figurativa da literatura – mais especialmente da narrativa do romance – deve esmaecer, pelo menos em hipótese, nos gêneros menos afinados ao estético, sem por isso inexistir, visto que refletem técnica e axiologicamente a vida em sociedade. 4 A ordem das coisas e a ordem dos signos Note-se que, em todo o desenvolvimento das formas cronotópicas encontradas por Bakhtin ao processar a genealogia do romance, há algo fundamental que se liga ao nascimento desse estudo, como explicam Clark e Holquist (1998, p. 305): “Esta outra história é a das atitudes cambiantes que as pessoas demonstraram em relação a sua própria linguagem. Por vezes, elas mostraram não ter consciência do corte havido entre a ordem das coisas e a ordem dos signos que as nomeiam.”. Isso corresponde à ilusão de que as palavras estariam ligadas essencialmente àquilo que nomeiam; a língua constituiria o “real”, além de que também seria homogênea em si mesma, como se deseja ver uma língua nacional (assim politicamente legitimada). Qualquer língua nacional, entretanto, tem estratos discursivos que a levam à heteroglossia. Isso se percebe na análise feita por Elias (2001) da história da sociedade de corte, ao mostrar o desenvolvimento do processo civilizatório – da autoconsciência. Apresento essa perspectiva na seção 6. Kant tem destaque no empreendimento de Bakhtin com respeito ao conceito de cronótopo, alicerçado, como visto acima, na questão filosófica da relação mente/mundo; ele examina as posições empirista (relativa ao “mundo dado”) e racionalista (relativa ao “mundo apreendido ou postulado”) e busca uma síntese (cf. SOBRAL, 2005, p. 141). A grande figura do racionalismo é Descartes (século XVII), teórico das possibilidades do conhecimento humano: se o conhecimento direto da realidade é impossível, o sujeito, como ser autônomo e consciente, pode chegar ao conhecimento no exercício do pensamento (racional), tendo como modelo a matemática. Do lado empirista – defendendo basicamente que o conhecimento vem da experiência –, Locke recusa o inatismo, a universalidade de princípios que regem a vida humana, vendo na mente apenas um receptor passivo de impressões externas. Hume (século XVIII) desenvolve as ideias empiristas em nível intelectual, e recusa a possibilidade de conhecimento real do mundo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 465 Kant ([198-?]), por sua vez, na obra Crítica da razão pura, de 1781, aponta o que há de comum entre o racionalismo e o empirismo (conhecimento puro e conhecimento empírico): é impossível conhecer diretamente a realidade, seja a priori – que os racionalistas consideram superior ao segundo –, seja a posteriori – que os empiristas consideram superior ao primeiro. A síntese proposta por ele se realizou apontando, primeiramente, pontos positivos das duas grandes correntes: nos racionalistas, a postulação de ideias inatas e a consideração do eu como entidade intelectualmente perceptível; nos empiristas, a postulação dos sentidos como principal fonte de conhecimento do mundo, e a ideia relativamente correta de que a matemática não fornece conhecimento de mundo, mas apenas relações de ideias. Como erro, apontou nos racionalistas a afirmação de que os sentidos enganam e só proporcionam um conhecimento inferior; e de que a razão seria o único meio de obter conhecimento, por meio da matemática. E apontou nos empiristas: a recusa das ideias inatas e da possibilidade de intuição imediata do eu; a recusa de haver relações necessárias de causa e efeito e a ideia de que o futuro seria semelhante ao passado. Nesse passo, a síntese kantiana corresponde a um sistema baseado na causalidade necessária, com três princípios: a) existem ideias inatas; b) há um eu imediatamente perceptível; c) passado e futuro se assemelham a partir da intuição (sentidos) e do entendimento (cf. SOBRAL, 2005, p. 141 et seq.). Com respeito ao conceito de cronotopia, qual a influência de Kant? É a ideia de que o mundo só pode ser apreendido por meio de categorias propostas pelo homem, sendo as de causalidade e de espaçotempo as que Bakhtin efetivamente aproveitou, reinterpretando-as. Recusou, por outro lado, a concepção de sujeito transcendente e as teses universalizantes, provindas da tendência de Kant pelo racionalismo. Em Língua e realidade, ensaio instigante do filósofo tchecobrasileiro Flusser, que teve como mestres Ludwig Wittgenstein e Edmund Husserl e criou uma metodologia de análise fenomenológica particular, o autor mostra sua posição a respeito da relação língua/realidade de modo bastante instrutivo. A tese de Flusser (2007) sobre a língua e as línguas se resume em asserções: a língua é realidade, forma realidade, cria realidade e propaga realidade – tópicos que correspondem aos capítulos da obra. Esse modo de sentir a língua parece corresponder em Bakhtin à ideia básica de que suas unidades discursivas, os enunciados, 466 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 manifestados na forma de gêneros, “são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem.” (BAKHTIN, 2003, p. 268). Isso faz parte da assunção de que os gêneros discursivos têm uma história ligada aos estilos e ao tom de manifestação da linguagem nos vários campos de conhecimento e nas práticas sociais. Flusser propõe, de início, supor a existência de uma única língua. Se assim fosse, haveria uma correspondência aparente perfeita e unívoca entre dado bruto e palavra. (...) A língua seria o aspecto interno da realidade, e a realidade seria o aspecto externo da língua única. (...) A língua única seria idêntica ao espírito humano, ou, pelo menos, àquilo que Kant chama de razão pura. (FLUSSER, 2007, p. 51, grifo do autor) Sucede, porém, que essa “situação hipotética e paradisíaca” da língua é ilusória. E isso engendra um problema epistemológico: as chamadas categorias do conhecimento não podem ser universais. Para Flusser, “há tantos sistemas categoriais, e, portanto, tantos tipos de conhecimento, quantas línguas existem ou podem existir.” (p. 52). Ele explica isso de outra maneira, para ressaltar a relação língua/realidade: a realidade, este conjunto de dados brutos, está lá, dada e brutal, próxima do intelecto, mas inatingível. Este, o intelecto, dispõe de uma coleção de óculos, das diversas línguas, para observá-la. Toda vez que troca de óculos, a realidade “parece ser” diferente. A dificuldade dessa imagem reside na expressão “parece ser”. Para ser, a realidade precisa parecer. (FLUSSER, 2007, p. 52-53). Para contornar uma questão que surgiria como intolerável (essa infinidade de sistemas de realidade), o autor prefere dizer que “os dados brutos se realizam somente quando articulados em palavras. Não são realidade, mas potencialidade. A realidade será, em consequência, o conjunto das línguas.” (2007, p. 53). Como consequência dessa perspectiva, “a verdade absoluta, isto é, a correspondência entre língua e realidade em si, é tão inarticulável quanto o é essa realidade em si.” (2007, p. 82, grifos do autor). Isto posto – e como Flusser podia raciocinar em várias línguas –, uma outra consequência é que o poliglotismo abre a possibilidade de uma vida múltipla do intelecto, bem como a tradução, permitindo ultrapassar os limites de uma única língua. Mas há ainda uma restrição: Flusser está falando, para a ciência e a filosofia, do estudo da Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 467 realidade através das línguas flexionais. Os outros dois tipos, as línguas aglutinantes (dos mongóis, tártaros, turcos, hunos) e as isolantes (do Extremo Oriente) seriam praticamente, para o Ocidente, impenetráveis. Não saberíamos como esses povos pensam a realidade. Para complementar essa visão mais filosófica da ordem sígnica do mundo, desenvolvo na seção 5 a perspectiva linguística e enunciativa de Benveniste sobre a temporalidade em seu vínculo com o humano. 5 Benveniste e a temporalidade No texto sobre linguagem e experiência humana dos Problèmes de linguistique générale II, Benveniste (1974) trata de duas categorias que, conforme observa, aparecem em todas as línguas e são independentes de qualquer determinação cultural; seriam fundamentais do discurso e mostrariam a experiência subjetiva dos seres humanos: pessoa e tempo.8 Como trato aqui da temporalidade, dou destaque a esse tópico. Certamente, pessoa e tempo não estão dissociados, mas de imediato não é necessário marcar sua relação. Posteriormente, caberá pensar em que aspecto(s) essa relação nos serve para entender a cronotopia. Benveniste destaca que as formas temporais são as mais ricas entre aquelas da experiência subjetiva, mas também as mais difíceis de explorar. E mostra que a categoria tempo recobre muitas representações, formas diferentes de apresentar o encadeamento das coisas, simultaneamente estabelecendo que a língua conceptualiza o tempo de modo totalmente diferente. Nenhuma língua, diz ele, desconhece o tempo, apesar de parecer assim do ponto de vista das línguas flexionais, em que se reconhece a categoria verbo. A expressão de tempo seria compatível com qualquer tipo de estrutura linguística.9 Outra confusão comum seria pensar que o sistema temporal de uma língua reproduz a natureza do tempo “objetivo”, como se a língua fosse reflexo da realidade. Cada uma, com Todas as citações do texto de Benveniste foram traduzidas por mim. Ver, porém, o que diz Flusser (2007, p. 88), comparando quatro línguas flexionais quanto ao tempo futuro. Como filósofo, ele diz que “toda língua flexional tem estrutura ontológica diferente, mas até certo ponto semelhante. Essa semelhança permite a comparação entre as estruturas.” No entanto, diz, se é possível comparar frases com determinada forma temporal traduzindo-as para uma mesma língua, elas não vão significar a mesma coisa. 8 9 468 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 efeito, elabora seu próprio sistema relativamente à realidade, divergindo substancialmente nisso. Para chegar ao que concebe como tempo específico da língua, Benveniste expõe duas noções distintas de tempo: o físico e o crônico. O primeiro é “um contínuo uniforme, infinito, linear, segmentável à vontade”.10 “Tem por correlato no homem uma duração infinitamente variável que cada indivíduo mede conforme suas emoções e o ritmo de sua vida interior.” (1974, p. 70). O segundo é o tempo dos acontecimentos, “que engloba também nossa própria vida como sequência de acontecimentos.” (1974, p. 70). É nosso tempo vivido. Como se caracteriza esse tempo? Nossa vida tem pontos de referência que nos situam numa escala reconhecida consensualmente. Um observador pode percorrer com o olhar acontecimentos já realizados em duas direções: do passado para o presente ou do presente para o passado. Assim é que o tempo crônico admite um olhar bidirecional, ao passo que nossa vida vivida escorre num só sentido: “o que chamamos tempo é a continuidade em que se dispõem em série esses blocos distintos que são os acontecimentos. Os acontecimentos não são o tempo, eles estão no tempo. Tudo está no tempo, exceto o próprio tempo.” (BENVENISTE, 1974, p. 70-71, grifo do autor). Como o tempo físico, o tempo crônico se desdobra em duas versões – uma objetiva, outra subjetiva. O tempo socializado, objetivado, é aquele do calendário. Nele se reflete a recorrência de fenômenos naturais. Como ponto zero de cômputo escolhe-se um evento fundamental que supõe um curso novo para um povo. Essa é uma condição estativa, para Benveniste. Uma segunda é diretiva: a partir de um eixo, estabelece-se um antes e um depois. A terceira é mensurativa: são fixadas unidades de medida para denominar intervalos constantes entre ocorrências de fenômenos cósmicos (dia/noite, mês/ano; semana, quinzena, século...). Um acontecimento, desse modo, pode ser situado e reconhecido num ponto determinado desse eixo – o “modelo experimental”, segundo expressão do personagem Tengo (referido no início do texto), que funciona bem há muito tempo. E, por aí, sabemos nossa situação relativamente a acontecimentos, sabemos onde estamos na vastidão da história. Não fosse assim, estaríamos perdidos num tempo errático; em consequência, “nosso universo mental passaria à deriva” (BENVENISTE, 1974, p. 72). Lembrar a forma do trilho na explicação de Hawking, com base em Newton: o trilho se estende ao infinito nas duas direções. 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 469 Apesar do reconhecimento da fixidez da estrutura do tempo crônico, Benveniste lembra que a organização social desse tempo é na realidade atemporal, pelo próprio fato de sua fixidez: é que as quantidades e denominações conhecidas não participam absolutamente da natureza do tempo – são vazias de temporalidade. Uma coisa, porém, é situar um acontecimento no tempo crônico, outra é inseri-lo no tempo linguístico. É pela língua que se manifesta a experiência humana do tempo, que é igualmente irredutível ao tempo crônico e ao tempo físico. “O que o tempo linguístico tem de singular é que ele é organicamente ligado ao exercício da fala [parole], que ele se define e se ordena como função do discurso.” (BENVENISTE, 1974, p. 73). O centro desse tempo é o presente da instância da fala. Assim, um enunciado no presente situa um acontecimento como contemporâneo da instância do discurso que o menciona. Ele não pode, pois, ser localizado numa partição qualquer do tempo crônico. O presente de uma fala, portanto, se reinventa a cada momento novo de fala. Essa reinvenção singulariza cada enunciação. Então, Benveniste declara: “O presente linguístico é o fundamento das oposições temporais da língua.” (1974, p. 74). Ele se desloca no discurso e divide outros dois momentos igualmente inerentes ao exercício da fala: aquele em que o acontecimento sai do presente e se torna memorável, e aquele em que o acontecimento é apenas uma possibilidade, que pode surgir como presente em prospecção. Na verdade, Benveniste assinala: só há uma expressão temporal – o presente (coincidência acontecimento/discurso). Desse modo, ao lado dele, há os tempos “não-presentes”, de nível diferente. “A língua deve, por necessidade, ordenar o tempo a partir de um eixo, e este é sempre e somente a instância de discurso.” (1974, p. 74). Benveniste nota que um fato significativo das línguas é que comumente formas para o passado não faltam; por outro lado, muitas línguas não têm forma específica para o futuro, utilizando elementos auxiliares. Mais significativo ainda é que, apesar de a instância de discurso de que resulta o presente ser nova a cada enunciação, como uma experiência intrinsecamente subjetiva, sucede ao mesmo tempo que essa temporalidade seja aceita pelo interlocutor. Assim ocorre a condição de inteligibilidade da linguagem: 470 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 a temporalidade do locutor, embora literalmente estranha e inacessível ao receptor, é identificada por este à temporalidade que informa sua própria fala quando ele se torna, por sua vez, locutor. Um e outro se encontram, assim, em acordo no mesmo comprimento de onda. (BENVENISTE, 1974, p. 76-77) É então que o tempo do discurso funciona como fator de intersubjetividade. Somente essa condição, diz Benveniste, permite a comunicação linguística. Como é perceptível, o tempo linguístico vincula o sujeito à enunciação, e, como presente temporal, a uma situação e espaço específicos de enunciação. Associa-se, nessas circunstâncias, também ao que Benveniste chamou tempo físico, essa duração variável que o próprio ritmo individual da vida interior determina, marcada pela carga afetivo-emocional e em função dos acontecimentos no tempo crônico do calendário. O tempo linguístico, de caráter sígnico, envolve o sujeito pelo que a própria língua permite ou obriga, e indica um limite para o memorável: o que não é mais presente, bem como o limiar do sonho e da utopia; o que não é ainda presente ou nunca será, embora faça parte da vida presente – porque a vida também se faz de possibilidades e de expectativas. Amarra-se, desta forma, o que é visada individual (a proximidade ou o distanciamento – exotopia) ao que se forja como grande temporalidade; nessa dimensão da coletividade, somos todos passageiros do tempo, que não estão em espaços e tempos separados, mas sempre na fronteira ou no limiar de algo em mudança, sofrendo necessariamente deslizamentos e rupturas. É uma forma de dizer que, como Bakhtin (2014a, p. 211) assumia, toda a nossa cognição está fundada no reconhecimento da existência do espaço-tempo, indispensável para a efetivação dos sentidos, o reconhecimento da subjetividade e o reconhecimento (percepção) da alteridade nos eventos humanos – irrepetíveis. Observe-se, com Holquist, que a influência de Kant sobre Bakhtin não tocou em absoluto a linguagem, que foi desconsiderada por aquele (focado na relação mente/mundo), enquanto para Bakhtin era essencial, pelo fato “de a linguagem humana subscrever a eficácia dos cronotopos nas culturas humanas” (HOLQUIST, 2015, p. 50). Ora, tempo e espaço em Kant são categorias transcendentais. Assim, diz Holquist: “Em nosso uso cotidiano dos cronotopos, a abstração tempoespaço é domesticada quando a dispomos no discurso.” (p. 50). E aqui, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 471 é justamente Benveniste que é apontado, ao trabalhar as categorias de pessoa e tempo na linguagem. 6 Exotopia (distanciamento) e cronotopia – estudo de caso Amorim (2006) lembra a associação entre cronótopo e exotopia,11 conceitos criados em momentos distintos, mas funcionando como modos possíveis de trabalhar a relação espaço/tempo. O conceito de exotopia trata da questão da criação individual. (...) O conceito de cronotopo trata de uma produção da história. Designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem. Está ligado aos gêneros e a sua trajetória. (2006, p. 105). Com relação a essa citação, diria que a ideia de lugar coletivo pode remeter ao que se poderia chamar de espaços ideológicos, no sentido de produção de figurações que abarcam comunidades maiores ou menores (considerando os modos de interdependência estabelecidos), criando uma rede de valores e configurações interdiscursivas – ou ainda, um espaço-tempo simbólico que rege a vida humana (talvez se possa apelar para a expressão metametaforicidade ao propor a leitura das figurações desse nível). O importante, sobre essas configurações, é o que Bakhtin chamou “qualidade da apreensão da realidade do mundo” (BAKHTIN, 2003, p. 247, grifo do autor), como comentou com respeito às imensas mudanças mundiais da época do Renascimento. No plano histórico e político, em analogia, a proposição acima, de Bakhtin, parece consentânea com a perspectiva do sociólogo Elias (2001) ao explicar o desenvolvimento e a manutenção da corte real e da sociedade de corte do Ancien Régime (França, com Luís XIV em seu ápice), que ele perspectiva como figurações específicas de O termo exotopia, corrente em português a partir da tradução do francês da Estética da criação verbal, mais recentemente, pela tradução de Paulo Bezerra (2003), tornouse distância ou distanciamento (embora também encontremos transgrediência). Dependendo das línguas e dos tradutores, também se pode encontrar extraposição, extralocalidade, outsideness, que remetem sempre ao “encontrar-se fora”. Exotopia e cronótopo não têm (ainda) registro no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), embora as palavras estejam bem vivas e circulem. 11 472 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 interdependência de pessoas, constituindo um elo histórico-social entre as sociedades feudais (anteriores) e as industriais (posteriores). A sociedade de corte não é um fenômeno existente fora dos indivíduos que a constituem; os indivíduos que a constituem, seja o rei ou o camareiro, não existem fora da sociedade que formam em sua convivência mútua. O conceito de “figuração” serve para expressar esse estado de coisas. (...) homens singulares formam entre si figurações de tipos diversos, ou (...) as sociedades não são nada mais que figurações de homens interdependentes. Hoje em dia, utiliza-se com frequência, nesse contexto, o conceito de “sistema”. Mas enquanto não pensarmos em sistemas sociais como sistemas de indivíduos, o uso desse conceito nos leva a flutuar no vazio. (ELIAS, 2001, p. 43) É por isso que Elias pode assumir: “Um homem poderoso como Luís XIV nunca foi livre, em qualquer sentido absoluto da palavra.” (p. 55). Ele precisava, para conservar e exercer adequadamente o poder, manter em consonância suas inclinações individuais e o que era exigido da posição de rei. E uma figuração típica e extremamente significativa nas sociedades de corte é a que se representa pelo cerimonial e pela etiqueta (cf. ELIAS, 2001, p. 53). Um exemplo da diferença de figurações nas sociedades é oferecido por Elias ao distinguir a estrutura da sociedade burguesa relativamente àquela da sociedade aristocrática de corte: “Na vida das pessoas da corte, a convivência social implica um espaço e um tempo completamente diferentes daqueles da vida dos profissionais burgueses.” (2001, p. 79). Isso implicava diferença no número de pessoas em contato, extensão, tipo e temas de conversação, rigidez ou não das relações diretas. Tudo isso se vincula, fisicamente, ao próprio tipo de moradia que cada grupo podia ostentar. Esse podia não se vincula às posses reais, mas às posições hierárquicas dos indivíduos nas variadas ordens do Estado. Pode-se perceber, então, ainda que de modo vago, as linhas figurativas da vida em mundos de mesma época cronológica e de mundos espaçotemporalmente tão divergentes, apesar de interdependentes. Elias não deixa de mostrar, nessa investigação sociológica sobre as relações realeza/aristocracia de corte no Ancien Régime – detendo-se nas figurações dinâmicas do ambiente de absolutismo do reinado de Luís XIV –, o que determinada produção literária indiciava sobre o que ele definiu como “sociogênese do romantismo aristocrático no processo de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 473 curialização”,12 que nomeia o capítulo VIII da obra. Trata-se de polos que se tocam ou reverberam: quanto mais mecanismos de dependência prendiam os aristocratas ao rei (em função de fatores diversos de ordem conjuntural), processo que já se delineava quando Henrique IV (Henrique de Navarra, rei de classe guerreira) passou a reinar na França (a partir de 1589), mais se verificava ressentimento nessa aristocracia, que, no entanto, não se permitia manifestá-lo abertamente, porque, de fato, dependia em vários níveis dessa relação na corte. Representava um processo necessário rumo à civilização, que implica autocontrole, disciplina, de que o próprio rei devia imbuir-se para reinar (Luís XIV nunca foi livre, como registrado acima conforme a expressão de Elias). Contudo, se a mudança de figurações sociais era inevitável no grande tempo (ou longa duração), o ressentimento provocado naqueles que sofriam as coerções precisava de uma válvula de escape. É desse fenômeno que surge a ideia de sociogênese do romantismo aristocrático. Como? Na fase de transição da noblesse d’épée (“nobreza de espada”, de guerreiros) para a nobreza de corte no processo civilizador europeu, explica Elias (cf. p. 220), a geração já instalada na corte começa a sentir a nostalgia de uma vida campestre (dir-se-ia, em português, saudade); mais tarde, cria-se uma visão onírica. “A vida no campo se torna um símbolo da inocência perdida, da simplicidade e naturalidade espontâneas; torna-se o contraponto da vida urbana e de corte” (p. 220). Isso não dizia respeito, porém, ao que seria, na realidade, a vida no campo: era o imaginário funcionando como saída em momentos de excesso de pressão na vida cortesã; uma fuga. Esse imaginário reflete, em movimentos românticos, o deslocamento de rota das figurações. As imagens idealizadas da vida no campo e da natureza campestre funcionam por contraste com as coerções e conflitos rotineiros. O nexo entre as figurações humanas e a sensibilidade em relação à natureza se mostrou, na França, a partir do século XVI, diz Elias (cf. p. 231) – e se materializou também em poemas e narrativas. “O desenvolvimento da imagem humana a partir daquilo que vivenciamos como ‘natureza’ é um dos aspectos do desenvolvimento global da sociedade.” (p. 233). Manifesta-se, claro, na arte em geral; na pintura, por exemplo, os cortesãos eram incorporados à natureza pelo fundo paisagístico idealizado nos quadros. Derivado de cúria (relativo à cúria, próprio do foro), assim como curial/curialidade – metaforicamente: conveniente, adequado, apropriado. 12 474 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 Aqui, porém, em função do foco de reflexão, selecionei um romance analisado por Elias, Astrée (Astréia), escrito por Honoré d’Urfé (15671625). Roman-fleuve (“romance-rio”, na terminologia dos franceses), composto em cinco tomos e publicado de 1607 a 1627, totalizava cerca de 5.000 páginas.13 Era ambientado no século V, à época dos druidas, e tinha como personagens o pastor Céladon e a ninfa Astrée. O último tomo da obra, completando o romance inacabado devido à morte de d’Urfé, foi redigido por seu secretário, que libertou os personagens de uma situação sem saída. O tema central é uma intriga amorosa, permeada de intrigas secundárias e complementares. Cabe verificar o que seriam os possíveis cronótopos correspondentes às figurações humanas na perspectiva analítica de Elias. O autor, claro, não pretendeu fazer uma análise cronotópica de caráter literário. Sirvo-me de sua perspicácia sociológica para passar a esse outro olhar, com base nas correlações apontadas por ele. Esse romance “teve grande repercussão nos círculos da sociedade de corte em formação. Foi durante algum tempo objeto de um verdadeiro culto literário, organizando-se em torno dele jogos de sociedade e reuniões mundanas.” (ELIAS, 2001, p. 247-248). A questão aqui é olhálo, como o faz Elias, como testemunho do tipo de vida dos indivíduos: inclinações, sentimentos, comportamentos, já que é produto literário de um período em que o deslocamento de poder favorecia “o governo central em detrimento das camadas de senhores regionais e locais, antes mais autônomas.” (p. 248). Formava-se uma nova figuração humana – o que se consubstanciou inequivocamente no reinado de Luís XIV. Nesse processo, a identidade é flutuante, ambígua; não houve um corte definitivo; valores e ideais ainda tinham traços da tradição, da vida “antiga”. Os novos nobres ainda podiam devanear. D’Urfé, guerreiro de muitas batalhas (e vencido nas guerras religiosas entre os grupos católicos e protestantes), também incorporara muito do “refinamento civilizador”, e ao mesmo tempo não apreciava mudanças estruturais, como tantos outros – e essa marca se encontra em seu romance “sentimental” (como foi qualificado), caracterizando de fato uma perspectiva barroca. O material para a criação estilística passa a uma forma distinta daquela utilizada no que Bakhtin especificou como “ciclo romântico de cavalaria abstrato” (BAKHTIN, 2014b, p. 181); a nova forma, na prática, correspondia a Cf. Espace Français.com: <www.espacefrancais.com/honore-durfe/>. Acesso em: 29 jan. 2017. 13 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 475 um “disfarce da realidade circundante num material alheio, como uma mascarada singular e heroicizante.” (2014, p. 181). Astrée, no caso, manifesta uma reação da nobreza ao conflito: permanecer na gaiola de ouro (a corte com suas coerções) cujas portas se fechavam, ou viver na obscuridade, sem glória. Surge a nostalgia de algo perdido. O romance descreve o mundo utópico de uma nobreza que se tornava cada vez mais aristocrática, cada vez mais uma nobreza de corte. Deixando a espada de lado, criava-se um mundo protegido para atuar, um mundo mimético no qual as pessoas podem vivenciar, fantasiadas de pastores e pastoras, as aventuras nãopolíticas de seus corações, sobretudo os sofrimentos e as alegrias do amor, sem entrar em conflito com as coerções, os mandamentos e as proibições do mundo real, não-mimético. (ELIAS, 2001, p. 249-250) As classes de nobres aparecem no romance semidisfarçadas: cavaleiros, príncipes, reis; druidas e mágicos correspondem à classe eclesiástica; ninfas são as damas da corte; pastores e pastoras são a camada nobre de nível mais baixo, associados à vida campestre. É o mundo campestre, a relação com a natureza, pois, que predomina como figura cronotópica da fuga (alternância de mundo). Por isso mesmo, os pastores são o grupo principal, a quem esse mundo pertence de direito, e Céladon é o herói enamorado da ninfa Astrée. A polêmica, o autor a cria fazendo a camada mais baixa opor-se à superior, que inclui as ninfas, relativamente a seu modo de vida na corte, contrapondo autenticidade a modos requintados com base em rituais – ou seja, “alienados”. No cronótopo, os temas amor e autenticidade são sua contraparte, o que significa que Céladon e Astrée não entram em sintonia: vivem tentando resolver seus conflitos. Bakhtin expressa, sobre esse tipo de romance, a meta de sua produção: “Encontrar-se e realizar-se naquilo que havia de estrangeiro, heroicizar a si e a sua luta num material estrangeiro: este foi o patos do romance barroco.” (2014b, p. 181). É daí que, para ele, a denominação “romance de provações” é acertada para o romance barroco. A provação do herói e de sua palavra seria a principal ideia organizadora do romance (2014, p. 182). Ela corresponderia, no caso, ao reconhecimento de uma tensão nas forças históricas de formação dos grupos em sua hierarquia de poder, com uma consequente reação. O ponto crucial na armadura do romance, na percepção de Elias, é a conexão entre a alienação da corte e o princípio de uma nova 476 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 consciência, ou seja, “a ascensão para um novo estágio na escada em espiral da consciência” (ELIAS, 2001, p. 251).14 O tema tratado é o da relação realidade/ilusão – considerando o ponto atingido no Renascimento, dada a urgência, no período, de que a sociedade pudesse ter controle sobre o mundo em que vivia. Este ponto, em termos contemporâneos, foi discutido na seção 4 deste ensaio (A ordem das coisas e a ordem dos signos). O que seria o real e o ilusório, o objetivo e o subjetivo? Haveria, pois, estágios de consciência no desenvolvimento da sociedade, por meio do distanciamento entre as representações emotivas e o elemento racional. Era uma busca da identidade das coisas. Elias mostra que a ideia de couraça, de autocontrole exigido especialmente na corte, era uma forma de caminhar nessa direção civilizadora – a busca de conhecimento por meio de nexos, conhecimento mais objetivo, mais conceitual, mais científico. O elemento da contradição, nesse processo, é que ele é acompanhado da incerteza de que se trate, de fato, de um objeto, um fato ou acontecimento não ilusório. Uma resposta – tranquilizadora, digamos – para as sociedades daquela época foi aquela a que chegou Descartes, ao estabelecer o que seria uma forma segura de adquirir conhecimento científico: reflexão sobre o modo de refletir, dúvida hiperbólica e, finalmente, a “certeza” de um método seguro de observação. Porém, ainda assim, Uma vez que, para o sentimento, há uma cisão, um abismo entre o “sujeito” que conhece e o “objeto” a ser conhecido, a própria noção de realidade parece suspeita e ingênua. Será que tudo o que vem à tona através do conhecimento não passa de uma invenção do pensamento humano, ou de uma imagem influenciada pelos órgãos sensoriais humanos? (ELIAS, 2001, p. 254) Qual o problema persistente? Para Elias, é que os homens não conseguem distanciar-se suficientemente de si mesmos e do modo como pensam, “a ponto de incluírem a estrutura do próprio distanciamento como elemento fundamental em sua imagem e sua concepção da relação sujeito-objeto.” (2001, p. 255). Todo o esforço despendido resultou fatalmente em dicotomias forçadas (que parecem evidentes) no estilo A figura da escada em espiral (caracol) utilizada por Elias permite explicar o movimento de ascensão intelectual: a cada patamar, quem sobe pode apreciar a si mesmo nos patamares inferiores, o que provê uma autorreflexão histórica. 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 477 “mundo exterior”/“mundo interior”: a contenção emocional a que se viram forçados isolou-os como se fossem seres singulares dentro de uma couraça. Esse jogo está presente em Astrée, explica Elias: de um lado, os personagens-modelo são ora apresentados refreando sentimentos, ora se disfarçam, atuando em dois papéis alternadamente, vivendo ora como “si mesmos”, ora num mundo ilusório, como outras pessoas. No contorno da natureza, então, o tema da máscara é um indicador cronotópico das trocas humanas em mundo incerto. Mas o que seria considerado real nessa sociedade imaginada e naquela que era a destinatária do romance? O jogo continua a balançar entre ser e dever ser, fatos e normas, diz Elias (2001, p. 255). O que uma pessoa seria, de fato, ficava inextricavelmente ligado a sua ascendência social e sua posição social na sociedade. “Astréia é um romance da nobreza, que põe em cena aristocratas sob diversos disfarces para um público aristocrático.” (2001, p. 256). O relevante dessa situação é que a dissimulação é, na obra, um tema de reflexão de seu autor por intermédio de seus personagens, portanto a conversação contínua refletia as preocupações que habitavam as cabeças na época considerada. Ecoando o tema de provação do romance, o tipo de relação amorosa que se desenvolve em Astrée envolve o controle emocional e o distanciamento, conforme o deslizamento da figuração social para uma forma cada vez mais contida, dominada pelas normas nas várias camadas da elite aristocrática. No caso de Astrée, diz Elias, o que predomina, já que há uma contraposição às camadas mais altas, realizada por d’Urfé, são atitudes e sentimentos mais liberais de uma camada mais modesta (cf. ELIAS, 2001, p. 256) – o que responde, da parte do autor, a uma atitude de luta, explica Elias, “no plano ideológico e com armas ideológicas” (2001, p. 257). Trata-se sempre, então, de um fundo político e de atitude de ressentimento e protesto relativamente à camada mais poderosa da corte. Num mesmo período, portanto, veem-se forças centrípetas e forças centrífugas em tensão, dando o tom aos acontecimentos políticos e sociais. A relação amorosa em questão, em Astrée, como mostra Elias, é regida pelo ideal de vínculo afetivo de camada intermediária da nobreza. Sua realização afetiva só pode ocorrer pelo casamento, e nada mais. Dado esse constrangimento normativo, todo o processo se mostrará como uma prova – daí o tema da provação e das máscaras que são experimentadas para conduzir o jogo, a atitude de distanciamento e autorreflexão um em relação ao outro. Elias destaca, no jogo, que a estratégia de aproximação ocupa boa parte do romance (cf. ELIAS, 2001, p. 258), criando ansiedade 478 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 e, simultaneamente, certo “deleite em adiar o prazer amoroso”, que atinge especialmente o herói pastor, Céladon (lembremos que Astrée é uma ninfa, da camada superior aristocrática). Ambos duelam com as palavras e estão em constante conflito – conflito que d’Urfé nunca resolveu (ou não pretendia resolver), pois ao morrer deixou a relação amorosa em estado de impasse, só resolvida no último volume da obra por seu secretário, como explicitado anteriormente. Astrée é um exemplo de como e por que movimentos românticos surgem e desaparecem: eles expressam de algum modo o anseio pela libertação de coerções cuja tensão tenha chegado a um ponto insuportável, provocando a criação de utopias15 e ilusões (2001, p. 261). No entanto, o enredo de d’Urfé mostra o conflito político de fundo: Seus pastores querem escapar da coerção da sociedade aristocrática de corte sem abrir mão dos privilégios e da superioridade que os diferenciam, justamente por sua civilidade de aristocratas, dos homens rústicos que cheiram a ovelhas e cabras, portanto dos verdadeiros camponeses e pastores. (ELIAS, 2001, p. 263) Enfim, o que a análise do romance mostra como forma de manifestação do romantismo é que os homens tentam escapar de coerções civilizadoras que constituem seu próprio modo de vida, com figurações específicas, o que é um empreendimento impossível, uma vez que já interiorizaram essas coerções e vivem de seus privilégios (formação, educação, cultura), nem sempre se dando conta de que criam ilusões. Afinal, diz Elias (2001, p. 264), “uma convivência social sem coerções (...) é inimaginável e impossível.” É nesse sentido que Bakhtin também caracteriza o romance barroco em seu aspecto de discurso patético, mais especificamente por seu caráter de provação: é na polêmica interna da acusação e da justificação que ele se desenrola, refletindo “forças culturais, sociais, reais, conscientes delas mesmas.” (BAKHTIN, 2014b, p. 187). O romance também surge na forma de um discurso “substituto” (digamos assim): como Bakhtin expressa, “é o discurso do pregador sem púlpito, é o discurso do juiz terrível sem poder judiciário e punitivo, do profeta Roland Barthes (2004, p. 290) assim definiu utopia: “A Utopia é o campo do desejo, diante do Político, que é o campo da necessidade. Donde as relações paradoxais desses dois discursos: eles se completam, mas não se compreendem [...]”. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 479 sem missão, do político sem força política, do crente sem igreja, etc.” (p. 187). É o que se percebe na perspectiva histórico-sociológica de Elias (2001). Soa como uma luta previamente perdida e sem sentido, servindo de fato como expressão de nostalgia – e, na prática, como deleite da aristocracia, que pôde degustar pela leitura e em sonhos, durante vinte anos, o fruto proibido. Pode-se observar, nas figurações de dependências propostas e descritas por Elias (2001) em correspondência com o enredo e os temas levantados em Astrée, que o peso da perspectiva exotópica (ou de distanciamento) nas coerções que conduzem ao processo civilizatório é relevante também na relação com o elemento temporal (a grande temporalidade do processo civilizador). A orientação históricosociológica de Elias em seu estudo da sociedade de corte, exemplificada parcialmente pela análise do romance de d’Urfé, permite visualizar traços razoavelmente nítidos do espaço-tempo experimentado/vivido com menos ou mais consciência – em todo caso, indo na direção da autoconsciência por autorreflexão e distanciamento, o que os próprios romances de época vão desenhando, caracterizando a formação de identidades. Ou seja, eles refletem (falam de) suas próprias condições de produção, e nisso são, em sua ficção, muito reais – daí não poderem ser ignorados e tidos como produção secundária de época. Para o historiadorsociólogo, são documentos que refletem vida. 7 Reflexões (in)conclusivas Este trabalho não reflete, sobretudo por inacabamento teóricoconceitual na direção pretendida, os estudos e as tentativas de exercício de análise de parcelas de obras e situações sociais em curso. Considere-se, ainda, o lembrete de que o estudo desenvolvido por Bakhtin deixou, como era inevitável, alguns conflitos a serem retrabalhados por outrem. Ficou, porém, o estímulo oferecido justamente por essa abertura, que exige refinamento teórico e metodologia de análise – e um olhar diferenciado considerando os campos de trabalho e as modalidades de linguagem e de gênero na atividade de interpretação. Procurei enxergar as direções e os temas para os quais apontava Bakhtin em sua elaboração conceitual e em que medida seria possível incorporar algo a sua compreensão visitando obras e autores de diversos campos – também retornando às questões de espaço-tempo revisitadas no campo da Física. 480 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 Pensei no fenômeno da cronotopia, modo de visão interpretativa do histórico-social, como forma de enclave e ajuste entre o tempo crônico e o linguístico, produzindo figurações (em um plano metafórico) por suas marcas históricas (tempo) e sociais (lugares/espaços/sujeitos) – e não apenas marcação de situação espacial e temporal de acontecimentos a enquadrar, por exemplo: o acontecimento X ocorreu no século XIX, na década de 1800, na região X, com tais personagens. Tomei figurações a partir de estudo histórico-sociológico de Elias, que mostra as interdependências entre indivíduos, grupos, classes, em seus lugares e tempos, passando de um nível a outro mais complexo ao olhar as interdependências e normas que regem essas dependências em níveis cada vez mais abrangentes – como a buscar melhor visão e compreensão, panoramicamente. A visão cronotópica tem essa exigência: olhar do alto, sentir para interpretar com abrangência. Daí a relevância da figura que o autor criou: a escada em espiral (a subida ao topo do farol, se a figura for interessante). Pareceu-me pertinente e provocador o exame que Elias (2001) fez do romance Astrée (século XVII) em sua obra, que parecia pedir uma experiência de análise cronotópica a sobrepor-se à análise sociológica. Tenho tentado realizar sobreposições em materiais já analisados sob outros ângulos (da literatura, da psicanálise, da história), como que fornecendo nova coloração, compondo palimpsestos. No percurso feito, vejo as figurações cronotópicas como um resultado de interpretação que tem como foco o amálgama (unidade) humano/espaço/tempo, figurações que funcionam, uma vez propostas como leitura, como elementos irradiadores de caráter histórico-cultural, como valores axiológicos dando visibilidade aos acontecimentos no espaço-tempo. Há muito ainda a caminhar. Referências AMORIM, M. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 95-114. BAKHTIN, M. Forms of time and of the chronotope in the novel – Notes toward a historical poetics. In: ______. The dialogic imagination. Four essays. Edited by Michael Holquist. Translated by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981. p. 84-258. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 481 BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). In: ______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014a. p. 211-362.16 BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: ______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014b. p. 71-210. BAKHTIN, M. Observações finais. In: ______. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014c. p. 349-362. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, R. Utopia. In: ______. Inéditos. v. 1 – Teoria. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 290-291. BATTISTINI, M. Symboles et allégories. Traduit de l’italien par Dominique Férault. Paris: Éditions Hazan, 2004. BEMONG, N.; BORGHART, P. A teoria bakhtiniana do cronotopo literário: reflexões, aplicações, perspectivas. In: BEMONG, N. et alii (Org.). Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. São Paulo: Parábola, 2015. p. 16-33. BENVENISTE, E. Le langage et l’expérience humaine. In: ______. Problèmes de linguistique générale II. Paris: Editions Gallimard, 1974. BEZERRA, P. Introdução. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. IX-XII. CLARK, K.; HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. ELIAS, N. A sociedade de corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Pref. Roger Chartier, trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. FALCONER, R. Representações heterocrônicas da queda: Bakhtin, Milton, DeLillo. In: BEMONG, N. et alii. Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. São Paulo: Parábola, 2015. p. 141-164. 16 O capítulo X do ensaio de Bakhtin (Observações finais) foi escrito como um fecho do estudo, em 1973. Na obra, ele corresponde às páginas 349-362. 482 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 453-482, 2019 FLUSSER, V. Língua e realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007. GALÉ, P. F. Viagem à Itália, a formação no renascimento de Goethe. Itinerários, Araraquara, n. 39, p. 51-69, jul./dez. 2014. HAWKING, S. O universo numa casca de noz. Trad. Mônica Gagliotti F. Friaça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. HOLQUIST, M. A fuga do cronotopo. In: BEMONG, N. et alii (Org.). Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. São Paulo: Parábola, 2015. p. 34-51. KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução de J. Rodrigues de Mereje. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, [198-?]. LACAN, J. La instancia de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud. Escritos 1. 17. ed. Madrid: Siglo Ventiuno Editores, 1994. p. 473509. MACHADO, I. Gêneros discursivos. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 151-166. MINKOWSKI, H. Space and time – Minkowski’s papers on Relativity. Translated by Fritz Lewertoff and Vesselin Petkov. Edited by Vesselin Petkov. Montreal: Minkowski Institute Press, 2012. Disponível em: <http:// www.minkowskiinstitute.org/mip/MinkowskiFreemiumMIP2012.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2018. MORSON, G. S. O cronotopo da humanicidade: Bakhtin e Dostoiévski. In: BEMONG, N. et alii (Org.). Bakhtin e o cronotopo: reflexões, aplicações, perspectivas. São Paulo: Parábola, 2015. 118-140. MURAKAMI, H. 1Q84 (Livro 3). Trad. do japonês Lica Hashimoto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. SOBRAL, A. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 123-150.