ISSN
Impresso: 0104-0588
On-line: 2237-2083
V.27 - Nº 3
Rev. Estudos da Linguagem
Belo Horizonte v. 27 n. 3 p. 1125-1570
jul./set. 2019
REvista dE Estudos da liNguagEm
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REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG,
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Histórico:
1992 ano 1, n.1 (jul/dez)
1993 ano 2, n.2 (jan/jun)
1994 Publicação interrompida
1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez)
1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp.
1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun)
Nova Numeração:
1997 v.6, n.2 (jul/dez)
1998 v.7, n.1 (jan/jun)
1998 v.7, n.2 (jul/dez)
1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed.
CDD: 401.05
ISSN:
Impresso: 0104-0588
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Laurent Filliettaz (Université de Genève, Genebra, Suiça)
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Sumário / Contents
Relação foto-poesia em fotolivros de literatura: uma análise
do Quarenta clics em Curitiba
Photo-poetry relation in photobooks of literature: an analysis
of the Quarenta clics em Curitiba
Ana Luiza Fernandes
João Queiroz .....................................................................................
1337
Implicaturas de futuridade em usos de querer + infinitivo em PB:
interpretação temporal do ato de fala a partir do aspecto
e da modalidade
Futurity implicatures in the uses of the verbal periphrasis querer +
infinitive in Brazilian Portuguese: Temporal Interpretation of
Speech Acts Stemming from Aspect and Modality
Valéria Cunha dos Santos ..................................................................
1167
Os sentidos deônticos na peça teatral The Glass Ménagerie
Deontic meanings in the play The Glass Ménagerie
Maria Fabiola Vasconcelos Lopes .....................................................
1195
Perfilação sistêmica da Popularização da Ciência baseada
na argumentação axial
Systemic functional profiles of Popularization of Science based
on axial argumentation
Aline Barreto Costa Braga ................................................................
1233
Valoração e variações semânticas em estágios narrativos de Eveline,
de James Joyce: um estudo de reinstanciações
Appraisal and semantic variation in narrative stages of Eveline,
by James Joyce: a study of re-instantiations
Natalia Cristofaro ..............................................................................
1259
Remarks on the Arabic complementizer 'inna
Observações sobre o complementizador 'inna em árabe
Mansour Alotaibi ..............................................................................
1295
O estudo do futuro perifrástico e do futuro sintético com verbos
hipotéticos no português brasileiro
The study of the periphrastic future and the synthetic future
tenses with hypothetical verbs in Brazilian Portuguese
Aline Peixoto Gravina
Eduardo Henrique Brizola ................................................................
1313
Rastros do discurso: poder e interdição na decisão de um ministro
do Supremo Tribunal Federal
Remarks of the speech: power and interdiction in the decision
of a minister of the Supreme Federal Court
Rafael Venancio ................................................................................
1345
Análise de verbalizações de fórmulas matemáticas por professores
com experiência no ensino de pessoas com deficiência visual
Analysis of mathematical formulas verbalizations by teachers with
experience in teaching visually impaired people
Mirella Alves de Lima
Daniela Rodrigues
Patricia Vasconcelos Almeida
Paula Christina Figueira Cardoso
André Pimenta Freire ........................................................................
1371
El punto y coma y los dos puntos: estudio de las ediciones de la
Ortografía de La Real Academía Española de 1741, 1844 y 2010
The semicolon and the colon: historiographical study of the
editions of the Orthography of the Royal Spanish Academy of 1741,
1844 and 2010
Susana Ridao Rodrigo .......................................................................
1399
O papel dos marcadores prosódicos na fluência de leitura
The role of prosodic markers in reading fluency
Alcione de Jesus Santos
Vera Pacheco
Marian dos Santos Oliveira ...............................................................
1417
Ocorrências de discurso reportado: relações entre produto e processo
em contos etiológicos inventados por uma díade recém-alfabetizada
Reported speech occurrences: relations between product and process
in etiological tales invented by a newly literate dyad
Lidiane Evangelista Lira
Eduardo Calil ....................................................................................
1459
Um estudo sobre o licenciamento e a interpretação de ‘pouco’
em português do Brasil (PB)
A survey on the licensing and the readings of “pouco” in Brazilian
Portuguese (BP)
Ana Paula Quadros Gomes
Juliana dos Santos Delduque ............................................................
1489
Uma perspectiva etiológica sobre a função natural da Faculdade
da Linguagem
An etiological perspective on the natural function of the Faculty
of Language
Francisco Iokleyton de Araujo Matos ...............................................
1531
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
Relação foto-poesia em fotolivros de literatura:
uma análise do Quarenta clics em Curitiba
Photo-poetry relation in photobooks of literature:
an analysis of the Quarenta clics em Curitiba
Ana Luiza Fernandes
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro / Brasil
analuizadagama@gmail.com
João Queiroz
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil
queirozj@gmail.com
Resumo: Como descrever as relações entre foto e poesia em casos de intermidialidade
observados em fotolivros de literatura? No fotolivro de literatura, o signo verbal parece
estar vinculado à imagem fotográfica em uma interação bidirecional, criando um
sistema acoplado que pode ser visto como um novo sistema. Influências mutuamente
modulatórias e contínuas vinculam texto e fotografia. Mas é preciso definir a natureza
de tais influências. De que tipo de interação estamos tratando? Neste artigo, propomos
um modelo para descrever a relação “foto-poesia” derivado da teoria do signo de C.
S. Peirce e apresentamos alguns resultados preliminares de análise do Quarenta Clics
em Curitiba ([1976] 1990), um fotolivro de Paulo Leminski e Jack Pires. Em termos
sumários, caracterizamos a relação foto-poesia no fotolivro de Leminski e Pires no
interior da teoria de Peirce. A relação é decomposta entre os papéis funcionais ocupados
pelo signo (poema) e pelo objeto (fotografia). A irredutibilidade triádica que caracteriza
a semiose, segundo Peirce, é a principal propriedade aplicada à relação foto-poesia no
fotolivro Quarenta Clics em Curitiba.
Palavras-chave: fotolivro de literatura; Quarenta Clics em Curitiba; intermidialidade;
C. S. Peirce.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1137-1166
1138
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
Abstract: How to describe “photo-poetry” relationship in cases of intermediality
observed in photobooks of literature? In photobooks of literature, the verbal sign
seems to be linked to the photographic image in a bidirectional interaction, creating a
coupled system that can be seen as a new system. Mutually modulatory and continuous
influences link verbal text and photography. But the nature of such influences should
be defined. What kind of interaction are we dealing with? In this article, we propose a
model to describe the relationship “photo-poetry” derived from C. S. Peirce’s theory of
the sign and we present some preliminary results of analysis of the Quarenta Clics em
Curitiba ([1976] 1990), by Paulo Leminski and Jack Pires. Our main focus is not the
work itself, but the methodology used to describe the relationship between the coupled
systems. Summarizing, we characterize photo-poetry relationship in the book of Leminski
and Pires within Peirce’s theory. This relation is decomposed between the functional
roles occupied by sign (poem) and object (photograph). The triadic irreducibility that
characterizes semiosis, according to Peirce, is the main property applied to the relation
photo-poetry in the photobook Quarenta Clics em Curitiba.
Keywords: photobooks of literature, Quarenta Clics em Curitiba; intermediality; C.
S. Peirce.
Recebido em 09 de agosto de 2018
Aceito em 21 de novembro de 2018
1 Quarenta Clics em Curitiba
Quarenta fotos em preto e branco de Jack Pires são combinadas
a quarenta poemas de Paulo Leminski, dispostas em pranchas1 soltas
de dimensões idênticas. Essa é a composição de Quarenta Clics em
Curitiba,2 considerado um dos mais surpreendentes fotolivros da história
da literatura brasileira, um experimento intermidiático e colaborativo
sem precedentes. Mais do que uma compilação de imagens fotográficas
e poemas breves, sua organização é caracterizada pela combinação de
diversos sistemas semióticos. O texto verbal, o design gráfico, a tipografia,
a distribuição sintática-visual de todos os componentes impressos, tudo
1
O termo “prancha” aparece no texto de apresentação da obra, Quarenta Clics em
Curitiba, escrito pelo editor Garcez Mello.
2
Este fotolivro teve duas edições. A primeira, de 1976, teve uma tiragem de trezentos
exemplares. A segunda, publicada em 1990, teve uma tiragem de três mil exemplares,
segundo o editor Garcez Mello.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1139
é decisivo na concepção do fotolivro. Sua estrutura sem vinco e sem
numeração impede o leitor de qualquer tentativa de ordenação da leitura,
ou de sequências capazes de sugerir qualquer forma linear de narrativa.
Suas pranchas, tomadas conjuntamente, iconizam o deslocamento
descentralizado pelas ruas da capital paranaense. O fotolivro é um ícone
da procrastinação por Curitiba, ou o que pode ser interpretado como um
deslocamento por acontecimentos triviais da cidade. Mas nossa principal
questão aqui é como fotografia e poesia estão relacionadas no fotolivro.
O que significa afirmar que quarenta fotos em preto e branco de Pires
são combinadas a quarenta poemas de Leminski?
FIGURA 1 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics em Curitiba
(LEMINSKI; PIRES, [1976] 1990) Haicai: Ruas cheias de gente / Seis horas /
Comida quente / Caçarolas.
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990
Ruas cheias de gente.
Seis horas.
Comida quente.
Caçarolas.
Quarenta Clics é um fenômeno semiótico em que ao menos
dois sistemas de signos, poesia verbal e fotografia, são interpretados
1140
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
como estando combinados, um fenômeno que poderíamos chamar
de “acoplamento”. Isto significa que poesia verbal e fotografia são
interpretados, prancha a prancha, como estando em uma relação de
“complementariedade”, ao ponto de não poderem ser abordados como
independentes. É claro que os termos “combinação”, “acoplamento”,
“complementariedade”, devem estar comprometidos com teorias e
modelos, caso contrário são apenas metáforas epistêmicas mais ou menos
interessantes. Nós submetemos as noções de combinação e acoplamento à
regulação de um modelo teórico. Em nossa abordagem, o modelo triádico
peirceano3 de semiose (ação do signo) fornece uma estrutura para descrição
dos sistemas combinados no fotolivro. A propriedade de “acoplamento”
entre foto e poesia resulta da relação irredutivelmente triádica observada
entre foto, poesia e interpretante, ou o efeito em um intérprete. A relação
é irredutivelmente triádica, porque não pode ser decomposta em estruturas
mais simples, e é interpretante-dependente, porque não pode ser concebida
sem um intérprete. Por décadas, tentativas em diferentes áreas (Literatura
Comparada, Estudos Interartes, Estudos de Intermidialidade) foram feitas
para definir e classificar o fenômeno de combinação entre sistemas e
mídias. Vamos rever rapidamente algumas delas.
2 Intermidialidade em Quarenta Clics
Intermidialidade é, segundo Clüver, “um termo relativamente
recente para um fenômeno que pode ser encontrado em todas as culturas
e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais
que chamamos de ‘arte’. Como conceito, ‘intermidialidade’ implica
todos os tipos de interrelação e interação entre mídias” (CLÜVER, 2007,
p. 9). Sumariamente, intermidialidade é um termo que define fenômenos
em que duas ou mais mídias/artes se relacionam, um termo “capaz de
designar qualquer fenômeno envolvendo mais de uma mídia” (WOLF,
1999, p. 40-41), portanto, toda relação entre mídias/artes (MOSER,
2006). É um fenômeno ubíquo, com grande variação morfológica, e
sobre o qual pesquisadores encontram aspectos ou atributos comuns.
A obra de Peirce é citada como CP (seguido pelo número do volume e parágrafo),
The Collected Papers of Charles S. Peirce; EP (seguido pelo número do volume e
página), The Essential Peirce; W (seguido pelo número do volume e página), Writings
of Charles S. Peirce; MS (seguido pelo número do manuscrito), Annotated Catalogue
of the Papers Of Charles S. Peirce.
3
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1141
Independente das várias tradições de pesquisa apresentarem
diferenças importantes quando submetidas a um olhar mais
atento, parece existir um (certo) consenso, entre os estudiosos,
com relação à definição de intermidialidade em um sentido amplo.
Em termos gerais, e segundo tal consenso, intermidialidade é,
em primeiro lugar, um termo flexível e genérico. (RAJEWSKY,
2012, p. 52).
De acordo com Müller (2012), baseado na compilação elaborada
por Helbig4 (1998), os estudos de intermidialidade incluem ao menos três
formas possíveis de relação: relações entre mídias em geral (denominadas
relações intermidiáticas), transposições de uma mídia para outra
(transposições intermidiáticas ou intersemióticas) e união (ou fusão) de
mídias. Rajewsky (2005, p.51), baseada nesta classificação, propõe outra
lista de categorias: combinação de mídias, referências intermidiáticas e
transposição midiática (RAJEWSKY, 2012, p. 48-49) (Tabela 1).
TABELA 1 – Categorias intermidiáticas e características distintivas
(RAJEWSKY, 2012, p. 48-49)
Categorias
Combinação
de mídias
Características
Determinada pela “constelação midiática”; resultado ou próprio processo
de combinação de ao menos duas mídias convencionalmente distintas ou
formas midiáticas de articulação.
O produto midiático usa os meios específicos, tanto para se referir a um
trabalho individual produzido em outra mídia, quanto para se referir a uma
sub-mídia específica. Ao invés de combinar diferentes mídias, o produto
Referências
midiático tematiza, evoca ou imita elementos ou estruturas de outra mídia,
intermidiáticas
convencionalmente distinta através do uso de seus próprios meios (mídiaespecíficos). Nesta categoria há somente a possibilidade de imitação e
evocação.
Ttransposição
midiátivca
4
Processo “genético” de transformação de um texto composto em uma
mídia em outra mídia, de acordo com as possibilidades materiais e as
convenções dessa nova mídia.
Obra organizada por Helbig: Intermidialidade: teoria e prática de uma área de estudos
interdisciplinares. Título original em alemão, Intermedialität: Theorie und Praxis eines
interdisziplinären Forschungsgebiets.
1142
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
Segundo tais definições (Tabela 1), o fotolivro que examinamos,
de Leminski e Pires, pode ser classificado como um caso de (i)
combinação de mídias, porque é resultado da combinação de ao menos
duas mídias convencionalmente distintas, poesia verbal e fotografia. Ele
não pode ser classificado como um caso de (ii) transposição midiática,
já que o processo não é de “transformação” de uma mídia em outra,
nem de (iii) referência intermidiática, porque o fotolivro não evoca ou
imita elementos de outra mídia. Ele submete-se somente à categoria
combinação de mídias que, nas análises de Clüver (CLÜVER, 2006, p.
19-20), recebe três subtipos classificatórios (Tabela 2).
TABELA 2 – Combinação de Mídias e subtipos (CLÜVER, 2006, p. 19-20)
Subtipos de Combinação
de Mídias
Características
Multimídias
Sistemas separáveis e separadamente coerentes compostos em
diferentes mídias.
Mixmídias
Signos complexos em mídias diferentes que não alcançariam
coerência ou auto-suficiência fora daquele contexto.
Intermídias /
Intersemióticos
Dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de forma tal
que os aspectos visuais e/ou verbais, musicais, cinéticos
e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e
indissociáveis.
Quarenta Clics, de acordo com a categorização em subtipos
proposta por Clüver, satisfaz duas das três classes de configurações.
Porque há ao menos duas mídias relacionadas, o fotolivro pode ser
caracterizado como um caso de (i) multimídia, já que poesia verbal e
fotografia são “coerentes”5 quando interpretados isoladamente, e (ii)
mixmídia, porque as mídias perdem “coerência” quando interpretadas
separadamente. Ele não pode ser considerado um caso de (iii) intermídia,
uma vez que foto e poesia verbal são mídias distintas que podem ser
abordadas separadamente.
5
O leitor deve atentar para um problema metodológico que não vamos enfrentar
diretamente neste trabalho - definição de “coerência” da interpretação. Para acessar
uma discussão mais extensa sobre este problema, ver Clüver (2006, 2011).
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1143
Essas categorias permitem descrever e classificar a variada
morfologia observada, estabelecendo comparações entre fenômenos
distintos e correlatos. Mas elas não respondem a uma questão fundamental:
como explicar a relação entre sistemas reconhecidos como distintos? A
proliferação de termos, modelos e métodos é notável. Para Rajewsky, o
“debate sobre intermidialidade caracteriza-se pelo uso de uma grande
variedade de abordagens, abarcando uma extensa rede de temas e
perspectivas analíticas” (RAJEWSKY, 2012, p. 51). Vamos tratar do
problema da relação entre foto e poesia, em fotolivros de literatura, no
interior da teoria do signo de Peirce, de acordo com a principal propriedade
que caracteriza seu modelo da semiose – a irredutibilidade triádica da
relação signo-objeto-interpretante. Há, por trás desta ideia, uma importante
suposição – termos como “interação”, “inter-relação”, “combinação”,
“fusão”, “acoplamento”, entre outros, devem estar submetidos à regulação
de um modelo, ou de uma teoria. É quase certo que a “extensa rede de
temas e perspectivas analíticas”, a que se refere Rajewsky (acima), não
tenha se dedicado a isso. Para Elleström (2010, p. 13), as noções de
intermidialidade e multimodalidade são raramente relacionadas umas às
outras e “raramente existem referências cruzadas entre os dois campos
de pesquisa de estudos intermidiáticos e multimodais. Além disso, está
longe de ser claro como os termos intermedial, multimodal, intermodal e
multimedial estão relacionados”. Só uma abordagem metateórica é capaz
disso. Mas nosso propósito aqui é mais modesto. Usamos algumas noções
fundamentais da semiótica de Peirce para definir com certa precisão as
noções de “combinação”, “acoplamento”, e derivados.
3 Relação poesia-fotografia: modelo triádico de Peirce
Peirce definiu a semiótica como uma espécie de lógica, uma
ciência da natureza essencial e fundamental de todas as variedades
concebíveis de processos semióticos (semiosis) (FARIAS; QUEIROZ,
2017; ATKIN, 2016, 2006; QUEIROZ, 2004). A semiótica fornece (i)
um modelo geral da semiose (FISCH, 1986, p. 321) e (ii) uma lista de
variedades fundamentais de signos baseada em uma teoria de categorias
lógicas (FREADMAN, 2001). Para Peirce, a semiose (“ação do signo”) é
um fenômeno irredutivelmente triádico (relação indecomponível de três
termos) que relaciona um signo (S) a seu objeto (O), para um interpretante
(I), ou o efeito em um intérprete – o signo “é determinado pelo objeto
1144
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relativamente ao interpretante, e determina o interpretante em referência
ao objeto, de tal modo a produzir o interpretante a ser determinado pelo
objeto através da mediação do signo” (MS 318, p. 81; CP 5.484, EP2,
p. 171). Com frequência, Peirce usa as noções de “determinação” e
“especialização” para definir a relação entre os termos da tríade, S-O-I.
Segundo Ransdell (1983, p. 23), “para Peirce, esta palavra [determinação]
carrega, de uma só vez, um sentido causal e um lógico, correspondendo
a uma diferença complementar entre observar a ‘representação’
formalmente, como uma relação, e observá-la dinamicamente, como
um ato ou processo de tal ato”. Sobre a propriedade de irredutibilidade
triádica: “por semiose, eu quero dizer [...] uma ação, ou influência, que
é, ou envolve, a cooperação de três sujeitos, tais como um signo, seu
objeto, e seu interpretante, esta influência tri-relativa não podendo, de
modo algum, ser resolvida em termos de ações entre pares” (CP 5.484).6
Na figura abaixo (Figura 2), vemos o esquema gráfico simplificado da
relação irredutível S-O-I, signo-objeto-interpretante:
FIGURA 2 – Esquema gráfico da relação irredutivelmente triádica
signo-objeto-interpretante (S-O-I).
S
O
6
I
A demonstração de que S-O-I constitui uma relação indecomponível foi primeiro
conduzida logicamente (cf. HOUSER, 1997, p.16). A razão da precedência de um
tratamento formal de relações sobre um tratamento empírico, e semiótico, reside no fato
de que só formalmente pode-se conduzir uma análise das propriedades de completude e
suficiência das categorias (PARKER, 1998, p.43). Apenas ulteriormente a propriedade
de irredutibilidade lógica pode ser verificada em um domínio dos signos.
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Notem que trata-se de uma tríade, não de um triângulo. Esta
diferença é relevante uma vez que na tríade os três termos estão
irredutivelmente relacionados, enquanto num triângulo dois vértices
estão ligados independentemente do terceiro (MERRELL, 1997). Um
signo também é definido por Peirce como
um Meio para a comunicação de uma Forma. Como um meio,
o signo está essencialmente em uma relação triádica, com seu
objeto que o determina, e com seu interpretante que ele determina.
[…] Aquilo que é comunicado do objeto através do signo para o
interpretante é uma Forma; significa dizer, não é nada como um
existente, mas é um poder, o fato de que alguma coisa aconteceria
sob certas condições (EP2, p. 544, n. 22).
“Forma” tem a natureza de um “predicado” (EP 2.544), de um
“hábito”, ou de uma “proposição condicional” afirmando que certas coisas
aconteceriam, ou deveriam acontecer, sob certas circunstâncias (EP 2.388;
ATÃ; QUEIROZ, 2016). Há, nessa tese, uma importante pressuposição
metafísica, embora ela seja formalmente independente de qualquer tese
metafísica: realidade das tendências e disposições. A Forma comunicada
do objeto para o intérprete através do signo não é uma “coisa”, mas uma
“regra de ação” (CP 5.397; CP 2.643), uma “disposição” (CP 5.495; CP
2.170), ou um “potencial real” (EP 2.388).
Outra consequência da noção de semiose (ação do signo) como um
“hábito” comunicado do objeto para o interpretante através da mediação
do signo é que ela nos permite conceber “significado”, “significação”,
em uma moldura processista, ou processualista, não-substancialista
(QUEIROZ; EL-HANI, 2006). Outra importante propriedade é que
S, O e I não são definidos por quaisquer atributos intrínsecos. Suas
ontologias dependem dos papéis funcionais que ocupam na tríade. Se a
ação do signo é um processo triádico-dependente, no sentido de conectar
irredutivelmente S, O, e I, o papel funcional de S só pode ser identificado
numa relação de mediação que estabelece entre O e I. E não podemos
inferir os papéis de S, O e I de quaisquer relações diádicas (S-I, S-O,
ou I-O).
Nosso argumento aqui pode ser assim sumarizado: qualquer
descrição ou explicação sobre as relações entre poesia verbal e fotografia,
no fotolivro, deve basear-se neste modelo (S-O-I), e nas classes
fundamentais de signos (ícone, índice, símbolo), e suas subdivisões.
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O modelo e as classes são usados para descrever a natureza da relação
irredutível foto-poesia e seus efeitos (interpretantes). Para analisar
o fotolivro, “fixamos” algumas relações e estabelecemos certas
correspondências entre seus correlatos, que são os termos relacionais. O
poema (P) de Paulo Leminski é o signo (S na tríade S-O-I) da fotografia
(F) de Jack Pires, que é seu objeto (O na tríade S-O-I). Abaixo, o
modelo gráfico das relações e o esquema S-O-I através das substituições
funcionais (Figuras 3 e 4).
FIGURA 3 – Esquema S-O-I no qual S (signo) equivale ao poema, O (objeto) à
fotografia e I ao interpretante, ou efeito interpretativo
poema
S
O
foto
I
efeito
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FIGURA 4 – Esquema das substituições funcionais: O poema (S) “está para” a foto
(O na tríade S-O-I) de modo a produzir um efeito no intérprete, ou interpretante (I)
Mais detalhadamente, a relação S-O-I, aplicada aos componentes
observados (poema-foto-interpretante), é analiticamente arbitrária. O
“hábito”, ou regra de ação, comunicado da foto, que é o objeto na tríade
S-O-I, para o intérprete, através do poema, que é o signo na tríade S-O-I,
assegura a irredutibilidade triádica da relação. A principal questão, neste
ponto da análise, é o que (e como) é comunicado do objeto, através
do poema, para o intérprete. Para explicar a variedade morfológica de
relações S-O da relação S-O-I, Peirce sugeriu uma divisão bastante
conhecida – ícones (signos de analogia), índices (signos de reação) e
símbolos (signos convencionais). Eles, aproximadamente, correspondem
a relações de similaridade, de contigüidade física e de lei que podem
ser estabelecidas entre um signo e seu objeto. Como foto e poema estão
irredutivelmente relacionados através dessa divisão?
4 Ícones (e hipoícones), índices e símbolos
Ícones são signos que estão para seus objetos através de alguma
similaridade (CP 2.276), sem consideração por qualquer conexão espaçotemporal que possam ter com objetos existentes (CP 2.299; RANSDELL,
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1986; ATÃ; QUEIROZ, 2013). Na definição de Peirce, “um ícone é um
signo que se refere ao objeto que denota meramente por virtude de seus
próprios caracteres, que ele possui, seu objeto realmente exista ou não”
(CP 2.247). Em termos esquemáticos, se S é signo de O em virtude de
uma qualidade que S e O compartilham (CP 2.248), então S é ícone de O.
Se S é ícone de O, ele é uma qualidade que é um signo de O (CP 2.276).
S e O constituem, nesse caso, uma identidade em algum aspecto. Muitos
exemplos são mencionados por Peirce – imagens, diagramas e grafos,
metáforas, analogias (ver CP 2.279, CP 4.513, EP 2, p. 306).
A subdivisão dos ícones7 particularmente nos interessa. Em
1903, Peirce fez uma importante distinção entre ícones puros, e
signos icônicos, ou hipoícones, e introduziu uma divisão em imagens,
diagramas e metáforas (JAPPY, 2014; FARIAS; QUEIROZ, 2006). No
primeiro caso, são relacionadas “qualidades superficiais”, de modo que
representam qualidades simples, por exemplo, certa propriedade de
reflectância visual dos materiais observados, ou uma certa tensão de
superfície observada em certos materiais. Uma qualidade superficial
ou simples pode ser definida “como algo que pode ser observado como
uma unidade” (SAVAN, 1987-1988, p. 11), sem partes constituintes.
Uma imagem é um ícone que está diretamente relacionado ao material
de que é feito seu objeto. Se aquilo que é comunicado do objeto para o
interpretante é uma propriedade superficial compartilhada entre signo
e objeto, estamos observando uma imagem. As imagens são qualidades
indecomponíveis compartilhadas por S e O, para I.
O segundo caso está relacionado a operações com “diagramas”.
Diagramas são a principal forma de representar relações (JOHANSEN,
1993). O diagrama representa, através das relações entre suas partes, as
relações que constituem as partes relacionadas do objeto que o signo
representa. O objeto do diagrama, portanto, é sempre uma relação. As
partes relacionadas do diagrama representam as relações que constituem
o objeto representado. Diferente da imagem que relaciona qualidades, o
diagrama é um arranjo de partes relacionadas, e seu objeto só pode ser
uma relação análoga. Em resumo, um diagrama comunica uma relação,
ou uma estrutura relacional. Se as relações que observamos no signo são
análogas àquelas observadas nos objetos, interpretamos um diagrama.
7
Para uma caracterização detalhada do ícone, ver Ransdell (1997).
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No terceiro caso, os signos representam relações entre efeitos
interpretativos. São análogos os efeitos produzidos por dois ou mais
signos ou representações relacionados (CP 2.277). Diferente dos
diagramas e das imagens, nas metáforas as relações de analogia são
exercidas entre os efeitos interpretativos. As metáforas comunicam uma
comparação indireta, que são efeitos interpretativos análogos. Diferente
do diagrama, que é uma abstração das relações entre as partes do objeto
representado, em termos estruturais, uma metáfora é uma comparação
com outra coisa, que deve ser seu efeito interpretativo. Se um signo é um
diagrama porque seu objeto é análogo ao seu arranjo estrutural (relações
parte-parte, parte-todo), um signo é uma metáfora porque seu objeto é
análogo aos efeitos interpretativos produzidos por ele.
Além das relações icônicas, o signo (S) pode relacionar-se com
seu objeto (O) em razão de “conexão física direta”, que é um índice (CP
1.372). Nesse caso, S é realmente determinado por O de tal modo que
ambos devem existir como eventos. A noção de co-variação espaçotemporal é a propriedade mais mencionada dos processos indexicais.
Finalmente, S pode ser um símbolo de O, através de normas, regras, ou
convenções. O símbolo é um signo que está relacionado ao seu objeto
em virtude de uma lei. Símbolos são capazes de representar “coisas”
que não precisam existir de fato, ou que existem mas que não estão
perceptualmente manifestas, que jamais existiram, ou, ainda, entidades
que não podem sequer ser intuitivamente concebidas (“estranhos” objetos
das lógicas não-clássicas, criaturas imaginárias, etc). Um símbolo é “um
signo que é constituído meramente, ou principalmente, pelo fato de que
é usado ou entendido como tal, seja natural ou convencional o hábito,
e sem observar os motivos que originalmente governaram sua seleção”
(CP 2.307).
5 Irredutibilidade triádica das relações foto-poesia
Em nosso argumento, tais classes podem ser consideradas
necessárias e suficientes para descrever as relações entre foto e poesia,
no fotolivro de literatura. Mas é importante notar que há outras relações
além daquela representada na tríade que chamamos de “principal”
(poema-foto-interpretante, P-F-I). São relações que possuem objetos
que não estão nas pranchas do Quarenta Clics. Destacamos duas dessas
relações. O poema e a foto são signos de objetos “externos”, ou signos
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que possuem objetos que não estão na prancha – OP (objeto externo do
poema) e OF (objeto externo da foto). O poema, que é signo na tríade
principal P-F-I, é signo de outra tríade, P-OP-I. Ele comporta-se, desse
modo, como signo em duas relações triádicas distintas – na primeira
em que está relacionado com a fotografia que aparece na prancha do
fotolivro (P-F-I); e na segunda, em que é também um signo, e possui
um objeto que encontra-se fora da prancha, seu objeto externo (P-OP-I).
Da mesma forma, a fotografia, que comporta-se como objeto na tríade
principal P-F-I, em outra relação, é signo desta tríade, F-OF-I. Abaixo,
na Figura 5, representamos estas três relações e destacamos os objetos
externos do poema e da foto. As três relações triádicas representadas são:
a central (P-F-I), que chamamos de principal, relaciona o poema (P), a
foto (F) e o intérprete (I). A tríade inferior (F-OF-I), relaciona a foto (F),
que é o objeto da tríade principal, com outro objeto (OF) “externo” à
prancha (canto inferior esquerdo na figura). A tríade superior (P-OP-I)
relaciona o poema (P), que é o signo da tríade principal, com outro
objeto (OP) “externo” à prancha (canto superior esquerdo na figura). A
foto comporta-se como objeto e signo de relações distintas; e o poema
comporta-se como signo de duas relações distintas.
FIGURA 5 – Três relações triádicas
Há, além da relação entre os objetos externos de poema e foto
(OP e OF), outras duas importantes relações: (i) a relação entre poema
e fotografia (signo e objeto da tríade principal, P e F) (Figura 6), (ii) e a
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relação entre o poema e o objeto da foto (signo da tríade principal com
o objeto externo da tríade inferior, P e OF) (Figura 7).
FIGURA 6 – Relação P-F: relação do poema (signo da tríade P-F-I),
com a foto (objeto da tríade P-F-I).
Na relação descrita acima (Figura 6), destacam-se dois
componentes, poema e foto, e a relação entre o poema (signo P) e a
foto (objeto F). Abaixo (Figura 7), destaca-se a relação entre o poema,
impresso na prancha, e o objeto da fotografia (OF), fora dela. Neste caso,
observa-se um componente destacado da prancha, poema (P), e outro
componente externo à prancha, que é a própria cena real fotografada.
1152
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FIGURA 7 – Relação P-OF: relação do poema (signo da tríade P-F-I) com o objeto
“externo” da fotografia (objeto da tríade F-OF-I).
Se o poema é signo da foto porque possui propriedades estruturais
análogas àquelas observadas na foto, então o poema (S) é um diagrama
da foto (O). Neste caso, o poema comunica para o intérprete propriedades
estruturais observadas na foto. Tais propriedades, compartilhadas entre
foto (O) e poema (S), podem incluir diversas formas de paralelismos
formais (e.g. padrões rítmicos, rimas, paralelismos sintáticos visuais e
verbais).
No fotolivro, o objeto “externo” do poema (signo da tríade P-F-I)
e o objeto “externo” da foto (objeto da tríade P-F-I) podem ser o “mesmo”
objeto. Dizemos que os objetos externos OP e OF são “coincidentes”,
como aparece em diversas pranchas analisadas do Quarenta Clics
(Figuras 8, 9, 10 e 11). Nestes casos, os objetos externos (OP e OF)
coincidem, sem “compartilhamento” das propriedades qualitativas entre
poema e foto. Ambos, poema (signo da tríade principal) e foto (objeto
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da tríade principal), “estão para” (representam, designam, indicam) o
“mesmo” objeto externo, ou classe de objetos externos (sombras, frutas,
tempo, etc) (Figuras 8 e 11). Nesses casos, o poema comporta-se como
índice da foto, para o intérprete.
FIGURA 8 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI,
PIRES, [1976] 1990) Haicai: isso aqui / acaso / é lugar / para jogar sombras?
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990
isso aqui
acaso
é lugar
para jogar sombras?
Na prancha acima (Figura 8), o poema (signo da foto na tríade
principal) “isso aqui / acaso / é lugar / para jogar sombras?” possui um
objeto externo (OP), fora da prancha, pertencente a outra relação triádica
(P-OP-I). É um truísmo afirmar que esse objeto, externo, pode ser descrito
como um movimento de sombras. A fotografia, que é o objeto do signo
(poema) na tríade principal, também possui um objeto externo (OF), fora
da prancha, que inclui movimento de sombras, e que pode ser comparado
ao objeto externo do poema (OP). A relação entre OP e OF baseia-se
numa coincidência de atributos referenciais.
1154
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
Também há, nessa prancha (Figura 8), uma relação de natureza
indexical, entre OP e F. O poema pode ser interpretado como uma questão
(acaso / é lugar / para jogar sombras?) sobre as propriedades estruturais
da fotografia. O objeto do poema são as qualidades observadas na foto.
O objeto do último verso do poema são as propriedades da foto. Um
“jogo de sombras” real, capturado num instante fotográfico, comunica
uma “regularidade” para o intérprete através do poema, seu signo na
prancha. Um “jogo de sombras” existente é indexicalmente representado
por F, que transmite este “hábito”, através do poema, para o intérprete.
Sobre a relação entre poema (signo) e foto (objeto), há uma relação de
similaridade estrutural (P-F), uma vez que ambos, P (signo) e F (objeto),
estão ritmicamente organizados de acordo com um sutil balanço de
correspondências estruturais, sintáticas, no caso da foto, de relações
entre luz e sombras. O poema possui um paralelismo8 rítmico-sonoro
observado na rima “/é lugar/ /para jogar/” na terceira e quarta linhas. Há
presença de outros paralelismos – fracos ou aproximados – em “/isso/ /
sombras/” e “/aqui/ /acaso/”. O poema (signo) é um ícone relacional, um
diagrama, da foto (objeto) através de correspondências rítmicas e sonoras.
8
Não é propósito deste trabalho detalhar cada figura de linguagem utilizada por
Leminski em seus haicais. Contudo, notamos a constante presença de paralelismos
(semântico e sintático), além de aliterações, assonâncias e paranomásias. Paralelismo é
o nome dado à organização de ideias e expressões de estrutura idêntica. Há dois tipos:
sintático, relacionado aos termos de mesma estrutura sintática dentro de uma frase; e o
semântico, relacionado às ideias semelhantes dentro de uma frase. A aliteração consiste
na repetição de consoantes ou de sílabas – especialmente as sílabas tônicas – em duas
(ou mais) palavras, dentro do mesmo verso, estrofe, ou frase. A assonância é a repetição
de sons vocálicos, em sílabas tônicas de palavras distintas ou na mesma frase para obter
certos efeitos de estilo. Frequentemente, a assonância tem um efeito de rima quando
é usada para fazer corresponder vogais em versos finais. A paronomásia consiste na
aproximação de palavras semelhantes pelos sons, mas de sentidos diferentes, ou seja,
é o emprego de palavras parônimas.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1155
FIGURA 9 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI,
PIRES, [1976] 1990) Haicai: Amando, / aumenta / até duas mil vezes / o tamanho.
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990
amando
aumenta
até duas mil vezes
o tamanho.
Na prancha acima (Figura 9), o poema “Amando, / aumenta /
até duas mil vezes / o tamanho”, signo da tríade principal P-F-I, e signo
da outra tríade P-OP-I, possui um objeto externo (OP), algo que poderia
ser designado como “amor que aumenta o tamanho”. A fotografia,
objeto da tríade principal P-F-I, e signo da outra tríade F-OF-I, possui
um objeto externo (OF), um casal abraçado. O poema é um índice da
foto. O objeto externo da fotografia, destacado, é um casal de grandes
dimensões, abraçado, o objeto indexical do “amor que aumenta as pessoas
de tamanho” do poema. OP e OF coincidem em termos referenciais.
Sobre a relação P-F, trata-se de uma relação metafórica. A foto (objeto)
comunica para o intérprete um efeito interpretativo do signo (poema).
Os efeitos da foto são análogos aos efeitos produzidos pelo poema.
1156
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
FIGURA 10 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI,
PIRES, [1976] 1990) Haicai: 1• dia de aula / na sala de aula / eu e a sala
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990
1º dia de aula
na sala de aula
eu e a sala
Na prancha acima (Figura 10), o objeto externo do poema (OP)
é a experiência do primeiro dia de aula (“1• dia de aula / na sala de aula
/ eu e a sala”). O objeto externo da fotografia (OF) é um menino que
investiga coisas próximas às latas de lixo, um acontecimento trivial em
grandes centros urbanos. O poema é uma metáfora da fotografia, e a
rua é interpretada como um análogo do “primeiro dia de aula”. Resulta
que OP e OF tendem a ser observados como similares. A sala de aula do
poema “transforma-se” em rua, quando o leitor interpreta a foto, e o 1•
dia de aula, em iniciação da vida na rua.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
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Figura 11 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics
(LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: Frutas que só ficam /
Maduras depois de colhidas / Minhas velhas conhecidas
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990
Frutas que só ficam
Maduras depois de colhidas
Minhas velhas conhecidas
Na prancha da Figura 11 (acima), o objeto externo do poema
(OP) são frutas, ou seu amadurecimento (“Frutas que só ficam / Maduras
depois de colhidas / Minhas velhas conhecidas”). O objeto externo da
foto (OF) é uma mulher e um homem que escolhem frutas no chão.
É predominantemente indexical portanto a relação entre P e F, e uma
coincidência entre OP e OF. A foto, signo da tríade F-OF-I, é um índice
de OF, e objeto indexical do poema. P (signo) é índice de F (objeto). OF
está indexicalmente representada no segundo verso do haicai (“maduras
depois de colhidas”).
O que observamos como uma analogia entre poema (S) e foto (O)
pode ser uma analogia entre os objetos do poema (OP) e os objetos da foto
(OF). Em termos analíticos, há uma superposição entre diversos “níveis
de relação”. Esse parece ser um caso em que o poema é interpretado
1158
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
como um índice da fotografia. Isto acontece todas as vezes em que ele
“indica” ou “aponta” diretamente para a foto, através de seu objeto, ou
quando poema e foto são interpretados como estando “correlacionados”
espaço-temporalmente.
FIGURA 12 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI,
PIRES, [1976] 1990) Haicai: Amor, então / também, acaba? / Não, que eu saiba. / O
que eu sei / É que se transforma / Numa matéria-prima / Que a vida se encarrega / De
transformar em raiva. / Ou em rima.
Jack Pires
Paulo Leminski
1ª fornada – 1976
2ª formada – 1990.
Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
É que se transforma
Numa matéria-prima
Que a vida se encarrega
De transformar em raiva.
Ou em rima.
Na prancha acima (Figura 12), o objeto externo da fotografia (OF)
são casais de duas espécies, no primeiro e segundo planos, humanos e
psitacídeos. Sobre a relação P-F, o poema atua como uma metáfora da
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1159
foto. Há uma “rima visual” que pode ser considerada uma metáfora nesta
prancha, já que trata-se de uma correspondência entre os casais (humanos
e psitacídeos) e duas “rimas”, a primeira presente na estrutura do próprio
haicai (correspondências sonoras no haicai), e a segunda na palavra
“rima” do haicai (“de transformar em rima”). OP e OF são interpretados
como análogos, uma vez que o “amor”, em OP, está representado
metaforicamente em OF. A relação P-F é diagramática. A rima visual
(manchas gráficas dos dois casais na foto) são ícones relacionais das rimas
do haicai: “saiba/raiva” e “prima/rima”. São relações de similaridade
estrutural, entre P e F, ou, mais detalhadamente, entre as partes que
constituem P (correspondências sonoras no haicai: “saiba/raiva” e “prima/
rima”) e as partes de F (correspondências visuais na foto).
6 Sistemas irredutivelmente acoplados? O modelo triádico e
algumas implicações
Como estão irredutivelmente relacionados foto e poesia no
fotolivro analisado? Como descrever a indecomponível relação entre foto
e signo verbal em fotolivros de literatura? O próprio Leminski parece,
teórica e metodologicamente, atento ao problema:
Como pode haver tanta afinidade entre uma velha forma da poesia
japonesa e a mais jovem das artes? Os parentescos íntimos entre
o haicai e a fotografia me intrigam, desde que, por voltas de
1965, comecei a me interessar por essa estrutura poética mínima
que os japoneses praticam há, pelo menos, quatrocentos anos. A
certeza desse parentesco me levou a realizar o Quarenta Clics em
Curitiba, com fotos de Jack Pires, mais poemas breves, álbum
editado em 1976, em Curitiba, numa caixa com pranchas soltas,
uma foto, um haicai. Foram diversos os critérios de aproximação
entre foto e haicai: fiz haicais para algumas fotos já prontas,
mas, em muitos casos, casamos fotos e haicais que eu já tinha
prontos. Em alguns casos, Pires fez fotos para haicais anteriores
(LEMINSKI, 2012, p. 139).
Se quarenta fotografias “possuem afinidade” com quarenta
haicais, como descrever este fenômeno? Muitos autores se detiveram
neste problema. Para Barthes, “a forma de arte que permite conceber o
haikai = [é] a fotografia” (BARTHES, 2005, p. 144). Fontanari (2011,
p. 34), diante do noema barthesiano da fotografia, “isso foi” ou “isso
1160
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
existiu”, sugere uma similitude estrutural com o haicai – “A noção de
‘isso existiu’ da fotografia converge também com a linguagem poética
do haicai. É pura contingência”. O poeta haijin,9 para Fontanari (2011,
p. 32), “elabora em um golpe de linguagem o instante, transformando
uma experiência em linguagem poética. O fotógrafo captura um instante,
ou mesmo, uma experiência e os aprisionam em forma de imagem
fotográfica”. Trata-se de uma analogia entre os procedimentos de captura
e produção de dois sistemas semióticos, poesia e fotografia. Poemahaicai e fotografia resultam de processos tipicamente indexicais; são
dependentes, portanto, de correlações espaço-temporais com seus objetos.
No caso de fotolivros de literatura, o livro torna-se
um suporte específico cuja experiência perceptiva, estética, se
define pelo casamento estreito, poroso, entre fotografia e livro,
fotografia e texto, fotografia e design; ou seja, é uma imagética
fotográfica que se expande ou se hibridiza com as condições
plásticas que a diagramação especial e o design oferecem, assim
como a combinatória afinada de visualidade e textualidade
(NAVAS, 2017, p. 85-86).
O signo verbal parece estar vinculado à imagem fotográfica em
uma interação bidirecional, criando um sistema acoplado que pode ser
visto como um novo sistema. Influências mutuamente modulatórias
e contínuas vinculam texto e fotografia, para um intérprete. Mas é
preciso definir com alguma precisão a natureza de tais influências. De
que tipo de interação estamos tratando? Em nossa abordagem, a idéia
de “acoplamento” sugere que a foto ocupa uma posição funcional na
prancha, que é observada como objeto de um signo que é um poema,
para um interpretante, que pode ser uma co-relação espaço-temporal ou
uma analogia, e esta relação triádica não pode ser decomposta. Ela é
irredutivelmente triádica. Uma explicação sobre as relações poema-foto
baseia-se, aqui, na teoria e no modelo de Peirce sobre a ação do signo
(semiosis).
A semiose é descrita por Peirce como um padrão de relações de
determinação entre correlatos (S-O-I) especificados funcionalmente.
Como Savan (1987-1988, p. 43) afirma, “os termos interpretante, signo e
objeto são uma tríade cuja definição é circular. Cada um dos três é definido
9
Aquele que escreve haicais.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
1161
conforme os outros dois”. A única propriedade que especifica as naturezas
de S, O e I é a maneira como se posicionam, em seus papéis funcionais,
uns em relação aos outros, como primeiro, segundo e terceiro termos de
uma relação triádica. Seus papéis funcionais não podem ser identificados
a partir de estruturas mais simples. Por exemplo, o papel funcional de S
só pode ser identificado na “relação de mediação”, indecomponível, que
ocupa entre O e I. Similarmente, o papel funcional de O é identificado na
relação em que determina I por meio de S, e o papel de I é identificado
pela determinação de O por meio de S. Se consideramos apenas relações
diádicas, S-I, S-O, ou I-O, ou se consideramos os termos em isolamento,
não poderemos inferir o comportamento deles na relação triádica S-O-I
(EP 2: 391). De fato, a rigor nem poderíamos identificar o fenômeno como
semiótico. A irredutibilidade relacional deve ser entendida em termos da
não-dedutibilidade do comportamento dos elementos lógico-funcionais
da tríade (S-O-I), a partir de seus comportamentos em relações (diádicas
ou monádicas) mais simples.
Em nossa análise, quando o poema (signo) é determinado pela
foto (objeto) relativamente ao interpretante, determina o interpretante
relativamente à foto. Se a foto está em uma relação irredutivelmente
triádica com o poema, produz um efeito, uma analogia por exemplo, que
está para a foto através do poema. Quando compartilha certas qualidades
(superficiais ou estruturais) com a foto, o poema é um ícone da foto para
um interpretante que é uma analogia. Quando o poema é interpretado
como estando em uma co-relação direta com a foto, ele é um índice dela.
Nestes casos, os objetos externos do poema e da foto são interpretados
como coincidentes. Os limites entre os dois sistemas (foto e poesia) são
os limites reconhecíveis entre signo e objeto, em uma relação S-O-I.
Se uma estrutura da foto (O) é comunicada para o interpretante (I) por
meio do poema, então observamos uma relação diagramática entre
poema e foto. Neste caso, o interpretante deve ser uma analogia entre
estruturas. Se o poema (S) é uma metáfora da foto (O), é comunicada
uma analogia entre os efeitos (I) produzidos por S (poema) e por O (foto).
Neste caso, poema e foto são análogos porque são análogos seus efeitos
interpretativos. Em todos estes casos, a influência modulatória entre
poema e foto atua em uma relação triádica, cuja variedade morfológica
é exaurida por três classes fundamentais de relação S-O (ícone, índice,
símbolo) e subdivisões do ícone (imagem, diagrama, metáfora).
1162
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019
Esta abordagem permite: (i) precisar, no interior de uma teoria
robusta, diversas noções usadas para descrever as relações entre diferentes
sistemas de signos em fotolivros de literatura; tais noções usualmente se
distribuem num amplo escopo de termos mal definidos – combinação,
relação, associação, vinculação, influência, entre outros; (ii) classificar a
variada morfologia de relações concebíveis entre os sistemas combinados
ou acoplados (ícone, índice, símbolo; e subdivisões do ícone - imagem,
diagrama e metáfora); trata-se de uma lista exaustiva de classes de
relações concebíveis entre signo e objeto; (iii) explorar as propriedades de
irredutibilidade triádica que caracterizam a semiose no ambiente de análise
específico dos fotolivros de literatura – a indecomponibilidade relacional
entre os termos S-O-I é estendida para os sistemas combinados (poemafoto-intérprete). Uma decomposição analítica dos papéis exercidos pelos
correlatos (S-O-I, poema-foto-interpretante, respectivamente) é capaz
de informar-nos com precisão a estrutura das relações observadas no
fenômeno do “fotolivro de literatura”.
Agradecimentos
Ana Luiza Fernandes é doutoranda no Departamento de Letras, do
programa Literatura, Cultura e Contemporaneidade, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro,
Brasil. A autora agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) o apoio recebido.
João Queiroz é professor do Instituto de Artes e Design, UFJF. Ele é
membro da International Association for Cognitive Semiotics (IACS),
membro do Linnaeus University Centre for Intermedial and Multimodal
Studies, Vaxjo (Suécia), e pesquisador associado do Linguistics and
Language Practice Department, University of the Free State (África do
Sul). Site: www.semiotics.pro.br.
Contribuição dos autores
Os autores atuaram colaborativamente em todas as seções deste artigo.
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1163
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Implicaturas de futuridade em usos de querer + infinitivo
em PB: interpretação temporal do ato de fala a partir do
aspecto e da modalidade1
Futurity implicatures in the uses of the verbal periphrasis
querer + infinitive in Brazilian Portuguese:
temporal interpretation of speech acts stemming from
aspect and modality
Valéria Cunha dos Santos
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil
csvaleria91@gmail.com
Resumo: Com base em estudos sobre as categorias tempo, aspecto e modalidade
(PALMER, 1986; BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a;
SWEETSER, 2001), destacamos o processo de gramaticalização de marcadores de futuro
em línguas como inglês, dinamarquês e grego, envolvendo implicaturas (CHIERCHIA,
2003; LEVINSON, 2007) e atos de fala (SEARLE, 1995). Para compreender o uso
similar dessa marcação de tempo em português brasileiro (PB), observamos implicaturas
de futuridade a partir de usos em que o verbo de volição querer atua como auxiliar.
Avaliamos se as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam à
interpretação de futuro nas ocorrências em primeira pessoa acompanhadas de verbo
de volição ([eu/nós/a gente +] querer + verbo). A partir da análise das ocorrências,
sugerimos que está ocorrendo em PB o mesmo processo ocorrido em outras línguas:
marcas de volição tornam-se marcas de futuridade. Tendo como corpus o C-ORALBRASIL I (RASO; MELLO, 2012), composto por amostras de fala espontânea, com
diálogos, monólogos e conversações, destacamos os atos de fala compromissivos e
a atitude dos participantes da comunicação em relação às proposições, ressaltando
o contexto extralinguístico de cada registro. Nosso objetivo foi observar como esses
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1167-1194
1168
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usos funcionam na língua e, para isso, foram analisadas as 139 gravações do corpus,
que somam 759 usos do verbo querer. Desse número, nos detivemos à análise de 55
ocorrências do auxiliar em primeira pessoa que disparam implicatura de futuridade,
atuando como perífrase de futuro nesses casos.
Palavras-chave: gramaticalização; implicatura; futuro.
Abstract: Based on studies on the categories of tense, aspect and modality (PALMER,
1986; BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a; SWEETSER,
2001), we highlighted the grammaticalization process of future markers in some
languages. Such a process involves implicatures (CHIERCHIA, 2003; LEVINSON,
2007) and speech acts (SEARLE, 1995). To understand the similar use of that tense
marking in Brazilian Portuguese (PB), we observed the implicature of futurity from uses
in which the volition verb (querer) operates as an auxiliary. As a theoretical background,
we used previous studies on the grammaticalization of lexical items that denoted desire,
will and necessity and became future markers such as will in English. We evaluated
whether implicatures associated with the expression of intent or desire leads us to future
in sentences exhibiting the first person with a volition verb ([eu/nós/a gente +] querer
+ verb). Our hypothesis is that PB may be going through the same process occurred in
other languages: volition markers become marks of futurity. The corpus we used was
C-ORAL-BRASIL I (RASO; MELLO, 2012). Using this we highlighted the commissive
speech acts and the attitudes of communication participants in relation to propositions.
Our approach started from conversation analysis, emphasizing the extra-linguistic
context of each record. We analyzed 105 recordings in a private context and 34 in a
public one, all of which add up to a sum of 759 uses of the verb querer. Among those,
we highlighted 55 occurrences in which the item appears as a first person auxiliary
that gives rise to a futurity implicature, working, in such cases, as a future periphrasis.
Keywords: grammaticalization; implicature; future tense.
Recebido em 29 de setembro de 2018
Aceito em 02 de janeiro de 2019
1 Introdução
Com base em estudos de abordagem pancrônica sobre
gramaticalização, podemos compreender o desenvolvimento de auxiliares
e afixos utilizados como marcadores gramaticais de futuro a partir de
itens lexicais que inicialmente significavam desejo ou obrigatoriedade e
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019
1169
passaram a codificar marcação temporal, como é o caso do verbo auxiliar
will em inglês (GIVÓN, 2001a). A interpretação de temporalidade a
partir da expressão de modalidade nesse tipo de construção surge por
implicatura, inferência que é feita com base no conteúdo semântico
das proposições somado ao contexto conversacional. Podemos, então,
projetar a mesma situação ao português brasileiro (PB), uma vez que
fontes lexicais distintas tendem a convergir em vias de gramaticalização
(BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994).
Notamos, a partir de enunciados como “Até o fim do mês quero
renovar meu passaporte para viajar no ano que vem”, que, em PB, o
uso de querer como verbo auxiliar implica futuridade, funcionando,
portanto, não como uma marca de futuro, mas uma indicação. É preciso
considerar elementos contextuais, linguísticos (como as delimitações
temporais “até o fim do mês” e a ancoragem em outro evento referido na
sentença, “viajar no ano que vem”) e extralinguísticos (como informações
sobre a probabilidade da ocorrência do evento – a compra das passagens
para a viagem, por exemplo) para extrair essa leitura. A trajetória de
gramaticalização a partir da implicatura de desejo disparada pelo verbo
nos leva a crer que se uma ação é desejada pelo falante, de alguma forma
esse falante projeta a realização dessa ação no futuro. Assim, se o mesmo
ato de fala comporta a expressão de desejo e a indicação de futuro na
estrutura querer + verbo, essa seria uma forma indireta de expressar o
tempo em português, pois querer expressa volição e implica predição.
Inferimos a marcação de tempo futuro a partir de um verbo de volição,
mas não interpretamos esse tipo de proposição como um ato de fala
expressivo (SEARLE, 1995). Isso pode ocorrer devido a uma escala de
implicação de futuro que faz parte das expressões de desejo e volição:
quanto mais próximo do desejo for o ato de fala, menor será a inferência
de futuro.
Neste artigo, trazemos os resultados que obtivemos em uma
pequena análise sincrônica (CUNHA DOS SANTOS, 2015) feita
com base em reflexões sobre modalidade (PALMER, 1986; BYBEE;
PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a; SWEETSER,
2001) e aspecto (COMRIE, 1976; FOSSILE, 2012; FREITAG;
ARAÚJO; BARRETO, 2013). Observamos a relação entre essas duas
categorias em usos que levam ao domínio da futuridade (GIBBON,
2000; BITTENCOURT, 2014). A partir da observação da atitude do
falante em relação aos enunciados que o cercam, tencionamos testar se
1170
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as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam à
inferência de futuro em PB. Para isso, elencamos nos enunciados que
disparam essa implicatura os usos mais aspectuais e mais modalizados,
a fim de verificarmos qual categoria funcional exerce maior influência
na marcação de temporalidade. Desse modo, nosso objetivo foi levantar,
em dados de corpus, o número de ocorrências do verbo querer em
primeira pessoa e verificar as proposições nas quais a implicatura de
futuridade pode ser claramente inferida. Além disso, buscamos testar
se as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam
à inferência de futuro e descrever quais são os contextos em que querer
dispara essa inferência de temporalidade.
Acreditamos que o uso da perífrase com querer, no lugar de outra
marca de futuro, indica desejo interno do agente que o move a uma ação
futura. Portanto, há forte grau de comprometimento do falante (nos usos
em primeira pessoa) diante da proposição: a ação projetada para o futuro é
resultado de intenção própria. Dessa forma, ao pretender uma implicatura
de futuridade com querer, o falante faz um ato de fala compromissivo.
Tendo em vista que “os futuros de desejo terão nuances de vontade
em algum estágio de seu desenvolvimento” (BYBEE; PAGLIUCA;
PERKINS, 1994, p. 255, tradução nossa), hipotetizamos que “o futuro
de desejo” é perceptível em português brasileiro com o uso de querer
como auxiliar modal.
A fim de ilustrar o percurso até nossa hipótese, a seguir trazemos
uma breve discussão acerca do domínio funcional Tempo, Aspecto e
Modalidade (TAM), das construções de futuro em PB e das implicaturas
geradas a partir de enunciados. Nas seções seguintes, apresentamos
a metodologia utilizada na pesquisa de Cunha dos Santos (2015) e
os resultados das análises dos enunciados destacados nesse estudo.
Situamo-nos na perspectiva cognitivo-funcional e analisamos dados de
fala retirados do corpus C-ORAL-BRASIL I (RASO; MELLO, 2012),
composto por gravações de monólogos, diálogos e conversas e suas
transcrições, para buscar responder nossas questões de pesquisa. Por
fim, nas considerações finais, tecemos algumas observações a partir da
discussão dos resultados e da relação com as informações encontradas
na literatura e apontamos algumas possibilidades de percurso para
pesquisas futuras.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019
1171
2 A expressão de futuridade no domínio funcional Tempo, Aspecto
e Modalidade
Por nosso objeto de estudo envolver uma possível marcação
temporal, consideramos em nossa análise o domínio funcional complexo
Tempo, Aspecto e Modalidade (TAM) (GIVÓN, 2001a). Segundo
Givón (2001a), tempo é uma categoria essencialmente pragmática, pois
se ancora no contexto discursivo e faz referência a um ponto externo
à proposição. Trata-se de uma categoria dêitica, porque indica um
acontecimento no mundo: identifica a situação enunciada (momento do
evento - ME) em relação ao momento de fala (MF), e pode ser codificado
na língua através do tempo verbal e do aspecto, valores expressos em
verbos plenos ou auxiliares.
No que diz respeito a essa categoria funcional e, de maneira mais
específica, ao tempo futuro, é importante pontuar a distinção entre futuro
e futuridade. A futuridade é um domínio funcional amplo “que recobre
noções que apontam para situações projetadas a partir do momento
de fala” (GIBBON, 2000), sendo, portanto, uma projeção hipotética
proveniente do conhecimento experiencial do ser humano. Inserido
no amplo domínio da futuridade está o futuro, que também se refere
a situações projetadas a partir do momento de fala, além de expressar
modalidade e aspecto.
A hipótese de Bybee, Pagliuca e Perkins (1994) sobre futuro
é de que ele decorre de grams2 que evoluíram a partir de uma gama
bastante restrita de recursos lexicais – construções que envolvem
verbos de movimento, de obrigação, desejo e habilidade, e de advérbios
temporais. Desse modo, no desenvolvimento do chamado futuro
orientado para o agente, ou desire future, a expressão de desejo ampliouse para expressão de vontade,3 de intenção e, finalmente, de predição
(BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994, p. 256), levando à trajetória
de gramaticalização ilustrada na Figura 1 a seguir.
2
Grams são morfemas gramaticais que decorrem de morfemas lexicais.
Uma definição mais detalhada sobre a diferença entre os conceitos “desejo”, “vontade”
e “intenção” pode ser vista em Cunha dos Santos (2015).
3
1172
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FIGURA 1 – Trajetória de gramaticalização do futuro de desejo
(BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994, p. 256)
Outra categoria funcional essencial para considerarmos o
fenômeno estudado, por sua relação inerente ao tempo, é o aspecto,
que diz respeito também à duração do evento, sendo referente ao tempo
interno de uma situação (COMRIE, 1976).
Aqui, especialmente, trataremos do aspecto iminencial, que leva
à modalidade de mais certeza, pois a iminência da ocorrência do evento
pressupõe uma curta “distância temporal” entre MF e ME, uma vez
que a situação está prestes a se iniciar. Entretanto, qualquer proposição
que toma o futuro como referência é inerentemente irrealis, já que
acontecimentos futuros são hipotéticos, podem vir a acontecer. Por esse
motivo, consideramos que
Dentro de uma semântica da aspectualidade, o iminencial se refere
a contextos em que há a expectativa de que uma situação ocorra,
mas que não necessariamente se concretizou, ficando, assim, na
fronteira limítrofe entre o domínio do aspecto e o da modalidade
(FREITAG; ARAÚJO; BARRETO, 2013, p. 112).
Sobre a expressão da iminencialidade, Freitag, Araújo e
Barreto (2013, p. 104) consideram que “é possível fazer uma leitura
com gradações que vão do [- irrealis] ao [+ irrealis], a depender do
conjunto de traços contextuais que indicam o grau de certeza expresso
no enunciado”. Por se referir a situações que estão prestes a ocorrer, mas
que necessariamente não precisam se concretizar, esse valor aspectual
está ligado à factualidade, logo, ao âmbito da modalidade.
Como se sabe, a modalidade expressa a atitude do falante em
relação à proposição. Não trata de valores de verdade, mas da escolha
do falante entre os dois tipos de julgamento, epistêmico ou avaliativo
(deôntico), que podem ser feitos sobre a informação proposicional trazida
na sentença (BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994, p. 240). Givón
(2001a) apresenta uma lista de estados epistêmicos e metas comunicativas
dos participantes da interlocução – pressuposição, asserção realis, asserção
irrealis e asserção negativa – e considera que a atitude do falante não
incide somente sobre a asserção, mas, também, sobre a atitude do ouvinte
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1173
face à proposição. Em um outro viés de observação, Bybee, Pagliuca
e Perkins (1994) consideram os seguintes quatro tipos de modalidade:
orientada para o agente (agent-oriented), orientada para o falante (speakeroriented), epistêmica e modos subordinantes (subordinating).
Ressaltamos como possibilidades de expressão de modalidade em
PB os usos de verbo auxiliar modal (como dever, poder...) e de verbos de
significação plena, indicadores de opinião, crença e saber (como achar,
pensar...) (NEVES, 1996, p.166-167). Neste estudo, na investigação
dos usos de querer na construção de tempo por perífrase, nos interessa
destacar essas possibilidades, bem como a modalidade orientada para
o agente e o aspecto iminencial. Julgamos que o fenômeno investigado
aqui é mais uma evidência que aponta para a necessidade de se analisar
qualquer categoria do domínio TAM de maneira interligada às demais.
Por esse motivo, apresentamos a seguir algumas considerações sobre
a formação da marcação perifrástica de futuro em PB, salientando o
processo de gramaticalização envolvendo a expressão de modalidade e
processos pragmáticos de inferenciação.
3 Construção de futuro perifrástico em PB
A marcação canônica de futuro em português, via desinência,
se desenvolveu a partir do latim, com o uso do auxiliar habere, que
anteriormente funcionava apenas como verbo pleno com significado
de posse. A construção com esse verbo auxiliar originalmente tinha
sentido de obrigação ou destino e, com o passar do tempo, tal forma
se gramaticalizou como um morfema de futuro. Para ilustrar essa
transformação, Ilari (2014, p. 28) apresenta o seguinte trajeto de
desenvolvimento para a marcação de futuro via desinência, do latim para
o português: amabo > amare habeo > amar hei > amarei.
No que se refere ao processo de gramaticalização dessa marcação
temporal, destacamos, na marcação de futuro em português, os estágios
de estratificação e divergência – considerando os cinco estágios de
gramaticalização definidos por Hopper (1991, p. 22): estratificação,
divergência, especialização, persistência e decategorização. O estágio
de estratificação diz respeito ao surgimento de novas camadas, dentro de
um amplo domínio funcional, na utilização de mais de uma forma para
funções idênticas. Nesse sentido, os estratos antigos podem permanecer,
coexistindo e interagindo com os estratos mais recentes, como é o caso
1174
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da coexistência das marcações de futuro por morfema e por perífrase. No
estágio de divergência, os estratos mais antigos não são necessariamente
descartados, e o item lexical se mantém em outros contextos – como é o
caso do verbo ir em PB, que funciona tanto como auxiliar quanto como
verbo pleno, em contextos distintos.
Conforme ressalta Heine (2003, p. 579), o processo de
gramaticalização envolve quatro mecanismos de mudança interrelacionados: dessemanticização (bleaching), extensão (ou generalização
contextual), decategorização e erosão (ou redução fonética). Esses
mecanismos podem ou não resultar na gramaticalização de um item e
ocorrem em diferentes estágios desse processo. Por exemplo, a mudança
semântica nos estágios iniciais de gramaticalização não envolve
necessariamente dessemanticização (bleaching); pelo contrário, essa
transformação geralmente ocorre por meio de especificação alcançada
por inferenciação (TRAUGOTT; KÖNIG, 1991, p. 212).
Além desse, outros mecanismos de mudança semântica são
a expansão metafórica, relacionada à expansão de um domínio a
outro, e a expansão metonímica, que acontece dentro de um mesmo
domínio. Considerar a inferenciação, processo pragmático, como fator
desencadeador da mudança semântica nos parece pertinente, pois a
gramaticalização é motivada por fatores extralinguísticos, principalmente
cognitivos (HEINE; CLAUDI; HÜNNEMEYER, 1991, p. 27).
Acreditamos que a motivação cognitiva para a expansão
metafórica seja grande influenciadora do uso investigado neste estudo
– verbo querer utilizado de forma análoga ao verbo ir enquanto auxiliar
de tempo. Isso porque, conforme aponta Givón (2001a, p. 367), a partir
de estudos tipológicos tomando como base várias línguas, podemos
observar a gramaticalização de um pequeno grupo de verbos – dentre
eles, querer – que passam a ser marcadores de aspecto ou modalidade. É
somente mais tarde que esses verbos passam por uma gramaticalização
secundária, como marcadores de tempo.
De acordo com a trajetória ilustrada na Figura 1 acima, temos
como evidência para nossa hipótese a gramaticalização de itens que
passaram da expressão de desejo para expressão de intenção e que,
posteriormente, passaram a funcionar como marca de futuro, como o
auxiliar will em inglês. Uma outra trajetória, que parte da expressão
de movimento em direção a um alvo para o domínio da modalidade,
com a expressão de intenção, para, então, passar a ser marca de futuro,
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aponta o caminho da gramaticalização de be going to, também do inglês.
Outro exemplo a ser citado é a trajetória de expressão de obrigação, no
âmbito da modalidade, para a indicação de tempo futuro, como ocorre
na construção ter que + infinitivo em português. Como resultado desse
mesmo percurso, obteve-se, em latim, o uso de infinitivo + habeo, que
motivou as desinências temporais -ré em espanhol e -re em português.
A mudança de expressão de modalidade para marcação de futuro
do auxiliar modal will (de verbo pleno para auxiliar) ilustra a associação
entre os significados anterior (modalidade) e novo (tempo). Essa relação
parte de motivações cognitivas e é vinculada ao domínio funcional
complexo TAM, pois, como os exemplos citados nos permitem considerar,
“muitas construções utilizáveis para expressar tempo exprimem também
outros conteúdos, sobretudo de modo e aspecto” (ILARI, 2014, p. 9).
Considerando que o futuro é codificado em enunciados indicando a
previsão do falante de uma situação que ocorrerá subsequente ao evento
de fala, o “fator modalidade” não pode estar desvinculado desse domínio.
A partir da modalidade, principalmente das orientadas para o
agente e para o falante, se desenvolvem fontes de gramaticalização para
marcadores de futuro. Como afirma Gibbon (2000, p. 45), em seu estudo
sobre a forma perifrástica de futuro ir + infinitivo, é possível destacar
o componente de modalidade no tempo futuro, já que a modalidade é
relevante para o futuro, não só na sua expressão, mas também na sua
formação. A autora defende que a forma perifrástica entrou na língua
para expressar modalidade (indicando intenção e certeza) e que, após um
primeiro momento, assumiu também a codificação de futuro, ocupando
o espaço do futuro do presente. O verbo que originalmente significava
apenas “movimento para” passou pelo processo de dessemantização,
perdendo seu valor referencial e passando a veicular significados de
natureza pragmático-discursiva.
Atualmente, em português brasileiro, a marcação de tempo futuro
é feita por formas simples: no futuro simples (Farei aniversário em breve)
e no presente do indicativo (Amanhã faço aniversário), e por formas
perifrásticas, como: hei de + infinitivo (Hei de fazer uma grande festa
de aniversário), ir + infinitivo (Vou fazer aniversário amanhã) (PERINI,
2010) e querer + infinitivo (por implicatura) (Quero fazer uma festa
de aniversário) (CUNHA DOS SANTOS, 2015). É sobre essa última
forma de marcação temporal, via implicatura, que iremos nos debruçar
de maneira mais aprofundada aqui.
1176
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Na seção seguinte, de modo mais detalhado, tratamos do papel da
pragmática no processo de gramaticalização de marcadores temporais,
especialmente no que tange à variação e mudança linguística motivada
por inferenciação.
4 O papel da pragmática na gramaticalização: indicação por
implicatura
Como já vimos afirmando, nesta pesquisa tencionamos investigar
usos de querer + infinitivo que possibilitam a interpretação de tempo
futuro a partir do verbo de volição. Nesses casos, os enunciados não
servem meramente para expressar um estado do falante, ou seja, o
enunciador não tem como objetivo comunicativo apenas informar seu
interlocutor sobre um desejo seu. Antes, o enunciador, fazendo uso
dessa forma de expressão de intenção, fornece ao ouvinte as ferramentas
necessárias para que seja acessada, dentre outras implicaturas, a de que o
conteúdo proposicional faz referência a evento futuro. Desse modo, não
interpretamos esse tipo de proposição como um ato de fala expressivo
ou declarativo, mas como um compromissivo, que tem como propósito
comprometer o falante com uma certa linha de ação (AUSTIN, 1990;
SEARLE, 1995).
Atos desse tipo tendem a provocar “mudanças no mundo para que
este corresponda ao conteúdo proposicional do ato de fala” (SEARLE,
1995, p. 10), já que há comprometimento do falante, assumindo a
responsabilidade de desenrolar uma ação futura. Julgamos ser esse o
tipo mais próximo dos observados nos usos em que querer, enquanto
verbo auxiliar, dispara implicaturas de futuridade. Ao realizar um ato
de comprometimento, o falante fornece as ferramentas necessárias para
que o ouvinte interprete seu compromisso como ação futura através de
uma implicatura. Isso pode ocorrer devido a uma escala de implicação
de futuro que faz parte das expressões de desejo e volição: quanto
mais próximo da expressão do desejo for o ato de fala, menor será a
inferência de futuro, conforme ilustramos na Figura 1, na trajetória de
gramaticalização do futuro de desejo proposta por Bybee, Pagliuca e
Perkins (1994, p. 256). Consequentemente, quanto mais “distante” do
desejo – dentro do cline em questão –, maior será o sentido de predição.
No que se refere ao conceito de intencionalidade, Givón o
relaciona com a realização de fatos no mundo a partir da intenção.
Segundo ele,
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1177
ações são mudanças no estado do universo em que o comportamento
intencional de agentes esteve envolvido. Em outras palavras, a
causa/agente percebeu o estado precedente do universo, então,
através de comportamento intencional, causou-lhe uma mudança
para um estado diferente subsequente (GIVÓN, 2012, p. 436).
Para o autor, verbos que carregam significado de intencionalidade
podem ser classificados em termos de força intencional, na seguinte escala:
querer > intencionar > planejar > poder. Esse ranking é relacionado à
realização bem sucedida por meio da inferência pragmática: quanto mais
forte é a intenção do agente, maior a probabilidade de sucesso (GIVÓN,
2001b, p. 57), ou seja, maior probabilidade de o acontecimento ocorrer
no mundo.
Retomando o que vimos afirmando, consideramos que o ato de
fala compromissivo é alcançado via implicatura. Para Levinson (2007,
p. 207),
está claro que a implicatura desempenha um papel importante na
mudança linguística, acionando mudanças sintáticas e semânticas.
Na verdade, parece ser um dos mecanismos mais importantes
pelos quais as questões do uso linguístico realimentam e afetam as
questões da estrutura linguística. É, portanto, uma rota importante
pela qual as pressões funcionais deixam a sua marca na estrutura
de uma língua.
Diferente das inferências semânticas, a implicatura é considerada
um tipo de inferência pragmática, por ser não dedutiva (não lógica),
mas indutiva, uma vez que é inferida a partir do uso. Por implicaturas, é
possível compreendermos e comunicarmos mais do que dizemos, porque
a significação vai além do literal, é composta por outros elementos além
do significado de cada palavra.
As ideias centrais sobre implicatura foram propostas por Grice
(1967) e têm ligação com as noções de comunicação intencional e
significado do falante. Portanto, podemos dizer que as implicaturas são
inferências pretendidas pelo falante. É também Grice quem propõe a
existência de um grupo de diretrizes que conduz a conversação, de modo
que a língua seja utilizada cooperativamente. O Princípio da Cooperação
determina que, numa situação comunicativa, o falante deve fazer sua
contribuição para a comunicação, com finalidade e direção aceitas na
troca em que está envolvido (CHIERCHIA, 2003; LEVINSON, 2007).
1178
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Dentro desse Princípio, para uma conversação eficaz, os interlocutores
devem ser sinceros, relevantes, claros e suficientemente informativos.
Nesse sentido, ao optar por utilizar uma certa forma que dispara
uma série de implicaturas, o falante conta com uma certa interpretação
do seu interlocutor, a partir da situação de uso. Considerando isso,
pontuamos que essa inferência envolve dois significados: o conteúdo
literal (significado da proposição) e a mensagem pretendida (significado
do falante).
Segundo Levinson (2007, p. 121), “o conceito de implicatura
parece oferecer algumas explicações funcionais significativas dos fatos
linguísticos”. O falante opta por falar por implicaturas porque quer
veicular uma informação diferente do dito ou quer ser mais expressivo,
tendo em vista o Princípio da Cooperação. Portanto,
sempre que evito uma expressão simples em favor de uma perífrase
mais complexa, pode-se supor que não o faço levianamente,
mas porque os detalhes, de certa maneira, são relevantes para o
empreendimento em curso (LEVINSON, 2007, p. 134).
As implicaturas que são disparadas nos usos de querer + infinitivo
são conversacionais. Essas inferências são canceláveis (ou anuláveis) – é
possível cancelar a inferência acrescentando algumas premissas adicionais
às premissas originais –; não destacáveis – possuem ligação com o
conteúdo semântico, não com a forma linguística e, por isso, não podem
ser destacadas de um enunciado (exceto as que se devem à máxima do
modo) –; calculáveis – tendo em vista o significado literal, o sentido da
enunciação e o princípio cooperativo, o destinatário faria a inferência para
preservar a cooperação presumida –; não convencionais – não fazem parte
do significado convencional das expressões linguísticas (GRICE, 1967).
As implicaturas conversacionais podem ser particularizadas,
exigindo contextos específicos para interpretação, ou generalizadas,
sem que seja necessário um determinado contexto para serem inferidas.
Nestas, particularmente, o conteúdo semântico é dificilmente distinguido
das expressões linguísticas, já que são associadas a expressões relevantes
em todos os contextos. As implicaturas ligadas ao uso do verbo querer
indicando futuro podem ser consideradas escalares (subtipo das
implicaturas generalizadas). Vemos em Horn (1972 apud Levinson, 2007,
p. 166) uma escala possível para o caso analisado aqui, onde o item mais
forte é colocado à esquerda:
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<succed in V+ing, try to V, want to V>
<conseguir V, tentar V, querer V>
Se um falante afirma um item à direita na escala (mais fraco
prevalece), ele veicula a implicatura de que o item à esquerda (mais forte)
não prevalece. Por exemplo, num enunciado como em (1):
(1) Eu quero ganhar! Ou melhor, eu vou ganhar!
“Eu quero ganhar” pode implicar “quero, mas há possibilidade de
não ganhar”. Quando há o acréscimo de “eu vou ganhar” ao enunciado,
infere-se, por acarretamento, que o falante quer ganhar. Ou seja, o item
mais fraco nega o mais forte, mas o mais forte inclui, acarreta, o mais
fraco. “Quero” (expressão de intenção) se refere a uma possibilidade mais
remota, enquanto que “vou” (expressão de predição já gramaticalizada)
marca maior comprometimento do falante com a ação descrita na
proposição. Essa relação é ilustrada na Figura 2 a seguir, associando
intenção e predição a diferentes níveis de modalidade.
FIGURA 2 – Relações das inferências entre intenção e predição
O acarretamento, também conhecido como implicação lógica,
não é calculável, mas induzido no discurso por uma linha de raciocínio:
“se uma proposição a implica uma proposição b, isso significa que se a
é verdadeira, então b é necessariamente verdadeira” (MOURA, 2006,
p. 15). Portanto, se:
(2) Eu vou me inscrever no curso, então
(3) Eu quero me inscrever no curso, ou
(4) Eu devo me inscrever no curso.4
4
No exemplo (4), o verbo dever é tomado em seu uso deôntico.
1180
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Se o falante vai realizar uma ação que depende dele para se
concretizar, implica-se logicamente que ele queira que essa ação aconteça
ou que ele tenha o dever de executá-la. Porém, vale ressaltar que o falante
querer algo nem sempre é condição suficiente para a realização de uma
ação. É nesse sentido que situamos esse tipo de expressão em um ponto
+ irrealis numa escala de modalidade.
Retomando o que já destacamos sobre implicaturas escalares, vale
ainda pontuar que, apesar de não precisarem de um contexto específico
para ocorrerem, essas são afetadas pelo contexto. Inferências desse tipo,
disparadas por um mesmo item, podem variar. Elas podem servir para
expressar predição, em sentenças como: Eu quero sair ou Eu quero trocar
de carro, e para expressar desejo, como em: Eu quero ganhar na loteria
e Eu quero ser forte, mas não consigo. Todos os exemplos projetam as
ações (sair, trocar, ganhar, ser) para o futuro, mas os interpretamos de
maneiras diferentes. As inferências de predição derivam de ações que
dependem do falante para se concretizarem. As intenções do falante/
agente são condições suficientes para a realização de sair e trocar de carro.
Já na expressão de desejo, a vontade do falante não interfere na realização
de ganhar e ser forte – considerando o último exemplo, poderíamos inferir
que o falante quer e vai ser forte, mas essa implicatura é cancelada com
o acréscimo da informação seguinte “mas não consigo”, que revela sua
incapacidade para efetuar a ação.
Pistas como referências temporais, tempo verbal de outros
verbos em enunciados próximos e adjuntos nos levam à interpretação
de futuro a partir de querer, desde que o item em questão esteja inserido
em contexto linguístico favorável. A fim de investigar esse fenômeno
– a implicatura conversacional como fator que modifica a interpretação
do tempo verbal – realizamos uma busca de ocorrências em um corpus
fechado, com o intuito de analisar os contextos de uso e observar quais
elementos estariam exercendo maior influência na interpretação dos
enunciados, expressivos a priori, como atos de fala compromissivos.
Detalhes sobre o corpus e a metodologia utilizados em nossa investigação
estão descritos na seção a seguir.
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5 Análise dos usos de querer + infinitivo e fatores que disparam
implicaturas de futuridade
Para fins práticos, optamos por utilizar um corpus fechado que
contivesse dados de fala espontânea em português brasileiro. Todas as
sentenças analisadas neste estudo fazem parte do C-ORAL-BRASIL
I (RASO; MELLO, 2012), que tem suas informações disponíveis
em CD-ROM. Buscamos ocorrências de uso do verbo querer como
auxiliar em contextos em que se infere, a partir de implicatura gerada,
que a ação descrita na proposição ocorrerá no futuro. Foram analisados
monólogos, diálogos e conversações, em contextos privado e público.
Assim, foi possível observar a ação dos interlocutores (nos diálogos e
nas conversações) diante do enunciado e se o significado implicado na
proposição foi compreendido naquele contexto.
Foram destacadas ocorrências de primeira pessoa (singular
e plural – P1 e P4) + querer + verbo no infinitivo, tendo em vista a
conclusão do estudo diacrônico apresentado em Bybee, Pagliuca e Perkins
(1991; 1994) de que “na formação do futuro, desejo e obrigação podem
ser usados em sentenças expressando intenções do agente, especialmente
em primeira pessoa” (BYBEE, PAGLIUCA, PERKINS, 1994, p. 178).
Cada gravação do corpus foi ouvida ao mesmo tempo em que sua
transcrição era lida, para que fosse possível captar outros sons daqueles
contextos que poderiam contribuir para as inferências dos enunciados
– como a aproximação do falante ao microfone do gravador depois de
enunciar “quero mandar um recadinho pra quem ouve a minha voz”, por
exemplo. A busca foi realizada nas transcrições dos áudios em arquivo
.doc, com a localização automática pelo comando crtl + l de “quer-”
e “quis-”. Cada caso foi destacado e passou por uma problematização
posterior em que foram salientados elementos que acompanham a
ocorrência na investigação sobre um padrão de uso. Destacamos todas as
ocorrências de querer em primeira pessoa, quantificamos os resultados
dos usos e analisamos apenas os de volição que implicavam predição.
Realizamos uma análise qualitativa já que a pouca quantidade de
ocorrências seria pouco representativa num estudo de caráter quantitativo.
Dados sociolinguísticos não foram levantados para essa análise, pois
acreditamos que o condicionamento para a interpretação investigada se
dá mais pelo contexto e pela situação comunicativa que por fatores como
idade ou escolaridade do falante.
1182
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No total, foram analisadas 139 gravações: 105 em contexto
privado (34 conversações, 36 monólogos e 35 diálogos) e 34 em contexto
público (09 conversações, 14 monólogos e 11 diálogos). Nesses áudios, há
759 ocorrências do verbo querer. Desse número, destacamos os 55 usos
do auxiliar em primeira pessoa que disparam implicatura de futuridade,
atuando como perífrase de futuro nesses casos.
Como tratar de implicaturas fora do contexto da conversação pode
ser muito subjetivo, optamos pelos enunciados onde havia evidências,
dentro do mesmo dado analisado, de como o interlocutor interpretou
as implicaturas pretendidas pelo falante. Assim, foi possível observar a
resposta do interlocutor diante do enunciado e se o significado implicado
na proposição foi compreendido. Muitas ocorrências certamente
ficaram de fora ao definirmos essa condição, mas distanciado das
interações gravadas, o olhar do analista não pode captar outras pistas
extralinguísticas para a interpretação, como gestualidade, contexto mais
amplo, relações interpessoais e nível de conhecimento compartilhado.
Portanto, dentro das limitações descritas, elencamos apenas as gravações
que nos fornecem elementos suficientes para calcularmos implicaturas
de futuridade possíveis.
Nosso intuito foi olhar para as ocorrências, as pistas linguísticas
e comunicativas e descrever quais são os contextos em que querer
dispara a implicatura de temporalidade. Para essa análise, destacamos
os seguintes fatores:
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Tipologia interacional: conversa, diálogo ou monólogo;
Ambiente de interação: público ou familiar/privado;
Querer: verbo pleno ou auxiliar;
Papel temático do sujeito: agente, experienciador, paciente;
Tempo: determinado ou indeterminado;
Presença/ausência de marcas de futuridade fora do verbo: verbos
conjugados no mesmo turno de fala e advérbios;
Projeção de futuridade (OLIVEIRA, 2006): futuro próximo,
distante ou indefinido;
Inferências a partir dos enunciados: acarretamento e implicatura;
Tipos de verbos principais: regulares e irregulares;
Usos com valor mais aspectual e mais modal.
1183
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Nos casos em que tivemos dúvidas quanto à possibilidade da
implicatura no contexto da conversação examinada, foi feito o seguinte
“teste”: trocar querer por ir (como verbo auxiliar na perífrase de futuro).
Não havendo perda de sentido de futuridade, o uso de querer foi
considerado possibilidade de futuro perifrástico, disparando implicatura
de temporalidade, consequentemente.
A seguir, na seção de discussão dos resultados, trazemos alguns
recortes dos dados analisados. Os excertos não são apresentados nos
moldes de transcrição do C-ORAL-BRASIL I, mas foram adaptados
para a modalidade escrita da língua portuguesa para que pudessem
ser acomodados neste trabalho da melhor maneira. Anotações sobre
prosódia e outros elementos observados na transcrição original podem
ser consultados diretamente nos arquivos organizados no corpus.
6 Discussão dos resultados
Nosso objetivo foi levantar o número de ocorrências do verbo
querer em primeira pessoa e verificar as proposições nas quais a
implicatura de futuro pode ser claramente inferida. Foram analisados
todos os dados do corpus: 46 diálogos, 50 monólogos e 43 conversas,
totalizando 139 gravações de, aproximadamente, 10 minutos cada.
Querer foi utilizado 759 vezes em todas as gravações e é o 14º
verbo mais frequente no corpus, aparecendo como verbo pleno (Quero a
caneta azul), como verbo auxiliar (Quero fazer um mestrado em educação)
e em expressões (Ela é de Uberlândia. Quer dizer, eu acho que é).
Conforme apontamos anteriormente, nosso estudo observou
apenas os usos em primeira pessoa, que somam 31,6% do total dos
registros (240). Na maioria dos usos destacados, vemos que o verbo atua
como auxiliar, como ilustra a Tabela 1:
TABELA 1 – Usos do verbo querer em primeira pessoa (singular e plural) nas
gravações em contexto público e privado
Diálogos
P1
P4
Total
Conversas
Monólogos
Verbo
pleno
Auxiliar
Verbo
pleno
Auxiliar
Verbo
pleno
Auxiliar
39
-
42
04
25
-
60
04
18
02
39
07
85
89
66
1184
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Dentre as ocorrências analisadas, que totalizam 156, nem todas
disparam a implicatura explorada aqui. Na Tabela 2, vemos que pouco
mais de um terço dos usos como verbo auxiliar em primeira pessoa foi
contabilizado em nossa pesquisa, pois foram essas 55 ocorrências que
tiveram implicaturas de futuridade claramente inferidas.
TABELA 2 – Total de usos do verbo como auxiliar, em primeira pessoa (singular e
plural), e quantidade de vezes em que houve gatilho para implicatura de futuridade
Auxiliar
P1
P2
Total
141
15
156
Uso disparando
implicatura
52
03
55
Lembramos que foram destacados apenas os usos em que é
possível – pela realização da ação mencionada no verbo principal durante
o tempo de gravação ou pela resposta do interlocutor – confirmar a
inferência por implicatura.
Para ilustrar os dados considerados como usos que disparam
implicaturas, abaixo trazemos uma análise mais detalhada de um recorte
do áudio bfamdl23, do C-ORAL-BRASIL I, de um diálogo em contexto
familiar/privado, em que duas pessoas estão conversando e pelo menos
uma delas está jogando no computador durante o tempo da gravação:
BAR: Eu já passei todos meus itens. Tô tentando falar com esse
cara aqui que tá online na minha lista de amigos. Mas ele tá em
outra cidade, então não tem como eu ir pra lá, porque, se for pra
lá, eu vou gastar dinheiro, sabe? Eu quero passar meu dinheiro
pra alguém que pelo menos esteja aqui, porque todos meus
personagens estão nessa cidade, pra que eu possa, tipo, passe pra
alguém que esteja nessa cidade, entro com outro personagem e
esse cara passa pra minha personagem, entendeu? Então, não vale
a pena eu ir pra outra cidade.
[...]
JAN: Mas que missão que cê tem que fazer nesse jogo?
BAR: Ah... é tipo assim... Calma que eu vou... Olha, eu sou, no
caso, a personagem que eu quero jogar aqui eu sou uma maga.
Então eu tenho que evoluir essa maga porque eu quero virar
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1185
bruxa. Então eu tenho que jogar, matar monstro pra ganhar
experiência até eu poder virar bruxa. No caso eu posso virar bruxa
com level quarenta, mas eu vou virar com level cinquenta pra eu
ganhar o máximo de pontos de habilidades. Eu distribuir entre
as minhas habilidades... Então eu tenho que evoluir, comprar
equipamentos melhores, ganhar dinheiro, etc.
Vemos nesse trecho um contexto todo modalizado, um conjunto
harmônico que permite o uso e a interpretação do modal querer como
marca de futuro. Cada ocorrência analisada dá pistas para interpretar
quando a atitude do falante revela mais predição ou mais intenção.
“Quero jogar” é menos irrealis (expressão de aspecto iminencial)
que “quero virar” e “quero passar” (expressão de volição), e vem
seguido de “eu sou”, indicando tempo presente. No decorrer do diálogo,
percebemos, a partir de sons captados pelo microfone do gravador (que
indicam uso de teclado e mouse e a inicialização do jogo), que BAR
iniciou o jogo durante o momento de fala (MF), confirmando a possível
implicatura: “BAR está prestes a iniciar o jogo no momento em que
fala”, já que podemos inferir que “aqui” é uma referência ao momento
da conversação (Figura 3). Na escala de futuro de desejo, essa proposição
estaria mais próxima à predição que ao desejo.
FIGURA 3 – Sequência em que ME (quero jogar) é imediatamente posterior ao
Momento de Referência (MR) (aqui), que coincide com MF (eu sou)
Já “quero virar” vem precedido que “tenho que evoluir”, com
modalidade deôntica marcada pela estrutura ter que + verbo (mais
irrealis). Após enunciar a proposição, BAR lista uma série de requisitos,
ações futuras, que devem ser cumpridos para que se alcance a intenção
expressada. Novamente, como ilustra a Figura 4, o momento do evento
(ME) é posterior ao momento de fala (MF).
1186
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FIGURA 4 – Sequência em que ME (virar bruxa) é posterior a MR (tenho que
evoluir)
A partir desse exemplo, destacamos que, assim como as demais
categorias que envolvem o complexo domínio funcional TAM, o aspecto
não é marcado apenas pelo valor inerente do verbo. O mesmo verbo pode
assumir diferentes valores aspectuais conforme seu contexto de uso, o
que foi comprovado em nossa observação.
Evidenciamos, dentro da análise aspectual, usos em que o verbo
principal acompanhado pelo auxiliar querer é uma ação projetada para
ocorrer em um futuro imediato, muito próximo ao momento da fala.
Então, na interpretação de futuridade gerada pela implicatura, falante e
ouvinte vão da modalidade, na expressão de um estado do falante (querer,
ter intenção), passam pelo aspecto iminencial (a partir dessa intenção
alguma coisa ocorrerá) e chegam à temporalidade (contexto de futuro,
onde a ação se realizará).
Dos 55 usos que geram inferência e que foram considerados
em nossa investigação, o aspecto iminencial possui destaque em 40%
dos casos. Mesmo não sendo maioria, nas sentenças em que o aspecto
iminencial foi observado, essa marca veio acompanhada do alto grau
de comprometimento do falante frente à proposição, resultando em
enunciados menos irrealis. Para ilustrar essa conclusão, salientamos o
seguinte recorte, do áudio bfamdl34, de conversa em contexto familiar,
em que o falante anuncia sua próxima jogada, enquanto os interlocutores
jogam damas durante o tempo de gravação:
HEL: Deixa eu pensar uma coisa aqui. Calma... Vou fazer isso
mesmo. Fazer isso, que eu quero comer a rainha. Ela tá com a
rainha minha, eu quero comer uma rainha dela.
HEL: Sem rainha!
CAS: Pera aí! Cê tava aqui.
HEL: É. Eu posso comer. Eu posso usar a minha torre, né? Ela
anda assim: horizontal, vertical.
CAS: É.
HEL: Aí eu fui lá e comi sua rainha.
CAS: Ah, certo!
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1187
Nos usos de “quero comer”, não apenas há expressão da intenção
de HEL, como, no próprio tempo da enunciação, há seu engajamento
enquanto agente: o falante projeta sua ação de mudança para um
tempo posterior imediato. Nesse exemplo, temos, com a característica
aspectual, a modalidade, no grau de comprometimento do falante diante
da proposição. Em casos como esse, o desenrolar do ME é imediato e o
falante (e apenas ele) é o responsável pela realização da ação descrita.
Já em relação à flexão de tempo dos verbos analisados, o uso
mais frequente dentre os casos de implicatura foi do verbo auxiliar
conjugado no presente do indicativo (eu quero e a gente quer). O verbo
principal mais frequente nos recortes destacados em nossa pesquisa foi
fazer, totalizando 20%. O tipo de verbo principal não se mostrou um
fator relevante para os usos em primeira pessoa de querer como auxiliar,
inclusive nos usos que disparam implicatura.
Em contrapartida, o papel temático do sujeito, outro fator
considerado em análise, se mostrou propício para interpretação de
implicatura de futuridade. Observamos apenas sujeitos experienciadores
e agentes, o que já era esperado por destacarmos apenas ocorrências em
primeira pessoa. A grande maioria (87%) das implicaturas é inferida a
partir de contextos em que o sujeito do verbo, além de enunciador, é
agente da ação mencionada na proposição. Por ser agente, responsável
por desencadear a ação indicada no verbo principal, a significação típica
de volição ou intenção de querer perde espaço para a interpretação de
implicatura de futuridade (posição de predição), onde, novamente, há
maior comprometimento por parte do falante.
No exemplo a seguir, retirado do áudio bpubdl01, dois falantes
conversam e seu ambiente é uma obra em andamento. O falante PAU
é o responsável pela construção de um muro e utiliza quero chegar e
quero deixar permitindo que seu interlocutor compreenda que “chegar” e
“deixar” se referem à conclusão do evento da obra, momento localizado
em tempo posterior ao momento de fala. A partir de usos como esses,
chegamos às nossas conclusões sobre a influência desempenhada pelo
papel temático do sujeito na interpretação de futuridade:
ROG: Esse aqui vai ficar mais alto um pouquinho, né? Ou não?
PAU: Capaz...
ROG: Uhm.
PAU: Depende do barranco lá, e lá eu quero chegar com ele até a
divisa com o Paulo. Isso até aquele murinho lá, sabe como?
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ROG: Sei.
[...]
PAU: Ah, tem um outro lugar aqui que vai gastar muita pedra
também. Aqui ó, no piso.
ROG: É, uai!
PAU: Aquela passagem lá eu quero deixar marcada também,
sabe? Tô achando que eu vou fazer ela com um metro. Acho que
com um metro e vinte ela fica boa, né?
Além desse, outros fatores que influenciam a inferência por
implicatura são a projeção de futuridade e a delimitação do tempo. Em 15
ocorrências (27% do total) o tempo de referência era indeterminado, com
projeção de futuridade mais irrealis, sem nenhuma pista que informasse
se a ação ocorreria mais próxima ou mais distante do momento da fala.
Um caso como esse é ilustrado pelo trecho do áudio bfammn17, transcrito
abaixo:
HBF: Aí uma vez eu, vendo o restaurante lá, falei assim: “um dia
eu vou vim aqui nesse restaurante, mas eu quero subir esse morro
a pé!” Tem estrada pra carro e tudo mais, vai fazendo as voltas e
tal e a gente chega lá no alto. E a Hortênsia tinha menos de quatro
anos. O lance era fazer a Hortênsia subir o morro com menos de
quatro anos. A Marina tinha uns dez anos e a Cíntia devia de ter
doze. Aí eu fiz essa vontade, sabe? Fiz essa vontade. Aí peguei,
deixei o carro no pé do morro e fui subindo, né?! E pra poder subir
e fazer essas meninas... não podia dar colo pra Hortênsia, nem
pra Marina, né? A Cíntia não ia pedir colo mesmo, né? Mas nem
eu, nem a Cíntia não íamos aguentar subir o morro carregando
criança, né? Tive que ter uma conversa danada pra empurrar essas
três morro acima, pra chegar até lá no alto. Aí a gente almoçou,
depois do almoço descansamos bastante.
Também situado num contexto de tempo indeterminado, o
trecho do áudio bfammn23, de um relato de MEL sobre sua experiência
profissional, difere do excerto acima, pois menciona um fato (dar aula)
e o localiza em um momento posterior à sua fala, sem que saibamos se
esse fato ocorreu realmente no mundo. Entretanto, mais adiante, MEL
utiliza como alternativa para atingir seus propósitos comunicativos a
forma perifrástica já gramaticalizada de marcação de futuro:
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1189
MEL: E vai ter uma aula, eu quero dar uma aula também sobre
a sala de aula, né? Pra eles aprender a falar “caderno”, “livro”,
“borracha”, “lápis”, “caneta”, outras coisas igual “levantar a mão”,
“escrever”, “ler”... A gente vai dar uma aula sobre isso também.
Casos como esse, em que há marcas temporais em outros itens
da sentença (fora da forma verbal analisada), somam 40 ocorrências
(73%). As ações indicadas nos verbos principais ocorreram num futuro
próximo do momento da fala em 33 (60%) orações e num futuro mais
distante em 07 (13%). Nesses casos, temos ainda modalidade irrealis,
mas com maior grau de certeza.
Por fim, apresentamos os dados que contêm outras marcas de
futuridade, além da flexão do verbo auxiliar. Contabilizamos outros
verbos conjugados no mesmo turno de fala, advérbios e demais
referências que influenciam a interpretação de predição por implicatura.
Um exemplo é retirado da gravação bpubcv09, de uma conversação entre
instrutor e aluno, em uma academia de ginástica, em que, assim como
no último trecho que apresentamos, o falante MAR utiliza quero fazer
e substitui essa forma por vai fazer. Essa reformulação provavelmente
decorreu da resposta de MRC, que, ciente da implicatura de que a ação
“fazer doze repetições do exercício e não mais” seria realizada por MAR
no momento seguido de sua fala, cancelou essa inferência utilizando a
forma gramaticalizada ir + infinitivo. Esse movimento interpretativo foi
semelhante ao que apresentamos em (2), (3) e (4) anteriormente.
MAR: Ô, é sério! Eu quero fazer doze só.
MRC: Ocê quer, mas vai fazer vinte!
MAR: Não, vou fazer doze!
MRC: Não existe “doze” no meu vocabulário.
MAR: Ah! Cê acabou de falar!
MRC: Então faz doze ao contrário: vinte e um.
MAR: Não!
MRC: Doze vezes dois: vinte e quatro.
MAR: Não! Vou fazer doze.
Todos os enunciados que nos permitem inferir futuridade por
implicatura, disparada por querer + infinitivo, estão inseridos em
um contexto harmônico. Os elementos linguísticos que constituem
os contextos favoráveis para a significação que investigamos são,
principalmente, verbos próximos do enunciado conjugados no futuro
1190
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(25 do total) e no presente (12 do total) (em muitos casos de marcação
de tempo futuro, como em “Isso eu faço amanhã”) e advérbios (já,
então, aí...) (15 do total). Os advérbios que mais foram frequentes
nos casos de inferência de futuridade foram “aí” e “daí”, seguidos de
“então”, “já” e “agora”. Tais advérbios contribuem para interpretarmos
valores aspectuais e, consequentemente, temporais nos enunciados que
os carregam.
7 Considerações finais
A partir das análises dos dados, podemos sugerir que utilizamos
formas mais complexas, como as perífrases, provavelmente porque
as formas simples para significar determinado conceito não são tão
expressivas. Na marcação de futuro em PB, vemos que as formas
perifrásticas carregam, além do sentido do verbo principal, o valor do
verbo auxiliar, e, por isso, podem ser consideradas mais significativas
para certos fins.
Nossos resultados vão ao encontro dos apontados nos estudos
de Gibbon (2000) e Oliveira (2006) sobre futuro perifrástico com ir
+ infinitivo. As autoras já haviam apontado para a preferência de usos
perifrásticos, principalmente quando o sujeito é agente ou experienciador
(OLIVEIRA; OLINDA, 2008, p. 114). É a polissemia do verbo ir
(movimento no espaço e no tempo) que desencadeia uma mudança
semântica, fonte da gramaticalização desse verbo como auxiliar que
exprime futuridade (OLIVEIRA; OLINDA, 2008). A polissemia de
querer também é responsável pela possibilidade desse item funcionar
como auxiliar nessa marcação temporal: quando querer exprime um
desejo, trata-se de um enunciado expressivo; quando exprime intenção,
é uma predição.
Nos dados analisados, as implicaturas decorrentes da expressão de
volição veiculadas pelo verbo auxiliar querer levam a uma interpretação
de tempo futuro, principalmente porque uma das origens do futuro (tempo
verbal) é derivada de noções como desejo e intenção.
Porque essa inferência está no plano do não dito, utilizar querer
para marcar futuro indica pouco comprometimento por parte do falante
em alguns casos – pois, dentro de uma escala, ele opta por utilizar
a forma mais “fraca”, que não acarreta a mais “forte”. Entretanto,
quando a realização da ação descrita no verbo principal depende do
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1191
falante enquanto agente, temos alto comprometimento, trazendo uma
intepretação como “essa ação acontecerá porque essa é minha vontade
enquanto agente”.
Querer + infinitivo, em usos em primeira pessoa, pode denotar
que a ação descrita no verbo principal é um desejo ou que ela será
desenvolvida após o momento de fala, num ato comissivo, por exemplo.
Palmer (1986, p.116) chama atenção para o fato de marcadores de
futuro, em geral, serem interpretados como promessas, mas seria melhor
considerá-los como significado indireto ou derivado desse uso. A maioria
dos casos em que destacamos implicaturas se encaixa em atos comissivos,
mas usos de querer envolvem também atos expressivos, quando é descrita
uma intenção como um estado.
Verbo inerentemente irrealis, querer agrega valores temporais e
aspectuais às sentenças em que dispara implicatura de predição. Usos com
ação iminente, sujeito agente, acompanhado de marcas temporais como
advérbios ou outros verbos conjugados têm o contexto em que querer
serve para marcar evento futuro, além de significar que o desenrolar
desse evento é desejado pelo falante. O uso desse verbo como auxiliar
em perífrase de futuro em português brasileiro coocorre com outras
formas temporais, pois expressa uma nuance específica de significado
de intenção, não marcada nas outras formas de futuro.
Vale ressaltar aqui que a marca do aspecto, particularmente do
iminencial, é um ponto anterior à marcação do futuro. Quando há atuação
do aspecto, interpretamos o enunciado com maior marca de tempo do
que modalidade. Ou seja, diante de aspecto iminencial, a interpretação
temporal é favorecida e a expressiva é menos considerada.
Destacamos que o baixo número de ocorrências não nos diz muita
coisa sobre um possível processo de mudança ou revela algum estágio
de gramaticalização. Entretanto, a possibilidade de uma interpretação
recorrente em diversos contextos é o que destacamos, mais do que a
quantidade dessas inferências dentro de um corpus.
Ressaltamos que quantificar dados de inferências como
implicaturas pode ser problemático, já que, enquanto analistas, estamos
distantes do contexto em que a forma investigada foi utilizada. Nossa
interpretação, apesar de pautada em uma série de critérios, é artificializada.
No uso efetivo, na interação face a face, muitos fatores são elencados
para compor a significação, tantos que não conseguimos recuperar em
dados gravados.
1192
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Finalmente, defendemos que as respostas encontradas nesta
investigação podem servir como ponto de partida para outros trabalhos,
principalmente sobre o valor modal de querer enquanto verbo auxiliar e
a marcação de futuro de desejo em português brasileiro. Outras questões
e outras respostas podem surgir numa abordagem mais filosófica dos
conceitos de desejo e intenção. Do mesmo modo, o estudo aprofundado
sobre implicaturas, contexto e atos de fala certamente poderá esclarecer
pontos que tenham ficado vagos.
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Os sentidos deônticos na peça teatral The Glass Ménagerie
Deontic meanings in the play The Glass Ménagerie
Maria Fabiola Vasconcelos Lopes
Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará / Brasil
fabiolalopes.ufc@gmail.com
Resumo: A fim de compreender a língua sob a perspectiva discursiva textual, o trabalho
se propõe a investigar a categoria modalidade deôntica em dois contextos específicos:
os diálogos dos personagens e os enunciados de abertura ou fechamento das cenas
contidas na peça teatral The glass ménagerie, diálogos cujo enfoque é a construção
dos sentidos na geração do caráter dominador dos personagens. Para tal finalidade,
são considerados os aspectos sintáticos, semânticos, e pragmático-discursivos desses
enunciados. Palmer (2001), Bybee (1995), Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), Furtado
da Cunha e Souza (2011), dentre outros, dão suporte ao estudo. Dentre os itens que
expressavam modalidade, quanto ao tipo de modalidade, identificamos 50,9% de
modalidade orientada para o agente e 49,4% orientada para o falante. No que concerne
ao valor, 59,5% de obrigação foram revelados nos dois tipos de modalidade supracitados.
Por fim, o estudo contribui para a construção do mapeamento dos sentidos ligados à
modalidade em diversos contextos de uso na peça teatral.
Palavras-chave: modalidade deôntica; uso; sentidos.
Abstract: In order to understand language under a textual discursive perspective, the
paper aims at investigating the category of deontic modality in two specific contexts:
the characters’ dialogues and opening and closing statements of the scenes within the
play The glass ménagerie, dialogues whose focus is on the construction of meanings
in the generation of the dominating characters. For this purpose, syntactic, semantic,
and pragmatic-discursive aspects of such statements will be considered. Palmer (2001),
Bybee (1995), Bybee, Perkins and Pagliuca (1994), Furtado da Cunha and Souza (2011),
among others, give support to the study. Among the items that expressed modality, as
to the type of modality, we identified 50,9% of agent-oriented modality and 49,4% of
speaker-oriented. Concerning value, 59,5% of obligation was revealed in the two types
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1195-1231
1196
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of modality above mentioned. At last, the study contributes to the mapping of meanings
associated with modality in the various contexts of use in the play.
Keywords: deontic modality; use; meanings.
Recebido em 12 de outubro de 2018
Aceito em 15 de janeiro de 2019
Introdução
O presente artigo desenvolveu-se a partir da maturação dos
estudos de pós-doutoramento na linha dos Estudos da Língua em Uso no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos na Universidade
Federal de Minas Gerais1 e de reflexões anteriormente iniciadas, dentro
do Grupo de Estudo em Modalidade Deôntica – GEMD/CNPq, este,
coordenado pela autora deste artigo. Assim, apoiados nos estudos e
reflexões anteriormente citados, o artigo tem por objetivo discutir
fenômenos relacionados à língua em uso em contextos de interpretação
deôntica.
A fim de atingir nosso objetivo e, uma vez que consideramos
“a língua [...] como meio de interação social” (HEGENVELD, 1988, p.
229), entendemos que um dos gêneros que constituem um lugar propício
para que a linguagem possa se apresentar como atividade sócio-cultural
é o gênero peça teatral, que tem como característica o fato de ser escrito
para ser falado. Por gênero, compreende-se “uma categoria estabelecida
socialmente caracterizada em termos de ocorrência de uso, fonte e
propósito comunicativo ou qualquer combinação deles”2 (HOUSE,
1997, p. 107). Nesse contexto, e, entendendo que um estudo que se volte
para o discurso possa levar ao melhor entendimento do uso da língua,
1
Estudo desenvolvido sob a supervisão da Profa. Dra. Adriana Maria Tenuta de Azevedo
do programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG durante o pós-doutoramento entre março de 2018
e fevereiro de 2019.
2
(...) Genre is a socially established category characterized in terms of occurrence
of use, source and a communicative purpose or any combination of these. (HOUSE,
1997, p. 107).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019
1197
destacamos Furtado da Cunha e Souza (2011, p. 23): “Estudar a língua
sob a perspectiva discursivo-textual permite, assim que a gramática seja
flagrada em seu funcionamento, evidenciando que ela é a própria língua
em uso”.
Diante do exposto, discutiremos inicialmente os contextos de uso,
voltando-nos para as funções modais nas categorias orientadas para o
agente e orientadas para o falante, a partir de Bybee, Perkins e Pagliuca
(1994). Tais funções concentram-se em: função modal de procedimento,
função modal imperativa ou diretiva, função modal de instrução, função
modal permissiva, função modal proibitiva, função modal concessiva,
função modal de habilidade, dentre outras, tendo sido encontradas em
contexto real de uso na peça teatral The glass ménagerie de Tennessee
Williams. Em seguida, temos como enfoque as categorias orientadas para
o agente e orientadas para o falante, tendo em vista as funções modais.
1 Função modal
Com o propósito de estudar diferentes usos e sentidos da
modalidade em enunciados e contextos de língua inglesa, discutimos
algumas contribuições a partir de pesquisas de vertente funcionalista.
As contribuições aqui apontadas giram em torno da função modal nas
categorias orientadas para o agente e orientadas para o falante, destacadas
por Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) para a classificação da modalidade.
Cabe salientar que tais autores também consideram em sua perspectiva
de análise da modalidade os tipos epistêmico e subordinado. Contudo,
estas não farão parte do recorte escolhido para o estudo da peça teatral.
É nosso interesse a construção de sentidos que carregam na
sua semântica o componente “obrigação”. Nesse sentido, propomos
procedimentos de análise de base funcionalista para o tratamento da
gramática em texto escrito para ser falado, como é o caso do corpus
escolhido para esse fim, a peça teatral. Dessa forma, torna-se relevante
entender primeiramente como ocorre o estabelecimento das funções
modais em seus contextos de uso.
Ilustraremos nossa análise com elementos do corpus composto
por excertos da peça teatral The glass ménagerie, de Tennessee Williams,
e nos concentraremos, por ora, na categoria modalidade orientada para
o agente e para o falante, tentando compreender a função modal em
cada tipo.
1198
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Segundo Shaffer, Jarque e Wilcox (2011), a modalidade orientada
para o agente doravante (OA) expressa que um agente é orientado a
fazer algo. Por exemplo, quando dizemos a um interlocutor que ele deve
respeitar seu pai, orientamos esse interlocutor a agir de uma determinada
maneira. Por outro lado, a modalidade orientada para o falante doravante
(OF) implica em alguém capacitar ou habilitar um outro a fazer algo,
criando condições do tipo imperativas e diretivas para que algo se realize
por outro. Nesse caso, quando dizemos: Saia!, estamos dando uma ordem
direta portanto, sendo impositivos.
De acordo com Nogueira (2011, p. 65) apoiada em Bybee, Perkins
e Pagliuca (1994), em se tratando da modalidade orientada para o agente,
esta [...] “anuncia a existência de condições internas e externas sobre
o agente com relação ao complemento da ação expressa no predicado
principal”. Assim, no que diz respeito à modalidade orientada para o
agente, algumas noções semanticamente mais específicas estão associadas
a obrigação, habilidade e desejo.
É importante também destacar que o conhecimento das categorias
OA (atos que orientam ou promovem uma conduta) e OF (atos que
influenciam o outro), bem como de suas funções se faz necessário para o
desenvolvimento de ações no que diz respeito ao tratamento da gramática,
auxiliando profissionais da área do ensino de língua estrangeira, em
particular de inglês. Assim, a fim de entendermos a ideia contida na
função modal que se apresenta na categoria modalidade, definiremos o
termo função modal.
Por função modal entendemos as circunstâncias de uso que
compreendem obrigações e deveres. Tais obrigações e/ou deveres estão
intimamente ligadas a obrigações do tipo interna ou externa. A obrigação
interna diz respeito a obrigações que alguém tem consigo mesmo, aquelas
ditadas pela consciência. Já as obrigações externas se atrelam a obrigações
oriundas de uma instituição, por exemplo, que ditam regras externas a
nós. Dessa forma, quando alguém se compromete a encontrar um outro,
este se vê obrigado por um comprometimento que sua consciência lhe
impõe. Para tal pessoa, é preciso se fazer presente ao encontro, uma vez
que se comprometeu, ou seja; a pessoa se vê obrigada a não se atrasar
mantendo o compromisso assumido. Por outro lado, se alguém trabalha,
e sua empresa determina que o funcionário tem que iniciar o trabalho às
7:30, já estamos diante de uma obrigação externa ditada pelas normas
da empresa.
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1199
Entendido o que envolve as obrigações interna e externa, e as
funções modais, passemos a alguns casos elucidativos para entendermos
as categorias orientadas para o agente (OA) e orientadas para o falante
(OF), encontradas em contextos de interpretação deôntica, e as funções
envolvidas em tais categorias. Contudo, inicialmente, vislumbramos os
materiais e os métodos para o estudo.
2 Procedimentos
A fim de compreender as funções e/ou valores (sentidos) inseridos
em excertos de interpretação deôntica, caracterizaremos primeiramente a
peça The glass ménagerie. Na sequência, trataremos dos procedimentos
metodológicos.
A peça se desenrola na casa de Amanda Wingfield, uma mulher
que foi abandonada pelo marido e que se mantém presa ao passado,
conduzindo a vida dos filhos à moda antiga, de maneira que seu maior
objetivo é ver a filha, Laura, casada. Laura é aleijada, muito frágil e
muito tímida. Tal condição preocupa muito a Sra. Wingfield. Assim, a
fim de atingir seu objetivo, Amanda exige do filho Tom que continue
com o trabalho em um depósito de sapatos, seja sempre responsável pelas
despesas da casa, e que arranje um pretendente para a irmã. Sufocado
pelas pressões da mãe, Tom se volta para idas ao cinema e encontra
refúgio também na bebida. Por fim, Tom convida o amigo Jim para jantar.
Para surpresa de Laura, Jim era um colega da escola por quem Laura
foi e ainda é apaixonada. Durante o jantar, Jim tenta fazer Laura parar
de se enxergar como alguém inferior e enfrentar a realidade. Laura tem
uma coleção de animais de vidro, dos quais o preferido é um unicórnio,
um símbolo de fragilidade na obra. Jim acaba por separar Laura desse
mundo de cristal, quando quebra o animal de vidro, preferido de Laura.
Na sequência, Jim acaba por revelar que está noivo.
Entendido o contexto, passemos aos procedimentos para o
desenvolvimento do estudo. Em virtude de tratar-se de uma investigação
de base funcionalista, que prioriza a linguagem em uso, a pesquisa
se volta para a análise de dados que se dão em contexto real. Tendo
em vista que a peça teatral é escrita para ser falada, nosso objetivo é
investigar como a modalidade colabora na construção dos personagens
na argumentação no discurso, no desenrolar do caráter dominador e no
ambiente de imposições dentro da peça.
1200
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A escolha da peça se deu por três motivos essenciais, quais
sejam: a) por conter diálogos que se desenrolam em seio familiar e, por
isso, os diálogos seriam mais espontâneos, b) por ser o texto escrito para
ser falada, portanto, encenada e c) por conter elementos que, de fato,
ocorreram na vida do autor, o que aproxima a peça da realidade.
Cabe destacar que o contexto espontâneo aqui adotado, é
entendido a partir de Vallès (2014, p. 48-50). Seguindo as categorias de
House (1997), o autor analisa em sua versão original, a série televisiva
“Os simpsons”, e aponta como espontâneo a característica de ser
informal, não técnico. Assim, podemos dizer que, a peça e a série se
assemelham, entre outros aspectos, quanto ao registro.3 Em particular,
quanto ao modo ou número de interlocutores (monólogo, diálogo), a
peça e a série são ambas escritas para serem faladas pelos personagens.
Também, consideramos com base em Gregory e Caroll (1978, p. 47 apud
HATIM; MASON, 1990, p. 49), que um texto pode ser escrito para ser
falado como se não fosse escrito. Dessa forma, peça e série se tornam
veículos para expressão da intenção comunicativa. E, como tal, estimulam
a vida real. Assim sendo, e tendo em mente o que diz Vallès (2014, p.
48), a linguagem espontânea é encontrada nas atividades diárias e nas
interações sociais dos personagens.
Retomando os instrumentos da pesquisa, procedemos à seleção
da obra e, consequentemente, dos excertos que continham modalizadores
deônticos. Após selecionarmos os excertos, passamos para a etapa
de análise dos valores deônticos. Nesse momento, categorizamos a
manifestação deôntica (verbos plenos, auxiliar, substantivo, adjetivo
em posição predicativa). Posteriormente, categorizamos os modos e a
inclusão ou não do enunciador e classificamos as marcas da asseveração
e atenuação. Por fim, geramos gráficos e discutimos os resultados.
Cabe salientar que optamos por analisar os excertos qualificados
exclusivamente por meio de itens lexicais e gramaticais. Contudo, as
estratégias de mitigação/atenuação e asseveração da força ilocucionária
que se manifestam por outros meios foram consideradas na análise
qualitativa.
3
Nosso foco diz respeito ao entendimento de textos no original, seguindo as categorias
apontadas por House (2001, p. 247-249), a partir de Halliday e Martin (1993), no que
diz respeito ao registro, que se divide em campo (field), relações (tenor) e modo (mode).
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Com o intuito de atingir nosso objetivo, procedemos à análise
qualitativa e quantitativa da manifestação da modalidade deôntica
nos excertos extraídos e por meio da caracterização das ocorrências
encontradas.
Foram analisados 259 enunciados com marcas deônticas; ou seja,
que de alguma maneira, estabelecem relação com o grau de imposição
e orientação de conduta, presentes nos diálogos e nos enunciados de
abertura e fechamento da peça teatral.
Apresentamos, a seguir, uma síntese dos procedimentos
metodológicos adotados:
a)
b)
c)
d)
constituição do corpus de ocorrência dos diferentes usos da
modalidade deôntica na peça teatral The glass ménagerie;
caracterização dos diferentes usos da modalidade deôntica por
meio da aplicação das categorias de análises discutidas a partir
da fundamentação teórica;
descrição e explicação do uso dos modalizadores deônticos
nos excertos extraídos dos enunciados dos personagens e dos
enunciados das cenas de abertura e fechamento da peça;
verificação de frequência de uso dos modalizadores deônticos,
por meio do programa computacional excel.
A fim de que pudéssemos empreender a análise quantitativa da
modalidade deôntica, optamos por usar o programa excel. Nele, inserimos
os excertos, a partir dos quais foram gerados os cálculos percentuais de
frequência pelo programa.
No intuito de analisar em que medida a modalidade deôntica está
a serviço da construção de sentidos na geração do caráter dominador e/
ou de imposições dos personagens e na abertura e fechamento das cenas,
cada variável recebeu uma codificação distribuída da seguinte forma:
Quanto ao tipo de modalidade (modal.): (OA, OF).
Quanto à manifestação da modalidade (manif.): (verbo lex., aux., adj.,
subst.)
Quanto às condições semiológicas por meio dos valores deônticos
(valor): obrigação, ordem, proibição, permissão, volição, habilidade
e exortação.
1202
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Quanto ao tipo de fonte (fonte): (Amanda, Tom, Laura, Jim).
Quanto ao alvo deôntico (alvo): (Amanda, Tom, Laura, Jim).
Quanto ao distanciamento do falante (dist. fal.): inclusão, não inclusão).
Quanto às marcas de asseveração e atenuação (marcas): (aten. assev.).
Em se tratando das categorias de análise, foram considerados
os aspectos sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos de forma
integrada. Assim, no que diz respeito aos aspectos de caráter semântico,
consideramos os valores de obrigação, proibição e permissão.
No que diz respeito ao tipo de fonte, foi considerado o papel
das fontes deônticas em contexto de diálogos espontâneos por meio das
fontes Amanda, Tom, Laura e Jim, no gênero peça teatral. Já no que
compete ao tipo de alvo, Amanda, Tom e Laura foram investigados para
nosso propósito.
Quanto aos aspectos pragmático-discursivos, concentramonos nas marcas de asseveração e de atenuação da força ilocucionária
para o entendimento do reforço ou da mitigação empregados pelas
fontes na peça. Por fim, a constituição do corpus se deu mediante o
agrupamento dos excertos extraídos de sete cenas da peça que tinham
como característica a presença de modalizadores deônticos.
3 Categoria OA e OF com função modal diretiva
Nesta seção, explicitamos alguns excertos da categoria OA e OF,
levando em conta o contexto de uso. Salientamos que na peça os casos
de modalidade orientada para o agente perfizeram 50,9%, enquanto que
a modalidade orientada para o falante se deu em 49,4% das ocorrências
que envolveram obrigações. Por esse motivo, voltamos nosso olhar para
o entendimento de tais casos.
É importante destacar que os excertos objeto de nosso estudo
são aqueles que se dão exclusivamente no original4, haja vista que não
tratamos aqui de análise contrastiva. Também o contexto de situação
em que ocorrem os excertos no original, em associações com termos
essenciais que se apresentam em seu entorno, é dado antes mesmo de
cada ilustração, sendo possível a compreensão dos excertos do inglês.
Todos os exemplos contidos no artigo são da peça The glass ménagerie de Tennessee
Williams (1973).
4
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Na sequência, os exemplos em português5 foram igualmente fornecidos
como forma de funcionar como mais um reforço a tal entendimento.
Assim, passemos aos seguintes contextos.
No excerto (01), a seguir, uma observação que podemos apontar
por meio da fala de Amanda, a mãe, é que a modalidade orientada para o
agente está presente. No contexto em questão, a conversa entre Amanda
e Laura é enriquecida com a presença da segunda pessoa “você” (you)
e a forma do modo imperativo “continue” (go in front). O advérbio de
negação “não” (no), que aparece no início da fala de Amanda, reforça
que recai sobre o outro (Laura) a obrigação em continuar com os estudos
e com a atividade de datilografia. Destacamos aqui a diferença no status
social de alguém que acaba por moldar o outro com quem interage, ponto
já ressaltado por MacCullum-Baylssi’s (1988, p. 70). Nesse sentido,
e considerando o contexto apresentado, o falante não deixa opção ao
ouvinte, a não ser o de se direcionar pelo curso imposto pela conversa.
Dessa forma, o que ocorre é que, pela condição do status do falante
que se encontra em posição superior, se cria para o ouvinte algo mais
forte interpretado como ordem. É por meio desse mecanismo que a mãe
Amanda tenta garantir que a filha Laura faça o que é solicitado. Assim,
Laura deve continuar seu curso de datilografia ou deve optar por outra
alternativa: “ou deve praticar um pouco sua taquigrafia” (or practice
your shorthand a little). Consequentemente, o pronome “você” (you)
interliga o que dita as duas ações para Laura, apresentando modalidade
orientada para o agente com função modal diretiva. Em tal contexto, o
falante exerce controle sobre o ouvinte, exercitando autoridade sobre este.
Assim, Amanda vai mostrando a atitude que deve ser tomada pela filha.
Quanto ao tipo de obrigação, em (01), encontramos a obrigação
externa, já que envolve um comando da mãe que impõe as condições
para a filha.
(01) A: No dear, you go in front and study your typewriter chart. Or
practice your shorthand a little. […]. (p. 239).
(A: Nada disso, meu bem, você vai para a sala estudar o quadro
do teclado para datilografia. Ou praticar um pouco de taquigrafia).
(p. 32).
Os excertos em português foram extraídos da tradução da peça realizada por Léo
Gilson Ribeiro (WILLIAMS, 1964).
5
1204
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No caso que se segue (02), a ordem a ser seguida é a de que
Laura deve se preocupar em ficar linda para encontrar um admirador e,
portanto, um marido.
(02) A: [...] Stay fresh and pretty! – It’s almost time for our gentlemen
callers to start arriving. […] How many do you suppose we’re
going to entertain this afternoon? (p. 239).
(A: [...] Conserve-se sempre fresca e bonita! já é quase tempo de
os nossos cavalheiros começarem a chegar para as visitas. [...]
Quantos você calcula nós vamos receber esta tarde?). (p. 33).
Ao usar “Conserve-se fresca e bonita” (stay fresh and pretty),
tem-se um imperativo. Na visão de Verstraete (2004), o uso do imperativo
corresponde ao uso subjetivo da modalidade deôntica. É um exemplo
claro de comando direto. Portanto, modalidade orientada para o falante.
Nota-se claramente a forte influência da mãe, que determina que a filha
esteja sempre bela para aguardar a chegada de um pretendente. Tem-se
aqui modalidade orientada para o falante com função diretiva.
Observando o excerto (03), extraído de uma explicação da
personagem Laura, vemos ressaltado o defeito que ela tem na perna e
que Laura acreditava que todos notavam ao andar. Observando o uso
deôntico de “ter que” (had to) no passado, estamos diante de um caso
envolvendo obrigação interna. Laura lidava com esse conflito consigo
mesmo, toda vez que tinha que caminhar, principalmente na presença dos
colegas. A jovem tinha que andar pela sala em frente a todos os colegas.
Também tinha que subir as escadas inteiras com o barulho do aparelho,
até chegar ao seu assento. Por esse motivo, atravessar toda a sala, para
ela, era um verdadeiro martírio. Laura acreditava que o aparelho na perna
chamava a atenção dos colegas, o que a incomodava profundamente.
E, neste caso, embora não seja uma forma direta de imposição, tem-se
modalidade orientada para o agente com função modal diretiva.
(03) L: […] I had to walk in front of all those people. My seat was in
the back row. I had to go clumping all the way up the aisle
with everyone watching! (p. 294).
(L: [...] Tinha que passar em frente daquela gente toda. Meu
lugar era na fila detrás. Tinha que subir as escadas inteiras
com o barulho do aparelho. E com todo o mundo me
olhando!). (p. 119).
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Vê-se no trecho (04) que Amanda exerce um forte poder sobre
ambos os filhos. Amanda se impõe, mandando inclusive na forma como o
filho deve comer. No caso que apontamos, o diálogo é endereçado a Tom.
Em (4), uma diretiva é, então, estabelecida e um comando fica implícito
por meio dos verbos “comer”, “mastigar”, “dar” (eat, chew, give).
Essa ocorrência envolve obrigação externa, apresentando modalidade
orientada para o falante com função modal diretiva.
(04) A: Eat food leisurely, son, and really enjoy it. […]. So chew your
food and give your salivary glands a chance to function! (p.
236).
(A: Coma devagar, meu filho, e saboreie [...]. Portanto, mastigue
bem e dê oportunidade às suas glândulas salivares de
funcionar!). (p. 29).
Encontramos em (05) a noção deôntica de obrigação, por meio
da qual se marca mais uma regra a ser seguida por Laura. No referido
caso, Laura fica obrigatoriamente condicionada a abrir a porta e se
deparar com o pretendente trazido pelo irmão, que obedeceu diante da
exigência da mãe. Nota-se, na ordem dada por Amanda, que a regra só
vale para Laura, uma vez que, Amanda se exclui da realização da ação
quando emprega o modal “poder” na negativa (can’t). O modo indicativo
é preferido, o que reflete que a sentença é assumida pelo falante como
marcada por realização. E estamos diante de uma modalidade orientada
para o agente com função modal diretiva.
Nota-se o emprego do futuro + a expressão “ter que”, que, de
acordo com Verstraete (2004), não expressa uma posição assumida
pelo falante, mas que ecoaria na fala do ouvinte. Contudo, a resposta é
posteriormente completada por Laura que também diz que não poderá
atender a porta. Observa-se que Laura tenta fugir desse encontro e,
consequentemente, desse universo de obrigação. Contudo, ocorre, por
meio do futuro “vai ter que” (will have to), a indicação de uma atitude
que deverá ser a adotada por Laura. Destacamos que, casos expressando
futuridade, serão melhor explicitados na seção 3.1
1206
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(05) L: Please, please, please, you go!
A: you’ll have to go to the door because I can’t.
L: [despairingly]: I can’t either!
A: Why?
L: I’m sick! (p. 279).
(L: Por favor, abra você, por favor, eu suplico!
A: Você tem que abrir porque eu não posso.
L: (Desesperando-se) Nem eu!
A: Por quê, criatura?
L: Estou... passando mal!). (p. 93).
A partir de Wärnsby (2006, p. 127), a referência temporal da
proposição e a referência temporal da modalidade podem ser importantes
para o reconhecimento de características que contribuem para a
interpretação modal. Tais aspectos podem ser observados envolvendo
a função modal diretiva e a voz passiva. Consideramos os casos dessa
natureza também nessa seção.
No exemplo (06), Amanda conduz a atitude do filho, no momento
em que ele chega para fazer a refeição. A voz passiva mais a expressão
perifrástica “ter que” (have to) empregadas por Amanda indicam que os
sabores devem ser mantidos um pouco na boca a fim de que possamos
apreciá-los melhor. E, assim, Tom deve proceder, a fim de sentir o
gosto dos alimentos. Por meio de “ter que” mais a voz passiva, tem-se
modalidade orientada para o agente com função modal diretiva.
(06) A: […] A well-cooked meal has lots of delicate flavours that have
to be held in the mouth for appreciation. […] (p. 236).
(A: Uma refeição bem preparada tem muitos sabores delicados
que têm que ser retidos na boca para serem devidamente
apreciados.) (p. 29).
No exemplo destacado em (07), é esperado que haja alguém que
realize o evento da proposição. Nesse contexto, a voz passiva é a opção
empregada por Amanda. A escolha pela voz passiva pode ser ditada pelo
fato de o falante, não querer dar uma ordem explícita ao ouvinte, ou não
considerar importante especificar qual agente realizará a ação. Porém, a
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ação é apresentada como devendo ser realizada. O emprego da expressão
perifrástica “ter que” (have to) + particípio do verbo, bem como do verbo
“dever” no sentido de “precisar” (ought to) + particípio mostram que é
preciso alguém polir a prataria e lavar a toalha da mesa, lavar as janelas
e trocar as cortinas para a ocasião especial que terão. Portanto, apesar
de não envolver um comando exatamente, tem-se modalidade orientada
para o agente com função modal diretiva.
(07) A: […] All my wedding silver has to be polished. The
monogrammed table linen ought to be laundred! The windows
have to be washed and fresh curtains put up. (p. 267).
(A: [...] Temos que polir os talheres de prata de meu casamento,
que lavar e passar a toalha de linho com monogramas! As
janelas têm que ser lavadas e tenho que colocar cortinas
novas!). (p. 72-73).
Cabe destacar ainda, com base em Wärsnby (2006), que, em
produção de fala deôntica, a referência ao tempo passado em inglês,
envolvendo os modais may/must, daria lugar a expressões modais como
be allowed to e have to no passado. Isso posto e, de acordo com Palmer
(2001:76), a restrição no caso do passado, “[...] é essencialmente uma
característica do inglês”.6
Outro exemplo que também contém a voz passiva e contempla o
sentido deôntico apresenta-se em (08), a seguir, quando Laura escorrega,
dando um grito e assustando Amanda e Tom.
(08) A: […] If anyone breaks a leg on those fire-escape steps, the
landlord ought to be sued for every cent he possesses! […].
(p. 257)
(A: Se alguém quebrar a perna nesses degraus, o proprietário devia
ser processado até o último centavo!). (p. 57)
Diante do susto, Amanda aproveita o contexto e responsabiliza o
proprietário do imóvel pelo fato de alguém eventualmente quebrar uma
perna (if anyone breaks a leg) nos degraus da escada de emergência.
6
“[t]he restrictions on the past tense are […] essentially a feature of English.” (PALMER,
2001, p. 76).
1208
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Nessa circunstância, o proprietário deverá ser processado. O emprego
do verbo “dever” + verbo na passiva (ought to be sued) em oração do
condicional retrata a situação que será imposta ao proprietário do imóvel,
haja vista que o proprietário tem que conservar o imóvel de forma que
os condôminos estejam sempre em segurança. Corroborando Verstraete
(2004), é evidente que o condicional é direcionado contra aquele que está
envolvido na manutenção do prédio: o proprietário. E, assim, o falante
(Amanda) acaba por se posicionar contra o proprietário, contudo sem se
comprometer. Destacamos que a responsabilidade do comprometimento
não é do falante, mas recai sobre um outro. Consequentemente, a
modalidade deôntica reflete o comprometimento com a subjetividade.
A partir da ocorrência aqui em destaque, concluímos, com Verstraete
(2004), que não podemos excluir a modalidade deôntica da categoria das
modalidades subjetivas, haja vista que a modalidade deôntica subjetiva
equivale a um imperativo. Nesse âmbito, expressa o desejo do falante
de que uma determinada ação se realize. E embora em (08) não haja um
comando direto, trata-se de uma modalidade orientada para o agente
com função modal imperativa pela força da situação que será imposta
ao proprietário do prédio.
3.1 Categoria OA reportando-se ao futuro
Tem-se novamente em (09) a noção deôntica de obrigação, por
meio da qual se marca o que é assumido pelo falante. O modo indicativo
é preferido aqui por Amanda, o que reflete que estamos diante de uma
modalidade orientada para o agente, com função diretiva. Amanda
tem que pensar rapidamente sobre a organização do jantar e sobre
os preparativos para a chegada do rapaz. Também, o asseverador de
“certeza” (certainly) empregado reforça a obrigação por parte de Amanda.
Tal obrigação será cumprida adiante.
(09) A: I’ll certainly have to do some fast thinking, won’t I? (p. 267).
(A: Terei que pensar muito rápido agora, não é?). (p. 72-73).
Seguindo o mesmo raciocínio, Amanda, como expresso em (10),
será obrigada a trabalhar como um mouro; ou seja, trabalhar duro para
que tudo esteja pronto até o jantar, já que Tom a avisou da vinda de um
rapaz no dia anterior. Assim, ela terá pouco tempo para os preparativos.
O uso de “ter que” (have to) + verbo, é destacado em (10).
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(10) A: […] I’ll have to work like a Turk! (p. 268).
(A: [...] eu vou ter de trabalhar como um mouro!). (p. 74).
Em se tratando da noção deôntica em que se marca o que é
assumido pelo falante, Laura usa do mesmo recurso para se referir a algo
que ainda estar por vir. Assim, em (11), Laura mostra sua recusa em ficar
face a face com o pretendente. Tal fato ocorre por meio do futuro (will)
+ a expressão “ter que” (have to), um processo com efeito refletido no
futuro. Ou seja, para Laura, a mãe será obrigada a desculpá-la por não
se sentar à mesa se Tom trouxer o rapaz por quem Laura era apaixonada
no passado. Consequentemente, modalidade orientada para o agente,
com função diretiva.
(11) L: […] If that is the one that Tom is bringing to dinner – you’ll
have to excuse me, I won’t come to the table.
A: [...] You’ll come to the table. You will not be excused.
L: I’ll have to be, Mother. (p. 277-278).
(L: [...] Se for o mesmo que Tom está trazendo para jantar. . . peço
desculpas, mas não aparecerei na sala.
A: [...] você vai sentar-se conosco. Não tem desculpa!
L: Mas você tem que me dispensar, mamãe). (p. 90-91).
Outras vezes, mesmo regida pelo que dita a mãe com frequência,
Laura tem um ou outro momento em que tenta se impor mostrando como
deve agir. Dessa forma, em (12), temos o desenrolar de uma atitude que
deverá ser adotada pelo agente: por Laura em momento futuro. A moça
impõe-se dizendo que não usará o enchimento para os seios; ou seja, as
duas esponjas de pó de arroz que a mãe separa para Laura usar nos seios no
dia do jantar. Laura lança mão do modal will + not + verbo (I won’t wear
them), para marcar que não usará os disfarces sedutores (Gay Deceivers) e
reforçar sua atitude em relação ao que impõe a mãe. Portanto, a obrigação
se apoia em uma modalidade orientada para o agente
(12) L: Mother what are you doing?
A: They call them ‘Gay Deceivers’!
L: I won’t wear them!
A: You will! (p. 275).
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(L: Que é que você está fazendo, mamãe?
A: O que se chama de “disfarces sedutores”!
L: Não vou usar isso!
A: Vai, sim, senhora!). (p. 86-87)
Na sequência, em (13), aparece uma imposição de Amanda que
também é marcada pela futuridade, sendo preferido o uso de going to +
verbo (listen). Dessa maneira, na tentativa de calar Tom, que durante a
discussão desencadeia uma série de verdades, dentre elas, o fato de ser
ele quem paga o aluguel, Amanda é imperativa no sentido de que agora
é a sua vez de dizer algo. Do ponto de vista de Amanda, Tom está sendo
insolente e ela não mais aceitará nenhuma insolência do filho. Nesse caso,
embora não ocorra o uso do imperativo, estamos diante da modalidade
que exerce demonstração de força, imposição, já que Amanda se encontra
no limite da paciência com o filho. Portanto, temos aqui a modalidade
orientada para o agente com função imperativa.
(13) A: You will hear more, you T: No, I won’t hear more, I’m going out!
A: […] You’re going to listen, and no more insolence from you!
I’m at the end of my patience! (p. 250-251).
(A: Você vai me ouvir até o fim.
T: Não vou ouvir mais nada, vou é sair!
A: Você vai me ouvir e não tolero mais insolência de sua parte!
Não tenho mais paciência!). (p. 45).
3.2 Categoria AO e OF com função modal de procedimento e instrução
Outro tipo de função modal tem seu registro na peça, a função
modal de procedimento ou de instrução. Vejamos alguns exemplos.
Em conversa com a mãe, Laura se vê como aleijada e, por
esse motivo, não se anima em procurar um pretendente. Amanda tenta
mostrar que o que ela tem é um pequeno defeito físico. Assim, passa a
orientá-la, mostrando o procedimento a ser adotado em uma situação
desfavorável como a de Laura. Segundo Amanda, nessas condições, as
pessoas cultivam outras coisas. Dessa forma, cada vez que as pessoas
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se deparam com uma situação difícil, tal qual um hábito, devem sempre
desenvolver “o charme e a vivacidade” (charm and vivacity), tornando-se
um procedimento que deve ser seguido por Laura, como algo corriqueiro.
Nessa conversa, o emprego do presente do indicativo por meio
dos verbos “ter” (have) “cultivar” (cultivate) e “desenvolver” (develop)
reforça a ideia do procedimento e como tal, algo que se repete a cada
vez que Laura tiver uma situação dessa natureza. Por procedimento
aqui, entendemos como uma técnica ou método a ser aplicado. Em
suma, quando alguém tem uma desvantagem como no caso de Laura, é
preciso seguir um procedimento para desviar o foco do problema, uma
vez que o defeito de Laura é algo permanente. Portanto, o procedimento
adotado por Laura também é permanente no sentido de que, toda vez
que lembrar do defeito deve aplicar o procedimento de cultivar outras
coisas. Trata-se de modalidade orientada para o agente com a função
modal de procedimento, haja vista que, o defeito permanente de Laura
a fará lançar mão desse procedimento apontado pela mãe, pelo resto da
vida. No excerto (14), comprovamos o que asseveramos.
(14) L: […] I’m crippled!
A: [...] Why, you’re not crippled, you just have a little defect
– hardly noticeable, even! When people have some slight
disadvantage like that, they cultivate other things to make up
for it – develop charm – vivacity – and – charm! […] (p. 247).
(L: Eu sou ... aleijada! Bobagem! Laura, eu já lhe disse para nunca,
mas nunca, usar essa palavra. Ora, você não é nada aleijada,
só tem um defeitinho à-toa, que quase nem se nota! Quando
alguém tem uma desvantagenzinha como essa, procura cultivar
outras qualidades para compensar — desenvolver o encanto
pessoal... a vivacidade... o charme! [...]). (p. 41-42).
Em (15), a fim de mostrar como Laura deve agir e fazê-la ter mais
confiança, Tim usa “Só olhe para você um pouco” (Just look about you a
little). O caso ilustra a função modal de procedimento, uma vez que tem
relação com procedimento ou com sequência de atividades habituais e
frequentes que fazemos. Trata-se de um procedimento que Laura deve
adotar corriqueiramente. Por esse motivo, estamos diante de um tipo de
modalidade orientada para o falante. Destacamos o uso do advérbio “só”
+ verbo “olhar” (just + look), que insere uma obrigação externa, uma
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vez que, a realização do valor deôntico é originado de algo externo ao
falante. Por meio de “só”, tem-se uma ideia de exclusão, do tipo “Faça
só isso e mais nada, olhe para você!”
(15) L: In what way would I think?
J: Why, man alive Laura! Just look about you a little. (p. 299).
(L:Em quê, por exemplo?
J: Ora bolas Laura! Basta você olhar em torno de você). (p. 127).
Contudo, na sequência, quando Jim se refere a ele mesmo, e não
a Laura, em “Tome-me como exemplo” (take me), podemos entender
como função modal de instrução. Nessa situação, Jim está usando a si
mesmo como um modelo que Laura deve seguir, pois lista uma série de
atividades por ele desenvolvidas. Laura deve envolver-se em alguma
atividade tal qual Jim. Nota-se a inversão da fonte e do alvo, sendo Jim,
o alvo. Contudo, a obrigação não é imposta pelo falante. A situação de
necessidade propriamente dita, já que Laura precisa se espelhar em Jim,
apenas revela que o agente tem obrigação de espelhar-se nele, como
compreendido por Palmer (2001, p. 75), e Bybee, Perkins e Pagliuca
(1994). Almeida (1988, p. 17), ao contrário, analisaria a questão como
uma obrigação interna. Assim, de acordo com Almeida, Jim se coloca
em uma posição que mostra que ele está apenas auxiliando Laura.
O contexto situacional em (16) revela que Jim dá uma instrução
a Laura
(16) J: [...] Take me, for instance. My interest happens to lie in
electro-dynamics. I’m taking a course in radio engineering
at night school, Laura, on top of a fairly responsible job at
the warehouse. I’m taking that course and studying public
speaking. (p. 299).
(J: Veja o meu caso, por exemplo. Meu interesse, por acaso,
é pela eletrodinâmica, assim como poderia ser por outra
coisa qualquer. Estou frequentando um curso noturno de
radiotécnico. Laura, além de arcar com um emprego de muita
responsabilidade no depósito, estou com esse curso e estudo
também oratória). (p. 127).
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3.3 Categoria OA com função modal volitiva
Uma vez que, na função modal, entendemos as circunstâncias de
uso que compreendem obrigações e deveres, um aspecto que pode servir
de pista na interpretação modal seria a volição. Assim, apoiamo-nos em
Quirk (1985) e Palmer (2001), que posicionam ordem e volição em um
mesmo paradigma. Dessa forma, no contexto escolhido para o estudo,
constatamos que a volição pode assumir o papel de obrigação. Salientamos
que, a fim de que ocorra uma interpretação deôntica, é necessário que
haja uma fonte interessada na realização da ação descrita na proposição.
Assim, um dos elementos de controle do agente é a volição. Nos casos
analisados, e de acordo com Bybee (1995), a manifestação da volição,
atua como estratégia para fazer o interlocutor agir conforme o que o
falante espera. Diante desse prisma, e, considerando o que diz Amanda
em (17) e, de acordo com o contexto de uso, Amanda quer tudo perfeito
para o encontro com o pretendente. Então, por meio de “querer” (want),
Amanda expressa seu desejo da realização do evento da proposição. E
o desejo de Amanda, nada mais é, do que uma ordem.
Cabe destacar que a volição é marcada na peça teatral em 16,6%
das ocorrências, e está representada no excerto que se segue em (17), cujo
contexto envolve os preparativos para recepcionar o suposto pretendente
para Laura. Amanda quer que tudo esteja organizado para que corra tudo
bem durante o jantar (I want things nice). Para Amanda, é importante
fazer algo caprichado. Assim, o uso da expressão perifrástica “ter que”
(have to) + verbo na oração que antecede o uso de “querer” já reforça
a obrigação, à qual Amanda se submete ao se comprometer em receber
um convidado. Nesse caso, tem-se modalidade orientada para o agente
com função modal volitiva.
(17) A: Naturally I would like to know when he’s coming!
T: He’s coming tomorrow.
A: Tomorrow?
[…]
T: You don’t have to make any fuss.
A: Oh Tom, Tom, Tom, of course I have to make a fuss! I want
things nice, not sloppy. (p. 267).
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(A: Naturalmente, eu queria saber quando ele vem!
T: Vem amanhã.
A: Amanhã?
[...]
T: Não tem que fazer nada demais.
A: Ora, Tom, Tom, Tom, claro que tenho que fazer mil coisas!
Quero tudo muito direitinho, nada desleixado!). (p. 72-73).
Vemos a volição se apresentar também na fala do filho. Isso
ocorre quando Amanda insiste para que Tom coloque creme no café. A
insistência é rebatida inicialmente com polidez, mas Tom acaba por usar
o verbo “querer”, mostrando sua vontade de ter o café preto. Portanto,
modalidade orientada para o agente com função modal volitiva é o que
é revelado em (18):
(18) A: You can’t put in a day’s work on an empty stomach. You’ve
got ten minutes-don’t gulp! Drinking too- hot liquids makes
cancer of the stomach…Put cream in.
T: No thank you!
A: To cool it.
T: No thank you, I want it black. (p. 258).
(A: Como é que você pode trabalhar o dia inteiro com o estômago
vazio? Ainda faltam dez minutos. Não engula o café depressa!
Beber líquidos quentes demais dá câncer no estômago... Ponha
leite no café.
T: Não, obrigado.
A: É para esfriar.
T: Não! Não, obrigado, prefiro sem leite). (p. 37).
Outras vezes, o desejo do personagem é retratado por meio da
expressão would rather, que expressa preferência. Tal fato é revelado
em (19) quando Tom fala de como se sente trabalhando no depósito de
sapatos e do que preferiria fazer ao invés de desperdiçar vinte e cinco
anos de sua vida enfiado no depósito, cuja única vista são os sapatos e as
fluorescentes. A questão o atormenta tanto que Tom preferiria mil vezes
que alguém esmigalhasse seus miolos (I’d rather somebody picked up a
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crowbar and battered out my brains) a ter que voltar para o depósito toda
segunda. Entendemos aqui a permissão no sentido de concessão. Tom
se permite algo drástico, só para não ter que voltar para o trabalho que,
definitivamente abomina e que o consome, tornando-o infeliz. Tem-se,
portanto, modalidade orientada para o agente com função modal volitiva
(19) T: […] You think I’m in love with Continental shoemakers? You
think I want to spend fifty-five years down there in that - celotex
interior! with - fluorescent - tubes! Look! I’d rather somebody
picked up a crowbar and battered out my brains than go back
mornings! […]. (p. 251).
(T: Escute aqui: você pensa que eu sou louco pelo depósito? (Ele
se curva ferozmente diante da figura frágil da mãe.) Você pensa
por acaso que estou apaixonado pela Manufatura de Calçados
Continental? Pensa que vou querer passar cinquenta e cinco
anos inteiros naquele interior de celotex com tubos de luz
fluorescente? Olhe: eu preferia mil vezes que alguém pegasse
um pedaço de ferro e me esmigalhasse os miolos a voltar para
lá todas as manhãs!). (p. 48-49).
A questão da volição também é posta na peça por meio do
emprego do verbo “desejar” (wish) + subjuntivo, no exemplo (20) a
seguir. No contexto, Amanda, que havia feito uma visita surpresa ao
curso de Laura e descoberto que a filha nunca havia frequentado o curso,
vem exigir explicações. Então, Amanda a surpreende com uma série
de indagações sobre o futuro, como sobre o que Laura espera fazer na
vida. Laura, inicialmente, não compreende as indagações, pois não sabia
da ida da mãe ao curso. Dessa maneira, o desejo de Laura é que a mãe
explique o acontecido, algo que só ocorrerá em momento posterior, no
futuro. Laura emprega o verbo “desejar” (wish) + futuro do subjuntivo
no intuito de conseguir que a mãe venha a dizer o que aconteceu. Trata-se
de uma modalidade orientada para o agente com função modal volitiva.
(20) A: What are we going to do, what is going to become of us, what
is the future?
L: Has something happened, Mother? […]
A: […]
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L: Mother, I wish that you would tell me what’s happened! (p.
242-243).
(A: O que vamos fazer agora, o que vai ser de nós, que futuro
nos aguarda?
L: Aconteceu alguma coisa, mamãe?
A: [...]
L: Mamãe, por favor me diga o que foi que aconteceu!). (p. 35).
Salientamos que, a volição apareceu em 11,6% das ocorrências,
marcando a desejabilidade na peça.
3.4 Categoria OA com função modal proibitiva
Ainda atrelados à categoria OA com interpretação deôntica de
proibição, podemos destacar, na obra de Tennessee Williams, a proibição
externa. Amanda, ao telefone, conversando sobre o cancelamento da
assinatura do canal do Companion pela amiga, o que a levaria a perder
a novela que foi comparada ao “E o Vento Levou”, argumenta que não
podia sair de casa sem assistir a tal novela. Assim, à amiga não era
permitido perder tal novela, já que foi considerada pela crítica como
fantástica. Evidenciamos, por intermédio do modal “poder”, mais uma
vez, Amanda exercendo seu papel de liderança, no direcionamento de
condutas no diálogo com a amiga. Por meio do verbo “poder” + negativa
(couldn’t), instaura-se a proibição. Notamos, assim, a modalidade
orientada para o agente, com função modal proibitiva em (21).
(21) A: […] You simply couldn’t go out if you hadn’t read it. All
everybody talked was Scarlet O’Hara. Well, this is a book that
critics already compare to Gone with the Wind. It’s the Gone
with the Wind of the post-world War generation! […] (p. 249).
(A: Era impossível sair de casa sem ter lido até a última linha.
Todo mundo só falava de Scarlett O’Hara. Pois é, essa novela
de agora já é comparada pelos críticos a E o Vento Levou...
Dizem que é E o Vento Levou. . . da geração de depois da
Guerra Mundial!). (p. 45)
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Observa-se que o verbo “ousar” em construção negativa
estabelece uma proibição externa. Nesse momento, Tom questiona a
mãe sobre quem paga as contas da casa. A mãe reage, não permitindo
que Tom sequer ouse falar assim. O emprego do advérbio de negação +
presente + “ousar” (dare) torna evidente a postura adotada por Amanda;
ou seja, a de não permitir que Tom alegue o pagamento das contas. De
fato, tem-se uma modalidade do tipo orientada para o agente, sendo
Amanda a fonte e Tom o alvo dessa proibição.
Alguns segundos depois, observa-se também que Tom reforça
ainda mais a proibição externa ao usar o modal “dever” + negativa
(mustn’t), e “ter que” (have got to) + verbo. Como consequência, Tom
não deve dizer tais coisas à mãe. Ao Tom, resta ficar calado. Modalidade
do tipo orientada para o agente com função modal proibitiva é a que se
apresenta em (22) como proibição externa.
(22) T: House, house! Who pays rent on it, who makes a slave of
himself to –?
A: […] Don’t you DARE toT: No, no, I mustn’t say things! I’ve got to just – (p. 250).
(T: Casa, casa! Quem é que paga o aluguel, quem é que trabalha
feito um escravo para...
A: [...] Não se atreva a...
T: Ah, não, não devo dizer nada! Tenho é que ficar... ). (p. 45).
Uma outra situação que insere o valor de proibição está no excerto
(23), em que Laura se intitula aleijada e a mãe, imediatamente, a proíbe
de usar tal palavra, haja vista que Amanda já a advertira diversas vezes,
para nunca usá-la. O uso do advérbio de frequência “nunca” (never),
empregado repetidamente por Amanda, confirma a não permissão para
Laura usar a palavra aleijada e, consequentemente, essa é uma modalidade
orientada para o agente, com função proibitiva.
(23) L: But mother –
A:Yes? […].
L: […] I’m crippled!
A: Nonsense! Laura, I’ve told you never, never to use that word.
(p. 246-247).
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(L: Mas, mamãe. . .
A: O que é? [...]
L: [...] Eu sou... aleijada!
A: Bobagem! Laura, eu já lhe disse para nunca, mas nunca, usar
essa palavra). (p. 41-42).
Por último, sobre as interpretações deônticas com função modal
proibitivas, cabe salientar que, esses casos se deram em 6,6%.
3.5 Categoria OA com função permissiva
Achamos pertinente destacar o caso (24), haja vista que ocorre a
não permissão ou a proibição que emana do verbo modal “poder” (can),
na negativa. A modalidade estabelece um procedimento que se estende
para a futuridade. Enquanto Tom não se senta à mesa, Amanda e Laura
ficam impedidas de fazer a oração dando graças pelo alimento. Assim,
a elas, não é permitido dar graças até que Tom tome seu lugar. Trata-se,
neste caso, de modalidade orientada para o agente, sendo Tom o alvo
deôntico. Saeed (2004) aponta três diferentes níveis para a modalidade,
que vão do mais forte para o mais fraco, e faz a distinção entre o “poder”
(could) e “poder” (can). O primeiro é entendido como mais fraco.
E já que nosso corpus é para ser falado, também cabe igualmente
destacar Lopes (2014), que apresenta os graus de persuasão fraca (poder),
forte (não poder/ter que) e normal (poder), para a distinção da força
na carga semântica do verbo ou expressão modalizadora, na proposta
tipológica para a análise de parâmetros na fala do professor. Assim, em
(24), pode-se ver uma forma mais informal, revelando que o uso de
“poder” (could ou can) depende de diferentes julgamentos e graus de
formalidade na relação entre os interlocutores. Por conseguinte, temos
modalidade orientada para o agente com função permissiva.
(24) A:Tom?
T: Yes Mother.
A:We can’t say grace until you come to the table! (p. 236).
(A:Tom?
T: Que é, mamãe?
A: Não podemos dizer a oração de graças enquanto você não vier
para a mesa!). (p. 29)
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No caso que se segue, tem-se a noção deôntica de permissão.
É Amanda quem solicita a permissão a Tom para dizer algo, quando
emprega o verbo “deixar” (let me), e cuja permissão recai sobre a própria
Amanda. Assim, ocorre solicitação de permissão do tipo concessão, uma
vez que, Tom deveria conceder o turno a Amanda. Vemos que, ocorre
a orientação de uma conduta sobre outra pessoa. Assim, encontramos
modalidade orientada para o agente, com função modal concessiva.
(25) A: Let me tell you –
T: I don’t want to hear any more! (p. 250).
(A: Vou lhe dizer uma coisa...
T: Não quero ouvir mais nada!). (p. 45).
Em (26), notamos o uso do substantivo “permissão” (permission),
o falante atribuindo a outro a permissão para agir. Nesse sentido, tem-se
a permissão de uma obrigação do tipo externa, já que Jim pede permissão
a Laura para mastigar uma goma de mascar. Em (26), então encontramos
modalidade orientada para o agente, sendo Laura a fonte e Jim o alvo.
(26) J: […] Will you have some gum?
L: No, thank you.
J: I think that I will indulge with your permission (p. 292).
(J: [...] Quer mastigar chicletes?
L: Não, obrigada.
J: Bem, vou tomar a liberdade, com sua permissão). (p. 89).
Quanto aos dados percentuais das interpretações deônticas com
função modal permissiva, destacamos que estas ocorreram em 10,0%
dos casos das modalidades deônticas encontradas na peça teatral.
3.6 Categoria OA com função modal de obrigação
Vemos evidenciado em (27) que a necessidade condiz com uma
obrigação, quando Tom é indagado por Laura sobre o motivo de ele ter
ficado até o fim do show a que assistiu. Na tentativa de justificar por
que chegou tarde, Tom explica que houve um show de mágica e que o
mágico precisou de alguém para ajudar no número. O emprego do verbo
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“precisar” (needed) chama atenção para uma obrigação, haja vista que o
mágico precisava de alguém da plateia. Ocorre, pois, a necessidade de se
fazer algo, o que pode ser interpretado como obrigação de se fazer algo,
indicando o uso de uma modalidade orientada para o agente.
(27) T: […] because he needed somebody to come up out of the
audience to help him and I came up. […] (p. 255).
(T: [...] porque ele precisava de alguém que subisse no palco para
ajudá-lo e eu fui [...]. (p. 53).
Em dado momento da peça, deparamo-nos com um outro caso
envolvendo necessidade. Desta vez, a situação ocorre quando Jim
tenta trazer Laura para o mundo real e deixá-la mais confiante. Jim
percebe o complexo de inferioridade que ela tem. Assim, em “alguém
precisa”(somebody needs) aumentar a confiança de Laura, percebe-se
que Jim a fará ser menos tímida. Tal ação culmina em um beijo, com o
uso do verbo “precisar” (ought to) + verbo, por duas vezes, o que reforça
que o beijo se faz tão necessário para Laura no momento, pois é o beijo
que irá despertá-la do mundo de ilusões. Tem-se, em (28), modalidade
orientada para o agente com função modal de obrigação.
(28) J: [...] I am talking to you sincerely. [...] Somebody needs to build
your confidence up and make you proud instead of shy and
turning away and – blushing- Somebody – ought to –
Ought to – kiss you, Laura! (p. 304)
(J: Estou falando com você sinceramente. [...]Alguém tem que
reforçar sua confiança em si mesma e torná-la orgulhosa de
si mesma em vez de ternamente acanhada, esquiva... corando
por qualquer coisa...
Alguém devia é... de...
Devia é de... beijá-la, Laura!). (p. 137).
Também, ao tentar mostrar para Laura como as moças da época
procediam, quando iam receber um rapaz, Amanda aponta o que era
necessário uma moça ter e saber para a ocasião. Amanda tenta transmitir
a Laura, o que é preciso aprender com as moças de antigamente para
arranjar um marido. Nesse sentido, o verbo “precisar” na forma needed
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+ verbo “ter” (have to) sinaliza na direção do que qualquer moça tinha
que ter e de que Laura tem que ter, para laçar um marido. Em (29),
destacamos a modalidade orientada para o agente com função modal de
obrigação, já que se trata de algo necessário a toda moça para conquistar
um marido. Cabe salientar que Laura é todo tempo incitada a ter traquejo
e a ter respostas rápidas para impressionar os cavalheiros que aparecessem
para cortejá-la e, assim, arranjar um pretendente para se casar
(29) A: […] She also needed to have a nimble wit and a tongue to meet
all occasions (p. 238).
(A: [...] Era preciso que ela tivesse também espírito, compreensão
rápida e uma resposta para tudo.) (p. 31).
Em se tratando das interpretações deônticas envolvendo a função
modal de obrigação, foram estas as que mais se destacaram na peça,
atingindo o percentual de 59,5% de ocorrências, o que revela um índice
elevado de imposições que recairão sobre o outro.
3.7 Categoria OA com função modal de habilidade
Uma vez que consideramos Bybee, Perkins e Paliuca (1994) e
Palmer (2001), entendemos ser a habilidade/capacidade compreendida
dentro do campo da modalidade deôntica. Eggins e Slade (2001, p.
102), no entendimento da modalidade deôntica, também consideram
a habilidade, mas usam o termo modulação no lugar de modalidade.
Definem modulação7 como a maneira de o falante expressar seus
julgamentos sobre ações e eventos. Segundo as autoras, há dois principais
recursos estruturais que expressam graus de capacidade. O primeiro
pode ser identificado por meio do modal “poder” (can), quando usado
para indicar habilidade e não probabilidade. E o segundo, por meio do
pronome pessoal do caso reto + adjetivo de capacidade, como em “ele
é capaz” (he is capable).
Em (30), que se apresenta a seguir, Amanda confiscou o livro de
Tom e diz não poder controlar o que sai das mentes doentes de autores
como aquele que Tom está lendo. Assim, mostra sua não habilidade ou
7
Modulation is a way of tempering the directness with which we seek to act upon each
other (EGGINS; SLADE, 2001, p. 102).
1222
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não capacidade em fazer algo. Portanto, modalidade orientada para o
agente, com função modal de habilidade.
(30) A: I took that horrible book to the library - Yes! That hideous book
by the insane Mr. Lawrence. […] I cannot control the output
of diseased minds or people who cater to them. (p. 250).
(A: Sim, senhor: levei de volta aquela novela horrível para a
biblioteca. Aquele livro repugnante daquele maluco do Sr.
Lawrence [...] Não posso controlar a produção de mentes
doentias ou pessoas que se rebaixam a satisfazê-las). (p. 45).
Em dada situação na peça, Amanda comenta sobre quando era
jovem e tinha pretendentes. De acordo com Amanda, naqueles tempos,
uma garota sabia como falar com os rapazes. Assim, na tentativa de
convencer o filho a trazer algum amigo para conhecer Laura e fazer
com que Laura aceite o pretendente trazido pelo irmão, Amanda se diz
capaz de contar sobre como eram esses tempos. O uso do modal “poder”
(can) + verbo “contar” (tell) aponta para essa capacidade ou habilidade
de Amanda, que passa a explicar em detalhes como as moças procediam
para entreter os pretendentes. Trata-se de modalidade orientada para o
agente, com função modal de habilidade, sendo Amanda o alvo deôntico.
(31) A: Girls in those days knew how to talk, I can tell you.
T: Yes?
[…]
A: They knew how to entertain their gentlemen callers. […]
(p. 237-238).
(A: As moças do meu tempo sabiam falar, pode ficar certo.
T: Ah, é?[...]
A: Elas sabiam entreter os cavalheiros de visita). (p. 30).
Destacamos na peça o uso do modal “poder” por meio de could
com o sentido de capacidade. Tal fato ocorre quando Amanda esclarece
para Laura que deu ao Tom algum dinheiro a mais, para que ele e o Sr.
O’Connor pudessem ir de carro. Assim, Tom e o Sr. O’Connor teriam
condições de chegar, sem nenhum atraso, para o tão esperado jantar. O
falante, no caso Amanda, avalia a realidade do estado-de-coisas (EC), em
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termos de normas morais, legais e/ou sociais. Segundo Dik (1989), um
estado-de-coisas é entendido como uma interpretação linguisticamente
codificada de algo em algum mundo. Para o caso em questão (32),
modalidade orientada para o agente, com função modal de habilidade.
(32) A: […] I gave your brother a little extra change so he and Mr.
O’Connor could take the service car home. (p. 277).
(A: Dei um trocado extra a seu irmão para ele e o Sr. O’Connor
poderem tomar o táxi para vir...). (p. 90).
Das ocorrências envolvendo interpretação deôntica de habilidade/
capacidade, a peça nos revelou 6,2% nos excertos investigados.
3.8 Categorias OA e OF e o distanciamento ou não do falante
Um importante aspecto envolvendo as categorias da modalidade
OA e OF diz respeito à posição do falante em relação ao alvo, sobre
quem recai os valores de obrigação, permissão, proibição, dentre outros
apresentados no artigo. Assim, ao instaurar um determinado valor, ocorre
a inclusão ou não do falante na execução de tal valor. O excerto (33)
aponta na direção de uma inclusão por parte do falante, quando Laura é
quem se dispõe a tirar a mesa, pedindo permissão para assim agir (let me
clear the table). O verbo “deixar” (let) anuncia a solicitação de Laura,
deixando claro o pedido de Laura para se encarregar da tarefa.
(33) L: [rising] Mother let me clear the table. (p. 239).
(L: (Levantando-se) Mamãe, deixe que eu tiro a mesa). (p. 32).
Um outro caso pode ser visto em (34), e ainda com base em
Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), onde as autoras entendem, sob o leque
da modalidade orientada para o falante (OF), o tipo exortativo. Nesse
tipo, o falante encoraja um outro a agir. Na situação que se desenrola,
Amanda desabafa com Tom sobre coisas que tem guardado no peito e
que não dá para descrever para Tom. Tom, em contrapartida, diz que
compreende a mãe, uma vez que ele também tem muitas coisas que
não pode descrever para a mãe. Assim, ambos compartilham o mesmo
sentimento. Nesse contexto, Tom emprega o caso exortativo, pois está
se incluindo na realização da ação, que é a de respeitar um ao outro.
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Por conseguinte, Tom deve respeitá-la, bem como a mãe também deve
ter sentimento recíproco em relação ao filho. Tal inclusão manifesta-se
pela utilização da primeira pessoa na expressão “nós” (Let’s) + verbo
“respeitar” (respect), no sentido de obrigação, modalidade orientada
para o agente, com função modal de obrigação. Contudo, por meio de
“vamos”, cria-se uma aproximação com o interlocutor.
(34) A: […] There’s so many things in my heart that I can’t describe
to you! I’ve never told you but I – loved your father…
T: I know that, Mother.
A: And you – when I see you taking after his ways! Staying out
late – and - well, you had been drinking the night you were
in that – terrifying condition! Laura says that you hate the
apartment and that you go out nights to get away from it! Is
that true Tom?
T: No, There’s so much in your heart that you can’t describe to
me. That’s true of me, too. There’s so much in my heart that I
can’t describe to you! So, Let’s respect each other’s – (p. 259).
(A: Há tantas coisas dentro de meu coração que não posso nem
descrever! Eu nunca lhe contei, mas a verdade é que... eu
amava seu pai...
T: [...] Eu sei, mamãe.
A: E você... quando eu vejo que você sai a ele... ficando até tarde
fora, e... bem, você bebeu naquela noite em que voltou num
estado terrível!Laura diz que você odeia o apartamento e que
você sai à noite para fugir daqui! É verdade, Tom?
T: Não. Você disse que há tantas coisas no seu coração que nem
pode descrevê-las. O mesmo acontece comigo. Há tanta coisa
em meu coração que nem posso descrevê-las... para você,
mamãe! Portanto, vamos respeitar-nos mutuamente...). (p. 60).
No excerto a seguir (35), destacamos um caso de distanciamento
do falante quando este emprega o pronome “você” (you) + verbo (have
to do), que corresponde à locução “ser obrigado a”. No contexto, a
personagem Amanda apresenta um argumento a Laura, a fim de que
ela não se concentre no defeito que tem na perna. Segundo Amanda,
é necessário cultivar outras coisas quando alguém se encontra em
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desvantagem. Ou seja, Laura não deve chamar atenção para o defeito,
pois é tudo que Laura tem que fazer. A expressão “ter que” é inclusive
repetida como reforço para a ação a ser realizada.
(35) A: Develop charm [...] That’s all you have to do! (p. 247).
(A: Desenvolver o encanto pessoal [...] É só o que falta você fazer).
(p. 42)
Em se tratando de distanciamento do falante com relação ao
que diz, destacamos ainda o caso (36). Com o uso do pronome “você”
(you), na sentença que antecede o conselho dado a Laura, que é o de
pensar um pouco em si mesmo, como alguém superior, pela utilização
desse pronome por duas vezes, vemos reforçado o conselho. Também o
pronome reflexivo “si mesmo” (yourself), na sentença seguinte, assevera
que a realização da ação recairá sobre Laura. Portanto, tem-se modalidade
orientada para o agente, com função modal diretiva haja vista, que
estamos diante do imperativo. O caso a seguir ilustra mais uma vez o
posicionamento do falante
(36) J: […] You know what my strong advice to you is? Think of
yourself as superior in some way! (p. 299)
(J: [...] Sabe qual é o conselho sério que tenho para lhe dar? Pense
que você é superior aos outros, em alguma coisa!). (p. 127)
A partir das ocorrências de inclusão e não inclusão, foi possível
compreender o posicionamento do falante em relação ao que diz na peça.
Assim, 67% ocorrências de não inclusão revelaram que a expectativa
é a de que a realização da ação recaia sobre o outro. Por outro lado, a
inclusão ocorreu em 33% das ocorrências.
4 Considerações finais
Uma vez que as categorias aqui arroladas se voltam para
a orientação de uma conduta e a influência de um indivíduo sobre
um outro, por meio de OA e OF respectivamente, voltamo-nos para
interpretações várias, de acordo com cada contexto específico, na obra
The glass ménagerie de Tennessee Williams. A personagem Amanda
ilustra muitas das imposições na peça. Tais imposições são intensificadas
1226
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quando Amanda exige do filho Tom, além de suprir as necessidades
da casa, que também encontre um marido para a irmã. Na tentativa de
realizar seus anseios, Amanda ultrapassa os limites querendo conduzir
até mesmo a conduta dos filhos em diversas circunstâncias corriqueiras
como determinar o curso que Laura deve fazer, a roupa que deve usar,
como mastigar a comida, no caso de Tom, dentre outras. As demandas
da mãe são imensas, principalmente em relação ao que Laura deve ou
não deve fazer, para arranjar e segurar um marido. Assim, Amanda vai
construindo uma teia de orientação de conduta aos filhos, o que se destaca
fortemente na peça. O caráter mandatório se faz presente na peça teatral
em 59,5% dos casos, envolvendo o valor de obrigação. A permissão
perfaz 21,15%, a volição totaliza 11,6%, sendo a proibição encontrada
em 6,6%. Os valores supracitados e que mais se destacam, juntos formam
100% de orientação de conduta em toda a peça.
Assim, retomando o caráter autoritário refletido na obra, Amanda
é responsável por 38,65% de comandos. A ordem também aparece em
Laura em 6,9%, orientando a conduta do irmão, em relação à mãe. E
até o convidado Jim lança mão do comando 6,9%, para conduzir a
atitude de Laura, quando tenta fazer com que esta, veja a realidade. E,
por fim, em menor escala, Tom aparece com o percentual de 3,86%.
Consequentemente, é Tom quem mais sofre os efeitos de tais comandos
por se encontrar na posição de chefe provedor da casa. Assim, as
exigências incidem muito sobre ele.
Por esse motivo, no tocante à autoridade, destacamos a
modalidade, com função modal diretiva. Tal qual compreendido por
Palmer (2001, p. 75) e Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), apontamos
a obrigação com função modal imperativa. Já em se tratando de ações
corriqueiras, entendemos ter encontrado a função modal de procedimento,
enquanto, ao dar instrução, obtivemos a função modal de instrução.
A referência temporal da proposição e a referência temporal
da modalidade podem ser importantes para o reconhecimento de
características que contribuem para a interpretação modal. Assim, a partir
de Wärnsby (2006, p. 127), deparamo-nos no estudo com a modalidade
deôntica + voz passiva, com função modal também diretiva.
A partir do uso do verbo modal “dever” (must) + negativa e do
advérbio de negação + verbo “ousar” (dare), a função modal proibitiva
foi revelada, enquanto que o verbo “poder” (can) refletiu a função modal
permissiva. Também destaque é dado ao verbo “deixar” (let). Esse surge
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na peça com função modal concessiva. Por outro lado, a expressão do
futuro will + “ter que” (have to), pode inserir a função modal diretiva,
sendo a expressão de futuridade (will), outras vezes, empregada com
função modal imperativa. Tal qual will, a expressão de futuridade (going
to) é empregada com função modal imperativa.
Uma outra forma de controle do agente é a volição.
Compreendemos, de acordo com Bybee (1995), que a fonte deôntica
acentua a expectativa em relação à atitude do outro com quem se interage,
empregando o verbo “querer” (want). A volição marca, pois, a obrigação
e, por meio desta, a função modal diretiva nas interações dos personagens
na peça, é contemplada.
Também corroborando Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) e tal
qual Palmer (2001), discutimos a modalidade tratando a habilidade
dentro do âmbito da modalidade deôntica. Portanto, o verbo “poder“
(can e could) foi revelado no estudo com função modal de habilidade.
A partir das interpretações obtidas por meio da análise, observamos
que, quanto à manifestação deôntica, as ocorrências envolveram verbo
lexical com o índice de 69%, enquanto que a manifestação deôntica por
meio do verbo auxiliar se deu em 29% dos casos, seguida de 1% com
substantivo e 1% com adjetivo em posição predicativa.
De acordo com o estudo, quanto ao tipo de modalidade, e tal
qual Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) distinguem, observamos que as
modalidades orientadas para o agente (OA) e orientada para o falante
(OF), foram encontradas quase que na mesma proporção, com a sutil
diferença de 50,9% para a OA e de 49,4% para a OF.
Pudemos verificar, quanto ao comprometimento do falante em
relação ao que diz na peça, que, no que tange à inclusão do falante, em
sua maioria (67% dos casos), foi de não-inclusão. Portanto, a ordem dada
sempre recai sobre outra pessoa, ocorrendo o distanciamento do falante
em relação ao que diz. Tal fato nos proporciona o entendimento de um
caráter impositivo nas interações dos personagens que se dão em meio
familiar na peça de Tennessee Williams.
Notamos nas marcas de asseveração da força ilocucuionária que
os personagens utilizam mais um recurso reforçando a imposição na
obra e marcando o caráter dominador, principalmente, da personagem
da mãe. Tal asseveração nos foi revelada na peça em 55,3% dos casos,
sendo a atenuação presente em 45%.
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Quanto ao posicionamento do enunciador (inclusão e não
inclusão), as ocorrências revelaram 67% de não inclusão, enquanto que
33% de inclusão. Isso reflete o distanciamento do falante em relação ao
que diz e evidencia o caráter autoritário nos diálogos entre os personagens
da peça e nos enunciados de abertura e de fechamento das cenas.
Também sobre a atitude do falante em relação ao que diz e de
acordo com Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), que consideram sob
a modalidade orientada para o falante não somente o tipo exortativo,
mas ainda o tipo admoestativo (o falante está emitindo um aviso), nos
deparamos com casos de exortativo principalmente nos diálogos entre
Tom e Amanda e que se dão em meio a discussões.
Diante do exposto, verificamos que a modalidade serve ao
propósito de construção do caráter dominador dos personagens na peça
teatral The glass ménagerie, de Tennessee Williams, e se mostra em
um grau mais acentuado na personagem de Amanda, a mãe. Também
a modalidade orienta a conduta dos personagens levando a um dos
momentos ápice na peça, quando, por exemplo, Tom, o filho, farto de
tantas imposições, abandona o lar. Nesse âmbito, vê-se desmoronar o
mundo de Amanda, construído sobre valores antigos, adquiridos em sua
época da juventude.
A orientação de conduta é também apresentada em outro
momento clímax na obra, envolvendo Laura e Jim, em que Laura vê seu
mundo imaginário, associado aos bichinhos de cristal que coleciona, se
descortinar.
E são esses aspectos que os sentidos veiculados por meio da
modalidade permitem melhor compreender uma obra como a peça
teatral The glass ménagerie. Tendo em vista a orientação de base
funcionalista deste trabalho, tais valores propiciam a visão de um grau de
aprofundamento da estória revelando o entrelaçamento das ações e dos
personagens dentro do discurso, com riqueza de detalhes que uma leitura
superficial não daria conta. Nesse contexto, a expressão da modalidade
relaciona-se a tal riqueza.
Por último, torna-se essencial destacarmos de acordo com
Casimiro (2007) que a análise da modalidade deôntica depende
essencialmente de um conjunto de regras sociais e morais estabelecidas
de onde são estipulados os valores de permissão, proibição e obrigação.
Tais normas podem aparecer em forma de leis, consuetudinário e até
hábitos e costumes sob pena de alguma punição. Em nosso corpus,
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os valores no campo da conduta se deram em meio familiar, sendo o
reconhecimento dessas regras e valores o que designa dado membro
como autoridade ou não. Destacamos aqui a personagem Amanda com
seu índice elevado de autoridade.
Por fim, consideramos que a investigação é relevante, uma vez que
o entendimento acerca dos modalizadores deônticos veiculados no discurso
dos personagens pode gerar orientações mais seguras aos estudiosos. Tal
qual destaca Marcuschi (2005, p. 35), entendemos “[...] que o trabalho
com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a
língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia”. O gênero peça
teatral escolhido para efeitos desse artigo, oportuniza a compreensão de
contextos múltiplos e diversos significados. Por esse motivo, explorá-lo
pode ser de muita valia principalmente na área de ensino.
Dessa feita, acreditamos que a investigação trará luz para os
estudos de argumentação e do discurso. Também poderá guiar as escolhas
de análises mais detalhadas de base funcionalista sobre as condições
semiológicas por meio dos valores deônticos acionados no discurso dos
interlocutores, para o entendimento de gêneros distintos como o das
obras literárias.
Agradecimentos
A autora agradece a profa. Dra. Adriana Maria Tenuta de Azevedo, da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pelas contribuições que
proporcionaram a melhor composição do artigo.
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Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
Perfilação sistêmica da Popularização da Ciência
baseada na argumentação axial
Systemic functional profiles of Popularization of Science
based on axial argumentation
Aline Barreto Costa Braga
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
linedrumondcosta@gmail.com
Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo principal a perfilação sistêmica de textos
de Popularização da Ciência por meio de análise de suas escolhas gramaticais para
descrever a forma pela qual estes discursos criam variáveis no contexto de cultura
(i.e., como esses discursos circulam na sociedade) (MARTIN, 1992). A perfilação
sistêmica baseou-se na argumentação axial, mais especificamente nos sistemas de
MODO, TRANSITIVIDADE, TEMA e MENSAGEM (HALLIDAY; MATTHIESSEN,
2004). Desta forma, foram analisados através da Teoria Sistêmico-Funcional os níveis
de interação e avaliação (metafunção interpessoal), representação da experiência
(metafunção ideacional), construção e organização discursiva (metafunção textual)
(HALLIDAY, 1967a, b, 1968) nos discursos da Popularização da Ciência em inglês e
suas traduções para o português brasileiro. Para realização desta análise foi compilado
um corpus de quatro textos baseado na tipologia dos textos no contexto de cultura
(MATTHIESSEN et al., 2008), sendo estes: um texto em inglês do website “How Stuff
Works” e sua tradução para o português brasileiro e um texto em inglês do programa
televisivo “Beakman’s World” e sua tradução para o português brasileiro. Em seguida,
os textos foram anotados segundo as metafunções ideacional, interpessoal e textual
(HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) e analisados de forma semiautomática para
averiguar as frequências e distribuição funcional nos textos de Popularização da Ciência.
A análise dos dados mostrou que os processos mais significativos para a construção
do mundo de experiências foram os processos materiais e relacionais atributivos
e identificativos. Interpessoalmente, a relação entre produtor e receptor do texto é
representada através dos Modos Indicativo Interrogativo, Indicativo Declarativo e
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1233-1257
1234
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
Imperativo. Textualmente, os textos são organizados de modo que as mensagens iniciais
respondem às questões apresentadas, as continuidades acrescentavam informações
às iniciais, as mensagens de descontinuidade: mudança colocavam participantes em
evidência e as de descontinuidade: desvio, focalizavam o texto em algum evento em
particular.
Palavras-chave: abordagens sistêmicas da tradução; teoria sistêmico-funcional;
argumentação axial; popularização da ciência.
Abstract: This research aims at the creation of systemic functional profiles of
Popularization of Science texts through the analysis of their grammatical choices.
Those systemic functional profiles are based on axial argumentation, more specifically
on the systems of MOOD, TRANSITIVITY, THEME and MESSAGE (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004). In this sense, Popularization of Science texts in English
and its translations into Brazilian Portuguese were analyzed according to Systemic
Functional Theory on its levels of interaction, evaluation, representation of experience,
discourse construction and discursive organization (HALLIDAY, 1967a, b, 1968).
Based on the typology of language in the context of culture (MATTHIESSEN et al.,
2008), four texts were collected: two texts from the website “How Stuff Works” –
the English text and its translation into Brazilian Portuguese, and two texts from the
TV program “Beakman’s World” – the English text and its translation into Brazilian
Portuguese. These texts were annotated according to the ideational, interpersonal, and
textual metafunctions (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) and the distribution of
functions in Popularization of Science texts were retrieved. Data analysis showed how
the texts where recontextualized (HALLIDAY; MARTIN, 1993), creating variables in
the context of culture (MARTIN, 1992). The results showed that, ideationally, the most
significant processes to represent the world of experiences in the texts were material
and relational. Interpersonally, the relation between the producer and the receiver of
the text was realized by Indicative Interrogative, Indicative Declarative, and Imperative
Moods. Textually, initial messages guide the scientific explanation whereas continuity
messages add further information about scientific facts. Discontinuity messages switch
focus to specific events of the scientific explanation.
Keywords: systemic approaches to translation; systemic functional theory; axial
argumentation; popularization of science.
Recebido em 29 de outubro de 2018
Aceito em 18 de dezembro de 2018
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
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1 Introdução: perfilação sistêmica dos discursos da ciência
Toda vez que um novo contexto de atividade científica surge,
há uma tendência de que haja um empréstimo de outros contextos já
existentes, que são reconfigurados e reordenados aos nos novos contextos
(HALLIDAY; MARTIN, 1993). Esse processo de reconfiguração e
reordenação do conhecimento é chamado de “recontextualização”. Uma
das razões para a recontextualização do discurso científico é fazer com
que ele se torne significativo aos não-especialistas.
Com o intuito de demonstrar linguisticamente as implicações
de uma das formas de recontextualização dos discursos da ciência
(HALLIDAY; MARTIN, 1993), a presente pesquisa analisa os discursos
da Popularização da Ciência em inglês e suas traduções para o português
brasileiro através da Teoria Sistêmico-Funcional, analisando seus níveis
de interação, avaliação, representação da experiência, construção e
organização discursiva (HALLIDAY, 2002).
Foram utilizados para a análise dois textos de Popularização da
Ciência extraídos do website “How Stuff Works”, um texto em inglês
e sua tradução para o português brasileiro e dois textos extraídos do
programa televisivo “Beakman’s World”, um texto em inglês e sua
tradução para o português brasileiro. Os objetivos desta análise são,
primeiramente, apresentar através da tradução a perfilação sistêmica
dos textos de Popularização da Ciência através de suas escolhas
interpessoais, experienciais e textuais em inglês e tradução para português
brasileiro, em segundo lugar, descrever como os discursos da ciência são
recontextualizados (HALLIDAY; MARTIN, 1993) e, por fim, descrever
a forma pela qual os textos destes diferentes sistemas linguísticos criam
variáveis nos contextos de cultura (MARTIN, 1992).
Tendo como base pesquisas anteriores (cf. FULLER, 1998),
parte-se aqui do pressuposto de que um texto que busca tornar os métodos
científicos acessíveis para a população em geral fará com que o produtor
deste texto se preocupe em simplificar os termos técnicos e a abstração
da ciência por meio de operações de recontextualização. Uma análise
da Popularização da Ciência a partir da Teoria Sistêmico-Funcional
por meio de análise metafuncional (MATTHIESSEN, 1995; MARTIN;
ROSE, 2007), poderá levar a um melhor entendimento das estratégias de
construção da Popularização da Ciência, bem como de suas estratégias
de tradução, contribuindo assim para os Estudos da Tradução por uma
abordagem sistêmica.
1236
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
1.1 Argumentação axial e perfilação sistêmica
A perfilação sistêmica dos textos de Popularização da Ciência
baseou-se na argumentação axial, mais especificamente nos sistemas de
MODO, TRANSITIVIDADE, TEMA e MENSAGEM (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2004) do inglês e do português brasileiro. Embora
os textos pertençam a sistemas linguísticos diferentes, em um nível
de delicadeza menor estes sistemas apresentam funções passíveis de
comparação (TEICH, 1999), o que tornou possível a sistematização e
comparação das escolhas gramaticais e semânticas de todos os textos
selecionados para compor o corpus da pesquisa.
De acordo com a Teoria Sistêmico Funcional (HALLIDAY,
2002), o sistema de MODO é parte da metafunção interpessoal. Este
sistema possui as funções utilizadas para realizar a interação linguística,
que acontece da função semântica (declaração, questão, comando, oferta)
para a função gramatical (declarativa, interrogativa, imperativa).
O sistema de TRANSITIVIDADE é parte da metafunção
ideacional (HALLIDAY, 2002) e é responsável por representar o
mundo da experiência (“o que está acontecendo”) gramaticalmente na
oração através das figuras (de sentir, acontecer, fazer, ser ou ter) que
são realizadas semanticamente através de processos (material, mental,
relacional, verbal, comportamental e existencial).
Os sistemas de TEMA e MENSAGEM são parte da metafunção
textual (HALLIDAY, 2002). O sistema semântico de MENSAGEM
engloba os recursos linguísticos textuais que operam para produzir e
acumular significados. Estes significados são realizados gramaticalmente
pelo sistema de TEMA.
Nota-se, portanto, que a argumentação axial permite uma
descrição textual que engloba a totalidade das funções gramaticais e
semânticas dos textos tanto em inglês como português brasileiro.
2 Metodologia
A metodologia desta pesquisa envolveu a coleta de um corpus de
acordo com os processos sócio-semióticos (MATTHIESSEN et al., 2008)
e a anotação semiautomática do corpus no programa UAMCorpusTool®
para a extração das frequências relativas dos textos e posterior análise e
discussão dos resultados.
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2.1 Coleta e Análise do Corpus
Para a análise desta pesquisa, foram coletados quatro textos
de Popularização da Ciência, dois do website “How Stuff Works”, um
original em inglês e sua tradução para o português brasileiro, e dois do
programa televisivo “Beakman’s World”, um original em inglês e sua
tradução para o português brasileiro:
O website “How Stuff Works” foi criado em 1998 e faz parte
da companhia Discovery Communications e seu principal objetivo é
“revelar como funciona o mundo de uma forma simples, clara e qualquer
pessoa possa entender”.1 Este objetivo corresponde à definição do
termo Popularização da Ciência, que envolve transmissão dos métodos
e precisão da ciência utilizando uma linguagem clara e acessível a um
grande número de pessoas (FULLER, 1998).
Os textos extraídos do website “How Stuff Works” são o original
em inglês “How does popcorn work?” e a tradução para o português
brasileiro “Como funciona a pipoca?”. Ambos têm como tema a pipoca,
ou seja, como os grãos de milho se transformam em pipoca.
O programa televisivo “Beakman’s World” foi um programa
televisivo educativo infantil que estreou nos Estados Unidos em 1992
pelo canal “The Learning Channel” e no Brasil em 1994 pelo canal “TV
Cultura”. Nesse programa, o cientista Beakman acompanhado por uma
assistente (na primeira temporada, Josie) e o rato de laboratório Lester,
respondia cartas enviadas por telespectadores reais (americanos) com
curiosidades sobre fatos, conceitos e acontecimentos científicos.
Os textos do programa “Beakman’s World” extraídos para a
análise são do episódio de número cinco da primeira temporada do
programa em inglês “Leaves, Beakmania & Paper” e sua tradução
para o português brasileiro “Folhas, Beakmania & Papel”. Esses textos
correspondem a um trecho do programa no qual Beakman explica sobre
a mudança de cor das folhas conforme a estação do ano.
A Tabela 1 abaixo apresenta o corpus dessa pesquisa e seus
respectivos números de tokens.
1
“Demystify the world and do it in a simple, clear-cut way that anyone can understand.”
Disponível em: <http://www.howstuffworks.com/about-hsw.html>. Acesso em: 8 ago.
2012.
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TABELA 1 – Corpus e número de tokens
Inglês
Português brasileiro
How Stuff Works
389
358
Beakman’s World
417
406
Total
806
764
A seleção dos textos para utilização como corpus de análise
nesta pesquisa foi feita através da classificação de seus processos sóciosemióticos (MATTHIESSEN et al., 2008), como pode ser visto na Figura
1 abaixo.
FIGURA 1 – Corpus desta pesquisa classificado de acordo com os processos
sócio-semióticos
Fonte: adaptado de Matthiessen et al., 2008
Como pode ser observado na Figura 1, os textos do website
“How Stuff Works” são do processo sócio-semiótico Explicar, processo
este onde a língua é usada para transmitir conhecimento. Já os textos do
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programa televisivo “Beakman’s World” são do processo sócio-semiótico
Recriar, onde outro processo sócio-semiótico que já foi codificado é
recodificado de forma ficcional.
A classificação dos textos do corpus de acordo com seus
processos sócio-semióticos (MATTHIESSEN et al, 2008) contribuiu
tanto para a coleta dos textos quanto para a localização dos mesmos no
contexto de cultura.
A ánalise do corpus se deu de forma semiautomática através do
programa UAMCorpusTool®. O UAMCorpusTool® é um programa criado
para a anotação linguística de textos e imagens (O’DONNELL, 2008).
3 Resultados e Discussão
Os dados fornecidos pelo programa UAMCorpusTool®
possibilitaram a perfilação sistêmica dos textos de Popularização da
Ciência em inglês e suas traduções para o português brasileiro. As análises
interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos do website “How
stuff works” e do programa televisivo “Beakman’s World” e os perfis
sistêmicos decorrentes destas análises são apresentados nas seções a seguir.
3.1 Website How Stuff Works
Os textos escolhidos do site How Stuff Works para as análises
desta pesquisa foram “How does popcorn work” e sua tradução “Como
funciona a pipoca”. Seus perfis interpessoal, ideacional e textual serão
apresentados a seguir.
3.1.1 Análise Interpessoal
O que se observou dos dados2 do corpus na análise interpessoal
é que, por se tratarem de textos do tipo Explicar, a grande probabilidade
de ocorrência do Modo Indicativo Declarativo é esperada tanto em
inglês quanto em português brasileiro, uma vez que este processo
sócio-semiótico tem por característica a transmissão de conhecimento,
no caso de um especialista a um leigo (MATTHIESSEN et al., 2008).
Essa transmissão de conhecimento se dá através do Modo Indicativo
2
Todas as informações apresentadas nesta pesquisa foram decorrentes dos dados
extraídos do corpus no programa UAMCorpusTool®.
1240
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Declarativo que tem por função semântica o fornecimento de informação,
como pode ser visto nos exemplos (1) e (2):
(1) Unless the percentage of moisture in the kernel is just right, the
kernel won’t pop.
(2) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura.
Nota-se também que o uso do Modo Interrogativo nesses textos
realiza a função semântica de demanda de informação. Nos exemplos
(3) e (4) abaixo, são explicitadas as duas orações do Modo Interrogativo
presentes no começo tanto do texto em inglês quanto em sua tradução
para o português brasileiro:
(3) How does popcorn work?
(4) Como funciona a pipoca?
A análise dos Modos Indicativo Declarativo e Interrogativo
demonstrou que a demanda e o fornecimento de informação em um
texto de Popularização da Ciência corresponde a uma simulação de uma
interação real: um leigo possui uma curiosidade sobre um fato científico
e demanda uma explicação sobre esse fato ao cientista através do Modo
Interrogativo, que o responde através do Modo Indicativo Declarativo.
A reconstrução do senso comum para o mundo científico não
deveria ocorrer pelo princípio monológico da reformulação e sim pelo
princípio da negociação (FULLER, 1998). Isso implica na junção de
diferentes vozes sociais contextualizadas discutindo um problema e não
apenas uma só voz que o constrói tecnicamente. Essas “diferentes vozes
sociais” são realizadas no texto através dos Modos Indicativo Declarativo e
Interrogativo. A voz do leigo é realizada pelo Modo Indicativo Interrogativo
– “How does popcorn work?” – e a voz do cientista pelo Modo Indicativo
Declarativo – “When a popcorn kernel heats up (either in a popcorn popper
or in the microwave), the moisture inside the kernel expands”.
Outro Modo presente nos textos é o Modo Imperativo. Nos
exemplos (5) e (6) abaixo, temos o uso do Modo Imperativo, que realiza
a função discursiva de demanda de bens e serviços:
(5) Use a needle or pushpin to puncture the shells of a number of
popcorn kernels.
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(6) “Use uma agulha ou alfinete para furar as cascas de algumas
sementes de pipoca.
Através do Modo Imperativo, o autor faz com que o leitor seja
convidado a participar do mundo científico. Gramaticalmente, o leitor é
realizado como sujeito da oração imperativa levando-o, por si próprio a
ter uma experiência com os fatos que lhe foram apresentados, ajudando
na “revelação de como funciona o mundo”.
Além disso, o autor busca também contra argumentar juízos que
possam ser feitos sobre sua obra (FULLER, 1998). Com o auxílio do
Modo Imperativo, o autor pode solicitar ao seu leitor que efetue uma
experiência para provar o que foi dito e ao mesmo tempo, estabelece suas
credenciais com o leitor, pois comprova a veracidade do texto.
3.1.2 Análise Ideacional
Quanto a análise ideacional, através da análise dos dados, notouse que, por se tratarem de textos científicos, os acontecimentos relatados
são mudanças que acontecem no mundo real, o que é expresso por
processos materiais tanto no texto em inglês como na tradução, o que
pode ser visto nos exemplos abaixo (7) e (8):
(7) The kernel explodes.
Processo: Material
(8) Uma semente de pipoca esquenta.
Processo: Material
Os processos relacionais atributivos e identificativos também
são significativos nos dois textos. Eles aparecem quando é necessária
uma explicação mais detalhada dos conceitos científicos apresentados.
Nos exemplos (9), (10), (11) e (12) abaixo, aos conceitos científicos são
dadas identidades e atributos para que se tornem mais claros:
(9) Silly string is a liquid.
Processo: Relacional Identificativo
(10) A pipoca é um prato feito de uma variedade de milho.
Processo: Relacional Identificativo
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(11) That part seems normal enough.
Processo: Relacional Atributivo
(12) A umidade é extremamente importante para a pipoca.
Processo: Relacional Atributivo
Ao se divulgar a ciência, é preciso que haja uma simplificação
dos termos técnicos da ciência para a linguagem cotidiana (FULLER,
1998). Estes termos são então “traduzidos” para uma linguagem mais
simples, comentados, criticados e/ou validados. O recurso utilizado para
a “tradução” dos termos técnicos são os processos relacionais atributivos
e identificativos.
Os processos mentais, apesar de apresentarem baixa ocorrência
relativa, são significativos, pois são utilizados quando há uma tentativa
de aproximação entre o autor e o leitor, uma vez que o leitor do texto
é realizado gramaticalmente como o experienciador desses processos
mentais. Através do uso dos processos mentais, o leitor é convidado a
participar do mundo científico, a perceber o que vem sendo dito. Nos
exemplos (13) e (14) abaixo, o leitor aparece através dos processos mentais:
(13) You will find.
Processo: Mental
(14) Veja abaixo três experiências que você pode fazer...
Processo: Mental
Um entendimento crítico da ciência envolve a mudança entre o
foco de transmissão de informação para o da construção de significado
(BROKS, 2006). Os processos mentais aparecem no texto para que
o leitor/ouvinte não seja representado como um receptor passivo de
informação e sim como um construtor ativo de significado, pois eles o
invocam para que se busque esta construção.
3.1.3 Análise Textual
Na análise textual, os dados demonstraram que, ao se ler as
mensagens iniciais juntamente com as suas continuidades, não só a
pergunta é respondida, como outras informações importantes sobre a
ciência envolvida no fenômeno da pipoca são apresentadas. A função das
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1243
mensagens de continuidade é, portanto, acrescentar maiores informações
as mensagens iniciais.
Assim como no texto em inglês, as mensagens iniciais e suas
continuidades do texto em português respondem a pergunta inicial “Como
funciona a pipoca?”, como pode ser visto nos pares de exemplos (15) e
(16) e (17) e (18):
(15) Popcorn is certainly unique.
Mensagem Inicial
(16) Not too many foods act this way.
Continuidade
(17) Quando uma semente de pipoca esquenta (em uma panela,
pipoqueira ou forno de microondas), a água dentro da semente
se expande.
Mensagem Inicial
(18) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura.
Continuidade
No que concerne às mensagens inicias e continuidades, a
diferença entre o texto em inglês e a tradução para o português está na
primeira inicial e sua continuidade (ver exemplos 19 e 20):
(19) Como funciona a pipoca?
Mensagem Inicial
(20) A pipoca (do tupi antigo pira - pele + pok - estourar = pele
estourada) é um prato feito a partir de uma variedade de milho
(milho de pipoca), que explode quando aquecido.
Continuidade
Essa diferença se deve a uma continuidade nova adicionada
pelo tradutor do texto à primeira mensagem inicial, o que não existia no
texto em inglês. Cabe ressaltar, contudo, que o padrão de organização
textual não se altera, uma vez que a relação entre a mensagem inicial e
sua continuidade é responder à pergunta/explicação adicional.
1244
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As mensagens de descontinuidade:mudança colocam em evidência
participantes e acrescentam características específicas destes participantes,
como visto nos sublinhados dos exemplos (21) e (22) abaixo:
(21) Popcorn certainly is unique. You toss a flat pouch no larger than a
wallet into a microwave oven and in three minutes, it has expanded
to a volume 40 or 50 times its original size.
Descontinuidade:mudança
(22) A pipoca tem características muito interessantes.Você coloca
uma embalagem achatada (menor do que uma carteira) no forno
de microondas e em três minutos ela se expande até chegar a um
volume 40 ou 50 vezes maior do que sua forma original.
Descontinuidade:mudança
Os exemplos (21) e (22) demonstram que as mensagens iniciais
anteriores as de descontinuidade:mudança apresentavam um participante
(a pipoca), que foi enfocado e caracterizado pelas mensagens de
descontinuidade:mudança. Portanto, essas mensagens direcionam o fluxo
do texto a um participante específico, ao enfocar suas características.
As mensagens de descontinuidade:desvio desviam o foco do texto
para um dos eventos que acontecem com o milho de pipoca, como pode
ser visto nos exemplos (23) e (24), destacados em sublinhado.
(23) Unless the percentage of moisture in the kernel is just right, the
kernel won’t pop. When the pressure inside the hard shell gets
high enough, the kernel explodes.
Descontinuidade:desvio
(24) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura.
Quando a pressão dentro da casca aumenta bastante, a semente
estoura.
Descontinuidade:desvio
Os exemplos (23) e (24) demonstram que as mensagens de
descontinuidade:desvio, focalizam o texto em eventos em particular
referentes aos participantes citados nas orações anteriores.
Quanto ao arranjo, algumas das mensagens iniciais de cada uma
das partes do possuem um tipo de arranjo que é seguido tanto pelas
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continuidades como pelas mudanças (na forma de arranjo-default). Os
exemplos (25), (26), (27), (28) explicitam os tipos de arranjo encontrados
no texto original em inglês. E os exemplos (29), (30) e (31) explicitam os
tipos de arranjo encontrados no texto traduzido para o português brasileiro:
(25) How does popcorn work?
arranjamento explícito (periódico)
(26) Popcorn is certainly unique.
arranjamento explícito (periódico)
(27) There are three elements that make popcorn work like this.
arranjamento implícito (em série)
(28) Here are three experiments you can perform to get a better
understanding of how popcorn works.
arranjamento implícito (em série)
(29) Como funciona a pipoca?
arranjamento explícito (periódico)
(30) Existem três elementos que fazem a pipoca funcionar assim.
arranjamento implícito (em série)
(31) Veja abaixo três experiências que você pode fazer para entender
melhor como funciona a pipoca.
arranjamento implícito (em série)
A análise textual dos textos do website “How Stuff Works” em
inglês e tradução para o português brasileiro permitiu visualizar suas
configurações, bem como são organizados os significados interpessoais
e ideacionais nesses textos.
3.1.4 Perfilamento sistêmico dos textos do website “How Stuff Works”
As análises interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos
do website “How Stuff Works” em inglês “How does popcorn work?”
e português brasileiro “Como funciona a pipoca?” levaram aos perfis
sistêmicos apresentados nas Figuras 2 e 3 abaixo:
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FIGURA 2 – Perfil sistêmico do texto original em inglês “How does popcorn work?”
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FIGURA 3 - Perfil sistêmico do texto traduzido para o português brasileiro
“Como funciona a pipoca?”
Os perfis sistêmicos permitiram dividir os textos em fases:
“dúvida”, “características gerais”, “explicação” e “experimento”. Desta
forma, é possível observar os padrões gramaticais escolhidos para cada
uma das fases. Na seção a seguir serão apresentados os perfis referentes
aos textos do programa televisivo Beakman’s World.
1248
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3.2 Programa Televisivo Beakman’s World
“Beakman’s World”, traduzido para o português brasileiro como
“O Mundo de Beakman” foi um programa televisivo da década de 90
que tinha por objetivo a transmissão do conhecimento de especialistas
para crianças. Os textos escolhidos para a análise desta pesquisa foram
“Leaves, Beakmania & Paper” e sua tradução para o português brasileiro
“Folhas, Beakmania & Papel”. Seus perfis interpessoal, ideacional e
textual serão apresentados a seguir.
3.2.1 Análise Interpessoal
A análise interpessoal demonstrou que, assim como os textos do
website “How Stuff Works”, há uma predominância do Modo Indicativo
Declarativo nos textos do programa televisivo “Bekman’s World”. O
Modo Indicativo Declarativo neste caso também possui a mesma função
discursiva: o fornecimento de informação. Isso é visto nos exemplos
(32) e (33) abaixo:
(32) In the fall leaves turn into yellow, and red or orange but they don’t
really change color.
(33) No outono as folhas tornam-se amarelas, vermelhas ou cor de
laranja, mas não chegam a mudar de cor.
O que difere estes textos quanto ao Modo Indicativo Declarativo
é uma ocorrência do Modo Indicativo Declarativo tendo como função
discursiva a demanda de bens e serviços, como explicitado nos exemplos
(34) e (35):
(34) Josie, I need a boguscope!
(35) Josie, eu preciso do boguscópio!
Neste caso, o Modo Indicativo Declarativo está sendo utilizado
como uma metáfora interpessoal, pois o Modo esperado nesta situação
seria o Imperativo, uma vez que Beakman está demandando bens e
serviços (boguscópio).
Quanto ao Modo Indicativo Interrogativo, este está distribuído
ao longo dos textos do programa “Beakman’s World”. Toda vez que
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existe a necessidade de se explicar mais detalhadamente sobre algum
assunto tratado no programa, o Modo Indicativo Interrogativo aparece.
Os exemplos (36), (37), (38), (39), (40) e (41) abaixo são exemplos do
Modo Indicativo Interrogativo com função discursiva de demanda de
informação:
(36) Why do the leaves in my backyard change color?
(37) Por que as folhas do jardim mudam de cor?
(38) What do they do?
(39) O que elas fazem?
(40) What’s chlorophyll doing on the leaf in the first place?
(41) O que é que a clorofila faz para a folha?
Por se tratar de um texto do tipo Recriar que recria ficcionalmente
um texto Explicar, personagens interagem a todo o tempo então o Modo
Indicativo Interrogativo é uma maneira de constantemente demandar
informações para simplificar ainda mais os conceitos apresentados.
Percebe-se também através da pergunta polar a tentativa de um dos
personagens de fazer com que os conceitos apresentados se tornem mais
claros. Como pode ser visto nos exemplos (42) e (43), as perguntas polares
fazem com que seja enfocada uma determinada parte da explicação que
pode não ter ficado exatamente clara para o telespectador e é explicada
em seguida:
(42) They turn color, but they don’t change color?
(43) Elas mudam de cor, mas não mudam de cor?
O Modo Imperativo é utilizado por Beakman para chamar a
atenção do telespectador, solicitando bens e serviços, como pode ser
visto nos exemplos (44) e (45) abaixo:
(44) Come with me!
(45) Venha comigo!
1250
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
Através do Modo é possível observar a forma pela qual cada
um dos personagens contribui de forma diferente para o texto. Quem
escreve a carta faz a pergunta inicial da Popularização por meio de uma
interrogativa – “Dear Beakman, why do the leaves in my backyard change
color?” –; Josie faz a interrogativa por mais explicação – “What do they
do?” –; Beakman faz as declarativas que respondem – “They loose a
color: green”. Além disto, Beakman faz os imperativos que chamam a
atenção do telespectador.
3.2.2 Análise Ideacional
Os dados mostraram que os processos materiais foram os que
apareceram em maior número, uma vez que os fenômenos apresentados
durante o texto causam impacto no mundo material (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 1999), como visto nos exemplos (46) e (47) abaixo:
(46) The green color goes away.
Processo: Material
(47) A cor verde desaparece.
Processo: Material
O texto em português brasileiro possui dois processos materiais
a mais que o em inglês porque os processos comportamentais do inglês
foram traduzidos em português como materiais – “We breathe out the
carbon dioxide the tree needs to live”; “E nós liberamos em troca o gás
carbônico que ela precisa para viver”.
Os processos relacionais identificativos e atributivos aparecem
quando é necessária uma explicação que torne mais claros os conceitos
apresentados:
(48) The green chemical is called chlorophyll
Processo: Relacional Identificativo
(49) A maple leaf has lots of colors.
Processo: Relacional Atributivo
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Os processos verbais aparecem quando Beakman interage
com um personagem imaginário. As respostas do personagem contêm
processos verbais.
(50) Don’t ask me
(51) Não pergunte para mim!
Já os processos mentais aproximam Beakman tanto do autor da
pergunta do programa (Bert) quanto dos telespectadores.
(52) The color we see most is green.
(53) A cor que vemos melhor é o verde.
3.2.3 Análise Textual
Na análise textual, o que diferencia o programa televisivo
“Beakman’s World” do website “How Stuff Works” são os arranjamentos
com fases interpoladas. Esses arranjamentos foram separados segundo
as diferentes fases a fim de facilitar a análise e melhor explicitar os
movimentos do diálogo. As fases são I – carta do telespectador; II –
comentário do Lester; III – nova dúvida do telespectador e IV – maiores
informações.
A Fase I, a mensagem inicial (em negrito) tem arranjamento
explícito (periódico). Essa mensagem inicial é a que introduz a
dúvida do telespectador e os diálogos que se seguem a ela são de
continuidade (em sublinhado) com arranjo-default. A mensagem de
descontinuidade:mudança (em itálico) é usada para fazer com que o
telespectador fique focado na resposta da pergunta:
(54) What do they do?
descontinuidade: mudança
Josie, através da fala do exemplo (54) faz uma pergunta que muda
o foco do diálogo para o que acontece com as folhas, já que a pergunta de
Lester foi uma continuidade e não uma mudança e, portanto, não exige
que Beakman mude o foco de sua explicação, podendo apenas ignorá-lo.
1252
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Na fase II, Lester faz um comentário através de uma mensagem
inicial que muda o arranjamento do texto, tanto em inglês, quanto em
português.
Na continuação da fase I que foi interpolada pela fase II, o
comentário de Lester é ignorado por Beakman que conclui a explicação
da pergunta através do arranjo anterior ao que foi feito por Lester, que era
o arranjamento explícito (periódico), portanto a continuidade expressa por
Beakman não é em relação a inicial de Lester, mas sim a primeira inicial.
As mensagens de descontinuidade:mudança usadas por
Beakman destacam um dos aspectos da explicação: as folhas de bordo.
As mensagens de descontinuidade:desvio (em letras maiores), mudam
o foco do texto para o que acontece com as folhas no outono.
Na fase III, após a conclusão da resposta da pergunta inicial do
programa, Josie recebe um “telefonema” do telespectador que escreveu
a carta, que é expresso por uma mensagem inicial. No telefonema, o
telespectador faz uma pergunta que Beakman responde através das
continuidades. E por fim, na fase 4, Beakman dá mais informações sobre
as árvores através de uma inicial e suas continuidades.
Todos estes movimentos de diálogo podem ser observados na
próxima seção.
3.2.4 Perfilamento sistêmico dos textos do programa televisivo “Beakman’s
World”
As análises interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos
do programa televisivo “Beakman’s World” em inglês “Leaves,
Beakmania and Paper” e português brasileiro “Folhas, Beakmania e
Papel” levaram aos perfis sistêmicos apresentados nas Figuras 4 e 5
abaixo:
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1253
FIGURA 4 – Perfil sistêmico do texto em inglês “Leaves, Beakmania & Paper”
Fase I: carta do
telespectador
Fase II:
comentário
do Lester
Fase I: carta do
telespectador
(continuação)
Fase III: nova
dúvida do
telespectador
Fase IV:
Beakman
adiciona novas
informações
1254
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FIGURA 5 – Perfil sistêmico do texto traduzido para o português brasileiro
“Folhas, Beakmania & Papel”
Fase I: carta do
telespectador
Fase II:
comentário
do Lester
Fase I: carta do
telespectador
(continuação)
Fase III: nova
dúvida do
telespectador
Fase IV:
Beakman
adiciona novas
informações
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019
1255
4 Conclusão
Partindo da questão da recontextualização (HALLIDAY;
MARTIN, 1993) dos discursos científicos, a presente pesquisa analisou
o tipo de recontextualização que busca levar o conhecimento científico
ao maior público possível: a Popularização da Ciência (BROKS, 2006).
As escolhas interpessoais, experienciais e textuais dos textos do corpus
foram analisadas e levaram a resultados que visaram descrever como
acontece a recontextualização tanto em inglês como na tradução para
o português brasileiro, em dois tipos de textos (MATTHIESSEN et al.,
2008) relativos à Popularização da Ciência: Explicar/Monólogo/Escrito
(“How Stuff Works”) e Recriar/Diálogo/Falado (“Beakman’s World”).
Tendo como objetivo principal descrever a forma pela qual os textos
destes diferentes sistemas linguísticos criam as variáveis no contexto
de cultura (MARTIN, 1992), esta pesquisa procurou desenvolver uma
proposta de sistematização das escolhas gramaticais de modo a produzir
a perfilação sistêmica dos textos.
A análise gramatical mostrou que, no que concerne às escolhas
interpessoais, elas são as responsáveis pela relação entre produtor e
receptor do texto. As escolhas mais relevantes dos textos de Popularização
da Ciência tanto em inglês quanto nas traduções para português brasileiro
foram o Modo Indicativo Interrogativo que tem a função de introduzir a
curiosidade científica que será explicada. O Modo Indicativo Declarativo
tem a função de explicar os fatos científicos e Modo Imperativo convida
o leitor a participar da experiência científica.
Nas escolhas ideacionais, que são as responsáveis pela
representação do mundo de experiências, as escolhas mais relevantes dos
textos de Popularização da Ciência em inglês e português brasileiro são:
processos materiais e relacionais. Os processos materiais representam
os fenômenos do mundo natural que são estudados pela ciência. Os
relacionais “traduzem” os termos técnicos da ciência.
Por fim, nas escolhas textuais, a função das mensagens iniciais
é buscar responder às questões que são apresentadas. A função das
mensagens de continuidade é acrescentar informações às iniciais. As
mensagens de descontinuidade: mudança colocam participantes em
evidência e as de descontinuidade: desvio, focalizam o texto em algum
evento em particular.
1256
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Conclui-se que a dimensão sistêmica permite uma descrição
textual que compreende a totalidade das funções gramaticais e semânticas
dos textos, garantindo que os perfis sistêmicos gerados sejam aplicáveis
a várias áreas do conhecimento linguístico.
No que concerne à tradução, os perfis sistêmicos criados são
aplicáveis às escolhas tradutórias, uma vez que as escolhas metafuncionais
de dois sistemas linguísticos diferentes foram contrastadas.
Já ao ensino de línguas, os perfis sistêmicos podem ser utilizados
como parâmetros para produção textual, uma vez que demonstram como
os textos se desenvolvem, bem como seus padrões sistêmicos.
Além dos resultados, a metodologia desta pesquisa também
se mostrou útil, demonstrando seu potencial de replicabilidade para
pesquisas futuras que visem explicitar aspectos funcionais de outros
tipos de recontextualização dos discursos científicos.
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Valoração e variações semânticas em estágios narrativos
de Eveline, de James Joyce: um estudo de reinstanciações
Appraisal and semantic variation in narrative stages of Eveline,
by James Joyce: a study of re-instantiations
Natália Cristófaro
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
ncristofaro@ufmg.br
Resumo: Este trabalho investiga as ocorrências de valoração (MARTIN, WHITE,
2005) em um texto literário escrito em língua inglesa e a reinstanciação da valoração
em traduções para o português brasileiro. Esta pesquisa tem como objetivo investigar
as ocorrências de valoração por estágios narrativos em excertos do conto Eveline, de
James Joyce, e suas variações semânticas em duas traduções distintas para o português
brasileiro. O trabalho se calca no arcabouço do sistema de valoração e adota o conceito
literário de estágio (ROTHERY, STENGLIN, 1997) para o estudo das ocorrências. A
metodologia utilizada foi semiautomática e envolveu três passos principais: seleção dos
excertos de cada estágio narrativo e seus correspondentes nos textos-traduzidos; inserção
e anotação dos excertos em planilhas eletrônicas; e comparação entre ocorrências de
valoração entre os textos a fim de possibilitar a identificação de variações semânticas
nas reinstanciações. Os resultados alcançados indicam a ocorrência de valorações com
configurações similares, alinhadas a orientações de valor. Variações semânticas foram
devidas majoritariamente a variações em acoplamento e calibragem nos subsistemas
de atitude, carga e gradação. O subsistema de gradação foi especialmente produtivo
no estudo de variações, devido ao não-acoplamento ou calibragem em menor grau nas
ocorrências valorativas nas reinstanciações. a análise valorativa revelou-se produtiva
para a identificação de valorações com configurações similares e de variações semânticas
em textos traduzidos.
Palavras-chave: valoração; reinstanciação; variações semânticas; Eveline.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1259-1294
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Abstract: This study investigates occurrences of appraisal (MARTIN, WHITE, 2005)
in a literary text written in English and the re-instantiation of appraisal in translations
to Brazilian Portuguese. This study aims to analyze appraisal occurrences in excerpts
of the short story Eveline by James Joyce, and semantic variation in two distinct
translations to Brazilian Portuguese. Analysis is based on the appraisal system’s
framework and adopts the literary concept of stage (ROTHERY, STENGLIN, 1997).
The adopted methodology was semi-automatic and involved three main steps: selection
of excerpts from each narrative stage and their correspondent excerpts in the translated
texts; insertion of texts in electronic sheets and annotation; and comparison of appraisal
occurrences between texts in order to enable the identification of semantic variations
in the re-instantiations. Results indicate the occurrence of evaluations with similar
configurations, which were aligned to value orientations. Semantic variation was due
mainly to different coupling and commitment of the attitude, loading and graduation
subsystems. graduation was especially productive due to non-coupling or commitment
in lesser degree in appraisal occurrences in the re-instantiations. appraisal analysis was
shown to be productive for the identification of occurrences with similar configurations
and semantic variation in translated texts.
Keywords: appraisal; re-instantiation; semantic variation; Eveline.
Recebido em 11 de outubro de 2018
Aceito em 03 de janeiro de 2019
1 Introdução
O sistema de valoração (appraisal), como desenvolvido em
Martin e White (2005), tem o propósito de possibilitar a investigação
das formas como textos são construídos por comunidades de valores
compartilhados e como posicionam o escritor e os leitores quanto a
sentimentos e afirmações normativas. Desenvolvido dentro de um
âmbito sistêmico-funcional, a valoração é um sistema da metafunção
interpessoal: lida, portanto, com a negociação de relações sociais.
Por sua orientação interpessoal e por se ocupar de sentimentos e
valores compartilhados por comunidades, a valoração tem sido utilizada
como arcabouço em diversos estudos empíricos com textos traduzidos, a
fim de verificar variações nas construções desses valores em diferentes
comunidades. Estudos como Rosa (2008), Munday (2012), Blauth (2015)
e Dias e Magalhães (2017) provaram a relevância do estudo do sistema
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para a investigação de textos literários traduzidos, através da verificação
de variações em significados valorativos em textos-fonte (TFs) e textos
traduzidos (TTs).
Estes estudos, entretanto, não puderam abranger a inter-relação
das valorações no desdobramento do texto literário, uma vez que sua
abordagem de corpus envolve a análise de ocorrências isoladas no texto.
Visto que a valoração é um sistema pertencente ao estrato semânticodiscursivo da linguagem, os significados valorativos se propagam ao
longo do texto e colorem outros significados (MARTIN, WHITE, 2005;
MARTIN, ROSE, 2007), afetando o posicionamento do leitor. Assim,
a análise semântico-discursiva da valoração implica a consideração de
ocorrências não de forma isolada, mas em relação a outras ocorrências
que podem afetar sua leitura.
A fim de preencher esta lacuna, este artigo segue a perspectiva
semântico-discursiva e apresenta um recorte da pesquisa desenvolvida em
Cristófaro (2018), investigando excertos do TF Eveline, conto de autoria
de James Joyce e publicado em 1914 na coletânea Dubliners, e duas
traduções para o português brasileiro. A primeira delas foi publicada em
1964 e feita por Hamilton Trevisan; a segunda foi feita por José Roberto
O’Shea e publicada em 1993.
Propõe-se, assim, investigar a ocorrência de significados
valorativos nos estágios e verificar a ocorrência de variações semânticas
nas reinstanciações dos excertos do conto Eveline, utilizando os conceitos
narrativos de Rothery e Stenglin (1997) e fase de Macken-Horarik
(2003) e Martin e Rose (2008). Os conceitos de variação semântica
e reinstanciação, desenvolvidos por Souza (2013), são utilizados na
investigação dos significados valorativos nos TTs em comparação com
o TF.
A metodologia da pesquisa cujo recorte é apresentado neste
artigo calca-se em Martin e White (2005) quanto à classificação geral
do sistema de valoração e em Macken-Horarik e Isaac (2014) no que
tange às categorizações do subsistema de atitude, especialmente no que
concerne aos quadros desenvolvidos para análise.
Com base no arcabouço teórico utilizado, foram elaboradas as
seguintes perguntas de pesquisa para o presente artigo:
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1)
Como se configuram os acoplamentos de subsistemas em
ocorrências valorativas nos estágios do excerto? Ocorrências
podem ser alinhadas a orientações de valor?
2)
São identificadas variações semânticas nas configurações
valorativas? Estas implicam variação no alinhamento de
ocorrências a orientações de valor nas reinstanciações?
3)
São identificadas variações nos subsistemas de gradação e carga?
Como se configuram?
A fim de procurar responder às perguntas de pesquisa formuladas
e alcançar os objetivos deste trabalho, foi elaborada a fundamentação
teórica apresentada na seção a seguir.
2 Fundamentação teórica
Esta seção visa apresentar os textos sobre os quais esta pesquisa se
calca e está dividida em três subseções. Primeiramente serão apresentadas
as definições de estágio e fase na abordagem semântico-discursiva, a
fim de elucidar os conceitos-base que norteiam a pesquisa cujo recorte
é apresentado neste artigo. Na subseção seguinte serão apresentados
conceitos e classificações relativos ao sistema de valoração. A terceira
subseção revisará alguns trabalhos que abordaram a valoração em textos
traduzidos.
2.1 Os conceitos de estágio e fase na abordagem semântico-discursiva
A abordagem semântico-discursiva da valoração envolve o
estudo do significado para além das orações – isto é, em textos. Como
aponta Martin e White (2005), realizações atitudinais tendem a se
propagar pelo discurso, “colorindo” outros significados. Assim, a análise
valorativa realizada sob a perspectiva semântico-discursiva se propõe a
investigar como as prosódias valorativas negociam poder e solidariedade
entre os leitores do texto que instancia o gênero e o gênero em si, como
operam para alcançar o objetivo do gênero e como significados deste
tipo variam a cada estágio do discurso.
Os estágios discursivos de um texto são estáveis, como aponta
Martin e Rose (2008). As configurações específicas dos estágios são,
portanto, reconhecíveis em todas as instâncias de um mesmo gênero,
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isto é, em todos os textos que instanciam o gênero. A fim de definir
características dos estágios discursivos, Rothery e Stenglin (1997) adota
essa perspectiva e a expande. Especificamente sobre o gênero narrativa,
no qual o excerto do conto analisado neste estudo se encaixa, Rothery e
Stenglin (1997) aponta que é construído em torno de uma problemática,
usualmente introduzida no estágio chamado Complicação, e que implica
ruptura de eventos usuais no universo narrativo.
Rothery e Stenglin (1997) identifica quatro estágios obrigatórios
nesse gênero: Orientação, Complicação, Avaliação e Resolução. A
Orientação é o estágio obrigatório inicial, cujo propósito é orientar o
leitor quanto ao cenário e personagens. A Complicação é o estágio no
qual é introduzida a ruptura na sequência usual de atividades, e a partir de
qual é construída a problemática da narrativa e a procura de sua solução;
visto que a procura de uma solução é o ponto central, este estágio é
considerado o centro do gênero narrativa. A Resolução é o estágio final,
no qual é oferecido um retorno à estabilidade.
De acordo com Rothery e Stenglin (1997), a Avaliação está
intercalada na Complicação. Isso se deve ao destaque dado aos
significados interpessoais e à ruptura da usualidade no universo narrativo,
o que implica destaque da reação emocional dos personagens inseridos
na problemática. Abordando os estágios do gênero narrativa sob uma
perspectiva valorativa, Macken-Horarik (2003) descarta a separação
da Avaliação, visto que este estágio se encontra intercalado. Esta é a
perspectiva adotada neste trabalho: considerando-se que as avaliações
(e, por consequência, escolhas valorativas) estão espalhadas ao longo
dos demais estágios, não seria possível limitá-las a somente um estágio
narrativo.
Os estágios de um texto, por sua vez, são compostos por
segmentos menores, chamados de fases discursivas. Fases, em oposição
a estágios, são segmentos pouco previsíveis e bastante variáveis de um
texto para outro, como destaca Martin e Rose (2008). No que tange à
segmentação de textos em fases discursivas, Macken-Horarik (2003)
opta por utilizar a valoração como um dos parâmetros para separação:
diferenças em configurações avaliativas, isto é, em diferentes alvos de
avaliações, tipos de atitude, e outras classificações, são cruciais para a
delimitação de fases em um texto.
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2.2 O sistema de valoração
Tendo sido definidos os conceitos de estágio e fase, parte-se para
a exposição das diferentes escolhas dos subsistemas da valoração, de
acordo com as categorias apresentadas em Martin e White (2005). Os
subsistemas abordados na presente análise são cinco: atitude, carga e
modo de realização; comprometimento; e gradação. O Quadro 1 a seguir
ilustra as opções dos subsistemas que compõem o sistema de valoração:
QUADRO 1 – Opções do sistema da valoração
Subsistema
1º. grau de especificidade
2º. grau de especificidade
Afeto
atitude
Julgamento
--
Apreciação
Positivo
carga
Negativo
--
Inscrito
modo de realização
Evocado
--
Monoglossia
-Contrair
comprometimento
Heteroglossia
Expandir
Aumentar
Força
Diminuir
gradação
Enfocar
Foco
Desfocar
Fonte: Elaborado pela autora para fins desta pesquisa com base em Martin e White (2005).
Da forma como são utilizadas nesta pesquisa, as escolhas do
sistema podem chegar até o segundo grau de especificidade. Destaca-se
que, embora escolhas em outros graus estejam disponíveis, não foram
utilizadas no presente trabalho.
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São três as escolhas do primeiro grau de especificidade do
subsistema de atitude: afeto, julgamento e apreciação. O afeto aborda
os recursos linguísticos relacionados às reações emocionais, tais como
“feliz”, “chatear”. Destaca-se que, por serem valorações sentimentais,
aquele que as sente (isto é, a origem da emoção) é considerado o emotivo
e, portanto, o avaliador. Aquilo que gera a emoção é chamado de gatilho,
isto é, o avaliado.
O julgamento é relacionado a valorações de comportamentos
de acordo com princípios normativos, e relativo a aspectos sociais ou
institucionais. Assim, exemplos de valorações deste tipo são “corajoso”,
“honesto”, “powerful”, “evil”, verbos modais como “deveria”, “should”,
ou “obrigação”. O julgamento pode incidir sobre pessoas ou instituições.
Já a apreciação age sobre coisas e fenômenos naturais, envolvendo
valorações de natureza primariamente estética; realizações ilustrativas
são “bonito”, “fantástico”, “captivating”, “tedious”.
Todas essas valorações podem ter carga positiva ou negativa:
uma valoração de carga positiva seria o recurso linguístico “bonito”,
enquanto uma escolha de carga negativa seria “feio”. Todas as valorações
são feitas de forma inscrita ou evocada, escolhas localizadas no primeiro
grau de especificidade do subsistema modo de realização. Valorações
inscritas são aquelas explícitas no texto por uma palavra ou expressão;
valorações evocadas são aquelas escolhas implícitas, cujos significados
valorativos podem ser depreendidos pelo contexto ou co-texto.
O subsistema de comprometimento lida com estratégias
empregadas a fim de alinhar o leitor aos valores propostos no texto. São
duas as opções do primeiro grau de especificidade para o comprometimento
acoplado à atitude: monoglossia e heteroglossia. Na monoglossia o
espaço para diálogo com vozes alternativas é contraído ao máximo; na
heteroglossia, há abertura para outras posições valorativas. Esta opção
apresenta as opções “contrair” e “expandir”: “contrair” representa o
reconhecimento de outras vozes, mas implica negação destas (“não”,
“mas”, “sem dúvida”, “however”, “even though”), enquanto a opção
“expandir” envolve o reconhecimento destas (“provavelmente”, “ele
disse que...”, “he claimed that...”, “I think...”).
O subsistema final é o de gradação, cujo papel é ajustar as
valorações de atitude em grau. As primeiras escolhas disponíveis são
“foco” e “força”. A escolha “foco” é relacionada à gradação de itens
usualmente não graduáveis (“verdadeiro amigo”, “a real father”) e
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engloba as escolhas enfocar e desfocar, que implicam aumento de grau e
diminuição de grau. “Força” gradua escolhas normalmente graduáveis e
possui as escolhas “aumentar” (“muito feliz”, “very angry”) e “diminuir”
(“um pouco triste”, “a bit angry”). Destaca-se que a gradação pode
ser feita de forma isolada, caso em que um recurso linguístico realiza
a gradação (“muito feliz”, “very angry”), ou fusionada, quando
a gradação é realizada no próprio item valorativo (“felicíssimo”,
“furious”); adicionalmente, metáforas são também realizações de
gradação de aumento.
Outros conceitos relativos à valoração que devem ser destacados
são aqueles de acoplamento e calibragem, desenvolvidos em Martin
(2010). Estes conceitos fazem-se cruciais para estudos que abordam
relações entre textos, tais como os da tradução, por possibilitarem a
investigação das formas como variações semânticas ocorrem.
Acoplamento é definido como “a combinação de significados
(ao longo de estratos, metafunções, ordens, sistemas simultâneos e
modalidades)”1 (p. 19); cosseleções de subsistemas da valoração
configuram, portanto, acoplamento. Ilustrativamente, a cosseleção de
gradação e atitude verificada na ocorrência “muito chateado” configura
acoplamento dos dois subsistemas.
A calibragem, por sua vez, é definida como o grau de
especificidade da instância no texto. Esse grau é definido em relação ao
número de opções selecionadas e ao nível de especificidade das escolhas
realizadas. Ilustrativamente, a escolha “muito, muito chateado” calibra
gradação em maior grau em comparação à escolha “very upset”, o que é
devido à repetição, responsável por aumentar a intensidade da valoração.
Assim, diferentes escolhas entre textos traduzidos e textos-fonte podem
implicar variações tanto em acoplamento quanto em calibragem em
análise comparativa.
2.3 A valoração em textos traduzidos
Os trabalhos revisados a seguir mostraram que a análise calcada
no sistema de valoração é relevante para estudos que tomam textos
traduzidos como objeto de estudo. Alguns desses trabalhos serão
1
No original: “[Coupling is] the combination of meanings (across strata, metafunctions,
ranks, simultaneous systems, and modalities)” (p.19).
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revisados nessa seção, embora destaque-se que esses estudos foram
desenvolvidos sob uma perspectiva de corpus, não tendo envolvido
análises semântico-discursivas que levassem em conta a inter-relação
dos significados no desdobramento das narrativas.
Munday (2012) verifica as ocorrências de valorações de atitude
em uma narrativa literária traduzida. O estudo aborda o conto Emma
Zunz de Jorge Luis Borges em traduções para a língua inglesa e identifica
ocorrências de valoração acopladas ao modo de realização inscrito
com maior frequência nos textos traduzidos; especialmente produtivo
foi o subsistema de gradação, cujo efeito foi a intensificação de itens
valorativos em maior frequência em relação ao TF.
Rosa (2008) também analisa o subsistema de atitude a fim de
identificar, em interface com análise de apresentação de fala, como o
controle do narrador varia em textos traduzidos. Rosa (2008) trabalha
com três traduções para adultos da obra Oliver Twist, de Charles Dickens
e três traduções para o público infantil. Os achados deste estudo relativos
à análise valorativa dos TTs para o público adulto indicam aumento da
polaridade positiva no subsistema de carga e aumento de valorações
explícitas (isto é, inscritas) nas traduções da obra.
Dias e Magalhães (2017) segue a perspectiva de Rosa (2008)
para estudar o romance Arrow of God, de Chinua Achebe, e uma
tradução para o português brasileiro. Os resultados relativos à análise da
valoração indicam recursos de atitude mais frequentemente negativos
nas traduções, e acoplados ao modo de realização inscrito em maior
frequência. No que tange aos recursos de gradação, são identificadas
diversas variações nos TTs, os recursos linguísticos relacionados a este
subsistema sendo menos frequentes. Consequentemente, os achados deste
estudo revelaram menor intensificação nas ocorrências de valoração na
tradução para o português brasileiro.
Blauth (2015) estuda a obra Heart of Darkness, de Joseph Conrad,
e duas traduções para o português brasileiro. Procura investigar o estilo das
traduções com base no subsistema de gradação, além de outros recursos,
todos investigados por meio de corpus. Significados conotativos, isto é,
valorações acopladas ao modo de realização evocado, apresentam-se
mais frequentes nos TTs. Variações em gradação mostram-se frequentes
nas traduções; a análise destas revela que uma das traduções intensifica
o grau das valorações verificadas, enquanto a segunda frequentemente
diminui o grau dos significados valorativos.
1268
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Finalmente, destacam-se os conceitos introduzidos por Souza
(2013), cruciais para o estudo da valoração em textos traduzidos. Estes
conceitos se fazem importantes considerando-se a abordagem semânticodiscursiva da presente pesquisa, visto que entendem a tradução como
uma reconstrução do potencial de significado da linguagem e apresentam
uma visão semântica das mudanças provavelmente identificáveis em
textos traduzidos. Souza (2013) propõe um modelo para a análise de
traduções calcada na Linguística Sistêmico-Funcional e defende que o
conceito de “mudança” não pode ser utilizado em um estudo calcado no
sistema da valoração. Este é um sistema semântico-discursivo, portanto,
não há relação com a análise de estruturas gramaticais: sendo assim,
Souza (2013) propõe a adoção do termo “variação semântica”. Como
a valoração se preocupa com significados em oposição a estruturas
gramaticais, a adoção do termo representa uma escolha terminológica
importante para a pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo.
O segundo conceito proposto por Souza (2013) é o de
reinstanciação. No modelo desenvolvido, Souza (2013), com base nas
noções de instanciação e reinstanciação de Martin (2006), entende a
tradução como uma reinstanciação. Visto que a instanciação é a relação
entre a linguagem como potencial de significado e o texto como uma
instância concreta, o texto traduzido é entendido como uma reinstanciação
por reconstruir o potencial de significado a partir de uma fonte. Essa
terminologia é adotada neste trabalho por permitir verificar como a
valoração é reinstanciada nas traduções em comparação ao TF.
Os textos revisados neste referencial teórico tornaram possível
a elaboração de uma metodologia para a pesquisa. Esses procedimentos
metodológicos serão apresentados na seção a seguir.
3 Metodologia
Duas etapas principais compõem a metodologia desenvolvida
para a pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo: o primeiro deles
abrange a seleção do corpus e o segundo engloba os procedimentos de
análise, realizados de forma semiautomática.
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3.1 Seleção do corpus
O corpus utilizado nesta pesquisa origina-se na coletânea
Dubliners (Dublinenses), publicada pela primeira vez em 19142 e escrita
por James Joyce, e em duas traduções para o português brasileiro. A
coletânea é composta por quinze contos e faz parte do corpus RETRAD3
(Corpus de Traduções e Retraduções) (MAGALHÃES, 2014), compilado
pelo Laboratório Experimental de Tradução (LETRA) da Universidade
Federal de Minas Gerais. Destaca-se que a utilização do termo “corpus”
neste artigo se refere aos textos selecionados para análise e não possui
ligação com o termo como utilizado na Linguística de Corpus.
As traduções escolhidas foram duas: a primeira, por Hamilton
Trevisan, foi publicada em 1964 pela editora Civilização Brasileira. A
segunda foi feita por José Roberto O’Shea e publicada em 1993 pela
editora Hedra.
Uma vez que o corpus já se encontrava compilado e preparado
no momento de início da pesquisa da qual esse recorte foi retirado, os
procedimentos relacionados à preparação dos textos não se fizeram
necessários. Optou-se pelo trabalho com a coletânea visto que a obra
apresenta uma “denúncia de passividade, corrupção, fraqueza, limitação
e ocasional perversão” (JOYCE, apud JOYCE, 1993, tradução de José
Roberto O’Shea, p. 8), de acordo com o próprio Joyce; assim, a obra
pareceu configurar-se como produtiva para a investigação da ocorrência
de prováveis significados negativos no TF e pela provável verificação
de variações semânticas nas reinstanciações para o português brasileiro.
O conto Eveline foi escolhido por abordar a frustração e
desesperança na personagem principal, que dá nome ao conto. Eveline,
uma cidadã de Dublin, é uma jovem cuja vida familiar não a agrada,
empregada em uma loja cuja dona a humilha. Ao conhecer Frank, um
marinheiro, e se apaixonar, ela se depara com a chance de fugir para
Buenos Aires. Apesar de desgostar da vida que leva na Irlanda, Eveline
é tomada pela indecisão e reflete sobre sua vida até aquele ponto.
Finalmente, embora se decida por partir, Eveline é tomada novamente
pela indecisão e não embarca no navio que a levaria à Argentina com
Frank, deixando o namorado partir sem ela.
2
Nesta pesquisa foi utilizada a republicação de 2001 pela editora Wordsworth Editions.
O corpus ESTRA, apresentado em Magalhães (2014), foi renomeado como RETRAD
no ano de 2017.
3
1270
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
A seleção de excertos se orientou pelos estágios da narrativa como
definidos em Rothery e Stenglin (1997) e utilizados em Macken-Horarik
(2003). O excerto referente à Orientação é composto pelo início do texto
e apresenta os cenários e personagens; Eveline está sentada à janela e
reflete sobre passado e presente. A Complicação é representada pelo
evento em que Eveline se lembra da vida triste que sua mãe levara, entra
em pânico e decide fugir; em seguida é apresentado o momento em que
Eveline está no cais, pronta para embarcar, e é novamente tomada pela
indecisão. Por fim, o estágio de Resolução é representado pelo evento
em que Eveline é tomada pela passividade e permanece no cais enquanto
Frank, seu namorado, adentra a embarcação.
Procedimentos de análise
Os procedimentos adotados para a análise se baseiam em Martin
e White (2005) no que tange à análise valorativa de forma abrangente
e em Macken-Horarik e Isaac (2014) no que concerne à anotação dos
sistemas de atitude e gradação. Ambos os trabalhos utilizaram quadros
para o desenvolvimento da análise valorativa; com base neles, foram
desenvolvidas planilhas eletrônicas para a anotação de ocorrências de
valoração, criadas no software Microsoft Excel® 2010.
As planilhas foram planejadas conforme a Figura 1 ilustra:
FIGURA 1 – Configuração da planilha de análise
Fonte: Elaborada pela autora para fins desta pesquisa.
1271
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
A seção à esquerda da planilha foi composta por três colunas,
dedicadas à análise do comprometimento. A classificação foi feita de
forma topológica, como sugerem Martin e White (2005): a coluna
mais à esquerda foi dedicada à opção heteroglossia: expandir, a coluna
central foi dedicada à heteroglossia: contrair e a coluna mais à esquerda
foi dedicada às sentenças monoglóssicas. Cada sentença foi inserida
na coluna apropriada; recursos de heteroglossia foram destacados em
negrito.
A seção à direita da planilha foi dedicada à atitude e à gradação
a ela cosselecionada. Esta seção foi toda validada com opções, a fim de
permitir a seleção de escolhas através de menus. Este passo foi feito por
meio de validação de dados e inserção das opções pertinentes a cada
coluna. A exceção à validação é a coluna “item valorativo”, na qual a
ocorrência de valoração em análise foi inserida.
As categorias analisadas nesta seção estão ilustradas no Quadro
2, a seguir:
QUADRO 2 – Categorias de análise
atitude
gradação
Avaliador
Avaliado
carga
modo de
realização
Afeto
Força/(+)
Julgamento
(inserção
manual)
(inserção
manual)
Positivo
Inscrito
Força/(-)
Negativo
Evocado
Apreciação
Foco/(+)
--
--
--
Foco/(-)
Fonte: Elaborada pela autora para fins desta pesquisa.
A anotação dos recursos linguísticos nesta seção seguiu as
recomendações metodológicas de Macken-Horarik e Isaac (2014).
Ocorrências de atitude foram identificadas e anotadas concomitantemente
com o avaliador (fonte da valoração) e o avaliado (alvo da valoração).
Em seguida, as ocorrências foram classificadas de acordo com o modo
de realização e carga. Por fim, a gradação, se acoplada, foi anotada.
As síndromes de escolhas valorativas, isto é, sequências de valorações
com configurações similares, foram então identificadas e destacadas por
meio de cores.
1272
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
As ocorrências foram alinhadas a orientações de valor definidas
após a anotação, tais como “paralisia” e “pânico”, dependendo do tipo
de configuração valorativa identificada. Isto permitiu o agrupamento de
ocorrências segundo acoplamentos de subsistemas, principalmente de
atitude e carga e combinações de avaliador e avaliado.
O processo foi realizado nos três textos (TF e dois TTs), todos
inseridos na mesma planilha eletrônica e separados em diferentes abas.
O processo de comparação foi realizado de forma manual e envolveu a
verificação de cada item avaliativo em todos os três textos. O alinhamento
dos textos se provou inviável devido à quantidade de categorias utilizadas
na planilha, o que implicaria uma planilha muito extensa horizontalmente.
As planilhas completas passaram por um processo de doublechecking, no qual outro pesquisador conferiu as análises a fim de
minimizar a subjetividade provável na classificação. Com as planilhas
revisadas, foi possível passar para a separação de fases discursivas, feita
de acordo com mudanças nas configurações dos significados valorativos,
conforme as indicações de Macken-Horarik (2003).
Após a execução das etapas metodológicas, foi possível passar
à análise dos resultados. Os resultados relativos ao recorte da pesquisa
apresentado neste trabalho são relatados na seção a seguir.
4 Resultados
As subseções a seguir descrevem os resultados encontrados nos
três distintos estágios do gênero narrativa: Orientação, Complicação e
Resolução.
4.1 Orientação
No estágio de Orientação foram identificadas as orientações de
valor de positividade do passado, negatividade do presente, tristeza/
saudade e esperança. À orientação de valor de positividade do passado
se alinham as ocorrências que apresentaram configurações valorativas
de afeto ou apreciação acoplados à carga positiva, cujos avaliados
foram o passado da personagem. À orientação de valor de negatividade
do presente se alinham as ocorrências que apresentaram configurações
valorativas de afeto acoplado à carga negativa, cujos avaliados foram
aspectos do presente de Eveline. valorações de tristeza/saudade são
ocorrências cujas configurações avaliativas foram de afeto negativo
1273
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
em relação ao passado; finalmente, valorações de esperança foram
identificadas como estando alinhadas àqueles itens valorativos de afeto
positivo cujos alvos foram a possibilidade de deixar a casa.
Foi identificada neste estágio uma tendência de ocorrência de
valorações de atitude do tipo apreciação; é possível argumentar que,
devido à valoração estética de coisas e fenômenos representada por este
tipo de atitude, a apreciação seja mais utilizada no estágio inicial da
narrativa como forma de orientar ao leitor quanto ao cenário em que a
narrativa ocorre.
O Quadro 3 a seguir ilustra ocorrências de apreciação, alinhadas
à orientação de valor de negatividade do presente:
QUADRO 3 – Apreciações no estágio de Orientação
The man out of the last house passed on his way home; she heard his footsteps
clacking along the concrete pavement and afterwards crunching on the
cinder path before the new red houses.
Item valorativo
compr.
Avaliador
Clacking along
the concrete
pavement
Monoglossia
Narrador
Crunching on the
cinder path
Monoglossia
Narrador
atit./
modo real.
Avaliado
grad.
(-) apr.
Inscrito
Ambiente
--
(-) apr.
Inscrito
Ambiente
--
carga
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Os sons relativos aos passos do homem na calçada, inscritos
no texto por meio dos recursos linguísticos “clacking” e “crunching”,
são valorados de forma negativa. Por serem valorações relacionadas à
estética do som desagradável, são consideradas ocorrências de atitude
do tipo apreciação. A configuração valorativa de apreciação acoplada à
carga negativa constrói, portanto, um presente desagradável no universo
narrativo.
As ocorrências de afeto neste estágio foram identificadas como
estando acopladas tanto à carga negativa quanto à positiva. O Quadro 4,
a seguir, ilustra ocorrências deste tipo de atitude em uma das fases do
conto. É identificada oposição em carga, feita no domínio da contração
1274
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
heteroglóssica no campo do comprometimento, através dos recursos “not”
e “but”, identificados em sublinhado no quadro abaixo. Estabelece-se
contraste entre a negatividade do presente e a positividade do passado:
QUADRO 4 – Ocorrências de afeto positivo e negativo
One time there used to be a field there in which they used to play every evening
with other people’s children.
Then a man from Belfast bought the field and built houses in it – not like
their little brown houses but bright brick houses with shining roofs.
Item valorativo
atit./
modo
carga
real.
Avaliado
grad.
Eveline
(+) afeto Evocado Ambiente
Força/
(+)
Monoglossia
Eveline
(-) afeto Evocado Ambiente
--
Little brown
houses
Heter./contrair
Not
Eveline
(+) afeto Evocado Ambiente
--
Bright brick
houses with
shining roofs
Heter./contrair
But
Eveline
(-) afeto Evocado Ambiente
Força/
(+)
compr.
Avaliador
Play every evening
Monoglossia
Built houses in it
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Esta fase descreve a destruição de um campo onde a personagem
e seus amigos costumavam brincar quando crianças. A felicidade causada
em Eveline pelo ambiente no passado é evocada no texto pelo item
valorativo “play every evening”: as brincadeiras de causam sentimentos
positivos à Eveline do passado.
Esta valoração é contrastada em carga com o item valorativo
“built houses in it”: esta é uma ocorrência de afeto negativo e evocado, por
representar a destruição do passado positivo para Eveline. A positividade
é reforçada de forma evocada logo em seguida no item “little brown
houses”; embora sejam casas pequenas, aspectos relacionados ao passado
1275
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
da personagem são avaliados de forma positiva. Por conseguinte, as casas
que substituíram o campo são avaliadas de forma negativa. “Bright” e
“shining”, embora sejam valorações inscritas de apreciação positiva,
por se relacionarem ao valor estético das casas, implicam sentimentos
negativos em Eveline: sentimentos que são causados pela destruição do
campo e do ambiente positivo do passado. É importante destacar que
Eveline é o avaliador nestas configurações valorativas por estas serem
atitudes de afeto. Assim, Eveline, como origem do sentimento, é o
emotivo destas, e, portanto, se encaixa na categoria avaliador.
As variações semânticas identificadas neste estágio são
relacionadas a acoplamentos de variados subsistemas, principalmente
aqueles de atitude, carga e gradação. Adicionalmente, foi também
identificada uma ocorrência de atitude não instanciada no TF, conforme
o Quadro 5, a seguir, ilustra:
QUADRO 5 – atitude não instanciada no TF
TF
TT O’Shea
The man Ø out of the last house passed
on his way home; she heard his footsteps
clacking along the concrete pavement and
afterwards crunching on the cinder path
before the new red houses.
O sujeito que morava no fim da rua passou
a caminho de casa; ela ouviu seus passos
estalando na calçada de concreto e em seguida
rangendo sobre o caminho coberto com
cascalho em frente às casas vermelhas.
Item
valorativo
compr.
Avaliador
TF
Ø
Ø
Ø
O’Shea
sujeito
Monoglossia
Eveline
atit./
modo real
Avaliado
grad.
Ø
Ø
Ø
--
(-) afeto
Evocado
Ambiente
--
carga
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
A análise semântico-discursiva revela que a adição desta
ocorrência de valoração reverbera outras ocorrências de afeto negativo
neste estágio, visto que indica e enfatiza a construção da personagem
Eveline como emocionalmente distante do ambiente que a cerca. Esta
ocorrência de valoração se alinha à orientação de valor de negatividade
do presente.
1276
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
No que tange às variações semânticas identificadas neste estágio,
também foram verificadas variações no acoplamento de atitude, como
o Quadro 6 ilustra:
QUADRO 6 – Variações no acoplamento de atitude
TF
TT O’Shea
Her father was not so bad then; and
besides, her mother was alive.
Seu pai ainda não estava tão mal e, além
disso, a mãe ainda estava viva.
atit./
modo
carga
real.
Narrador
(-) julg.
Pai
(-)
afeto
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
Not so bad
Heter./
contrair
Not
O’Shea
Não estava tão
mal
Heter./
contrair
Não
Avaliado
grad.
Inscrito
Família
Força/(-)
Inscrito
Família
Força/(+)
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Este exemplo ilustra a variação no acoplamento de atitude na
reinstanciação de O’Shea. Pelo caráter mau do pai de Eveline, opta-se
no TT por uma classificação do comportamento do homem – portanto,
julgamento de carga negativa. Na reinstanciação de O’Shea, porém, há a
implicação de que o homem se sente mal no tempo atual da trama, tendo
em vista que “estar mal” implica doença e, portanto, insatisfação. Assim,
esta valoração é de atitude do tipo afeto negativo no TT de O’Shea.
As variações no acoplamento de atitude também são identificadas
em conjunto com variações no subsistema de carga e modo de realização
neste estágio. As configurações valorativas relativas às ocorrências
identificadas estão ilustradas no Quadro 7:
1277
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 7 – Variações em atitude e carga
TF
TT Trevisan
Then a man from Belfast
bought the field and built
houses in it --not like their
little brown houses but bright
brick houses with shining
roofs.
TT O’Shea
Mais tarde, um homem
Mais tarde um indivíduo de
de Belfast comprara o
Belfast comprara o terreno e
terreno e construíra casas
construíra casas --mas não eram
nêle --não pequenas e
casas pequenas e escuras como
escuras como aquela em
aquelas em que eles moravam;
que morava -- mas casas
eram casas vistosas de tijolo e
de tijolo claro e telhados
com telhados luzidios.
luzidios.
atit./
modo
carga
real.
Eveline
(+) afeto
Heter./
contrair
Não
Narrador
Heter./
contrair
Não
Narrador
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
Little brown
houses
Heter./
contrair
Not
Trevisan
Casas pequenas e
escuras
O’Shea
Casas pequenas e
escuras
Avaliado
grad.
Evocado
Ambiente
--
(-) apr.
Inscrito
Ambiente
--
(-) apr.
Inscrito
Ambiente
--
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Em ambas as reinstanciações o afeto positivo em “little brown
houses”, relacionado às lembranças agradáveis do passado de Eveline, é
inscrito como apreciação negativa da casa. Isso se deve à impossibilidade
de se relacionar as casas a sentimentos positivos pela inscrição da
negatividade em “escuras”: faz-se necessário optar pela negatividade
inscrita nos itens avaliativos. O presente de Eveline é construído como
mais negativo nessas reinstanciações, portanto. Isto representa variação
nas orientações de valor identificadas, visto que o ambiente do passado é
positivo para Eveline no TF. Nas reinstanciações, essa variação implica
um passado não mais tão alegre.
1278
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
Variações em carga e atitude também foram identificadas ao
final do excerto, na fase de número 8. O Quadro 8 a seguir ilustra as
configurações valorativas relativas às ocorrências no TF e um dos TTs:
QUADRO 8 – Variações em atitude e carga
TF
TT Trevisan
Now she was going to go away like the others,
to leave her home.
Agora, ela também iria partir, abandonar
a casa.
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
Leave her home
Monoglossia
Eveline
Trevisan
Abandonar a casa
Monoglossia
Narrador
atit./
modo real
Avaliado
grad.
(+) afeto
Evocado
Eveline
--
(-) julg.
Evocado
Eveline
--
carga
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Na reinstanciação de Trevisan identifica-se um julgamento
negativo relacionado à falha de Eveline em cumprir com as suas
obrigações para com sua casa e seu pai, deixando tudo para fugir. O item
avaliativo no TF é “leave her home”: uma valoração de afeto positivo
relacionado à esperança de fugir da personagem. Isto representa variação,
visto que a positividade (e, portanto, a esperança) não é mais identificada
e essa ocorrência não se alinha mais à orientação de valor. Pode-se
argumentar que a reverberação de significados com configurações
valorativas similares, relacionados à felicidade de Eveline em relação à
fuga, perde força nesta reinstanciação em comparação ao TF.
Finalmente, a reinstanciação de Trevisan apresenta algumas
variações relacionadas ao acoplamento em menor grau, ou não
acoplamento, do sistema de gradação, como ilustra o Quadro 9:
1279
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 9 – Variação no subsistema de gradação
TF
TT Trevisan
One time there used to be a field there in
which they used to play every evening with
other people’s children.
Antigamente, havia ali um terreno baldio
onde, ao entardecer, costumava brincar com
as crianças dos vizinhos.
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
Play every
evening
Monoglossia
Eveline
Trevisan
Brincar
Monoglossia
Eveline
atit./
modo real
Avaliado
grad.
(+) afeto
Evocado
Pessoas:
passado
Força/
(+)
(+) afeto
Evocado
Pessoas:
passado
Ø
carga
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
A consequência desta variação semântica é a perda de força em
grau da positividade do passado da personagem principal, devido à não
reinstanciação da gradação presente no item valorativo. A indicação
de frequência, responsável por intensificar a felicidade dos personagens
no domínio do passado de Eveline, não é identificada na reinstanciação.
Assim, o passado, embora ainda alegre, tem sua positividade diminuída
em grau.
4.2 Complicação
No estágio de Complicação, tanto no TF quanto nas reinstanciações,
foram identificadas valorações alinhadas às orientações de valor de
esperança, pânico e paralisia. À orientação de valor de esperança,
tal como no estágio anterior, alinharam-se ocorrências de valoração
cujas configurações foram de afeto positivo em relação à fuga de casa.
À orientação de valor de pânico alinharam-se ocorrências de afeto
acoplado à carga negativa. Finalmente, à orientação de valor de pânico
alinharam-se ocorrências de julgamento negativo. O Quadro 10 a seguir
ilustra alguns significados de afeto negativo identificados na fase 1 da
Complicação:
1280
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 10 – Valorações de afeto acoplado à carga negativa
She stood up in a sudden impulse of terror.
Escape! She must escape!
Item valorativo
compr.
Sudden impulse
Monoglossia
of terror
Escape! She
must escape!
Heter./
contrair
Must
atit./
modo
carga
real.
Eveline
(-) afeto
Eveline
(-) afeto
Avaliador
Avaliado
grad.
Inscrito
Família:
passado
Força/ (+)
Evocado
Família:
passado
Força/ (+)
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Os significados valorativos nesta fase são intensificados por meio
de recursos de gradação (“terror”, exclamações e repetições), cujo efeito
é o aumento de grau do sentimento negativo de Eveline em relação ao
passado de sua família ao se lembrar dos momentos finais de sua mãe.
O pânico da personagem é, assim, destacado no início deste estágio.
Em oposição ao pânico, foi identificada na fase seguinte uma
síndrome de valorações relacionadas à esperança de Eveline de fugir
de casa com o namorado. As configurações valorativas na maioria das
valorações identificadas nesta fase são bastante semelhantes entre si,
principalmente no que tange ao comprometimento e à atitude, conforme
o Quadro 11 ilustra:
1281
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 11 – Síndrome de valorações de esperança
Frank would save her.
He would give her life, perhaps love, too.
But she wanted to live.
Why should she be unhappy?
She had a right to happiness.
Frank would take her in his arms, fold her in his arms.
He would save her.
Item
valorativo
compr.
Avaliador
Save her
Heter./
expandir
would
Give her
life
atit./
modo
carga
real.
Eveline
(+) afeto
Heter./
expandir
would
Eveline
Love
Heter./
expandir
perhaps
Wanted to
live
Avaliado
grad.
Evocado
Frank
--
(+) afeto
Evocado
Frank
--
Eveline
(+) afeto
Inscrito
Frank
--
Heter./contrair
But
Eveline
(+) afeto
Inscrito
Eveline
Unhappy
Heter./contrair
Pergunta
retórica
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
--
A right to
happiness
Monoglossia
Eveline
(+) afeto
Inscrito
Eveline
Força/
(+)
Take her in
his arms,
fold her in
his arms
Heter./
expandir
Would
Eveline
(+) afeto
Evocado
Frank
Força/
(+)
Save her
Heter./
expandir
Would
Eveline
(+) afeto
Evocado
Frank
--
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
--
1282
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
Significados valorativos similares se acumulam nesta fase,
intensificando a esperança de Eveline. Adicionalmente, algumas
ocorrências, tais como “take her in his arms, fold her in his arms”, são
em si intensificadas, este exemplo em específico por conta da repetição
identificada. Frank é o gatilho dessas emoções; logo, pode-se dizer que
Frank é construído como aquele que traz esperança a Eveline.
Variação semântica foi identificada nesta fase na reinstanciação
de Trevisan. O Quadro 12 ilustra as configurações avaliativas relativas
a essa variação:
QUADRO 12 – Variação em gradação em Trevisan
TF
TT Trevisan
Frank would take her in his arms, fold
her in his arms.
Frank a tomaria nos braços.
Item
valorativo
compr.
Avaliador
TF
Take her in his
arms, fold her
in his arms
Heter./
expandir
Would
Trevisan
A tomaria nos
braços
Heter./
expandir
tomaria
atit./
modo
carga
real.
Eveline
(+)
afeto
Eveline
(+)
afeto
Avaliado
grad.
Evocado
Frank
Força/
(+)
Evocado
Frank
Ø
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Visto que a repetição no item valorativo não é reinstanciada no
TT de Trevisan, a valoração de afeto positivo relacionada à esperança
de Eveline diminui em força. Embora não configure variação em seu
alinhamento à orientação de valor, implica menor grau no sentimento de
esperança de Eveline pelo não acoplamento do subsistema de gradação.
A positividade perde força nesta fase em comparação ao TF.
A fase discursiva seguinte apresenta uma síndrome de afeto
acoplado à carga negativa. Foram identificadas diversas variações
semânticas nas valorações verificadas nesta fase, a maioria delas
relacionada ao acoplamento ou calibragem do subsistema de gradação.
1283
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
O Quadro 13 a seguir ilustra as configurações valorativas referentes a
esta fase, bem como as variações semânticas identificadas:
QUADRO 13 – Variações em síndrome de afeto
TF
TT Trevisan
TT O’Shea
She felt her cheek pale
and cold and, out of a
maze of distress, she
prayed to God to direct
her, to show her what was
her duty.
Sentia o sangue fugindo do
rosto e numa angustiada
indecisão, pedia a Deus que a
orientasse, que lhe mostrasse o
caminho certo.
Sentia o rosto pálido e frio
e, num labirinto de aflição,
rezou pedindo a Deus que lhe
guiasse, que lhe apontasse o
caminho.
TF
TT Trevisan
Her distress awoke a nausea in her body
and she kept moving her lips in silent
fervent prayer.
A angústia provocava-lhe náusea e seus lábios
moviam-se numa prece fervorosa.
atit./
modo
carga
real
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Evocado
Eveline
Força/
(+)
TF
Maze
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Evocado
Eveline
Força/
(+)
Trevisan
Indecisão
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
Ø
TF
Distress
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
Força/
(+)
Trevisan
Angustiada
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
Força/
(+)
O’Shea
Aflição
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Inscrito
Eveline
Ø
TF
Long mournful
Monoglossia
Narrador
(-) apr.
Inscrito
Ambiente
Força/
(+)
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
Pale and cold
Monoglossia
Trevisan
Fugindo do rosto
Avaliado
grad.
1284
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
Trevisan
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
TF
Duty
Monoglossia
Eveline
(-) julg.
Inscrito
Eveline
--
Trevisan
caminho certo
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
O’Shea
Caminho
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
Ø
TF
She kept moving
(...) prayer
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Evocado
Eveline
Força/
(+)
Trevisan
Seus lábios
moviam-se numa
prece fervorosa
Monoglossia
Eveline
(-) afeto
Evocado
Eveline
Força/
(+)
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
As ocorrências valorativas identificadas nesta fase no TF são
alinhadas à orientação de valor de pânico devido a suas configurações
avaliativas consistentes. Estas características similares configuram
ocorrência de síndrome valorativa, isto é, é identificado acúmulo de
valorações com configurações parecidas. As valorações de atitude
do tipo afeto se seguem uma após a outra, apresentando sentimentos
extremamente negativos, dos quais Eveline é não somente o emotivo, isto
é, o avaliador, mas também o gatilho, isto é, o avaliado. Isto se justifica
pelo fato de ser a indecisão da própria personagem a responsável pelo
seu estado emocional.
A primeira variação semântica, identificada na reinstanciação de
Trevisan, é relacionada tanto à gradação quanto ao modo de realização:
o item valorativo “pale and cold” é reinstanciado como “fugindo do
rosto”. Assim, o modo de realização passa a ser evocado, visto que o
pânico de Eveline é metaforizado. Adicionalmente, por ser uma metáfora,
esta valoração calibra maior grau de força; a negatividade é enfatizada
nessa reinstanciação.
A segunda variação semântica identificada nesta fase é relativa ao
item valorativo “maze”. A reinstanciação de Trevisan tem o efeito inverso
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
1285
daquele identificado na variação anterior por inscrever a metáfora com
o item “indecisão”, o que implica variação no subsistema de modo de
realização; isso implica o não-acoplamento do subsistema de gradação.
Assim, a intensidade do pânico de Eveline é diminuída nesta ocorrência
em comparação ao TF.
“Distress”, o terceiro item valorativo identificado nesta fase,
apresenta variação semântica em ambas as reinstanciações. Em Trevisan,
a escolha identificada, “angustiada”, representa um sentimento mais forte
em comparação à escolha de Joyce, portanto a gradação é calibrada
de forma mais intensa. Na reinstanciação de O’Shea é identificado o
item “aflição”, o que, inversamente, representa um sentimento menos
intenso. Portanto, a gradação é calibrada em menor grau em comparação
à escolha do TF.
Os itens valorativos seguintes, “long mournful whistle” e “duty”,
apresentam variação semântica relacionada à não-reinstanciação dos
itens valorativos nas traduções. O texto de Trevisan não reinstancia
“long mournful whistle”, a sentença não tendo sido traduzida; assim,
a negatividade relacionada ao ambiente de Eveline, construída desde o
início da narrativa, não reverbera neste estágio narrativo. Similarmente,
tanto em Trevisan como em O’Shea, o item valorativo “duty” não é
reinstanciado como ocorrência de valoração: as escolhas “caminho” e
“caminho certo” são itens ideacionais, somente descritivos. Não podem
ser relacionados a “duty”, julgamento negativo da falha da personagem
em cumprir com sua obrigação.
A variação semântica final identificada nesta fase é relacionada
à diferente calibragem de gradação, similarmente a outras ocorrências
nesta fase. O item “she kept moving her lips in silent fervent prayer”
evoca o pânico de Eveline, sendo uma valoração de afeto negativo; esta
valoração é graduada por “fervent” e pela indicação de frequência (kept
moving”). Na reinstanciação de Trevisan, entretanto, esta frequência não é
identificada no item valorativo, o que implica calibragem em menor grau
do subsistema de gradação. O pânico de Eveline é, portanto, diminuído
em grau em comparação ao TF.
Na fase 4 deste estágio é identificada variação relacionada ao
acoplamento de gradação, novamente na reinstanciação de Trevisan:
1286
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 14 – Variação em acoplamento de gradação
TF
TT Trevisan
All the seas of the world tumbled about
her heart.
Os mares do mundo envolviam seu
coração.
Item valorativo
compr.
TF
All the seas (…) Monoglossia
heart
Trevisan
Os mares do
mundo (...)
coração
Monoglossia
atit./
modo
carga
real
Eveline
(-) afeto
Eveline
(-) afeto
Avaliador
Avaliado
grad.
Evocado
Eveline
Força/
(+)
Evocado
Eveline
Ø
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
O não acoplamento de gradação devido à não reinstanciação
do recurso “all” faz com que o pânico de Eveline perca força na
reinstanciação de Trevisan em comparação ao TF de Joyce, similarmente
a outras variações semânticas identificadas nestes excertos, cuja tendência
foi de diminuição de grau nas ocorrências de atitude.
4.3 Resolução
No estágio final, a Resolução, significados de julgamento passam
a ocorrer novamente. Esses julgamentos, acoplados à carga negativa,
são relacionados à incapacidade de agir e passividade da personagem,
alinhadas à orientação de valor de paralisia. O Quadro 15 a seguir ilustra
os significados de julgamento negativo na fase 2 deste estágio.
1287
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 15 – Valorações da fase 2 da Resolução de Eveline
She set her white face to him, passive, like a helpless animal.
Her eyes gave him no sign of love or farewell or recognition.
atit./
modo
carga
real
Monoglossia Narrador
(-) julg.
Evocado
Eveline
--
Helpless animal Monoglossia Narrador
(-) julg.
Evocado
Eveline
Força/ (+)
(-) julg.
Inscrito
Eveline
Força/ (+)
Item valorativo
Passive
No sign of love
or farewell or
recognition
compr.
Heter./
contrair
no
Avaliador
Narrador
grad.
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Estes itens valorativos se relacionam à passividade e incapacidade
de agir de Eveline. Seu comportamento é valorado de forma negativa. O
item “helpless animal” acopla gradação de forma fusionada, cujo papel
é o aumento em grau desta ocorrência de valoração devido à metáfora;
o item final, “no sign of love or farewell or recognition” também acopla
o subsistema pela repetição dos sentimentos que Eveline já não mais
possui em sua paralisia. Estes significados de julgamento negativo são
aumentados em grau no TT de O’Shea, como o Quadro 16 ilustra:
QUADRO 16 – Variações na fase 2 da Resolução de Eveline
TF
TT O’Shea
Her eyes gave him no sign of love or
farewell or recognition.
Seus olhos não demonstravam qualquer sinal
de amor, saudade, ou gratidão.
atit./
modo
carga
real.
Narrador
(-) julg.
Narrador
(-) julg.
Item valorativo
compr.
Avaliador
TF
No sign of love
or farewell or
recognition
Heter./
contrair
no
O’Shea
Qualquer sinal de
amor, saudade ou
reconhecimento.
Heter./
contrair
não
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
Avaliado
grad.
Inscrito
Eveline
Força/ (+)
Inscrito
Eveline
Força/ (+)
1288
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
A variação semântica identificada é relacionada à negação
completa dos sentimentos de Eveline: é uma escolha mais intensa em
comparação ao TF. O ajuste de grau dessa valoração constrói uma
Eveline mais passiva neste TT, e, portanto, uma personagem construída
de forma mais negativa por meio da diferente calibragem de gradação
neste item valorativo.
Tendo sido identificadas as ocorrências de valoração por estágios
e as variações semânticas verificadas, é apresentada a discussão dos
resultados na seção seguinte deste trabalho.
5 Discussão
A análise dos excertos de Eveline revelou a ocorrência de diversas
valorações e possibilitou a identificação de variações semânticas em
ambas as reinstanciações, sendo elas devidas a diferentes acoplamentos
ou a diferentes calibragens de subsistemas em comparação ao TF de
Joyce.
Serão retomadas as perguntas de pesquisa formuladas para este
trabalho a fim de discutir os resultados apresentados. A primeira pergunta
de pesquisa indaga sobre a configuração dos acoplamentos de subsistemas
em ocorrências valorativas nos estágios e sobre o alinhamento de
ocorrências a orientações de valor. No que tange aos acoplamentos
por estágios, na Orientação foi identificada a tendência de ocorrência
de valorações de atitude dos tipos de apreciação e afeto e acopladas à
carga tanto negativa quanto positiva. Na Complicação foi identificada a
tendência de ocorrência de valorações negativas de afeto e julgamento;
algumas ocorrências de afeto positivo foram identificadas, mas a análise
semântico-discursiva revelou que estes significados se acumulam em uma
única fase do excerto. O estágio final, a Resolução, apresenta ocorrências
de julgamento negativo sobre Eveline, intensificadas pelo acoplamento
de gradação.
Foi possível alinhar as ocorrências de valoração a orientações de
valor, agrupadas conforme suas configurações valorativas consistentes.
O Quadro 17 ilustra a distribuição das orientações de valor por estágios:
1289
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
QUADRO 17 – Orientações de valor por estágios em Eveline
Orientação
Complicação
Resolução
Positividade do passado
Pânico/confusão
Paralisia
afeto
afeto
negativo
Avaliado: passado
Avaliado: Eveline
Tristeza/saudade
Esperança
afeto
Orientações
de valor
positivo
negativo
afeto
Avaliado: Frank
Negatividade do
presente
Paralisia
negativo e
negativa
Avaliado: presente
negativo
Avaliado: Eveline
positivo
Avaliado: passado findo
afeto
julgamento
julgamento
negativo
apreciação
Avaliado: Eveline
Esperança
positivo
afeto
Avaliado: Frank
Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa.
São identificadas valorações relacionadas à positividade do
passado, tristeza/saudade, negatividade do presente e esperança no estágio
de Orientação. De todas as quatro orientações identificadas no primeiro
estágio, somente uma delas ocorre novamente no estágio seguinte,
a Complicação; outras orientações identificadas neste estágio foram
aquelas de pânico e paralisia. No estágio final, significados valorativos
relacionados à orientação de valor de paralisia foram verificados.
A ocorrência de significados valorativos de configuração
similar implica a inter-relação de significados ao longo dos excertos,
posicionando o leitor a adotar diferentes atitudes. A análise de significados
valorativos recorrentes e de sua inter-relação é possibilitada pela análise
semântico-discursiva, que envolve o estudo de como os significados
reverberam ao longo do texto; reforça-se, portanto, a importância deste
tipo de abordagem para estudos do sistema de valoração. As orientações
de valor nesta abordagem se relacionam, assim, à forma como o potencial
retórico do texto é construído atrás das interconexões de significados
similares. Valorações alinhadas a orientações de valor foram identificadas
1290
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
nos estágios dos excertos selecionados do conto Eveline, tendo em vista
que as valorações de configurações similares se repetiram ao longo dos
estágios dos excertos.
A pergunta de pesquisa seguinte indaga sobre a ocorrência de
variações semânticas nas reinstanciações e se estas implicam mudanças
no alinhamento de ocorrências a orientações de valor. Diversas
variações foram verificadas nos TTs, relacionadas principalmente a
diferentes acoplamentos dos subsistemas de atitude, carga e gradação.
Estas variações fizeram com que certas valorações tivessem suas
configurações alteradas e não se alinhassem mais às orientações de valor.
Ilustrativamente, valorações relacionadas à positividade do passado
foram alteradas em acoplamento de carga, construindo o passado sob
uma luz negativa (“little brown houses”/“casas pequenas e escuras”)
em ambas as reinstanciações, em contraste à positividade identificada
no TF. É possível argumentar que o potencial retórico do texto varia, por
consequência, nas reinstanciações, uma vez que as valorações alinham
o leitor aos valores de diferentes formas e em diferentes graus.
A terceira pergunta de pesquisa indaga sobre variações semânticas
nos subsistemas de gradação e carga. Variações no acoplamento e
calibragem do subsistema de gradação foram identificadas em diversas
ocorrências de valoração nas reinstanciações, confirmando a relevância
do estudo deste sistema para a análise de textos traduzidos, conforme
apontam Munday (2012), Blauth (2015) e Dias e Magalhães (2017). O
grau de intensidade dos significados valorativos tendeu à diminuição em
várias ocorrências, principalmente na reinstanciação de Trevisan, o que
corrobora os achados de Dias e Magalhães (2017) e parcialmente aqueles
de Blauth (2015). Estas valorações, relacionadas a diversas orientações
de valor, implicam a construção de um presente menos positivo e um
pânico menos intenso nesta reinstanciação, além de apresentar Eveline
como uma personagem de atitude menos esperançosa. A reinstanciação
de O’Shea intensifica a passividade e falta de ação de Eveline no estágio
final, aumentando sua paralisia.
Foram também identificadas variações semânticas no subsistema
de carga. As variações identificadas no acoplamento deste subsistema
tendem a ocorrer do polo positivo para o negativo: ilustrativamente, a
valoração positiva “little brown houses” é traduzida negativamente como
“casas pequenas e escuras” e a ocorrência positiva “leave her home” é
traduzida como o item negativo “abandonar a casa” em Trevisan. Este
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
1291
achado corrobora aquele identificado em Dias e Magalhães (2017), cujos
resultados apontam o aumento de valorações negativas na reinstanciação.
Embora este resultado não corrobore os achados de Rosa (2008), que
identifica aumento de carga positiva, é possível hipotetizar que o aumento
de significados negativos seja uma tendência de textos traduzidos para
o português brasileiro.
Destaca-se, adicionalmente, que a análise valorativa realizada
sob a perspectiva semântico-discursiva tornou possível a identificação de
temas da narrativa e sua distribuição por estágios dos textos, identificando
a distribuição das atitudes adotadas no texto narrativo. Isto foi possível
por meio do alinhamento de ocorrências de valoração com configurações
similares a orientações de valor. O sistema de valoração, portanto, se
configura como uma ferramenta para a investigação de temas em textos
literários.
6 Conclusão
O recorte apresentado neste artigo se concentrou na análise
de excertos do conto Eveline de James Joyce sob uma perspectiva
interpessoal, fazendo uso do sistema de valoração para investigar
significados valorativos e variações semânticas em estágios da narrativa
e utilizando uma metodologia de análise desenvolvida a partir de Martin
e White (2005) e Macken-Horarik e Isaac (2014). A análise foi realizada
por uma perspectiva semântico-discursiva, que possibilitou o estudo da
inter-relação de significados valorativos no desdobramento do texto.
Os resultados alcançados por este trabalho indicaram o acúmulo
de certas configurações avaliativas por estágios da narrativa. Foi possível
alinhar essas configurações a orientações de valor, devido a sua repetição
no desdobramento do texto. Verificou-se que, nas reinstanciações,
certas ocorrências passaram a não se alinhar às orientações de valor
identificadas, devido a variações semânticas nos significados avaliativos.
Adicionalmente, identificou-se a relevância do subsistema de gradação
nas reinstanciações, seja por acoplamento ou diferente calibragem, no
que tange às variações semânticas.
A partir dos resultados alcançados, sugere-se que futuras pesquisas
poderiam investigar os demais textos de Dubliners a fim de verificar se
os achados deste estudo são confirmados em outros contos da coletânea
no que tange às variações semânticas na valoração, especialmente no
1292
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
subsistema de gradação. Futuros estudos poderiam também investigar
as variações semânticas no subsistema de carga a fim de verificar se é
uma tendência de reinstanciações de textos para o português brasileiro
que valorações sejam reinstanciadas de forma a acoplar carga positiva
em maior frequência em comparação aos textos-fonte.
Finalmente, este trabalho revelou a relevância do sistema
da valoração para análise de narrativas literárias por estágios
narrativos, bem como para a investigação de variações semânticas em
configurações valorativas e em orientações de valor. Este trabalho mostra,
adicionalmente, como a abordagem semântico-discursiva é proveitosa à
análise valorativa, visto que esta abordagem é capaz de identificar interrelações entre significados ao longo do desdobramento do texto. Este
artigo contribui para os estudos da tradução através da apresentação de
resultados oriundos de análise empírica de textos traduzidos, bem como
pela apresentação de possibilidades para futuros trabalhos.
Agradecimentos
Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), projeto
PQ 301720/2013-9; Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPEMIG),
projeto PPMVIII 00059-14, e Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal do Ensino Superior (CAPES), projeto PACCSS-II 151/2013 e
bolsa de mestrado. Laboratório Experimental de Tradução (LETRA)
da Universidade Federal de Minas Gerais, Grupo de Análise Textual e
Tradução (GRANT) e Profa. Dra. Célia M. Magalhães pela orientação
em pesquisa de mestrado.
Referências
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Heart of Darkness: uma análise de estilo com base em corpus. 2015.
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Brasília, v. 6, n. 1, p. 103-122, 2017.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019
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2013.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
Remarks on the Arabic complementizer ‘inna
Observações sobre o complementizador ‘inna em árabe
Mansour Alotaibi
Prince Sattam University, Al-Kharj / Saudi Arabia
mq.alotaibi@psau.edu.sa
Abstract: A Standard Arabic (SA) complementizer known as ‘inna poses a restriction
on word order in the clause it introduces and induces accusative Case-marking on
the otherwise nominative preverbal NPs.1 Following Chomsky’s (2001) account of
the morphosyntax of Case, this paper argues that ‘inna is a Case assigner and thus it
carries an uninterpretable Case feature that determines the value which it assigns to an
unvalued Case feature concerning accessible goal within A-bar projection. The paper
shows that this argument captures the restriction imposed on ‘inna-clauses.
Keywords: Arabic; complementizer; Case marking; word order; minimalism.
Resumo: Um complementizador no árabe padrão, conhecido como ‘inna, impõe uma
restrição na ordem das palavras da oração por ele introduzida e induz marcação de
Caso acusativo nos SNs preverbais que em outras circunstâncias têm marcação de
Caso nominativo. Seguindo o modelo de Chomsky (2001) para a morfossintaxe de
Caso, este artigo argumenta que ‘inna é um designador de Caso e que ele carrega um
traço de Caso não interpretável que determina o valor que o mesmo designa para um
traço de Caso até então não marcado de uma meta acessível na projeção de A-barra. O
artigo mostra que esse argumento captura as cláusulas ‘inna impostas pela restrição.
Palavras-chave: Árabe; complementizador; marcação de Caso; ordem de palavras;
minimalismo.
Submitted on October 31st 2018
Accepted on March 5th 2019
1
I write ‘Case’ with a capital C for the abstract theoretical entity in GB/Minimalism
in order to distinguish it from other ordinary element.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1295-1312
1296
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
1. Introduction
Arabic allows both subject-initial and verb-initial clauses. As
sentences (1a) and (1b) demonstrate, respectively, the verb can either
precedes or follows the subject:
1.
a. l-’awlaad-u
qara’-uu l-kitaab-a
the-boys-NOM read.3PM the-book- ACC
‘The boys read the book.’
b. qara’a
l-’awlaad-u
l-kitaab-a
read.3SM the-boys-NOM the-book- ACC
‘The boys read the book.’
The verb also shows full agreement in subject-initial-clauses (1a),
but partial agreement in verb-initial-clauses (1b) in person and gender
only, and not in number as the former does.
In addition, Arabic is considered as a subject pro-drop language.
The verb shows full agreement when its subject is not overt:
2.
qara’-uu l-kitaab-Acc
read.3PM the-book-Acc
‘The boys read the book.’
However, subordinate clauses introduced by ‘inna are restricted
to subject-initial clauses.2 A typical example is given here:
3.
qultu
‘inna l-’awlaad-a
qara’uu
said.1S that the-boys-ACC read.3PM
‘I said that the boys read the book.’
l-kitaab-a
the-book-ACC
As can be seen, ‘inna is followed by an accusative NP which can
be interpreted as a subject of the following verb. However, this accusative
ʔinna is one of seven members called ʔinna and its “sisters”; they almost have the
same function, but differ in meaning. Some of them including ʔinna can introduce both
independent and subordinate clauses. However, this paper limits its discussion to ʔinna.
2
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
1297
NP is not always interpreted as a subject. The following shows that the
accusative NP is interpreted as an object:
4.
qultu
‘inna l-kitaab-a
qara’a=hu l-’awlaad-u
said.1S that the-book-ACC read.3S-it the-boys-NOM
‘I said that (as far as) the book, the boys read it.’
Notice that there is a pronominal clitic attached to the verb, a
similar construction with no pronominal clitic is ungrammatical:
5.
*qultu ‘inna l-kitaab-a
qara’a l-’awlaad-u
said.1S that the-book-ACC read.3S the-boys-NOM
‘I said that (as far) the book, the boys read it.’
Notice also that you cannot have a gap in the preverbal position.
As stated above, preverbal subjects are optional in null CPs, but it is not
possible to have a gap in the embedded preverbal position (here and
subsequently the paper marks gaps by ‘__’):
6.
*qultu ‘inna ____ qara’-uu
l-kitaab-a
said.1S that
read.3PM the-book- ACC
‘I said that the boys read the book.’
Thus, the example above, where the subject has been omitted,
is ungrammatical. However, a similar example with a pronominal clitic
attached to ‘inna is grammatical:
7.
qultu
‘inna=hum qara’-uu
l-kitaab-a
said.1S that-they
read.3PM the-book- ACC
‘I said that the boys read the book.’
Note also that verb-initial clauses cannot occur in the domain
of ‘inna:
8.
*qultu ‘inna qara’a
l-’awlaad-a
said.1S that read.3SM the-boys-ACC
‘I said that the boys read the book.’
l-kitaab-a
the-book-ACC
1298
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
This paper attempts to provide an account of accusative Case
checking in this construction, in which the accusative preverbal NPs
are embedded under a Case-assigning complementizer. In addition, it
will account for the restriction that is imposed by ‘inna on its clauses.
It is important to mention that ‘inna can introduce complement clauses;
‘inna in this type of clauses signals that the clause under its domain
is subordinated to the matrix clause. In addition, ‘inna can introduce
independent clauses (or sentence-like) in that the complement clauses are
similar in form to what it would have as an independent clause without
‘inna. However, in both cases, clauses under the domain of ‘inna have
an identical form.
2. Theoretical background
This section introduces the major concepts of the Minimalist
program (MP) which has played a crucial role in the analysis introduced
in the paper.
2.1 Merge and Move
Chomsky (1995) argues that the human language faculty consists
of lexicons and derivational systems. There are two major operations:
Select and Merge which operate over a group of lexical items named
Numeration to form syntactic structures. The language faculty allows
these syntactic structures to appear only in a binary set. Of the two, Merge
is that operation which acts free in the syntactic component of Language
(CHOMSKY, 2004, p. 108). It is a combinational operation which forms
a syntactic object by merging two linguistics expressions (α and β) and
form a new unified linguistic expression, resulting in the structure:
9.
K
α
β
In this sense, Merge is a recursive structure-building process
operating on linguistic expressions based on their selectional features.
For example, an X is a head and carries an uninterpretable feature which
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
1299
requires it to merge with a ZP to form an XP, resulting in deleting X’s
selectional feature. This is the first instance of Merge, called External
Merge. The other instance is Internal Merge which is understood as
Move (CHOMSKY, 2001). Move deals with linguistic expressions and
phrases. It applies to the merged linguistic expressions; it places a copy
of the object in another position. Move is triggered by the requirement
to satisfy the Edge feature (EF) of a specific functional head. Move is
required to take a place early in the syntax before the operation Spell
Out which transfers the structure to the phonological component (PF)
and the semantic component (LF).3
2.2 Interpretable vs. uninterpretable features
Features are divided into two kinds of features: interpretable
and uninterpretable features. Some of them are legible by semantic
component, whereas others are not. Those with semantic component
would get a semantic interpretation and thus would be interpretable,
whereas the others that would not get a semantic interpretation, would
be uninterpretable dues to the absence of the semantic component.
Likewise, functional and lexical categories too have a set of
features. Functional heads carry ‘formal features’ such as person, number
and gender (CHOMSKY, 2001). They are uninterpretable, and thus enter
the derivation unvalued as they have no effect on semantic interpretation
of heads such as C, T, and v at LF. By contrast, features on nominal
expressions are important for their semantic interpretation, and thus
would enter the derivation valued. However, the Case feature on nominal
expressions has no semantic role, and thus it is uninterpretable at LF.
2.3 Agree
Unlike Merge, Agree is concerned with features rather that with
lexical items. Its crucial function is to value these features which enter
the derivation unvalued and to delete uninterpretable features that have
no semantic content. Agree establishes a relation between Probe and Goal
3
The PF component maps the syntactic structure into a PF representation of its phonetic
from, resulting in a phonetic spell-out for every word. The LF component, on the other
hand, maps the syntactic structure into its counterpart semantic representation.
1300
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
both of which have to be active with uninterpretable features.4 In order to
value its unvalued uninterpretable features, Probe searches for an active
Goal in its c-commanding domain. A Probe is an uninterpretable feature
carried by a minimal projection, while its Goal is an interpretable feature
of the same type carried by a maximal projection.
2.4 Case Assignment
In the Minimalist Program, Case assignment continues to
play a major role in the derivation of syntax. Abstract Case, in the
original presentation of Case theory in Chomsky (1980), is related to
the morphological property Case. The formal features that regulate the
distribution of NPs are the same features that are overtly considered as
Case morphology in some languages. Within GB framework, Chomsky
(1981) proposed the Case Filter as a solution to the ambiguity of the
distribution of lexical NP subjects in infinitive clauses in English as
illustrated in (10):
10. a.
b.
c.
d.
e.
Leo decided [(*Lina/himself) to leave].
Leo believed [Lina to be a genius].
Leo decided [for Lina to leave].
For Leo to win would be great.
*Leo to win would be great.
The subject cannot be overt in (10a,e), but this restriction is
relaxed when the infinitival clause functions as a complement of a specific
class of matrix verbs like the verb believe (10b), or when the infinitival
clause includes the prepositional complementizer for (10c,d). Where the
overt lexical NP subject is not permitted, the subject of the infinitive is
considered as a silent pronominal element PRO. This assumption is the
key of the Case Theory which proposes that all lexical NPs require Case
4
However, Pesetsky and Torrego (2006, p. 1) propose that the relation between Probe
and Goal must be established by the operation Merge. This is to say that when Merge
combines two elements, a Probe-Goal relation ‘must be established between these
elements’. They name this the Vehicle requirement on Merge and is formulated as:
Vehicle Requirement on Merge (VRM)
If α and β merge, some feature F of α must probe F on β.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
1301
(CHOMSKY, 1981, p. 49). A rather basic proposal of Case assignment
for English is in (11):
11. a. subject of tensed clause:
b. object of verb:
c. object of preposition:
nominative
accusative
accusative (or oblique)
This is to say that verbs and prepositions have the distinctive
properties of being Case assigners and this property accounts for why
only verb and preposition in English take NP complements. Nouns and
adjectives are not Case assigners and therefore are restricted to CP and
PP complements (BOBALJIK; WURMBRAND, 2012, p. 46).
For Minimalism, the central study of Case Theory is to investigate
the differences between nominative and accusative Case assignments and
to develop a uniform theory with them. To achieve that, Chomsky (1991)
proposal was to assimilate accusative Case assignment to the similar
type of structural configuration as nominative, namely Spec(ifier)-head
relation (for more information, see KOOPMAN, 2006).5 The proposal
assumes that all Case assignments are subject to c-command and locality,6
the relation is later termed Agree (CHOMSKY, 2000).7 This suggests that
all subjects in Spec-IP (Spec-TP, in the most recent Minimalist works) are
moved there from a lower position (this proposal is originally proposed
in KOOPMAN; SPORTICHE, 1991).
The mechanism of the uniform Case assignment considers the
functional versus lexical differences in the Case assigners. Chomsky
(1991) and Johnson (1991) assume that VP-external functional projection
is responsible for Case on objects, and this assumption in turn leads
to unify a proposal that Case is assigned by functional heads (see
WURMBRAND, 2001, for empirical evidence).
Under the most recent Minimalist conceptions, Case is
generalized as part of a system of uninterpretable features that takes a
place at the core of the linguistic coding of what Chomsky (2004, p. 110)
5
See Wurmbrand (2006) for empirical problems in adopting Spec-head relation in
Germanic.
6
A transitive head assigns the accusative Case to a NP which it c-commands.
7
Note that the Agree perspective changes the burden of the motivation for movement
from Case theory to the Extended Projection Principle (EPP).
1302
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019
called ‘duality of semantics’: one part is the argument structure and the
second is the information structure. So, Case features permit the proper
working of the Probe-Goal system, a feature-checking mechanism that
was not understood in GB framework (see also PESETSKY; TORREGO,
2001, for another speculation).
However, the literature (e.g. HARLEY, 1995; SCHUTZE, 1997;
OUHALLA, 1994; AOUN et al., 2010) shows that Universal grammar
contains a notion of ‘Default Case’ which has a mechanism different
from the one discussed above. The notion of ‘default Case’ is advanced
in Marantz (1992) as the Case that does not interact with the Case Filter
or ‘feature-Checking’. So, what is mechanism of the Default Case’ It is
the mechanism that is used to spell out NPs that are not in association
with the mechanism of the feature-checking. Thus, I assume that the
model of grammar schematically follows three nominals through the
syntactic derivation: two with an uninterpretable (ACC or GEN) feature
to be checked and one with no Case (NOM) feature. The NPs with NOM
Case feature survives at Spell-out level, given that it never had any
uninterpretable features to be checked.
3. Discussions
In section (1), it has been shown that the adjacent of the
complementizer must be in accusative Case:
12. qultu
‘inna t-tabiib-a
waSala
said.1SM that the-doctor-ACC arrived.3SM
‘I said that the doctor arrived.’
‘inna heads finite clauses and the embedded preverbal ‘subject’
NP bears the accusative Case as it is obvious from the accusative Case
on T-tabiib-a (-a is an accusative marker).
The fact that the embedded ‘subject’ is assigned an accusative
Case raises an important question about its status with respect to the
Case-assigment. Following the assumption that heads are endowed with
Case features which must be checked, Mohammed (2000) assumes that
both T and C assign their Case feature on the embedded preverbal NP
(T-tabiib-a, the doctor, in (12)). He adds that the Case feature overtly
shown on the NP is the one assigned by the highest projectional head
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1303
which is C in this sense. However, it is not clear how it is possible for the
head of CP to assign the accusative Case to an element that is located in
the specifier position of TP (Spec-TP). The idea that an NP can get more
than one Case is required to be constrained by some locality conditions,
otherwise it is difficult to prevent C (the highst head) from assigning
its Case to some element in a lower position. Consider the following
example where the predicate precedes the subject, the subject is located
in a lower position:8
13. qultu
‘inna=hu waSala
t-tabiib-u
said.1SM that-he
arrived.3SM the-doctor-NOM
‘I said that the doctor arrived.’
Here, the expletive –hu is attached to ‘inna but the subject
(t-tabiib-u, the doctor) is in a position following the verb and it is in
nominative Case that is formally assigned by T. The Case here is structural
and not inherent since inherent Cases are limited to lexical elements
that get a thematic role from the Case assigner which is not the case in
(13). In the following, I will argue that the embedded preverbal NP is
not located in Spec-TP, but rather in a position located between CP and
TP. It is more likely in Spec-TopP.
3.1 Valued Case features
Given that Case is an unterpretable feature which needs to be
checked and deleted (CHOMSKY, 1995), and that NPs in Spec-TP must
be assigned Case being in an argument position (CHOMSKY, 1981, 1986)
and that the head of Spec-TP (or agreement) assigns the nominative Case
under some versions of Case Theory, the status of the accusative NP in
Spec-TP would be difficult to explain. Consider the ungrammaticality
of the following example in which a gap occurs in the position of direct
object of the verb:
In the literature (KOOPMAN; SPORTICLE 1991; McCLOSKEY 1996, 1997), there
are at least two positions for the genuine subjects: one is for the thematic subjects that
can get a thematic role from the predicate. They occupy a position that is within the
thematic shell which can be realized with the VP. The other position is Spec-TP, the
functional head c-commands the VP.
8
1304
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14. *‘inna l-kurat-a
rakala
l-walad-u
that the-ball-ACC kicked.3SM the-boy-NOM
‘That, the ball, the boy kicked.’
__
Accoerding to Pesetsky and Torrego (2001), the ungrammaticlaity
of (14) can be explained as follows: complementizers have some
uniterpratable features that must be licensed by an element with
interpretable features, presumply the complementizer ‘inna has an
uninterpretable Case feature which must be discharged. As simplified
in (15), the accusative NP in (14) is a focus-fronting that raises from its
original position to the specifier of a functional projection, named FocP,
in order to receive a contrastive reading.
15. [ForceP [Force ‘inna][FocP l-kurat-a [Foc Ø [FinP rakala l-walad-u l-kurat-a ]]]]]
Here, the fronted NP, l-kurat-a, is Case-marked in its canonical
position; the accusative Case is a reflection of the sharing properties
between the fronted NP and the associated gap. So, if the accusative NP
l-kurat-a, is assigned its accusative Case by virtue of being a nominal
goal to the lexical verb, rakala, the Case feature of the complementizer
‘inna would remain unchecked. The resulting derivation crashes, as we
see from the ungrammaticality of (14).
However, the sentence in (14) can be repaired by inserting a
pronominal clitic that is cliticized onto the verb as an accusative direct
object of the verb. A typical example of this construction is given below
(the considered clitic is in boldface):
16. ‘inna l-kurat-a
rakala=ha
l-walad-u
that
the-ball-ACC kicked.3SM-it the-boy-NOM
‘The ball, the boy kicked it.’
Derivationally, the Case feature of the lexical verb is checked
against the Case feature on the pronominal clitic. The NP, l-kurat-a,
therefore, is not a fronted focused object, but rather it is a left-dislocated
topic that occurs in A’-position. Aoun et al. (2010, p. 191) state that
clitic-left-dislocations are realized by the appearance of a NP in the left
peripheral position of the clause and it is associated with a pronominal
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1305
clitic inside the clause. Assuming this to be so, the left-dislocated-topic,
l-kurat-u, is active because its Case feature has not yet been valued.
Assuming the complementizer ‘inna is a Case-assigner, it carries an
uninterpretable Case feature which determines the value that it assigns to
an unvalued Case feature on the accessible goal (RADFORD, 2009, for
more discussions). Consequently, the complementizer ‘inna will enter the
derivation carrying a feature which enables it to assign accusative Case
to the left-dislocated-topic, l-kurat-u, the goal, which has an unvalued
Case feature.
3.2 Left-Dislocation like Property
First, embedded preverbal accusative NPs obligatory occur in
the kind of peripheral position that left-dislocated phrases do. This can
be captured by the observation that the embedded preverbal accusative
NPs can occur to the left of the copula kaan (“be”), but not on the right.
Consider the contrast:
17. a. ‘inna t-taalib-a
kaana fii l-jaami’at-i
that the-student-ACC was
in the-university-GEN
‘The student was at the university.’
b. *’inna kaana t-taalib-a
fii l-jaami’at-i
that was the-student-ACC in the-university-GEN
‘The student was at the university.’
The contrast between (17a) and (17b) suggests that the accusative
NP should be in a position higher than T.
Second, Soltan (2007) and Alotaibi (2015) argue that preverbal
subjects are taken to be genuine topics that are associated with a null
resumptive pronoun, pro, in the clause (see also MOHAMMAD, 2000;
FASSI FEHRI, 1993; AOUN et al., 2010). This approach also assumes
that NPs that appear in structural positions where there is no Case assigner
they are assigned nominative Case by a default mechanism. Consider
the contrast between the following examples:
1306
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18. a. jaa’a
l-’walaad-u
came.3SM the-boys-NOM
‘The boys came’
b. *jaa’uu
l-’walaad-u
came.3PM the-boys-NOM
‘The boys came’
SA has both preverbal and postverbal subjects and that they differ
with respect to the agreement fact. The former triggers number, person
and gender agreement, while the latter triggers only person and gender
agreement. (18a) is grammatical because the verb, jaa’a ‘came’ agrees
with its NP subject in person and gender, but not in number. The verb,
however, in (18b) agrees in number as well and hence the sentence in
ungrammatical. Now consider the following contrast with subject-initial
clauses:
19. a. l-’walaad-u
jaa’uu
the-boys-NOM came.3PM
‘The boys came.’
b. *l-’walaad-u
jaa’a
the-boys-NOM came.3SM
‘The boys came’
(19a) is grammatical because of that the subject triggers full
agreement, and (19b) is ungrammatical as the subject triggers partial
agreement. This suggests that subject-initial clauses (19a) have a pro
subject in a post-verbal position. Thus, full agreement is expected with
a clause that is includes a pro subject.
3.3 The Non-Identity Effects
Following Miller and Sag (1997), I assume that clitics in Arabic
are affixes realizing an otherwise unexpressed argument, and it is not
a result of some superficial cliticization (see McCLOSKEY, 2006, for
more details). I shall call this kind of arguments pro. This pro is in fact
the resumptive pronoun. Under the copy theory of movement, it should
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be clear that the relation between the accusative NP following ‘inna
and pro is not generated via movement. The theoretical assumptions
of Minimalism assume that movement leaves a copy with identical
syntactic features. Adger and Ramchand (2005) argue that movement
can be involved in cases where the apparently displaced constituent
shows the same copy in the base position. More precisely, if the element
in the higher position shares its corresponding in the lower position in
respect to agreement, selection and Case-marking, then it can be said
that the derivation involves movement, otherwise it should involve basegeneration account. In ‘inna-clauses, the distribution of Case-marking
between the accusative NP and the pro at the foot of the dependency
is not the same. This is supported by the following examples for both
independent and dependent ‘inna-clauses, respectively:
20. a. ‘inna r-rajul-a
hajama
‘alai=hi
that the-man-ACC attacked.3SM on-it
‘The man, the lion attacked him.’
l-’sad-u
the-lion-NOM
b. qultu ‘inna r-rajul-a
hajama
‘alai=hi l-’sad-u
said.1S that the-man-ACC attacked.3SM on-it the-lion-NOM
‘I said that the boys read the book.’
Here, the topicalized prepositional object bears an accusative
Case which is distinct from the one that is associated with in its base
position. The accusative Case on the embedded NP would be surprising
under the movement account. This would argue that the accusative NP
does not originate in an argument position of the lower predicate, but
rather it originates in A’-position, namely the specifier position of Topic
projection. (20) is diagrammed in (21):
21. [ForceP[Force ‘inna][TopP r-rajul-a [Top Ø] [FinP [Fin Ø][TP [Hajama ‘alai-hi l-’sad-u]]]]
According to our analysis the accusative Case on the preverbal
NP r-raji-a ‘the man’ is assigned under c-command by an appropriate
kind of head. So, since the complementizer ‘inna c-commands the
subject, r-raji-a, and since ‘inna is a transitive complementizer, it
follows that the NP r-raji-a, the man, will be assigned accusative Case
at the stage of derivation shown in (21). However, ‘inna can also be
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followed immediately by a PP which can intervene between ‘inna and
the accusative NP. The following example expresses this fact:
22. qultu
‘inna fii l-bait-i
rajul-an
said.1SM that in the-house-GEN man-ACC
‘I said that there is a man in the house.’
Mohammad (2000, p. 22) observes that in ‘inna-clauses no thing
can intervene ‘inna and the preverbal accusative NP except Prepositional
Phrases (PPs). A plausible question arises is: why PPs and not others’
A similar case is found in Italian sentence structures. For instance,
Belletti (2004, p. 26) observes that post-subject XP can be a PP in VSXP
structures, but cannot be a NP:
23. a. (?) Ha telefonato Maria al
giornale.
Has phoned
Maria to the newspaper.
b. *Ha comprato Maria il giornale.
Has bought
Maria the newspaper.
As mentioned in Belletti (2004), the sentences in (23) must be
pronounced with continuous intonation without a special break between
S and its complement.9
As for Belletti (2004), he suggests that XPs can be PPs because
the PPs do not absorb Case as they need no Case, while NPs need Case.
Therefore, Belletti (2004) assumes that the intervening of the subject
with its already checked Case between XP and the responsible of the
Case assignment would cause a Defective Intervention Effect (DIE)
(CHOMSKY, 2000, p. 123) which would not allow the Case assigner to
check the uninterpretable Case feature of its goal:
24.[v+AccØ[FocusP[NPSubject][Focus[FocusØ][TopicP[TopicØ][vP[NPSubject][v[vØ][VP[VØ][NP/PP]]]]]]]
DIE
9
However, one reviewer suggests that sentences in (23) wouldn’t label as ungrammatical.
The reviewer adds that they are perfectly acceptable with focus on MARIA; they would
be possible in a focus configuration.
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1309
If this analysis is on the right track, it is possible to extend the
same analysis to account for the contrast between (22) and (5, repeated
in 25).
25. *qultu ‘inna l-kitaab-a
qara’a
l-’awlaad-u
said.1S that the-book-ACC read.3S
the-boys-NOM
‘I said that (as far) the book, the boys read it.’
If PPs in Arabic do not have a Case feature, then their intervention
between the Case assigner ‘inna and the accusative NP would not cause
any problem as the uninterpretable Case feature on NPs would be able
to undergo feature checking.
4. Conclusion
This paper has investigated the behaviour of ‘inna-clauses in
Standard Arabic. The findings of this study reveal that ‘inna assigns the
accusative Case to the closest NP via Agree. It has also been argued that
the accusative NP following ‘inna occupies Spec- TopP and not Spec-TP
as proposed in the literature. In addition, this study has accounted for
the fact that PPs and not NPs can intervene between the complementizer
‘inna and the accusative NP. It has explained this contrast in term of the
Defective Intervention Effect in which a probe-goal relation holding
between the Probe (‘inna) and the Goal (the accusative NP) is blocked
by an intervening active goad such as NPs but not PPs. NPs triggers a
Defective Intervention Effect that bars the complementizer from entering
into Agree relation with its goal,. On the other hand, PPs do not absorb
a Case and therefore they are not problematic for the derivation.
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O estudo do futuro perifrástico e do futuro sintético
com verbos hipotéticos no português brasileiro
The study of the periphrastic future and the synthetic future
tenses with hypothetical verbs in Brazilian Portuguese
Aline Peixoto Gravina
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó, Santa Catarina / Brasil
aline.gravina@uffs.edu.br
Eduardo Henrique Brizola
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó/ Santa Catarina/Brasil
eh.brizola@gmail.com
Resumo: O uso do futuro perifrástico tem se mostrado como a construção preferencial
dos falantes do português brasileiro e apontado como um fenômeno de mudança
linguística na língua. Diante disso, esta pesquisa buscou inovar e aprofundar possíveis
análises dessa mudança, ao se propor averiguar, a partir de um ponto de vista formal
da gramaticalização, a escolha do tempo verbal futuro (simples ou perifrástico) de
informantes nativos do português brasileiro diante de verbos hipotéticos. Para cumprir
esse objetivo, a metodologia consistiu em aplicar um questionário online com quinze
verbos hipotéticos nos tempos futuro simples e futuro perifrástico a informantes
brasileiros, maiores de dezoito anos e que tivessem concluído o ensino médio.
Os resultados encontrados constataram a presença de uma variação no uso dessas
construções, justificada, na ótica deste estudo, pela influência da gramática periférica do
falante (nos termos de KATO, 2005). Ainda assim, os indícios de mudança podem ser
averiguados na pesquisa, na medida em que mesmo com verbos hipotéticos, a construção
do futuro pelo uso da perífrase apresentou um percentual maior de preferência em todos
os contextos analisados.
Palavras-chave: futuro perifrástico; gramática nuclear; gramática periférica; mudança
linguística.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1313-1344
1314
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
Abstract: The use of the periphrastic future tense has been shown as a variant in the
trajectory of change of Brazilian Portuguese. Several studies have been demonstrating
the speaker’s preference for the use of verbal periphrasis in the future tense - eg: vou /
irei estudar - in the place of use of the simple future tense – eg.: estudarei. In this sense,
this research sought to innovate and deepen an analysis of that change, by proposing
to find out, from a formal viewpoint on grammaticalizion, the choice of verbal tense
(simple or periphrastic future) of native informants of the brazilian portuguese with
hypothetical verbs. The methodology consisted of applying an online form to Brazilian
subjects, over 18 years of age and who had completed high school. In relation to the
results found, we observe that because it is a written experiment, peripheral grammar
(schooling) was present in a quantitative way in our results. However, signs of change
in the language can be examined and analyzed, that is, even with hypothetical verbs
the future construction in the language is in the way of the implementation of verbal
periphrasis. At the same time, it was possible to observe, by studying the contexts, that
the synthetic future tense is still present, especially due to the influence of schooling.
Keywords: periphrastic future; nuclear grammar; peripheral grammar; linguistic
change.
Recebido em 15 de março de 2019
Aceito em 31 de março de 2019
1 Introdução
Estudos como os de Santos, A. (1997) Santos, J. (2000), Gibbon
(2000, 2014), Oliveira (2006), Bragança (2008) Fonseca (2010) e Viera
(2014) apontam que o futuro verbal no Português Brasileiro (doravante
PB) tem apresentado mais de uma possibilidade de construção sintática
nos últimos tempos, tendo sofrido uma mudança linguística, ou estaria,
ao menos, no caminho dessa mudança. A principal inovação seria a partir
de construções perifrásticas com o uso do verbo ir, como em vou/irei
fazer no lugar de farei. É possível observar processos de mudança no
uso do tempo futuro desde o latim, contudo, nessa língua, constatou-se a
formação de uma construção “nova” para o futuro de maneira inversa ao
que se tem visto na atualidade do PB: o futuro no latim era feito por uma
forma modal analítica (ex.: cantare habeo – primeira pessoa) que foi se
simplificando (ex.: cantar hei) até ser aglutinada ao final do verbo como
desinência (ex.: cantarei) (CÂMARA JR., 1985). No PB, no entanto, já
havia (e há) a formação do futuro do presente do indicativo por adição de
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desinência, mas esse está dividindo espaço com outra variante, construída
pela adição de verbos auxiliares antes de verbos no infinitivo (exemplos:
vou cantar, irei cantar – primeira pessoa).
Diante de tais fatos, a presente pesquisa teve o objetivo de
analisar se a intuição do falante do PB está realmente direcionando-se
à internalização dessas inovações linguísticas, deixando de lado, de
maneira lenta, o uso de construções tradicionais. Aqui, faz-se referência
aos Futuros Perifrásticos e Sintético, respectivamente.
Para tanto, utilizou-se, a partir de um formulário online, a coleta
de dados de intuição de informantes do PB que concluíram o Ensino
Médio. Foram-lhes fornecidos verbos inexistentes (hipotéticos) com
seus respectivos significados e esperou-se que, depois de inseridos num
contexto situacional, eles indicassem a forma mais natural que expressasse
o futuro. Optou-se por não utilizar verbos existentes no PB para que o
falante não fosse influenciado por construções já cristalizadas por suas
experiências, consequentemente, não havendo interferências em suas
escolhas sobre fazer uso de um ou outro tipo de futuro. Ao se depararem
com palavras nunca antes ouvidas, faladas ou escritas foram testadas suas
liberdades enquanto falantes e investigadas as regras de nível sintático
que se mostraram mais protuberantes no que se poderia chamar de tecido
mental da língua. Relacionando todas essas questões, visualizou-se quais
rotas o PB tem tendência a seguir em relação ao uso do tempo futuro.
Após essa breve introdução da pesquisa, serão apresentados a
seguir os principais referenciais teóricos sobre o tema, a metodologia
detalhada da forma de análise e a reflexão sobre os resultados obtidos.
2 Gramaticalização
A construção perifrástica, formadora do futuro no PB, tem como
característica a presença do verbo “ir” e esse verbo, por sua vez, teria
sofrido um processo de deslexicalização, ou seja, perdido seu conteúdo
lexical de verbo de deslocamento e adquirido um valor mais abstrato,
temporal. Em outras palavras, ir teria passado por um processo de
gramaticalização.
O termo gramaticalização foi introduzido inicialmente pelo
linguista Antoine Meillet para designar determinados fenômenos de
natureza diacrônica. Uma de suas obras, a Linguistique historique et
linguistique générale, publicada no ano de 1921, foi a que trouxe o artigo
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inaugural que formulou o conceito de gramaticalização da maneira como
é utilizado modernamente. Meillet definiu a gramaticalização como
sendo um processo no qual uma palavra autônoma passa a apresentar
um caráter gramatical. Para exemplificar, o francês apresentou as fases
as quais o verbo être enfrentou até sofrer um esvaziamento semântico e
deixar de ser uma palavra principal – com o sentido de “ser/estar” – para
tornar-se um auxiliar de formação do passado composto.
De maneira geral, na gramaticalização, itens lexicais, como verbos,
adjetivos e nomes, passam a categorias esvaziadas semanticamente,
como verbos auxiliares ou preposições. Assim, nas perífrases analisadas
nesse estudo, o verbo ir teria passado pelo mesmo processo que o verbo
“to go” no inglês. Na língua inglesa, há um verbo “to go” com moção
no espaço e outro que funciona como verbo auxiliar. De acordo com
estudos históricos, é possível averiguar que o verbo com o sentido de
moção (movimento) no espaço veio antes do verbo como auxiliar e,
por isso, a hipótese é de que esse verbo tenha sofrido um processo de
gramaticalização.
Hopper (1991) afirma que a gramática de uma língua é sempre
emergente, ou seja, estão sempre surgindo novas funções/valores/usos
para formas já existentes e, nesse processo de emergência, verificável
a partir de padrões fluidos da linguagem, é possível reconhecer graus
variados de gramaticalização que uma forma vem assumir nas novas
funções que passa a executar, tornando-se imperioso, então, contar com
recursos que permitam identificar os primeiros estágios desse processo
de mudança. Quando gramaticalizadas, as palavras deixam de ser
simplesmente comandadas pelo discurso para fazer parte do conjunto
de mecanismos que as estruturam – a categoria gramatical é responsável
pela organização de um texto, pela referência de partes já ditas, além de
identificar tempo, aspecto e modo. Como o fenômeno da gramaticalização
decorre em estágios, as várias funções que os itens lexicais desempenham
até transformarem-se completamente em itens gramaticais podem acabar
coexistindo. Por essa razão, Hopper e Traugott (1993) afirmam que é
possível fazer um estudo da gramaticalização tanto por um viés diacrônico
quanto por um viés sincrônico.
Câmara Jr., por exemplo, professor, pesquisador e linguista
brasileiro, esmiuçou, em sua obra de 1985 intitulada História e estrutura
da língua portuguesa, um pouco sobre as etapas que o verbo latino habere
(haver) passou ao longo de sua história, desde o período em que sua
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função era de apenas verbo auxiliar até o período em que foi aglutinado
como desinência indicadora de tempo futuro. O autor esclareceu que
existia, a princípio, uma forma perifrástica que possuía um forte caráter
de auxiliaridade. Esta se dispunha, flexionada no presente, ao lado de
um verbo no infinitivo (ex.: cantare habeo) desempenhando, no latim
vulgar, o encargo de exteriorizar a vontade do falante da ocorrência de
algo. Tal partícula fora, com o tempo, simplificando-se (ex.: cantar hei)
até atingir o ponto de aglutinar-se ao verbo principal (ex.: cantarei).
A trajetória de mudança dessa estrutura pode servir como ponto
de partida para entender o que vem sucedendo com o verbo ir no PB.
Ele tem manifestado um caminho bastante semelhante ao exposto acima,
todavia, pela direção contrária: nossa língua, que já porta uma construção
de futuro sintética por intermédio da adição de desinências ao final dos
verbos (ex.: nós falaremos) tem sido palco de uma disputa entre esse tipo
de estrutura e outras elaboradas a partir da junção de um verbo auxiliar
antes de verbos no infinitivo (ex.: nós vamos falar; nós iremos falar).
Essas partículas perifrásticas, as quais se citam nessa pesquisa,
segundo Câmara Júnior (2002), interessam às locuções gramaticais
em que um item auxiliar desempenha apenas um papel gramatical e o
restante das noções semânticas ficam alocadas no vocábulo principal.
Essa será a definição assumida nesta pesquisa, juntamente com o uso
do termo “perífrase verbal”. A maioria das gramáticas apresenta outras
nomenclaturas para fazer referência a estes tipos de construções, no
entanto, sem qualquer preocupação de se explicar os pormenores de suas
escolhas. Said Ali (1966), por exemplo, em sua Gramática Secundária da
Língua Portuguesa, não diferencia os conceitos de construção perifrástica
e tempo composto e nem sequer menciona a função do verbo ir quando
nessas posições. A mesma indistinção parece ocorrer com Cunha e Cintra
(1985) que apenas discutem sobre a existência da locução verbal, a união
entre um verbo auxiliar e um verbo principal.
Para realizar as análises desta pesquisa, o respaldo utilizado
vem da vertente teórica gerativista, assim para uma definição de
gramaticalização mais adequada com essa vertente, o estudo de Vitral e
Ramos (2006) é tomado como referência para fundamentar o processo
sofrido pelo verbo ir nas perífrases verbais de futuro.
Os autores discutem a validade dos conceitos de (i) gradualidade
nas etapas do ciclo de gramaticalização e de (ii) concomitância das
formas em competição ao longo do processo de mudança sintática. De
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maneira geral, assumem a postura de que a gramática interna dos falantes
interpreta os itens em competição como elementos de categorias distintas.
Eles afirmam que “o sistema computacional não ‘enxergaria’, portanto,
o processo de recategorização. Este, na realidade, seria um epifenômeno
captado pelo linguista quando compara estágios diferentes de uma
língua” (VITRAL; RAMOS, 2006, p. 23). Para dar prosseguimento a
uma explicação formal sobre a gramaticalização, os autores apresentam
as seguintes sentenças:
(1) a) Eu tenho dez vira latas.
b) Eu tenho conhecido muita gente boa.
(VITRAL; RAMOS, 2006, p.23)
Com o propósito de esclarecer o papel do sistema computacional
no processo de gramaticalização, por uma visão gerativista, Vitral e
Ramos (2006, p. 24) explicam (1a) e um (1b) acima, retomados na citação
abaixo como (5 a) e (5 b) respectivamente, da seguinte maneira:
No estágio atual da língua portuguesa, o verbo tenho, em (5a)
indicando posse, coexiste com o auxiliar tenho em (5b). Vamos
supor, assim, que se trata de dois itens diferentes que pertencem
ao componente lexical. O primeiro deles é categorizado como
pertencente à classe de verbos e o outro à da classe dos auxiliares.
Quando o sistema computacional, através de suas operações,
insere dois itens em arranjos sintáticos, ele “enxerga” os traços
categoriais que definem a classe sintática dos dois itens e os
alocam de acordo com esses traços. Assim, em (5), tenho [lexical]
é inserido no ambiente __NP e tenho [gramatical] encontra-se
no ambiente __VP. Em nossa ótica, portanto, a gradualidade
identificada nos trabalhos sobre gramaticalização não tem a ver
com a possibilidade de indefinição da classe de um item. Para
nós, ou o item é de uma classe ou de outra. Em outras palavras,
quando o item é inserido numa estrutura oracional, ele já tem sua
classe sintática definida. Diferentemente de outras abordagens,
não estamos focalizando aqui as potencialidades do item, mas sua
presença em um contexto específico, o que acarreta a necessidade
de um estatuto categorial definido, não ambíguo. Deve-se ressaltar
aqui que o que dá a impressão de gradualidade categorial do item
é o “olhar” externo sobre a língua. Dentro de uma estrutura um
item nunca tem estatuto categorial indefinido ou mesmo ambíguo.
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Como pode ser visto, Vitral e Ramos propõem que a
gramaticalização do verbo ter no português desenvolveu dois itens
diferentes, um com valor de posse e outro com valor existencial. Por esse
entendimento, os autores estabelecem uma das formas de distinção entre
a abordagem formal da gramaticalização e a perspectiva funcionalista:
na primeira o item é inserido em uma estrutura oracional com sua classe
sintática definida, ou seja, sem a possibilidade de um valor ambíguo; já,
no modelo funcionalista, a definição da classe sintática de um item só
pode ser estabelecido através de sua inter-relação com os outros itens
dos enunciados devido às suas potencialidades semântico-sintáticas,
caracterizando uma ambiguidade em determinadas construções, segundo
esta abordagem. O modelo gerativista não discute o valor polissêmico
de um item, tal como o verbo ter. A teoria entende a existência de uma
única forma com duas entradas lexicais. Em outras palavras, na vertente
funcionalista, o verbo ter seria uma palavra polissêmica, ou seja, uma
única palavra com mais de uma possiblidade de sentido; na vertente formal
gerativista, o verbo ter seria uma homonímia, ou seja, haveria dois verbos
com entradas lexicais diferentes, mas escritos de uma mesma forma.
Neste estudo, advoga-se que da mesma forma que Vitral e Ramos
(2006) consideram existir uma única forma com duas entradas lexicais
para o verbo “ter”, haveria também uma única forma com duas entradas
lexicais para o verbo “ir”.
(2) (a) Eu vou à praia.
(b) Eu vou pensar na praia.
No português atual, o verbo “vou”, em (2a) com o sentido de
movimento, coexiste com o verbo auxiliar “vou” em (2b). A possibilidade
de acessar essas duas entradas lexicais desse verbo veio a partir da
gramaticalização desse item. Dessa forma, o sistema computacional
enxerga traços categorias distintos em cada uma dessas sentenças,
uma vez que quando o item é inserido numa estrutura oracional, ele
já tem sua classe sintática definida. Portanto, o verbo “ir” não possui
uma ambiguidade de uso no sistema linguístico, mas sim uma forma
homonímica para entradas lexicais distintas: uma como verbo pleno (2a)
e outra como verbo auxiliar (2b).
Entender a formação da perífrase verbal com o verbo “ir” como
uma entrada lexical independente, gerada pela gramaticalização do verbo
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“ir” pleno, é algo importante neste estudo. Acredita-se que a variação
(ou mudança em progresso) da forma do futuro no PB atual, com o uso
de construções perifrástica, seja motivada por essa forma inovadora de
construção na língua, independentemente de qual verbo o acompanhe.
Desse modo, na próxima seção, serão discutidas as duas possibilidades
de construção do futuro no PB: futuro sintético e futuro perifrástico.
3 A realização do futuro sintético e do futuro perifrástico
Estudos sobre a variação do uso do tempo futuro é um tema
que vem sendo trabalhado por vários autores, especialmente, a partir de
uma perspectiva da sociolinguística variacionista, trazendo resultados
de várias regiões do país, como da região de Vitória no Espírito Santo
(BRAGANÇA, 2008), da cidade de São José do Rio Preto em São
Paulo (FONSECA, 2010) e de cidades do Ceará (VIEIRA, 2014).
Especificamente para esta seção, serão apresentados resultados de
trabalhos realizados por Adriana de Oliveira Gibbon (2000), Adriana
Morcelles dos Santos (1997) e Josete Rocha dos Santos (2000).
A escolha por esses trabalhos se deu porque, de maneira geral,
os resultados desses estudos sintetizam, para esta revisão bibliográfica,
as principais formas de uso do futuro em seus principais contextos de
realização: fala e escrita em situações formais e informais. Os estudos
de Santos, A. (1997) e Santos, J. (2000) apontam resultados sobre o uso
do futuro em situação formal de uso. O primeiro de forma escrita e o
segundo de forma oral. Já Gibbon (2000) traz resultados sobre o uso do
futuro em situação de fala informal. Ou seja, as pesquisas dessas linguistas
contrapuseram a utilização das construções de expressão do futuro em
relação ao registro de modalidade formal/informal e em relação a fala
e a escrita. As construções de futuro encontradas nesses estudos foram:
futuro sintético, o futuro perifrástico e o presente com referência futura,
(nós falamos isso amanhã).
Santos, A. (1997), ao analisar algumas revistas de alcance nacional
e transcrições de discursos pronunciados no Congresso Nacional, atestou
que em textos formais escritos prevalece o uso do futuro sintético e do
presente do indicativo com referência futura. Já a pesquisa realizada por
Santos, J. (2000) com debates em emissoras de rádio do Rio de Janeiro
(RJ) demonstrou que quando se trata de um texto formal, mas no registro
oral, as três variantes do futuro aparecem concomitantemente no discurso.
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Gibbon (2000), por sua vez, evidenciou que o futuro sintético
praticamente inexiste em textos orais informais. Ao analisar dados do
Projeto Varsul com entrevistas concedidas por moradores da cidade de
Florianópolis/SC, a linguista averiguou apenas a presença do futuro
perifrástico e do presente do indicativo denotando futuro.
A pesquisa da autora constatou ainda que o fator idade tem
influência significativa no uso entre uma construção e outra, sendo
possível deduzir que se trata de uma mudança em progresso: indivíduos
jovens e de meia-idade apresentaram maior frequência no uso das
formas inovadoras em relação aos mais velhos, que se mostraram mais
conservadores.
A partir de resultados como esses, o objetivo deste estudo está em
mensurar a intuição do falante, quando diante de verbos hipotéticos. A
hipótese se baseia no fato de que se for uma mudança em estágio avançado,
como mostram os resultados da literatura sobre o tema, mesmo diante de
verbos nunca vistos, a tendência maior será o uso do futuro perifrástico e
não do uso do futuro sintético nas sentenças. Apesar de ser um experimento
intuitivo, por estar em uma plataforma online e executado por informantes
escolarizados, pretende-se ainda averiguar o grau de influência da
gramática periférica sobre a gramática nuclear desses informantes.
4 Gramática Nuclear versus Gramática Periférica
O experimento deste artigo foi pensado de modo que o informante
não acessasse de maneira contínua seus conhecimentos escolares.1 Para
isso, os formulários foram elaborados de maneira que o informante
devesse marcar uma alternativa dentre três disponíveis, optou-se por não
pedir ao informante que escrevesse, pois poderia suscitar um exercício de
análise gramatical escolar de uma forma explícita. No entanto, como não
foi possível mensurar o tempo que o informante demorou para marcar
as questões e por se tratar de um formulário escrito com indícios de um
estudo sobre linguagem, acredita-se que os resultados possam ter sofrido
algum tipo de influência que não seja observada na fala espontânea.
1
Destaca-se que por se tartar de verbos hipotéticos, não foi possível realizar um
experimento sem o uso de questionários. Realizar um experimento oral, como por
entrevistas, seria algo muito artificial e com resultados poucos confiáveis, uma vez
que não trataria de uma situação real de uso da língua.
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Para tanto, é importante levar em conta dois conceitos introduzidos por
Chomsky (1981) e posteriormente discutidos por Kato (2005): o conceito
de gramática nuclear e o de gramática periférica.
No sentido chomskiano do termo, a gramática de periferia
armazena resíduos de mudança, empréstimos, inovações linguísticas,
dentre outros, sendo que os indivíduos de uma mesma comunidade
linguística podem divergir em larga escala na manifestação ou não desses
aspectos; já a gramática nuclear abarca os elementos que compõem a
competência natural dos falantes, determinada no processo natural de
aquisição da linguagem ao longo de sua infância.
Em outras palavras, o primeiro desses termos refere-se à
gramática gradativamente criada pela criança na medida em que ela entra
em contato com o input linguístico de sua comunidade. Tal gramática
absorve os parâmetros dessa língua, desenvolvendo, desse modo, um
sistema de funcionamento. O segundo, por sua vez, reporta à gramática
gradativamente criada pelo falante quando ele inicia o seu processo de
escolarização. Assim como a outra, essa gramática assimila os parâmetros
ensinados pela escola para o uso da língua o que acaba desenvolvendo
outro sistema de funcionamento na mente.
Diante disso, Kato (2005) adapta a ideia de que no Brasil a
aquisição dessa gramática assemelha-se à aprendizagem de uma segunda
língua. Ou seja, a autora argumenta que em favor da ideia de que as fontes
provedoras da periferia estão ligadas à escolarização, que é a responsável
pelo aprendizado da escrita. Isso em decorrência de ela possuir parâmetros
de funcionamento às vezes opostos aos da gramática nuclear, ou seja,
aquela adquirida pela criança antes de sua inserção no mundo escolar.
Nesse sentido, é possível que ocorra na mente do falante uma competição
entre ambas, uma vez que tanto a gramática da escrita, quanto a gramática
de periferia teriam início depois de uma idade crítica para a aquisição,
condição que abre espaço para a emergência de diferenças individuais
marcantes.
A interferência da gramática periférica na gramática nuclear do
falante faz com que determinadas mudanças linguísticas sejam mais
lentas e apresentem-se mais conservadoras em determinados contextos
quando comparados a outros. Neste trabalho, ao envolver informantes
escolarizados, pretende-se mensurar o quanto a gramática periférica
pode influenciar um falante nativo em um contexto de teste linguístico,
elaborado por questionário online.
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5 Exposição das etapas de elaboração do experimento
Como apresentado na seção três, a disseminação nas modalidades
oral e escrita de novas possibilidades sintáticas para a formação do futuro
do presente do indicativo guia o PB em direção a uma provável mudança
linguística, o que mostra que nossa língua, assim como qualquer outra,
também se metamorfoseia. E já que muitas das expressões advindas do
uso dessas inovações tornaram-se recorrentes no cotidiano dos falantes,
ou seja, já que essa comunidade linguística tem sido frequentemente
exposta às perífrases, optou-se por adotar uma metodologia que anulasse
ou, ao menos, limitasse a interferência dessas construções paulatinamente
cristalizadas. Para tanto, definiu-se que a utilização de verbos hipotéticos
seria a melhor alternativa para perceber o avanço dessa mudança na
intuição daqueles que têm o PB como língua materna. Essa escolha,
inclusive, entra em concordância com a visão gerativista assumida para
fazer a análise dos dados, pois a ela não pesa tanto discutir sob que
contextos sócio-econômico-culturais ocorre maior ou menor uso de
um futuro e outro e sim como essas formas se distribuem em relação à
língua em si.
A criação de um conjunto de palavras nessa classe gramatical
ofereceu aos informantes a possibilidade de moldarem-nas de acordo
com suas próprias regras. Claro, tais regras não são tão individuais assim,
visto que provêm, ademais de outros fatores, de relações de caráter social.
Porém, deve-se reconhecer que o contato com expressões nunca antes
ouvidas, faladas ou escritas, certamente cedeu uma maior liberdade ao
indivíduo, pois lhe permitiu o acesso consciente a sua memória linguística
iniciando um processo de reflexão que findou na preferência de uso de
uma estrutura sintática em detrimento de outra.
Para compreender de forma mais clara essas questões, utilizarse-ão posteriormente exemplos da inserção desses verbos num contexto
situacional. Antes disso, serão esmiuçados os métodos que nortearam
esse primeiro momento de produção dos verbos conduzido não somente
pela criatividade linguística inerente, segundo Chomsky (1972), a todos
os falantes, como também por uma base de elementos prefixais, sufixais
e radicais da formação de palavras da língua portuguesa.
1324
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5.1 Processo lógico-criativo de elaboração dos verbos
A fim de que houvesse a simulação das estruturas verbais do
PB, decidiu-se pela criação de quinze verbos hipotéticos divididos
igualmente nas três conjugações existentes: os de primeira conjugação
(terminados em –ar), de segunda conjugação (terminados em –er) e os
de terceira conjugação (terminados em –ir). Desse modo, seria possível
manter um olhar analítico sobre a equiparação ou não da interferência
dos futuros sintético e perifrásticos em cada um desses grupos. Buscouse seguir os padrões de formação verbal da língua portuguesa e por
isso o detalhamento em descrever todo o processo lógico-criativo da
elaboração dos verbos.
Como os sujeitos da pesquisa foram, preferencialmente, pessoas
que já tivessem ingressado no ensino superior, houve a preocupação
em apresentar verbos que denotassem alguma ação do cotidiano desses
graduandos. Alguns exemplos são os verbos cafoitar, tececer e vuniver.
Este condiz ao ato de economizar cada mísera moeda possível para
arcar com os custos do ensino superior; esse ao de amanhecer escrevendo
o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e aquele à ação de passar uma
noite inteira desperto à base de cafeína (café, energéticos etc.). Sabe-se
que, às vezes, há pouco tempo disponível para que os estudantes lidem
com todas as obrigações que esse nível de ensino demanda, portanto,
passar madrugadas acordado é algo que a maioria vivencia, vivenciou
ou viu alguém vivenciar.
Os verbos facevirar e tougar, de primeira conjugação, foram
pensados como uma forma de aproximar a tecnologia e as redes sociais
ao mundo dos informantes. Enquanto o primeiro representa o ato de fazer
com que uma postagem adquira rapidamente curtidas e compartilhamentos
no Facebook, o segundo refere-se ao uso do Near Field Communication
(NFC), uma tecnologia para smartphones desenvolvida há um pouco
mais de uma década. Facevirar surgiu a partir das promoções realizadas
no Facebook em que o ganhador de um prêmio é aquele que consegue a
maior quantia de curtidas e/ou compartilhamentos dentro de um espaço
de tempo limitado.
Cinlaranjer, por sua vez, foi pensado a partir da necessidade
de se trabalhar com um verbo impessoal. Ele exprime um fenômeno
da natureza: o processo pela qual o céu, em dias nublados, recebe os
matizes da luz solar criando um belíssimo contraste entre as cores cinza
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1325
e laranja. Como ele não será utilizado em sentidos figurados, só poderá
ser conjugado na terceira pessoa do singular.
Dentre os quinze verbos, há também dois de tipo reflexivo, ou
seja, aqueles em que a ação do sujeito recai sobre si mesmo. Enchovescerse é um dos verbos que satisfaz essa característica; ele alude ao sentimento
de tristeza e/ou paz no qual imerge uma pessoa durante ou após ouvir o
som da chuva. O outro é atempor-se que remete àquelas situações em
que se fala com uma pessoa, porém ela não o ouve porque sua mente
está em outro lugar, outro tempo. Há de se notar aqui que fora utilizado
a terminação –or, justamente numa tentativa de representar o verbo pôr
e seus derivados (dispor, repor, transpor etc.). Apesar de sua terminação,
ele pertence ao grupo dos verbos de segunda conjugação já que o mesmo
fora criado a partir da junção do prefixo a- (negação, afastamento), do
substantivo tempo e do verbo pôr, que antigamente se transcrevia como
poer.
E já que se falou em prefixo, será esquadrinhada agora a formação
dos verbos a partir desses elementos linguísticos. Abscamar, por exemplo,
que indica a ação de lutar contra o irresistível desejo de permanecer
na cama mesmo quando se tem compromissos a fazer, surgiu com a
aglutinação do prefixo abs-, que expressa uma relação de afastamento,
e do substantivo cama. Peristorir traz consigo o prefixo peri-, que
expressa a relação “em torno de”, unido ao substantivo história Ele
remete ao processo de adentrar-se totalmente num universo narrativo a
ponto de emocionar-se e preocupar-se com o destino das personagens.
Enchovescer-se, o qual teve seu significado explanado
anteriormente, é resultado da ligação entre o prefixo em-, que indica
movimento para dentro, com o substantivo chover e o sufixo –escer,
marcador dos verbos incoativos (aqueles que denotam o início de uma
ação, tal como ocorre com envelhecer e adormecer).
Há outros verbos que não foram mencionados. Portanto, a
seguir, encontram-se todos os quinze, em ordem alfabética, divididos
silabicamente e seguidos de suas respectivas transcrições fonéticas,
definições, exemplos de uso e as combinações que os inspiraram:
(3) a) abs.ca.mar /aβskɐ'maɾ/ Ação de lutar contra o irresistível
desejo de permanecer na cama mesmo quando se tem
compromissos a fazer. Exemplos de uso: Nós temos
abscamado muito neste inverno; Atrasei-me hoje
1326
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porque fiquei abscamando por uma hora. Inspiração:
combinação entre o prefixo abs- (relação de afastamento)
e o substantivo cama;
b) a.ner.gir /aneɾ'ʒiɾ/ Ação de deslocar-se sem forças/energias
c)
d)
e)
f)
g)
até algum lugar. Exemplo de uso: Anergi ao posto, pois estava
muito doente e não havia ninguém que pudesse me oferecer
carona. Inspiração: combinação entre o sufixo an- (relação de
negação), o substantivo energia e o verbo ir;
a.tem.por-se /atem'poɾsi/ 1 Pôr-se em outro tempo 2 Viajar
mentalmente a um tempo que não o presente e perder a
atenção sobre o que os outros lhe falam. Exemplo de uso:
João, você anda se atempondo. Nunca mais ouve o que falo!
Inspiração: combinação entre o prefixo a- (relação de negação,
afastamento), o substantivo tempo e o verbo pôr;
ca.foi.tar /kafoj'taɾ/ Ação de passar uma noite em claro à
base de cafeína (xícaras de café, energéticos etc.). Exemplo
de uso: Eu lhe disse que você só conseguiria finalizar aquele
artigo se cafoitasse por alguns dias. Inspiração: combinação
entre o substantivo café e o verbo pernoitar;
cin.la.ran.jer /sĩlaɾɐ'̃ ʒeɾ/ Processo em que o céu em dias nublados
recebe as diferentes matizes de um pôr do sol formando, assim,
um admirável contraste entre cinza e laranja. Exemplo de uso:
Nossa! Vou tirar uma fotografia desse céu. Não é sempre que
se pode vê-lo cinlaranjendo. Inspiração: combinação entre os
substantivos cinza e laranja e o sufixo –escer (verbo incoativo).
en.cho.ves.cer-se /ẽʃove'seɾsi/ Entrar em um estado de espírito
de paz ou tristeza durante ou após ouvir o som da chuva.
Exemplos de uso: Geralmente em dias assim, eu sempre
enchovesço; Agora ela está com uma expressão tão distante.
Acho que ficou enchovescida. Inspiração: junção entre o
prefixo em- (relação de movimento para dentro), o verbo chover
e o sufixo –escer (verbo incoativo);
e.xir /e'ziɾ/ Ação de chegar na hora exata em que fora marcado
um encontro/compromisso. Exemplos de uso: Eu nunca deixei
de exir a algum encontro; Tenho muitas dificuldades para exir,
por isso perco muitas pretendentes. Inspiração: combinação
entre o adjetivo exato e o verbo ir;
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1327
h) fa.ce.vi.rar /fɐjsivi'ɾaɾ/ Ato ou efeito de fazer com que alguma
postagem adquira curtidas e compartilhamentos rapidamente
no Facebook (rede social). Exemplo de uso: Aquele nosso
vídeo para a promoção foi o que mais facevirou. Inspiração:
combinação entre o substantivo Facebook e o adjetivo viral;
i) jo.vir /o'viɾ/ Desejar ou ter a capacidade de retornar aos tempos
de juventude. Exemplos de uso: Como queria tanto jovir aos
meus vinte anos de idade só para fazer tudo diferente; Naquele
momento em que o mundo caiu sob seus pés, ele desejou jovir
mais que nunca. Inspiração: combinação entre o substantivo
juventude e o verbo ir;
j) pe.ris.to.rir /peɾisto'ɾiɾ/ Adentrar-se totalmente no universo
narrado de uma história a ponto de, por alguns momentos,
emocionar-se e preocupar-se com o destino das personagens.
Exemplo de uso: Aquele romance que minha mãe me deu é
tão bom que estou peristorindo do início ao fim. Inspiração:
combinação entre o prefixo peri- (relação de entorno) e o
substantivo história;
k) pre.se.mir /pɾese'miɾ/ Ato de insinuar a alguém, quando
próximo a uma data festiva, do(s) presente(s) que se deseja
ganhar. Exemplo de uso: Acertei no presente, não é? Percebi que
estava presemindo aquela cafeteira. Inspiração: combinação
entre o substantivo presente e o radical sema (sinal);
l) su.fri.nar /sufɾi'naɾ/ 1 Entrar em estado de tristeza por imaginar
situações hipotéticas ruins. 2 Sofrer por antecedência. Exemplo
de uso: Eu não entendo o porquê de eu sufrinar por todos os
meus relacionamentos. Inspiração: combinação entre os verbos
sofrer e imaginar;
m) te.ce.cer /tese'seɾ/ Ação de amanhecer o dia escrevendo o
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Exemplo de uso:
Essa semana tive que tececer quase todos os dias. Inspiração:
combinação entre o substantivo TCC (tececê) e o verbo
amanhecer;
n) tou.gar /tow'gaɾ/ Utilizar a tecnologia Near Field Communication
(NFC) para realizar pagamentos e/ou transferir arquivos
de um celular a outro apenas aproximando-os. Exemplo de
uso: Querido, não precisa usar dinheiro vivo para o ingresso
1328
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do cinema. Tente tougar que é mais cômodo. Inspiração:
combinação entre os verbos tocar e pagar;
o) vu.ni.ver /vuni'veɾ/ Ação de economizar cada mísera moeda
a fim de se guardar dinheiro o suficiente para arcar com os
custos de se estudar em uma instituição de ensino superior.
Exemplo de uso: Ultimamente, não está sendo fácil vuniver
à UFFS; Tenho medo de que depois de mudar de cidade não
vunivamos lá. Inspiração: combinação entre o verbo viver e
o substantivo universidade.
Deve-se perceber que existiu a preocupação enquanto à extensão
dos verbos. Isso devido ao fato de que, talvez, essa característica influísse
sobre a porcentagem de uso ou não das formas perifrásticas: porventura,
preferir-se-ia a forma sintética com verbos de menor extensão e com os
de maior extensão as formas perifrásticas. Por esse motivo, três verbos
da quinzena foram construídos dissilabicamente, oito trissilabicamente
e quatro possilabicamente.
5.2 Sobre o caráter estrutural do formulário
Todos os informantes dessa pesquisa tiveram contato com cada
um desses hipotéticos verbos a partir de um formulário online criado
com a plataforma google.docs. Nesse formulário, constou a explicação
do que se tratava a atividade e além dos verbos em si, separados de forma
silábica, houve também um pequeno trecho detalhando seus significados e
orações ilustrando o uso. Tais orações não estavam no futuro do presente
do indicativo justamente pelo fato de que esse é o objeto da pesquisa.
Além dessas informações, o informante teve disponível um áudio para
que não tivesse qualquer dúvida no que concernia à pronúncia correta
do verbo. Viu-se necessário o uso desse mecanismo, porque alguns
deles são formados por letras que coincidem com mais de um fonema.
É o caso do verbo exir. A letra x, nessa palavra, tem o som do fonema
/s/, /z/, / ∫/ ou do fonema /ks/? E quanto ao verbo facevirar? O informante
repararia que alguns traços fonológicos dessa palavra mantêm os traços
fonológicos originais da palavra Facebook, de origem inglesa? Com os
áudios, essas dúvidas seriam sanadas.
Após a apresentação do verbo, um espaço foi dedicado às orações
que serviram para induzir os informantes a utilizar alguma forma futura do
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verbo. Essas orações apresentaram lacunas para que eles as visualizassem
e elegessem a palavra que melhor se encaixava àquele espaço. Além disso,
existiram outras frases distratoras, com construções verbais distintas.
Essas frases se prestaram ao desvio da atenção do informante, com vistas
de que ele não descobrisse o objeto o qual se estava estudando. Abaixo,
poder-se-á ter uma noção de como tudo isso foi retratado ao informante
através do exemplo do verbo hipotético presemir:
FIGURA 1 – Apresentação do formulário para o informante
pre.se.mir 1 Ato de insinuar a alguém, quando próximo a uma data festiva, do(s) presente(s)
que se deseja ganhar.
Exemplo de uso: Acertei no presente, não é? Percebi que estava presemindo aquela
cafeteira.
11 - Quando fomos ao centro, Jonas _________ aquele Playstation 4, mas como não
tínhamos dinheiro para isso o presenteamos com outra coisa.
tinha presentido;
presemiu;
presemia.
1330
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Como pode ser visto, na figura 1 acima, inicialmente, foi
apresentado ao informante o significado do verbo hipotético, como
em um dicionário. Junto à explicação do sinônimo, havia exemplos de
aplicação do verbo em sentenças, nenhuma delas no tempo futuro para
não direcionar as respostas dos informantes. Havia também um arquivo
de som para que o informante pudesse ouvir a pronúncia do verbo, caso
quisesse. Só depois disso, o experimento propriamente dito era solicitado.
No exemplo acima, a primeira sentença solicitada para completar o
questionário, trata-se de uma sentença distratora, pois ela não contempla
o ambiente de interesse do presente estudo: o futuro. A sentença com o
contexto de interesse desse estudo vinha logo a seguir:
FIGURA 2 – Exemplo de sentença elaborada para o informante escolher
a melhor forma de uso do verbo hipotético no futuro
12 - No próximo fim de semana, _________ aquele celular que vi na Havan para o meu
namorado. Quem sabe assim ele não sabe o que comprar para o Natal.
presemirei;
irei presemir;
vou presemir.
Todo verbo hipotético continha ao menos duas sentenças para
que o informante pudesse marcar o contexto que mais lhe agradava,
sendo uma com sentido de futuro e a outra em qualquer tempo verbal,
diferente do futuro, com a função distratora. A ordem de apresentação
dessas sentenças foi feita de forma aleatória para que não condicionasse
o informante, ou seja, ora a sentença com o futuro vinha em primeiro,
ora a sentença distratora aparecia primeiro.
Nesse caso do verbo presimir, trabalhou-se com a conjugação na
primeira pessoa do singular (eu). No entanto, foram elaboradas, nessa
pesquisa, sentenças com exemplos de todos os pronomes, com exceção
do tu e do vós; este último, por não ser mais utilizado no PB, tanto nas
modalidades oral quanto escrita (a não ser em contextos extremamente
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específicos como em textos bíblicos); e aquele por não apresentar um
paradigma de conjugação de uso recorrente. Na maior parte do Brasil,
o pronome de segunda pessoa do singular é conjugado com as mesmas
desinências da terceira pessoa do singular. Então, em vez de tu escreves
o –s é suprimido e se converte em tu escreve, no lugar de tu tens se ouve
tu tem e assim por diante.
Seguindo com a exposição do componente metodológico da
pesquisa, depois que todas as respostas foram recolhidas, foi criado
um banco de dados em que se analisou a frequência de uso das formas
sintética e perifrásticas e sob que contextos elas eram concebidas.
Algo importante a ser ressaltado aqui é que toda esta pesquisa
passou primeiramente por uma avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP)2 para garantir a integridade e a dignidade dos informantes
contribuindo, assim, com o desenvolvimento científico dentro de padrões
éticos aceitáveis.
5.3 Perfil dos participantes
O experimentou contou com a participação voluntária de 62
(sessenta e duas) pessoas brasileiras com idade igual ou superior a 18
(dezoito) anos e com, minimamente, o ensino médio3 concluído. A faixa
etária variou de 18 (dezoito) a 52 (cinquenta e dois) anos. No que se
reporta ao grau de instrução, houve um maior número de informantes
com ensino superior completo, como ilustra o Quadro 1.
QUADRO 1 – Distribuição dos informantes segundo a formação escolar
Grau de instrução
Número de informantes
Ensino Médio Completo e/ou Ensino
Superior Incompleto
25
Ensino Superior Completo
37
Fonte: Elaborado pelos autores.
2
Número do processo de aprovação no CEP: CAAE: 81843517.8.0000.5564
O foco deste estudo está em observar a intuição de falantes escolarizados, por esse
motivo, optou-se pela exigência mínima do ensino médio completo.
3
1332
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6 Apresentação e apreciação dos dados
Pode-se enunciar, desde aqui, que a compilação dos resultados
trouxe asseverações bastante relevantes. Portanto, a princípio,
serão apresentados os dados numa visão mais geral do fenômeno e,
posteriormente, serão apresentados os resultados em relação a contextos
específicos, buscando identificar se há algum fator linguístico favorecendo
o uso de uma forma ou de outra das variantes. A Tabela 1 abaixo traz os
dados estatísticos gerais de uso dos dois tipos de construção sintática de
futuro (Futuros Perifrásticos – FPs – e Futuro Sintético – FS) com cada
um dos verbos hipotéticos:
TABELA 1 – Dados estatísticos gerais do uso dos dois tipos de construção futura
Verbos hipotéticos
FPs
FS
FPs (%)
FS (%)
sufrinar
peristorir
tougar
facevirar
abscamar
exir
anergir
vuniver
tececer
cafoitar
presemir
cinlaranjer
atempor-se
jovir
enchovescer-se
Total parcial
31
32
32
33
34
34
35
39
39
40
41
42
42
42
48
564
31
30
30
29
28
28
27
23
23
22
21
20
20
20
14
366
50,00%
51,61%
51,61%
53,23%
54,84%
54,84%
56,45%
62,90%
62,90%
64,52%
66,13%
67,74%
67,74%
67,74%
77,42%
60,65%
50,00%
48,39%
48,39%
46,77%
45,16%
45,16%
43,55%
37,10%
37,10%
35,48%
33,87%
32,26%
32,26%
32,26%
22,59%
39,35%
Fonte: Elaborado pelos autores.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
1333
Como pode ser observado, as duas possibilidades de se fazer
referência a uma ação futura a partir de perífrases (uma com o verbo ir
no presente e outra com o verbo ir no futuro) atingiram uma porcentagem
de uso igual ou superior aos 50% com todos os verbos hipotéticos. A
forma tradicional, por sua vez, concebida pela adição de desinências ao
final de verbos no infinitivo, atingiu uma margem que variou de 50%
aos 22%, corroborando para a hipótese de que ela vem sendo preterida
em relação à forma inovadora.
Os diagnósticos foram auferidos, como mostra a última linha
da tabela, por meio da obtenção de 930 (novecentos e trinta) dados
linguísticos – 62 (sessenta e dois) dados por verbo. Desse total, em mais
de 60% averiguou-se a manifestação das perífrases, restando ao FS um
aparecimento em aproximadamente 39% dos casos. Não é plausível
afirmar, diante desses resultados, que há uma mudança linguística
efetivada; os dados, porém, sinalizam de forma clara que existe uma
tendência à implementação do uso de um futuro constituído por partículas
perifrásticas.
É interessante ressaltar que esses resultados divergem,
quantitativamente, de pesquisas realizadas com gravações orais, tais
quais a de Gibbon (2000), em que foi praticamente evidenciada a ausência
do uso do FS. No entanto, os resultados demonstram que mesmo diante
de informantes escolarizados, que passaram pela influência da gramática
periférica, a forma inovadora para o futuro, com o uso de perífrase,
apresentou uma porcentagem superior em relação à construção com o
futuro sintético. Metodologicamente, há grandes diferenças entre o estudo
de Gibbon (2000), que analisou contextos de fala, e o presente experimento,
realizado com o suporte de um questionário online, em que o exercício de
leitura acabou remetendo a uma modalidade mais formal e relacionada à
escrita. Assim, pesquisas como de Santos, A. (1997) e Santos, J. (2000),
que analisaram contextos formais de produção e detectaram a presença
do futuro com formas sintéticas e perifrásticas, possuem resultados
mais convergentes com a presente pesquisa. Além disso, por se tratar de
verbos hipotéticos, acredita-se que, diante do novo, o informante tenha
acionado sua gramática periférica para conjugar os verbos nos contextos
apresentados, tornando o FS ainda produtivo na língua.
A seguir, o gráfico 1 traz as mesmas informações contidas
na primeira tabela, ilustrando visualmente a flutuação detectada no
experimento em relação ao uso de um tipo de futuro e outro. É importante
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Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
destacar a figura produzida pelo tempo verbal em relação aos verbos,
pois além dos valores, a figura aponta indícios de inconstâncias nessa
relação, demonstrando uma dificuldade em determinar a existência de
um fator linguístico (terminação verbal e/ou tamanho do verbo) como
justificativa para a variação encontrada nos dados, reforçando a hipótese
de uma competição de gramáticas devido às influências da gramática
periférica do falante em sua gramática nuclear.
GRÁFICO 1 – Dados estatísticos gerais do uso dos dois tipos de construção futura
Fonte: Elaborado pelos autores
Antes de serem feitas as análises das variáveis dos verbos
criados para este experimento, de maneira mais aprofundada, é preciso
explanar sobre o sucesso da escolha metodológica em relação à forma de
apresentação dos verbos para os informantes. Ao reorganizar a Tabela 1
na ordem em que os verbos foram apresentados, é possível observar na
Tabela 2 o exitoso trabalho que as sentenças distratoras desempenharam
ao impedir que os participantes da pesquisa desvendassem o objetivo do
estudo. A inexistência de um padrão de respostas no decorrer do avanço
do questionário é um indício que comprova esse acerto metodológico. É
importante evidenciar esse acerto, pois por se tratar de um experimento
que envolve conhecimentos linguísticos gramaticais escolares, os
resultados apresentarem uma ausência de gradação percentual traz
1335
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
mais confiabilidade ao estudo. Essa ausência de gradação percentual
é visualmente perceptível nessa segunda tabela, uma vez que verbos
com taxas de uso iguais ou similares para os dois tipos de futuro não
estavam próximos no corpo do formulário (ex.: peristorir e tougar, com
51,61% de uso com FPs, foram apresentados aos informantes na segunda
e décima quinta posições, respectivamente) e verbos com taxas de uso
significativamente distintas estavam, muitas vezes, próximos entre si
(ex.: os verbos jovir e sufrinar, que se encontravam um na sequência
do outro no formulário, exibiram resultados com diferença superior a
dezessete pontos percentuais).
TABELA 2 – Distribuição dos verbos na ordem de aparecimento no formulário
Ordem no
formulário
1º
2º
3º
4º
5º
6º
7º
8º
9º
10º
11º
12º
13º
14º
15º
Verbos
hipotéticos
enchovescer-se
peristorir
abscamar
facevirar
cinlaranjer
presemir
cafoitar
vuniver
atempor-se
jovir
sufrinar
tececer
anergir
exir
tougar
FPs (%)
FS (%)
77,42%
51,61%
54,84%
53,23%
67,74%
66,13%
64,52%
62,90%
67,74%
67,74%
50,00%
62,90%
56,45%
54,84%
51,61%
22,59%
48,39%
45,16%
46,77%
32,26%
33,87%
35,48%
37,10%
32,26%
32,26%
50,00%
37,10%
43,55%
45,16%
48,39%
Fonte: Elaborada pelos autores
Como dito na seção 5.1, optou-se por criar verbos com tamanhos
diferentes com o propósito de identificar se sua extensão seria motivo
para a escolha de um futuro ou outro. A Tabela 3, a seguir, distingue três
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grupos verbais por dimensões silábicas e seus respectivos resultados para
cada um dos futuros investigados:
TABELA 3 – Resultados dos dados em relação à extensão dos verbos
Extensão dos verbos
FPs
FS
FPs (%)
FS (%)
Dissílabos
108
78
58,06%
41,94%
Trissílabos
301
195
60,69%
39,31%
Polissílabos
155
93
62,50%
37,50%
Fonte: Elaborado pelos autores.
Diante desses resultados, conclui-se que, independentemente do
tamanho do verbo, a preferência dos informantes foi pelo uso dos FPs
(todos valores acima de 50%). Ao analisar de forma cuidadosa a extensão
dos verbos, é possível ainda averiguar que à medida que se aumenta
o número de sílabas do verbo, observa-se uma leve inclinação para a
manifestação de partículas perifrásticas, ou seja, verbos polissílabos
apresentam maior porcentagem de realização com FPs que os verbos
trissílabos e dissílabos; já os verbos dissílabos apresentam a maior
porcentagem de ocorrências com FS na comparação com trissílabos e
polissílabos.
Ainda sobre a extensão verbal, destaca-se que a mais alta taxa de
aparecimento de FPs se deu com o verbo enchovescer-se (77,42%). Além
de fazer parte dos polissílabos, este era o verbo hipotético com maior
número de grafemas, ou seja, o mais alongado de todo o experimento.
Exir, por sua vez, era o verbo que, dentre os dissílabos, possuía menos
grafemas e o que apresentou a quarta maior porcentagem para uso de
FS (45,16%). Em outras palavras, diante de uma conjugação como
“ele se enchovescerá” e “ele vai se enchovescer”, a preferência dos
informantes se deu pela segunda opção; já com verbos curtos, como Exir,
os informantes preferiram “eu exirei” à construção “eu vou exir”. Tais
apurações apenas adensam a suspeita de que realmente há um grau de
alterabilidade de uso das duas construções sintáticas de futuro acarretado
pela dimensão dos verbos principais diante de uma situação de teste online
e de informantes com escolaridade mínima de ensino médio completo.
1337
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Em resumo, os resultados sobre a extensão verbal nos apontam
que longos ou curtos, a construção pelos FPs é a preferencial pelos
informantes. Ao separar os verbos por suas dimensões silábicas,
observou-se que verbos longos suscitaram uma leve inclinação para a
manifestação de partículas perifrásticas, enquanto que, em verbos curtos,
essa inclinação foi menos proeminente.
A coleta da remessa de 930 dados linguísticos para o estudo
tinha também como propósito inspecionar se haveria certa equiparação
ou desarmonia na distribuição de uso dessas estruturas dentro das três
conjugações existentes no PB. Relembrando que essa fora a motivação
inicial para a repartição dos verbos em grupos de igual grandeza: exprimir
a configuração verbal da língua em questão. Ou seja, ao criar os verbos,
pensou-se no padrão usual da língua portuguesa, 1a, 2a e 3a conjugações
(terminações em ar – er –ir, respectivamente).
Assim sendo, produziu-se a Tabela 4, na qual é possível identificar
que todas as três conjugações obtiveram porcentagens acima de 50%
na preferência pela construção perifrástica. A 2a conjugação (verbos
terminados em –er) apresentou uma porcentagem um pouco maior
(67,74%) em relação às outras duas (54,84% e 59,35%, respectivamente):
TABELA 4 – Resultados dos dados em relação à conjugação dos verbos
Conjugação dos verbos
FPs
FS
FPs (%)
FS (%)
1ª conjugação (–ar)
170
140
54,84%
45,16%
2ª conjugação (–er)
210
100
67,74%
32,26%
3ª conjugação (–ir)
184
126
59,35%
40,65%
Fonte: Elaborado pelos autores.
A tabela 4 mostra que os contextos com verbos de primeira
conjugação apresentaram uma maior realização com verbos no FS quando
comparados com verbos da terceira e da segunda conjugação. Curioso
esse contexto ter sido o mais restritivo (quando comparado às outras
conjugações) à forma inovadora, pois no PB, muitos dos verbos novos
que são incorporados à língua correspondem à primeira conjugação.
Exemplos de alguns verbos incorporados a partir de empréstimos da
língua inglesa: “deletar”, “digitar”, “zipar”, “xerocar”, “clicar”, dentre
outros. Ou seja, a primeira conjugação, que é a mais produtiva na
1338
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incorporação de novos verbos na língua portuguesa, é também a que
mais possibilita um número maior de construções com FS, forma mais
conservadora. Uma possível explicação para esse quadro seria o fato de
a gramática periférica dos informantes ter sido mais acionada no contato
com verbos hipotéticos da 1a conjugação, uma vez que há mais verbos
com essa conjugação na língua e, consequentemente, com um número
maior de usos nas escolas4.
Além da extensão verbal e da conjugação verbal, outro rearranjo
dos dados se viu pertinente a ser investigado: o que contrapõe as taxas
de uso dos FPs e FS no tocante à faixa etária dos participantes:
TABELA 5 – Resultados dos dados em relação à idade dos informantes
Faixas etárias
FPs
FS
FPs (%)
FS (%)
18 a 22
155
145
51,67%
48,33%
23 a 27
121
59
67,22%
32,78%
28 a 32
104
31
77,04%
22,96%
33 a 37
123
57
68,33%
31,67%
38 a 42
52
53
49,52%
50,48%
43 a 47
6
9
40,00%
60,00%
48 a 52
3
12
20,00%
80,00%
Fonte: Elaborado pelo autor.
A partir dos resultados encontrados na tabela 5, pôde-se verificar
duas evidências que ratificam a hipótese de que as perífrases estão
enfrentando uma mudança linguística em progresso: uma pelo fato de
que elas coexistem com as formas tradicionais e outra pelo fato de que
os indivíduos mais jovens, nativos de PB, têm maior preferência pelas
formas perifrásticas em comparação à fração mais velha do experimento.
Um cenário de interpretação da tabela acima se dá pelas seguintes
vertentes: (i) os mais jovens (18 a 22 anos), por terem concluído o
ensino médio há menos tempo que os outros informantes, estariam mais
4
Estudos futuros com verbos reais precisam ser realizados para que essa hipótese seja
testada.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
1339
vulneráveis a desempenhar regras gramaticais, por isso apresentaram
maior alternância entre as duas variantes; melhor dizendo, travou-se
uma competição de gramáticas entre aquelas que seriam suas gramáticas
nucleares e aquelas previstas como sendo gramáticas periféricas;
(ii) a faixa etária de 23 a 37 anos estaria há mais tempo afastada das
padronizações escolares, logo, menos suscetível às regras prescritivas, o
que fomenta, por sua vez, um maior índice de uso dos FPs; (iii) já a faixa
etária de 38 a 52 anos teria optado, preferencialmente (média de 63,49%)
pelo FS por ser uma geração anterior, sendo assim, mais conservadora
às regras gramaticais.
Evidentemente, para validar tais perspectivas, um estudo
minucioso e com padrões etários mais monitorados necessitaria ser
realizado em trabalhos futuros. Nesta pesquisa, o objetivo era o de
averiguar se haveria diferença no comportamento linguístico dos falantes
por faixa etária de idades, já que se está lidando com variáveis em
processo de mudança, portanto, interessou aqui apreciar a realização
do fenômeno por diferentes gerações. Julgou-se, ainda, interessante a
construção do Gráfico 2, que desenha as sinuosidades ocasionadas por
essas diferenças de predileção entre uma construção sintática e outra em
intervalos de idade particulares.
GRÁFICO 2 – Resultados dos dados em relação à faixa etária dos informantes
Fonte: Elaborado pelos autores
1340
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
A partir do gráfico apresentado acima, podem-se demarcar dois
pontos de convergência e dois picos de divergência. Os de convergência
correspondem às faixas etárias de 18 a 22 e 38 a 42 anos e os de alta
divergência às idades entre 28 a 32 e 48 a 52 anos. O Gráfico acima
desenha a situação encontrada na tabela 5. A maior variação entre as
duas formas de construção do futuro encontra-se na primeira faixaetária (18 a 22 anos) devido a interferência da gramática periférica
desses falantes. Estes por terem concluído o ensino médio a menor
tempo, que os demais informantes, estariam mais vulneráveis às regras
gramaticais e por isso mais tendenciosos em ainda produzir o FS. Assim,
a competição de gramáticas demonstrada pelos dados estaria diretamente
ligada às questões de interferência da escolarização, tanto que na geração
seguinte, 28 a 32 anos, é quando apresenta-se o maior pico de uso da
forma inovadora do futuro. Esta faixa-etária, mais tempo afastada das
prescrições gramaticais, demonstrou maior uso da FPs. Já a diminuição
do uso do FPs e o aumento do FS, a partir da faixa-etária dos 40 anos,
demonstram um maior conservadorismo dessa geração, privilegiando
formas mais conservadoras e não uso de formas inovadoras para a
construção do futuro. As linhas desse gráfico, portanto, mostram com
clareza a interferência causada pela gramática periférica do falante na
geração mais nova e uma gramática nuclear mais conservadora a partir
dos 40 anos de idade.
Por fim, apurar as porcentagens de uso entre o FP com verbo
ir no presente e o FP com verbo ir no futuro foi colocado como um
objetivo coadjuvante nesta pesquisa, mas interessante, principalmente,
para estimular futuros estudos:
TABELA 6 – Contraste entre o FP com verbo ir no presente e FP com verbo ir no futuro
Tipo de FP
Dados brutos
Percentual de uso (%)
Verbo IR no Presente
372
65,97%
Verbo IR no Futuro
192
34,04%
Total
564
100%
Fonte: Elaborado pelos autores
Quantificar esse contraste tinha vistas a investigar se, dentre as
perífrases, haveria algum tipo de preferência significativa dos informantes
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1341
por uma delas. A tabela acima nos mostra a preferência pelo uso do verbo
“ir” no presente com 65,97% das escolhas dos informantes em relação
à construção do verbo “ir” com uso no futuro. Esse resultado aponta
indícios de uma resistência do falante em não produzir o FS no PB em
qualquer tipo de contexto, inclusive na função de verbo auxiliar em uma
construção perifrástica.
Em suma, os participantes que fizeram parte do estudo elegeram
os FPs como uma forma mais natural para referenciar-se ao futuro quanto
tinham possibilidade ainda de escolherem o FS. Ao adotarem formas
perifrásticas, novamente demostraram inclinações de preferência por
aquelas que excluíam o futuro em sua construção, Irei + V infinitivo,
preferindo a construção do verbo auxiliar no presente: Vou +V infinitivo.
7 Ponderações finais
A partir dos resultados obtidos neste estudo, verifica-se que o uso
do futuro no PB está no caminho da mudança linguística: no lugar de uso
do futuro sintético, vê-se a preferência pelo futuro perifrástico, uma vez
que diante verbos hipotéticos, os informantes demonstraram preferência
pela forma inovadora de futuro. Ressalta-se ainda que nessa pesquisa
considerou-se a gramaticalização do verbo pleno “ir” sob um viés formal
(VITRAL; RAMOS, 2006). Ou seja, considerou-se que há duas formas
para acessar o verbo ir: uma em que ele é tido como um verbo lexical de
movimento e outra em que é um verbo auxiliar na formação do futuro.
Assim, levou-se em consideração que os informantes, diante dos verbos
hipotéticos, estavam acessando uma configuração em que o verbo ir +
V/infinitivo como uma entrada lexical e não como uma possibilidade de
interpretação para esse verbo. Ao analisar e testar informantes nativos
com verbos hipotéticos em um formulário online, o estudo averiguou
que a gramática periférica do falante, nos termos de Kato (2005), se fez
presente, uma vez que ao se deparar com a língua escrita, o informante
acessou seu conhecimento de escolarização, diante do novo (verbos
hipotéticos) em vários momentos, promovendo a produção da forma de
FS na língua nos contextos analisados.
Além disso, diante da iminência de uma mudança, foi possível
observar a influência de algumas variáveis para a realização do futuro
no PB. Para o FS, foi constatado que verbos da primeira conjugação
apresentam um maior número de ocorrências neste contexto, quando
1342
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comparado às outras conjugações. O tamanho do verbo não foi uma
variável que apresentou grandes oscilações mas, de maneira geral,
observou-se que verbos dissílabos apresentaram maior preferência
pelo uso do FS em relação aos trissílabos e polissílabos. No que diz
respeito à idade, informantes adultos acima de 38 anos demonstraram
maior preferência pelo FS que pessoas nas faixas etárias anteriores.
A justificativa para essa preferência estaria no fato de ser parte de
uma geração anterior à geração mais nova do experimento, ou seja,
informantes mais conservadores, consequentemente, com uma intuição
gramatical com variantes menos inovadoras.
Para o futuro perifrástico, além de, quantitativamente, ter sido
possível observar sua preponderância em praticamente todos os contextos,
qualitativamente, averigou-se que, diante do novo (verbos hipotéticos),
os verbos de segunda conjugação impeliram uma maior preferência por
construções perifrásticas. No que tange ao tamanho, de maneira geral,
verbos com três sílabas ou mais mostraram índices maiores que 60% para
a variante inovadora. E o verbo enchovescer-se apresentou 77,42% de
preferência com o uso de locução verbal, o maior índice do estudo. Sobre
a idade, os informantes de 18 a 37 anos preferiram a variedade com FPs.
Ainda em relação à faixa etária, o grupo mais jovem, de 18 a
22 anos, foi um dos que mais apresentou maior instabilidade numérica
no uso das variantes (praticamente 50%/50%). Esse fato reforça nossa
hipótese de que a gramática periférica do informante foi acionada ao
se deparar com verbos hipotéticos, isso porque essa geração seria a
mais vulnerável às regras gramaticais devido ao curto período desde a
finalização do ensino médio desses informantes.
Contribuição dos autores
O presente artigo foi produzido de maneira colaborativa pelos dois
autores: Aline Gravina e Eduardo Brizola. Em relação à metodologia, os
quinze verbos foram pensados, elaborados e conceituados por Brizola que
também ficou responsável pela compilação dos dados. Gravina ajudou
na elaboração do questionário online, além de ficar responsável pelo
preenchimento do formulário na Plataforma Brasil para aprovação no
Comitê de Ética da Universidade Federal da Fronteira Sul. O arcabouço
teórico, a discussão e as análises dos resultados foram realizados em
conjunto com a participação de ambos autores na redação do texto.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019
1343
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Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
Rastros do discurso: poder e interdição na decisão
de um ministro do Supremo Tribunal Federal
Remarks of the speech: power and interdiction in the decision
of a minister of the Supreme Federal Court
Rafael Venancio
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil
venanciorafaelecritor@gmail.com
Resumo: Apesar de comumente se alardear que o discurso jurídico é regido por
uma norma de neutralidade que impede a manifestação de posições ideológicas, nos
flancos das decisões judiciais, onde há, por parte do Estado, maior cuidado para se
garantir a justa distribuição da Justiça a todos os jurisdicionados, por vezes, cifras
de um outro dizer se apresentam no enunciado produzido pelo magistrado. É como
se, imperceptivelmente, o não dito fosse a verdadeira razão para se obrigar alguém a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa, embora o Direito adotado pelo Brasil, enquanto
prática da juridicidade, seja o positivo. É o caso da Suspensão de Liminar 1.178/
PR, peticionada pelo Partido Novo, no ano de 2018 (BRASIL, 2018), cujo relator
foi o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, liminar na qual se proibiu a
entrevista do ex-presidente Lula ao Jornal Folha de São Paulo. Na decisão, o ministro
Fux, argumentando defender o pleito eleitoral de 2018, ordena que Lula se abstenha
de qualquer meio de comunicação que possa divulgar suas palavras, mostrando assim
a face repressora do Estado. Por isso, nossa pesquisa, numa conexão entre a Análise
do Discurso de linha francesa, alinhada aos pressupostos teóricos de Foucault (1996,
2002, 2014, 2015), pretende investigar, no corpus em cena, as marcas ideológicas que
se evidenciam no discurso decisório do magistrado integrante da Suprema Corte do país.
Palavras-chave: discurso; decisão judicial; Lula; censura.
Abstract: Although it is commonly boasted that the legal discourse is governed by a
norm of neutrality that prevents the manifestation of ideological positions, in the flanks
of judicial decisions, where there is, on the part of the State, greater care to guarantee
the fair distribution of Justice to all the jurisdictions, sometimes, ciphers of another say
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1345-1369
1346
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
are presented in the statement produced by the magistrate. It is as if, imperceptibly, the
unspoken is the real reason to force someone to do or not to do something, although the
law adopted by Brazil, as a practice of juridicity, is the positive. This is the case of the
Suspension of Limitation 1,178 / PR (BRAZIL, 2018), petitioned by the New Party, in
the year 2018, whose reporter was Minister Luiz Fux of the Federal Supreme Court, in
which the interview of former President Lula was banned from the newspaper Folha de
São Paulo. In the decision, Minister Fux, arguing to defend the 2018 election, orders
Lula to abstain from any means of communication that could divulge his words, thus
showing the repressive face of the state. Therefore, our research, in a connection between
the analysis of French Speech Discourse, in line with the theoretical assumptions of
Foucault (1996, 2002, 2014, 2015), intends to investigate, in the corpus on the scene,
the ideological marks that are evidenced in discourse of the country’s Supreme Court
magistrate.
Keywords: discourse; judicial decision; Lula; censorship.
Recebido em 20 de março de 2019
Aceito em 03 de maio de 2019
1 Considerações iniciais
As eleições gerais de 2018 foram marcadas pela polarização
política e ideológica em torno da disputa pelo cargo de maior envergadura
da Administração Pública, a saber, o de presidente da República. Mas,
muito antes do início do período eleitoral, os partidos políticos já se
alinhavam para a obtenção de apoio capital, bem como eleitoral para
as campanhas de 2018, como foi o caso do Partido dos Trabalhadores,
doravante PT, que lançara a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à
presidência, apesar do fato de ele ter sido preso desde abril de 2018 por
ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a fim de que cumprisse
a pena de 12 anos e um mês de prisão dada em grau de apelação.
Impossibilitado de sair da prisão, porque cumpria a pena em
regime fechado, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva acordou
juntamente com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) lançar uma
tripla chapa em que a deputada estadual Manuela D`Ávilla figuraria
como provável vice de Fernando Haddad, caso o registro do ex-presidente
viesse a ser cassado pela Justiça Eleitoral, o que, de fato, ocorreu no dia
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01 de setembro de 2018, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu
pela inelegibilidade de Lula com base na Lei da Ficha Limpa.
Desde o momento em que Lula se tornou inelegível, o PT lutava
incessantemente para, ao menos, ter a imagem do ex-presidente como
apoiador de Haddad, visto que, de acordo com os dados das pesquisas
eleitorais feitas pelo Datafolha e pelo IBOPE, antes da cassação do
registro, Lula era tido como o favorito na disputa, aparecendo, sempre,
em primeiro lugar. Mas isso não significou que o substituto na chapa,
Fernando Haddad, crescesse o suficiente a ponto de figurar como favorito
na disputa. Em outras palavras, a transferência de votos esperadas pelo
PT após a cassação de Lula não ocorreu tal qual se acreditou de início.
Nesse sentido, a imagem de Lula era de suma importância, pois, além
de ser creditado como o favorito na disputa pelo cargo, o ex-presidente
tinha como um de seus pontos positivos ter governado o país num
ambiente em que foi possível implementar os principais programas dos
governos petistas, para além do fato de que, normalmente associado à
corrupção pelas coligações rivais, o PT considerava a necessidade de se
tornar simpático ao público eleitor a partir da candidatura de Lula, agora
cassada. Ainda que esperadas, a incomunicabilidade de Lula, bem como
sua cassação no TSE tiravam do PT o que se acreditava ser o seu maior
trunfo para a obtenção do primeiro lugar nas pesquisas de intenção de
voto.
No entanto, as coligações ideologicamente rivais, entre as quais
estava o Partido Novo, entraram com pedido de liminar, no âmbito da
Justiça Eleitoral, para suspender todas as propagandas do PT em que a
imagem de Lula aparecesse, obtendo da Justiça, em praticamente todas
as petições, deferimento em favor da suspensão da menção de Lula como
candidato.
Nesse interim, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo
Lewandowski, acatou Reclamação do Jornal Folha de São Paulo que pedia
autorização para entrevistar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
visto que a 12ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela execução da
pena de Lula, negou o pedido, usurpando, conforme a Folha, precedentes
do próprio Supremo Tribunal. Concordando com os argumentos do
veículo de imprensa, Lewandowski deferiu, de forma monocrática, a
entrevista, entendendo que não caberia à juíza de Execução Penal a não
observância do decidido pelo órgão máximo do Poder Judiciário quanto
à liberdade de imprensa e de expressão.
1348
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
Contudo, no dia 28 de setembro de 2018, às vésperas do 1º
turno das eleições gerais, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz
Fux, emitiu outra decisão, atendendo ao pedido do Partido Novo, para
suspender a entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
se encontrava preso na sede da Polícia Federal do Paraná, ordenando
também ao ex-presidente que “se abstenha de realizar entrevista ou
declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro
veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral.”
(BRASIL, 2018, p. 4). A decisão, conforme argumentado pelo ministro,
visava impedir que as declarações de Lula influenciassem o eleitor quando
da votação que ocorreria no dia 7 de outubro de 2018.
Preliminarmente, vale destacar que a decisão judicial, como a
que se fez menção acima, é parte integrante do discurso jurídico, definida
pelo teórico Bittar (2017) como uma prática textual “capaz de modificar a
situação jurídica de um sujeito, pelo simples fato de sua enunciação [...]”
(p. 288), ou seja, a partir do momento em que é emitida, ela tem autoridade
para, por si só, fazer-se obedecer pelos sujeitos a quem se dirige.1
Não à toa que, nas palavras de Althusser (1980), a Justiça pode
ser considerada um Aparelho Repressor do Estado que tem como função
primeira contribuir para a sujeição dos membros do corpo social à
dominação da classe dominante, a fim de que se perpetue a “reprodução
das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração”
(BRANDÃO, 2004, p. 23). Nesse sentido, é interessante observar o
caráter coercitivo de que ela goza para fazer cumprir as ordens que emana:
quando se manifesta é para determinar aos indivíduos que façam ou
deixem de fazer alguma coisa em virtude de algum dispositivo legal, no
qual se baseia, objetivando endireitar condutas contrárias à lei.2 E, para
se fazer obedecer, a Justiça tem junto a si a força de agentes treinados
para reprimir não só a desobediência, mas qualquer outra manifestação
que não se coadune com as leis positivadas no ordenamento jurídico.
1
No entanto, não é qualquer pessoa que pode emitir uma decisão judicial, pois a
decisão judicial é um ato de fala performático. Exige, portanto, condições de produção
específicas para que se realize. Do contrário, ainda que uma pessoa emita decisão, não
sendo juiz e não se manifestando nos autos de um processo, o ato é nulo.
2
Diz o texto constitucional no art. 5º, inciso II: “Ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
1349
Há que se notar, no entanto, que o aparelho repressor,
cognominado Justiça, é composto de inúmeros membros, cujas funções
são previamente descritas e determinadas por atos normativos que ajudam
tanto na administração do Poder Judiciário quanto na aplicação da lei
a todos os cidadãos. Por isso, é preciso que, desde agora, faça-se saber
que nos referimos especificamente à face julgadora da Justiça, a qual,
na pessoa de um juiz, emite decisões que têm peso de autoridade para
pôr fim ao conflito entre duas partes num processo.
Nesse sentido, a decisão judicial foi escolhida como corpus deste
trabalho por ter como uma de suas características marcantes o mito da
neutralidade de seu enunciador e, portanto, do enunciado. Mesmo que
seja unânime entre os estudiosos do discurso que não há que se falar em
neutralidade no discurso, é interessante que, mesmo assim, os operadores
do Direito continuem a defender uma imparcialidade do discurso jurídico;
essa insistência certamente tem uma razão de ser, a qual não nos é
revelada, e nem é o objeto de estudo desta pesquisa, mas é um campo
fértil para se tecer considerações a partir dos estudos da linguagem.
Desde Benveniste que se enfatiza o caráter subjetivo da língua, ou
seja, a presença de um sujeito que fala e se posiciona no discurso por meio
de estratégias enunciativas que indicam um eu que fala, e, se fala, fala a
alguém. Essa presença poderá ser explícita ou implícita, de modo que,
para se depreendê-la, os pronomes pessoais “constituem o primeiro ponto
de apoio na revelação da subjetividade da linguagem” (BRANDÃO,
2004, p. 56). Com o avanço nos estudos da AD, compreende-se que
o sujeito não é mais unívoco, como defendia Benveniste, mas sim
descentralizado, vivendo em constante dialética com um outro que é tanto
a causa quanto a razão do discurso produzido pelo enunciador, abrindose espaço para se entender que o discurso é uma dispersão de vozes que
o fundamentam e, ao mesmo tempo, explicam a sua própria existência.
Esclareça-se, por fim, que este trabalho discorre sobre alguns dos
conceitos fundamentais da AD francesa, a saber, ideologia, interdiscurso,
formação discursiva e formação ideológica, os quais são manuseados
para evidenciar as marcas da enunciação pelas quais é possível depreender
a ideologia que se presentifica no texto. Ou seja, objetivamos trazer
noções introdutórias que sirvam de suporte para entendermos a linha
argumentativa adotada neste trabalho.
Feitas as considerações preliminares, cumpre dizer que este
artigo tem como objeto de estudo a Suspensão de Liminar 1.178/PR
1350
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
(BRASIL, 2018), a qual já foi mencionada no início deste trabalho, em
que se censurou, de forma prévia, a entrevista que seria concedida à Folha
de São Paulo pelo ex-presidente Lula. Visa-se, por meio do estudo das
marcas da enunciação, depreender os elementos ideológicos e os valores
que recobrem a decisão. Para isso, valemo-nos dos pressupostos teóricos
de Foucault (1996, 2002, 2014, 2015). Por uma questão metodológica,
optamos por dividir este trabalho em três momentos que permitem
entender tanto o objeto quanto a pertinência deste trabalho para a
AD francesa: em um primeiro momento, faremos um breve percurso
histórico da evolução da Justiça, no âmbito da juridicidade, a fim de que
entendamos a procedência da autonomia e do poder coercitivo da Justiça
na esfera estatal; num segundo momento, exporemos as bases teóricas
que norteiam esta pesquisa cientifica, para, num terceiro momento,
debruçarmo-nos sobre o objeto de estudo e efetuarmos uma análise
coerente do corpus em cena.
2 Justiça: da punição à vigilância
Para que entendamos a evolução da Justiça, é preciso unir a
história dela com a da evolução do Estado Moderno e, nesse sentido,
considerar que a função primeira do Estado consiste em garantir a ordem
e a manutenção da paz social, apesar de que, há que se destacar, o Estado
era, primeiramente, imbuído de poder ou o concentrava na figura de um
soberano que encarnava o seu querer. Não à toa, o arbítrio do soberano
era o que caracterizava a relação dele com os seus súditos e motivava
revoltas nos territórios dominados. Maquiavel, em seu livro O Príncipe,
de 1532, bem ilustra, com seus conselhos ao soberano da República
Florentina, Lourenzo II de Médici (1492-1519), a necessidade dele se
sustentar no poder por meio da força e da estratégia.
No entanto, esta relação idealizada por Maquiavel é entendida
por Foucault como frágil e constantemente ameaçada pelo fato de que
o príncipe só recebe o principado “por herança, por aquisição, por
conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior” (FOUCAULT, 2015,
p. 410), de modo que, como dito, o arbítrio era o meio pelo qual o
soberano havia de estabelecer laços com os súditos, com o objetivo claro
de que o “exercício do poder será manter, reforçar e proteger o principado,
entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e territórios, [...]
mas como relação do príncipe com o que ele possui, com o território que
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1351
herdou ou adquiriu e com os súditos” (FOUCAULT, 2015, p. 410). Pelo
que o Estado, muito antes do cristianismo se consolidar como principal
segmento religioso oficial do Ocidente, podia ser compreendido como
a concentração do poder em uma única pessoa, poder que se estendia a
todas as esferas sociais e políticas em que houvesse interesse por parte do
soberano. Não havia que se falar, neste contexto, de direitos dos súditos,
pois tudo o que deviam ao Estado era a mais completa obediência, sendo
comum que a classe que compunha a elite estatal desfrutasse não só
dos privilégios que o dinheiro e o bom nascimento propiciaram, como
também fossem extremamente cruéis em suas punições aos malfeitores
que, de alguma forma, se insurgiam contra o arbítrio dos poderosos,
características marcantes na França, sob a égide do Antigo Regime no
séc. XVII.
Não havia lugar ou esfera social que, literalmente, não fosse
invadida pela competência autoritária do nobre, e, no que tange à punição
de um crime, por exemplo, ainda que o soberano delegasse ao Judiciário
a prerrogativa para julgar e executar o criminoso, ele detinha o poder de
suspender a execução de um condenado à morte:
Só ele como senhor deve decidir se lava as mãos ou as ofensas que
lhe foram feitas; embora tenha conferido aos tribunais o cuidado
de exercer seu poder de justiça, ele não o alienou; conserva-o
integramente para suspender a pena ou fazê-la valer (FOUCAULT,
2014, p. 55).
Era preciso dissociar, então, o poder de julgar das vontades
arbitrárias de um soberano, o qual, de acordo com Foucault (2014),
valia-se dos castigos públicos para afirmar seu poder perante os súditos,
tentando inspirar neles temor para que não se revoltassem contra as
condições de vida em que se encontravam. Ademais, o poder arbitrário
do soberano, tornava a Justiça arbitrária também:
Não são tanto, ou não são só os privilégios da justiça, sua
arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus direitos sem controle
que são criticados; mas antes a mistura entre suas fraquezas e
seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas e sobretudo o
princípio dessa mistura, o superpoder monárquico (FOUCAULT,
2014, p. 80).
1352
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Somente no séc. XVIII, a partir das revoluções francesa e
americana, há a queda do Antigo Regime, e com ele a força do soberano
e de sua nobreza, permitindo o delineamento de direitos que, conforme
Bobbio (2004), se oporão ao Estado e irão buscar garantir a liberdade
individual do homem, bem como seus direitos civis e políticos. Na medida
em que há a positivação do que dantes eram só teorias filosóficas, o poder
Estatal e, em consequência, o do soberano declinam consideravelmente:
“No momento em que essas teorias são acolhidas pela primeira vez por
um legislador [...] e postas na base da concepção de Estado – que não é
mais absoluto e sim limitado” [...] (p. 18), isto é, limitado por um novo
ordenamento jurídico capaz de colocar freios à atuação do Estado em
relação ao homem, bem como dividir suas funções até então concentradas
na pessoa de seu soberano, ao mesmo tempo em que, separando-se e
limitando-se o poder, fosse garantido que este pressuposto haveria de ser
respeitado por aqueles que comandassem o Estado. Nasceram, desse modo,
as primeiras constituições que, na prática, eram os documentos garantidores
de que o poder do soberano havia de ser limitado pelo que, expressamente,
estava positivado.3 No final, as primeiras constituições são, nas palavras
de Comparato (2003), manifestações de rebeldia contra a concentração
absurda de poder tanto do clero quanto da nobreza que exigiam cada vez
mais privilégios em detrimento da vontade do povo ou dos súditos.
Com a ascensão da burguesia, não mais se ligava o poder ao bom
nascimento, caso dos aristocratas, mas sim à condição financeira a que
se podia chegar tendo os meios de produção para isso. Foi dessa forma
que a classe burguesa obteve o apoio da classe mais pobre e conseguiu
derrubar a aristocracia, com seus nobres e privilégios. Sob a aparência
de uma democracia, a classe burguesa consolidou-se, financeira e
ideologicamente, como classe dominante, reformando o Estado conforme
bem lhe aprouve. Foi o caso, por exemplo, de, deliberadamente, não se
resgatar o sentido grego da demokratia, fazendo com que o governo
passasse para mãos de representantes eleitos, numa participação indireta
do povo, a quem cabia escolher os seus representantes.
É importante destacar que, nesta parte introdutória, não ignoramos as afirmações
do constitucionalista Pedro Lenza (2017), no que se refere ao que ele denomina
constitucionalismo, segundo as quais já havia, mesmo na Idade Antiga, um cenário de
eventos que contribuíram para a formação das constituições oficiais, esses eventos vão
desde pactos coloniais até as revoluções que deram fim ao Antigo Regime.
3
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1353
No Brasil, embora tenha havido constituições durante sua história,
somente em 1988 é que, de fato, foi fundado o Estado Democrático de
Direito, pois “A Constituição de 1988 destaca-se como a mais democrática
de nossa história” (MAUÉS; WEYL, 2007, p. 110), visto ter sido feita em
um ambiente de plena liberdade, com ampla participação popular. Com
ela, o Brasil foi reconhecido enquanto o único ente soberano da República
Federativa, extinguindo-se, portanto, a concentração de funções estatais
em única pessoa que, neste país, como em muitos outros, deu forma a
regimes ditatoriais e totalitários.
A Justiça, agora em um regime democrático, ganha a autonomia
que sempre desejou: seus membros possuem vitaliciedade e não estão
mais sujeitos aos caprichos de um monarca. É o caso dos juízes a quem
o Estado delegou o poder de decidir para dirimir conflitos que possam
existir entre os cidadãos quanto a um direito em disputa. Em outras
palavras, o juiz representa o próprio Estado que se põe entre dois sujeitos
para por fim a uma querela e (re)estabelecer o equilíbrio. Por conta
disso, quando aplica a linguagem no ato da decisão judicial, o Estado
exige que ela seja expressa com a mais total e completa neutralidade,
ou seja, o Estado manda que não haja qualquer ideologia que sirva de
embasamento à decidibilidade, promovendo-se, assim, uma espécie de
“[...] ocultamento ideológico que forja a ideia de que a linguagem é neutra
e produzida num vácuo social” (COLARES, 2014, p. 123).4
Consenso é, entre os estudiosos do discurso, que não há
neutralidade no discurso: todo discurso é marcado pelas ideologias, já
que, diz-nos Mainguenau (2015), o discurso é contextualizado, ou seja,
é preciso depreender o contexto particular de produção para depreenderse o sentido, ainda que o mesmo não seja determinável. Nessa ideia,
compreende-se a necessidade da análise do discurso no campo dos
estudos da linguagem: enquanto teoria, a AD é um instrumento capaz de
por em evidência aspectos outros que, como bem visto acima, tendem a
ser ignorados pelos operadores do Direito e os demais participantes da
relação jurídica, ao mesmo tempo em que permite a compreensão de fatos
da língua que não encontrariam explicação a partir de outras análises
das ciências da linguagem. É que o discurso está intrinsecamente ligado
aos condicionantes de sua própria produção e à ideologia de seu tempo.
4
Ou, pelo menos, tentando promover visto que não há discurso sem ideologia.
1354
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Torna-se imprescindível, portanto, uma teoria que explique estas
condições de produção, bem como as marcas ideológicas que permeiam os
textos que nos chegam e circulam no cotidiano, a fim de que entendamos
os sentidos deles e os seus propósitos. A AD demonstra, dessa forma, que
um texto é muito mais do que aparenta ou deseja aparentar. Por isso, na
próxima seção, discorreremos sobre os conceitos-chaves da AD francesa,
base teórica deste trabalho, para que possamos entender por que meios
e métodos podemos depreender as marcas da enunciação que delatam
as ideologias que ora se escondem (ainda que isso não signifique que as
marcas não estejam lá), ora se deixam entrever nas camadas da decisão
judicial, objeto de estudo desta pesquisa.
3 Análise do Discurso: ideologia, formação discursiva e formação
ideológica
A Análise do Discurso francesa é uma corrente de estudos
linguísticos, iniciada em 1960, que, em deferência ao estruturalismo
saussuriano, toma a fala e o contexto de produção como objetos de estudo.
No contexto de grande efervescência política, a AD francesa avoca para
si o discurso político como seu objeto de estudo. Mas logo, a partir de seu
caráter interdisciplinar, agrega para seu campo de estudos outros discursos,
adotando premissas teóricas que a tornaram uma teoria autônoma.
É o caso de, na construção de seus pressupostos teóricos, a AD
francesa alinhar-se às contribuições de Foucault (1996) referentes ao
discurso, na medida em que o filósofo francês toma o discurso “[...]
como uma dispersão, ou seja, como sendo formados por elementos
que não estão ligados por nenhum princípio de unidade” (BRANDÃO,
2004, p. 32). Abre-se espaço para pensar-se em algo que, do ponto de
vista constitucional, explique a heterogeneidade discursiva: ao analista
do discurso é dada a chance de descobrir as regras que estão presentes
nessa dispersão, e, a esse respeito, continua Brandão:
Tais regras, chamadas por Foucault de “regras de formação”,
possibilitariam a determinação dos elementos que compõem
o discurso, a saber: os objetos que aparecem coexistem e se
transformam num “espaço comum” discursivos [...], relacionados
em um sistema comum; os temas e teorias, isto é, o sistema de
relações entre diversas estratégias capazes de dar conta de uma
formação discursiva, permitindo ou excluindo certos temas e
teorias (2004, p. 32, grifos da autora).
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1355
Temos, portanto, regras que delimitam o que deve ou não deve
ser dito no interior do discurso: uma formação discursiva, conceito
foucaultiano, em que a ideologia encontra concretude, o que não significa
dizer que uma mesma formação ideológica não possa se manifestar em
diferentes formações discursivas. Destaca-se, no entanto, que determinadas
formações discursivas depreendem uma certa formação ideológica, visto
que “os discursos são governados por formações ideológicas” (BRANDÃO,
2004, p. 47), e é no discurso que a ideologia se concretiza enquanto práxis.
Nesse sentido, Foucault (1996) defende a tese de que “o discurso está na
ordem das leis” (p. 7), isto é, sua produção é controlada e selecionada pela
sociedade a fim de desviar-se do que pode haver de mais temível e pesado
na materialidade do dizer, para usar as palavras de Foucault.
Para além das questões ideológicas, a AD francesa também
evidenciou a presença de um eu que fala, ou seja, de um sujeito que
se coloca no discurso como seu enunciador. Esse sujeito ora tenta se
ocultar nas tessituras do texto, sob a roupagem de uma impessoalidade,
ora se deixa entrever como aquele que enuncia (BRANDÃO, 2004).
Considera-se que esse sujeito não é um ser uno, ou centralizado, mas
que está em constante interação com o Outro, ou seja, que não só fala a
um Outro que, do ponto de vista lacaniano, antecedeu-o, mas também é
atravessado pelo discurso desse Outro.
Nesse sentido, o discurso jurídico é um clássico exemplo do que
acabamos de afirmar: não importa se o discurso jurídico deva ser neutro,
como o quer o Estado. Há que se considerar que existe um sujeito que fala
e que esse sujeito é atravessado pelo discurso do Outro que o antecedeu e
que continua a existir depois dele, formando a ideologia, dando sentidos
ao discurso ora utilizado para Vigiar os indivíduos e Punir os malfeitores.
Orlandi (2002) diz que todo dizer é ideologicamente marcado.
Se isso é verdade, haverá rastros de ideologia no discurso, como se o
próprio discurso fizesse uma espécie de delação da enunciação do qual
é resultado. Fala-se tanto de ideologia neste trabalho, mas ainda não
dissemos o que, do ponto de vista concreto, pode ser entendida enquanto
tal. Para Orlandi,
Ideologia não se define como o conjunto de representações, nem
muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática
significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente
– ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história
em sua relação necessária, para que se signifique (1998, p. 48).
1356
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Vê-se que o conceito de ideologia, proposto por Orlandi, assume
um caráter interdisciplinar na medida em que é possível vislumbrar as
contribuições marxistas, altusserianas e ricouerianas, ou seja, ideologia
enquanto abstração da realidade, em Marx; mecanismo de controle
e de ação do sujeito, em Althusser e mediadora da ação social, em
Ricouer, mas, ao mesmo tempo em que a autora adota as contribuições
mencionadas, demonstra até que ponto é possível utilizá-las.
Rejeita-se, por exemplo, a ideia determinista de Marx de que a
ideologia nada mais é do que a pura abstração da realidade, usada pela
classe dominante para controlar a classe trabalhadora; a ideologia não
é, tão-somente, a representação da realidade manipulada, mas é uma
prática exercida por um sujeito que se situa no espaço e no tempo. Além
disso, a ideologia está ligada ao sujeito, porque é efeito da relação dele
com a língua e com a história. Portanto, ideologia e sujeito são dois
seres indissociáveis do ponto de vista da AD. Daí termos escolhidoa AD
francesa como suporte teórico de nosso trabalho, já que, nas palavras de
Gomes (2013), a Análise do Discurso, da escola francesa, trabalha “a
relação sujeito, ideologia e situação social e histórica” (p. 45). Não se
quer dizer com isso que a AD francesa esteja interessada só na história
ou que entende que somente através da história se poderá considerar o
discurso, mas o que se está afirmando é que a AD francesa não dissocia
o sujeito que fala do lugar e do tempo em que fala.
Desse modo, a AD francesa deixa que se entrevejam as ideologias
que estão no discurso, e que dinamizam e determinam a práxis discursiva,
estabelecendo, com o contexto sócio-histórico de produção uma relação
de sentido ou, melhor dizendo, de construção de sentido, porque ela, a
ideologia, é ferramenta necessária à interpretação do discurso.
É com essa ideia que, neste trabalho, pretendemos empreender
uma análise do discurso decisório, isto é, entendemos que o sentido de
um discurso é algo construído e que pode ser depreendido a partir de uma
visão das condições de produção que se apresentam no ato de enunciá-lo.
O discurso jurídico não foge à regra, mesmo porque, se considerarmos
que no ato decidir existe um eu que fala, também consideraremos que esse
sujeito é atravessado por outros dizeres que o motivam a adotar, como
práxis discursiva, determinadas concepções de mundo e de sociedade para
dizer do direito e determinar o que os demais devem e/ou não devem fazer.
Nesse sentido, pelas vias judiciárias, é justo dizer que, em sua
prática ideológica/discursiva, o Estado se coloca como o regulador do
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que deve ser dito pelo povo, bem como nas relações entre particulares,
sempre pronto a punir todo aquele que violar as regras do bom dizer. Não
estamos, com isso, dizendo que o Estado impõe censura às múltiplas
ideologias que se encontram no território, apesar de que a censura é
uma das muitas formas que o Estado possui de impor a ideologia que o
governa e proibir outras que o questionem. Afirmamos, sim, que todos os
membros do corpo social estão cientes do que podem dizer para o outro.5
Na verdade, o Estado avoca para si o direito e o dever de declarar o que
deve ser dito e quando deve ser dito, e, contra o seu poder – manifestado
nas decisões judiciais –, não há a quem recorrer.
Estas considerações nos levam ao caso em apreço, objeto desta
pesquisa, onde se verifica claramente o Poder Estatal avocando para si o
direito e o dever de proibir a entrevista do ex-presidente Lula que seria
concedida à Folha de S. Paulo: em linhas gerais, havia a necessidade,
conforme o ministro Fux, de impedir que o ex-presidente falasse. Mais
ainda: era preciso cassar a decisão de um par que, antes, havia dado
autorização para que a entrevista se realizasse.
4 Decisão judicial: censura e poder
Cabe esclarecer alguns termos próprios do discurso jurídico,
que se encontram no corpus em apreço. Comecemos por entender que
liminar, instrumento utilizado para proibir a entrevista do ex-presidente
Lula, “é aquilo que se situa no início, na porta, no limiar [...] no momento
em que se instaura o processo” (FABRICIO, 1996, s/p), ou seja, é uma
espécie de garantia de que o direito a ser demandado pelas partes será
preservado de qualquer prejuízo antes da conclusão do processo. Nesse
sentido, não é preciso haver manifestação do demandado, basta que
o juiz se convença de que a demora do socorro do Estado, pelas vias
processuais, pode acarretar dano irreparável ao demandante.6
5
Os crimes de honra, previstos nos arts. 138, 139 e 140, do Código Penal Brasileiro,
são um claro exemplo disso: não se deve dizer tudo o que se pensa sobre o outro. Do
contrário, o Estado, se provocado, poderá impor uma sanção ao ofensor como uma
forma de reparar os danos causados ao ofendido.
6
No caso em tela, verifica-se que o Partido Novo ajuizou ação para suspender a decisão
que havia sido tomada pelo ministro Ricardo Lewandowski, que autorizara a entrevista
do ex-presidente Lula ao jornal Folha de S. Paulo. Desde já notamos um movimento
1358
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As liberdades fundamentam a República e o Estado Democrático
e, não é por outra razão, que são o pilar central que sustenta as
propostas do Partido NOVO, ora requerente. Sustenta-se, de outro
lado e na mesma medida, que liberdade não se desvincula de
responsabilidade. E a liberdade de imprensa encontra dimensão de
igual importância na liberdade do voto, formada pela vontade do
eleitor. Não se pretende com a presente ação impor qualquer tipo
de censura. Muito longe disso, o que se pretende é que a entrevista
não seja realizada antes das eleições (SILVEIRA et al, 2018, p. 2)
O que se põe em questão na peça inicial do pedido, formulado
pelo Partido Novo (PN), é que há um direito que pode ser violado, se a
entrevista for mantida (a saber, a igualdade dos postulantes na disputa
pelos cargos eletivos) e, não menos importante, haverá descumprimentos
das ordens exaradas pela Justiça Eleitoral, quanto à proibição de o expresidente não praticar atos de campanha. O que se pode inferir é que,
para o Partido Novo, a disputa eleitoral deve estar acima de qualquer outra
liberdade individual, e, por esse argumento, as liberdades fundamentais,
consagradas pela Carta Magna, não só podem como devem ser cassadas.
Nesse sentido, fica subentendido que a omissão do Estado diante
dos fatos produzirá a irresponsabilidade dos jurisdicionados e, mais
especificamente, do próprio eleitor: por movimento projetivo, o PN
argumenta que “o eleitor se confunde com a complexidade do sistema e
com a insistência dos próprios candidatos em deixar a informação opaca
pelo maior tempo possível” (SILVEIRA et al, 2018, p. 3), ou seja, não se
pode confiar no discernimento do eleitor, não quando um político é capaz
de manipular seus desejos e inverter o jogo eleitoral. Pode-se mesmo
dizer que, considerando-se a importância do ex-presidente Lula, o que
se teme é que as suas palavras, antes das eleições, criem desvantagens,
pois seus adversários não gozam de um espaço de maior identificação
junto ao eleitorado. Daí o que se pode dizer é que a tal desvantagem é
algo que se fez sócio-historicamente.7
estratégico: ministros do Supremo Tribunal são autoridades máximas da Justiça no
Brasil, razão pela qual recorrer ao ministro que deferiu a entrevista não seria inteligente.
7
O que o PN põe em cena, na petição inicial, são os temores de uma eventual derrota
em virtude desta entrevista. Cabe indagar: o que Lula poderia dizer, dentre tudo o que
já disse, que seria tão lesivo ao pleito e ao eleitor? O PN argumenta que ele, Lula, não
é obediente, porque, mesmo preso, insistiu em ser candidato. Nesse sentido, vê-se que
aquilo que poderia ser algo até certo ponto normal, do ponto de vista jurídico (como
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1359
Caberá, portanto, ao Poder Judiciário decidir sobre a veracidade
dos fatos narrados. É, em síntese, a primeira coisa que se busca no âmbito
do discurso jurídico: a verdade dos fatos, e esta deve ser construída
sobre as bases sólidas da lei em vigor em conjunto com uma narrativa
que demonstre a ameaça ao direito positivado no ordenamento jurídico.
A busca pela verdade se reveste de elaborações argumentativas que
objetivam persuadir o outro do que se diz e, em nosso caso, do que se
decide: não pode o juiz decidir alguma coisa sem que demonstre, na lei
e em outros decididos, que o que ele diz é a verdade.
Na decisão, o ministro Fux encontra um primeiro obstáculo: outra
decisão já havia sido proferida pelo seu par, o ministro Lewandowski,
decisão essa em favor do jornal Folha de S. Paulo para a concessão
da entrevista; nesse julgado, o colega, monocraticamente, entendeu
que o impedimento da entrevista, perpetrado pela 12ª Vara Federal
de Curitiba, afrontava a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
que, na ADPF130/DF, derrubou a censura prévia. A estratégia de Fux é
descontruir o discurso do outro, e, para que possa fazer isso, é preciso
concatenar as ideias, considerando o entendimento do outro, ainda que
não concorde.
O relator, monocraticamente, julgou procedente a Reclamação
para cassar a decisão reclamada e determinar “seja franqueado ao
reclamante e à equipe técnica, acompanhada dos equipamentos
necessários à captação de áudio, vídeo e fotojornalismo, o
acesso ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a fim de que
possa entrevistá-lo, caso seja de seu interesse”. O decisum ora
vergastado se amparou no princípio constitucional que garante ”a
‘plena’ liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva
dequalquer tipo de censura prévia”. Argumentou-se, ainda, que o
ato do juízoda execução equivale a “censurar a imprensa e negar
ao preso o direito decontato com o mundo exterior”. (BRASIL,
2018, p. 2, grifos do autor)
A decisão do ministro Fux é um interdiscurso, ou seja, foi
construída a partir de outro discurso que o antecedeu, gerando uma
entrar com recursos junto à Justiça, por exemplo), torna-se argumento para demonstrar
a indocilidade do apenado, além de evidenciar que o PT também assume este mesmo
comportamento indócil, na medida em que quis lutar judicialmente pela candidatura
de Lula.
1360
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polêmica discursiva em torno da entrevista do ex-presidente Lula, quando
consideramos que a decisão proferida pelo ministro Lewandowski
constitui uma espécie de discurso primeiro, o qual o ministro Fux, por
sua vez, se preocupa em refutar.8 Além do mais, é possível perceber a
heterogeneidade mostrada9 do discurso do ministro Fux, pelas claras
citações diretas que ele evidencia, quando faz menção ao que foi decidido
pelo colega. Vê-se, por exemplo, que Fux cita diretamente aquilo com
que não concorda e grifa para não só ser fiel ao pensamento do outro,
mas também para demarcar a sua posição contrária aos argumentos que
busca combater.
Nessa ideia, Maingueneau (2008) nos diz que: “O discurso
primeiro não permite a constituição de discursos segundos sem ser por
eles ameaçados em seus próprios fundamentos (p. 39).” Temos uma
heterogeneidade tanto mostrada quanto constitutiva ou, nas palavras
do teórico, um interdiscurso, que serve de suporte para a construção
da decibilidade em análise. Fux dialoga diretamente com a decisão de
Lewandowski e se propõe a refutá-la, após haver reproduzido, no que lhe
interessava, parte daquilo que não concordava e que desejava desfazer.
Entretanto, a interpretação conferida ao conteúdo do julgamento
desta Corte nos autos da ADPF n.º 130 exorbita de seus termos
e expande a liberdade de imprensa a um patamar absoluto
incompatível com a multiplicidade de vetores fundamentais
estabelecidos na Constituição (BRASIL, 2018, p. 2-3).
É interessante observar que o ministro Fux não aponta em que
ponto, claramente, a decisão de seu colega exorbitou o que havia decidido
o Supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento da ADPF n.º 130:
se houve termos que foram ultrapassados, eles não são mencionados, ao
menos não explicitamente, pelo que se conclui que Fux está, na verdade,
concordando com os argumentos apresentados pelo Partido Novo: no
caso em tela, não se pode conceder a liberdade de imprensa à Folha,
8
Não podemos nos esquecer de destacar que a petição do partido que deu início ao
processo judicial é parte integrante do evento discursivo em análise.
9
Conforme Maingueneau (2008, p. 31), a heterogeneidade mostrada consiste em
marcas enunciativas acessíveis “aos aparelhos linguísticos, na medida em que apreender
sequências delimitadas mostram claramente sua alteridade (discurso citado, autocorreções (sic), palavras entre aspas etc...)”.
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1361
nem mesmo dar à ADPF n.º130 o sentido que o ministro Lewandowski
lhe havia conferido.
Por essa razão, para que consiga o que deseja, Fux se arvora numa
posição superior: enquanto Presidente em Exercício do Tribunal, avoca
para si o dever e o poder de questionar a decisão de um colega. Perceba-se
que, não apontando textualmente onde houve exagero de Lewandowski,
Fux confere ao vazio de uma citação sua própria interpretação do decidido
na ADPF n.º 130 e aceita como verdade os argumentos do Partido Novo,
agora tidos como seus.
Na verdade, como Foucault (2002) explica, o discurso jurídico
se coloca como o discurso da verdade, mas como existem conflitos
quanto à verdade (já que a verdade precisa ser interpretada enquanto
tal), cada sujeito expressará a verdade que encontra fundamento na
Formação Discursiva e no interdiscurso que permeia tal FD. A verdade,
portanto, não é una, nem pertencente a um sujeito, mas o Estado deseja
ser aquele que não só busca a verdade como decide se há verdade. Nesse
sentido, para tentar uma verdade, o ministro Fux se coloca em posição
maior que a do outro, para contestá-lo e refutá-lo, enquanto detentor da
verdade: o outro, argumenta, interpretou mal o texto, o outro ultrapassou
os seus limites, razão pela qual é preciso corrigir o erro e restabelecer
o sentido do entendimento para o caso concreto, ainda que, como dito,
essa ultrapassagem não tenha sido textualmente demonstrada. Nessa
linha de desconstrução, Fux argumenta:
Sabe-se que o “mercado livre de ideias”, primeiramente referido
por Oliver Wendell Holmes Jr. no caso Abrams v. United States,
julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1919, possui
falhas tão deletérias ao bem-estar social quanto um mercado
totalmente livre de circulação de bens e serviços (BRASIL, 2018,
p. 3, grifo nosso).
Na concepção de Fux, ideias são perigosas e, por isso mesmo,
devem ser reguladas pelo Estado: “Sabe-se bem que não se tem o direito
de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância,
que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa” (FOUCAULT,
1996, p. 7), e é o Estado que, no caso em análise, coloca-se na posição
de dizer quando, como e de que forma deve ser dito alguma coisa por
parte do ex-presidente Lula.
1362
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
Além disso, Fux pressupõe que, em sendo Lula um político, há
de mentir ou desinformar o eleitor, em máxima concordância com os
temores que o Partido Novo demonstrou na petição inicial. Novamente,
é por causa do outro que esse texto é feito, o que significa que há uma
imagem do outro que já existe na mente do sujeito: políticos mentem,
políticos condenados mentem; políticos condenados, que são amados
pelo povo, mentem, se tiverem a oportunidade:
A regulação da livre expressão de ideias é particularmente
importante no período que antecede o pleito eleitoral, porquanto
o resguardo do eleitor em face de informações falsas ou
imprecisas protege o bom funcionamento da democracia
[...], a igualdade de chances, a moralidade, a normalidade e a
legitimidade das eleições [...] (BRASIL, 2018, p. 4, grifo nosso).10
Fux, dessa forma, deixa implícita a ideia pré-concebida,
ideologicamente construída, de que Lula não é de confiança. E, quanto
ao eleitor, não se pode confiar em seu discernimento, mesmo que, ao
fim e ao cabo, a decisão seja do eleitor. É destacado o quão prejudicial à
capacidade cognitiva do votante poderão ser as palavras de Lula: “Isso
porque a desinformação do eleitor compromete a capacidade de um
sistema democrático para escolher mandatários políticos de qualidade”
(BRASIL, 2018, p. 3, grifo nosso). É interessante notar o que a locução
adjetiva grifada indica: desinformação acarreta escolhas desqualificadas.
Para Fux, há, efetivamente, políticos qualificados. Estes são os
que não mentem, o que não é o caso de Lula, nem mesmo de seu partido. É
preciso deixar claro que Lula não era mais candidato, ou seja, quem estava
como cabeça da chapa era Fernando Haddad, mas, na concepção de Fux, a
entrevista de Lula só poderia beneficiar a coligação O Povo Feliz de Novo,
do PT, dando certa vantagem ao presidenciável Haddad, e, na verdade,
era esse o temor do Partido Novo manifestado na petição inicial: “É nesse
10
A presença do outro é fundamental para a construção do discurso, mesmo que
ele não esteja presente porque “Qualquer enunciação supõe a presença de outra
instância de enunciação, em relação à qual alguém constrói seu próprio discurso”
(MAINGUENEAU, 2015, p. 26). Vale dizer que o discurso decisório em análise
demonstra se constituir em virtude de vários outros discursos que, mesmo sem que se
mostre enquanto heterogeneidade mostrada, atravessam-no e lhe dão sentido, ou seja,
para além do que os dispositivos legais dizem e da visível impessoalidade há um sujeito
que fala, ainda que mascarado.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
1363
sentido que se faz necessária a relativização excepcional da liberdade
de imprensa, a fim de que se garanta um ambiente informacional isento
para o exercício consciente do direito de voto.” (BRASIL, 2018, p. 3).
O eleitor, novamente, é posto em uma posição de um sujeito claramente
pronto a errar em caso de ser exposto a um ambiente informacional que
não goze de máxima isenção.
O ex-presidente, por sua vez, é tido como um mentiroso contumaz
(os substantivos e adjetivos estão no plural): fica implícito no trecho acima
que Lula há de mentir, bem como só será capaz de mentir, se não o fizer
por informações falsas, com certeza o fará por informações imprecisas.
Tais crenças implícitas no texto decisório do ministro Fux só podem ser
entendidas quando, junto a Foucault (2014), compreendemos o conceito
de periculosidade: de acordo com o filósofo francês, os burgueses
criaram-no para designar os atos e/ou atitudes que um criminoso poderia
fazer em face da sociedade, ou seja, era uma espécie de juízo de valor que
se fazia a respeito daqueles que tinham, por alguma razão, adentrado o
sistema prisional: caso o juiz não acreditasse na regeneração do apenado
e, pelo contrário, fosse convencido de que ele poderia reincidir na vida
criminosa, negava-lhe a liberdade. A crença da periculosidade demonstra
muito mais do que a simples desconfiança da Justiça em relação aos seus
custodiados. Ela foi a razão para se privar alguém de sua liberdade por
tempo indeterminado.
É por meio da implicitude que Fux deixa entrever sua ideologia,
sócio-historicamente construída, e a implicitude é um modo de operação
da ideologia, transmitindo significados que, se manifestos claramente,
soariam preconceituosos. No caso, a polidez da linguagem é uma forma
de a) garantir a neutralidade que o Estado requer de seus operadores
e b) velar a ideologia que embasa e permeia a decisão do magistrado
(COLARES, 2014).
E, para embasar sua crença ideológica, Fux enumera várias
liminares que foram emitidas pelo Tribunal Superior Eleitoral para
impedir a aparição do apenado nas propagandas de rádio e televisão,
mesmo que os descumprimentos não tenham partido do próprio Lula,
mas sim da coligação da qual fazia parte:
Todavia, a determinação foi reiteradamente descumprida, sendo
que a Corte Superior Eleitoral deferiu cinco liminares para a
suspensão de propagandas contendo referências ao requerido [...]
Dessa maneira, resta evidente a recalcitrância deste na observância
1364
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
da decisão judicial que lhe vedou a prática de atos de campanha,
configurando-se o periculum in mora pelo fato de que a pretendida
entrevista encerraria confusão no eleitorado, sugerindo que o
requerido estivesse se apresentando como candidato ou praticando
atos que lhe foram interditados. (BRASIL, 2018, p. 4, grifo do
autor).
Não à toa a expressão latina periculum in mora (em tradução
livre para o português quer dizer “perigo da demora”) é utilizada por
Fux, pois indica o desejo de se derrubar a decisão de seu colega, bem
como, com base na recalcitrância do apenado, tornar urgente a proibição
da perigosa fala. O próprio Fux já diz o que, em tese, poderia ser dito por
Lula, em caso de ser entrevistado: ele iria sugerir ao eleitor que estava
se apresentando como candidato e, mesmo preso, estava praticando atos
“que lhe foram interditados”.
Era preciso, portanto, que se prevenisse a ação perigosa do
apenado, impondo a ele, para além da privação de liberdade, a proibição
de toda e qualquer forma de comunicação ao público em geral, por
qualquer meio que fosse:
[...] determino que o requerido Luiz Inácio Lula da Silva se
abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio
de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à
transmissão de informação para o público em geral. Determino,
ainda, caso qualquer entrevista ou declaração já tenha sido
realizada por parte do aludido requerido, a proibição da divulgação
do seu conteúdo por qualquer forma, sob pena da configuração de
crime de desobediência [...] (BRASIL, 2018, p. 4)
Não é preciso dizer que, para os efeitos pretendidos, bastava
que o magistrado enunciasse a suspensão da liminar anterior, mas Fux
buscou ser o mais enfático possível, quando, para além da suspensão,
determinou que Lula se abstivesse de qualquer meio de comunicação
destinado à informação do público em geral. Com isso o ministro deixa
transparecer o próprio desejo de fazer cumprir o dever de proibir o
apenado de se manifestar, bem como põe em cena a sua crença de que,
sem sombra de dúvidas, o desejo de Lula era, sim, de ser entrevistado,
para, como descrito acima, desinformar o eleitor. Além disso, também
proíbe, em segundo plano, que, na possibilidade de uma entrevista já ter
sido feita, sua vinculação seja vetada.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
1365
Fux, sobretudo, não quer ser contrariado e, por isso, também na
hipótese de Lula se insurgir ou, em segundo plano, a Folha de S. Paulo
o fazer, ambos terão como pena a configuração de sua conduta como
crime de desobediência nos termos da lei, não deixando qualquer margem
de dúvida sobre qual é a sua vontade, enquanto ministro do Supremo
Tribunal Federal.
Resta configurada a interdição do discurso por parte do Estado,
e o mais curioso é que, no ato de mandar, o eu aparece e se põe como
o enunciador do discurso: “[Eu] determino que o requerido Luiz Inácio
Lula da Silva se abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer
meio de comunicação [...]”. Brandão (2004) explica que esse fenômeno de
marcação ou não do eu no discurso tem a ver com a intenção do locutor
quando da produção do discurso:
Os discursos que utilizam formas indeterminadas, impessoais
como o discurso científico, por exemplo, [...] mostram uma
enunciação que mascara sempre um sujeito. Isto é, nesses tipos
de enunciação, o sujeito enuncia de outro lugar, postando-se
numa outra perspectiva, seja da impessoalidade em busca de
objetivação dos fatos ou de um apagamento da responsabilidade
pela enunciação [...] (p. 58)
Nesse sentido, Fux, no início de sua decisão, procurava garantir
a maior objetivação possível, tanto ao narrar os fatos quanto ao expor
as razões que o levavam a suspender a decisão de seu colega e proibir
Lula de ser entrevistado pela Folha de S. Paulo. Mascarava, em outras
palavras, a subjetividade da qual seu texto é sintoma e tentava não
imprimir à sua própria decisão concepções pré-construídas a respeito
do ex-presidente Lula, bem como de seu partido. No entanto, no ato de
decidir o que devia ser feito, o eu se pôs em cena para determinar quais
as condutas os envolvidos seriam obrigados a adotar desde o momento
em que tomassem conhecimento do teor da decisão. O eu, na condição
de autoridade suprema, já que é o Presidente em Exercício do Supremo
Tribunal Federal, diz qual é o seu desejo e não vê mais a necessidade de
se distanciar dos fatos.
É interessante observar que, na petição, requer-se que a Folha
de S. Paulo se abstenha de entrevistar o ex-presidente, e, na decisão de
Lewandowski, condiciona-se a entrevista à vontade de Lula, mas, para
Fux, a vontade e o desejo de Lula se manifestam na própria Folha de S.
1366
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019
Paulo. Não é, portanto, a Folha que está sendo combatida ou proibida,
mas o próprio Lula que, mesmo sem ter se manifestado, haveria de querer,
conforme suposto pelo ministro Fux. Dessa forma, interditam-se não só
a entrevista, mas também o desejo de ser entrevistado.
5 Considerações finais
A decisão judicial que levou a censura da entrevista do expresidente Lula, imposta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal,
Luiz Fux, foi o objeto de estudo deste trabalho. Buscamos, a partir
dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa,
evidenciar cifras ideológicas que fundamentaram e motivaram a decisão
do magistrado, com esta ideia nos propomos a destrinchar o texto jurídico
a fim de identificar os sinais da enunciação que se escondem por trás da
linguagem culta padrão da decisão judicial.
Percebemos que, ao considerarmos os aspectos sócio-históricos da
evolução do Estado Moderno, a Justiça alcançou autonomia para decidir
sobre as condutas dos cidadãos, sem ser importunada pela intervenção do
soberano, figura presente no Antigo Regime. Esta autonomia, no entanto,
se dá através de leis positivadas que, em tese, inibem a arbitrariedade
por parte dos juízes. Na verdade, o Estado, enquanto invenção da classe
burguesa, cria leis que protegem a propriedade privada e mantêm o status
político-ideológico das classes dominantes sobre as dominadas, não à toa
que Althusser coloca o Judiciário na esfera dos Aparelhos Repressores
do Estado.
Visando à manutenção da ordem e do controle e gozando de poder
coercitivo capaz de obrigar alguém a fazer ou a deixar de fazer alguma
coisa, o Estado se reveste de uma capa de neutralidade, exigindo que os
seus representantes também façam o mesmo quando estiverem valendose da linguagem, como se não se pudesse cogitar uma ideologia que
subjaz às palavras postas na decisão. Ocorre que, segundo os estudiosos
do discurso, não é possível dizer que um discurso é neutro, pois sempre
estará marcado pelas condições de produção de seu tempo.
Nessa ideia, empreendemos uma análise que buscou as formações
ideológicas que se faziam presentes na decisão do caso em tela. Para isso,
definimos alguns termos da Análise do Discurso de linha francesa, os
quais foram efetivamente selecionados e trabalhados na evolução deste
trabalho. De posse dos instrumentos necessários à realização de nosso
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1367
objetivo, fizemos uma análise de trechos da decisão para, como dito,
evidenciar os rastros de ideologia que estavam presentes nas tessituras do
texto: encontramos, de início, um eu que tentava se distanciar ao máximo
do fato, mas que, o tempo todo, deixava transparecer seus medos e suas
projeções quanto a um outro a quem combatia constantemente.
Dessa forma, o ministro Fux se arvorou em uma posição que
poderia lhe dar legitimidade e segurança para dizer do direito, ou
seja, falar a verdade que ora foi, na sua concepção, mal interpretada
pelo seu colega, ora era violada pelo desejo do ex-presidente Lula
de ser entrevistado. Fux, por isso, não só interditou o discurso, como
também a vontade do outro (Lula) de falar a alguém, deixando mais
do que evidente o caráter preventivo de sua decisão: em pleno período
eleitoral, as palavras de Lula poderiam disseminar no eleitor sentimentos
perturbadores que comprometeriam a disputa, ainda que, como frisamos
ao longo da análise, nem tenha sido Lula quem havia solicitado a
entrevista, nem houvesse se manifestado a respeito do fato. Consideramos
que o teor da decisão tinha como ponto fulcral a desconstrução do outro,
bem como enfatizar a sua periculosidade discursiva. Assim, sem dizer,
mas deixando implícito, a Suspensão de Liminar fundamentava-se em
ideias previamente estabelecidas de um direito de se prevenir a ação
delinquente do apenado.
A decisão analisada, portanto, enquanto discurso, acaba por
colocar em cena a ideia preventiva de ação do Poder Público quanto ao
que deve e não deve ser dito pelos sujeitos, provando que, conforme
Foucault (1996), todo discurso é regido por leis, leis implícitas ou
explícitas que dizem quando, como e de que maneira deve ser dita alguma
coisa por alguém.
Referências
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Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980.
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www.conjur.com.br/2018-set-28/fux-concede-liminar-suspendendoentrevista-lula. Acesso em: 28 set. 2018.
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Brasília: 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/liminarpartido-seja-suspensa.pdf. Acesso em: 28 set. 2018.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
Análise de verbalizações de fórmulas matemáticas
por professores com experiência no ensino de pessoas
com deficiência visual
Analysis of mathematical formulas verbalizations by teachers
with experience in teaching visually impaired people
Mirella Alves de Lima
Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil
mialima5972@gmail.com
Daniela Rodrigues
Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil
danielachiyo@gmail.com
Patrícia Vasconcelos Almeida
Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil
almeidaufla@gmail.com
Paula Christina Figueira Cardoso
Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil
paula.cardoso@ufla.br
André Pimenta Freire
Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil
apfreire@ufla.br
Resumo: Um dos problemas enfrentados pelos usuários da web com deficiência visual é
a falta de recursos de Tecnologia Assistiva para ler corretamente o conteúdo matemático.
Visando buscar possibilidades para produzir tais recursos, o trabalho investigativo que
originou este artigo se ocupou de compilar um corpus produzido pelos professores ao
lerem as fórmulas matemáticas para os alunos com deficiência visual. Transcrições
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1371-1397
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dos áudios foram feitas no intuito de obter padrões de leitura e levantar questões que
podem vir a afetar a restauração da estrutura da fórmula matemática. Com base na
leitura dos professores, foram examinados determinados elementos presentes nas falas
e identificados posicionamentos distintos na manifestação oral dos símbolos, pausas
e alterações no tom de voz, bem como das partículas conectivas (preposições, artigos,
conjunções) e verbos. Por meio do corpus sistematizado das fórmulas matemáticas é
possível refletir sobre a variação, padronização, divergência e significado, itens os quais
podem auxiliar na demarcação de fenômenos linguísticos encontrados nas transcrições
das gravações e com isso oportunizar uma base para futuras pesquisas na área.
Palavras-chave: fórmulas matemáticas; corpus; análise linguística; acessibilidade;
deficiência visual.
Abstract: One of the problems faced by visual impairment web users is the lack of
assistive technologies to read mathematical content correctly. Aiming to find possibilities
to produce such resources, the research work that originated this article was devoted to
compiling a corpus produced by teachers when reading the mathematical formulas for
students with visual impairment. Transcripts of the audios were done in order to obtain
reading standards and raise questions that may affect the restoration of the structure of
the mathematical formula. Based on the teachers’ reading certain elements present in the
speech were examined and distinct positions were identified in the oral manifestation
of the symbols, pauses and alterations in the tone of voice, as well as in the connective
particles (prepositions, articles, conjunctions) and verbs. By means of a systematized
mathematical formulas corpus, it is possible to reflect on the variation, standardization,
divergence and meaning, which can help in the demarcation of linguistic phenomena
found in the recordings transcriptions and with this provide a basis for future research
in the area.
Keywords: mathematical formulas; corpus; linguistic analysis; accessibility; visual
impairment.
Recebido em 07 de dezembro de 2018
Aceito em 15 de maio de 2019
1 Introdução
Atualmente, 53% da população mundial, ou cerca de 4,021
bilhões de pessoas, possui acesso à Internet, conforme indica o último
relatório Digital in 2018, divulgado pelos serviços online Hootsuite e We
Are Social. Segundo essas companhias, no Brasil, aproximadamente 66%
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
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da população já está conectada à Internet. No que diz respeito à educação
e ao mundo científico, essa “era digital” representa um compartilhamento
de conhecimento no qual documentos técnicos, arquivos e informações
de toda natureza são disponibilizados por uma infinidade de páginas da
web a todo o momento. Ocorre, porém, que nem todas as pessoas têm as
mesmas condições de acesso a esse conteúdo online, seja ele tecnológico,
seja físico.
No Brasil, um relatório divulgado em 2015 pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que, de acordo com
a Pesquisa Nacional da Saúde (PNS) realizada em 2013, a deficiência
visual1 atinge aproximadamente 7,2 milhões de brasileiros. De acordo
com estimativas fornecidas em 2017 pela World Health Organization,
em todo o mundo, cerca de 253 milhões de pessoas têm algum tipo de
deficiência visual. Dessas, 36 milhões são cegas e 217 milhões possuem
deficiência visual moderada ou grave.
No que concerne a esses grupos de pessoas, o acesso à
educação e à informática é normalmente bastante restrito, devido às
limitações tecnológicas e de ferramentas adequadas para a construção
do conhecimento que a área demanda. Embora o Braille2 se constitua
como uma importante ferramenta de acesso à informação, nem todas as
pessoas com deficiência visual possuem o domínio para utilizá-lo. Ao
lado desse sistema, existem ainda outros formatos acessíveis falados
(como audiolivros) ou digitais que também são estratégias profícuas
para auxiliá-los na aquisição de conhecimento.
Todavia, como destacam Ferreira e Freitas (2006), além das
publicações técnicas em formato de áudio serem ainda limitadas, “a
dificuldade para os cegos aumenta e o grau de acesso diminui à medida
que cresce o nível de informação técnica no documento” (p. 137).
Apesar disso, os autores reconhecem que a inserção de novos recursos
de Tecnologia Assistiva e a ampliação do uso de computadores pessoais
têm colaborado para que as condições de acesso à informação das pessoas
“Considerou-se deficiência visual os casos de cegueira de ambos os olhos, cegueira
de um olho e visão reduzida do outro, cegueira de um olho e visão normal do outro e
baixa visão de ambos os olhos” (IBGE, 2015, p. 28).
2
“Sistema de leitura e de escrita para cegos, em que as letras, os algarismos e os sinais
gráficos são representados por uma combinação de seis pontos em relevo, que são lidos
da esquerda para a direita, com uma ou ambas as mãos” (BRAILLE, 2018).
1
1374
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com deficiência visual sejam aprimoradas, embora esse processo também
tenha se deparado com alguns empecilhos técnicos. Dentre os obstáculos,
é premente ressaltar o problema da falta de acessibilidade de acesso a
conteúdos matemáticos na web.
Visando obter subsídios para minimizar esse problema, está
em desenvolvimento o projeto NavMatBR, que intenciona melhorar a
acessibilidade da Educação Matemática às pessoas com deficiência visual
a partir da investigação de técnicas de leitura e compreensão de fórmulas
complexas e do desenvolvimento de recursos de Tecnologia Assistiva
(TA). O projeto envolve uma equipe multidisciplinar com pesquisadores
das áreas da Ciência da Computação, de Educação Matemática e da
Linguística, possibilitando a integração de conhecimentos técnicos para
a implementação de recursos de TA, bem como conhecimentos sobre
os fundamentos matemáticos e a análise linguística das transcrições de
descrições de fórmulas matemáticas lidas por professores e profissionais
brasileiros que possibilitem a leitura de conteúdo em português do Brasil.
O projeto surgiu no contexto da carência de recursos
computacionais que permitissem a leitura de fórmulas matemáticas para
pessoas com deficiência visual em português do Brasil. A leitura feita
na língua materna de estudantes com deficiência visual é fundamental
para permitir a compreensão desse tipo de conteúdo, considerando
as limitações no ensino de língua inglesa para estudantes em Ensino
Fundamental, por exemplo. A compreensão de conteúdo matemático
com a leitura em uma segunda língua apresentaria uma dificuldade a
mais para o entendimento e estudo de tal conteúdo para esses estudantes,
ainda mais considerando as dificuldades comumente relatadas no estudo
da Matemática e de outras áreas que envolvem o uso de notação com
equações e fórmulas, como a Física e a Química.
A forma como é feita a leitura de conteúdos matemáticos
apresenta grande variação entre diferentes países, e mesmo entre as
diferentes regiões de um país. Assim, para possibilitar a leitura de
fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual por um
software leitor de telas, a simples tradução automatizada ou tradução
direta termo-a-termo dos conteúdos não seria eficaz para possibilitar a
compreensão desse conteúdo.
Recorte do projeto de pesquisa supramencionado, este artigo,
que tem como objetivo contribuir para a área de estudos linguísticos,
descreve a criação de um corpus de fórmulas matemáticas e sua análise a
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
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partir de transcrições das gravações de leituras realizadas por professores
especialistas no ensino de pessoas com deficiência visual. O resultado
dessa análise irá apoiar o desenvolvimento de recursos de TA para
usuários com deficiência visual no Brasil.
Isto posto, este artigo segue organizado em mais quatro seções.
Na seção 2, descrevem-se trabalhos relacionados com a produção de
recursos de TA para a Matemática. Na seção 3, descreve-se a construção
do corpus de trabalho e suas características. Na seção 4, discute-se o
processo de criação do corpus e a análise do material transcrito. Por fim,
na seção 5, apresentam-se as considerações finais e trabalhos futuros.
2 Trabalhos relacionados
Nesta seção, são apresentadas algumas pesquisas que produziram
corpus de referência e recursos de TA para ler adequadamente conteúdo
matemático para pessoas com deficiência visual. Tendo em vista
que a criação e a adequação de TA são tarefas que devem levar em
consideração diversos fatores, dentre eles os sociais, é pertinente pensar
em preparar um corpus de referência que auxilie não somente no estudo
e na compreensão do fenômeno, mas também no desenvolvimento e na
avaliação de sistemas de leituras de fórmulas matemáticas para pessoas
com deficiência visual.
Dessa forma, vale ressaltar o trabalho de Sepúlveda e Ferres
(2012), que utilizaram uma base de 355.684 fórmulas matemáticas da
Wikipedia e geraram descrições em espanhol para serem lidas pelo leitor
de telas do usuário. Ocorre que o conteúdo da Wikipedia é organizado
em páginas HTML (HyperText Markup Language), logo, fórmulas são
imagens que possuem um atributo HTML com um texto alternativo
que descreve o que é apresentado (tag alt). Na proposta dos autores, a
descrição é transcrita para a linguagem MathML (Mathematical Markup
Language – uma linguagem de marcação matemática) a fim de evitar
problemas semânticos no momento em que for renderizada em uma
página web como uma fórmula. Para conhecer a forma correta de leitura
de fórmulas em espanhol, 38 participantes com diferentes background
foram convidados a escrever como liam um determinado conjunto de
fórmulas matemáticas de diferentes assuntos. A partir desse corpus de
transcrições, os autores geraram padrões de leitura (referência) com base
nas formas de maior frequência.
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Outro estudo que vale a pena ser mencionado, pois estabelece
alguma relação com o escopo do trabalho realizado que embasa este
artigo, é o de Salamonczyk e Brzostek-Pawlowska (2015). Para encontrar
padrões de leitura de fórmulas matemáticas na língua polonesa, os
autores contaram com o auxílio de um grupo de professores com
experiência no ensino para pessoas com deficiência visual que relataram
suas preferências de leitura. Os autores não produziram um corpus de
fórmulas, mas determinaram padrões de leitura a partir do relato dos
professores. Entre os padrões destacam-se: ler letras como elas de fato
são lidas; ler números inteiros ao invés de dígito por dígito. Os autores
enfatizam que a Matemática é principalmente comunicada de forma
escrita, ocasionalmente complementada com fala, por essa razão o
conteúdo matemático escrito geralmente não possui ambiguidade em
contraste com a fala. Desse modo, o usuário com deficiência visual
precisa restaurar a estrutura de uma fórmula com base na fala, portanto,
a forma oral não pode ser ambígua. Com base nos padrões sugeridos
pelos professores, os autores desenvolveram um software que recebe
uma fórmula matemática escrita em MathML e gera a sua representação
em linguagem natural (texto) para ser lida pelo leitor de telas.
É importante frisar que existem poucas ferramentas que convertem
uma representação matemática para um formato que permita ao leitor de
telas ler adequadamente. Nessa linha, destacam-se o software AudioMath
para o português europeu (FERREIRA, 2005), o i-Math para o tailandês
(WONGKIA et al., 2012) e um módulo no navegador ChromeVox para
a língua inglesa (SORGE et al., 2014). Por essa razão, é preciso destacar
que, embora existam algumas pesquisas que buscam melhorar o acesso
a conteúdo matemático para pessoas com deficiência visual, há pouca
investigação sobre padrões de leituras de fórmulas matemáticas. Como
esse é um espaço em que os estudos que originaram este artigo desejam
ocupar, acredita-se que compreendendo como é feita a leitura desse tipo
de conteúdo para pessoas com deficiência visual, padrões poderão ser
identificados e automatizados, possibilitando sua inserção/criação em
recursos de TA.
Posto que até o momento não foi encontrado na literatura um
corpus de fórmulas matemáticas ou manuais de leitura específicos para
o português do Brasil, neste trabalho optou-se pela criação de um corpus
de fórmulas matemáticas contendo as leituras realizadas por professores
de Matemática especialistas no ensino de pessoas com deficiência visual.
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Para a criação do corpus, foram conduzidas primeiramente leituras
de textos de pesquisadores da Linguística de Corpus, especificamente,
uma vez que há diferenças entre a concepção do termo corpus de acordo
com a área em que o pesquisador está inserido. Dentro dessas leituras
foram analisadas definições de corpus a fim de estabelecer a que mais se
ajustaria ao projeto. O presente artigo destaca a concepção de Sardinha
(2004), pois se trata do pesquisador brasileiro de maior relevância na
área, autor do primeiro manual de Linguística de Corpus do país. Para
Sardinha (2004, p. 18), corpus é
Um conjunto de dados linguísticos (pertencentes ao uso oral ou
escrito da língua ou a ambos) sistematizados segundo determinados
critérios suficientemente extensos em amplitude e profundidade de
maneira que sejam representativos da totalidade do uso linguístico
ou de algum de seus âmbitos, dispostos de tal modo de possam
ser processados por computadores, com finalidade de propiciar
resultados vários e úteis para descrição e análise.
De acordo com o autor, essa definição é mais completa porque
menciona a origem, o propósito, a composição, a formatação, a
representatividade e a extensão do corpus.
Vale ainda ressaltar o trabalho de Fromm (2003), que foi utilizado
como parâmetro para a análise do corpus já formado. Segundo o autor,
existem diversas aplicações práticas do corpus após a sua construção e,
dentre essas, a que mais se aproxima do objetivo do projeto, e também
apresentada no presente artigo, é a “comprovação de colocações na língua”
(p. 3). Nesse caso, as colocações referem-se à “combinação provável
mais aceita pelos falantes nativos da língua” (FROMM, 2003, p. 3). Essa
afirmação foi adaptada para o contexto da análise proposta pelo projeto,
passando então a ser observada como uma combinação de vocábulos
mais aceita dentro das nomenclaturas matemáticas quando aplicadas em
um software de leitura de telas, facilitando o entendimento das pessoas
com deficiência visual. Os resultados das observações sobre a variação
de vocábulos e suas implicações serão mais bem explicados na seção 4.
Sabe-se que a construção de um corpus consome bastante tempo e
é uma tarefa cara, em que é necessário preocupar-se com a confiabilidade,
a validade e a consistência de seu processo de criação (HOVY; LAVID,
2010). Dessa maneira, passos adotados na construção de corpus em outras
linhas de pesquisa da área de processamento de linguagem natural foram
adaptados para este trabalho.
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3 Criação de um corpus de fórmulas matemáticas
Antes de começar a descrição do trabalho de pesquisa é preciso
destacar que para desenvolver o projeto NavMatBR tem-se, a priori, que
compreender como é feita a leitura de fórmulas matemáticas para pessoas
com deficiência visual. Pois, a criação de um conjunto de fórmulas
matemáticas para serem lidas por professores de Matemática com
experiência no ensino de pessoas com deficiência visual foi motivada pela
ausência de manuais ou literatura sobre o tema no Brasil. Esse conjunto
de fórmulas e suas respectivas leituras formam o corpus que apoia o
desenvolvimento do projeto NavMatBR. Por meio desse corpus, questões
científicas a respeito do processo de leitura de fórmulas matemáticas
para pessoas com deficiência visual poderão ser respondidas, tais como a
identificação de padrões de leituras que podem ser automatizados. Além
de fórmulas, o corpus criado a partir dos dados das transcrições contém
operadores aritméticos, operadores relacionais, algarismos romanos e
outros símbolos do contexto da Matemática. Nesta seção, descrevem-se
os passos da criação do corpus.
3.1 Seleção das fórmulas
Para a criação do conjunto de fórmulas, a equipe multidisciplinar
que compõem o projeto de pesquisa se reuniu por diversas vezes a
fim de traçar um roteiro de ação que desse conta dos objetivos do
projeto. Depois de algumas discussões de cunho teórico e também
metodológicos de geração de dados, decidiu-se por compor uma banca
com professores do Departamento de Ciências Exatas (Universidade
Federal de Lavras – UFLA), uma graduanda do curso de Física e outra
do curso de Matemática, para que fizessem a análise de alguns materiais
didáticos em busca daqueles que apresentavam os conteúdos matemáticos
tratados nos anos finais do Ensino Fundamental de forma que pudessem
nortear a geração de dados. Além disso, como o conteúdo matemático
é bastante extenso, decidiu-se ainda que o material escolhido deveria
contemplar conteúdos pertencentes aos objetos de conhecimento das
grandes unidades temáticas da área da Matemática elencadas pela Base
Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2016): Números e
Operações, Álgebra e Funções, Geometria, Grandezas e Medidas e
Probabilidade e Estatística. Assim sendo, foram selecionadas então as
coleções Matemática (BIANCHINI, 2015) e Praticando Matemática
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(ANDRINI; VASCONCELLOS, 2011). Vale ainda ressaltar que os
critérios mencionados, que orientaram a definição das coleções, visavam
afunilar o escopo de possibilidades a serem pesquisadas.
O próximo passo foi a análise dos livros. Ao longo do processo
surgiram várias sugestões sobre qual fórmula seria mais adequada para
ser selecionada. Após a análise, todavia, criou-se um conjunto final
de fórmulas e símbolos que puderam ser subdividido em 11 grupos
diferentes, mas que tinham relações entre si. No Quadro 1, identificam-se
tais grupos, bem como um exemplo de cada um e sua representatividade
no corpus. Observa-se que o grupo “Equações, inequações e sistemas”
possui maior representatividade que os demais, pois se trata do assunto
de maior complexidade em relação aos outros grupos. Já o grupo “Função
modular” tem apenas um exemplo, pois se trata especificamente dos
símbolos usados para identificar esse tipo de conteúdo (nesse caso, o
par “| |”). Vale destacar neste momento que, no restante do texto, será
adotada o termo “fórmula” para referir-se a um item de qualquer um dos
grupos representados abaixo.
QUADRO 1 – Grupos de conteúdo que compõem o conjunto de fórmulas
Grupos
Exemplo
Total de “itens” no
conjunto de fórmulas
Números romanos
I
7
Relações entre números e símbolos
>
10
(– 2ax). (3⁄ (2ax2). (–1)⁄2a) = 0
12
25 + √4
2
r//s
7
3
4
3
Números decimais, dízimas
1,333...
2
Graus, unidades de tempo e símbolos
1° = 60´
2
Equações, inequações e sistemas
Potências e raízes
Retas e ângulos
Frações
8
Conjuntos numéricos
Relações entre conjuntos
Função modular
xA
9
f (x)= |x + 1|
1
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3.2 Seleção de profissionais para a leitura do conjunto de fórmulas
Após o extenso trabalho de análise e seleção de material para
a geração de dados, ficou decidido entre os participantes do grupo de
pesquisa que cada fórmula do conjunto deveria ser lido por cinco (5)
profissionais da área da Matemática, que trabalham com o ensino de
pessoas com deficiência visual e que possuem, no mínimo, um ano de
experiência nesse processo. Embora o trabalho não tenha a intenção
de argumentar sobre gêneros, é importante citar que o grupo que se
disponibilizou a auxiliar a pesquisa se constituiu em um (1) homem e
quatro (4) mulheres e a média de idade dos profissionais é de vinte e seis
(26) anos. Dentre os selecionados, dois professores são ligados a cursos
de Ciências Exatas da UFLA, duas professoras atuam em um centro de
apoio educacional ao ensino de pessoas com deficiência visual e auditiva
de uma cidade do estado de Minas Gerais e uma aluna é graduanda do
curso de licenciatura em Matemática. É interessante mencionar ainda
que dos cinco participantes, quatro declararam conhecer algum recurso
de TA utilizado por pessoas com deficiência visual, o que sinaliza um
conhecimento prévio básico de TA por parte dos participantes.
3.3 Especificação do procedimento de leitura de fórmulas
Para compreender como se deu o procedimento de leitura de
fórmulas é preciso aludir que os cinco professores leram as mesmas
fórmulas matemáticas e, para que não houvesse nenhuma influência
ou intervenção externa durante a gravação, as entrevistas com esses
profissionais aconteceram em uma sala especial preparada para tal fim.
Cabe destacar que as entrevistas ocorreram individualmente, ou seja, um
participante de cada vez e em diferentes datas.
Antes de iniciar as entrevistas, os professores foram informados
de que eles seriam participantes colaboradores de um projeto de pesquisa
cujo nome é NavMatBR e que, por trabalhar diretamente com coleta
de dados com seres humanos, o projeto foi devidamente submetido ao
Comitê de Ética da UFLA e havia sido aprovado. Os professores ainda
foram esclarecidos sobre a natureza e os objetivos do referido projeto e
também sobre a possibilidade que tinham de interromper a entrevista a
qualquer momento e sem nenhum prejuízo.
Na primeira etapa das entrevistas, antes efetivamente da leitura
das fórmulas, foi solicitado aos professores que contassem um pouco
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sobre suas experiências com o ensino de Matemática para pessoas
com deficiência visual. Vale salientar que para que houvesse uma linha
norteadora para esse relato, o entrevistador tinha em mãos um roteiro3
impresso com uma série de perguntas para também auxiliar os professores
no prosseguimento de seus relatos. As principais respostas a essas
perguntas foram também registradas por escrito durante esse momento
da entrevista pelo próprio entrevistador.
Na segunda etapa, cada professor recebeu, na forma impressa, o
conjunto de fórmulas matemáticas que, como apresentado anteriormente,
estavam organizadas em grupos de conteúdo, para serem lidas na
sequência. Foi solicitado aos professores que lessem as fórmulas
conforme fazem em sua prática diária, isto é, da forma mais natural
possível, sem se preocupar com ritmo ou cadência de leitura. Ressaltase que os professores não tiveram nenhum treinamento sobre a tarefa,
pois se assumiu que tinham experiência no ensino de pessoas com
deficiência visual e também para que os dados pudessem ficar o mais
perto do “natural” possível.
Embora não seja foco dos objetivos de pesquisa assinala-se que,
em média, as duas etapas das entrevistas duraram aproximadamente
sessenta (60) minutos, e para realizar a leitura do conjunto de fórmulas,
os professores levavam cerca de vinte (20) minutos. Reitera-se que as
duas etapas das entrevistas gravadas foram transcritas para que a equipe
do projeto pudesse conhecer um pouco mais sobre os participantes e
também tomar notas importantes que viessem a nortear os trabalhos para
as próximas etapas.
3.4 Transcrição das fórmulas
Compondo a equipe multidisciplinar do projeto, a fase de
transcrições das leituras das fórmulas foi realizada por duas graduandas
dos 3º e 5º períodos do curso de Letras Português/Inglês da UFLA. O
parâmetro técnico utilizado para as transcrições foi baseado no conjunto
de normas4 para transcrição de entrevistas gravadas que constam na obra
O discurso oral culto, sob a organização do linguista brasileiro Dino
3
Este roteiro pode ser conferido em Anexo I.
Tais normas foram idealizadas para o Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana
Culta de São Paulo (Projeto NURC/SP – Núcleo USP), do qual o professor Dino Preti
é Coordenador Científico.
4
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Preti (1999). A escolha dessas regras para a transcrição das entrevistas
do projeto NavMatBR se deu em função da clareza de tais normas, que
são bastante acessíveis e amplamente utilizadas em diversos projetos
brasileiros que trabalham com transcrições de gravações.
Ainda em torno das transcrições de entrevistas gravadas, Preti
(2009) destaca, na obra Oralidade em textos escritos, que
Quem faz pesquisa de língua oral se defronta, após colher o
seu corpus, com o problema da transcrição do material colhido.
Realizar o trabalho somente como texto gravado não é uma
estratégia que se revele eficaz. O ideal será utilizar uma transcrição
de base ortográfica que, com toda a precariedade que possa
apresentar, é mais oportuna, a não ser que se tenha em mente
fazer uma análise de ordem fonética/fonológica, quando então a
transcrição fonética se impõe como única forma para a análise.
Mas em todas as outras áreas de pesquisa, morfossintática, léxica,
discursiva, será melhor começar o trabalho pela transcrição
ortográfica, usando o texto oral sempre como um material de
controle (p. 305).
É válido frisar que, após discussões com os participantes do
projeto, decidiu-se que as questões do âmbito fonético/fonológico não
deveriam ser contempladas durante as transcrições, pois não eram o
foco de atenção da pesquisa. Dessa forma, essa decisão permitiu que
as transcrições fossem registradas ortograficamente, sem preocupações
com a pronúncia. O conjunto de regras mencionado pode ser conferido
no quadro em Anexo II. É importante registrar que as regras utilizadas
permitiram uma padronização das transcrições, conferindo uniformidade
ao trabalho.
Especificamente sobre o processo de transcrição, cabe relatar
que as transcrições completas das cinco gravações levaram em média
o triplo do tempo de duração total de cada entrevista, visto que, por
decisão do grupo de trabalho, tais registros foram feitos manualmente,
sem o auxílio de softwares.
3.5 Anotação das fórmulas em MathML
As fórmulas foram anotadas em MathML, que é uma linguagem
de marcação matemática desenvolvida e recomendada pela W3C.
MathML é utilizada para integrar fórmulas matemáticas nas páginas web
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1383
e em outros documentos. Por meio da representação de uma fórmula nesse
formalismo, é possível gerar automaticamente um texto em linguagem
natural que poderá ser lido por um leitor de telas.
Para anotar fórmulas em MathML podem ser utilizados editores
online ou editores de textos disponíveis nos computadores. A desvantagem
destes últimos é que as anotações poderão conter muitos erros, como não
fechar uma tag, o que impedirá processamentos automáticos posteriores.
No projeto NavMatBR, foi utilizada a plataforma online Wolfram5 para
gerar a codificação MathML de cada fórmula. Esse ambiente converte
uma representação matemática em um código MathML.
Para exemplificar um código na linguagem MathML, na Figura
1 apresenta-se a codificação da fórmula “a2 + b2 = c2”. Cada tag possui
um significado no código. Por exemplo, <mi> é utilizada para marcar
identificadores (variáveis e constantes), <mo> para operadores e <mn>
para números.
FIGURA 1 – Representação em MathML da fórmula a2 + b2 = c2
<!DOCTYPE html>
<html>
<body>
<math>
<mrow>
<msup><mi>a</mi><mn>2</mn></msup>
<mo>+</mo>
<msup><mi>b</mi><mn>2</mn></msup>
<mo>=</mo>
<msup><mi>c</mi><mn>2</mn></msup>
</mrow>
</math>
</body>
</html>
5
Link da plataforma online Wolfram: https://reference.wolfram.com/language/XML/
tutorial/MathML.html
1384
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4 Análise e discussão de dados
Como já mencionado, este artigo descreve a criação de um corpus
de fórmulas matemáticas para apoiar o desenvolvimento de recursos de
TA para usuários com deficiência visual no Brasil. Nesta seção, relatase com mais detalhes a análise do material produzido pelos professores,
as dificuldades no processo de transcrição e os direcionamentos a partir
do corpus.
No que diz respeito ao processo de transcrição manual das
fórmulas lidas, pode-se dizer que alguns pontos se sobressaíram mais
durante a verificação do todo. Alguns trechos foram selecionados
e apresentados no Quadro 2, mas antes é preciso ressaltar que nas
transcrições, todas as pausas, longas ou curtas, foram representadas
por reticências (“...”). Destaca-se, no entanto, que as pausas feitas
pelos entrevistados não foram propositais ou visando a uma melhor
compreensão das pessoas com deficiência visual mediante o que foi lido.
Essas pausas geralmente ocorriam quando as pessoas estavam pensando
no que dizer. Já em relação à entonação, é preciso assinalar que não houve
alterações intencionais no tom de voz, de modo que determinada parte
ou termo da fórmula fossem relevados.
Por seu turno, as pausas e a entonação, é pertinente registrar, são
elementos prosódicos intrínsecos à fala e não devem ser ignorados no
estudo da oralidade. Além desses dois, o tom, o acento, os alongamentos,
a duração, a silabação, o ritmo, a fluência, as inflexões de voz etc. também
são outros importantes elementos prosódicos que contribuem para uma
melhor expressão de uma língua e, consequentemente, seu entendimento.
Observa-se também que houve diferentes formas de leitura
de alguns sinais gráficos, tais como parênteses, colchetes e chaves. É
trivial o fato de que um enunciado não é construído a partir de palavras
e orações amontoadas. E os sinais de pontuação, por sua vez, contribuem
para a adequação sintática e semântica do texto escrito (BECHARA,
2009). Portanto, uma pontuação equivocada traria grandes prejuízos à
comunicação.
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À grosso modo, e conforme uma concepção mais restrita, como
aponta Bechara (2009), sinais como os parênteses, colchetes6 e chaves7
são exemplos de sinais de comunicação ou “mensagem” (ao contrário dos
“separadores”, como a vírgula ou o ponto final). Ainda segundo o autor,
Os parênteses assinalam um isolamento sintático e semântico
mais completo dentro do enunciado, além de estabelecer maior
intimidade entre o autor e o seu leitor. Em geral, a inserção do
parêntese é assinalada por uma entonação especial (BECHARA,
2009, p. 612).
Essa breve explanação do ponto de vista gramatical permitenos vislumbrar o uso desses sinais na língua e como eles contribuem
para um melhor entendimento do texto. Já no que se refere à linguagem
matemática, a utilização de tais sinais gráficos, sobretudo pela Álgebra,
é bastante frequente e preponderante, possuindo diversos significados
específicos e denotando, em especial, algum agrupamento.
Pelo fato dos sinais supramencionados impactarem tanto a
Gramática, quanto a Matemática, achou-se interessante registrar a forma
como suas ocorrências eram lidas pelos professores. Alguns entrevistados
liam “abre/fecha parênteses, chaves etc.”8 enquanto que outros faziam a
leitura direta desses símbolos. Além disso, algumas vezes os símbolos
eram lidos no singular (parêntese, colchete, chave) e outras vezes no
plural (parênteses, colchetes, chaves). É conveniente ressaltar que ambas
as formas utilizadas, plural e singular, são utilizadas na Língua Portuguesa
e estão corretas, e não interferem na apreensão do conteúdo pelas pessoas
com deficiência visual. Ainda no que tange esses símbolos, cabe dizer
que apenas um dos entrevistados recorreu ao uso de parênteses adicionais
“Intimamente ligados aos parênteses pela sua função discursiva, os colchetes são
utilizados quando já se acham empregados os parênteses, para introduzirem uma nova
inserção. Também se usam para preencher lacunas de textos ou ainda para introduzir,
principalmente em citações, adendos ou explicações que facilitam o entendimento do
texto. Nos dicionários e gramáticas, explicitam informações como a ortoépia, a prosódia
etc.(...)” (BECHARA, 2009, p. 613).
7
“A chave [{}] tem aplicação maior em obras de caráter científico (...)” (BECHARA,
2009, p. 614).
8
A utilização ou não dos verbos, como “abrir/fechar”, enquadra-se na explicação do
parágrafo posterior ao Quadro 2.
6
1386
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às fórmulas para evitar o entendimento ambíguo em certos momentos
(isso será retomado adiante).
Além disso, constatou-se que alguns entrevistados ora trocavam
algumas nomenclaturas, como no caso dos símbolos “” (lê-se “está
contido”) e “” (lê-se “contém”), ora não se lembravam de outras. Em
vistas a essa diferença no momento da leitura das fórmulas, sugere-se
que talvez fosse mais interessante se o entrevistado tivesse acesso ao
roteiro das fórmulas antes da entrevista, de modo que pudesse esclarecer
eventuais dúvidas para se esquivar de confusões entre as nomenclaturas
corretas de símbolos, sinais gráficos, operadores etc. Além do mais,
considerando que esse trabalho se dá em um contexto educacional, no
qual os professores normalmente preparam suas aulas antes de executálas, esse acesso poderia ajudar os profissionais do ensino a preverem
possíveis dúvidas de seus alunos no momento da leitura. Em outras
palavras, outra vantagem desse contato antecipado com o roteiro seria
uma leitura mais “limpa”, em que os entrevistados evitariam hesitações
e pausas sem vínculo com o processo de apreensão das fórmulas pelas
pessoas com deficiência visual.
Para evidenciar diferentes formas de leitura e problemas
relacionados a nomenclaturas, foi selecionado um exemplo. No Quadro
2 são apresentadas as transcrições das cinco leituras feitas pelos
professores, identificados por P1 a P5, para a fórmula “48 – {28 – 4.
[3. (40: 5 – 3): (17 – 3.4)]} ≤ 4”. Registra-se que os parênteses adicionais
mencionados por um dos entrevistados estão sublinhados, as ocorrências
dos símbolos estão em negrito e os erros de nomenclatura/leitura,
comentados anteriormente, estão destacados em itálico.
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QUADRO 2 – Exemplificação de leituras de uma fórmula
48 – {28 – 4. [3. (40: 5 – 3): (17 – 3.4)]} ≤ 4
P1
P2
P3
P4
P5
quarenta e oito menos colchete vinte e oito menos quatro vezes... colchete três vezes
parênteses parênteses ... quarenta dividido por cinco fecha parênteses menos três
fecha parênteses parênteses... dividido por... parêntese dezessete menos três...
vezes quatro parênteses chave colchete... menor igual quatro
quarenta e oito menos abre chave vinte e oito menos quatro vezes abre colchete três
vezes abre parênteses quarenta dividido por cinco menos três fecha... parênteses
dividido abre parênteses dezessete menos três vezes quatro fecha parênteses fecha
colchete fecha chave menor igual a quatro
quarenta e oito menos... abre chave vinte e oito menos quatro vezes abre colchete
vezes... três vezes abre parêntese quarenta dividido por cinco menos três fecha
parêntese... (divide) abre parêntese dezessete menos três vezes quatro fecha
parêntese fecha colchete fecha chave e tudo isso tem que ser menor igual a quatro
quarenta e oito menos abre parêntese... vinte e oito menos quatro vezes abre colchete
três vezes abre parêntese quarenta dividido por cinco menos três fecha parêntese
dividido abre parêntese dezessete menos três vezes quatro fecha parêntese fecha
colchetes fecha chave menor ou igual a quatro
quarenta e oito menos abre chaves vinte oito menos quatro vezes abre colchete três
vezes abre parênteses quarenta dividido por cinco menos três fecha parênteses
dividido abre parênteses dezessete menos três vírgula quatro fecha parênteses
fecha colchete fecha chaves menor igual a quatro
Outra questão interessante a ser destacada nos exemplos abordados
diz respeito ao uso, do que é chamado aqui, de partículas conectivas:
preposições, artigos, conjunções e os próprios verbos, inclusive. Ao
analisar os excertos acima percebe-se que alguns entrevistados prezaram
mais pelo uso dessas partículas conectivas enquanto que outros as
excluíam, tornando suas leituras mais “enxutas”. Entretanto, embora se
tenha a impressão de que essa leitura “enxuta” possa ser mais vantajosa
para os alunos, alguns professores especialistas da área Matemática
assinalam que quanto mais detalhada e completa é a leitura, melhor será
o entendimento do ouvinte. Os referidos conectores foram realçados em
negrito e as leituras mais aconselháveis, na visão dos especialistas, estão
sublinhadas nos exemplos apresentados Quadro 3.9
9
O símbolo “Ø” foi utilizado para ressaltar que naquelas determinadas posições nenhum
“conectivo” foi empregado pelos entrevistados durante a leitura.
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QUADRO 3 – Conectivos presentes nas leituras
=
Ø igual Ø / Ø igual a / é igual a / é igual Ø
>
Ø maior Ø / é maior que / Ø maior que
÷
dividido Ø / dividido por
A B
á união com bê / á união Ø bê
É pertinente lembrar que são unidades linguísticas como essas
que contribuem para a coesão de uma frase, texto etc. A coesão é um
fenômeno essencial para uma língua, uma vez que “(...) diz respeito ao
modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual
encontram-se interligados, por meio de recursos também linguísticos,
formando sequências veiculadoras de sentido” (KOCH, 1997, p. 35).
Também se notou, em vários momentos durante as transcrições,
uma grande diversidade de leituras para um mesmo termo. Para ilustrar
esse fato, no Quadro 4 detalham-se as diversas leituras para cada termo
da fórmula “25 + √4”. Em negrito estão ressaltadas as formas distintas.
Para a leitura da potência houve quatro formas diferentes (“elevado à
quinta”, “elevado à cinco”, “à quinta” e “elevado à quinta potência”),
enquanto que na leitura da raiz houve duas variações (“raiz de” e “raiz
quadrada de”). A variedade de termos existente para expressar um mesmo
conceito é um movimento espontâneo e rotineiro em qualquer idioma
(basta recuperarmos as noções de “variedade linguística” ou mesmo de
“sinonímia”). Porém, nesse contexto matemático específico, acreditamos
que essa variação não é positiva, pois ter-se um padrão facilitaria não
somente para as pessoas que precisam compreender a leitura sem
visualizar a fórmula, mas também para aqueles que têm que ensiná-las.
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QUADRO 4 – As diferentes leituras para a fórmula 25 + √4
√4
25
+
P1
parênteses dois elevado à quinta... fecha
o parênteses desse primeiro termo...
mais
raiz de quatro
P2
dois elevado à cinco
mais
raiz de quatro
P3
dois à quinta
mais
raiz de quatro
P4
dois elevado à quinta potência
mais
raiz quadrada de quatro
P5
dois elevado à cinco
mais
raiz quadrada de quatro
Outro ponto que gerou dificuldade no momento da transcrição,
e acredita-se que deverá ser também um problema para os leitores e
para os ouvintes das fórmulas, refere-se ao duplo sentido (ambiguidade)
das leituras, sobretudo no que toca ao grupo “Equações, Inequações e
Sistemas”. Por vários momentos, a tarefa de distinguir os termos da
raiz, das frações, das potências etc. do restante da operação tornou-se
bastante difícil, principalmente quando se assume uma posição ocupada
pela pessoa com deficiência visual, que não tem acesso à disposição
visual das fórmulas.
No que concerne à Linguística, “ambiguidade” trata-se da
duplicidade de sentidos, em que palavras, expressões ou frases podem
admitir mais de uma acepção. Uma vez que geram confusões, as
ambiguidades precisam ser evitadas na linguagem formal (licenças
poéticas à parte). Devido à desatenção que cerca a sua ocorrência, a
ambiguidade é tida como um vício de linguagem. Dentre os diferentes
tipos desse “fenômeno”, podemos citar a ambiguidade estrutural (ou
sintática), na qual o duplo sentido é oriundo de uma má organização
dos elementos internos constituintes da oração. O referido tipo de
ambiguidade foi identificado nas leituras feitas pelos professores, já que
houve dúvidas de interpretação por causa da ordem de alguns termos.
No Quadro 5, apresentam-se duas fórmulas para explicitar essa
situação. As partes “ambíguas” estão sublinhadas e as observações
concernentes a elas estão destacadas em itálico. Na leitura da primeira
fórmula, por exemplo, quando o termo “√1/9” é lido como “raiz de um
sobre nove”, abre-se margem para “interpretá-lo” ainda como “√1/9”, o
que muda totalmente a linha de raciocínio para a resolução do problema
em que a fórmula é a base.
1390
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
QUADRO 5 – Exemplo de fórmulas cujas leituras continham ambiguidades
(
(
(2 – √1/9)2 . √64 – 1 = 15
25
abre parênteses dois menos raiz de um sobre nove*... fecha
parênteses elevado ao quadrado vezes abre parênteses raiz
de sessenta e quatro dividido por vinte e cinco** menos um
fecha parênteses igual a quinze
* não é possível saber se é ou
** mesmo caso: não se sabe se a raiz envolve o 25 ou não
(2,7/0,9) –
(
(
1
+ 0,75 267
2.0,5
abre parêntese dois vírgula sete sobre zero vírgula nove fecha
parêntese menos abre parêntese uma fração numerador um
denominador dois vezes zero vírgula cinco mais zero vírgula
setenta e cinco* fecha parêntese menor ou igual a duzentos
e sessenta e sete
* 0,75 poderia estar tanto no denominador quanto fora da
fração
A partir das observações sobre o material transcrito, constatase que não há um padrão de leitura de fórmulas matemáticas adotado
pelos professores de Matemática de pessoas com deficiência visual.
A variedade de formas de leitura compreende a simplificação de
nomenclaturas, o acréscimo de símbolos que não estão explícitos, o uso
ou não de conectivos. Assim, embora a linguagem matemática disponha
de um conjunto de símbolos próprios, codificados e que se relacionam
segundo determinadas regras, que supostamente são comuns a certa
comunidade que as utiliza para comunicar, ela carece do complemento
de uma linguagem natural. No caso de pessoas com deficiência visual, a
linguagem utilizada para lhes apresentar fórmulas matemáticas deve ser
a mais clara possível para evitar problemas de interpretação, que podem
causar, por exemplo, erros de cálculos ou de aprendizagem de conceitos.
A grande variação de leitura e a falta de um padrão são problemas que
devem ser considerados para os estudiosos da área.
Há uma premissa em anotação de corpus que, se as pessoas não
podem concordar o suficiente, então ou a teoria está errada (mal declarada,
instanciada) ou o processo em si é falho (HOVY; LAVID, 2010). No caso
do corpus produzido neste trabalho, não é possível medir a concordância
entre as formas de leituras, pois conforme já discutido, cada professor
usou um vocabulário variado. Contudo, isso não invalida tal corpus,
pois demonstra a riqueza que é inerente à linguagem natural, mesmo
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
1391
quando utilizada para descrever a Matemática, que tem estilo próprio.
Isto posto, ainda assim é possível estabelecer frequência de uso e padrões
que poderão ser utilizados para geração de regras automáticas de leituras.
Como resultado deste trabalho, destaca-se então a produção de
um corpus de fórmulas matemáticas e a sua disponibilização para fins de
pesquisa. O corpus contém 100 textos que correspondem às transcrições
das fórmulas, totalizando 2600 palavras. Trata-se de um corpus piloto
que não tem a pretensão de ser exaustivo, mas ser uma amostra para
o fenômeno sob investigação. A média de palavras por transcrição é
de 41,74. Além das transcrições, para cada fórmula estão disponíveis
5 arquivos de áudio (formato mp3) com as leituras das fórmulas, a
representação em MathML e a imagem da mesma em formato jpeg. Os
arquivos de áudio totalizam 59min20s.10
5 Considerações finais
Este artigo apresentou o processo de criação de um corpus de
fórmulas matemáticas para subsidiar o projeto de pesquisa NavMatBR,
cujo objetivo principal é produzir um recurso de Tecnologia Assistiva
que leia corretamente em português (Brasil) fórmulas matemáticas
para usuários com deficiência visual. As principais contribuições do
artigo foram: apresentar o processo de criação de corpus de fórmulas
matemáticas e discutir esse processo, bem como a análise do material
coletado.
Embora o corpus produzido mostre que há variedades nas formas
de leituras de uma mesma fórmula, ainda assim é possível extrair regras
para serem inseridas em um recurso de TA. Como trabalhos futuros, temse a consulta a especialistas do ensino de Matemática para resolver os
casos divergentes. Para esses casos, planeja-se utilizar os formalismos
da Matemática para definir uma leitura padronizada. Além disso, serão
elaboradas regras de leituras com base na frequência de uso e na sugestão
dada pelos especialistas para os casos divergentes. Tais regras serão
inseridas em um parser para expressões matemáticas, que funcionará
junto com um leitor de telas. Com isso, almeja-se gerar um recurso de
TA que auxilie pessoas com deficiência visual a obterem conhecimentos
matemáticos por meio da web.
10
O corpus do projeto pode ser conferido no link: http://twixar.me/hx5K.
1392
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Após a implementação do parser em um software que possa
ser executado com fórmulas em MathML, serão realizadas avaliações
envolvendo pessoas com deficiência visual visando identificar quão
satisfatória é a compreensão que eles têm do conteúdo lido na forma de
voz. A partir dessa avaliação, será possível identificar possíveis pontos de
melhoria para reformular as formas de verbalização das fórmulas visando
melhor compreensão por pessoas que não podem utilizar a percepção
visual para fazer a leitura.
Agradecimentos
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro à pesquisa.
Agradecemos à Isabella C. Teófilo e Natália C. T. Nascimento,
que atuaram na realização de parte das entrevistas e na preparação
do conjunto de fórmulas elencadas para inclusão nas entrevistas com
professores a partir da análise de livros didáticos de Ensino Fundamental
da área de Matemática e de Ciências; à Rosana M. Mendes, Helena
Libardi e Evelise R. C. G. Freire, que atuaram na orientação das
análises de materiais didáticos para seleção das fórmulas e na análise
das verbalizações das fórmulas matemáticas com contribuições do
ponto de vista de Educação Matemática; à Otávio F. Oliveira e Stênio
de Abreu, que atuaram na realização de entrevistas com professores; à
Jorge S. R. Silva e Antônio A. O. Barbosa, que atuaram na análise do
material coletado com contribuições do ponto de vista de computação e
navegação em fórmulas.
Contribuição dos autores
Além de redigir o texto final do artigo, Lima e Rodrigues transcreveram
e analisaram os dados coletados. Almeida contribuiu com as análises
dos dados coletados e com a escrita do texto final. Cardoso e Freire
organizaram a coleta de dados e também contribuíram com a escrita do
texto final. Todos os colaboradores são membros do projeto de pesquisa
NavMatBR.
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1393
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1395
ANEXO I
Questionário para entrevista com professores
1.
2.
Código de Identificação: ___________
Sexo:
o Feminino
o Masculino
3.
4.
Idade: ____ anos.
Formação:
o 2º Grau completo
o Ensino superior completo
o Ensino superior incompleto
o Pós-graduação completa
o Pós-graduação incompleta
5.
Há quanto tempo trabalha com alunos com deficiência visual?
o Menos de 1 ano
o 1 a 2 anos
o 2 a 4 anos
o 5 anos ou mais
6.
Com quantos alunos com deficiência visual você já trabalhou ao longo da sua experiência
com o ensino de Matemática?
o Apenas 1 aluno
o 2 a 5 alunos
o 5 a 10 alunos
o Mais de 10 alunos
7.
Com quantos alunos com deficiência visual você trabalha atualmente?
o Apenas 1 aluno
o 2 a 3 alunos
o 4 a 5 alunos
o Mais de 5 alunos
8.
Quantos alunos eram cegos congênitos?
9.
Você sentiu diferença no trabalho com alunos cegos congênitos e não congênitos? Comente.
10.
Em quais situações você trabalha/trabalhou com esses alunos?
11.
Que tipo de conteúdo você ensina/ensinou para esses alunos? (Álgebra, Geometria,
Trigonometria, etc.).
1396
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
12.
Que tipo de material utiliza/utilizou nas suas aulas? Se necessário, marque mais de uma
opção.
o Material manipulativo
o Livro didático
o Softwares
o Material impresso em Braille
o Outros. ______________________________________
13.
Que tipo de dificuldades os alunos tinham?
14.
Usava algum tipo de tecnologia na aula? Quais?
o Sim
Quais? ________________________________________
o Não
15.
Conhece alguma tecnologia utilizada por cegos? Quais?
o Sim
Quais? ________________________________________
o Não
16.
Qual sua experiência com computadores? Já usou um Ambiente de Aprendizado Virtual?
Já utilizou algum editor de fórmulas? Qual?
17.
O que você acha da experiência de ensinar Matemática/Física para alunos com deficiência
visual?
18.
Tinha/ tem algum tipo de apoio pedagógico/técnico?
o Sim
o Não
1397
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019
ANEXO II
Regras de Transcrição
Ocorrências
Sinais
Incompreensão de palavras ou
segmentos
()
Hipótese do que se ouviu
(hipótese)
Truncamento (havendo homografia,
usa-se acento indicativo da tônica e/
ou timbre)
/
Entonação enfática
Maiúscula
Exemplificação
Do níveis de renda ( ) nível de renda
nominal
(estou) meio preocupado (com o gravador)
E comé/e reinicia
Porque as pessoas reTÊM moeda
:: podendo
Prolongamento de vogal e consoante
aumentar para ::::: Ao emprestarmos éh::: ... dinheiro
(como s, r)
ou mais
Silabação
-
Interrogação
?
E o Banco... Central... certo?
Qualquer pausa
...
São três motivos... ou três razões ... que
fazem com que se retenha moeda ... existe
uma ... retenção
Comentários descritivos do
transcritor
((minúscula))
Comentários que quebram a
sequência temática da exposição:
desvio temático
--
Por motivo tran-sa-ção
--
Superposição, simultaneidade de
vozes
Ligando as linhas
Indicação de que a fala foi tomada ou
interrompida em determinado ponto.
Não no seu início, por exemplo.
(...)
((tossiu))
… a demanda de moeda - - vamos dar essa
notação - - demanda de moeda por motivo
a. na casa de sua irmã
b.
[sexta-feira?
a. fazem LÁ
b.
[cozinham lá
(...) nós vimos que existem...
Pedro Lima... ah escreve na ocasião... “O
cinema falado em língua estrangeira não
precisa de nenhuma baRREIra entre nós...”
1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc)
2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? Você está brava?)
3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.
4. Números por extenso.
5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa)
6. Não se anota o cadenciamento da frase.
7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa)
8. Não se utilizam sinais de pausa, típicas da língua escrita, como ponto e vírgula, ponto final, dois
pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa.
Citações literais de textos, durante a
gravação
“entre aspas”
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
El punto y coma y los dos puntos: estudio historiográfico
de las ediciones de la Ortografía de la Real Academia Española
de 1741, 1844 y 20101
The semicolon and the colon: historiographical study
of the editions of the Orthography of the Royal Spanish Academy
of 1741, 1844 and 2010
Susana Ridao Rodrigo
Departamento de Filología, Universidad de Almería, Almería / España
sridao@ual.es
Resumen: El objetivo de este trabajo es ofrecer un repaso historiográfico por la
evolución de dos signos ortográficos que suelen suscitar bastantes dudas de uso: el
punto y coma y los dos puntos. En particular, se someten a análisis tres obras sobre
ortografía publicadas por la Real Academia Española en 1741, 1844 y 2010. Como
conclusión destaca que el único uso que la edición de 1741 incorporaba para el punto
y coma ha permanecido hasta la actualidad; en cambio, en los dos puntos se observa
divergencia entre el empleo que describía la edición de 1741 frente a las publicaciones
de 1844 y 2010.
Palabras clave: ortografía; punto y coma; dos puntos; Real Academia Española.
Abstract: The aim of this paper is to provide an historiographical review about the
evolution of two orthographic signs that often lead to doubts about their use: the
semicolon and the colon. In particular, three works about orthography published
by the Royal Spanish Academy in 1741, 1844 and 2010 are submitted to analysis.
In conclusion, this paper emphasizes that the only use the 1741 edition mentioned
regarding the semicolon has remained until the present. In contrast, the colon shows
divergence between its employment described in the 1741 edition and the 1844 and
2010 publications.
Keywords: orthography; semicolon; colon; Royal Spanish Academy.
1
Este artículo se ha desarrollado en el seno del grupo de investigación HUM783, el
cual está vinculado al centro de investigación CEMyRI de la UAL.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1399-1415
1400
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
Recebido em 26 de março de 2019
Aceito em 28 de maio de 2019
1 introducción
El controvertido tema de la puntuación ha sido objeto de reflexión
por distintos autores de reconocido prestigio. Ya en la Edad Antigua
recomendaba Aristóteles (2009) en el Libro III de su obra Retórica una
serie de reglas para el correcto uso de la lengua y, entre ellas, advertía que
los textos no podían resultar complicados a la hora de puntuarlos, para lo
cual citaba a Heráclito como modelo no deseado. Desde una aproximación
al enfoque normativo, el Diccionario de Autoridades (Tomo V, 1737) de la
Real Academia define la orthographia como «El Arte que enseña a escribir
correctamente, y con la puntuación y letras que son necessarias, para que
se le dé sentido perfecto, quando se lea. Es voz Griega, que significa recta
escritúra». La edición número 23 del DLE de la RAE-ASALE (2014)
indica que la ortografía es, en primera acepción, «Conjunto de normas
que regulan la escritura de una lengua» y, en segunda acepción, «Forma
correcta de escribir respetando las normas de la ortografía».
En el ámbito comunicativo, la escritura ha de entenderse como
un proceso en el que un individuo redacta un texto para que sea leído
por otra persona y ambos han de compartir las convenciones del escrito
con miras a un correcto entendimiento (SOTOMAYOR et alii, 2017,
p. 318). Ciertamente, la escritura conforma un medio de comunicación
clave para la sociedad actual, y en concreto la ortografía representa un
papel protagonista en el ámbito del buen entendimiento comunicativo,
sin olvidar que la manera de escribir del individuo es juzgada –ya sea
consciente o inconscientemente– por sus lectores (CÁNOVAS, 2017,
p. 7). Por tanto, dado que de ella depende el éxito o fracaso de los
intercambios comunicativos e incluso la imagen social del escriba, se
debería entender la escritura, en general, y la ortografía, en particular,
como una habilidad de irrefutable relevancia.
Determinadas cuestiones propician las faltas de ortografía: el
poco interés que suele despertar la lectura entre los alumnos, la pérdida
de prestigio que han ido sufriendo de manera progresiva las normas
ortográficas, la propia forma de aprender las reglas de ortografía basándose
en la memoria o, incluso, la metodología empleada por los docentes
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
1401
(CARRATALÁ, 2014, p. 18-21). Por supuesto, no se puede pasar por
alto el aprendizaje de la denostada gramática, dado que existen pruebas
tanto teóricas como empíricas que corroboran que para el aprendizaje
de algunos aspectos de ortografía resultan necesarios conocimientos
gramaticales (TEBEROSKY, 2017, p. 23). A ello se le suma que los nuevos
alumnos conforman generaciones digitales, en el sentido de que desde
muy tempranas edades están familiarizados con la escritura en entornos
electrónicos; en estos sujetos se observa una generalizada infravaloración
de la corrección en la escritura, quizá como consecuencia de que en los
contextos digitales son necesarias características como la instantaneidad,
la improvisación, la velocidad o la economía lingüística (FERNÁNDEZRUFETE NAVARRO, 2015, p. 8). Por su parte, Montesinos López (2018,
p. 281) sostiene la existencia en estos entornos virtuales de una ortografía
fonética y abreviadora acompañada de una tendencia lúdica del lenguaje.
Si se aprecia descuido a la hora de escribir las letras, esta situación se
agrava en el caso de las tildes y resulta aún más despreocupado el empleo
de los signos de puntuación.
Como indica Carratalá (2014, p. 17), en estos momentos se vive
un «caos ortográfico», el cual deja en evidencia que en el proceso de
enseñanza/aprendizaje de la lengua española hay carencias que afectan
más a la estructura que a la coyuntura. En palabras de Martínez de Sousa,
«La ortografía es una de las asignaturas pendientes de la lengua española»
(1995, p. 9). De facto, este desconcierto en torno a la ortografía –como es
lógico– no solo compete a los aprendices, sino también a su enseñanza.
El déficit de indagaciones concretas sobre el área de la ortografía dificulta
su abordaje; esta situación de complejidad repercute en el docente, pues
carece de material efectivo que le permita trabajar la ortografía con sus
discentes (CAMPS et alii, 2007, p. 5).
Los objetivos de esta modesta investigación se centran en
dos cuestiones fundamentales: (1) examinar, desde el enfoque de la
historiografía, cómo aparecen descritos dos signos de puntuación que
suelen suscitar bastantes dudas de utilización por parte de los escritores
como son el punto y coma y los dos puntos en la Orthographía española
de 1741, el Prontuario de ortografía de la lengua castellana de 1844 y
la Ortografía de la lengua española de 2010; y (2) tras un análisis de
manera individualizada de las obras citadas, posteriormente se comparan
y contrastan tanto las similitudes como las diferencias existentes con
respecto a las normas de uso establecidas por las distintas ediciones.
1402
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
Por supuesto, también se aporta una panorámica sobre determinadas
cuestiones en la evolución de la ortografía, en general, y de los signos de
puntuación analizados, en particular, que sirven de punto de partida para
enmarcar la presente investigación. De manera explícita conviene aclarar
a esta altura de la investigación que se trata de un estudio historiográfico,
no de un análisis normativo de la utilización de las propias normas de
puntuación que fijan tales obras.
2 Breve panorámica de la evolución de la ortografía
Sin duda, la ortografía constituye –en el plano escrito– un pilar
fundamental para establecer las reglas que rigen la lengua española, junto
al léxico y a las normas gramaticales. La necesidad de una ortografía
en el seno de la Academia se puso de manifiesto al observar la carencia
de modelos gráficos coherentes y aceptados de manera generalizada.
Precisamente, en el tomo primero del Diccionario de Autoridades de
1726 se habla de la relevancia del código ortográfico, en particular en
el Discurso proemial de la orthographía de la lengua castellana (RAEASALE, 2010, p. XXXVII). Aparte, la Academia se basó en reglas para
establecer la ortografía, ofreciendo soluciones que en la mayor parte de
los casos se aproximaban al origen de las palabras, si bien en la práctica
casaron esta tendencia etimologista con el uso que se había extendido
y con la pronunciación (FREIXAS, 2016, p. 145). Existe una pugna
entre, por un lado, conservar la escritura de las palabras en función de su
procedencia y, por el otro, fundamentar tal escritura en el plano fonético.
En el siglo XV, la ortografía española apoyaba con firmeza el basarse en
criterios de pronunciación, tal como se puede observar en Nebrija que,
a su vez, bebe de Quintiliano; en cambio, en la Orthographía española
de 1741 desaparece este monopolio para dar paso a una triple fuente:
la pronunciación convive con la etimología y con el uso (PEñALVER
CASTILLO, 2015, p. 325).
En el Discurso proemial de la orthographía de la lengua
castellana se recopilan las primeras normas ortográficas de la Real
Academia Española, si bien en el año 1741 se publica la primera edición
de la ortografía académica. La segunda ve la luz en 1754, la tercera en
1763, la cuarta en 1770, la quinta en 1775, la sexta en 1779, la séptima
en 1792, la octava en 1815 y la novena en 1820, que se reimprimió en
1826. Entre los años 1820 y 1959 la ortografía se incluye como parte de
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
1403
la gramática académica. La quinta edición de la Gramática de la lengua
castellana es publicada en 1854, la sexta en 1858, la séptima en 1862, la
octava en 1864, la novena en 1865, la décima en 1866, la undécima en
1867, la duodécima en 1870, la decimotercera en 1874, la decimocuarta en
1878, la decimoquinta en 1880, la decimosexta en 1883, la decimoséptima
en 1885, la decimoctava en 1888, la decimonovena en 1890, la vigésima
en 1895, la vigesimoprimera en 1900, la vigesimosegunda en 1901, la
vigesimotercera en 1904, la vigesimocuarta en 1906, la vigesimoquinta
en 1908, la vigesimosexta en 1909, la vigesimoséptima en 1911, la
vigesimoctava en 1913, la vigesimonovena en 1916, la trigésima en 1917,
la trigésima primera en 1920, la trigésima segunda en 1924, la trigésima
tercera en 1928 y la trigésima cuarta en 1931.
En 1844 aparece el Prontuario de la ortografía de la lengua
castellana –cuenta con trece ediciones y la última fechada en 1866–
con el carácter de uso obligatorio en las escuelas públicas. Años más
tarde, en 1870 nace el Prontuario de ortografía de la lengua castellana
en preguntas y respuestas, cuya última edición data de 1931, habiendo
tenido treinta y una ediciones. Además, la primera edición de Nuevas
normas de prosodia y ortografía sale en 1952, en 1959 la segunda y
en 1965 la tercera. En 1969 tiene lugar la publicación de una nueva
Ortografía, la cual «incorpora al texto tradicional las nuevas normas
declaradas de aplicación preceptiva desde 1.º de enero de 1959» y en
1974 una nueva edición que mantiene «las nuevas normas declaradas
de aplicación preceptiva desde 1.º de enero de 1959». En 1999 ve la luz
otra edición de la Ortografía de la lengua española, que es la primera
acordada por todas las academias de la lengua española. En 2010 se
publica la Ortografía de la lengua española, la cual conforma la primera
ortografía académica que incluye una descripción pormenorizada del
sistema ortográfico español. La versión abreviada de esta última aparece
en 2012 con el título Ortografía básica de la lengua española. El análisis
se ha acotado a tres obras dada la inviabilidad de incluirlas todas; como
es de esperar, se han seleccionado las más significativas.
Desde un enfoque cuantitativo, sería conveniente abordar la
utilización de los signos de puntuación en los últimos siglos, dado que no
existe heterogeneidad en cuanto a su frecuencia de uso. En la siguiente
tabla, aportada por Miller (1969, apud CASSANY, 1995, p. 179), se
aprecian en frecuencia absoluta datos numéricos del empleo de los signos de
puntuación –en concreto, la coma, el punto, el punto y coma, los dos puntos,
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el guion, los paréntesis, los puntos suspensivos, los signos de interrogación
y los signos de exclamación–; estos datos son el resultado del análisis de
obras escritas por reconocidos literatos de los siglos XVIII, XIX y XX. Si
bien estos autores analizados no escriben en español, se citan estos datos
porque –según las fuentes consultadas– existe una carencia de estudios
desde un perfil cuantitativo que arrojen luz sobre el empleo de los signos
de puntuación en español tomando como corpus documentos extensos.
TABLA 1 – Frecuencia absoluta en el uso de los signos de puntuación en literatos
de los siglos XVIII, XIX y XX
,
.
;
:
-
()
...
¿?
¡!
Siglo XVIII
Daniel Defoe
718 134 121
10
4
3
0
8
2
Samuel Richardson
534 161
85
37
65
34
0
33
51
Henry Fielding
584 198 119
14
22
19
0
28
13
Jane Austen
522 270
6
31
4
0
2
4
92
Siglo XIX
Walter Scott
687 177
58
1
48
1
0
12
12
W. M. Trackeray
569 213
64
22
44
20
0
30
3
Charles Dickens
583 233
57
12
35
20
0
25
34
George Meredith
466 336
58
25
29
4
6
32
44
Thomas Hardy
510 323
55
9
41
6
3
31
20
Siglo XX
Edith Wharton
433 302
65
31
70
7
15
50
27
H. G. Wells
441 337
30
3
53
1
32
30
31
Arnold Bennett
440
368
31
20
19
8
7
37
69
John Galsworthy
447
292
61
28
58
5
1
38
70
Angela Thirkell
586
368
4
5
3
2
0
28
9
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1405
Las cifras de esta tabla ratifican que las preferencias por el uso
de los distintos signos de puntuación han variado con el transcurso
del tiempo. Los signos a los que se recurre con mayor asiduidad son,
en primer lugar, la coma y, en segundo lugar, el punto. En particular,
se aprecia que conforme pasan los años los autores examinados optan
en mayor medida por el punto frente a la coma, lo que indica que las
oraciones evolucionan hacia la simplificación. Por su parte, los dos puntos
presentan una frecuencia de utilización bastante parecida en los periodos
analizados. En el caso del punto y coma, hay un marcado descenso, igual
que los paréntesis. En contraposición, se ha incrementado el uso de los
puntos suspensivos. También ha aumentado el empleo de los signos de
interrogación y de exclamación (CASSANY, 1995, p. 179-180).
2.1 El punto y coma y los dos puntos
A pesar de la heterogeneidad existente durante la Edad Media en
los signos de puntuación, sí se hallaban con frecuencia combinaciones
de rayas y curvas con puntos con la finalidad de crear nuevos signos. El
íncipit del punto y coma se les otorga a los humanistas italianos bajo el
nombre de semicolon; en particular, la imprenta –que se hallaba falta de
nuevos signos de puntuación con los que cubrir la necesidad de facilitar
la diferenciación entre las diversas unidades del discurso– posibilitó su
difusión a un ritmo bastante elevado. La llegada a España de este signo
de puntuación se registra en el año 1606 de la mano del célebre gramático
Felipe Mey con el nombre de colon imperfecto; precisamente el hecho de
que también en esa época se usaran los dos puntos como signo intermedio
ralentizó su expansión (RAE-ASALE, 2010, p. 349).
Los dos puntos ya se utilizaban en latín para separar unidades
intermedias. El nombre clásico de este signo ha sido colon o colon
perfecto. Desde la remota etapa visigótica se registran documentos con
combinaciones de dos, tres o más puntos. En función de los autores, existe
una heterogeneidad en los signos de puntuación, que no solo atañe a las
funciones características de cada uno, sino también al nombre designado.
En el Siglo de Oro se constata la convivencia de los dos puntos y el punto
y coma como signos que señalan una pausa intermedia de manera que
resulta complicado discernir entre el uso de uno y otro signo, si bien
con el paso del tiempo los dos puntos han evolucionado hacia el valor
anunciativo que hoy los define (RAE-ASALE, 2010, p. 355).
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A esta altura, resulta conveniente aportar información concreta
sobre la diversidad terminológica de los signos de puntuación estudiados
en la presente investigación. Así pues, el símbolo que actualmente se
conoce como dos puntos (:) es denominado comma por Nebrija (1502),
coma o cortadura y articulus por Venegas (1531), comma por Dolet
(1540), dos puntos por Torquemada (1547), colum por Yciar (1548),
coma por Villalón (1558), geminatio puncti por Aldo Manuzio (1561),
dos puntos por Guillermo Foquel (1593), colon perfecto por Felipe Mey
(1606), colon por Jiménez Patón (1614), kolon por Correas (1630), colón
perfecto por Juan Villar (1651) y colon perfecto o dos puntos por Víctor
de Paredes (1680). En cambio, lo que hogaño se entiende por punto y
coma (;) aparece con menos frecuencia y más tardíamente en los estudios
lingüísticos anteriores a la creación de la Real Academia Española: Aldo
Manuzio (1561) lo llama punctum semicirculum positum, Felipe Mey
(1606) colon imperfecto, Correas (1630) hupokolon, Juan Villar (1651)
colón imperfecto y Víctor de Paredes (1680) colon imperfecto o punto y
medio (SEBASTIÁN MEDIAVILLA, 2000, p. 78-99).
3 Análisis
3.1 Orthographía española (1741)
3.1.1 El punto y coma
En esta primera edición tan solo se alude a este signo de
puntuación de manera muy lacónica, pues presenta su forma de
escritura y, a continuación, le confiere únicamente un uso en estructuras
adversativas; en particular, informa de que este signo de puntuación ha de
colocarse justo antes de dicha partícula adversativa (RAE, 1741, p. 337).
3.1.2 Los dos puntos
Se limita a indicar cómo se escribe este signo y a aclarar un solo
empleo: en casos de oraciones incompletas desde el punto de vista semántico, de ahí que motivado por esa falta de contenido resulte necesario incorporar más información que posibilite completar el significado
de la oración (RAE, 1741, p. 337-338).
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1407
3.2 Prontuario de ortografía de la lengua castellana (1844)
3.1.1 El punto y coma
Se observan cuatro reglas para el uso del punto y coma: (1) si la
oración contiene varias comas, el punto y coma sirve para representar
una pausa mayor que tales comas; (2) recomienda colocar un punto y
coma precediendo a las partículas adversativas cuando el periodo sea
extenso; (3) para separar cláusulas con cierta independencia semántica;
y (4) para distinguir entre proposición y el ejemplo con que se ilustra tal
idea, de ahí que indique que por ejemplo vaya precedido de un punto y
coma (RAE, 1844, p. 29-31).
3.1.2 Los dos puntos
Este Prontuario recopila cinco reglas para la utilización de los
dos puntos: (1) para citar las palabras literales de un autor o interlocutor;
(2) cuando existen varias proposiciones seguidas sin interrupción en
las que cada una posee sentido gramatical se recomienda dividirlas con
dos puntos; (3) en los casos en que hay una proposición general de la
que emanan otras cláusulas que la explican y comprueban; (4) en los
periodos completos seguidos de una sentencia o proposición breve que
es deducción de tal periodo; y (5) en expresiones prototípicas de saludo
que suelen encabezar las cartas (RAE, 1844, p. 31-32).
3.3 Ortografía de la lengua española (2010)
3.1.1 El punto y coma
La RAE-ASALE (2010) durante seis páginas (349-354) aborda
esta cuestión. Comienza aportando la descripción gráfica que le
corresponde al punto y coma. Tras ello, aborda la correcta ortotipografía:
junto a la palabra o signo que lo precede y separado de un espacio de la
palabra o signo que va después. Tras el punto y coma ha de utilizarse la
minúscula inicial, con la excepción de los textos de naturaleza lingüística,
puesto que es muy característico utilizar este signo de puntuación para
separar ejemplos, de manera que se escribe con mayúscula inicial tras
el punto y coma. Como signo delimitador principal, posee la función de
dividir unidades textuales básicas. Si bien con miras a puntuar un texto la
extensión de una pausa resulta un criterio poco sólido, existe la dilatada
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creencia de que el punto y coma marca una pausa mayor que la coma.
Aclara explícitamente que el hecho de que el punto y coma y la coma
compartan usos no implica que siempre sean intercambiables. Además,
se pueden observar similitudes entre el punto y coma y el punto en tanto
que el punto y coma también sirve para separar oraciones independientes;
ello no significa que se trate de un signo del que se pueda prescindir, dado
que existen la coma o el punto. He aquí dos valores que evidencian la
necesidad del punto y coma: (1) arroja luz sobre las relaciones entre las
distintas unidades que componen los textos de forma que jerarquiza la
información, y (2) permite señalar la vinculación semántica establecida
entre las unidades lingüísticas, de manera que denota una separación
mayor entre las unidades con respecto a una coma, pero una menor
unidad con respecto a un punto.
Establecer una nómina de los usos del punto y coma resulta una
tarea muy compleja dado que no solo depende del contexto, sino también
de la extensión y la complejidad de las secuencias que conforman la
oración, e incluso de la presencia o no de otros signos de puntuación.
Pese a ello, la RAE-ASALE establece la siguiente taxonomía: (1)
entre oraciones yuxtapuestas; (2) entre unidades coordinadas; (2.1)
coordinación copulativa y adversativa; (2.2) coordinación adversativa; (3)
ante determinados conectores, si bien recomienda utilizar punto cuando
los periodos sean bastante extensos.
3.1.2 Los dos puntos
Este signo de puntuación es descrito por la RAE-ASALE (2010)
en once páginas (354-364). En primer lugar, ofrece una descripción gráfica
de los dos puntos. A continuación, aporta las normas ortotipográficas que
rigen el empleo de este signo de puntuación: unidos a la palabra o signos
que los antecede y separados por un espacio de la palabra o signo que
aparece después. Se escribe con minúscula el vocablo que está detrás de
los dos puntos en los casos en que anuncian una enumeración o cuando
establecen relaciones semánticas entre las unidades que separan. Por el
contrario, se ha de poner en mayúscula inicial la palabra que sigue a los
dos puntos si introducen una cita y en ciertos usos epistolares. Para un
estudio detallado de cuándo se debe utilizar la minúscula o la mayúscula
tras los dos puntos, remite a otro epígrafe. Del mismo modo, menciona
el uso no lingüístico de los dos puntos (en ámbitos numéricos como es
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la división matemática o la separación entre las cifras que indican la
hora de manera digital), si bien deriva al epígrafe al que compete dicha
cuestión. Enseguida, se detiene en la función delimitadora de los dos
puntos (que resulta afín con otros signos muy empleados como son la
coma, el punto o el punto y coma), a la vez que recomienda no abusar
de este signo de puntuación.
En cuanto a los usos, distingue siete tipologías: (1) en
enumeraciones con un elemento anticipador; (2) en estructuras no
enumerativas con un elemento anticipador; (3) en el discurso directo;
(4) entre oraciones yuxtapuestas que expresan causa-efecto, conclusión,
consecuencia o resumen de la oración anterior, verificación o explicación
de la oración precedente la cual suele presentar un significado más
amplio y oposición; (5) con conectores, si bien no es muy habitual,
pueden preceder a un conector discursivo en casos en que se inicie un
discurso directo, o bien tras determinados conectores que anuncian una
explicación, un resumen, una ampliación y una contraargumentación; (6)
en títulos y epígrafes; y (7) en algunos escritos específicos como las cartas
tras el saludo que las encabeza y en textos jurídicos y administrativos
después de determinados verbos que indican el objetivo del documento,
como certificar, exponer o solicitar. Por último, examina la concurrencia
de los dos puntos con otros signos: con el punto que cierra las abreviaturas
puesto que este no se considera un signo de puntuación, con los signos
de interrogación, de exclamación, los puntos suspensivos, las comillas,
los paréntesis, los corchetes o las rayas.
4 Discusión y conclusiones
Con respecto a la información analizada, se ha de indicar que la
Orthographía española (RAE, 1741), tanto en el punto y coma como en
los dos puntos, se limita a indicar cómo se representan ambos signos de
puntuación y tan solo explica un uso, que en el caso del punto y coma
se circunscribe a construcciones adversativas y en el de los dos puntos
a oraciones que se complementan desde el punto de vista semántico.
Por su parte, el Prontuario de ortografía de la lengua castellana
(RAE, 1844) recoge cuatro reglas para el empleo del punto y coma, de
las cuales la segunda coincide con los preceptos aportados en la edición
de 1741. Las otras tres responden a: representar pausas más largas que
una coma, dividir cláusulas con significados diferentes y separar la
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explicación del ejemplo que la ilustra. Con respecto a los dos puntos,
incluye cinco reglas, de ellas la primera la dedica a la separación de citas
literales y la quinta a los saludos protocolarios en las cartas; en cambio,
las otras tres normas restantes las centra en la división entre oraciones
que poseen relación semántica entre sí, ya sean varias proposiciones
seguidas con autonomía gramatical individual (regla 2) y la explicación
(regla 3) o la deducción (regla 4) de lo aportado en la oración precedente.
La Ortografía de la lengua española (RAE-ASALE, 2010)
utiliza una estructura similar para describir el punto y coma y los dos
puntos: en primer lugar, describe su representación gráfica, después
identifica la correcta ortotipografía (ambos se escriben pegados a la
palabra o signo precedente y separados por un espacio de la palabra o
signo que les sigue, pero existen divergencias en cuanto a la escritura
en minúscula o mayúscula inicial de la palabra que se escribe tras estos
signos de puntuación); posteriormente aborda la función delimitadora y,
por supuesto, detalla los usos. Las diferencias radican en que en el punto
y coma –tras la explicación ortotipográfica– aporta las similitudes que
comparte con la coma y con el punto, para desembocar en la justificación
de los usos propios del punto y coma, de forma que argumenta la
existencia de este signo. Como cierre al apartado dedicado al punto y
coma, se echa de menos que no detalle la concurrencia con otros signos
de puntuación, cuestión que sí se aprecia en los dos puntos. Aparte, en
los dos puntos se alude a usos no lingüísticos bastante frecuentes, como
es el símbolo matemático que significa división y en la escritura de la
hora de forma digital.
Se ha de destacar que las ediciones de 1741 y 2010 tienen como
denominador común la descripción gráfica de estos signos de puntuación,
asunto que pasa inadvertido en la publicación correspondiente al año
1844. Por tanto, los usos es la única cuestión que aparece en las tres
ediciones comparadas. En el caso del punto y coma no se observa
información contradictoria en las distintas ediciones examinadas, sino
que en la de 1741 tan solo prescribe su uso antes de un nexo adversativo,
en la de 1844 se le añaden tres empleos más: para diferenciarlos de las
comas indicando pausa más larga, para marcar la división de oraciones
independientes semánticamente y para separar una proposición de su
ejemplo. Con respecto a los usos que describe en la edición de 2010,
habla explícitamente de su empleo en oraciones yuxtapuestas, incluye
las coordinadas copulativas y disyuntivas, y se recomienda su utilización
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ante determinados conectores. Por ende, en esta última edición se observa
mejor diferenciación de recomendaciones generales con utilizaciones
más específicas, abordaje del que carece la edición de 1844.
Centrados en el análisis de los dos puntos, también se aprecia
una evolución en la descripción alcanzando mayor detalle en la última
publicación. En la primera edición, la de 1734, tan solo aludía a su uso en
frases incompletas de manera que resultaba necesaria otra oración para
completar el significado. En cambio, en 1844 se incluyen cinco usos, de
los cuales ninguno se corresponde con el que se ofrecía en la primera
edición. En particular, se recomienda su utilización en citas literales, entre
distintas proposiciones con independencia gramatical, para diferenciar
entre proposición general y la que la explica, ante una deducción de
periodo anterior y en encabezamientos de saludos en cartas. La edición
de 2010 recoge siete usos, de ellos resultan novedosos su empleo como
elemento anticipador ya sea en enumeraciones o no, ante determinados
conectores que se vinculan al discurso directo o que comunican una
explicación, un resumen, una ampliación y una contraargumentación,
en títulos y epígrafes y en textos jurídicos o administrativos delante de
ciertos verbos. El cuarto uso que establece la edición de 2010 puede
entenderse como una reformulación de la regla 3.ª e incluso –aunque
resulta bastante comprometida esta asociación– de la regla 4.ª de la
edición de 1844. El empleo de este signo de puntuación para indicar el
estilo directo se observa tanto en la edición de 1844 como en la de 2010.
Del mismo modo, la utilización de los dos puntos en los saludos que
inician las cartas aparecen en las ediciones de 1844 y 2010, en ambos
casos como última norma.
Sin duda, analizar la historiografía de los signos de puntuación
constituye un vasto campo de estudio en el que no faltan las dificultades.
Así pues, la evolución y el desarrollo de los signos de puntuación no solo
afecta a cuestiones como el número, el nombre o la forma, sino también a
su utilización (GARCÍA FOLGADO, 2002, p. 153). Un análisis detallado
del devenir de la puntuación en el mundo occidental puede consultarse
en Parkes (1993). En cambio, la presente investigación se ha centrado en
indagar –desde un enfoque historiográfico– la evolución de dos signos
de puntuación que suelen suscitar bastantes dudas por los escribas. Una
muestra de la confusión terminológica, por citar más ejemplos aparte
de los mencionados más arriba, se halla en el siglo XVI en la conocida
Gramática castellana (1558) de Villalón, en la cual este autor cita lo que
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llama coma si bien su representación gráfica se corresponde con lo que
hogaño se denomina dos puntos e indica que se coloca en la cláusula
entre una oración u otra; a continuación, aborda el llamado colum escrito
como lo que hoy en día se entiende por coma con la función de ubicarse
en la cláusula junto a cada verbo que acaba oración.
Se ha de precisar que la clasificación de los signos de puntuación
y auxiliares que aparece en el Discurso prohemial de la lengua castellana
se hace eco de la establecida por Villar (1651) (PEñALVER CASTILLO,
2015, p. 326). A su vez, conviene justificar la dependencia bidireccional
de diccionario y ortografía, en tanto que el diccionario está condicionado
por la fijación ortográfica a la hora de disponer los lemas y los artículos,
a la vez que la ortografía se ve reflejada en el diccionario porque en
este se sanciona o no la escritura de las palabras, de forma que no solo
normaliza sino también fija la ortografía (ALCOBA, 2012, p. 274). Por
otro lado, se ha de tomar en consideración que el Prontuario de 1844
representa el primer paso que efectúa la Real Academia con el objetivo de
adaptar la ortografía al campo de la enseñanza de la lengua (PEñALVER
CASTILLO, 2015, p. 316).
En suma, la ortografía conforma el pilar básico no solo para
el entendimiento comunicativo en el plano escrito del español, sino
que está inexorablemente enlazada con la confección de diccionarios,
con el estudio de la gramática y, por supuesto, con la enseñanza del
español como lengua extranjera. A su vez, indagar en la evolución
diacrónica de los signos de puntuación permite constatar cómo se han
ido complejizando las reglas sobre su uso. En el caso concreto de los
dos signos aquí examinados –el punto y coma y los dos puntos– resulta
bastante paradójico que, por una parte, se documente su utilización en
escritos tan tempranos y que, por otra parte, en la actualidad el punto y
coma lamentablemente está casi extinguido y los dos puntos se emplean
en escasas ocasiones; de hecho, incluso en las aulas universitarias los
discentes con frecuencia demuestran desconocer el uso de estos dos
signos de puntuación. Esta investigación se cierra evocando el peculiar
sentido del humor del prestigioso literato Stendhal, quien en La Cartuja
de Parma pone en boca de Ludovico la polémica frase «La ortografía no
da talento» (1987, p. 317). Reflexionar sobre dichas palabras corrobora
el ingente abismo existente entre el pensamiento de buena parte de la
sociedad y el rigor filológico necesario para que la comunicación resulte
efectiva.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019
1413
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O papel dos marcadores prosódicos na fluência de leitura
The role of prosodic markers in reading fluency
Alcione de Jesus Santos
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais /Brasil
alcionejs@yahoo.com.br
Vera Pacheco
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, Bahia /
Brasil
vera.pacheco@gmail.com
Marian dos Santos Oliveira
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, Bahia /
Brasil
mdsoliveira@gmail.com
Resumo: A escrita conta com recursos gráficos como marcadores prosódicos gráficos e
marcadores prosódicos lexicais que indicam aspectos melódicos e rítmicos para o leitor
(CAGLIARI, 2002a, 2002b; CHACON, 1998). O leitor fluente deve necessariamente
recuperar, em sua leitura, esses aspectos prosódicos (SHREIBER, 1991; KUHN et al.,
2003; BREZNITZ, 2006). Portanto, a prosódia é vista como uma característica que
deve ser considerada para constatar a fluência. Nosso objetivo foi caracterizar a leitura
em voz alta de leitores em diferentes níveis de ensino: leitores do 2º ano de ensino
primário, leitores do 2º ano de ensino médio; leitores com nível de graduação, a fim
de entender a relação entre a fluência de leitura e questões prosódicas. Preparamos um
design experimental, no qual controlamos as frases-alvo sob o impacto de marcadores
prosódicos. Preparamos duas condições experimentais: uma para o marcador prosódico
lexical “perguntou” e uma para o marcador prosódico lexical “disse”. Através do
Praat, medimos os valores da frequência fundamental de todas as sílabas tônicas das
frases-alvo e extraímos as curvas melódicas das frases-alvo. Os resultados mostram
que a capacidade de recuperar aspectos prosódicos incitados em texto por marcadores
prosódicos são diretamente proporcionais aos níveis de escolaridade.
Palavras-chave: fluência de leitura; leitura e escrita; marcadores prosódicos.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1417-1457
1418
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
Abstract: Writing has graphic resources such as graphic and lexical prosodic markers
that indicate melodic and rhythmic aspects to the reader. (CAGLIARI, 2002a, 2002b);
CHACON, 1998). The skilled reader must necessarily recover, in her/his reading, these
prosodic aspects. Therefore, prosody is seen as a feature that should be considered
during reading evaluation in order to check reading fluency. (SHREIBER, 1991;
KUHN, 2003 et al.; BREZNITZ, 2006). This paper aims to characterize reading aloud
of readers at different levels of education: readers on the 2nd year of primary education,
readers on the 2nd year of high school and readers at the college undergraduate level in
order to understand the relationship between reading fluency and prosodic issues. An
experimental design was set, in which we control target phrases under the impact of
prosodic markers. We also prepared two experimental conditions: one for the lexical
prosodic marker “asked” and another for the lexical prosodic marker “said”. Through
Praat we measured the values of fundamental frequency of all the tonic syllables of
the target sentences and extracted the melodic curves of the target phrases. The results
show that the ability to recover prosodic aspects brought about in text by prosodic
markers is directly proportional to levels of education.
Keywords: reading fluency; reading and writing; prosodic markers.
Recebido em 06 de fevereiro de 2019
Aceito em 19 de maio de 2019
Introdução
No processo de leitura, estão envolvidos mecanismos complexos
como decodificação e compreensão de sinais gráficos que comportam
aspectos sintáticos e semânticos. Dentre os aspectos envolvidos no
desempenho da leitura, destaca-se a prosódia que, segundo Cagliari
(2002a, 2002b), mais que a função de enfeitar o texto, exerce função
fundamental de tornar o texto compreensível.
Autores como Shreiber (1991), Kuhn et al. (2003) e Breznitz
(2006) defendem os aspectos prosódicos no desempenho da leitura
quanto à relevância destes na compreensão do material lido. Assim,
leitores capazes de utilizar os aspectos prosódicos de forma apropriada
apresentam uma leitura mais fluida, expondo características de
expressividade da linguagem oral somadas à precisão, velocidade e
compreensão podem ser considerados leitores fluentes.
Um texto escrito conta com recursos gráficos como Marcadores
Gráficos (MG) e marcadores prosódicos lexicais (MPLs) que direcionam
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o leitor para o modo de procedência com as variações melódicas e
entoacionais da passagem que estão sob o escopo dessas marcas gráficas.
(CAGLIARI, 2002a, 2002b; PACHECO, 2006). Como a finalidade
do texto escrito é a leitura, quer silenciosa quer em voz alta, um leitor
fluente deverá ser capaz de, necessariamente, recuperar e apresentar (na
produção de leitura) e recuperar mentalmente (na leitura silenciosa),
esses aspectos prosódicos.
Conforme Cagliari (1989), para que a leitura de um texto escrito
seja de fato significativa, é necessária procedência adequada com as
variações melódicas e entoacionais incitadas por marcadores.
Partindo do pressuposto de que quanto maior for a experiência e
maior o hábito de leitura do leitor, mais marcada prosodicamente será a
sua leitura, espera-se que um bom leitor apresente variações prosódicas
satisfatórias desencadeadas por marcadores prosódicos.
Nosso objetivo foi avaliar a leitura em voz alta de textos ricos
em marcadores prosódicos realizada por indivíduos estudantes das
séries iniciais, iniciando o contato com a leitura; estudantes em séries
mais avançadas; e indivíduos formados, a fim de confirmar ou não a
hipótese de que leitores mais escolarizados (fluentes) resgatam, mais
satisfatoriamente, aspectos prosódicos desencadeados pela presença de
marcadores prosódicos gráficos e marcadores prosódicos lexicais.
1 Prosódia e fluência de leitura
Atualmente, há estudos preocupados em investigar questões
relacionadas à fluência de leitura atrelada a uma realização prosódica
adequada como sendo essencial à compreensão, haja vista que a fluência
na leitura é uma das habilidades necessárias para que compreensão
do sentido de um texto ocorra (LEITE, 2012; BREZNITZ, 2006;
HUDSON; LANE; PULLEN, 2005). Quando falamos sobre a relação
entre prosódia e compreensão de leitura, de qualquer modo, estamos
pensando na compreensão daquele que lê, mas também daquele que ouve
a leitura. Assim, o leitor fluente, no ato da leitura, deverá lançar mão do
gerenciamento adequado dos recursos prosódicos a fim de transmitir os
mais variados tipos de informação (sintático-semântico-discursivas),
destacar constituintes importantes dentro dos enunciados etc. Uma
leitura que traz essas características revela, quase sempre, que o leitor
compreendeu as relações estabelecidas entre as estruturas complexas
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que compõem o texto – o que de algum modo – demonstra certo grau
de compreensão, exceto quando se trata de um texto cujo conteúdo seja
desconhecido pelo leitor, a ponto de ele não ter nenhum conhecimento
prévio que possa auxiliá-lo na compreensão do material lido.
Sendo assim, diante de uma leitura que traz uma cadência
apropriada, o ouvinte é capaz de lançar mão do seu modelo de fala para
articular, inferir e compreender o conteúdo da mensagem que está sendo
veiculada pelo leitor. Para isso, assim como o leitor, o ouvinte também
deve ter, em certa medida, conhecimentos prévios sobre o assunto da
leitura que sustentem a sua compreensão.
Wennerstrom (2000), partindo de uma análise de diálogos
informais entre falantes nativos e não-nativos do inglês, avalia o contributo
das propriedades prosódicas para a caracterização da fluência discursiva.
Os resultados do seu estudo apontam que os falantes considerados mais
fluentes produzem o seu discurso respeitando a coerência e coesão dos
constituintes prosódicos e produzem tons de fronteira que indicam a
continuação discursiva.
Uma pesquisa realizada por Ferreira (2009) avaliou a fluência
de leitura em crianças com e sem necessidades educativas especiais,
estudantes do 2º ano, levando em consideração a utilização das pausas,
bem como o uso adequado das entonações – o uso das vírgulas, dos
pontos finais, reticências, dois pontos, travessão, ponto de interrogação
e ponto de exclamação.
Fussek (2009) investigou a importância dos aspectos prosódicos
para a compreensão da linguagem oral e da leitura. Apresentando um
texto (com e sem variação prosódica) para uma turma do 3º ano do
ensino fundamental, seguidos de dois questionários sobre texto lido,
a pesquisadora concluiu que há correlação entre o desempenho dos
participantes na compreensão da escuta (com e sem prosódia) e o
desempenho na compreensão da leitura.
Se a leitura em voz alta de modo fluente estiver atrelada à
marcação da prosódia adequada, de forma coerente, realizando as pausas
nos momentos apropriados, as curvas ascendente e descendente da
entonação, as chances de a compreensão do texto lido ocorrer de forma
rápida e precisa serão maiores. O contrário ocorrerá se a leitura em voz
alta desconsiderar o modo de procedência anteriormente citado. Nesse
caso, a leitura tende a ser mais lenta de modo que a atenção se voltará para
a decodificação, comprometendo, assim, a compreensão do material lido.
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A falta de marcação prosódica adequada em uma leitura em voz
alta é com frequência encontrada nos primeiros estágios de aquisição de
leitura. Nessa fase, é comum a criança decifrar o texto de modo lento,
na maioria das vezes, negligenciam as marcas de pontuação de modo
que a variação prosódia encontra-se comprometida. Esse fato interfere
significativamente na construção do sentido do texto lido. Contudo, a
partir do aprimoramento e desenvolvimento da habilidade de leitura, a
criança torna-se mais fluente, exceto crianças com algum distúrbio de
leitura.
Considerando que a escrita conta com recursos gráficos que são
capazes de representar aspectos suprassegmentais da fala, a leitura de um
texto deve, pois, apresentar variações de volume, de velocidade de fala
e de entoação típicas da linguagem oral. Além disso, a recuperação das
marcas prosódicas presentes no texto escrito é extremamente importante
para a compreensão do discurso que está sendo veiculado. Assim sendo,
creditamos que um leitor escolarizado é mais apto para compreender um
texto escrito porque consegue, com mais facilidade, apresentar na leitura
aspectos suprassegmentais responsáveis pela organização discursiva
como, por exemplo, as pausas, ritmo, grupos tonais, velocidade de fala,
volume e qualidade de voz. Conforme Cagliari (1989), do ponto de
vista do sistema escrito, o ato da decodificação das palavras na leitura é
muito importante. Contudo, na leitura, muito mais que decifrar palavras,
é necessária a concatenação das palavras em unidades fonológicas,
sintáticas, semânticas e discursivas para que se compreenda o conteúdo
do texto.
Apesar de não existir um consenso na sua definição, o conceito de
fluência de leitura já vem considerando os aspectos prosódicos. Percebese que a prosódia – aspecto integrante da fluência de leitura – constitui
uma condição para a leitura eficaz. Sendo desse modo, a fluência atrelase à automatização, prosódia e compreensão. As discussões dos autores
citados neste trabalho convergem no sentido de que a adequação da
variação de prosódia durante a leitura é um indicador de sua competência
leitora.
2.1 Os marcadores prosódicos gráficos/sinais de pontuação - MPG
Os sinais de pontuação têm, na escrita, usos e funções bastante
diversificadas (PACHECO, 2008). Desde os escritos do grego antigo
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vê-se o uso dos sinais de pontuação, sobretudo o uso dos sinais que
diferenciam as interrogativas e afirmativas (CAGLIARI, 1995).
O uso dos sinais de pontuação justifica-se tanto por razões
sintáticas quanto por razões prosódicas já que, como propõe Cagliari
(2002a, 2002b), os sinais de pontuação referem-se, quase sempre, a atos
sintáticos que apresentam um padrão prosódico próprio, como as frases
afirmativas, interrogativas.
Por essa razão é que os gramáticos tradicionais atribuem o uso
dos sinais de pontuação à tentativa de reprodução das pausas, cadências,
ritmo, entonação e as melodias da fala (PACHECO, 2003). Para esta
autora, as normas propostas pelos gramáticos tradicionais para os
usos dos sinais de pontuação estão estritamente ligadas à sintaxe ou à
semântica, embora sejam uma tentativa de representação dos aspectos
da língua falada.
Chacon (1998) desenvolveu estudos importantes a respeito
de um ritmo da escrita. Para ele, a escrita, assim como a fala, possui
um ritmo próprio, determinado pelo uso de sinais de pontuação. Além
disso, o recurso da pontuação atrela-se à expressão do escrevente e à
espacialização da linguagem, simultaneamente em várias dimensões:
(a) na dimensão fônica, associada a pausas, contornos entoacionais,
intensidade e duração; (b) na dimensão sintática, associada à delimitação
de unidades; (c) na dimensão textual, indicada como a responsável
pela organização e coerência textual; (d) na dimensão enunciativa,
ligada à expressividade do escrevente no código semiótico. Todas
essas dimensões estão organizadas de forma não isomórfica, unidas
por meio da enunciação ao ritmo da escrita e, juntas, formam o aspecto
multidimensional da linguagem.
Para Corrêa (2004), há uma prosódia presente na circulação do
escrevente pela imagem que ele faz da gênese da escrita. Na concepção
desse autor, a prosódia aparece na escrita somente através da articulação
com outros planos como o léxico e a sintaxe, por exemplo. Além disso,
quase sempre, a leitura de um texto escrito é feita mediante a imposição,
quer seja em voz alta quer não (considerando que, na leitura silenciosa, o
leitor recupera, ainda que mentalmente, os aspectos prosódicos), de uma
prosódia. Nesse sentido, a prosódia não é única e exclusivamente da fala,
haja vista que se constitui como exigência da leitura, demarcada, também,
pelo uso dos sinais de pontuação. Ademais, o leitor poderá, perfeitamente,
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recuperar a prosódia por meio de diferentes pistas linguísticas deixadas
pelo escrevente. (CORRÊA, 2004, p. 116)
Dentre os estudiosos que atribuem aos sinais de pontuação
a importância na organização sintática, semântica, bem como na
representação das variações da fala, destacam-se Kondo e Mazuka (1996);
Cohen et al (2001) que veem os sinais de pontuação como sendo análogos
visuais da prosódia. Teóricos como Baldwin e Coady, (1978), Chen et
al. (1988) atribuem à pontuação a função de organizadora da sintaxe.
Estudiosos como Cagliari (1995) entendem os sinais de pontuação
enquanto marcas de coerência e coesão. Chacon (1998) classifica os
sinais de pontuação como delimitadoras de unidades rítmicas.
Cagliari (1989) apresenta a hipótese de que os sinais de pontuação
funcionam como marcadores prosódicos. Essa hipótese é reafirmada por
Cagliari (2002a, 2002b) quando apresenta uma descrição prosódica dos
principais sinais de pontuação do português brasileiro. Os trabalhos de
Cagliari apontam que a presença de um sinal de pontuação tende a incitar
variações prosódicas.
Os trabalhos de Pacheco (2003) endossam as considerações
de Cagliari (1989, 2002a, 2002b) acerca dos marcadores prosódicos
da escrita. A pesquisadora desenvolve estudo no qual caracteriza
acusticamente os sete sinais de pontuação mais comuns do português
brasileiro quais sejam: dois pontos, interrogação, ponto e vírgula,
reticências, ponto final, exclamação e ponto final. Com base na leitura
oral de seis informantes, a autora encontra variações de F0, intensidade,
duração e pausa nos componentes tônico e pretônico nas frases que
aparecem sob incidência dos sinais de pontuação por ela investigados.
As conclusões às quais Pacheco (2003) chega são de que os sinais de
pontuação podem ter características acústicas particulares, de modo a
se diferenciarem entre si.
Em linhas gerais, os sinais de pontuação têm funções diversas e
influenciam sob diferentes aspectos a organização da linguagem escrita.
Eles se constituem como marcas sintático-prosódico-discursivas que
contribuem para a organização e compreensão do texto escrito. Levando
em conta que a finalidade do texto escrito é a leitura, esta deve, pois,
recuperar informações importantes que são introduzidas no texto pelo uso
dos sinais de pontuação. Um leitor fluente deverá ser capaz de gerenciar
a sua leitura, quer em voz alta, quer silenciosa, recuperando aspectos da
fala oral importantes para a compreensão do que está sendo lido.
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2.1.2 Os marcadores prosódicos lexicais – MPLs
As diversas situações comunicativas em que o falante está
inserido cotidianamente exigem dele uma intenção comunicativa,
fazendo-o lançar mão de escolhas de ordem sintagmática e paradigmática
(PACHECO, 2006).
De acordo com Reis (2001, p. 223), “a entonação desempenha
papel fundamental no ato de comunicação linguística através da
manifestação de atitudes de falantes”. Sendo assim, a entonação exerce
um papel importante na atribuição da carga semântica à atitude dos
falantes. Pode-se dizer, então, que a entonação nos permite aferir atitudes
do falante como polidez, autoritarismo, arrogância, tristeza, alegria etc.
A atitude do falante se distingue, pois, da emoção que se trata de um
comportamento adotado e controlado pelo falante, com implicações
morais e intelectuais como, por exemplo, a reprovação, a justificativa e
a ironia (FÓNAGY, 1993).
Conforme Fónagy (1993), o próprio ato comunicativo exige que
o falante apresente em sua fala variações entoacionais como as sentenças
interrogativas e exclamativas, por exemplo. Encontramos, ainda, nas
situações comunicativas do dia a dia, variações entoacionais que não
são controladas pelos falantes. Estas, por sua vez, são reflexos da tensão
psíquica: cólera, alegria, tristeza, manifestadas inconscientemente na fala.
De acordo com o autor supracitado, essas variações melódicas presentes
nas situações comunicativas, decorrentes das atitudes do falante, a saber,
da modalização e da emoção, são variações prosódicas que podem
também ser registradas na escrita através de expressões semânticas que
fazem referência à prosódia da língua, já que estas atitudes, emoções e
modos de dizer requerem um modo de procedência do ponto de vista
fonético. A respeito de tais expressões Cagliari (2002a, p. 7) pontua que:
Caracterizam atitudes do falante, emoções e modos de dizer
que fazem uma referência à prosódia da língua, uma vez que
tais atitudes, emoções e modos de dizer precisam ser realizados
foneticamente de uma determinada maneira e não de outra
(CAGLIARI, 2002a, p. 7).
Embasada nas discussões de Cagliari (2002a, 2002b), Pacheco
(2006) considera esses marcadores prosódicos como sendo “entradas
lexicais no léxico mental dos falantes”, enquanto tal, podem muito
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1425
bem estarem sujeitas ao funcionamento de qualquer unidade lexical e
pertencer, por exemplo, a uma classe gramatical.
Entende-se, então, que essas unidades semântico-lexicais de cunho
prosódico podem pertencer a categorias gramaticais diversas, podendo
ser um, verbo (gritou, sussurrou), adjetivo, advérbio (raivosamente,
calmamente), expressões adverbiais (disse baixinho), que são usadas
para qualificar prosodicamente o significado de um verbo que se refere
ao ato de falar (CAGLIARI, 2002a, 2002b).
A classificação dessas entradas lexicais como marcadores
prosódicos deve-se a sua carga semântica, que comporta informações
de cunho prosódico, que podem se referir às atitudes do falante: raiva,
polidez, autoritarismo, e/ou ritmo, volume. (CAGLIARI, 2002a, 2002b;
PACHECO, 2006).
Do ponto de vista de Pacheco (2006), essas referências, na
condição de um marcador prosódico do tipo lexical, podem, então, ser
consideradas como Marcadores Prosódicos Lexicais (MPLs) portadores
tanto de informações da ordem da escrita (na condição de palavras
constituídas ortograficamente), quanto de informações da ordem da
fala precisamente prosódica (na condição de palavras e/ou expressões
cuja carga semântica traz necessariamente informações que remetem a
variações prosódicas).
A hipótese apresentada pelos autores supracitados é de que
atitudes e emoções podem ser resgatadas na escrita por meio de recursos
como os marcadores prosódicos lexicais, por exemplo. Sendo assim,
pode-se afirmar que a leitura em voz alta de textos que trazem registrados
os marcadores prosódicos lexicais pode ser avaliada observando variações
de velocidade de fala, tessitura e volume, desencadeadas por MPLs.
Considerando que a razão de ser do texto escrito é a sua leitura
e para que tal leitura seja eficaz é necessário que o leitor proceda
adequadamente com os aspectos rítmicos e melódicos indicados no texto
por determinadas marcas gráficas (sinais de pontuação, itens lexicais,
tipos de letras, formatação do texto etc.) espera-se que leitores fluentes
sejam capazes de recuperar na sua leitura as variações melódicas e
entoacionais desencadeadas por marcadores prosódicos gráficos e por
marcadores prosódicos lexicais.
Na leitura de um texto, o leitor experiente recupera com facilidade
os aspectos prosódicos desencadeados pelos marcadores prosódicos
de modo que sua leitura apresenta características e expressividade
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da linguagem oral. Espera-se, portanto, que leitores escolarizados
apresentem, na leitura, padrões melódicos e entoacionais mais
satisfatórios em detrimento de leitores menos escolarizados.
3 Considerações sobre entoação
Um dos propósitos do presente artigo constituiu-se em
caracterizar o contorno melódico de frases sob a incidência de diferentes
sinais de pontuação introduzidas pelos marcadores prosódicos lexicais
“perguntou” e “disse”, lidas por crianças estudantes das séries iniciais,
estudantes em séries mais avançadas e por indivíduos com nível superior
de escolaridade. A nossa hipótese foi a de que os contornos melódicos
e entoacionais das frases lidas pelos participantes escolarizados seriam
mais compatíveis com o marcador prosódico que lhes antecede e que
lhes sucedem. Sendo assim, considerações acerca da entoação tornamse relevantes para descrever e compreender os contornos melódicos das
frases produzidas pelos diferentes grupos de leitores aqui investigados.
Em se tratando do aspecto estritamente linguístico, Moraes (1993)
define a entoação como sendo responsável por desempenhar funções
específicas (sintáticas, semânticas e pragmáticas) no nível da frase.
A entoação é extremamente importante para o processo
comunicativo. O falante utiliza-se da entoação, nas suas diversas
dimensões, para atribuir e distinguir os mais variados significados à
fala que vão desde conteúdos afetivos e emocionais da comunicação a
aspectos sociolinguísticos (QUILIS, 1988). Contudo, interessa-nos, aqui,
a entoação apenas na sua dimensão linguística, mais especificamente
na sua função distintiva das diferentes modalidades de frases, a saber,
declarativa ou afirmativa, das frases interrogativas, exclamativas etc.
Dentre as diversas funções da entoação, destaca-se a função
modal, responsável por determinar a modalidade da frase, bem como
“a força ilocutória que deve ser atribuída ao enunciado” (MORAES,
1993, p. 102).
A literatura relaciona a entoação aos parâmetros acústicos de
Frequência Fundamental (F0), intensidade e duração (SCARPA, 1999;
FRY, 1976; t’HART; COLLIER; COHEN, 1990). As vibrações das pregas
vocais têm como correlato acústico a F0, em termos perceptuais, a altura
(SCARPA, 1999). Sendo assim a F0 é o correlato direto do aspecto
fonético que a entoação assume nos estudos prosódicos.
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A entoação, então, refere-se à “escala de elevação e abaixamento
da voz em uma frase” (MATTOSO CÂMARA, 1977, p. 6). Essa escala à
qual se refere Mattoso Câmara nada mais é que as variações de F0 que,
ora ascende, ora descende de modo que o contorno melódico é modelado.
Essas variações melódicas ocorrem devido às vibrações da pressão do
ar na laringe no momento em que a fala é produzida.
As variações de F0 dentro de uma sentença vão determinar se
ela se trata de uma afirmativa, interrogativa, exclamativa, ou quaisquer
outras. Em se tratando do português brasileiro, a entoação tem a função
de discriminar os enunciados afirmativos, interrogativos e exclamativos
e/ou outros.
Assim, a configuração do contorno melódico de um enunciado
interrogativo está relacionada a suas estruturas sintáticas e lexical. As
interrogativas totais para as quais se espera como resposta sim ou não (e
que caracterizam os enunciados interrogativos investigados nesse estudo),
apresentam proeminência melódica na sílaba tônica final da sentença.
Nesse tipo de interrogativas, a altura melódica inicial é um pouco mais
baixa, em relação às frases declarativas. No entanto, é o comportamento
da sílaba tônica final que vai distinguir as declarativas das perguntas sim
ou não (REINECKE, 2007).
Portanto, os enunciados vão diferenciar entre si devido às
particularidades do seu contorno melódico. As diferenças que há entre os
diferentes tipos de frases são estabelecidas a partir de pontos específicos
determinados pela posição da sílaba tônica saliente.
Logo, a entoação fornece diferentes padrões prosódicos para
que, tanto o falante quanto o ouvinte, expressem e decodifiquem o que
se quer dizer com determinada entoação (SOUZA, 2007, p. 12). Uma
mesma frase pode apresentar padrões prosódicos distintos a depender
das variações de F0, o que garante à entoação, além do papel semântico
e fonológico, o sintático.
Segundo Massini-Cagliari e Cagliari (2001, p. 117), os diferentes
tipos de enunciados do português “carreiam padrões melódicos que
são determinados pelo sistema”. Desse modo, as frases afirmativas vão
se diferenciar das frases interrogativas quanto às variações das curvas
melódicas: enquanto as frases interrogativas apresentam padrões melódicos
ascendentes – em que as frequências aumentam ao longo da sentença, as
frases afirmativas apresentam padrões melódicos descendentes – em que
a frequência dos sons diminui ao longo da sentença.
1428
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
Conforme Mateus et al. (1994), além das sentenças afirmativas e
exclamativas, há os enunciados imperativos por meio dos quais exprimese uma certeza, uma conclusão ou uma ordem nos quais se observa
variação de F0 no sentido descendente.
Além dos contornos melódicos ascendente e descendente,
há também o contorno melódico plano em que não há modificação
perceptível ao longo da sentença. Pacheco (2003), em estudo no
qual avaliou o padrão prosódico dos principais sinais de pontuação
do português brasileiro, verificou que enunciados finalizados pelas
reticências tendem a apresentar um contorno melódico nivelado, sem
alterações na curva entoacional.
O contorno melódico gerado pela elevação e abaixamento da
F0 em uma sentença é importante porque permite aos interlocutores
de uma interação discursiva captar tanto a modalidade quanto a
intenção subjacentes a uma sentença lida ou pronunciada. Sendo assim,
considerando que os valores de F0 determinam a curva melódica
responsável pelo estabelecimento do significado, a questão que trazemos
para esta pesquisa é: variações de F0 compatíveis com a modalidade
(interrogativa, afirmativa, exclamativa, neutra) estabelecida para as
sentenças por meio dos MPGs e MPLs podem caracterizar leitores
quanto à fluência e à compreensão textual? No intuito de caracterizar
leitores fluentes e não fluentes quanto à capacidade de resgatar variações
prosódicas do texto escrito incitadas por marcas gráficas, bem como
quanto à capacidade de compreensão textual, este trabalho avaliou as
variações da F0 em sentenças produzidas por leitores em processo de
escolarização (grupo I e II) e leitores formados (grupo III).
4 Materiais e métodos
4.1 Seleção dos participantes
Para a seleção dos participantes do grupo I – estudantes do
2º ano do ensino fundamental – foi necessária uma seleção prévia
dada a dificuldade de leitura que leitores dessa faixa de escolaridade
apresentam. Para a seleção dos participantes da pesquisa, optamos por
escutar a leitura do texto “O Palhaço” realizada por seis colegiais para
observar se apresentavam um nível de domínio de leitura satisfatório
para a observação das variáveis propostas na primeira etapa desse estudo,
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1429
quais sejam, a velocidade e precisão de leitura para avaliar a fluência
de leitura. A escolha do texto “O palhaço” deveu-se por se tratar de um
texto com sintaxe simples, com grau de dificuldade de leitura compatível
com a seriação escolar do grupo I. Foram excluídos os indivíduos que
apresentaram um nível de leitura lentificado e/ou silabado. O texto o
palhaço somente foi usado para seleção dos participantes do grupo I.
Diante desse critério, buscando compor o grupo com quatro participantes,
dois homens e duas mulheres; excluímos dois dos seis alunos avaliados
que apresentaram uma leitura lenta e silabada. Todos os participantes
desse grupo tinham idade de sete anos.
O grupo II – leitores estudantes do 2º ano do ensino médio – foi
composto de quatro jovens, sendo dois homens e duas mulheres com
idade entre 15 e 17 anos.
O grupo dos leitores com nível superior de escolaridade, que
constitui o grupo III, foi composto de dois homens e duas mulheres com
idade entre 30 e 44 anos.
Participaram, então, 12 indivíduos – seis homens e seis mulheres.
4.2 Procedimentos para seleção dos marcadores prosódicos lexicais
4.2.1 MPL “Perguntou” e MPL “Disse”
A escolha desses dois marcadores deve-se ao fato de serem
dois extremos – enquanto o marcador “perguntou” tem dupla face,
ao mesmo tempo em que carrega uma carga semântica, traz também
uma informação prosódica que remete a um enunciado interrogativo, o
marcador lexical “disse” é neutro, isto é, a sua natureza não traz nenhuma
informação prosódica específica. Trata-se, pois, de um verbo dicendi
que pode introduzir perfeitamente, as mais diferentes modalidades
de frases. Com isso, o nosso objetivo foi saber se, diante de um MPL
como “disse” que não incita um comportamento prosódico específico
o leitor menos experiente é capaz de organizar as variações prosódicas
de modo que sejam compatíveis com o MPG que finaliza a frase. Além
disso, a escolha pelo marcador “perguntou” nos possibilitou verificar em
que medida leitores experientes são capazes de, a partir da presença do
MPL “perguntou”, modelarem sua leitura em tom ascendente (típico dos
enunciados interrogativos) ainda que as frases não sejam finalizadas pelo
ponto de interrogação correspondente ao MPG “perguntou”.
1430
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
4.2.2 Seleção dos marcadores prosódicos gráficos
Partindo das constatações de Cagliari (1989, 2002a, 2002b),
bem como de Pacheco (2003, 2006, 2008) as quais evidenciam que
as variações melódicas da fala podem ser representadas na escrita por
meio de marcas gráficas, selecionamos, neste trabalho, como objeto de
investigação, os sinais de pontuação: exclamação, interrogação, ponto
final, reticências por se tratarem dos sinais de pontuação mais usuais na
escrita do português brasileiro.
4.2.3 Seleção e produção das frases-alvo
Foram criadas três frases para serem utilizadas sob a incidência
dos MPLs e dos MPGs, como segue:
QUADRO 1 – Frases usadas sob a incidência dos MPL e dos MPGs
Frase 1 – Isso é tudo o que vossa majestade quer
Frase 2 – É tudo o que eu preciso fazer
Frase 3 – Vossa majestade acredita mesmo nisso
Frase 4 – É possível sair dessa vida
Todas as frases-alvo ocorrem, nas condições da presença do MPL/
DISSE e MPL/PERGUNTOU, seguidas dos MPGs: (?),(!), (...), (.), (s/p
sem pontuação), conforme disposto no quadro 2, seguinte:
QUADRO 2 – combinações dos MPL com os respectivos MPGs investigados
MPL2/Disse
Frase-alvo
MPG3/?
MPL2/Perguntou
Frase-alvo
MPG3/?
MPL2/Disse͢͢
Frase-alvo
MPG3/!
MPL2/Perguntou
Frase-alvo
MPG3/!
MPL2/Disse
Frase-alvo
MPG3/...
MPL2/Perguntou
Frase-alvo
MPG3/...
MPL2/Disse
Frase-alvo
MPG3/.
MPL2/Perguntou
Frase-alvo
MPG3/.
MPL2/Disse
Frase-alvo
S/P1
MPL2/Perguntou
Frase-alvo
S/P1
Fonte: elaboração própria.
Obs 1: S/P: sem pontuação; 2: MPL: marcador prosódico lexical; 3: MPG: marcador
prosódico gráfico; S/P: sem pontuação.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1431
Sendo assim, os informantes foram expostos basicamente a duas
condições experimentais:
Condição 1, na qual os informantes eram expostos aos textos
com frases-alvos introduzidas pelo marcador prosódico “perguntou”,
e finalizadas ora por ponto de exclamação, ora por ponto final, ora
por ponto de interrogação, ora por reticências. Nessa condição, houve
uma coincidência entre variação melódica da frase-alvo e o marcador
prosódico anunciado antes da frase-alvo quando esta era finalizada pelo
ponto de interrogação. Quando as frases-alvos ocorriam nesse contexto,
elas traziam informações prosódicas de uma sentença interrogativa tanto
do marcador prosódico lexical quanto do marcador prosódico gráfico.
Nesse caso, foi possível verificar se houve um aumento na recuperação de
aspectos prosódicos prototípicos quando MPL E MPG são coincidentes.
Quando as frases ocorriam nos demais contextos, finalizadas
por sinais de pontuação não coincidentes com o marcador prosódico
perguntou, elas carregavam informações prosódicas tanto do MPL quanto
do MPG que são diferentes entre si. Essas ocorrências possibilitaram
verificar qual é a estratégia utilizada pelos diferentes leitores, isto é, se
diante de marcadores prosódicos com cargas prosódicas diferentes o que
prevalece é a variação incitada pelo MPL ou pelo MPG.
Condição 2, na qual os informantes eram expostos aos textos com
frases-alvos introduzidas pelo marcador prosódico disse, e finalizadas
ora por ponto de exclamação, ora por ponto final, ora por ponto de
interrogação, ora por reticências. Nessa condição, em que o marcador
prosódico lexical que antecede a frases-alvo é neutro, não carregando
informações prosódicas, foi possível verificar a capacidade dos diferentes
grupos de leitores de resgatarem as variações prosódicas típicas de
ponto de interrogação, exclamação, ponto final, reticências das frases
investigadas.
As condições experimentais apresentadas no quadro 2, bem como
as ocorrências das combinações dos diferentes MPLs com os respectivos
MPGs permitiram compreender o comportamento dos diferentes grupos
de leitores, aqui investigados, com as variações melódicas incitadas por
marcadores prosódicos.
No quadro 3 constam exemplos de ocorrências das combinações
dos diferentes MPLs com os respectivos MPGs.
1432
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
QUADRO 3 – Exemplos de frases-alvo sob incidência dos PMLs e MPGs
MPL/Disse
Frase-alvo
MPG/?
A rosa com muito ódio DISSE:
– Vossa majestade acredita mesmo nisso?
MPL/Disse͢͢
Frase-alvo
MPG/!
A rosa em soluços sorriu para o Cravo e
DISSE:
– É possível sair dessa vida!
MPL/Disse
Frase-alvo
MPG/...
E quase decidida a visitar o cravo, para si
DISSE:
– É tudo o que eu preciso fazer...
MPL/Disse
Frase-alvo
MPG/.
Desejando amolecer o coração do cravo
DISSE:
– Isso é tudo que Vossa Majestade quer.
MPL/Perguntou
Frase-alvo MPG/?
A rosa com muito ódio PERGUNTOU:
– Vossa majestade acredita mesmo nisso?
MPL/Perguntou
Frase-alvo MPG/!
A rosa em soluços sorriu para o Cravo e
PERGUNTOU:
– É possível sair dessa vida
MPL/Perguntou
Frase-alvo MPG/...
E quase decidida a visitar o cravo, para si
PERGUNTOU:
– É tudo o que eu preciso fazer...
MPL/Perguntou
Frase-alvo MPG/.
Desejando amolecer o coração do cravo
PERGUNTOU:
– Isso é tudo que Vossa Majestade quer.
4.2.4 Seleção e produção dos textos
Foram elaborados três textos para serem inseridas as frases-alvos
sob incidência dos MPGs e MPLs, nas situações descritas no quadro
3. Escolhemos três narrativas conhecidas da literatura infantil, a saber,
Branca de Neve, O Cravo e a Rosa e A Cigarra e a Formiga. Criamos
uma versão para cada uma dessas narrativas. Feito isso, elaboramos, para
cada uma dessas narrativas, nove versões com pequenas mudanças em
cada uma. Sendo assim, cada narrativa conta com 10 versões, totalizando
30 textos. Inserimos estrategicamente as quatro frases-alvo nessas
narrativas de modo que cada combinação aparece três vezes ao longo
dos textos. Como forma de padronizarmos o ambiente de ocorrência dos
marcadores prosódicos investigados nessa pesquisa, cada um dos três
textos possui 10 versões (I, II, III, IV, V, VI, VII. VIII, IX e X). Essas
versões apresentam diferenças mínimas entre si as quais se justificam
pelas adaptações realizadas nos trechos nos quais foram inseridas as
frases-alvo sob a incidência dos diferentes MPLs. Todos os participantes
leram todas as versões.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1433
Em síntese, o corpus desse trabalho contou com três textos
distintos, cada um deles com 10 versões, sendo composto, portanto, por
30 textos (15 para a investigação do MPL “perguntou” e os respectivos
MPGs (?), (!), (...), (.) e frases sem pontuação, e 15 para a investigação
do MPL “disse” e os respectivos MPGs (?), (!), (...), (.). Cada frase-alvo
aparece três vezes sob a incidência de um mesmo MPL e mesmo MPG
de modo que obtivemos três repetições para cada frase. Tanto o MPL
“disse” como o MPL “perguntou” aparece em 15 versões nas 4 frases-alvo
analisadas sendo 60 frases-alvo para cada MPL com seus 4 respectivos
MPGs portanto. Ao total são 120 ocorrências para cada informante.
4.2.5 Realização das gravações
As gravações foram realizadas no Laboratório de Pesquisa e
Estudos em Fonética e Fonologia (LAPEFF) da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), em uma cabine acústica, utilizando-se
o programa Audacity 2.0.5, a uma taxa de amostragem de 44.100 Hz.
Foi pedido aos informantes que lessem os textos em voz alta. A cada
três versões lidas, foi dada uma pausa de 10 minutos para minimizar o
cansaço do informante. As gravações duraram, em média, 1:30h minutos
para cada informante.
4.2.6 Mensuração da F0
Transferimos o material coletado para o software Praat 5.0
para análise acústica. Mensuramos a F0 de todas as sílabas tônicas das
frases-alvo investigadas. O procedimento foi feito, selecionando a vogal
da sílaba tônica e mensuramos o ponto central da mesma, por meio do
comando Ctrl + 0. Com esse procedimento foi possível avaliar a curva
de F0 das sílabas tônicas, bem como verificar o movimento da F0 em
todas as sílabas tônicas e, assim, descrever e caracterizar a tendência dos
padrões melódicos de frases sob a incidência de marcadores prosódicos
produzidas por leitores ainda em processo de aquisição de leitura, leitores
em séries mais avançadas e leitores com nível superior de escolaridade.
A análise dos dados subsidiada nos pressupostos teóricos
apresentados por Moraes (1998, 1993), Fry (1976), t’Hart, Collier e
Cohen (1990), Scarpa (1999) acerca da percepção de F0 e sua importância
para a entoação, sobretudo no que tange à distinção de modalidades de
frases.
1434
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
5 Resultados e discussões
5.1 As estratégias prosódicas em situação de coincidência e não coincidência
entre MPL e MPG: uma análise acústica
Nosso objetivo, aqui, foi analisar as estratégias prosódicas em
situação de leitura de coincidência e não coincidência entre MPL e MPG.
Com esse procedimento apresentamos mais um parâmetro para análise
de fluência de leitura, que está relacionada ao planejamento prosódico.
5.1.1 Condição experimental MPL/Perguntou + frases-alvo + MPG
Nosso objetivo, aqui, é analisar as estratégias prosódicas em
situação de leitura de coincidência e não coincidência entre MPL e MPG.
Com esse procedimento seremos capazes de trazer mais um parâmetro
para análise de fluência de leitura, que está relacionada ao planejamento
prosódico.
São apresentados na tabela 1 os resultados para as frases-alvo
introduzidas pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou” e finalizadas
pelos Marcador Prosódico Gráfico (?) ponto de interrogação.
TABELA 1 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12
do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas
pelo MPG ponto de interrogação (?).
MPG
MPL/PERGUNTOU
?
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
272.8750
285.2500
277.8833
250.2083
231.2083
0.0073s
INF 2
323.4917
293.5917
265.4750
239.3750
338.5500
< 0.0001s
INF 3
246.7417
217.6592
247.0417
210.6333
260.9833
0.0307s
INF 4
238.5500
236.7500
229.7000
185.1783
232.0167
0.0209s
INF 5
245.9833
266.1250
265.9583
221.7333
213.2000
0.0005s
INF 6
273.4167
224.6250
269.9167
199.8167
272.2000
0.0003s
INF 7
168.8608
203.1417
192.6417
166.4500
239.4500
< 0.0001s
INF 8
155.3875
116.6108
149.2000
123.9942
166.8833
0.0005s
1435
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
INF 9
172.5250
153.6667
149.8167
154.8417
202.8000
< 0.0001s
INF 10
268.1000
220.5083
267.2167
200.3917
265.0000
0.0002s
INF 11
294.1333
246.8667
232.2758
226.6092
298.2917
0.0619ns
INF 12
132.6142
130.7600
156.1250
122.2492
158.3833
0.0121s
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Para esta combinação, temos dois estímulos que remetem à carga
prosódica interrogativa: o marcador prosódico lexical “perguntou” e o
marcador prosódico gráfico (o ponto de interrogação). Desse modo, as
frases afirmativas vão se diferenciar das frases interrogativas quanto
às variações das curvas melódicas: enquanto as frases interrogativas
apresentam padrões melódicos ascendentes – em que as frequências
aumentam ao longo da sentença.
Como mostram os dados dispostos na tabela 1, os participantes
de todos os grupos recuperaram o padrão entoacional ascendente, típicos
de frases interrogativas. As curvas melódicas encontradas para as frasesalvo lidas pelos participantes evidenciam configuração final caracterizada
por um movimento ascendente. De um modo geral, observamos que as
curvas apresentam-se em pontos mais baixos logo antes da sílaba tônica
final para, em seguida, apresentar proeminência na parte final, onde se
localiza a sílaba tônica final.
As médias encontradas para os valores de F0 das sílabas tônicas
foram submetidos ao teste estatístico ANOVA de Kruskal Wallis.
Encontramos valores estatisticamente diferentes entre as médias das
frases lidas por todos os participantes, exceto para o 11.
Observamos que, para a combinação de (perguntou + ?) dessa
condição experimental 1, em que há coincidência entre o padrão prosódico
do marcador que introduziu a frase e o marcador que as finalizou, o padrão
melódico das sentenças assemelha com um dos padrões interrogativos
descritos por Moraes (1998) – o padrão de dupla ascendência – típico
de perguntas retóricas sim ou não, pedidos, enunciados em início de
diálogo, nos quais as informações são consideradas novas . Percebese, de um modo geral, para todos os participantes, proeminência de F0
1436
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
sobre as sílabas tônicas iniciais, e um novo pico acontece sobre a sílaba
tônica final.
Apresentamos na tabela 2 os resultados para as frases-alvo
introduzidas pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou” e finalizadas
pelos Marcador Prosódico Gráfico (...) reticências.
TABELA 2 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12
do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas
pelo MPG reticências (...).
MPG
MPL/PERGUNTOU
...
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
287.1167
274.1250
253.6333
242.0167
283.3000
0.0123s
INF 2
328.9750
294.0750
264.5583
252.7417
300.1417
0.0101s
INF 3
278.1917
229.0500
217.4592
205.1350
290.5250
0.0010s
INF 4
239.0000
219.6000
217.1167
180.8833
254.5250
0.0032s
INF 5
252.1833
238.9333
247.8250
206.0917
267.3333
0.0051s
INF 6
275.4500
251.5917
254.8917
197.4500
252.2333
0.0019s
INF 7
187.5383
201.1667
196.8750
173.2542
219.6750
0.1481
INF 8
132.1375
123.4642
110.8067
130.1683
189.6667
0.0003s
INF 9
169.1583
156.7083
169.2083
170.3500
220.9250
0.0002s
INF 10
256.4000
236.5250
242.8750
189.6083
263.4833
0.0003s
INF 11
281.3417
237.6417
242.6250
216.4667
246.1667
0.1370ns
INF 12
141.5450
161.3250
151.2442
125.0033
172.3583
0.0052s
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Para essa combinação, temos o que é denominado mismatch
(desencontro entre informações vindas de dois ou mais estímulos). O
marcador prosódico lexical “perguntou” indica ao leitor que o padrão
entoacional a ser seguido é o interrogativo, enquanto as reticências
indicam um tom suspensivo (incompletude) e, conforme dados
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1437
encontrados por Pacheco (2003), esse sinal de pontuação desencadeia
contorno melódico nivelado, sem alterações na curva entoacional.
Sendo assim, os informantes poderiam privilegiar qualquer um dos
marcadores prosódicos durante a leitura. Embora não tenha sido possível
distinguir os grupos quanto à fluência observando o seu comportamento
prosódico nessa combinação experimental, verificamos que os leitores
mais escolarizados, diante da situação mismatch, retomavam a leitura,
no sentido de correção e, por fim, priorizaram o padrão interrogativo.
Esse comportamento não foi observado no grupo I, composto por leitores
das séries iniciais.
Verificamos padrão ascendente na leitura de todos os informantes,
mesmo para os leitores menos escolarizados. Como mostram os dados
dispostos na tabela 2, os participantes de todos os grupos recuperaram o
padrão entoacional ascendente, típicos de frases interrogativas. Os valores
de F0 encontrados para as frases-alvo lidas pelos participantes evidenciam
configuração final caracterizada por um movimento ascendente. Embora
a frase estivesse finalizada pelo ponto de reticências (...) que sugere
padrão melódico nivelado ou descendente, o que percebemos é que todos
os participantes mantiveram o padrão prosódico ascendente incitado
pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou”. De um modo geral,
observamos que as curvas apresentam-se em valores mais baixos logo
antes do contorno final para, em seguida, apresentar proeminência na
parte final, onde se localiza a sílaba tônica final.
O teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou, para todos os
informantes, diferenças significativas entre as médias encontradas para
as sílabas tônicas. Apenas para o participante 11 não foram encontradas
diferenças significativas entre as médias das sílabas tônicas.
1438
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
TABELA 3 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12
do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas
pelo MPG ponto de exclamação (!).
MPG
MPL/PERGUNTOU
!
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
274.2333
257.2500
246.5983
217.3250
283.7167
0.0836ns
INF 2
319.8833
289.1083
265.1417
247.1000
336.2583
0.0002s
INF 3
275.6500
242.7917
239.9583
210.1833
272.6333
0.0088s
INF 4
241.6833
222.2083
208.7958
184.8050
255.3083
0.0218s
INF 5
269.8833
244.6000
249.1000
222.2167
277.5833
0.0019s
INF 6
266.1333
231.3750
264.6750
193.1417
245.4833
0.0029s
INF 7
182.4750
196.6000
200.7333
176.2917
229.9500
0.4523ns
INF 8
156.5300
137.6908
157.1167
125.3483
199.8083
0.0011s
INF 9
159.2750
164.6167
162.2250
144.3917
198.7250
0.0017s
INF 10
273.4833
244.6500
266.2583
201.7333
276.4750
0.0004s
INF 11
263.2000
279.0000
254.1275
242.1917
286.5500
0.0105s
INF 12
127.0958
152.9950
149.0667
124.4908
169.1167
0.0075s
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Como mostram os dados dispostos na tabela 3, também para essa
combinação com mismatch (desencontro entre as informações prosódicas
dos dois marcadores – perguntou e ponto de exclamação), os informantes
de todos os grupos recuperaram o padrão entoacional ascendente, típicos
de frases interrogativas. Os valores de F0 encontrados para as frases-alvo
lidas evidenciam configuração final caracterizada por um movimento
ascendente. Apesar de as frases tiverem sido finalizadas pelo ponto de
exclamação (!) que sugere padrão melódico descendente, verificamos
que todos os participantes mantiveram o padrão prosódico ascendente
incitado pelo marcador prosódico lexical “perguntou”. Vemos que os
valores mais baixos de F0 encontram-se na penúltima sílaba tônica, antes
do contorno final para, em seguida, apresentar proeminência na parte
final, onde se localiza a sílaba tônica final.
1439
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
Encontramos valores médios da F0 estatisticamente diferentes
entre si entre as sílabas tônicas das frases para todos os informantes,
exceto para os informantes 1 e 7.
TABELA 4 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas
pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II);
(9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou”
e finalizadas pelo MPG ponto final (.).
MPG
MPL/PERGUNTOU
.
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
286.9167
274.8083
285.3333
236.1500
297.3583
0.0010s
INF 2
301.7083
279.0333
258.5167
211.4083
307.4167
0.0024s
INF 3
255.4500
269.1917
237.0000
220.4667
302.7583
0.0018s
INF 4
320.9000
219.5333
210.5250
170.5917
255.8133
0.0006s
INF 5
239.8250
208.2083
215.7417
198.8250
269.1583
0.0002s
INF 6
276.5750
248.6167
237.0500
189.2917
282.1967
0.0002s
INF 7
186.3058
197.2750
197.9667
174.2500
232.8500
0.0467s
INF 8
136.5258
124.5725
128.7025
117.0175
149.5167
0.4858ns
INF 9
170.9500
153.8500
164.7500
151.9083
218.5250
< 0.0001s
INF 10
254.3833
241.9250
242.1583
185.6500
267.8667
0.0005s
INF 11
285.1083
251.2417
257.7250
247.7250
289.0167
0.0082s
INF 12
125.1767
146.0125
145.0375
140.4333
154.6417
0.4463ns
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Para essa combinação apresentamos também dois marcadores
prosódicos: o marcador prosódico lexical “perguntou”, cuja carga
semântica remete às variações prosódicas de interrogação e o marcador
prosódico gráfico (.) ponto final que, segundo Pacheco (2003), em se
tratando da sua realização acústica, especificamente no que diz respeito
ao parâmetro acústico F0, indica uma queda no componente pretônico
e no componente tônico. Logo, as frases finalizadas pelo ponto de
interrogação apresentam padrão descendente devido à redução da F0.
1440
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
Como é possível verificar na tabela 4, os valores de F0 das frases-alvo
evidenciam padrão final ascendente na leitura realizada por todos os
participantes. A informação prosódica do MPL “perguntou” foi suficiente
para que os participantes entendessem que se tratava de uma frase
interrogativa, ainda que o ponto final finalizasse a frase.
O teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou diferenças significativas
entre as médias das sílabas tônicas das frases-alvo na leitura de todos os
informantes, excetuando os informantes 8 e 12.
TABELA 5 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo
III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e sem pontuação ao final.
MPG
MPL/PERGUNTOU
s/p
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
291.2583
271.5000
244.7425
236.8000
286.4083
0.0004s
INF 2
326.8083
272.3417
260.1000
236.4250
313.1500
< 0.0001s
INF 3
234.4517
269.0917
241.0333
198.8583
306.9583
< 0.0001s
INF 4
230.4083
213.8583
219.9500
196.9000
259.2167
0.0501ns
INF 5
272.0750
252.4583
240.2750
225.2750
270.6833
0.0092s
INF 6
299.2167
238.9833
259.0917
210.7833
266.8417
0.0336s
INF 7
181.6417
201.4083
199.9417
179.0833
228.2775
0.0056s
INF 8
124.2342
133.1975
143.6050
128.8608
185.0925
0.0307s
INF 9
159.1833
164.0783
155.8333
162.2167
231.5000
0.0006s
INF 10
253.0083
252.1750
250.0083
208.0083
275.5500
0.0071s
INF 11
269.3333
237.7917
238.4917
258.6333
282.5333
0.0058s
INF 12
120.4167
146.0675
138.1067
119.9133
168.8417
0.0211s
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Para as frases introduzidas pelo marcador prosódico lexical
“perguntou” e sem pontuação ao final, os informantes foram expostos a
apenas um estímulo prosódico no que se refere à entoação da modalidade
da frase. Nesse tipo de condição experimental, um leitor fluente é capaz
de se guiar pelo marcador prosódico inicial que lhe indica que a frase se
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1441
trata de uma interrogativa. Assim, o mais natural seria encontrar, para essa
combinação, padrão ascendente nos contornos melódicos, característicos
de enunciados interrogativos.
Conforme é possível verificar na Tabela 5, o movimento de
F0, na combinação MPL/perguntou + frases-alvo/sem pontuação,
configurou-se da seguinte forma: valores altos de F0 associados às três
primeiras sílabas tônicas, queda de F0 sobre a penúltima sílaba tônica e
aumento significativo de F0 sobre a sílaba tônica final. O teste ANOVA
atestou diferenças significativas entre as médias encontradas para essa
combinação na leitura de todos os informantes, exceto para o informante 4.
5.1.2 Condição experimental MPL/Disse + frases-alvo + MPG e MPL/Disse
Para a condição experimental 2, em que as frases foram
introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelos
diversos marcadores prosódicos gráficos, a saber ponto de interrogação
(?), reticências (...), exclamação (!) e frases sem pontuação ao final não
temos mismatch, e o que determinará o planejamento prosódico dos
participantes é capacidade deles de gerenciar sua leitura a partir dos
marcadores prosódicos que lhes serão apresentados. Como o marcador
prosódico lexical “disse” é neutro do ponto de vista prosódico, ou seja,
ele pode perfeitamente introduzir as mais diferentes modalidades de
frases: interrogativas, afirmativas, exclamativas, imperativas etc.
Vejamos como foi o planejamento prosódico dos diferentes
grupos diante da condição experimental 2 (MPL + frases-alvo + MPG;
MPL + frases-alvo + frases sem pontuação ao final).
A Tabela 6 apresenta os resultados encontrados para as frases
introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelo
marcador prosódico lexical ponto de interrogação (?).
1442
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
TABELA 6 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12
do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo
marcador prosódico gráfico ponto de interrogação (?).
MPG
MPL/DISSE
?
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
277.0167
260.3333
256.9933
256.1333
294.2000
0.0442s
INF 2
319.2833
280.8333
271.1667
254.7417
335.6083
0.0002s
INF 3
263.2833
261.0333
234.7667
200.8917
226.2525
0.0086S
INF 4
232.2333
214.0000
208.4500
187.6333
254.2833
0.0073s
INF 5
248.5833
217.2500
248.4750
198.6833
264.2917
0.0138s
INF 6
278.7333
222.6250
232.2917
204.8583
269.3667
0.0574ns
INF 7
186.3250
195.1667
194.0167
170.6167
200.8933
0.4575ns
INF 8
125.2533
124.2983
124.9483
110.4317
157.1250
0.0016s
INF 9
153.1917
132.0192
140.3667
137.8750
174.2750
0.0013s
INF 10
227.3167
208.9667
218.1250
175.3333
260.6667
< 0.0001s
INF 11
281.1667
253.9250
253.1667
247.5333
266.0333
0.4905ns
INF 12
137.5650
129.5550
146.5342
135.4842
180.0833
0.0099s
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Conforme os dados dispostos na tabela 6, os valores de F0
encontrados para as frases-alvo lidas por todos os participantes dos
grupos I, II e III revelam padrão ascendente na parte final da frase onde se
localizam as sílabas tônicas finais. Os valores de F0 mensurados revelam
padrão melódico ascendente associado às sílabas tônicas, sobretudo sobre
a sílaba tônica final. O padrão interrogativo desencadeado pelo marcador
prosódico gráfico é resgatado por todos os participantes. Nesse caso, a
presença do marcador prosódico gráfico ponto de interrogação (?) justifica
o padrão melódico típico de interrogativas. Conforme evidencia Pacheco
(2003), o ponto de interrogação é caracterizado, acusticamente, pelo
aumento da F0 no componente tônico. Assim, o padrão encontrado para
1443
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
as frases-alvo produzidas pelos participantes dos grupos aqui investigados
foi compatível com os MPLs e os MPGs que incidiram sobre as frases.
O teste ANOVA de Kruskal Wallis não atestou diferenças
significativas entre as médias encontradas para as frases lidas pelos
informantes 6, 7, 11 e 12. Contudo, diferenças significativas foram
encontradas entre as médias das frases lidas pelos demais participantes.
TABELA 7 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas
pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10,
11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas
pelo MPG reticências (...).
MPG
MPL/DISSE
...
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
287.4250
270.2667
251.0083
234.7667
257.6500
0.0727ns
INF 2
341.7750
285.5500
277.4667
244.1833
359.2833
< 0.0001s
INF 3
235.0375
238.6583
230.3033
210.0733
281.0000
0.0996ns
INF 4
208.2133
220.3500
238.4417
186.0017
272.6250
0.0393s
INF 5
251.7833
238.0833
203.6000
204.4333
155.9250
0.0053s
INF 6
249.7750
227.8650
245.2000
203.0667
167.7500
0.0001s
INF 7
163.9700
195.0500
190.7000
177.4083
165.3167
0.0501ns
INF 8
137.1500
126.2500
139.2483
118.1008
118.9050
0.4242ns
INF 9
146.6917
137.3583
142.1917
128.5833
124.5750
0.0335s
INF 10
235.6917
217.9000
203.9167
170.9417
152.0000
< 0.0001s
INF 11
252.7417
246.2583
224.9908
214.2750
161.8008
0.0006s
INF 12
134.7567
140.7742
128.9300
139.0175
132.8200
0.3747ns
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante
Os dados da tabela 7 revelam padrão final ascendente nos valores
de F0 encontrados para as frases-alvo lidas pelos participantes do grupo
I. Contudo, não há nenhuma justificativa para que a frase seja entendida
como sendo uma interrogativa, já que o nem marcador prosódico
1444
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
lexical “disse” tampouco o marcador prosódico gráfico reticências
(...) sugere padrão interrogativo. Já os valores d F0 das frases-alvo
lidas pelos participantes dos grupos II e III configuram-se com padrão
descendente. Conforme Pacheco (2003), as reticências são caracterizadas
acusticamente pela queda da F0 no componente tônico das frases sob o
seu escopo. Sendo assim, as frases sob incidência desse sinal de pontuação
devem apresentar ou contorno nivelado, sem alterações significativas de
elevação e abaixamento da F0, ou padrão final descendente, ocasionado
pela redução da F0, como ocorre em enunciados declarativos. Portanto,
também nesse caso, percebemos que os participantes mais escolarizados
foram capazes de administrar acertadamente as variações melódicas e
entoacionais desencadeadas pelos diferentes marcadores prosódicos se
comparados aos participantes do grupo I (menos escolarizados).
Diferenças significativas não foram encontradas para as médias
das sílabas tônicas das frases lidas pelos informantes 1, 3, 7, 8 e 12. Mas
o teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou diferenças significativas entre
as médias encontradas na leitura dos demais informantes.
Os participantes do grupo I leram a frase-alvo com entoação típica
de interrogativa, como é possível visualizarmos o padrão ascendente,
mesmo não havendo nenhuma justificativa para tal, uma vez que nem
o marcador prosódico lexical nem o marcador prosódico gráfico que
introduziram e finalizaram a frase remetem ao padrão interrogativo. Por
outro lado, os participantes dos grupos II e III procederam adequadamente
com as variações entoacionais típicas dos marcadores prosódicos “disse”
e as reticências.
1445
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
TABELA 8 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12
do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas
pelo MPG ponto de exclamação (!).
MPG
MPL/DISSE
!
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
283.1333
268.1000
274.5583
238.9417
255.4833
0.2487ns
INF 2
325.4400
281.1917
267.4417
219.6583
332.3750
< 0.0001s
INF 3
288.9250
230.9042
245.9333
215.0583
260.8017
0.0129s
INF 4
245.4917
213.5333
226.4833
187.2250
266.8417
0.0026s
INF 5
258.2083
213.4900
248.2417
206.0667
177.6667
< 0.0001s
INF 6
246.7333
236.9333
234.7000
203.7083
164.0075
< 0.0001s
INF 7
160.8067
191.8333
200.4167
169.5583
156.0750
0.0071s
INF 8
146.7467
132.4458
141.1167
135.3350
123.8400
0.6588ns
INF 9
146.2167
149.8583
142.8167
146.5750
122.9500
0.0503ns
INF 10
235.8833
225.0333
193.1417
169.2417
134.1833
< 0.0001s
INF 11
255.9000
246.5275
259.1842
244.0250
219.6192
0.4965ns
INF 12
134.2625
151.8242
133.9517
141.2058
141.7700
0.5157ns
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante
Nas frases-alvo introduzidas pelo MPL “disse” e finalizada pelo
ponto de exclamação (!), produzidas pelos participantes do grupo I,
visualizamos as seguintes características: valores mais altos de F0 são
encontrados na parte inicial da frase. A seguir, na parte intermediária,
são vistos pontos mais baixos e, na parte final, onde está localizada a
sílaba tônica final vemos outro pico da curva melódica. Essa configuração
ascendente é típica de enunciados interrogativos. Ao contrário do que
acontece com as curvas melódicas da frase lida pelos participantes do
grupo I, os valores de F0 encontrados para as frases lida pelos participantes
dos grupos II e III apresentam pontos mais baixos na parte final da frase,
caracterizando um movimento descendente, característicos de enunciados
1446
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
afirmativos e exclamativos. O padrão prosódico mais adequado diante da
leitura de frases finalizadas pelo ponto de exclamação é o descendente,
pois, conforme comprovou Pacheco (2003), em se tratando da F0, a
realização acústica desse sinal de pontuação apresenta aumento do
componente tônico e queda no componente tônico, exatamente o que
percebemos nas frases lidas pelos participantes dos grupos II e III.
Os valores de F0 das frases-alvo lidas pelos participantes do
grupo I, expostas na tabela 8, apresentaram picos altos no início do
contorno que caem ao longo da sentença e, ao final do enunciado,
voltam a apresentar picos altos. O esperado para sentenças finalizadas
pelo ponto de exclamação é uma queda da F0 no fim do enunciado o
que ocasionaria uma curva descendente. Diante dos resultados, observase que os participantes do grupo I, por estarem ainda em processo
de escolarização, em estágios inicias de leitura, não são capazes de
recuperar as características prosódicas específicas dos diferentes sinais
de pontuação.
Diferenças estatisticamente diferentes entre as médias das sílabas
tônicas das frases foram encontradas pelo teste ANOVA de Kruskal
Wallis na leitura dos informantes 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 10. Nas médias das
sílabas tônicas das frases lidas pelos participantes 1, 8, 9 e 12 não foram
atestadas diferenças significativas.
TABELA 9 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos
participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6, 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo
III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo MPG ponto final (.).
MPG
MPL/DISSE
.
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
280.2000
278.6500
282.7000
227.5500
266.0667
0.0568ns
INF 2
306.3667
271.3250
282.0667
257.0667
297.6250
0.0394s
INF 3
257.7250
224.2583
247.7750
212.5167
251.5583
0.0294s
INF 4
246.0250
223.5500
214.4000
194.8333
244.4750
0.0097s
INF 5
246.7167
192.9317
231.3750
174.7758
165.1750
0.0014s
INF 6
252.8667
242.1250
271.6750
189.2925
168.8300
< 0.0001s
INF 7
187.7517
194.0233
189.7333
167.5667
156.1283
0.0194s
1447
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
INF 8
134.4233
121.0900
119.8083
155.9367
115.9567
0.0506ns
INF 9
140.6750
142.2925
139.6333
133.8883
135.8417
0.6593ns
INF 10
207.7917
216.1000
200.2667
161.9583
149.9250
< 0.0001s
INF 11
256.1642
227.6500
248.7833
204.8667
163.7008
0.0005s
INF 12
122.0600
127.5258
152.5667
127.4275
132.6833
0.1847ns
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Para Cagliari (1989), os sinais de pontuação funcionam como
marcadores prosódicos. Tal função é reafirmada por Cagliari (2002a,
2002b) ao descrever prosodicamente os principais sinais de pontuação
do português brasileiro. Os trabalhos de Cagliari confirmam que a
presença de um sinal de pontuação tende a incitar variações prosódicas.
Os trabalhos de Pacheco (2003, 2006) endossam as considerações de
Cagliari (1989, 2002a, 2002b) acerca dos marcadores prosódicos da
escrita. Ao encontrar variações de F0, intensidade, duração e pausa nos
componentes tônicos e pretônico nas frases sob incidência dos sinais
de pontuação dois pontos, interrogação, ponto e vírgula, reticências,
ponto final, exclamação e ponto final, a pesquisadora confirma que os
sinais de pontuação podem ter características acústicas particulares, de
modo a se diferenciarem entre si. Tratando, especificamente, do ponto
final (marcador prosódico gráfico), caracteriza-se por apresentar queda
de F0 no componente pretônico e no componente tônico nas frases
sob sua incidência. (PACHECO, 2003). Como mostram os dados da
tabela 9, os valores de F0 encontrados para as frases-alvo introduzidas
pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelo ponto final
(marcador prosódico gráfico), lidas pelos participantes dos grupos II e
III visualizamos as características apontadas por Cagliari (1989, 2002a,
2002b) e Pacheco (2003). A configuração do contorno melódico é a de
um enunciado afirmativo, apresentando contorno final descendente.
O contrário é percebido nas curvas melódicas da frase-alvo lida pelos
participantes do grupo I. Notamos contorno final ascendente (evidenciado
pelo aumento da F0), prototípico de enunciados interrogativos. Os dados
apresentados na Tabela 9, para os informantes 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12,
demonstram a configuração de curvas prototípicas de frases afirmativas
1448
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
ou exclamativas, caracterizadas por um contorno final descendente. O
contorno final ascendente, encontrado para os informantes 1, 2, 3, e 4,
demonstra que os participantes do grupo I não foram capazes de proceder
adequadamente com os padrões melódicos e entoacionais desencadeados
pelos diferentes marcadores prosódicos, já que o MPL “disse” não suscita
contorno ascendente.
Diferenças significativas entre as médias das tônicas foram
encontradas pelo teste ANOVA na leitura dos informantes 2, 3, 4, 5,
6, 7, 10 e 11. Para os demais participantes as médias não diferiram
estatisticamente entre si.
TABELA 10 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas
pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II);
(9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse”
e finalizadas pelo MPG ponto final (.).
MPG
MPL/DISSE
s/p
1st
2st
3st
4st
5st
P
INF 1
281.1750
270.9667
267.2583
228.3500
267.9917
0.3127ns
INF 2
339.5000
284.2500
270.0750
251.5500
320.5167
< 0.0001s
INF 3
262.8000
264.6000
265.6667
203.2083
277.9583
0.0014s
INF 4
226.2917
206.7908
209.7333
189.3667
250.8000
0.0588ns
INF 5
261.8750
250.6750
258.7333
199.8333
163.1500
< 0.0001s
INF 6
258.5167
234.4483
227.2500
206.0000
164.2667
< 0.0001s
INF 7
197.0750
196.0658
200.0583
168.1167
167.0050
0.0272s
INF 8
149.4000
126.2792
153.2108
112.0117
119.7683
0.0330s
INF 9
146.4667
155.5250
147.8417
136.6500
121.3183
0.1061ns
INF 10
239.9500
238.1833
224.4750
210.5667
155.7917
0.0003s
INF 11
197.4000
224.9500
225.4583
176.4667
142.7808
0.0036s
INF 12
133.0283
150.3167
130.1350
128.5317
135.0358
0.4489ns
Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG:
marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P:
sem pontuação; INF: informante.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1449
A Tabela 10 mostra os valores de F0 encontrados para as
frases-alvo introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e
sem pontuação ao final, lidas pelos informantes dos grupos II e III
com configuração do contorno melódico de um enunciado afirmativo,
apresentando contorno final descendente. Os valores de F0 das tônicas
das frases-alvo lidas pelos informantes do grupo I evidenciaram contorno
final ascendente (marcado pelo aumento da F0), prototípico de enunciados
interrogativos. Os dados da Tabela 10 apontam que os informantes 5,
6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, realizaram a leitura das frases lançando mão de
entonação compatível com frases afirmativas ou exclamativas, as quais
apresentam um contorno final descendente. O contorno final ascendente,
encontrado para os informantes 1, 2, 3, e 4, pois encontramos valores
mais altos de F0 incidindo sobre a sílaba tônica final.
Diferenças significativas entre as médias das tônicas foram
encontradas pelo teste ANOVA na leitura dos informantes 2, 3, 5, 6,
7, 10, 11 e 12. Para os demais participantes as médias não diferiram
estatisticamente entre si.
Como o MPL “disse” pode introduzir as mais diferentes
modalidades de frases e porque as frases-alvo nessa combinação não
foram pontuadas ao final, os informantes poderiam apresentar qualquer
padrão entoacional. O interessante foi o fato de os leitores mais
escolarizados (grupo II e III) apresentarem padrão descendente, enquanto
os menos escolarizados (grupo I) optaram pela leitura das frases em
padrão interrogativo, assim como para todas as combinações das duas
condições experimentais.
6 Discussão
A partir dos resultados encontrados para o grupo I – leitores
em processo inicial de escolarização; grupo II – leitores em estágio
mais avançado de escolarização; grupo III – leitores com nível superior
completo, podemos fazer as seguintes considerações:
1.
O comportamento entoacional das sentenças realizadas pelos
participantes do grupo II e do grupo III, sob a condição
experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG (ou frasesalvo sem pontuação) e sob a combinação experimental MPL/disse
+ frases-alvo + MPG (ou frases-alvo sem pontuação) aproxima
1450
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
esses grupos no sentido de que o comportamento entoacional dos
participantes desses grupos é modelado a depender da natureza
do MPL que introduz a frase. Diante do MPL “perguntou” as
frases-alvo produzidas pelos participantes do grupo II e III e do
MPL configuraram-se com um padrão interrogativo. Quando
diante do MPL “disse”, o padrão melódico das mesmas frasesalvo produzidas por esses participantes só configurou-se como
interrogativo quando as frases foram finalizadas pelo marcador
prosódico gráfico ponto de interrogação. As combinações da
condição experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG
mostraram que a presença do MPL “perguntou” foi suficiente para
que os participantes do grupo II e do grupo III reconhecessem as
sentenças como sendo interrogativas, mesmo quando elas foram
finalizadas por um MPG cuja carga prosódica não remete a uma
interrogação (nas condições de mismatch). Observamos que,
diante de uma condição de mismatch, na qual o MPG que finaliza
a frase não é compatível com o MPL “perguntou” que a introduz,
os participantes do grupo II e do grupo III priorizam a informação
prosódica do MPL “perguntou”, qual seja, padrão interrogativo.
2.
Diante do MPL “disse”, na condição experimental MPL/disse +
frases-alvo + MPG, os participantes do grupo II e III apresentaram
padrão ascendente na combinação MPL/disse + frases-alvo +
MPG/ponto de interrogação. Nesse caso, o padrão interrogativo
foi desencadeado pelo MPG “?”. Nas demais combinações nas
quais não há a presença de um marcador prosódico que carrega
informações prosódicas típicas de interrogativas, como o MPL o
MPG “?”, o padrão que prevalece é o descendente, mais previsível
para os MPGs ponto de exclamação, ponto final, reticências.
Mesmo na combinação MPL/disse + frases-alvo/sem pontuação, o
padrão que prevaleceu para esses participantes foi o descendente.
Nas combinações MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto de
exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final, o MPL
disse neutraliza o acionamento da elevação da curva melódica,
de modo que cabe ao leitor modular o enunciado de acordo com
o padrão melódico correspondente aos MPGs que finalizam as
sentenças, qual seja, padrão melódico descendente e, no caso da
combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/reticências, padrão
melódico nivelado ou descendente. Em se tratando da combinação
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1451
MPL/disse + frases-alvo/sem pontuação, qualquer padrão
melódico seria aceitável, já que não há a presença de nenhum
marcador prosódico que suscite uma informação prosódica
específica. O que acontece, nesse caso, é que o grupo II e o grupo
III optam pelo padrão descendente, enquanto o grupo I mantêm
o mesmo padrão ascendente das outras combinações.
Para as duas condições experimentais aqui investigadas 1 (frases
introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelos MPGs
“?”, “!”, “...”, “.” E frases sem pontuação ao final); 2 (frases
introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelos MPGs “?”,
“!”, “...”, “.” E frases sem pontuação final), os informantes dos
grupos II e III realizam as mesmas sentenças com contornos
melódicos diferentes motivados apenas pela alternância entre os
MPLs “perguntou” e “disse”. O grupo I, por outro lado, apresenta
o mesmo padrão entoacional para todas as frases-alvo.
3.
O comportamento entoacional das frases-alvo lida pelos
participantes do grupo I o aproxima dos grupos II e III nas
sentenças realizadas sob a condição experimental MPL/
perguntou + frases + MPG. Entretanto, nas sentenças realizadas
sob a condição experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG, o
distancia.
Com base nos resultados encontrados, observamos que, para
as sentenças da condição experimental MPL perguntou + frases-alvo +
MPG, os participantes do grupo I apresentam padrão ascendente, típico
de interrogativas. Verificamos contorno final ascendente em todas as
combinações dessa condição experimental. Contudo, para a condição
experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG, observa-se que os
participantes do grupo I apresentaram padrão ascendente para todas as
combinações.
Para as combinações da condição experimental MPL/perguntou +
frases-alvo + MPG e para a combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/
ponto de interrogação, o padrão ascendente era previsível, uma vez que
o MPL “perguntou”, que introduz as sentenças da condição experimental
MPL/perguntou + frases-alvo + MPG, motiva o resgate da carga
prosódica interrogativa, despontada na ascendência dos contornos finais
das sentenças. No caso da combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/
ponto de interrogação, o próprio MPG/ponto de interrogação justifica a
1452
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
ascendência final das sentenças. Entretanto, para as combinações MPL/
disse + frases-alvo + MPG/reticências; MPL/disse + frases-alvo + MPG/
ponto de exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final, não
há justificativa para a elevação final do contorno melódico. Diante disso,
lançamos mão das seguintes hipóteses:
i)
O fato de o padrão interrogativo ser o default da língua, isto é, as
sentenças interrogativas são muito produtivas nas línguas, faz com
que crianças em estágio inicial de aquisição de leitura produzam
as sentenças com padrão interrogativo.
ii)
O fato de o marcador prosódico “perguntou” ter uma carga
prosódica muito forte, e sendo característico da linguagem oral
– utilizado mais frequentemente em contexto de oralidade em
situações comunicativas cotidianas – tenha causado um efeito de
memória nos participantes do grupo I. Como as frases-alvos eram
as mesmas para todas as combinações, é provável que o padrão
interrogativo tenha ficado registrado (efeito de memória), de modo
que, mesmo diante das frases sem a presença do MPL/perguntou
e do MPG/?, os participantes apresentaram padrão interrogativo.
Como indivíduos menos fluentes ainda não têm consciência plena
quanto ao uso e funções dos sinais de pontuação, a carga prosódica
do MPL perguntou prevaleceu sobre todas as sentenças. Contudo,
seria necessária a realização de outro experimento que confirmasse
as nossas hipóteses mencionadas acima. O fato é que, de qualquer
modo, os resultados encontrados para o grupo I nos indicam que:
iii) Os participantes do grupo I não conseguem modelar o contorno
entoacional das sentenças das combinações MPL/disse + frasesalvo + MPG/reticências; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto
de exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final de
acordo com os diferentes sinais de pontuação, uma vez que há
padrão ascendente das frases dessas combinações, mesmo sem
a presença do MPL “perguntou” introduzindo as frases, ou do
MPG/ponto de interrogação finalizando as frases. Como o MPL
“disse” é neutro, não carrega informações prosódicas específicas,
o padrão ascendente é incompatível com os MPGs que finalizam
as frases dessas combinações.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
1453
7 Conclusões
Os resultados encontrados para a caracterização do padrão
acústico das sentenças introduzidas pelos MPLs “perguntou” e “disse”
com respectivas frases sob a incidência dos MPGs (ponto de interrogação,
reticências, ponto de exclamação, ponto final) e frases sem pontuação
produzidas pelos participantes, mostraram que tanto o leitor com maior
nível de escolaridade quanto o leitor com menor nível de escolaridade é
capaz de proceder com variações melódicas e entoacionais compatíveis
com enunciados interrogativos diante de frases introduzidas pelo
marcador perguntou. Isso reforça a dupla natureza desse marcador
(portador tanto de informações semânticas quanto prosódicas) que são
captadas também por leitores menos experientes.
Contudo, diante de frases introduzidas pelo MPL “disse”,
verificamos que os participantes do grupo II e do grupo III, leitores
mais escolarizados, procederam mais adequadamente com as variações
entoacionais prototípicas dos MPGs que finalizaram as frases. Não
encontramos diferenças significativas entre os dados da análise acústica
do grupo II e do grupo III, o que aponta que o comportamento desses
participantes foi semelhante nas duas condições experimentais às quais
foram expostos.
Conforme os resultados obtidos, os leitores escolarizados
conseguem resgatar mais adequadamente as variações entoacionais
incitadas pelos diferentes marcadores gráficos e lexicais presentes no
texto escrito.
O nosso trabalho confirma a hipótese de que o resgate de
marcadores prosódicos gráficos e lexicais pode caracterizar leitores
fluentes e não fluentes.
Os marcadores prosódicos da escrita fazem parte do sistema
linguístico e contribuem para a atribuição de sentido ao texto. No
processo de aquisição da leitura e da escrita, incorporamos essas marcas
gráficas, assim como o sistema ortográfico, e a não consideração desses
recursos gráficos e lexicais, na leitura de um texto, implicaria na falta
de compreensão do texto na sua totalidade.
Nossas constatações sugerem que, no ensino da leitura e,
consequentemente da escrita, nas tarefas de leitura e compreensão de
texto, as questões prosódicas presentes no texto devem ser levadas em
consideração.
1454
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019
Agradecimentos
Aos participantes da pesquisa sem os quais a sua execução não
seria possível.
À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em especial ao
Laboratório de Pesquisa e Estudos em Fonética e Fonologia (LAPEFF)
por nos fornecer a infraestrutura adequada à coleta de dados.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES) pelo subsídio financeiro à pesquisa.
Contribuição das autoras
Alcione de Jesus Santos: atuou na preparação do corpus para coleta
de dados, na coleta de dados, bem como na seleção de referências
bibliográficas e na mensuração e análise dos dados.
Vera Pacheco: atuou na seleção de referências bibliográficas, montagem
do design experimental e na análise de dados, correção das análises e
revisão geral do texto.
Marian dos Santos Oliveira: atuou na seleção de referências bibliográficas,
montagem do design experimental e na revisão da análise de dados.
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Ocorrências de discurso reportado: relações entre produto
e processo em contos etiológicos inventados por uma díade
recém-alfabetizada1, 2
Reported speech occurrences: relations between product and
process in etiological tales invented by a newly literate dyad
Lidiane Lira
Universidade de Pernambuco (UPE), Garanhuns, Pernambuco / Brasil
lidiane.lira@upe.br
Eduardo Calil
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, Alagoas / Brasil
calil@cedu.ufal.br
Resumo: Nesse estudo discutiremos a gênese textual (Genética de Textos) de discursos
reportados (DR) identificados em processos de escritura e seus respectivos manuscritos
escolares, produzidos por uma dupla de alunas do 2º ano do Ensino Fundamental. A
partir do protocolo de coleta de dados proposto pelo Sistema Ramos, foram filmados
10 processos de produção de contos etiológicos inventados por essas alunas. As alunas
deveriam combinar um conto etiológico inventado e, posteriormente, a dupla escreveria
o conto em uma folha de papel. Na primeira parte deste estudo, descreveremos as
ocorrências de DR relacionando produto e processo de escritura. Na segunda parte,
analisaremos o processo de construção do DR a partir do processo de escritura do
conto inventado. Mostraremos que a baixa ocorrência de DR no enunciado escrito em
relação ao DR proferido oralmente dá-se em razão do processo genético de construção
1
Os dados utilizados neste artigo fazem parte de uma pesquisa de Doutoramento,
cuja entrada no Comitê de Ética da Universidade Federal de Alagoas se deu sob
no 12181113.5.0000.5013 e foi aprovado em 05/02/2013.
2
Estudo financiado pelo CNPq, através de financiamento concedido a Eduardo Calil via
Projeto ESCRITURA NA SALA DE AULA: Propostas, Práticas Processos e Produtos
(Projeto ESALA, processo 305312/2011-1).
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1459-1487
1460
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
da narrativa inventada a dois. O DR inscrito na folha de papel é o resultado de uma
série de formulações/reformulações ativadas através do diálogo entre as alunas. Essa
dinâmica parece ter favorecido a dimensão inventiva da narrativa ficcional e, ao mesmo
tempo, a própria produção de unidade de sentido da trama narrativa, colocando em
relação as vozes das alunas/narradoras e as vozes dos personagens.
Palavras-chave: discurso reportado; escrita colaborativa; genética textual; contos
etiológicos.
Abstract: In this study we will discuss the textual genesis (Genetics of Texts) of
reported discourses (DR) identified in writing processes and their respective school
manuscripts, produced by a pair of 2nd year of elementary school. From the protocol
of data collection proposed by the Ramos System, 10 processes of etiological tales
invented by these students were filmed. The students should combine an etiological
tale invented, and later the pair of students would write the story on a sheet of paper.
In the first part of this study, we describe the occurrences of DR relating product and
its writing process. In the second part, we will analyze the process of DR construction
from the process of writing a etiological tales. We will show that the low occurrence
of DR in the written enunciation in relation to DR uttered orally is due to the genetic
process of construction of the narrative invented by two students. The DR inscribed
on the sheet of paper is the result of a series of formulations/reformulations activated
through dialogue between the students. This dynamic seems to have favored the
inventive dimension of the fictional narrative and, at the same time, the very production
of unity of meaning of the narrative plot, putting in relation the voices of the students
/ narrators and the voices of the characters.
Keywords: reported speech; collaborative writing; textual genetics; and etiological
tales.
Recebido em 11 de março de 2019
Aceito em 23 de maio de 2019
1 Introdução
Considerando que a aprendizagem da escritura implica uma
multiplicidade de questões de ordem didático-pedagógicas, relacionadas
ao funcionamento da língua e do discurso, e às características cognitivas
do aprendiz escrevente, (CALIL, 2016; HALTÉ, 1992), tencionamos
destacar a produção escrita de contos etiológicos inventados por
escreventes novatos, observando especificamente o uso de um objeto
linguístico presente neste gênero, a saber, o discurso reportado.
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1461
Partimos da perspectiva teórico-metodológica situada no campo
da Genética Textual e buscaremos analisar a dimensão processual da
escritura a partir de uma abordagem enunciativa. Intentamos relacionar
o processo criativo da escrita dos alunos tomando como unidade de
análise o modo como uma díade de alunas combina oralmente o que
irá escrever durante situações de produção textual efetivadas sob as
condições ecológicas da sala de aula.
2 Discurso reportado e escrita colaborativa
É consensual entre os gramáticos a noção de que o discurso
reportado (DR) é composta a partir da representação de um discurso
em outro discurso e delimitada pelas formas de discurso direto (DD),
discurso indireto (DI) e discurso indireto livre (DIL) (BECHARA,
1999; AZEREDO, 2009). Essas limitadas descrições quando evocadas
por dicionários técnicos e especializados (DUBOIS, 2006; FLORES;
BORGES, 2009) por estudos enunciativo-discursivos (AUTHIERREVUZ, 1998; ROSIER, 2008; MAINGUENEAU, 2002), bem como
pelos estudos da Narratologia (JONASSON, 2003) e da Psicolinguística
(GRANGET, 2008) apontam uma riqueza de formas de manifestações
associadas a diversos gêneros (entrevistas, mídia televisiva, discurso
político, romances), o que por conseguinte, comprova a complexidade
e a heterogeneidade de suas formas.
No âmbito escolar, o DR como elemento gramatical é reconhecido
pelo caráter normativo de suas instâncias cuja aplicação limita-se à
transposição de discursos tais como DD e DI. Contudo, o uso do DR
coloca desafios que vão além da transposição dos discursos. O DR não
reporta um enunciado, mas um ato de enunciação (AUTHIER-REVUZ,
1993) e isso implica situações específicas de produção, sobretudo, quando
apresentado em situação de escritura escolar por escreventes novatos que
escrevem seus primeiros textos.
O DR, ao atuar no interior da narrativa, articula aspectos
de ordem sintático-textual, interferindo diretamente na construção
semântica do texto no que diz respeito ao desenvolvimento do enredo
e à problematização da história, bem como a inserção de personagens,
elemento essencial à representação do DR. Assim, modalizações no que
diz respeito aos espaços enunciativos de aproximação e distanciamento
ao citar a fala do outro são fundamentais para a sua constituição.
1462
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Os estudos sobre a representação do DR por escreventes novatos
atentam-se ao produto textual (BORÉ, 2010; DESCHILDT, 2003), às
produções escritas a partir de textos já conhecidos (ou seja, os alunos
reescrevem ou continuam um texto dado com personagens pré-definidos
ou inventam narrativa ficcional a partir de ilustrações) (FERREIRO et
al., 1996; BORÉ, 2010) e pouco contribuem para compreender quais
fatores podem interferir na construção do personagem, bem como a
representação de suas falas, na história.
Além de não se aterem à dimensão escritural correspondente
ao texto em construção, no geral, esses estudos tendem a focalizar uma
abordagem modular de uso e emprego do DR para representação da
escrita, seja a partir da invenção de um texto sob um determinado ponto
de vista (FERREIRO; SIRO, 2010), ou ainda por meio da continuidade
de uma história já iniciada (BORÉ, 2010). Apesar de abordagens
teórico-metodológicas distintas, tais estudos evidenciam problemas de
focalização enunciativa entre o “discurso do narrador” e o “discurso do
personagem” (BORÉ, 2006; CALIL; DEL RÉ, 2009).
Segundo Genette (1972), no modo narrativo (diègèsis), o
narrador é o sujeito da enunciação, no plano dramático e expressivo
(mimèsis) o sujeito da enunciação é/são o(s) personagem(ns). Para
melhor compreensão, tomemos os contos etiológicos, gênero ao qual
os alunos de nossa coleta foram submetidos. Em termos de estrutura e
composição temática, os contos etiológicos possuem enredos curtos e
remetem à origem e ao porquê das coisas, da fauna e da flora, trazendo
explicações fantasiosas e lúdicas de comportamentos dos habitantes da
floresta e, assim como dos aspectos do mundo real. No interior da trama
narrativa, subjazem não somente enunciados de ação, como também
enunciados que correspondem ao discurso reportado. Observemos como
o DR ocorre no trecho a seguir:
[...] o camundongo, que estava muito cansado, perguntou se podia
ficar abrigado em sua toca por alguns dias.
A andorinha tinha enviuvado recentemente e aceitou de bom grado
o pedido. (ZATZ; ABREU, 2010, p. 23).
Podemos notar que a interação comunicativa entre o camundongo
e a andorinha é dada através do enunciado do narrador. Em “o
camundongo, que estava muito cansado, perguntou se podia ficar abrigado
em sua toca por alguns dias” a fala do personagem é expressa na 3a pessoa
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1463
do singular sob a forma indireta. Isso é facilmente identificado pelo uso do
verbo dicendi “perguntar” acrescido de seu complemento. Em resposta, o
narrador destaca a aceitação da personagem andorinha, sem deixar claro,
dramaticamente, em termos de mimèsis, como tal enunciado poderia ser
representado em sua fala. O que sabemos apenas é que a personagem
atendeu ao pedido do camundongo de forma satisfatória.
O enunciado referente à aceitação da Andorinha, compreendido
como discurso narrativizado, DN, resumido e interpretado pelo narrador,
expressa então o diálogo a uma forma reduzida, a um simples fato
enunciativo, ou seja, tratado como acontecimento discursivo integrado à
narração. Esse é um exemplo de DN que designa o “sumário diegético”
(GENETTE, 1972), ou seja, especifica o seu conteúdo “aceitação”,
atribuindo-lhe a descrição “de bom grado”, mas não cria um simulacro
mimético do que teria sido enunciado pela personagem. Observemos
agora o seguinte DD:
Um dia, o ganso acordou irritado e falou:
– Não aguento mais ficar com o traseiro molhado, preciso me secar.
(ZATZ; ABREU, 2010, p. 23).
Aqui o narrador introduz diretamente a fala do personagem,
usando o verbo dicendi “falar”, os sinais de pontuação (dois pontos e
travessão) e o enunciado do ganso na 1ª pessoa do singular acrescido à
desinência verbal – no presente do indicativo – marcando o momento
da representação da cena. Há uma alternância entre os “dizeres”
representados pelo narrador e o ponto de vista do personagem, este último
põe em destaque um “mise en scène”. Ou seja, o narrador cede a palavra
aos personagens optando pela forma mais mimética de representação
(GENETTE, 1972), na qual o personagem é o sujeito da enunciação.
Como vimos, o DR assinala formas complexas que, a depender
da contextualização e do gênero, alargam a sua paleta representativa
linguística. É o caso específico da invenção de uma história, cuja consigna
permite maior liberdade de criação, ou ainda, a inserção de elementos
linguísticos (presença de balão e onomatopeias) (CALIL, 2008; CALIL;
DEL RÉ, 2009; BORÉ; CALIL; AMORIM, 2013). Nosso trabalho busca
entender o uso do DR em seu estado nascente, evidenciando esse caráter
ecológico, sem direcionamentos específicos em relação ao posicionamento
enunciativo para o desenvolvimento da história, como por exemplo narrar
em 1a ou 3a pessoa como o faz Ferreiro et al. (1996) e Boré (2010).
1464
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Para tanto, utilizamos um sistema metodológico de captura
que permite observar a dinâmica colaborativa do processo de escritura
(CALIL, 2016, 2017), caracterizada como “escrita colaborativa”, quando
alunos em díade combinam e escrevem, juntos, um mesmo manuscrito.
A articulação entre o que é inventado pela díade e o uso do DR, objeto
linguístico a ser analisado no manuscrito em curso, será o foco da análise
que apresentaremos e preserva sua dimensão interativa, multimodal,
qualitativa e enunciativa.
A dinâmica colaborativa emerge como abordagem teóricometodológica para criação de textos à medida que sua realização conjunta
promove o planejamento e a linearização da narrativa ficcional. Ou seja,
a gênese do DR está associada ao processo coenunciativo de planejar e
inventar o que irá compor a história em termos de fala de personagens.
Nesse sentido, a situação de escrita colaborativa envolve a interação e a
necessidade de expressar o que está sendo pensado para sua formalização.
A formulação de unidades linguísticas adequadas à situação interativa
ganham relevo ao evidenciar a gênese da história e, consequentemente,
a construção de um enunciado reportado escrito, correlacionando o que
é formulado oralmente à sua inscrição e à sua linearização.
Postulamos que os enunciados que emanam da combinação
são permeados por idas e vindas e têm no trabalho coenunciativo a
possibilidade de gerir não só os comentários e os argumentos acerca
do que será inscrito, como dá materialidade à sua linearização escrita
(CALIL, 2016). Ou seja, o processo de produção escrita a quatro mãos é
analisado em função do instante em que a escrita se configura e considera
todos os elementos multimodais relacionados às práticas de textualização
em sala de aula. Analisar o texto em curso permite então reconstruir as
etapas sucessivas de elaboração textual, o que resulta em testemunhar a
transformação dos “índices visuais do espaço gráfico em propriedades
temporais de um acontecimento escritural” (GRÉSILLON, 2008, p. 20).
O foco na dimensão gráfico-espacial a partir da origem constitutiva
dos enunciados criados e a formalização dos caracteres, a serem inscritos
no texto “em vias de se fazer”, coloca em jogo o diálogo e a reflexão
sobre o uso que os alunos fazem da língua escrita. Ou seja, por meio dos
desacordos, arguição e contestação, os alunos ao discordarem entre si
podem examinar “os seus próprios pensamentos, bem como os dos outros,
e, portanto, são mais propensos a esclarecer, aperfeiçoar e expandir
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
1465
seu pensamento do que quando trabalham sem questões”3 (DAIUTE;
DALTON, 1992, p. 6). Cabe ressaltar que o tratamento metodológico
de escrita colaborativa, de certo modo, situa a aprendizagem de escrita
textual como processo lento e complexo (KELLOGG, 2008), por implicar
o conhecimento de um repertório alargado de ações associadas aos
componentes de planificação, textualização e de revisão. Nessa direção,
o trabalho coenunciativo, em essência, caracteriza-se por combinar e
planejar a história, para então, formulá-la textualmente e revisá-la com
foco na avaliação e melhora na qualidade do que está sendo produzido
(VAN DEN BERG; RIJLAARSDAM, 2007). Todavia, esse movimento
não é linear dada a complexidade recursiva da escritura perquirir um
controle sobre o texto.
Em análise de ordem linguística, Calil (2016) ressalta que os
comentários registrados no vídeo da escritura possibilitam o acesso às
diferenças subjetivas entre os escreventes, aos conhecimentos linguísticos
e textuais próprios de cada um, bem como às relações estabelecidas
entre os objetos textuais,4 identificados como problemáticos dada a
subjetividade de quem os produz.
Compreendemos a produção textual como uma atividade
metalinguística, já que ela depreende ações como explicitar, selecionar,
modelar, refletir, revisar ou seja manipular a linguagem para atender os
significados almejados (CHEN; MYHILL, 2016). Nesse sentido, se
considerarmos o DR como uma modalidade da ficção (BORÉ, 2010),
transpor a trama narrativa em palavras e dar voz a um personagem implica
em descentralizar o ponto de vista de quem escreve, o que necessariamente
envolve dar um centro de consciência de que o que diz não refere à sua
perspectiva, mas a de um outro, o personagem (BORÉ, 2010).
Nessa conjuntura, é preciso especificar que o uso do DR requer do
escrevente regular o funcionamento da história. O centro de consciência
do qual fala Boré (2010) se refere à capacidade de construir explicitamente
a representação da fala de personagens. Para este trabalho, importa-nos
No original: “their own thoughts as well as those of others, and thus are more likely
to clarify, refine, and expand their thinking than when they work without question”
(DAIUTE; DALTON, 1992, p. 6).
4
O objeto textual diz respeito a qualquer elemento gráfico, linguístico ou discursivo
diretamente relacionado ao texto em curso e reconhecido pelo escrevente como um
elemento passível de ser acrescentado ou alterado (CALIL, 2016).
3
1466
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especificar que tal capacidade de entender e regular situações específicas
de uso é demasiada complexa, uma vez que o escrevente deve articular
não só aspectos linguísticos, como semântico-discursivos, a depender
dos efeitos que se queira causar. Ou seja, isso implica, inevitavelmente,
relacionar planos enunciativos.
Em se tratando da narrativa ficcional, ora “os acontecimentos
parecem ser contados por si mesmo”5 (BENVENISTE, 1966, p. 241)
ora procedimentos de distinção sobre a maneira de “dizer as coisas”
são colocados em destaque. De um lado, temos a exposição da história
(diegèsis), representados, por sua vez, pelo DI e DN e pelo princípio de
imitação (mimèsis) que dá lugar à fala do personagem propriamente dita,
DD. A história inventada passa por instâncias enunciativas – representadas
por narrador e personagens – as quais se relacionam ao tratamento do
tempo em que se passa a história. Ainda que os acontecimentos possam
por si só ser narrados, eles designam não apenas situações decorridas,
ou imaginadas por aquele que cria a história, mas também fatos de
consciência dos personagens (sentimentos, crenças, decisões, etc.).
Nosso olhar, além de considerar os critérios formais de reconhecimento
do DR, considera todo enunciado que reenvia a preexistência de um
dizer e faz menção ao conteúdo de DR, bem como denota as marcas
suprassegmentais ou gestuais, as quais “dramatizam” um discurso outro.
Advogamos a importância de considerar o efeito de citação
configurada pela perspectiva do narrador, aquele que narra e inscreve
o discurso outro em seu próprio discurso. Conforme salientado em
estudos anteriores, o índice linguístico do DN, ao contrário do DI e DD,
não assume uma forma sintática fixa (CALIL; AMORIM, 2017; LIRA;
CALIL, 2016, 2017), em essência, ele é um recurso no qual o narrador
dispõe para destacar um ato de fala. O ato de fala em si faz alusão ao
acontecimento do discurso (MOCHET, 2000) e isso requer uma atenção
distinta aos verbos de fala, os quais podem ser atualizados em forma de
léxico e não por retomada do verbo “dizer”, configurando-se, então, em
forma de anúncio ou de retomada avaliativa.
O sobrevoo que fizemos acerca das formas linguísticas de DR
destacadas nos contos etiológicos, gênero referência para a escritura dos
alunos da pesquisa em tela, nos parece viável por expor um modo de
No original: “les événements semblent se raconter eux-mêmes” (BENVENISTE,
1966, p. 241).
5
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
1467
regular as instâncias enunciativas designadas neste gênero em específico,
apresentando as percepções, as opiniões, isto é, as perspectivas dos
personagens. Nosso interesse reside em investigar se os alunos, leitores
desse gênero, apresentam essas formas de DR em seus manuscritos,
analisando a gênese dessas formas reportadas em situações reais de
produção textual dentro da sala de aula. Acreditamos que a análise da
gênese dessas formas além de revelar o percurso de escritura destaca
a troca enunciativa entre a díade e isso envolve o desenvolvimento de
habilidades como, considerar a perspectiva do interlocutor, ser capaz de
expressar a sua própria perspectiva, ter em conta os aspectos linguísticos
sintático-semânticos e as convenções sociais acerca do gênero.
3 Metodologia
A pesquisa incide sobre o corpus da escola “Criar e Recriar” e
envolveu o desenvolvimento de um projeto didático em uma turma do
2o ano do Ensino Fundamental, na cidade de Maceió, Brasil. A coleta6
de caráter etnográfico resultou no recolhimento de dez processos de
escritura de uma díade de alunos e outra díade de alunas (6-7 anos),7 os
quais seguiram procedimentos didáticos precisos: 1o) apresentação da
proposta pela professora; 2o) combinação e discussão conjunta da história;
3o) inscrição e linearização,8 momento em que os alunos já tendo sua
história “definida” pedem o papel e a caneta para escrevê-la; 4º) leitura
e revisão: após o término da história, os alunos leem à professora o que
produziram.
6
A coleta foi desenvolvida a partir de um método de captura multimodal (visual, sonora
e escrita), oferecendo ao pesquisador informações simultâneas relacionadas ao processo
de escritura no tempo e espaço da sala de aula (CALIL, 2019). Ademais, a coleta possui
um conjunto de materiais complementares que contextualizam o cotidiano escolar e os
conteúdos de ensino valorizados nas práticas didáticas, quais sejam, a proposta curricular
da escola, a entrevista com a professora e a coordenadora, os livros didáticos e paradidáticos adotados, os cadernos dos alunos, as fotos da escola e, da sala de aula, etc.)
7
Para este trabalho analisaremos apenas os processos da díade de alunas, Marília e Sofia.
8
Consideramos a inscrição como qualquer marca efetivada no papel, seja ela uma
letra, frase, palavra ou mesmo um traçado sem definição. A linearização refere-se
a formalização dos tópicos sintáticos e posicionamento de cada elemento gráficolinguístico em uma sequência particular (acompanhada ou não por comentários) nas
linhas do papel (CALIL, 2016).
1468
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
Identificamos a presença de DR nos processos analisados a partir
dos aspectos formais da língua, quais sejam, as marcas de “pessoa”
no discurso (pronomes pessoais e possessivos), os verbos de fala ou
expressivos (dicendi, sentiendi) e a dêixis espacial e temporal referente
aos personagens criados. As marcas de pontuação e as mudanças de linha
também foram consideradas. Além dos critérios formais, consideramos
que todo enunciado reenvia a preexistência de um dizer, ou seja, uma
relação dialógica de menção ao conteúdo de DR. Esses critérios para
identificação do DR permitiu a categorização das seguintes formas de
DR: DD, DI e DN, tanto no planejamento oral quanto no registro escrito.
No registro fílmico da combinação, acrescemos ao reconhecimento do
DR as marcas suprassegmentais ou gestuais, as quais “dramatizam” um
discurso outro.
Uma vez identificada essas características contabilizamos as
ocorrências de DR, considerando desde sua primeira formulação oral
ao momento em que foram escritas na folha de papel. Nossa análise
partirá do que ficou registrado na folha de papel resultado, “traço fixo”
apresentado no produto textual, em direção “às operações sistemáticas
da escritura”, processo (GRÉSILLON, 2007).
4 Resultados e Discussão
Ao longo do desenvolvimento do projeto didático, a díade, Marília
e Sofia, inventou 10 contos etiológicos. Desse corpora, identificamos 267
enunciados orais e escritos relacionados ao DR. A análise dos processos
destacou a relação entre o DR constituído oralmente e aquele que foi
linearizado na folha de papel. Por vezes, nas produções das alunas, um
DR é linearizado após um longo processo de formulação e reformulação.
Em outros momentos, um DR oral é escrito tal qual foi dito. Apesar
disso, a diferença entre as quantidades de DR formulados oralmente e o
DR efetivado por escrito é significativa, como mostra o gráfico abaixo.
1469
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
GRÁFICO 1 – O DR nos 10 contos inventados (Processos x Produtos)
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
Nos processos foram identificadas 212 (79%) ocorrências de
DR, enquanto que nos produtos obtivemos o registro de 55 ocorrências
(21%). Essa diferença indica que a presença de um DR em uma história
inventada é o resultado de uma gênese enunciativa intensa. A comparação
de diferentes tipos de DR em cada uma das modalidades (produto e
processo) traz outro aspecto interessante.
TABELA 1 – Distribuição de ocorrências entre as díades: produto X processo
Díade
Marília/Sofia
Total percentual
Produto
Total
Processo
Total
DN
DI
DD
DR
DN
DI
DD
DR
34
16
5
55
144
38
30
212
62%
29%
0,09%
100%
68%
18%
14%
100%
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
Conforme vimos acima, a proporção em relação à variação
percentual de ocorrências de DR coloca em evidência a forma DN. A
sua incidência prevalece com 62% nos produtos e, 68% nos processos.
Em relação às suas manifestações escritas, as quantidades de
ocorrências de DD e DI destoam de forma significativa. Isso ocorre já
que as alunas alternam entre as formas DD 0,09% (5 ocorrências) e DI
29% (16 ocorrências). Em relação à emergência do DN, ele aparece em
sequências compostas associadas a outras formas de DR, DD e DI. O
DN não é considerado isoladamente, mas em relação as outras formas
1470
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
já que ele figura como acontecimento enunciativo e retomada avaliativa,
como podemos ver abaixo:
(1) a. O homem queria lugares e mais seres vivos – DN
b. Ele pediu que existissem ambientes e animais – DI
O DN decorre quando alguma referência de fala é atribuída ao
personagem, mesmo que seu conteúdo não esteja explicitado no corpo
do texto. Em 1 (a) temos a inferência do referente “homem” personagem
ao qual é atribuído o seguinte complemento “ queria lugares e mais
seres vivos”. Inferimos nesse enunciado um ato de fala intencional, ou
seja, ele possui valor de fala por remeter à intencionalidade de um dizer.
“Querer” faz alusão a presença do DR e estaria relacionado ao ato de
enunciar: “– Eu quero lugares e mais seres vivos na Terra”. Isso pode ser
observado mais facilmente na sua relação com o enunciado subsequente,
DI, 1 (b) Ele pediu que existissem ambientes e animais. Apesar do DN
sinalar um caráter homogêneo ele diferencia-se do discurso indireto, DI,
já que este segue uma estrutura de subordinação gramatical completiva
ou interrogativa, permitindo que a fala reportada seja apresentada sob
um estatuto de paráfrase. O DN, por outro lado, abrange o acontecimento
enunciativo numa forma nominal ou infinitiva é o caso de: “O homem
queria lugares e mais seres vivos”.
No ínterim do discurso narrativizado, compreendemos que as
palavras do outro (personagem) são narrativizadas no próprio enunciado
daquele que está na posição de narrador. Assim, há uma integração de falas
“pronunciadas” dentro do discurso do locutor/escrevente. Salientamos
ainda a necessidade de especificar o papel do narrador na narrativa, aquele
que cria e integra os enunciados devidamente direcionados às ações
dos personagens, sejam elas de fala ou não. Lembramos que as formas
linguísticas utilizadas pelo escrevente não se restringem à ordem sintática,
elas são operadas sob uma ordem semântico-discursiva, à medida que o
discurso atua sobre o discurso. Dessa maneira, é impossível desconsiderar
o contexto narrativo na análise que segue.
Os enunciados como “O homem queria lugares e mais seres
vivos”; “Só [cuidava] o homem que tinha pedido que existissem”; “Ele
teve uma ideia que deu certo” abrangem o acontecimento de emissão de
falas de “ele” são resumidos e interpretados por quem os enunciam. Ou
seja, não sabemos de que maneira os alunos formularam tal enunciado e
como associaram esta fala ao personagem criado. Apenas sabemos que
há a menção à fala do personagem sob a ordem narrativa.
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1471
Voltemos às informações do 1o gráfico e visualizemos melhor a
distribuição entre as categorias de DR – DD, DI e DN – e a soma de suas
ocorrências no registro da combinação oral e sua inscrição no produto
final (manuscrito).
GRÁFICO 2 – Distribuição total de DR por tipos
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
Dentre os 267 enunciados com marcas enunciativas
correspondentes ao DR, encontramos 178 enunciados com indicação de
DN. Tais enunciados apresentam marcas de enunciação que indicam atos
locutórios dos personagens criados. Ou seja, mais da metade (67%) das
enunciações evidenciam o DN. Por outro lado, o discurso indireto 20% e
direto 13% sinalizam uma quantidade mínima comparada ao percentual
total. Essa disparidade entre as categorias e, sobretudo, a preponderância
de enunciados nessa forma de discurso se desenhou de forma diferente
em relação ao estudo comparativo de manuscritos franceses e brasileiros
realizado por Boré et al. (2015) para quem a forma DD é a preponderante.
Observemos agora a gênese do DR em correlação à formalização escrita
de um processo de Marília e Sofia.
4.1 Gênese do DR: relações entre o produto e o processo
As alunas escolheram a temática “Por que o coelho pula”.9 Nessa
história, Sofia era a escriba e Marília, a ditante.
9
Transcrição normativa: “ Por que o coelho pula”.
Há muito tempo atrás o coelho tinha perna curta. Um dia apareceu um homem que
pediu para beber uma poção mágica e ficou com pernas longas. O coelho perguntou
para todos os animais da floresta como ele podia andar. Ninguém sabia e o leão sabia
e disse para o coelho para pular em vez de andar e o coelho aprendeu a pular e é por
isso que o coelho tem pernas longas.
1472
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FIGURA 1 – Estado do manuscrito escolar “Por que o coelho pula”, linhas 3 a 11,
linearizadas entre 33:50 e 40:21 (4º processo, 07/05/2012)..
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
Perna curta, um dia apareceu um
Homem que pediu para beber uma
Poção mágica e ficou com pernas
Longa o coelho perguntou para
todos
Os animais da floresta como ele podia
Andar Ninguém sabia e o leão
Sabia e disse o disse para o
Coelho para pular em vez de
Andar e o e o colho coelho
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
Como podemos observar, o DR é definido a partir da interação
entre os personagens, quais sejam, o homem, o coelho, os animais e o
leão, em situações específicas que indiciam atos enunciativos de fala.
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“Pedir”, “perguntar”, “saber” e “dizer” são verbos que, associados aos
personagens, vinculam à representação de suas falas. Evidentemente,
essa representação não recorre ao grau dramático e expressivo exigido
pela mimése, e tampouco é clara ao destacar como isso ocorre. Neste
conto etiológico inventado há 5 ocorrências de DR, caracterizadas como:
• DI: “Um homem apareceu que pediu (para o coelho) beber uma
poção mágica.” (linhas 3, 4 e 5)
• DI: “O coelho perguntou para todos os animais da floresta como
ele podia andar.” (linhas 6, 7 e 8)
• DN: “Ninguém sabia.” (linha 8)
• DN: “E o leão sabia” (linha 8 e 9)
• DI: “E (o leão) disse para o coelho para pular em vez de andar.”
(linhas 9, 10 e 11)
O DR apresentado entre as linhas 3 e 5: “um dia apareceu um
homem que pediu [para o coelho] para beber uma poção mágica” indica
o que corresponderia à fala do personagem elíptico – coelho –, “beber
uma porção mágica”. Contudo, apesar do contexto descrito, não é
possível saber de que forma exatamente o questionamento foi produzido,
nem mesmo como o personagem “coelho” foi chamado, já que ele é
apresentado de forma elíptica. Daí sua ocorrência ser caracterizada
como DN.
Na sequência, temos “o coelho perguntou para todos os animais da
floresta como ele podia andar” (linhas 6, 7 e 8). Aqui o verbo “perguntar”,
seguido do enunciado “como ele podia andar”, é caracterizado como
DI. Todavia, a inserção do personagem “coelho” em interação com um
grupo indeterminado de animais, “todos”, é resultante, implicitamente,
da dinâmica de solicitações, indagações que em ordem direta podem ser
apresentadas de variadas formas. Eis então um enunciado híbrido que
possui características tanto do DI como do DN. Tendo em vista que nos
referimos à criação do diálogo entre os personagens, o que fora inscrito
pela díade, linearizado no produto, não fornece pistas que nos permita
identificar a gênese deste DR, tampouco como ocorreria o seguimento
de questões caso o personagem representado pelo pronome indefinido
“todos” tivesse em sua origem sido definido por um ou mais personagens.
1474
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
Vejamos se durante a combinação deste manuscrito há alterações que
permitem identificar outras formas possíveis para tais enunciados.
Texto Dialogal 1: MS – Processo 004 (24:44 – 27:06)
Rubrica: (Marília estava olhando para o cartaz da sala (lista de títulos de contos
lidos durante o projeto didático: “Contos do como e do por que”)
711. Marília: Por que o coelho pula!::: Que tal, por que o coelho pula?
712. Sofia: Porque assim, ó assim. Há muito tempo atrás, o coelho tinha perna
curta.
713. Marília: Ah, já leram essa história.
715. Sofia: Aí, a, um dia ele comeu uma coisa que a perna dele cresceu (Sofia
estica os dois braços para frente)...
716. Marília: ...e ele começou... não conseguia andar. (Mudança de entonação
ao pronunciar “mais”) Ele foi perguntar para o leão que era o maaais sabido da
floresta, ele disse que era, você não precisava andar, era só pular. Daqui em
diante... por isso que o coelho não anda, ele pula. Por que o coelho pula! Certo?
720. Marília: (Dando continuidade). Coelho e mais quem?::: (Referindo aos
personagens a serem criados.) Não! Vai ser só o leão, ele pergunta pra todos
animais da floresta e depois pergunta pro leão.
26: 24
726. Marília: Não vo... Eu já... Era uma vez o, o co... há muito tempo atrás, o
coelho tinha uma perna curta::: Ó!:: ó! Assim, ó. É... Há muito tempo atrás, o
coelho tinha perna curta, um homem apareceu e disse pra ele tomar isso, um
pozinho mágico que deixava ele com pernas longas.
Aos 24:42, após discutirem e pensarem numa situação inicial (“o
coelho ter perna curta”), Sofia propõe como elemento desencadeador do
conflito o fato do personagem comer algo para que a perna cresça “Aí,
a, um dia ele comeu uma coisa que a perna dele cresceu” (turno 712).
Contudo, o crescimento da perna não permitia que o personagem andasse,
isso desencadeia, a partir da fala de Marília, uma série de sugestões
referente às ações ligadas a atos enunciativos de fala. Observem que no
turno 716, “...e ele começou... não conseguia andar. Ele foi perguntar
para o leão que era o maais sabido da floresta, ele [leão] disse que era [o
mais sabido da floresta]. Você não precisava andar, era só pular. Daqui em
diante... por isso que o coelho não anda, ele pula. Por que o coelho pula!
Certo?”, Marília constrói oralmente um diálogo entre dois personagens:
o leão e o coelho.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
1475
Nesta breve passagem a aluna evoca a existência de um diálogo
entre os personagens:
O coelho foi perguntar para o leão: – Você é o mais sabido da floresta?
O leão disse que era e falou: – Você não precisava andar. Era só pular.
Marília (turno 716), ao narrar o encontro desses dois personagens,
omite a pergunta “você é o mais sabido da floresta?”, a qual é recuperada
elipticamente a partir da resposta do leão, “o leão disse que era”. O que
queremos destacar é o arranjo narrativo e o modo que a aluna opera
para colocar os personagens em interação dialogal. Diferente do que
evocamos no breve excerto, a aluna assume a postura do narrador,
arrolando a fala dos personagens de forma bastante particular. Marília,
na posição de narradora, coloca como indagação o fato do coelho ser
o mais sabido, como prosseguimento irrompe o enunciado resposta
sob a forma indireta “ele disse que era”. Compreendemos que o DI em
destaque é a réplica referente a um possível questionamento acerca da
habilidade do leão ser o animal mais inteligente da floresta. Subsequente
ao DI do leão, o DD é inserido “você não precisava andar, era só pular”.
Aqui, Marília não marca uma entonação diferenciada, mas destaca um
sujeito interlocutor, “coelho”, a quem o leão dirige a palavra. Observem
como as falas enunciativas dos personagens foram configuradas em sua
formulação escrita.
FIGURA 2 – Fala de personagens em “Por que o coelho pula”,
linhas 6 a 11, (4º processo, 07/05/2012)
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
1476
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
No corpo de suas produções, as alunas assumem a figura do
narrador, apresentado de forma indireta a fala de personagens e arrolandoas na trama narrativa. Porém, o movimento recursivo da escritura
evidencia outras possibilidades enunciativas. No minuto subsequente,
a combinação primeira dá margem a outro ponto importante expresso
por Marília: “Não! Vai ser só o leão, ele pergunta pra todos animais da
floresta e depois pergunta pro leão.” (turno 720). O enunciado invoca a
possibilidade enunciativa de perguntar a todos os animais da floresta, o
que requeria a criação de mais personagens, para então questionar ao leão.
Essa passagem continua sendo apontada por Marília nos turnos seguintes.
Vale salientar as ênfases dadas por Marília ao pronunciar alguns
elementos do texto. Ao anunciar “Ele foi perguntar ao leão...”, a aluna
atribui um interessante comentário ao personagem “que era o maiiis
sabido da floresta”, o adjetivo “sabido”. Essa característica tem sua
intensidade revelada tanto pelo uso do advérbio “mais”, quanto pela
pronúncia de sua entonação, marcada pela repetição da letra “i” na
transcrição. Ao referir-se ao leão, Marília enfatiza o advérbio “mais”, não
mais ditando ou combinando os elementos que farão parte da história,
a aluna, na mudança de entonação e por sua intensidade ao enunciar,
assume a voz do narrador. Contudo, as possibilidades enunciativas
desse discurso oral emitido durante a combinação, configuraram-se de
forma diferente na escrita (linhas 6 a 9): “O coelho perguntou para todos
os animais da floresta como ele podia anda[r]”, seguido da resposta
“Ninguém sabia” e o “leão sabia”.
No turno 726, Marília retoma a ideia inicial (turno 715) dada por
Sofia, qual seja, o coelho tomar algo para que suas pernas crescessem e
sugere como resolução: “[...] um homem apareceu e disse pra ele tomar
isso, um pozinho mágico que deixava ele com pernas longas”, (turno
726). O enunciado é inserido em forma indireta, característica evidente
na apresentação do referente “homem” e a ação por ele desenvolvida
(aparecer e dizer), conjugada em 3a pessoa do singular direcionando a
outro personagem, “ele” (coelho). O que nos chama atenção é o fato da
mensagem do “homem”, apesar de estar na estrutura indireta, remeter
a um enunciado direto. Isso ocorre pelo simples fato de a aluna inserir
“‘Tomar isso’, um pozinho mágico que deixava ele com pernas longas”
destacando o pronome demonstrativo “isso”. Dois pontos merecem
destaque:
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1)
2)
1477
A estrutura esperada seria o verbo no imperativo “Tome isso”;
“Isso” possuir valor demonstrativo e referir à ideia mencionada
anteriormente por Sofia “Comer algo”, e ao mesmo tempo
convocar o enunciado – “O que é isso?”
Entre “tomar” e “comer” reside o “isso”, ele, por sua vez, anuncia
o complemento seguinte e o caracteriza, o “pozinho mágico”. É este
complemento “pozinho mágico para ficar com as pernas longas” que
permite convocar, de forma elíptica, “O que é isso?” ou “Isso, o que é?”
Os minutos seguintes colocam em destaque as reformulações
propostas, desencadeando o seguinte texto dialogal. Vale lembrar que
neste momento as alunas ainda combinavam a história:
Texto Dialogal 2: MS – Processo 004 (27:13 – 27:44)
COMBINAÇÃO
728. MARÍLIA: (Marília altera a voz ao falar “todo mundo da floresta”,
fazendo um movimento rotacional com a cabeça.) Calma! Aí, ele foi perguntar
pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele andava. Aí
ele...
729. SOFIA: Ninguém sabia.
730. MARÍLIA: Ninguém sabia! ∟ Aí ele foi perguntar...
731. SOFIA: (Falando simultaneamente à Marília) Só que ele foi perguntar ao
leão porque ele era o mais inteligente da floresta e disse que era só pro coelho
pular. E por isso que o coelho...
732. MARÍLIA: Pula.
Da primeira proposta “Ele foi perguntar para o leão que era o
maais sabido da floresta, ele disse que era. Você não precisava andar, era
só pular.” (turno 716), temos uma alteração para “Aí, ele foi perguntar
pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele andava”
(turno 728). Em ambos os casos, Marília faz uso de marcas entonacionais,
atribuindo à história um ritmo diferenciado, como se a contasse na posição
de um narrador/contador.
Todavia, o complemento do turno 728, ao contrário da primeira
tentativa expressa em 716 – sinalizando uma sobreposição de formas de
DR (DI, DN e DD) – expõe um único bloco caracterizado pela forma
narrativizada. Aqui, nós temos acesso ao conteúdo relacionado à temática
do diálogo, mas as alunas não desenvolvem a constituição desse diálogo
1478
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
em formas DI ou DD. O fato do verbo “perguntar” permitir diversas
possibilidades enunciativas – como, por exemplo, solicitação polida,
simples pedido, interrogação ou questionamento – associado à entonação
e ao movimento rotacional da cabeça de Marília quando enuncia “todo
mundo” interfere em suas representações.
Nos turnos seguintes, as alunas, já com a folha e a caneta na mão,
têm o desafio de escrever tudo o que fora combinado. Aqui, as alunas tem
a oportunidade de inscrever e marcar uma diferença, contudo, enquanto
Marília escreve, Sofia, ao ditar, retoma a ideia de Marília com pequenas
alterações. O primeiro enunciado inscrito é reformulado no momento
em que Marília escreve, desencadeando uma inversão no que havia sido
planejado. O elemento que irá promover a causa-efeito, tomar bebida-para
que as pernas do coelho cresçam é inscrito logo no início da história.
FIGURA 3 – Fala de personagens em “Por que o coelho pula”, linhas 3 a 5,
(4º processo, 07/05/2012)
Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME.
Texto Dialogal 3: MS – Processo 004 (34:36 – 35:11)
COMBINAÇÃO/INSCRIÇÃO
835. MARÍLIA: ...um ho...mem (Falando e escrevendo [um homem])...
836. SOFIA: ...que pediu para o coelho tomar uma coisa.
837. MARÍLIA: ...que pe...diu (Falando e escrevendo [que pidi]) é com U, né?
(Sofia balança a cabeça positivamente). (Escrevendo [u]). Pediu...
838. MARÍLIA/SOFIA: (Alunas falam simultaneamente) para [para]...
839. MARÍLIA: ...be...ber (Escrevendo [beber])....
840. MARÍLIA/SOFIA: (Falando simultaneamente) ...uma (Escrevendo
[uma])...
841. SOFIA: ... coisa...
842. MARÍLIA: ...uma poção mágica.
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
1479
Sofia substitui “perguntar”, verbo presente desde as primeiras
formulações, turnos 716, 728, 730 e 731, por “pedir” não especificando
o que era exatamente para o personagem coelho tomar. A aluna usa um
elemento indefinido “tomar uma coisa” (turno 836) enquanto Marília
substitui “tomar alguma coisa” (turno 836) por “beber uma poção mágica”
ao escrever.
Como podemos notar, as alunas combinam a história e ao escrevêla elementos ora são retomados, ora não. Um dos aspectos discutidos no
TD 2 refere-se a um ato de fala correspondente ao personagem coelho
em direção a todos animais da floresta. A questão é que Marília altera
o tom da voz ao falar “todo mundo da floresta” “Aí, ele foi perguntar
pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele
andava.” Duas observações sobrevêm neste enunciado: 1.) o fato da
aluna não remeter à resposta dos animais, o que é evidente se notarmos
o marcador temporal “aí” seguido do uso de referente “ele”, coelho; 2.)
a entonação de Marília destoando de todo o enunciado ao dar ênfase aos
personagens “Todo mundo da floresta”. É importante especificar que
essa representação segue parâmetros diegéticos, enquadrando o suposto
diálogo dos personagens na fala do narrador, a ênfase dada por Marília
seria, neste caso, um adendo à caracterização do DN.
Em resposta, Sofia, assim como Marília, reproduz o DN
“Ninguém sabia”. Vejam que o valor semântico dos verbos é fundamental
para assimilarmos a noção de um ato de fala. “Saber”, neste contexto,
implica a verbalização da resposta ao questionamento do coelho. Ao
dizer “Ninguém sabia”, ela narrativiza “e resume” as possíveis respostas
negativas dada pelos animais da floresta. Ademais, o uso dos pronomes
indefinidos “todos” e “ninguém” escondem a quantidade de personagens
inseridos, bem como as possibilidades enunciativas correspondentes a
esse ato de fala por elas imaginado.
Por vários momentos, Marília assume a voz narrativa, criando a
maior parte do enredo, atribuindo o problema ou a perturbação implicada
na história. Isso parece estar relacionado ao fato da aluna ter uma
quantidade de enunciados de DR em maior número comparados aos DR
criados por Sofia. Vejamos como isso se configura no gráfico abaixo:
1480
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
GRÁFICO 3 – Distribuição de DR (processo 004 de Marília e Sofia)
Fonte: Dossiê Criar e Recrear, 2012 – LAME
O quantitativo de DR neste processo indica maior ocorrência por
parte de Marília. Em um total de 19 DR, a aluna apresentou 16 enunciados
relacionados à fala de personagens, enquanto Sofia, desenvolveu apenas 3.
Contudo, apesar de Sofia não dar inicialmente as ideias para composição
da história, sua participação permite que Marília desenvolva os DR, dado
que esta precisa apresentar e organizar o enredo explicitando à Sofia.
Apesar de falar pouco, Sofia mantém uma postura mais organizadora ao
transpor o que é produzido por Marília. Isso ocorre de forma mais pontual
em outro processo de escritura, quando a aluna troca um enunciado em
DR sob a ordem indireta, transformando em ordem direta, demarcando-o
com o uso sinal gráfico de travessão.
292. SOFIA: Faz um tracinho aqui. (Sugerindo fazer o travessão antes
da fala do vulcão.)
293. MARÍLIA: Aqui? (Sofia confirma balançando a cabeça
positivamente e Marília grafa [__]) “Esse é o seu castigo”.
(MARÍLIA e SOFIA, processo 010, “Por que o sol brilha”.
A abordagem quantitativa levanta uma série de questões
relacionadas ao desenvolvimento do projeto ao longo das propostas,
sobretudo em relação a maior incidência de enunciados criados por parte
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019
1481
de Marília. Aventar que Marília possui maior habilidade linguística e
textual para a construção do DR não pode ser uma asserção sem antes
passarmos pelo filtro qualitativo de seus processos.
Sofia contribuiu, ainda que de forma menos intensa, para o
desenvolvimento e criação das histórias. Nesse sentido, seria bastante
interessante avaliar qual a natureza dos enunciados por eles ditos e como
os comentários e retornos por ela sinalizados evocaram Marília a não
se dar por satisfeita na primeira formulação do DR e insistir para nova
formulação.
A análise empreendida colocou em evidência alguns desses
aspectos, este é o caso de Sofia ao apontar que é preciso demarcar a
fala de personagem, fazendo o traço de travessão. Aliás, essa é uma
das características mais marcantes em Sofia. A aluna, ao inferir que o
enunciado criado por Marília era um DD, expressa a necessidade de
incluir o sinal de pontuação relativo a essa inserção. No processo em que
ela escreve, o sinal é inserido sem nenhum comentário, ou seja, a aluna
ao inscrever o que é dito por Marília transpõe em ordem direta, fazendo
a devida marcação. Contudo, quando Marília escreve é Sofia quem está
atenta lembrando-a de fazer o sinal para demarcar a fala do personagem.
Independente de quem é o escriba, Marília tem o hábito de
formular toda a história e Sofia sempre chama a atenção para o fato de
que elas precisam escrever, porque do contrário irão esquecer o que já
haviam planejado. E em alguns momentos, Sofia expressa à Marília o fato
de não entender nada, o que, por sua vez, permite que Marília reestruture,
recupere e reformule o que estava pensando. Nos parece razoável supor
que Marília tem a tendência de construir textualmente a história e Sofia
assume a função organizadora da produção textual. Essa ajuda mútua
favorece o processo criativo das alunas. Antes, em suas primeiras
produções, as alunas não evidenciavam estruturas que alocassem a fala
dos personagens sob a ordem direta. As últimas produções destacaram
falas de personagens com demarcação de fonte enunciativa, sinalizando
através da pontuação a quem corresponde o discurso, quais sejam, o
narrador e o personagem.
As produções, quando escritas por Marília, apresentavam rasuras,
enunciados justapostos com problemas de pontuação, e talvez este seja
um dos motivos da professora intervir com frequência em relação à
produção das alunas. Em linhas gerais, a professora intervinha pedindo
às alunas que lessem a produção e eventualmente questionava alguns
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elementos do texto, dentre eles, a demarcação da fala do personagem
para maior clareza e compreensão.
A interação entre Marília e Sofia permitiu que Sofia colocasse
em prática os conhecimentos linguísticos que dispunha para sinalizar
a formalização do DD em sua configuração escrita. A dimensão
colaborativa é importante para consagrar como se dá essa formalização,
Sofia verbalizou a necessidade de utilizar o sinal de pontuação para
delimitar a fala do personagem.
5 Conclusão
A questão que delineou o trabalho baseou-se na construção
coenunciativa do DR em processos de escritura de contos etiológicos
inventados por escreventes novatos. A partir disso, intentamos especificar
os elementos linguísticos e suprassegmentais correspondentes ao ato
de enunciação do personagem. A investigação com foco no diálogo de
escreventes novatos asseverou a necessidade de evidenciar o uso deste
elemento linguístico centrada nas formulações e reformulações, segundo
as quais, ora o DR apresentava o ponto de vista do narrador, ora sob a ótica
de algum personagem. O conto etiológico não possui tantas ocorrências
de DR, talvez pelo fato deste gênero ter como objetivo a explicitação da
origem das coisas. Sua natureza narrativo-ficcional ao esclarecer como
determinadas características dos animais e modos de comportamento
se originam, “o Coelho pular” remete, consequentemente, a uma forma
mais narrativa. Nesta conjuntura, o DR era expresso sobre o ponto de
vista do narrador/escrevente, predominando a forma DN.
Em nossos resultados, identificamos uma significativa diferença
entre as quantidades de ocorrências de DR nos processos e seus
produtos. Os processos de escritura analisados mostram que a condição
coenunciativa teve um papel crucial na gênese e na construção do
DR. A alternância de turnos, os desacordos, as hesitações, os gestos,
as expressões faciais e, sobretudo, a necessidade ficcional de inventar
personagens favoreceu, em certa medida, a produção de DR. Além disso,
estes aspectos colocaram em evidência a articulação entre a forma oral
do DR enunciado e sua passagem para a forma escrita. Vale destacar
que a pouca ocorrência de DD nos manuscritos pode estar relacionada
ao pouco conhecimento que as alunas detêm sobre o funcionamento e
usos dos sinais de pontuação.
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Ao longo de suas produções, Marília e Sofia escreveram somente
5 DD, demarcando o discurso do personagem com sinais de pontuação
apenas nos últimos processos. Tal ilação vai de encontro aos dados
apresentados por Boré (2010, 2012), para quem o DD ocupa lugar de
destaque na criação narrativa. A ausência de DD em nosso corpus parece
estar relacionada a alta ocorrência de DN nos manuscritos. De todo
modo, faz-se necessário aprofundar a relação entre a produção do DD
e sua pontuação.
A inserção do DR no texto em produção corresponde a um
elemento fulcral à complexidade que abrange o processo de escritura.
A produção escrita a partir da combinação envolvia a transformação de
elementos referenciais, linguísticos e pragmáticos em traço linguístico
linear. Nesse sentido, a escrita por colocar em evidência tais elementos
referenciais e expô-los a partir de um conjunto de ações processuais,
tais como o planejamento, a linearização/inscrição e sua revisão sinaliza
que o conhecimento linguístico acerca do DR não é evidente para o
escrevente novato. Dizendo de outro modo, o escrevente novato deve
articular os elementos linguísticos, – ortográficos, sintáticos e semânticos
–, bem como os elementos textuais – desenvolvimento do enredo, à
problematização da história, inserção de personagens, associação deste
com ato enunciativo de fala –, e ainda, operar e gerir a explicação do
porquê das coisas serem como são.
As implicações didáticas correspondentes ao ato de escrever de
forma colaborativa favorecem o diálogo interlocutivo acerca não só do
que se sabe sobre a língua, visto que o aluno deverá utilizá-la como objeto
de argumento para a entrada de uma proposição a ser inserida no texto,
bem como permite ter acesso aos conhecimentos extralinguísticos de
que o aluno dispõe. Tomemos o exemplo de Sofia, para quem a invenção
da narrativa parece bem mais árdua do que o é para Marília. Sofia por
ser auxiliada pelo seu par, Marília, aquela que cria boa parte do enredo,
consegue ater-se aos problemas de ordem ortográfica. Esta última é
auxiliada o tempo todo por Sofia à inscrição gráfica de palavras como em:
“837. Marília: ‘Pediu’ é com ‘u’, né?” (Processo 004 “Por que o coelho
pula”). Essa é uma questão a ser refletida de forma mais detida. Os efeitos
do processo de ensino-aprendizagem da escrita, resultante do processo
coenunciativo de escrita a dois, dão visibilidade à dinâmica interacional
e multimodal, o que permitiria, em estudo futuro, capturar as diferenças
individuais da dupla e, consequentemente, identificar como elementos
1484
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pragmáticos, ortográficos, discursivos, enunciativos interferem para a
ocorrência de DR nas práticas de textualização efetivadas em sala de aula.
Embora existam evidências de que a ocorrência do DR seja
favorecida pelo diálogo entre a díade, o presente estudo certamente não
sugere que as interferências para a constituição do DR sejam um benefício
universal. Em vez disso, é necessário evidenciar a particularidade da
escritura estar situada em um ato de enunciação (AUTHIER-REVUZ,
1993) o que implica uma complexa inter-relação de outros fatores na
realização da atividade de escrita.
Contribuição dos autores
Este artigo escrito por mim, Lidiane Evangelista Lira, em coautoria com o
professor Eduardo Calil, é o resultado de pesquisas acerca de processos de
criação e escritura colaborativa. O corpus de nosso trabalho faz parte do
Laboratório do Manuscrito Escolar (LAME), coordenado pelo professor
Eduardo Calil. Nesse trabalho adotamos o Sistema Ramos (CALIL,
2019), método para a captura multimodal de processos de escritura no
tempo e no espaço real da sala de aula.
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Um estudo sobre o licenciamento e a interpretação
de “pouco” em português do Brasil (PB)
A survey on the licensing and the readings
of “pouco” in Brazilian Portuguese (BP)
Ana Paula Quadros Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil
anaquadrosgomes@letras.ufrj.br
Juliana Santos Delduque
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil
julidelduque@gmail.com
Resumo: Este artigo visa dar conta das condições de licenciamento e distribuição de
“pouco” em PB, utilizando as ferramentas teóricas da semântica formal. Adotamos
uma teoria de graus na linha de Kennedy e McNally (2005). Tratamos “pouco” como
um modificador de graus do tipo redutor/minimizador, que realiza a mesma operação
em todos os domínios: adjetival, verbal e nominal. Defendemos que os casos em que
a inserção de “pouco” gera agramaticalidade (*“Falta pouco um mês para as férias”,
*“Os poucos dois alunos vieram para aula”, *“Maria correu pouco uma maratona
domingo” etc.) não são fruto de desrespeito a regras sintáticas, e sim à seleção-semântica
(s-seleção). “Pouco” seleciona expressões graduáveis de escala aberta. No domínio
adjetival, o efeito das escalas se dá no produto da modificação de “pouco”: o sintagma
formado por redutor + adjetivo terá sempre escala aberta, independentemente do tipo
de escala do adjetivo modificado. No domínio verbal, “pouco” opera sobre verbos
inerentemente graduais e sobre dimensões aspectuais escalares. Mostraremos que
sentenças com “pouco” em Sintagmas Verbais (SVs) só serão bem formadas quando for
modificada uma escala de grau não-máximo. Em dimensões aspectuais, isso implica ou
a atelicidade ou a imperfectividade do evento denotado pelo SV. No domínio nominal,
“pouco” opera sobre nomes inerentemente graduáveis e sobre a dimensão de quantidade.
Sintagmas Nominais (SNs) com leitura de cardinalidade vaga ou de volume apresentam
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1489-1530
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escalas abertas. O tratamento que assumimos explica a interpretação dos sintagmas
modificados pelo redutor e prevê com sucesso os contextos em que sua inserção gerará
agramaticalidade.
Palavras-chave: licenciamento e distribuição de “pouco”; semântica; advérbios
intensificadores.
Abstract: This article tackles the licensing and the distribution of “pouco” (BP),
employing Formal Semantics theoretical tools. We adopt a degree semantics in the
lines of Kennedy and McNally (2005). In our view, “pouco” is a degree modifier, a
minimizer/diminisher, performing the same operation in the adjectival, verbal and
nominal domains. We claim that the cases of ungrammaticality by the insertion of
“pouco” (*“Falta pouco um mês para as férias”, *“Os poucos dois alunos vieram para
aula”, *“Maria correu pouco uma maratona domingo” etc.) should not be attributed to
syntactic rules, but to semantic selection (s-selection) instead. “Pouco” selects gradable
expressions with open scales. In the adjectival domain, the scale effect appears on the
modification product: the phrase containing “pouco” and the adjective will be always
an open scale, regardless of the modified adjective scale type. In the verbal domain,
“pouco” ranges over inherently gradable verbs or over aspectual scalar dimensions.
We show that sentences with “pouco” in Verbal Phrases (VPs) are only well formed if
the modified scale has a non-maximal degree. In aspectual dimensions, that means the
atelicity or imperfectiveness of the event denoted by the VP. In the nominal domain,
“pouco” modifies inherently gradable nouns and the quantity dimension. Noun Phrases
(NPs) with vague cardinality or with a volume reading have open scales. Our approach
explains the readings found in phrases modified by the minimizer and also successfully
predicts in which contexts it will produce grammaticality.
Keywords: licensing and distribution of “pouco” (Brazilian Portuguese); semantics;
intensifiers.
Recebido em 12 de fevereiro de 2019
Aceito em 16 de junho de 2019
1. Introdução
A gramática tradicional (GT) classifica “pouco” de diversas
maneiras, conforme o ambiente gramatical em que ele está e a função
sintática ali exercida, ou conforme a categoria do elemento modificado:
“pouco” aparece na GT como artigo, advérbio de intensidade, substantivo
masculino ou pronome indefinido. Essa multiplicidade de classificações
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na GT reflete a irrestrita circulação de “pouco” pelos domínios. Uma tão
ampla distribuição merece ser explicada. “Pouco” é onipresente por não
realizar nenhuma seleção categorial. Enquanto “lentamente” só incide
sobre eventos, operando apenas sobre sintagmas verbais (SVs); “dentro”
relaciona dois lugares (literal ou metaforicamente), atuando exclusivamente
com sintagmas nominais (SNs); e “extremamente” somente intensifica
adjetivos, alguns modificadores de grau extraordinários, como “muito”
e “pouco”, aparecem tanto modificando SVs (“Eu dormi pouco/muito”)
e SNs (“Poucos/Muitos alunos faltaram”) quanto Sintagmas Adjetivais
(SAs) (“João é pouco/muito inteligente”). Se essa liberdade de atuação
pelos domínios verbal, adjetival e nominal significa que advérbios como
“pouco” não são sensíveis à categoria da expressão modificada, isso não
significa que eles sejam sempre licenciados; como os exemplos abaixo
ilustram, há sentenças perfeitas sem “pouco” que se tornam agramaticais
quando ele é inserido:
(1) a. Chegamos em casa agora.
b. * Chegamos pouco em casa agora.
(2) a. Pedro comprou três bananas.
b. * Pedro comprou três poucas bananas.
(3) a. Metade das armas do País é ilegal.
b. * Metade das armas do País é pouco ilegal.
A proposta deste artigo é apresentar uma explicação para os
fatos ilustrados de (1) a (3). Para dar conta desses exemplos e de outros,
a serem apresentados adiante, indicando fatos sobre a distribuição e a
interpretação de “pouco”, propomos que “pouco” é um modificador
que não faz seleção categorial, mas faz seleção semântica (s-seleção):
ele seleciona um tipo de escala, a escala aberta, e, nas sentenças
malformadas após sua inserção, a expressão a ser modificada por ele ou
não é escalar ou apresenta escala fechada. A seleção de tipos de escala
por modificadores é prevista por uma semântica de graus nos moldes
de Kennedy e McNally (2005). Os autores, com base num estudo de
corpos, mostraram que os advérbios intensificadores do inglês “very”,
“much” e “well” estão em distribuição complementar, ou seja, que,
no corpus examinado, há adjetivos modificáveis exclusivamente por
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um desses advérbios, não sendo modificados pelos demais. Os autores
provaram, apresentando testes linguísticos independentes dessa seleção
por advérbios em estudo, que os adjetivos podem ser agrupados pelas
propriedades escalares que apresentam. A complementaridade encontrada
entre os adjetivos modificados por “very”, “much” e “well” é explicada
assumindo que esses intensificadores fazem s-seleção, escolhendo certas
características da estrutura lógica das escalas em detrimento de outras.
Em outras palavras: esses intensificadores são especializados em certos
tipos de escala. Entraremos em detalhes sobre essa teoria logo mais, na
seção 2, quando discutirmos os fatos de “pouco” modificando adjetivos.
Em consonância com a semântica de graus, daqui em diante vamos nos
referir a “pouco” não mais como “advérbio” ou “intensificador” (ou por
qualquer dos rótulos propostos pela GT), mas como “modificador de
graus”. (Examinaremos como se dá a operação de modificação de graus
que justifica tal mudança de nomenclatura na seção 2.).
Como uma das consequências de tratar “pouco” como um
modificador de graus especializado em escalas abertas, seria de esperar
que, de alguma forma, a semântica das expressões produzidas por
“pouco” fosse a mesma, uma vez que, independentemente de o sintagma
modificado ser verbal, nominal ou adjetival, o tipo de escala apresentado
satisfaz a s-seleção do modificador. Assim, apesar de “pouco” transitar
por diversos domínios, ao contrário do que propõe a gramática tradicional
(para quem há um artigo, um advérbio de intensidade, um substantivo
masculino e um pronome indefinido que, por coincidência, recebem uma
forma morfofonológica idêntica), defenderemos que não há polissemia:
seja no domínio verbal, nominal ou adjetival, é o mesmo “pouco” que está
modificando expressões graduais. Um mesmo modificador de graus pode
operar sobre sintagmas das mais diversas classes, desde adjetivos de grau
(4) até nomes plurais (5), passando por verbos inerentemente graduais
(6), verbos eventivos (7), nomes de massa (8) e nomes inerentemente
graduais (9), mantendo um significado único, aquele atribuído por
Kennedy e McNally (2005) a redutores/ minimizadores, como pode ser
depreendido das paráfrases nas letras (b) abaixo:
(4) a. A aluna é pouco estudiosa.
b. A aluna é menos estudiosa do que deveria ser.
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(5) a. Tem poucas pessoas na festa.
b. Tem menos pessoas na festa do que era esperado.
(6) a. Maria gosta pouco do trabalho dela.
b. Maria gosta menos do trabalho dela do que seria o ideal.
(7) a. Essa música toca pouco no rádio.
b. O tanto de vezes que a rádio executa essa canção é menor do
que o esperado.
(8) a. Há pouco óleo na garrafa.
b. O tanto de óleo que sobrou na embalagem é menor do que o
necessário.
(9) a. Estou com pouco sono.
b. O grau de sono que eu experimento é menor do que o normal.
Como a semelhança entre as paráfrases das sentenças de (4) a (9)
indica, o modificador de graus “pouco” realiza a mesma operação em
qualquer domínio, adjetival, verbal e nominal. A natureza dessa operação
será esmiuçada nas próximas seções, bem como serão indicados os fatores
que a favorecem ou que impedem que ela se aplique. Dividimos o artigo
por domínios. Na seção 2, trataremos de “pouco” no domínio adjetival;
na seção 3, trataremos de “pouco” no domínio verbal; e na seção 4,
trataremos de “pouco” no domínio nominal. A quinta e última seção é
a conclusão, em que retomamos os pontos comuns à modificação por
“pouco” em todos os domínios, mostrando que todos os casos podem ser
explicados por sua s-seleção, e fazemos um balanço dos ganhos gerados
por nossa proposta.
Antes de prosseguirmos, para não alimentarmos falsas
expectativas, gostaríamos de avisar ao leitor de que não vamos tratar
de “um pouco” neste artigo. Para que os motivos dessa reserva sejam
compreendidos, precisamos situar brevemente “um pouco” em relação
a “pouco”. A literatura (ver HEIM, 2007; DUCROT, 1973; GOMES;
SANCHEZ-MENDES, 2015) observa que, em várias línguas, um
determinado tipo de modificador de grau, justamente o descrito como
redutor/minimizador, aparece em duas formas: numa está acompanhado
de artigo indefinido, e na outra não. Os pares “little” / “a little”
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(inglês), “peu” / “un peu” (francês) e “pouco”/ “um pouco” (português)
exemplificam o fenômeno. A distribuição e interpretação dos dois
membros de cada par não é completamente coincidente. No Brasil, foi
a semântica da argumentação, de Ducrot (1977), a que mais se debruçou
sobre a diferença na interpretação dos membros do par. Para o autor, um
membro do par aponta para a suficiência, e o outro, para a insuficiência.
Por exemplo, dada a pergunta “Mas você tem certeza de que está em
condições de dirigir?”, a interpretação mais saliente para a resposta
“Eu dormi um pouco” é “sim, acho que consigo dirigir”, enquanto que
a resposta “Eu dormi pouco” é usualmente compreendida como “não,
acho que não estou bem o bastante para dirigir”. Na semântica formal,
gostaríamos que a interpretação do complexo “um pouco” fosse um
resultado da composição entre a semântica de seus dois termos, “um” e
“pouco”; mas essa é uma tarefa para pesquisas futuras. No âmbito deste
artigo, vamos nos ater à forma sem o artigo, “pouco”. Começando pelo
domínio dos adjetivos.
2. “Pouco” no domínio adjetival
Dado que tratamos “pouco” como um modificador de graus
especializado em escalas abertas, e ele modifica alguns adjetivos
como “estudiosa” (4) mas não pode modificar outros, como “ilegal”
(3), nossa hipótese é que adjetivos como “estudiosa” atendam aos
critérios da s-seleção de “pouco”, mas adjetivos como “ilegal” não. Para
podermos construir uma argumentação sólida nesse sentido, precisamos
primeiramente apresentar a teoria que sustenta nossa análise, a semântica
de graus. Para Kennedy e McNally (2005), os adjetivos se dividem
em adjetivos graduais ou adjetivos de grau (AGs) e adjetivos sem
grau. Os autores propõem testes para separar os AGs dos sem grau. Os
adjetivos de grau aceitam intensificação (10), podem entrar em estruturas
comparativas (11) e têm opostos:
(10) a. A árvore é bastante/muito/ pouco alta.1
b. * Jean Willis foi bastante/muito/pouco eleito por 31% dos
votos válidos.
1
Dados de Delduque (2016).
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(11) a. A árvore é mais alta que a casa.
b. * Marcelo Freixo foi mais eleito que Jean Willis.
Segundo os testes em (10) e (11), podemos observar que “alta”
é um AG, enquanto “eleito” é um adjetivo sem grau. Além disso, só os
AGs possuem opostos: “alto” – “baixo”, “aberto” –“fechado”, “seco”
– “úmido” etc., mas os sem grau não. Qual seria o oposto de “eleito”?
Agora que temos como separar AGs dos adjetivos sem grau,
vamos examinar a proposta teórica que explica essa diferença de
comportamento entre expressões da mesma categoria. Segundo Kennedy
e McNally (2005), sentenças com AGs são comparativas implícitas.
Nessa visão, uma sentença como “A árvore é alta” significa que o grau
de altura da árvore é maior que o de algum parâmetro de comparação não
pronunciado, que é recuperado no contexto. Se o falante pensar numa
casa como parâmetro, então a sentença “A árvore é alta” será uma versão
abreviada de (11a): sempre que uma for verdadeira, a outra também será.
Elas apresentam as mesmas condições de verdade. Se pensarmos que
a casa tem 3m de altura e a árvore tem 4m, a árvore será considerada
alta perto da casa. Mas se compararmos essa árvore com outra coisa,
o julgamento do valor de verdade da sentença “A árvore é alta” pode
mudar. Por exemplo, se compararmos a árvore de 4m com um prédio
de 10m, a árvore não será considerada alta, e a sentença “A árvore é
alta” será julgada falsa. Como os falantes podem escolher livremente o
parâmetro de comparação em comparações implícitas, os julgamentos
de valor de verdade podem variar. Por exemplo, se Maria diz a João “A
árvore é alta” tomando a casa de 3m como parâmetro, mas João ao ouvir
a sentença assume o prédio de 10m como parâmetro, eles vão discordar.
Isso quer dizer que adjetivos como “alto” são comparações implícitas
de superioridade: para uma sentença como x é alto (um equivalente de
x é mais alto que y, em que y não é pronunciado) ser verdadeira, o grau
de altura de x tem de ser superior ao de um parâmetro de comparação
contextual (y). O adjetivo oposto (“baixo”) está na mesma escala, no
caso, a de altura, mas vai na direção inversa: é uma comparação de
inferioridade. A verdade de uma sentença do tipo x é baixo (em que x
é um SN apresentando a propriedade escalar de altura, equivalente a x
é mais baixo que y, sem que y seja pronunciado) exige que o grau de
altura de x seja inferior ao do parâmetro de comparação contextual (y).
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Uma escala é uma sucessão de graus de uma propriedade,
ordenados de forma crescente. Os AGs apresentam estruturas de
escala diferentes (aberta; parcialmente fechada; totalmente fechada)
(KENNEDY; McNALLY, 2005). Adjetivos em que não se pode prever
se o parâmetro contextual de comparação terá grau maior ou menor que o
do argumento do adjetivo, como é o caso de “alto”, são de escala aberta.
A escala aberta é uma escala em que uma ponta é fixa, dada pelo grau do
argumento do AG, mas a posição da outra ponta em relação ao grau do
argumento nominal do adjetivo não foi previamente fixada.
Num segundo tipo de escala, a totalmente fechada, temos uma
comparativa implícita de igualdade entre o grau da propriedade exibido
pelo argumento do AG no momento a que a sentença se refere e um
estado limite desse indivíduo. Pelo fato de o parâmetro ser sempre
esse estado limite, o julgamento da verdade de sentenças com AGs de
escala totalmente fechada, como é o caso da escala de ocupação, de que
participam os opostos “cheio” e “vazio”, não varia com o contexto. Um
copo será considerado vazio se o exibir um grau de ocupação igual a
0% de preenchimento; se adicionarmos qualquer quantidade de líquido
em um copo, ele deixará de ser vazio. Um copo está cheio quando seu
conteúdo atinge 100% de preenchimento, se a capacidade total do copo
é 300 ml e adicionarmos 350 ml, o copo irá trasbordar. Dada a escolha
padrão desse parâmetro não pronunciado, o julgamento do valor de
verdade de sentenças como “o copo está vazio” pelos falantes costuma
convergir.
Há um terceiro tipo de escala, a escala parcialmente fechada,
em que o grau de uma ponta é fixo (daí a ponta ser fechada), mas o
grau da outra ponta é flexível. Se a escala é parcialmente fechada, um
dos AGs que participam dela será uma comparação de igualdade (o da
ponta fechada) e seu oposto será uma comparação de superioridade (o
AG da ponta aberta). Por exemplo, vamos considerar a propriedade da
umidade: uma roupa no varal é considerada seca se tiver exatamente
0% de umidade; e estará molhada com qualquer grau maior que zero de
umidade, independentemente de o nível de umidade ser 5% ou 100%. O
AG “seco”, a ponta fechada da escala, é uma comparação de igualdade
entre o estado atual da roupa e essa referência. Já o AG “molhado”, a
ponta aberta da escala, requer que a roupa apresente um grau diferente
(para cima) de zero, ou seja, maior que o parâmetro. Dizemos que as
escalas parcialmente fechadas têm uma ponta aberta, que corresponde
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a um adjetivo de grau mínimo (“molhado”), e uma ponta fechada, que
corresponde a um adjetivo de grau máximo (“seco”).
Bem, foi proposto que os modificadores de AGs reconhecem
e distinguem essa variedade de estruturas de escala. Modificadores de
AGs tomam uma escala de certo tipo e acrescentam nova condição para
a verdade da sentença. Dito de outro modo, os modificadores alteram a
interpretação do grau do adjetivo pedindo que mais uma condição seja
satisfeita. Vejamos a diferença entre os modificadores:
(12) a. João é alto.
b. João é muito alto.
c. João é pouco alto.2
Consideremos contextos diferentes. No primeiro, João tem 6 anos
e 1,4m, e seu irmão de 8 anos mede 1,3m. Nesse contexto, a sentença
(12a) pode ser considerada verdadeira. “João é alto” será verdadeira se
o grau de altura dele for só um pouquinho superior ao do parâmetro de
comparação contextual. Mas, nesse mesmo contexto, dificilmente (12b)
será considerada verdadeira. Para ser tido como “muito alto”, não basta
que o grau de altura de João seja o maior entre os comparados: além
disso, a diferença entre os dois tem de aumentar. Daí a ideia de que
“muito” é um ampliador. No mesmo contexto, (12c) não é apropriado
(atenção: não estamos dizendo que “João é um pouco alto”, mas que ele
“é pouco alto”).
Agora vamos imaginar um contexto distinto. João continua com
1,4m, e ele quer pegar alguma coisa que está sobre o armário de 2,5m, sem
usar escadas. Ele não vai alcançar, nem esticando os braços ao máximo.
2
Agradecemos a um dos pareceristas anônimos, que apontou que a sentença (12c)
lhe pareceu estranha e relatou não ter encontrado no Google exemplos qualificando
alguém como “pouco alto”. Entendemos que a sentença é realmente rara, mas por razões
pragmáticas. Ela não é agramatical. Dada a semântica que propomos para “pouco”, (12c)
significa que João tem altura abaixo de um padrão contextual, o que é uma avaliação
negativa de uma propriedade inerente num humano adulto; esse tipo de crítica não está
de acordo com as regras da cortesia do PB. É mais tranquilo achar “pouco” em uso para
dizer que um objeto é menos alto do que deveria. De fato, encontramos com facilidade
numa busca no Google sentenças como “a mesquita é separada do hipódromo por um
muro pouco alto”, e registros de uma mulher com “um sapato pouco alto” (a qual não
atingia, calçada, nem 1,7m).
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Nesse contexto, a sentença (12a) é falsa, já que o grau de altura de João
não supera o grau do parâmetro contextual de comparação, o armário.
Naturalmente, (12b) também é falsa nessa situação, visto que o ampliador
requer que o grau de altura de João seja o maior entre os comparados (o
que não ocorre) e que a diferença entre ambos seja grande (o que também
não ocorre). Mas (12c) é verdadeira nesse contexto, podendo ser usada
para expressar que João tem menos altura que a necessária para alcançar
aquilo que está em cima do armário.
Que diferença semântica a inserção de “pouco” em (12a) faz,
então? Ou, perguntando de outro modo, qual é a diferença entre (12a)
e (12c)? Podemos dizer que a contribuição de “pouco” é indicar que o
grau da propriedade atribuído ao argumento do adjetivo está abaixo do
parâmetro. Por isso, modificadores de grau como “pouco” são redutores/
minimizadores (cf. KENNEDY; McNALLY, 2005). As sentenças (12a)
e (12b) são comparações implícitas de superioridade, mas (12c) é uma
comparação implícita de inferioridade. Na mesma escala, a da propriedade
de altura, enquanto “alto” (12a) e “muito alto” (12b) apresentam uma
mesma direção (o grau do argumento está acima do grau do parâmetro),
(12c) apresenta a direção inversa (o grau do argumento está abaixo do
grau do parâmetro).
Em inglês, segundo os próprios Kennedy e McNally (2005), os
modificadores de grau são especializados em modificar AGs com certo
tipo de escala: “very” s-seleciona escalas abertas, “well” s-seleciona
escalas fechadas no grau máximo e “much” s-seleciona escalas fechadas
no grau mínimo. Os autores defendem ainda que os redutores selecionam
as pontas abertas de escalas fechadas (“slightly wet” “ligeiramente
molhado”, *“slightly full” “ligeiramente cheio”). Bogal-Allbritten (2012)
afirma que os redutores também selecionam escalas abertas, mas há um
maior custo de processamento. Para todos esses autores, não são bem
formadas as combinações entre redutores e adjetivos de grau máximo.
Isso não pode ser estendido aos redutores do português, uma vez que
“pouco” modifica AGs de escala aberta, como vimos em (12c), de escala
fechada no grau mínimo (“O sapato está pouco sujo, considerando que
passamos por tantas poças de lama”) e de escala fechada no grau máximo
(“O chão ainda está pouco limpo, esfregue mais”). Como lidar com essa
diferença selecional entre os modificadores de grau do inglês e os do
português, sobretudo quanto aos redutores, o tema deste artigo?
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Seguiremos Gomes (2010), que afirma que o efeito das escalas
é universal, mas os parâmetros variam de uma língua para outra: em
inglês é na seleção do item modificado e em PB o efeito do tipo de escala
é no produto. Segundo essa proposta, “pouco” modifica qualquer AG,
mas, seja qual for a estrutura de escala do AG modificado, o produto da
modificação de um AG por “pouco” é invariavelmente uma escala aberta,
em que o a denotação do nome modificado por “pouco” AG apresenta o
grau mais baixo entre os comparados. Vejamos:
(13) a. A roupa estava pouco molhada.
b. A roupa está pouco seca.
c. João é pouco alto. (=12c)
Todas as sentenças em (13) são bem formadas, contendo a
primeira um AG de escala fechada no grau mínimo, a segunda um AG
de escala fechada no grau máximo, e a terceira, como já vimos, um AG
de escala aberta. Isso é inesperado para a literatura. Kennedy e McNally
(2005) preveem que tanto (13b) quanto (13c) sejam agramaticais,
enquanto Bogal-Allbritten (2012) previa que (13b) fosse agramatical.
Mas, embora os exemplos em (13) mostrem que em PB os modificadores
de graus não fazem distinção entre estruturas de escala na s-seleção dos
AGs que modificam, há uma regularidade na interpretação. Sempre
que “pouco” modifica um adjetivo, o produto é uma comparação de
inferioridade. Já discutimos (13c); em (13a), o grau de umidade da
roupa precisa estar abaixo do parâmetro contextual; e em (13b), o grau
de secura da roupa precisa estar abaixo de um parâmetro contextual;
ambas as sentenças podem expressar que a roupa está menos molhada/
seca do que o esperado, dadas as circunstâncias. Assim, (13a) implica
que o falante desejava que a roupa estivesse mais molhada do que se
encontra, e (13b) expressa o oposto, que o desejo era o de que a roupa
que estivesse mais seca do que se encontra.
A seleção semântica é por adjetivos de grau; o produto da
modificação é sempre uma escala aberta, em que o nome modificado
pelo adjetivo apresentado o grau mais baixo entre os comparados.
Portanto, se o tipo de escala não influencia no licenciamento ou não de
um adjetivo para modificação por “pouco”, o sintagma resultante da
modificação mostra sensibilidade aos tipos de escala, sendo o tipo de
escala do conjunto previsível. O produto da modificação por “pouco”
1500
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no domínio adjetival é sempre uma escala aberta (mesmo quando o AG
modificado é de escala fechada).
Dado que “pouco” introduz uma comparação implícita de
inferioridade, faz sentido que haja muita sensibilidade contextual ao
licenciamento de “pouco” + AG em contextos avaliativos e expressivos.
Entendemos o motivo pelo qual “pouco” é mais natural com AGs de
avaliação negativa do que com AGs de avaliação positiva. A razão é
pragmática. É preciso um contexto especial para que a máxima da Polidez
“nunca aponte os defeitos das outras pessoas” possa ser atravessada. Por
exemplo, “João é pouco chato, se comparado a Pedro”, significa que a
chatice de João está abaixo da de Pedro; ou seja, inserir “pouco” em
“João é chato” diminui a chatice de João. Já “Maria é pouco bonita” não
é elogioso, exatamente por reduzir o grau da beleza de Maria. Assim,
o resultado da modificação de adjetivos por “pouco” sofre restrições
pragmáticas, justamente pelo significado gerado, que diz que algo/
alguém não alcança um parâmetro de comparação. Quando o parâmetro
de comparação for um padrão positivo, como “bonito”, inserir “pouco”
corresponderá a uma crítica. Quando o parâmetro de comparação for
um padrão negativo, como “chato”, inserir “pouco” atenuará a crítica.
3. “Pouco” no domínio verbal
Começamos pelo domínio adjetival por facilitar a introdução de
conceitos teóricos como escalas, estruturas de escala e modificadores
de grau. Mas começamos pelo menos típico. No domínio verbal, a
sensibilidade de “pouco” a estruturas de escala se manifesta claramente na
seleção do SV modificado. No SV, a distribuição de “pouco” é fortemente
condicionada pela existência de graus ou escalas. Diferentemente do
que acontece com os adjetivos, no caso do domínio verbal “pouco” não
modifica qualquer escala aspectual, mas seleciona um determinado tipo,
como veremos adiante. Nesse sentido, o comportamento de “pouco” no
domínio verbal se aproxima mais do comportamento descrito para os
redutores de inglês no domínio adjetival.
Vamos aos fatos que precisam de explicação. Assumindo que
“pouco” em SVs ocupe sempre a mesma posição sintática, não temos
razões estruturais para o fato de que sentenças bem formadas na ausência
de “pouco” se tornem agramaticais quando o modificador de graus é
inserido, como por exemplo:
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(14) a. Maria guardou (*pouco) o livro na estante.
b. Ele chegou (*pouco) há 10 minutos.
c. A água esquentou (*pouco) até 100 graus.
d. O almoço será (*pouco) servido aos convidados.
e. A moça passou (*pouco) no vestibular.
f. Andrea foi (*pouco) à igreja neste domingo às 7 horas.
g. João está (*pouco) na fila agora.
h. Paulo morreu (*pouco) ontem.
i. Carlos será (*pouco) dentista.3
Por que a inserção de “pouco” nesses diversos SVs é agramatical?
O que impede a modificação desses SVs por “pouco”?
Retomando o que vínhamos dizendo, neste artigo pretendemos
fazer generalizações que permitam prever os casos onde “pouco” será
(a)gramatical em SVs, a partir das nossas hipóteses. Prevemos que
“pouco” poderá modificar todos os SVs de grau inerente, desde que eles
não marquem o grau extremo, máximo da propriedade; mas não todos
os sem grau inerente. Entre esses últimos, há dimensões aspectuais que
apresentam tipos de escala. “Pouco” é sensível à natureza da escala dessa
dimensão aspectual. Neste ponto, é preciso esclarecer o que entendemos
por “dimensão aspectual”. Ao tratar de adjetivos de grau, dissemos que
uma escala é uma sucessão de graus de uma propriedade, ordenados de
forma crescente. Uma propriedade é uma dimensão. Por exemplo, os
adjetivos “alto” e “baixo” associam seu argumento a um grau na dimensão
de ALTURA. Já “cheio” e “vazio” associam seu argumento a um grau
na dimensão de OCUPAÇÃO. Adjetivos apresentam como dimensões
propriedades de indivíduos. Sintagmas verbais (SVs) denotam tipos de
eventualidade4 (“comprar o juiz de futebol”, “chutar o balde”, “pedir
água”). Os SVs são classificados por Vendler (1957) em categorias
aspectuais: estados, atividades, accomplishments e achievements, como
veremos mais adiante. Essa divisão, conhecida como em classes acionais,
separa os SVs segundo propriedades ou dimensões aspectuais. Essas
3
Dados de Delduque (2017) e de Delduque e Gomes (2018).
Eventualidade é o nome genérico usado pela semântica formal para “acontecimentos”,
“estados de coisas” ou situações localizadas numa coordenada espaço-temporal ou
estendidas por um intervalo de tempo.
4
1502
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dimensões são projetadas por tipos de eventualidade. Por exemplo,
mudança de estado é uma dimensão encontrada em SVs dinâmicos
(atividades, accomplishments e achievements), mas ausente em estados.
Já a duração (distância entre o momento inicial e o final da eventualidade)
é uma dimensão encontrada em estados, atividades e accomplishments,
mas ausente em achievements. A telicidade, por sua vez, só está presente
em accomplishments e em achievements. A dimensão aspectual
“progressão para a culminância” só é encontrada em accomplishments,
pois requer um intervalo temporal entre o início e a culminância da
eventualidade. Outra dimensão aspectual é a frequência ou iteratividade,
que denota uma repetição do mesmo tipo de eventualidade, formando
uma quantidade plural; para poder repetir o tipo de eventualidade, é
preciso ter episódios, ou seja, múltiplas eventualidades culminadas; por
isso, estados não apresentam a dimensão de frequência. Tais dimensões
são aspectuais porque dependem da classe acional do SV. Algumas delas
são graduais, e, portanto, escalares, como a de frequência e a de duração;
mas a telicidade não é escalar (ou uma eventualidade culmina, ou não);
e a progressão para a culminância é uma escala fechada, pois, após a
culminância, a eventualidade cessa. Assumimos que os modificadores
de grau como “pouco” e “muito” podem operar sobre qualquer tipo de
escala, e, portanto, atuam também sobre escalas aspectuais. Uma vez que
defendemos que “pouco” seleciona escalas abertas, esperamos que ele
selecione as dimensões aspectuais que apresentem essa característica, e
que seja incompatível com aquelas que não têm grau ou que constituem
escalas fechadas. Detalharemos essa abordagem logo mais.
Antes de prosseguir, precisamos dizer que, assim como ocorre
com os adjetivos, que se dividem em com ou sem graus, também há
verbos que são inerentemente, lexicalmente graduais, ao lado de núcleos
de SVs que não entram na derivação sintática já com gradabilidade em
sua denotação. Começaremos tratando da leitura descrita na GT como de
intensidade, que é a produzida quando “pouco” modifica um predicado
verbal inerentemente escalar.
Segundo Gomes (2018), que se baseou em Fleischhauer (2016), há
eventualidades escalares por sua natureza semântica. Alguns verbos são
escalares por denotarem emissão de substância mensurável, produzindo
luz, som, água etc. (“vazar”, “chorar”, “iluminar” etc.), outros por herança
da escala adjetival presente em sua base (“esquentar”, “esfriar” etc.),
outros pela característica do movimento (direcionalidade) que lexicalizam
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(“subir”, “elevar” etc.). Verbos psicológicos como “amar”, “gostar de”,
“apreciar”, “divertir”, “temer”, “assustar” vão fornecer escalas sobre a
profundidade/intensidade do sentimento/sensação. Verbos incrementais,
de consumo ou criação, também fornecem escalas naturais (“comer”,
“beber” etc.), dado o fato de a relação parte-todo e as dimensões fixas
da entidade referida por seu complemento fixarem uma progressão
gradual para o (des)aparecimento de determinado(s) indivíduo(s). Verbos
incrementais como “salgar”/”adoçar” indicam acúmulo de sal/açúcar
sobre o alimento/ a bebida denotada pelo argumento interno do verbo:
quanto mais tempo durar o episódio de “salgar”/”adoçar”, maior será o
tanto de sal/açúcar encontrado no alimento/ na bebida que é o argumento
interno do verbo. Há mais verbos incrementais, que descrevem atividades
escalares em quantidade (“cavar”, “empilhar”, “juntar” etc.), pelo acúmulo
crescente de (sub)produtos. Há eventualidades, ainda, que podem ganhar
uma leitura de grau pelo nosso conhecimento enciclopédico ou de mundo
sobre elas. Por exemplo, o nosso conhecimento sobre a contribuição
apropriada numa conversa permite dizer que alguém “falou demais”
em uma situação, por esse falante ter deixado escapar informações que
deveriam ter sido mantidas em segredo.
Não é possível listar todos os verbos que geram leitura de
intensidade, porém, essa leitura se dá a partir de uma de duas fontes: ou
a lexical ou a pragmática. Há verbos graduais que apresentam argumento
com grau extremo (máximo) da propriedade. Nossa análise pressupõe
que “pouco” não combine com esse tipo de verbo.
(15) a. João gosta pouco de pagode. (grau não-máximo)
b. João adora (*pouco) pagode. (grau máximo)
c. João odeia (*pouco) pagode. (grau máximo)
d. João detesta (*pouco) pagode. (grau máximo)
Dado que a leitura de intensidade depende da entrada lexical
do verbo, cumpre observar que os verbos de grau não-máximo sempre
apresentam escalas abertas (“O navio afundou pouco”, “O corte sangrou
pouco”, “A água esquentou pouco” etc.). Isto posto, queremos avisar que
a leitura de intensidade não será mais considerada neste trabalho, porque
independe do aspecto gramatical e não se relaciona com os aspectos
propostos por Vendler (1957). O ponto mais interessante no domínio
verbal é o tipo de escala associada a certas dimensões aspectuais bastante
1504
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discutidas na literatura (a esse respeito, ver, por exemplo, o apanhado
feito em Wachowicz e Foltran (2006)). É dessas dimensões aspectuais
que vamos tratar agora. Só a seleção semântica de “pouco” explica sua
distribuição por SVs com dimensões aspectuais escalares. Para a análise
proposta, vamos precisar distinguir entre as classes acionais propostas
por Vendler (1957). As classes acionais dividem os verbos a partir de sua
acionalidade ou aspecto lexical. A classificação foi proposta de acordo
com a interação dos verbos com esquemas de tempo (time schemata);
posteriormente, as classes apontadas por Vendler foram distinguidas umas
das outras por algumas características apontadas como traços semânticos
de SVs, tais como “mudança de estado”, “duração”, “telicidade” ou
“culminância”, “progressão para a culminância” e a possibilidade de gerar
leitura iterativa ou de frequência. São essas as dimensões aspectuais que
consideramos neste trabalho.
Segundo Vendler (1957), o aspecto lexical dos sintagmas verbais
é depreendido de quatro divisões: (i) estados – têm duração, mas não
têm culminância intrínseca (podem ser permanentes, como “Dois mais
dois são quatro” ou provisórios, como “Estou com fome”) e resistem
ao perfectivo (*“Dois mais dois foram quatro”); (ii) atividades – têm
duração, não têm culminância intrínseca (“João dorme”), mas o aspecto
perfectivo coloca um fim a essa eventualidade (“João dormiu”); (iii)
accomplishments – têm duração (e etapas diferentes – apresenta
subeventos heterogêneos – “preparar o almoço” inclui etapas distintas,
como lavar o arroz, refogar o arroz, temperar o frango, assar o frango
etc.) e também têm culminância intrínseca (a eventualidade de “construir
uma ponte” em “O engenheiro construiu uma ponte” não pode continuar
depois de a ponte ficar pronta); e (vi) achievements _ não têm duração,
pois são pontuais, e apresentam culminância intrínseca (em “João ganhou
a corrida”, a vitória de João se dá no instante em que ele atravessa a linha
de chegada, e a eventualidade não pode mais prosseguir daí em diante).
Como já foi bem estabelecido na literatura (cf. WACHOWICZ;
FOLTRAN, 2006, entre outros autores), a classe acional não é própria
dos verbos em isolamento; na verdade, o que é classificado é o Sintagma
Verbal, com o complemento verbal incluído. Há testes já consagrados para
identificar a classe acional de um SV. Estados não servem de resposta a
perguntas com o verbo “fazer” (DOWTY, 1979), que requer agentividade
(16); não entram no imperativo (17) (DOWTY, 1979), e não coocorrem
com advérbios “deliberadamente”, “cuidadosamente” (DOWTY, 1979)
(18) nem com “lentamente” (van VALIN JR., 1998) (19):
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(16) O que você está fazendo?
a. Estou estudando.
b. * Estou sendo brasileira.
(17) a. Fique quieto!
b. # Sinta fome!
(18) * João é deliberadamente estrangeiro.
(19) * João gosta lentamente de viajar.
Segundo Dowty (1979), as atividades coocorrem com advérbio
“por X tempo”, coocorrem com advérbios “deliberadamente”, “cuidadosamente” e a sentença no progressivo com o advérbio acarreta que a
ação aconteceu:
(20) a. Maria caminhou por duas horas.
b. Maria caminhou cuidadosamente.
c. “Maria estava caminhando” implica “Maria caminhou um
pouco”.
Para identificar accomplishments, Dowty (1979) indica que o
SV ocorre com advérbios do tipo “em X tempo”, que o progressivo não
acarreta que a ação se deu, e que após a modificação por “quase” há
duas interpretações:
(21) a. Maria pintou o quadro em dois dias.
b. Maria estava pintando o quadro. (Não significa que ela terminou
o quadro.)
c. Maria quase pintou o quadro. (A primeira interpretação é de
que Maria não começou a pintar o quadro, e a segunda é a de
que Maria começou a pintá-lo, mas não terminou.)
Com achievements, construções com “por” soam estranhas; e
achievements não são aceitáveis com “parar”, e o advérbio “quase” não
deixa a sentença ambígua:
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(22) a.* João chegou por poucos minutos.
b. * João parou de chegar.
c. João quase chegou. (Única leitura: ele estava vindo, mas a
eventualidade não culminou)
Uma vez mostrados os modos consagrados de distinguir entre as
classes acionais, que utilizamos para classificar as classes acionais dos SVs
modificados ou não por “pouco”, podemos falar agora em propriedades de
eventos ligadas a cada uma delas. Os estados e as atividades têm duração,
mas não têm uma culminância intrínseca, isto é, não possuem um ponto
final definido, podendo se prolongar indefinidamente. Se “João gosta de
chocolate” (estado), isso pode nunca mudar. Se “João corre” (atividade),
não há um tempo previamente determinado para essa corrida acabar.
Quanto aos accomplishments, eles também apresentam duração, como os
estados e atividades; o que os distingue é que apenas os accomplishments
apresentam também culminância. Quanto aos achievements, eles têm
culminância, mas não duração.
Dissemos que modificadores de grau operam sobre dimensões
aspectuais escalares. Resta saber se essas propriedades (duração,
culminância) são ou não escalares, e se há outras dimensões de
eventualidades que possam se manifestar em certas classes acionais,
mas não em outras. A proposta de Kennedy e McNally (2005) se
limitou às estruturas graduáveis dos adjetivos, mas trabalhos como o
de Sanchez-Mendes (2015), Gomes (2018), Gomes e Sanchez-Mendes
(2015) e Delduque (2018) realizam a transposição de características
das escalas de Kennedy e McNally (2005) para as classes acionais de
Vendler (1957). Defendemos que “pouco” é sensível à natureza escalar
das dimensões aspectuais dos SVs, modificando escalas abertas, mas não
podendo modificar escalas fechadas. Algumas propriedades ou dimensões
associadas na literatura (a esse respeito, ver o resumo apresentado em
Gomes (2018)) ao aspecto verbal são: frequência, que é uma pluralidade
de episódios (ex. “Fui pouco ao cinema este mês” pode ser interpretada
como “O número de vezes em que estive no cinema este mês é menor do
que o esperado”), duração (ex. “Corri pouco hoje” pode ser interpretada
como “A duração da corrida de hoje foi menor do que a esperada”) e
mudança de estado e culminância ou telicidade (ex. “Cheguei (*pouco) na
escola agora” – veremos que “pouco” não pode modificar essa dimensão
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escalar aspectual, por ser uma escala fechada: a culminância é o grau
máximo de eventualidades télicas).
Frequência sempre aceitará “pouco” (ex. “João viaja pouco”),
por ser uma escala aberta: não há um teto, um número máximo de vezes
para os episódios contidos num recorte indefinido de tempo: acima de
duas vezes, qualquer quantidade naquele período serve. Os estados não
podem apresentar leitura de frequência porque não apresentam mudança
de estado, e, portanto, não podem denotar episódios culminados, o que
impede que sejam lidos como múltiplos episódios. Por isso, nunca
teremos um estado modificado por “pouco” com leitura de frequência.
Duração medida é uma dimensão aberta, mas também essa leitura não
está disponível para “pouco” modificando estados.
Hipotetizamos que a duração medida é uma dimensão de
eventualidades que podem culminar; ela vale para atividades, mas não
para estados, assumindo Gomes (2018). Como estados não culminam,
não sobrou para os estados nenhuma dimensão aspectual sobre a qual
um modificador de graus possa operar. Esperamos então que só estados
com verbos inerentemente graduais possam ser modificados por “pouco”
(ex. “Ele sabe pouco disso”). As hipóteses se sustentam: até onde
sabemos, nenhuma leitura de frequência ou duração medida produzida
pela modificação de um estado por “pouco”:
(23) a. Baleias são (*pouco) mamíferos.
b. Pedro é (*pouco) mudo.
c. O livro está (*pouco) sobre a mesa.
d. A panela já está (*pouco) no fogo.
e. Eles têm (*pouco) uma dívida para conosco5.
f. No Brasil, (*pouco) existem aproximadamente 20 espécies de
pulga.
g. Antes de ser anexado ao Brasil, o estado do Acre (*pouco)
pertencia à Bolívia.
h. O Brasil (*pouco) faz fronteira com a Argentina.
5
Por sugestão de um parecerista anônimo, a quem muito agradecemos, acrescentamos,
aos exemplos de (23a) a (23d), que trazem estados com verbos de ligação, os exemplos
de (23e) a (23l), com SVs de estado com núcleos verbais que não são intrinsicamente
graduais, para mostrar que o fenômeno não é restrito a predicados nominais.
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i. Pedro (*pouco) entende perfeitamente que o momento não é
propício para isso.
j. Ele (*pouco) mora atualmente em um hotel.
k. Rio Claro (*pouco) se localiza no interior de São Paulo
l. Alérgicos, cuidado: este produto (*pouco) contém glúten.
O estado em (23a) pode ser salvo na leitura de que o grau
de “mamiferice” da espécie baleia é menor que o de uma vaca, por
exemplo, por aquela ser um representante menos típico dos mamíferos
que esta última; tratando-se de uma questão de grau de tipicidade na
representação da classe dos mamíferos, essa leitura não é semântica,
mas pragmática. Não obstante, também nela “pouco” introduz uma
comparação de inferioridade, mostrando que sua semântica é sempre a
mesma. Porém, se quisermos deixar de lado a pragmática e omitir essa
interpretação, se partirmos da interpretação mais comum da sentença
sem “pouco”, que é “a baleia é um subconjunto do superconjunto dos
mamíferos”, não há como a inserção do redutor ser interpretada como
diminuindo o tempo em que isso ocorre (leitura de duração menor de a
baleia ser um mamífero que o ideal) nem como frequência baixa (a baleia
é um mamífero menos vezes do que se esperaria). Se a sentença (23a)
é genérica, a (23b) é específica: o sujeito “Pedro” é um indivíduo único
e específico. Novamente, para (23b) não aparece a interpretação de que
a frequência com que Pedro é mudo é pequena, nem a de que a duração
da mudez dele (numa certa vez) é pequena. Quanto a (23c), “pouco” não
pode levar a entender que o livro passou um tempo menor sobre a mesa
do que o esperado (leitura de duração), nem que esteve naquele lugar
menos vezes do que devia (leitura de frequência). Também para (23d),
a inserção de “pouco” não produz o sentido de que a panela ficou um
tempo curto no fogo (duração) nem de que ela foi poucas vezes ao fogo
durante certo período (frequência).
Não há grau lexical nos verbos em (23e) (ou a dívida foi contraída
ou não), nem em (23f) (ou existem essas espécies no Brasil ou não), nem
em (23g) (ou bem a Bolívia era a proprietária do Acre ou não era), nem
em (23h) (ou os países são colados um no outro ou não), nem em (23i)
(ou Pedro assim entende ou não), nem em (23j) (ou a pessoa reside lá ou
não), nem em (23k) (ou a cidade fica naquele estado ou não fica), nem em
(23l) (ou o produto têm glúten ou não tem). Os SVs de estado em (23)
não são inerentemente graduais, daí a introdução de “pouco” depender
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de haver uma dimensão aspectual escalar disponível. Mas esses SVs não
oferecem escalas aspectuais sobre as quais “pouco” possa operar. Daí
só podermos ter “pouco” em SVs de estado com verbos inerentemente
graduais, como em “Eu sei pouco sobre esse tema”.
Chamamos a atenção para o fato de que, quando “pouco” é
licenciado em SVs de estado, não são produzidas leituras de frequência,
nem de duração medida. Por exemplo, “Eu sei pouco sobre esse tema”
significa que “eu sei menos sobre esse tema do que outros sabem”, ou
que “eu sei menos sobre esse tema do que sobre outros temas”, ou que “o
tanto de conhecimento que eu tenho sobre o tema é menor que o ideal”,
mas não pode significar que o número de vezes em que eu sei coisas sobre
o tal tema é pouco (frequência), nem pode significar que a duração do
tempo em que eu sei coisas sobre esse tema é pouca (leitura de duração).
As classes vendlerianas de mudança de estado são os achievements,
os accomplishments e as atividades. Nas leituras de episódio singular (o
evento aconteceu apenas uma vez), atividades não culminam (não são
inerentemente télicas). Já achievements e accomplishments culminam.
A culminância é considerada por Gomes (2018) a ponta fechada da
escala, sendo uma dimensão escalar presente em accomplishments e
achievements (télicos). Na falta de culminância, um SV apresenta escala
aberta, semelhantemente aos adjetivos de escala aberta; as atividades
são atélicas, e, portanto, apresentam escalas abertas. A duração é essa
propriedade aspectual de escala aberta. Por quanto tempo o João correu/
dormiu naquela ocasião? Não há um limite intrínseco. Por outro lado,
uma vez que uma pessoa saiu do quarto, ela não pode continuar saindo
do quarto; uma vez que bebeu toda a garrafa de água, não pode continuar
a beber a mesma água.
Apresentamos neste ponto um resumo das dimensões aspectuais
dos SVs mencionadas até aqui, e que seguem o mesmo esquema exposto
em Gomes (2018) para explicar a distribuição de “muito” por SVs:
1510
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QUADRO 1 – Resumo das dimensões aspectuais consideradas
duração dinamismo
culminância
progressão para
frequência
a culminância
estados
sim
não
não
não
não
atividades
sim
sim
não
não
sim, após
medida
accomplishments
sim
sim
sim
sim
sim
achievements
não
sim
sim
não
sim
A duração (distância entre o momento do início e o momento de
término do evento) só pode ser medida em classes aspectuais dinâmicas,
ou seja, com mudança de estado. A introdução de um momento de término
numa atividade torna a atividade, que já é iniciada, também culminada;
por exemplo, “correr” em “João correu por 60 min” é uma eventualidade
com duração medida, assim como “João correu por 3 km”. Isso equivale
a dizer que a duração de um estado não pode ser medida, uma vez que
não temos a marcação de um momento inicial para estados. A frequência
também é dependente do dinamismo. Só eventualidades que culminam
podem ter leitura de episódios, dado que a leitura de frequência é a leitura
de episódios distintos espalhados por um intervalo de tempo aberto (p.ex.
“João corre 3km toda semana”, “Maria é eleita representante da classe
todos os anos”). Estados não podem gerar leitura de frequência por não
culminarem (?*“Maria ama João todos os anos”). A progressão para a
culminância depende de a eventualidade culminar (só accomplishments
e achievements culminam) e de ter, também, duração interna (o que só
se aplica aos accomplishments).
Sanchez-Mendes (2015) analisa “pitat”, da língua nativa
brasileira Karitiana, que atua como um intensificador (modifica adjetivos)
e também como um advérbio (modifica sintagmas verbais), como um
modificador de graus, capaz de atuar sobre todos os tipos de escalas, sejam
elas fornecidas pelo verbo ou pelo adjetivo. “Pouco”, diferentemente
de “pitat”, seleciona escalas aspectuais abertas, não podendo modificar
escalas aspectuais fechadas. Nossa previsão é a de “pouco” que não possa
modificar SVs télicos. Vamos verificar se ela se confirma, começando
pelo exame de “pouco” em accomplishments.
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Verbos de achievements podem ser monoargumentais (“chegar”),
mas os accomplishments costumam ser biargumentais e pedir complemento.
É bastante conhecida na literatura (cf. DI SCIULLO; SLABAKOVA,
2005; DOETJES, 1997) a sensibilidade de accomplishments à natureza
sintática do seu complemento. Se o complemento for um SD, teremos
um SV accomplishment; se o complemento for um nome nu, teremos
uma atividade, com o mesmo verbo. A troca do complemento SD por um
nome nu, cumulativo, altera a telicidade, como vemos abaixo:
(24) a. Ela pintou um quadro. (accomplisment)
b. *Ela pintou quadro. (agramatical)
c. Ela pintou quadros (ao longo da carreira). (atividade)
(25) a. Pedro escalou a montanha. (achievement)
b. *Pedro escalou montanha. (agramatical)
c. Pedro escalou montanhas (neste ano). (atividade)
Os testes de combinação com “em x tempo” ou “por x tempo”
mostrariam que só as sentenças com complemento SD são predicados
télicos em (24) e (25). Esses fatos mostram as condições da seleção
semântica de “pouco”. Se predicados télicos são escalas fechadas e
predicados atélicos são escalas abertas, esperamos incompatibilidade de
“pouco” com SVs télicos lidos como um episódio único culminado. E
esperamos que “pouco” sempre modifique os atélicos, como as atividades,
atuando na dimensão da duração interna do evento, que permanece
aberta. Esperamos que “pouco” nunca modifique achievements. E
que só modifique verbos típicos de accomplishments na ausência de
um complemento expresso, porque então o SV será na verdade uma
atividade, e não mais um accomplishment. As atividades apresentam
dimensões escalares aspectuais que são escalas abertas. De fato, é
alta a produtividade de sentenças com “pouco” e transitivos sem o
complemento nominal expresso, e é agramatical inserir pouco em SVs
accomplishment (com complemento SD):
(26) a. O homem comeu (*pouco) o bolo inteiro em um dia.
b. O engenheiro construiu (*pouco) um prédio em dois anos.
c. Eu pintei (*pouco) a parede inteira em duas horas.
1512
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Os accomplishments com verbos transitivos, cujos complementos
estejam na forma de SDs (ver 26a, 26b, 26c, acima, e 27a, abaixo) exibirão
grau máximo da progressão em direção à culminância. Nesse caso, os
SVs são télicos, e “pouco” é agramatical se inserido neles. Porém, se o
complemento for um nome nu, não há leitura de episódio culminado. A
leitura é de atividade, e “pouco” poderá entrar (27b, abaixo). É importante
notar que, se inserirmos “pouco” num SV que era accomplishment, ou
o complemento será um nome nu ou teremos de “derrubar” (eliminar) o
complemento SD, como vemos em (27c), abaixo:
(27) a. João bebeu (*pouco) duas garrafas de pinga em um dia. (accomplishment)
b. João sempre bebeu pouco cachaça, mas muito cerveja. (atividade:
leitura de frequência)
c. Até que João bebeu pouco (*todo o estoque de cerveja) neste carnaval.
(atividade)
Esses fatos comprovam nossa hipótese sobre a seleção semântica
de “pouco”. Pelo fato de “pouco” não modificar escalas fechadas, ele não
entra em accomplishments (mostramos que a retirada do complemento SD
serve para tornar o SV numa atividade, que traz escala aspectual aberta)
nem em achievements. No caso dos achievements, não há mudança de
classe acional associada à presença ou não de complemento, nem, no caso
de haver complemento, à sua natureza, se SD ou nome nu. Não havendo
um mecanismo que transforme um achievement numa atividade, “pouco”
será sempre agramatical com SVs achievements:
(28) a. Ela chegou (*pouco) à faculdade às 10 horas hoje.
b. Ela chegou (*pouco).
Zwarts (2005) aponta que verbos de movimento são atividades
quando o Path (destino) não está expresso (29a). Se um SD realiza o
alvo (ponto de chegada) do movimento, estamos diante de um predicado
télico (29b). Como previsto, “pouco” só modifica atividades:
(29) a. Maria andou pouco (desta vez).
b. Maria andou (*pouco) 2km/ 3 quarteirões ontem.
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Nas sentenças (29), só é possível ter “pouco” quando o SD
complemento (ou que mede o Path, o trajeto, gerando a progressão para
a culminância) não é pronunciado. “Pouco” só pode ser inserido no
predicado verbal se o SD complemento (que mede o Path) for apagado.
Esse fenômeno ocorre pela s-seleção de “pouco”, como decorrência da
aversão de “pouco” a graus máximos.
Outro tipo de SV que mostra bem como está correta a nossa
hipótese é o chamado Degree Achievement. Degree Achievements são
sempre SVs inerentemente escalares, por conterem verbos cuja base
formante é um adjetivo de grau (KENNEDY; LEVIN, 2008). Eles são
ambíguos entre leituras atélicas e leituras télicas. Por exemplo, se um
enólogo quer servir o vinho tinto indicado por ele quando a bebida
estiver a exatamente 15º C, num dia de calor no Rio, e depois de 10min
na geladeira alguém lhe pergunta se o vinho já esfriou, o enólogo vai
negar, pois o vinho, que passou da temperatura ambiente de 30 graus
para 22 graus, ainda não chegou a 15 graus. Ao atingir essa temperatura,
o grau desejado foi atingido, um grau limite, máximo, e isso pode ser
expresso por “O enólogo esfriou o vinho” (leitura télica: o vinho chegou
aos desejados 15 graus). A mesma sentença pode ser dita quando o vinho
passa de 30º. C a 22º. C, mas nesse caso a sentença é atélica: significa
que o vinho está mais frio do que antes, mas não que chegou a um ponto
predestinado. Inserir “pouco” num SV Degree Achievement é sempre
possível, mas só produz leituras atélicas. O resultado da modificação de
SVs por “pouco” é previsível: o grau atribuído ao elemento modificado
diminui notavelmente, mas não atinge o grau estabelecido como
alvo. Observaremos por meio da realização de paráfrases (30b, 30c) a
comparação implícita realizada por “pouco”:
(30) a. O vinho esfriou pouco.
b. “O grau de temperatura do vinho abaixou, mas o grau atual
ainda é menor do que a desejado pelo enólogo” (leitura atélica)
c. # “A temperatura do vinho chegou ao grau desejado e esse grau
é menor do que um parâmetro contextual” (leitura télica).6
A paráfrase oferecida em (30c) é logicamente contraditória, pois a temperatura do vinho
não pode ser ao mesmo tempo igual ao parâmetro desejado (15 graus) e também menor
que esse parâmetro. A leitura atélica exige uma comparação de igualdade, e “pouco”
6
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Como vimos, “pouco” sempre seleciona e produz escalas abertas
em SVs. Além disso, o resultado da modificação de SVs por “pouco” é
previsível: o grau atribuído ao elemento modificado é inferior ao de um
padrão tirado do contexto, e nunca atinge o máximo. A leitura de um
sintagma modificado por “pouco” é sempre a de uma comparação de
inferioridade implícita, como podemos observar por meio da realização
de paráfrases:7
(31) a. Maria salgou pouco a sopa.
b. “O grau de quantidade de sal colocado por Maria na sopa está
consideravelmente abaixo ao parâmetro considerado como
o ideal”
(32) a. Maria estuda pouco.
b. “O grau de estudo de Maria está consideravelmente abaixo do
ideal para ser aprovada no vestibular”.
(33) a. João bebe pouco.
b. “O grau de quantidade de bebida consumida por João é menor
que o a média”.
Esse tipo de paráfrase será válido para qualquer boa sentença
com “pouco” modificando um SV. Os requerimentos de que o grau
exibido pelo argumento do predicado verbal modificado seja inferior a
um parâmetro, e, ainda, de que seja não-máximo, são parte das condições
de verdade de uma sentença com “pouco” em SV. Então, considerando
que “pouco” seleciona escalas onde possa marcar vagamente um grau
não-máximo, abaixo do parâmetro de comparação, o produto de sua
produz uma comparação de inferioridade. Ambas as comparações são inconciliáveis,
não podem ser verdadeiras simultaneamente.
7
Agradecemos a um parecerista anônimo que nos apontou que o exemplo (31a) é
um accomplishment. Por isso mesmo, gostaríamos de frisar que “salgar” e “adoçar”
são verbos incrementais, inerentemente graduais. Eles já vêm do léxico com grau, na
linha de Fleischhauer (2016); se o verbo for lexicalmente de grau, sua classe acional
não fará diferença. Crucialmente, não é sobre uma escala aspectual que “pouco” está
operando nesse exemplo, mas sobre a escala de quantidade de sal ou açúcar acumulados
como resultado da eventualidade, componente inseparável do significado de “salgar”
/ “adoçar”.
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modificação é previsível. Assim explicamos por que “pouco”, sempre
que o verbo não for lexicalmente escalar, em sentenças com leitura de
episódio singular, modificará apenas SVs da classe acional de atividades.
“Pouco” está permanentemente banido de SVs achievements e de
accomplishments a que falte um núcleo inerentemente escalar, se a leitura
não for de frequência. Os SVs de estado que não forem inerentemente
graduais não serão jamais modificados por “pouco”. A razão é uma só:
“pouco” opera apenas sobre escalas abertas, mesmo nas dimensões
aspectuais. Veremos a seguir como essa análise se aplica à distribuição
de “pouco” no domínio nominal.
4. “Pouco” no domínio nominal
Também no domínio nominal há itens lexicais inerentemente
graduais (nomes de sentimentos, sensações, escalas etc.); “pouco” pode
modificar trivialmente todos eles:
a. João tem pouco amor à vida.
b. Maria tem pouco interesse por filmes.
c. A pouca disponibilidade de horários é um problema.
d. Fez pouco frio/calor hoje.
Porém, a maior parte dos nomes não é inerentemente escalar.
Para esses, é a dimensão da quantidade que vai proporcionar escalas.
Novamente, prevemos que as escalas abertas possam ser modificadas
por “pouco”, e as fechadas, não. Veremos como isso explica por que
a modificação por “pouco” não é licenciada em todos os sintagmas
nominais abaixo:8
(35) *O pouco gato miou.
(36) a. Poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria.
b. Pouco aluno já ficou reprovado nessa matéria.
8
Dados de Delduque (2018).
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(37) a. Dois alunos já ficaram reprovados nessa matéria.
b. *Dois poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria.
(38) a. Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje.
b. Os alunos dessa disciplina eram poucos.
(39) a. A pouca comida que eles tinham se acabou.
b. Eles tinham pouca comida.
(40) a. Os alunos eram muito poucos/ bem poucos.
b. *Os alunos eram poucos três.
(41) a. Sobrou pouca farinha depois de fazer o bolo.
b. *Sobrou a pouca farinha.
Explicaremos esses fatos dividindo as escalas de quantidade
em abertas e fechadas. Nomes que não apresentam grau em sua entrada
lexical podem ser modificados na dimensão de quantidade, que tem leitura
de volume ou de cardinalidade. Se a quantidade nominal for tratada
como uma escala, então a cardinalidade exata e o volume delimitado são
escalas fechadas, pois tomam o grau máximo de quantidade do elemento
no contexto; já a cardinalidade vaga e o volume não mensurado são
escalas de quantidade aberta. Como mostramos, apenas em leitura de
cardinalidade exata não é possível modificar nominais com “pouco”. Na
cardinalidade exata, há um teto que permite dizer exatamente quantos
são os indivíduos membros daquela pluralidade, o que corresponde a
um grau máximo. Assumimos com Barner e Snedeker (2005) que nomes
massivos têm preferencialmente leitura de volume, e nomes contáveis,
preferencialmente leitura de cardinalidade. Defenderemos aqui que a
sintaxe dos sintagmas nominais do PB importa, conforme Gomes e
Sanchez-Mendes (2018). Vamos esmiuçar os exemplos.
Nomes singulares nus contáveis, como “aluno”, em (36b), não
são lidos como exatamente um aluno, nem como exatamente 3: esse
nominal pode se referir a absolutamente qualquer número de alunos. A
isso chamamos “cardinalidade aberta”. Se apenas um aluno foi reprovado
na matéria nos últimos 5 anos, podemos usar (36b) para descrever isso.
Também podemos usar (36b) no caso de 30 alunos terem sido reprovados,
desde que esse número esteja abaixo do esperado. O mesmo nominal pode
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se referir a qualquer tanto de alunos, mas uma vez que “pouco” esteja
presente na sentença, vamos entender que, seja qual for a quantidade de
reprovados, ela é menor que um parâmetro contextual.
Plurais nus como “alunos”, em (36a), não podem fazer referência
a um único indivíduo, e é isso que os distingue do singular nu “aluno”, de
(36b). Plurais nus têm um limite mínimo de quantidade (referem-se a dois
indivíduos ou mais), mas não apresentam um limite máximo. Também
podemos usar (36a) no caso de 30 alunos terem sido reprovados, desde
que esse número esteja aquém do esperado. Ou no caso de 2 alunos terem
sido reprovados, desde que essa quantidade esteja abaixo do parâmetro
de comparação. Plurais nus, assim como singulares nus, com nomes
contáveis como núcleo, são cardinalidades abertas, escalas de quantidade
sem grau máximo. Portanto, “pouco” sempre poderá modificar nominais
nus, dado que as escalas de quantidade associadas a eles são abertas.
É diferente quando tratamos de sintagmas de determinante (SDs),
como em (35): “o gato” é um SD singular que pode fazer referência a
exatamente um indivíduo, nem mais, nem menos. Não podemos usar (35)
para falar de dois ou três gatos. Como há um grau máximo de quantidade
em SDs singulares, que denotam cardinalidades exatas, “pouco” fica
agramatical como modificador e graus, uma vez que essa é uma escala
fechada. Por isso não podemos dizer “(*Pouca) a mãe dele chegou”, nem
“A (*pouca) mãe dele chegou”, ou “(*Pouco) o carro quebrou” nem “O
(*pouco) carro quebrou”. Tanto SDs singulares quanto SDs plurais com
núcleos contáveis denotam cardinalidade exata.
Vemos em (37) que ou o cardinal “dois” ou o modificador
“poucos” pode estar presente, mas ambos não podem coocorrer. Por
isso não podemos dizer *“João escreveu poucas aquelas cartas” nem
podemos dizer *“Poucos os alunos desta disciplina faltaram hoje”. Porém,
podemos perfeitamente dizer “João escreveu aquelas poucas cartas”
ou, como em (38a), “Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje”.
Isso ocorre porque “poucos” em (38a), interno ao SD, ensanduichado
entre o determinante e o nome, é um adjetivo. A mesma posição seria
assumida por outro adjetivo, como “infelizes”. Teríamos a seguinte
versão equivalente a (38a): “Os infelizes alunos desta disciplina faltaram
hoje”. Que essa função é de adjetivo fica claro em (38b), em que
“poucos” é o predicado da sentença. Vamos procurar deixar mais clara
a diferença de interpretação entre “pouco” adjunto nominal (adjetivo) e
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“pouco” modificador de graus, dando uma paráfrase a (36a) e a (38a),
respectivamente retomados como (42a) e (43a):
(42) a. Poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria9.
b. O número de alunos que já ficaram reprovados nesta matéria
é menor que o parâmetro contextual (do que o número de
reprovados em outras matérias, por exemplo).
(43) a. Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje.
b. # O número de alunos desta disciplina que faltaram hoje é menor
do que o parâmetro contextual (que o número de faltantes em
outras disciplinas, por exemplo).
c. Os alunos desta disciplina são poucos e todos eles faltaram hoje.
d. O número de alunos desta disciplina é menor do que o esperado.
Esses alunos faltaram hoje.
O fato de podermos parafrasear (36a = 42a) como (42b), mas não
podermos parafrasear (38a=43a) como (43b), é revelador. As paráfrases
em (43c) e (43d) sim, são apropriadas para (38a=43a), em que “pouco”
se refere ao número de alunos que frequenta a disciplina, mas não ao
número de alunos que faltaram. Dentro do SD sujeito, o adjetivo “pouco”
não tem escopo sobre o predicado sentencial; mas quando não há um
determinante que o domine, como em (36a) (= 42a), o modificador de
graus “pouco” indica que a quantidade de participantes da eventualidade
“faltar” é uma quantidade de escala aberta. Ou seja, em (38a)(=43a)
temos uma dupla predicação: a quantidade de alunos da classe é menor
do que um parâmetro contextual, mas a classe como um todo faltou hoje,
ou seja, não está disponível a leitura de que, na mesma classe, foram
poucos os alunos faltantes em relação aos alunos presentes hoje. A leitura
proporcional está disponível para (36a = 42a) (comparando o número de
reprovados aos não reprovados), mas não para (38a=43a) (comparando
o número de alunos presentes aos que faltaram). O escopo de “pouco”
muda sensivelmente.
Em (39), vemos um SD cujo núcleo é um nome massivo; a
dimensão de quantidade será de volume medido, e não a cardinalidade.
Vemos em (39a) “pouco” adjetivo interno ao SD, oferecendo uma
9
Dados de Delduque (2018).
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paráfrase parecida com a dada para (38a=43a), que seria a seguinte: o
tanto de comida que tínhamos era menor que o desejável e essa comida
acabou (novamente, uma dupla predicação, em que não está disponível
a leitura proporcional). Mas em (39b) temos uma leitura de modificador
de grau para o complemento, que é um nome nu com núcleo massivo.
A paráfrase para (39b) é que o tanto de comida em posse deles é menor
que o tanto desejável.
O dado em (40a) mostra que “pouco” concorda com o nome em
número, como um adjetivo, e que pode ser modificado por um outro
modificador de graus: “muito poucos”/ “bem poucos”, significando
que o número deles é bastante reduzido. Essa diferença acontece com
cardinais/ numerais, que podem aparecer no lugar de determinantes
(“Dois alunos faltaram”) ou como adjetivos (“Os dois únicos alunos da
turma faltaram”), e também como predicados (“Os alunos dessa turma
são dois”). A distribuição de “pouco” no domínio nominal é parecida.
Observe-se que mesmo que se considere que três alunos é pouco para
uma classe, podemos dizer “Três alunos é muito pouco”, “Os alunos da
classe são três”, mas não podemos dizer *“Os alunos eram poucos três”:
(40b) é agramatical por conflito na modificação da escala de quantidade,
dado que os cardinais expressam cardinalidades exatas, que são escalas
fechadas, e “pouco” expressa exclusivamente quantidades de escala
aberta. Ora, a quantidade de alunos (ou de qualquer coisa) numa dada
situação não pode ser ao mesmo tempo uma escala aberta e uma escala
fechada.
Em (41), vemos o contraste entre um nome nu com núcleo
massivo e um SD com núcleo massivo. A sentença (41a) é bem formada
porque a leitura é de que algum volume de farinha indefinido (uma
quantidade vaga, em volume) ainda resta após outro tanto ter sido
empregado. A paráfrase adequada é: o tanto de farinha que restou é
menor do que o ideal. Mas em (41b) temos o SD “a pouca farinha”, que
combina certo volume definido de farinha (aquele tanto que eu armazenei
no início da semana) com o adjetivo “pouco”. A dupla predicação ficou
mais difícil de ser construída. Mas, se acrescentarmos uma relativa, a
sentença resultará perfeita: “[Depois de feito o bolo], sobrou apenas a
pouca farinha que você escondeu ontem”. Aqui há dois predicados: o
tanto de farinha correspondente ao total do que foi escondido é pouco e
foi esse total que sobrou [após a feitura do bolo].
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Para podermos nos debruçar melhor sobre a s-seleção do
modificador de graus, vamos deixar de lado neste trabalho o uso adjetival
de “pouco”, que funciona como uma dupla predicação (parafraseável por
um período coordenado) e não determina quantos são os participantes da
eventualidade atrelada ao predicado sentencial, e nos concentrar nos casos
em que “pouco” é o único elemento à esquerda do nome, funcionando
como um quantificador generalizado, nos termos de Barwise e Cooper
(1981): determinando a quantidade de participantes na eventualidade
principal da sentença.
Defendemos que “pouco” introduz uma comparação de
inferioridade implícita. Seguindo a tradição dos julgamentos de
quantidade de Barner e Snedeker (2005), os nomes podem receber leitura
de volume (geralmente, os massivos) ou de cardinalidade (de modo
geral, contáveis e “falsos massivos”, como “mobília” e “gente”, em que
o aumento em quantidade reflete o aumento no número de indivíduos
pertencentes ao conjunto, ou seja, ao número de móveis no conjunto
denotado por “mobília” e ao número de pessoas no conjunto denotado
por “gente”).
Em PB, segundo Gomes e Sanchez-Mendes (2018), os nomes de
massa resistem a ser pluralizados, em consonância com o que a literatura
aponta para as línguas naturais em geral; na nossa língua materna, há
nomes massivos e contáveis em estrutura de singulares nus, mas os plurais
nus somente apresentam como núcleo nomes contáveis (com leitura de
pluralidades cardinais, sem grau máximo). Todos os nomes nus do PB,
sejam singulares (como em (44), abaixo) ou contáveis (como em (45),
abaixo|) apresentam escalas de quantidade aberta, sem limite superior,
haja visto que não temos como precisar a quantidade de poeira, chocolate
ou cadeiras nas sentenças (44) e (45). A operação de contagem necessita
de um domínio delimitado, ou seja, assumimos com Kennedy (2013)
que atribuir uma cardinalidade exata a um tanto de indivíduos requer
um supremo, isto é, a identificação de uma quantidade máxima desse
tipo de indivíduo na situação dada. Como não há supremo na denotação
de nomes nus singulares ou plurais, eles não podem apresentar uma
cardinalidade exata. Por outro lado, visto que volume e cardinalidade
aberta são escalas sem grau máximo, prevemos que seja possível
modificar esses nomes com “pouco”; de fato é, como vemos em (46a)
e (47a), cujas interpretações por contribuição do modificador de graus
estão respectivamente em (46b) e (47b):
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(44) Tinha poeira no móvel. (volume)
(45) Tem cadeiras na sala. (cardinalidade)
(46) a. Tinha pouca poeira no móvel. (volume)
b. O tanto de poeira no móvel é menor que o esperado. (volume)
(47) a. Tem poucas cadeiras na sala. (cardinalidade)
b. O tanto de cadeiras na sala é menor que o esperado
(cardinalidade)
Como visto, a inserção de “pouco” é possível se a escala é
aberta, mas “pouco” não altera a natureza da interpretação de quantidade
associada ao nome: uma vez que o singular nu “poeira” (44) é interpretado
em termos de volume, “pouca poeira” (46) também será interpretado em
termos de volume; dado que “cadeiras” (45) é interpretado em termos
de cardinalidade, “poucas cadeiras” (47) também é interpretado em
termos de cardinalidade. Esse comportamento é paralelo ao discutido na
seção 2, para os modificadores de grau, tradicionalmente exemplificado
com “very”, “much” e “well” do inglês, que s-selecionam certo tipo de
escala, não operando sobre os outros tipos, mas sem nunca alterarem
a estrutura de escala original do adjetivo ao modificá-lo. No domínio
nominal, tal como no domínio verbal, já discutido na seção anterior,
“pouco” se comporta como um típico modificador de graus no domínio
adjetival segundo a literatura (KENNEDY; MCNALLY, 2005). Isso está
de acordo com a nossa proposta.
Já sintagmas de determinante produzem escalas fechadas de
quantidade. A análise clássica do artigo definido, baseada em Link (1983),
é a de que ele opera sobre o supremo, ou seja, sobre a maior soma possível
de ser construída entre os indivíduos presentes na situação, indicando que
o supremo completo participa da eventualidade denotada pelo predicado
sentencial. Assim, as leituras de volume ou de cardinalidade serão de
grau máximo. Vejamos:
(48) A gasolina acabou. (volume)
(49) Hoje não dei aula, porque os alunos faltaram. (cardinalidade)
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(50) a. A pouca gasolina que havia no carro acabou. (volume)
b. Toda a gasolina que havia no carro acabou; também pudera,
havia bem pouca gasolina no carro. (volume)
c. # O tanto de gasolina no carro é menor que o esperado.
(51) a. Hoje não dei aula porque os meus poucos alunos faltaram.
(cardinalidade)
b. Hoje não dei aula porque todos os alunos da minha turma, que
são poucos, faltaram. (cardinalidade exata)
c. # O número de alunos da minha turma é menor que o esperado.
Temos um tanto delimitado de gasolina em (48), aquele que estava
dentro do tanque ao sairmos com o carro, e que foi gasto nessa saída.
Trata-se de um volume delimitado, com grau máximo, e, portanto, de
uma escala fechada. Consequentemente, “pouco” não pode ser inserido
em (48) com a leitura de uma comparativa implícita de inferioridade,
ou seja, (50a) não pode ser interpretada como (50c), mas apenas
segundo o uso adjetival de “pouco”, como ilustrado em (50b), em que
o predicado “acabar” incide sobre a totalidade do volume de gasolina
que estava no carro, e “pouco” apenas qualifica a quantia de gasolina no
carro anteriormente ao evento que gerou seu consumo como pequena.
Também temos uma escala de quantidade fechada em (49), uma vez
que o SD “os alunos” denota uma cardinalidade exata. Daí “pouco”
não poder ser inserido em (49) com a produção de uma comparativa
implícita de inferioridade, ou seja, daí (51a) não poder ser interpretado
como (51c). A única interpretação possível para (51a) é aquela em que
“pouco” é um adjetivo, como ilustrado em (51b), em que o predicado
“faltar” incide sobre a totalidade dos alunos dessa turma, e o número
total deles é qualificado como pequeno por “pouco” independentemente
da contagem dos faltosos.
Distinguindo entre as leituras adjetival e quantificacional,
podemos sustentar que “pouco” modificador de graus sempre produz uma
comparativa implícita de inferioridade, e no domínio nominal s-seleciona
escalas abertas de quantidade. O caso de SDs singulares com núcleo
contável é ainda mais eloquente, uma vez que sequer a leitura adjetival
pode ser produzida:
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(52) a. O (*pouco) carro bateu.
b. A (*pouca) mãe dele telefonou.
c. O (*pouco) gato miou.
Dado que as sentenças em (52) apresentam exatamente um
indivíduo, seja carro, mãe ou gato, nem o modificar de graus encontra
uma escala aberta para satisfazer sua s-seleção nem faz sentido dizer que
um único indivíduo é pouco (daí não haver a leitura adjetival). Mesmo
quando o SD singular tem núcleo massivo, a leitura mais saliente também
é de um volume delimitado, portanto, de escala fechada, tornando a
modificação por “pouco” inviável:
(53) a. O (*pouco) café está amargo.
b. A (*pouca) manteiga derreteu.
c. O (*pouco) leite ferveu.
A única forma de licenciar “pouco” em SDs singulares com
núcleo massivo é produzir a leitura adjetival com uma estrutura sentencial
claramente complexa, com dois predicados, como vemos aqui:
(54) a. O pouco café que eu fiz está amargo.
b. A pouca manteiga que ficou fora da geladeira derreteu.
c. O pouco leite que coloquei no fogo ferveu.
As sentenças em (54) certamente não trazem as leituras de
comparação implícita de inferioridade que esperaríamos de “pouco”
modificador de graus. Vemos que (55a) não é uma a paráfrase para (54a),
nem (55b) é uma leitura possível para (54b), assim como não podemos
dar uma interpretação como (55c) para (54c).
(55) a. # O tanto de café que está amargo é menor que o tanto que
está doce.
b. # O tanto de manteiga que não pusemos na geladeira é menor
do que tanto guardado.
c. # O tanto de leite que coloquei no fogo é menor do que o tanto
que não coloquei.
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Em resumo, propusemos nesta seção que as dimensões escalares
disponíveis no domínio nominal são as de quantidade, seguindo a tradição
de análise semântica de tratar os determinantes como quantificadores
generalizados. Seguindo também a tradição semântica sobre a distinção
massivo-contável, assumimos que essas escalas podem produzir
leituras de volume ou cardinalidade. Considerando que escalas abertas
não apresentam grau máximo, defendemos (cf. GOMES, 2018) que a
estrutura sintática do nominal em PB é decisiva para a produção de uma
escala de quantidade fechada. Nomes nus, sejam singulares ou plurais,
tenham núcleo massivo ou contável, produzem sempre uma escala de
quantidade aberta. Como previsto, “pouco” pode modificar qualquer
nome nu argumental, seja singular ou plural. Quanto aos SDs do PB,
neles podemos encontrar escalas fechadas, sejam de cardinalidade sejam
de volume. O fato de “pouco” modificador de graus não ser gramatical
em SDs singulares, ou de não poder produzir a leitura de comparativa
implícita de inferioridade em SDs plurais, é uma consequência da
s-seleção de “pouco”. Como já dissemos, há nomes inerentemente
graduais (“calor”, “medo”, “dor”, “fé” etc.), que introduzem como
parte de sua natureza lexical dimensões que são escalas abertas, e, por
isso, “pouco” sempre vai poder modificá-los (p.ex.: “A pouca fé dele é
impressionante”). Mas são os outros nomes, aqueles que não entram na
sintaxe já com grau, que melhor mostram como opera a s-seleção do
modificador de graus “pouco”. As dimensões escalares de nomes como
“maçã”, “farinha”, “pedra”, “gente”, “aluno” etc. são de quantidade,
subdividindo-se em cardinalidade e volume. A estrutura sintática define se
haverá um grau máximo para a escala: nomes nus singulares apresentam
volume e cardinalidade aberta, que satisfazem a s-seleção de “pouco”;
mas SDs apresentam volume medido e cardinalidade exata, escalas com
grau máximo, que não satisfazem a s-seleção de “pouco”.
5. Conclusão
Neste artigo, examinamos sentenças bem formadas, em que a
inserção de “pouco” produz estranhamento ou agramaticalidade. Esses
fatos foram explicados como uma consequência da s-seleção de “pouco”,
por nós analisado como um modificador de graus que não faz seleção
categorial, podendo ser encontrado em diversos domínios, como o
adjetival, o nominal e o verbal. Em todos os domínios, o modificador de
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graus “pouco” faz a mesma operação: produz uma comparativa implícita
de inferioridade. Isso nos leva a postular que temos o mesmo operador
de graus atuando da mesma forma em todos os domínios. Vimos que, no
domínio verbal, “pouco” seleciona escalas aspectuais abertas, que são
as dimensões de duração mensurada e de frequência. Por isso, “pouco”
não modifica SVs de estado, a menos que sejam inerentemente escalares,
ou seja, que já entrem na sintaxe com grau, pois estados não apresentam
dimensões aspectuais escalares. Vimos também que a progressão para a
culminância é uma dimensão aspectual de escala fechada, encontrada em
accomplishments. Em achievements, que são instantâneos, a mudança de
estado não progride gradualmente. Como escalas fechadas não atendem
à s-seleção de “pouco”, em sentenças once only, isto é, com leituras de
episódio único, “pouco” nunca poderá modificar as dimensões aspectuais
atreladas às classes acionais accomplishment e achievement. Isso faz com
que a classe acional atividade seja a forte favorita para modificação por
“pouco” quanto a dimensões aspectuais, visto que apresenta sempre uma
das duas propriedades aspectuais de escala aberta, a duração, e que pode
ou não apresentar uma outra, a de frequência. Assim como há verbos
inerentemente escalares, há nomes inerentemente escalares. “Pouco”
modifica todos eles, por trazerem escalas abertas. Mas o que é realmente
interessante no domínio nominal é o exame das escalas de quantidade.
As dimensões de cardinalidade e de volume podem ou não apresentar
grau máximo. A linha de corte é dada pela estrutura do nominal: nomes
singulares nus e nomes plurais nus apresentam volume sem delimitação e
cardinalidade aberta, atendendo à s-seleção de “pouco”; SDs apresentam
volume delimitado e cardinalidade fechada, que não atendem à s-seleção
desse modificador de graus. Isso explica a impossibilidade de serem
geradas leituras de comparação de inferioridade implícita com a inserção
de “pouco” em SDs. No caso dos adjetivos, “pouco” modifica todos os
que são inerentemente graduais, todos os AGs. O que chama a atenção
é o fato de que a semântica gradual estabeleceu que os AGs podem
ser divididos em adjetivos de escala fechada e em escala aberta, mas
“pouco” modifica os de escala aberta e também os de escala fechada. A
s-seleção de “pouco” não descarta escalas fechadas no domínio adjetival,
diferentemente do que acontece nos domínios nominal e verbal. Porém,
mesmo no domínio adjetival, seja qual for a escala inerente ao adjetivo,
“pouco” vai produzir com o adjetivo modificado uma escala aberta,
correspondente a uma comparativa de inferioridade implícita. Em todos
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os domínios, a modificação por “pouco” produz essa comparativa de
inferioridade implícita, que é uma escala aberta. Para dar conta de não
haver s-seleção no domínio adjetival, quando há clara s-seleção nos
domínios nominal e verbal, lançamos mão da proposta de Gomes (2010),
que diz que esse é um parâmetro semântico entre o português e o inglês:
em inglês, há muitos determinantes especializados em nomes massivos
(“much sugar” “muito açúcar”), e muitos especializados em nomes
contáveis (“many boys” “muitos meninos”), enquanto em português
a maioria dos determinantes modifica indiferentemente massivos e
contáveis (“much” e “many” são traduzidos por “muito(s)”). Da mesma
forma, os modificadores de grau do PB não apresentam seleção semântica
como os do inglês, mas produzem com o AG modificado um tipo de
escala único e previsível: “muito” + AG produz uma escala aberta que
é uma comparativa de superioridade, “pouco” + AG produz uma escala
aberta que é uma comparativa de inferioridade, “todo” + AG produz
uma escala fechada na ponta superior, no grau máximo etc. Por força
desse parâmetro, no domínio adjetival temos apenas o mesmo produto
da modificação por “pouco”, em termos de escala, que no verbal e no
nominal, enquanto nestes dois últimos temos também a incompatibilidade
de “pouco” com escala fechada, gerando agramaticalidade. A análise
aqui proposta indica que o modificador de graus “pouco” faz sempre a
mesma operação em todos os domínios, e explica a sua distribuição em
todos eles, fazendo previsões corretas. Todos os predicados inerentemente
escalares podem ser modificados por “pouco”, sejam adjetivos, nomes
ou verbos. Dimensões aspectuais (em SVs) e escalas de quantidade (em
Sintagmas Nominais) são modificados, mas apenas se constituírem uma
escala aberta.
Contribuição das autoras
Este artigo resulta da pesquisa de Iniciação Científica de Juliana dos
Santos Delduque, com bolsa do CNPq, realizada sob a orientação de Ana
Paula Quadros Gomes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
e de investigações correlatas, que se inserem no Projeto de Pesquisa
“Semântica Formal”, no âmbito do Grupo de Estudos Semânticos do
Português (GESP) (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3938420220241727).
O levantamento das fontes bibliográficas foi feito por Ana Paula Quadros
Gomes, tendo as obras selecionadas sido discutidas pelas duas autoras; a
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coleta dos dados, sua sistematização e a descrição das propriedades das
construções foram feitas primeiramente por Juliana dos Santos Delduque;
ambas as autoras trabalharam conjuntamente na análise dos dados e na
redação deste artigo.
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Uma perspectiva etiológica sobre a função natural
da Faculdade da Linguagem
An etiological perspective on the natural function
of the Faculty of Language
Francisco I. A. Matos
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, São Paulo / Brasil
iokleyton@icloud.com
Resumo: Neste artigo, discutimos, com base em Wright (1973), alguns pormenores
que devem ser levados em consideração quando se busca falar em função dentro
da biologia evolutiva. Tratamos, especificamente, de realizar uma acomodação da
abordagem etiológica de função proposta pelo filósofo da biologia Larry Wright à
tese do linguista Noam Chomsky e colaboradores acerca da natureza e da evolução da
Faculdade da Linguagem (FL) na espécie humana, partindo do pressuposto de que a
sua função natural não é a comunicação. Juntamente com Chomsky, defendemos que a
comunicação deve ser mais apropriadamente compreendida como um subproduto, isto
é, uma atividade/comportamento acidental relacionado à nossa FL, mas não sua função
natural propriamente. Entendemos que a função da FL é primariamente interna à mente,
e que a externalização de pensamento para fins de comunicação se deu posteriormente
ao seu surgimento. Partindo de tal entendimento, o eixo da nossa argumentação está na
ideia de que um evento no futuro não pode ter eficácia causal sobre um evento que o
precede, de modo que parece inapropriada uma explicação funcional para a FL que a
iguale com comunicação. A nossa discussão reforça o entendimento, segundo Chomsky,
de que a função da FL é nos possibilitar, por um meio finito, infinitas combinações de
símbolos estruturados hierarquicamente, sob a forma de o que Chomsky argumenta
ser um sistema de pensamento sofisticado e único.
Palavras-chave: Faculdade da Linguagem; evolução; função natural; externalização
da linguagem; explicação causal; biolinguística.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1531-1570
1532
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Abstract: In this paper, we discuss, based on Wright (1973), certain details that
deserve to be taken into consideration when we want to talk about function in the field
of the evolutionary biology. More specifically, we try to accommodate the etiological
approach of function proposed by the biology philosopher Larry Wright to the thesis
of the linguist Noam Chomsky and collaborators on the nature and evolution of the
Faculty of Language (FL) in the human species, based on the assumption that its natural
function is not communication. Along with Chomsky, we argue that communication
should be more appropriately understood as a byproduct, that is, an accidental activity/
behavior related to our FL, rather than its natural function properly. We understand that
the function of the FL is primarily internal to the mind, and that the externalization
of thought for communication purposes is ancillary. Based on this understanding, the
focus of our argumentation is on the idea that an event in the future cannot have causal
efficacy on an event that precedes it, so that any functional explanation for FL that
equates the linguistic capacity with communication will be incorrect. Our discussion
reinforces Chomsky’s understanding that FL’s function is to enable us to construct
infinite combinations of hierarchically structured symbols, in the form of which
Chomsky argues to be a sophisticated and unique system of thought.
Keywords: Faculty of Language; evolution; natural function; externalization of
language; causal explanation; biolinguistics.
Recebido em 09 de abril de 2019
Aceito em 16 de junho de 2019
1. Introdução
Relacionar a estrutura de um objeto criado pelo homem, digamos,
uma ferramenta, à sua função, não é uma tarefa difícil. Considere, por
exemplo, uma ferramenta muito simples como uma chave Allen, ou um
objeto um pouco mais complexo, como um relógio. Em qualquer dos
casos, faz muito sentido perguntarmos quais as funções desses objetos,
e é completamente fácil explicá-las graças ao simples fato de que tais
objetos foram projetados pelo homem, com uma função preestabelecida.
Consideremos uma chave Allen, por ora. Qualquer um que lide
com esse tipo de ferramenta, quando perguntado sobre qual é a sua
função, dirá, seguramente, que sua função é apertar ou soltar parafusos
que tenham um encaixe hexagonal em sua cabeça. Disso deriva, aliás, a
razão de uma chave Allen ter, em sua estrutura, um formato hexagonal.
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Em outras palavras, podemos afirmar que esse tipo de ferramenta tem
essa exata estrutura em função de ter sido desenhada/projetada com a
finalidade mencionada acima. Empregamos o mesmo raciocínio em
relação ao relógio. O relógio, e cada parte que o compõe, foi projetado
por alguém que tinha em mente a função exata que esse objeto executaria
para um resultado final.
Uma chave Allen ou um relógio têm em comum o fato de terem
sido construídos por alguém, com uma certa intencionalidade, de maneira
que faz todo sentido afirmar que esses objetos têm uma função.
No âmbito da biologia contemporânea, entretanto, falar em
função não é uma tarefa trivial, seja porque estruturas biológicas não
refletem a intenção de um engenheiro que as projetou, seja porque a noção
biológica de função pode não ser imediatamente clara (Cf. NUNESNETO; EL-HANI, 2009).
Neste artigo, aplicamos uma definição de função recorrente em
biologia evolutiva, notadamente aquela derivada do trabalho do filósofo
da biologia Larry Wright, à tese do linguista Noam Chomsky a respeito
da Faculdade da Linguagem (doravante FL) e a natureza de sua evolução
na espécie humana. Com isso, argumentamos, seguindo Chomsky, que,
sob uma perspectiva biológica, a FL não pode ter a comunicação como
sendo a sua função natural. A principal contribuição deste artigo está,
portanto, em colocar em perspectiva a função da FL, a partir de uma
discussão estritamente etiológica1 como a de Wright.
O artigo encontra-se estruturado da seguinte maneira. Na seção
2, discutimos a questão de como falar em função dentro da biologia,
especialmente em um de seus ramos, a biologia evolutiva. À reboque
dessa questão, tratamos de explicitar a proposta de Wright (1973, 1976),
a qual constitui uma formulação etiológica do conceito de função
natural, isto é, uma formulação teórica que visa a explicar a razão de
um determinado organismo ou estrutura ser atualmente do jeito que é.
Na seção 3, a discussão gira em torno de como podemos conceber uma
teoria da linguagem radicada no interior da biologia, e, especialmente,
discutimos uma plausível narrativa evolutiva para a FL. A seção 4 fica
a cargo de uma acomodação da formalização de Wright sobre função
biológica à tese defendida por Chomsky ao longo de seus trabalhos que
O termo etiologia faz referência ao estudo sobre as causas que determinam a origem do
objeto/fenômeno sob investigação, no caso aqui discutido, a Faculdade da Linguagem.
1
1534
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discutem a natureza e a evolução da linguagem humana. Por fim, trazemos
as nossas considerações finais.
2. Como falar em função na biologia?
Assim como proposto por Ernst Mayr, um dos maiores biólogos
do século XX, a biologia deve explicar os fenômenos do mundo natural
a partir de duas diferentes abordagens. De acordo com Mayr (1988), os
dois grandes ramos da biologia, dos quais podem derivar tipos distintos
de explicações funcionais, são o ramo da Biologia Evolutiva e o ramo
da Biologia Funcional.
De um lado, a Biologia Evolutiva lida com causas remotas, ou
seja, busca explicar as estruturas e a presença de traços e características
nas espécies atuais a partir de causas que vêm de uma narrativa evolutiva
– i.e., causas relacionadas à história natural da espécie ou estrutura
biológica em questão.
A Biologia Funcional, por sua vez, lida não com causas remotas
– i.e., com explicações históricas/evolutivas –, mas com as causas
imediatas. Nesse ramo da biologia, o interesse é pelo “como” e não pelo
“porquê”.
Considerando esses dois diferentes ramos, atribuições/explicações
funcionais se fazem, de acordo com a perspectiva da filosofia da biologia,
a partir de duas grandes teorias influentes sobre o assunto. No ramo da
biologia evolutiva, uma proposta bastante influente parece ser aquela
formalizada no artigo intitulado Functions, de Larry Wright, publicado
pela primeira vez em 1973. No ramo da biologia funcional, a proposta
mais influente encontra-se esboçada no trabalho de Robert Cummins,
“Functional analysis”, publicado em 1975.2
Assim, na biologia, pode-se falar em função seja no âmbito de
explicações sobre o “porquê”, seja no âmbito de explicações sobre o
“como”. Para os interesses imediatos deste trabalho, interessa a teoria
causal sobre a noção de função desenvolvida por Wright, à qual daremos
relevo.
2
Para uma revisão crítica e contrastante das propostas de Wright e de Cummins,
remetemos o leitor ao artigo de Nunes-Neto e El-Hani (2009), intitulado “O que é
função? Debates na filosofia da biologia contemporânea”.
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1535
A nossa escolha por uma discussão etiológica, em detrimento
de uma discussão que parte de uma perspectiva sistêmica para discutir
função natural, como é o caso daquela apresentada em Cummins (1975),
decorre do nosso interesse em tratar aqui de questões relacionadas à
origem evolutiva da FL. Conforme apontam Nunes-Neto e El-Hani
(2009), apesar de abordagens sistêmicas como a de Cummins serem
legítimas na Biologia, essas abordagens operam com explicações
funcionais que devem ser independentes de considerações evolutivas.
Uma vez que considerações evolutivas são extremamente relevantes para
a discussão apresentada no presente artigo, a escolha por uma abordagem
etiológica está justificada.
Cabe ainda apontar que a proposta de Wright (1973) 3 foi
aqui selecionada, entre outras abordagens etiológicas predecessoras
(CANFIELD, 1964; BECKNER, 1969, entre outros) e sucessoras
(BIGELOW; PARGETTER, 1998; NEANDER, 1998), em razão não
apenas de ser essa uma abordagem padrão entre aquelas de natureza
etiológica, mas também (e principalmente) porque a proposta de Wright
(1973) foi a que primeiro esboçou uma distinção fundamental para o
entendimento da noção de função na filosofia da biologia: a distinção
entre função e acidente. Consideramos essa uma distinção extremamente
importante para as discussões a respeito da função da FL.
Por originar-se da visão darwinista dominante no período em que
foi formulada, a teoria de Wright lança mão apenas de seleção natural
como mecanismo etiológico de base, isto é, o mecanismo que gera o item
da atribuição funcional. Conforme ficará claro, uma das contribuições do
presente artigo está em acomodar um outro conceito da biologia evolutiva
aos debates etiológicos, a saber, o conceito de exaptação. Tal conceito,
a ser apresentado na seção 3, constitui, atualmente, o entendimento
dominante em Linguística Gerativa.
A seguir, apresentamos uma síntese da proposta de Wright (1973).
3
Ao longo do texto, citamos trechos da primeira publicação do artigo de Wright, de
1973, mas devemos mencionar que esse artigo teve uma republicação em 1998, à qual
não tivemos acesso. Além disso, Wright também publicou, em 1976, o livro intitulado
Teleological Explanations, em que as ideias apresentadas no artigo recebem um maior
detalhamento.
1536
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2.1 A definição etiológica de função proposta por Wright
Como já apresentamos, uma abordagem etiológica é aquela
que se ocupa em determinar as causas explicativas de um determinado
organismo ou fenômeno. Uma maneira de alcançar tal propósito é por
meio da criação de uma história evolutiva da estrutura ou fenômeno sob
investigação. O principal mecanismo usado atualmente para construir
uma narrativa evolutiva, sabe-se, é o mecanismo de seleção natural (vejase DARWIN, 1859). É esse o mecanismo do qual Wright se vale para
desenvolver uma abordagem explicitamente causal de função.
Uma ideia basilar na proposta de Wright (1973) é a de que
explicações funcionais devem ser fundamentalmente explanatórias.
Assim, Wright (1973, p. 154) afirma que “dizer que alguma coisa X tem
uma certa função é oferecer um certo tipo importante de explicação para
X”.4 Tal ideia, segundo o seu autor, torna-se imediatamente relevante
quando estamos diante de um contraste como entre as afirmações a e b
a seguir, potenciais respostas à pergunta que as precede, a respeito da
função de uma estrutura biológica complexa, a saber, o coração.
(1) – Qual a função do coração nos mamíferos?
a. A função do coração nos mamíferos é bombear o sangue.
b. A função do coração nos mamíferos é produzir ruído.
O contraste entre essas duas afirmações nos mostra que, enquanto
a afirmação (1b) é interpretada como falsa, a afirmação (1a) é apenas
falseável, o que a torna uma boa hipótese acerca da função do coração.
Sabe-se que, a partir da atividade cardíaca, isto é, a partir do
funcionamento do coração, não apenas o sangue é bombeado, mas
também ruídos são produzidos. Por qual razão podemos, no entanto,
considerar – mesmo que problematicamente, como argumentamos na
introdução deste artigo – que o coração pode ter a função de bombear o
sangue, mas não a função de produzir ruído?
A resposta a essa pergunta parece ter a ver com o fato de que
talvez seja muito importante, na biologia, a distinção entre o que
podemos chamar de uma atividade funcional – como possivelmente
o bombeamento do sangue, no caso aqui tomado para exemplo – e o
4
Trecho original: “saying of something, X, that it has a certain function, is to offer an
important kind of explanation of X”.
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que podemos entender por ser um subproduto, isto é, uma atividade
“acidental”, inevitável, como é o caso da produção de ruído pelo coração.
Seguindo o entendimento de Wright (1973), a afirmação em
(1a) serve como uma resposta satisfatória à nossa pergunta, na medida
em que, diferentemente de (1b), (1a) constitui um tipo importante de
explicação. Entretanto, as coisas parecem não ser tão simples, já que,
segundo Wright (1973, p. 154), não apenas as atribuições de função
fornecem explicações, mas também o fazem as atribuições de objetivo
(goal ascriptions). Podemos constatar isso por meio de uma comparação
das seguintes afirmações.
(2) a. O coração bate para fazer o sangue circular.
b. O coelho está fugindo para escapar do cachorro.
Ambos os exemplos em (2) mobilizam explicações: em (2a),
a explicação está relacionada à “finalidade” (in order to, em Wright
(1973, p. 154)) com que o coração bate; em (2b), a explicação se refere
à “finalidade” com que o coelho está fugindo. Mas apenas (2a) é um
caso de atribuição funcional, que, apesar de apelar – paralelamente a
(2b) – a uma explicação, não deve se confundir com um mero caso de
atribuição de objetivo (2b).
Wright entende que atribuições funcionais devem ter um caráter
fundamentalmente explanatório que deve ser abordado em algum sentido
teleológico. Wright (1973, p. 155) argumenta que perguntas como as que
seguem, todas elas, podem receber a mesma resposta, que, por sua vez
representam a função de X.
(3) a. Qual é a função de X?
b. Por que Cs têm X?
c. Por que Xs fazem Y?
Enquanto (3a) requer explicitamente a função de X, (3b,c)
também o fazem, todavia, por meio de uma maneira que também deixa
claro que afirmar a função de X é prover uma explicação de viés causal
para X, isto é, explicar a causa da existência de X. Na perspectiva de
Wright, questões do tipo “por que” são a maneira mais comum de
perguntar sobre uma função.
1538
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Recorrentemente em sua argumentação, esse autor afirma que
o tipo de papel explanatório sugerido em suas considerações sobre
função não é um tipo fraco ou anêmico (anemic), como subjacente a
uma pergunta do tipo “para o quê X é bom?”, geralmente imputada para
explicações funcionais que não fazem uma distinção entre atividade
funcional e atividade acidental. Se especificar a função do coração é
explicar, por exemplo, o porquê de os mamíferos o terem, então a função
do coração é a razão pela qual ele existe nos mamíferos em um sentido
etiológico – i.e., de um ponto de vista causal. A ideia é que atribuições
funcionais devem ser explanatórias em um sentido bastante forte, o qual
pode ser observado a partir da comparação entre as duas perguntasexemplo a seguir.
(4) a. Por que os animais têm fígado?
b. Para o quê o fígado de animais é bom?
Enquanto a resposta à pergunta em (4a) poderá tranquilamente
corresponder à função que o fígado tem nos animais, já que oferece
uma explicação para o porquê de os animais o terem, a resposta a (4b)
jamais poderá servir da mesma maneira, pois, seja ela qual for, ela
corresponderá a uma atividade acidental que certamente não implicará em
uma explicação para a existência de fígado nos animais. Historicamente, é
completamente acidental o fato de fígados serem bons para muitas coisas
que não correspondem à sua função. Podemos assumir, por exemplo, que
fígados são bons para comer com cebola, e isso nada diz de sua função
(WRIGHT, 1973, p. 156).
Segundo Wright, uma maneira de evitar que função se confunda
com pseudofunção é incluir, como parte da análise sobre a função de X,
informações sobre como X chegou onde chegou. Quando afirmamos que
X chegou onde chegou porque X faz Z, por exemplo, estamos incorrendo
a um porquê notadamente etiológico. Wright (1973, p. 157) propõe que
afirmar que a função de X é Z corresponde a, pelo menos, afirmar que:
(5) a. X existe porque faz Z.
ou
b. Fazer Z é a razão de X existir. ou
c. Que X faz Z é o porquê de ele existir.
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1539
Com a formulação acima, Wright (1973) torna mais explícita
a sua definição etiológica de função. Assim, esse autor sugere que
apontar a função natural de algo, um órgão em um organismo, por
exemplo, é apontar a razão pela qual o órgão está naquele organismo, e,
na visão de Wright, isso pode ser apropriadamente feito apelando-se ao
conhecido mecanismo de seleção natural, embora não exclusivamente
a tal mecanismo. Nas palavras de Wright (1973, p. 159), “Se um órgão
foi natural e diferencialmente selecionado em virtude de algo que ele
faz, podemos dizer que a razão pela qual o órgão existe é que ele faz o
que faz”.5
No entanto, o próprio Wright nota que é fácil mostrar que a
formulação acima é insuficiente para definir função na biológica. A
partir da formulação em (5), corre-se o risco de confundir uma etiologia
estritamente funcional com uma etiologia causal comum. Vejamos
como esses dois tipos de etiologia podem se diferenciar, examinando
comparativamente as duas afirmações a seguir, formuladas a partir da
discussão apresentada em Wright (1973, p. 159-60).
(6) a. A razão de encontrarmos oxigênio na corrente sanguínea é
porque ele se combina com hemoglobina.
b. A razão de encontrarmos oxigênio na corrente sanguínea é
porque ele produz energia.
Wright discute que o porque em (6a) é crucialmente diferente
do porque em (6b). As explicações provenientes dessas afirmações
sugerem diferentes tipos de etiologia, e apenas uma delas constitui um
tipo de explicação funcional. Apesar de verdadeira, a afirmação em (6a)
não pode servir como uma explicação funcional. Seria tola, segundo
Wright, a afirmação de que a função do oxigênio é combinar-se com a
hemoglobina. De fato, a função do oxigênio na corrente sanguínea deve
ser a de produzir energia a partir de reações de oxidação, e a possibilidade
de combinar-se com hemoglobina parece ser precisamente apenas um
meio para alcançar esse fim. Como parte da argumentação de Wright,
está o entendimento de que nós não podemos afirmar que o monóxido de
5
Trecho original: “If an organ has been naturally differentially selected-for by virtue
of something it does, we can say that the reason the organ is there is that it does that
something”.
1540
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carbono (CO), que também é capaz de combinar-se com a hemoglobina,
estaria no sangue porque é capaz de fornecer energia.
Dessa maneira, quando afirmamos, como em (5), que X existe
porque faz Z ou que fazer Z é a razão de X existir ou ainda que fazer
Z é o porquê de X existir, estamos afirmando a função de X. Se ao
mesmo tempo oferecemos uma história narrativa, via seleção natural,
por exemplo, para explicar como X chegou ali, então estamos operando
especificamente com uma etiologia funcional, mas não uma etiologia
causal comum.
Segundo Wright (1973, p. 160), a distinção entre etiologias
mencionada acima se torna ainda mais clara quando lidamos com a
noção de consequência causal, isto é, quando fazemos referência às
consequências da presença de X. Desse modo, quando damos uma
explicação funcional para X recorrendo a Z, tal que nós afirmamos que
X faz Z, Z é sempre uma consequência ou um resultado de X existir.
Portanto, dizer que Z é a função de X é dizer não apenas que X existe
porque faz Z, mas é também dizer que Z é (ou acontece como) um
resultado/consequência de X existir (op. cit., p. 160).
Com isso, Wright (1973, p. 161) chega a uma formulação da
definição de função que ele argumenta ser instrumentalizável na biologia.
(7) – Afirmar que a função de X é Z significa afirmar que
a. X existe porque faz Z.
b. Z é uma consequência (ou resultado) de X existir.
De uma maneira sintética, a primeira parte dessa definição, a
afirmação em (7a), envolve a forma etiológica da explicação funcional,
enquanto a segunda parte, (7b) descreve a maneira útil, apontada por
Wright, para distinguir etiologias funcionais de etiologias causais comuns.
Apresentada a importante contribuição de Wright para a
viabilização de explicações funcionais no âmbito da biologia – ou pelo
menos no âmbito de um de seus ramos, a biologia evolutiva – lidaremos,
na próxima seção, com a visão naturalista que o linguista Noam Chomsky
tem imprimido à FL, e a natureza de sua evolução. Faremos isso com o
intuito de, em seguida, tentar validar a visão de Chomsky no contexto
da formulação de função biológica sugerida por Wright.
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1541
3. Colocando a teoria da linguagem no interior da biologia
Marcadamente, é desde a publicação do livro do linguista
Noam Chomsky (1957), intitulado Syntactic Structures, que tem se
desenvolvido um complexo programa de investigação da linguagem
humana preocupado em entender melhor os aspectos relativos à sua
forma e ao seu funcionamento. Conforme apontam França, Ferrari e
Maia (2016), é, no entanto, relativamente mais recente a tentativa de uma
maior explicitação do desejo e da necessidade científica, por parte de
estudiosos, de se chegar à prática de uma provável biologia da linguagem.
Uma ideia que é central dentro da tese defendida por Chomsky ao
longo de seus diversos trabalhos é a de que a linguagem humana envolve
um volume bastante significativo de conhecimento linguístico que só
pode ser racionalmente explicado via a postulação de uma estrutura inata
especializada, radicada na mente/cérebro do homem.6
O entendimento de que a linguagem humana deve contar
necessariamente com uma estrutura inata se inspira filosoficamente em
um questionamento que é, no entanto, bastante antigo, formulado por
Platão em um de seus diálogos menores, intitulado Mênon, em que se
apresenta a seguinte questão: como podemos saber tanto, com tão pouca
evidência? Esse questionamento, que ficou conhecido como problema
de Platão, se traduz, dentro da linguística Chomskyana, da seguinte
maneira: como bebês e crianças podem ter e exibir um conhecimento
linguístico tão complexo e sofisticado sem que tenham ao seu redor
evidências linguísticas suficientes para tal conhecimento? Essa é a
pergunta subjacente ao conhecido argumento da pobreza do estímulo
(Cf. CHOMSKY, 2012a).
Para uma ligeira exemplificação7 capaz de materializar o que
se entende por pobreza de estímulo, vejamos apenas um entre vários
outros sentidos em que o termo pobreza acima pode ser entendido nesse
contexto.
Consideremos inicialmente as frases em (8), em que a unidade
interrogativa “o que”, também chamada de constituinte Wh, é interpretada
6
Apesar de toda a teoria mobilizada a partir de Chomsky, bem como toda a metodologia
fornecida junto com a sua teoria, ainda hoje se desconhece, anatomicamente, tal estrutura
inata especializada.
7
A exemplificação que trazemos aqui é adaptada de Grolla e Figueiredo Silva (2014,
p. 76-78).
1542
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como complemento do verbo “ver”, isto é, é interpretada como a coisa que
é vista. Na próxima subseção, voltaremos a esse assunto com um pouco
mais de detalhe técnico. Por ora, atentemos apenas para o fato de que,
no português brasileiro, a posição canônica desse tipo de complemento
verbal (objeto direto) é logo à direita do verbo, de modo que essa será
a posição em que o constituinte Wh será originalmente interpretado
nas frases a seguir. O traço após o verbo indica a posição de origem do
constituinte Wh.
(8) a. O que o João viu___?
b. O que o João disse que a Maria viu___?
c. O que o João disse que a Maria acha que o Pedro viu___?
Em termos de generalização descritiva, observamos que um
constituinte Wh na função de objeto direto de um verbo pode ocorrer
“movido” (ou “deslocado”) para o início da sentença (Cf. 8a, b), e isso
pode se dar mesmo em casos em que esse constituinte está originalmente
bastante encaixado (Cf. 8c).
Observe, adicionalmente, que esse mesmo constituinte Wh pode,
em português brasileiro, não se mover para o início da sentença, mas
permanecer na posição em que ele é originalmente interpretado.
(9) a. O João viu o quê?
b. O João disse que a Maria viu o quê?
c. O João disse que a Maria acha que o Pedro viu o quê?
Há, no entanto, certos casos em que essa opcionalidade não é
possível. Isto é, nem sempre podemos escolher mover ou deixar in situ
um constituinte Wh. Observe, por exemplo, os casos a seguir.
(10) a. *O que o João conheceu a menina que viu ___?
b. O João conheceu a menina que viu o quê?
Tem sido amplamente assumido por sintaticistas que o movimento
de um elemento Wh em construções sintáticas do tipo exemplificado em
(10a) mostra-se de fato impossível em qualquer língua em que seja
possível mover esse tipo de constituinte para o início da sentença, o que
revela que essa não é uma particularidade do português brasileiro. Isso
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1543
também revela que essa é uma restrição de natureza especificamente
sintática, já que, além de atestada translinguisticamente, essa restrição
atua apenas sobre certos tipos de estruturas gramaticais, como aquela
em (10a), em que o elemento Wh está dentro de uma típica sentença
relativa, aquela tradicionalmente rotulada como oração subordinada
adjetiva. Assim, em termos de procedimentos gerativos, sentenças
relativas funcionam, supostamente em todas as línguas, como “ilhas”
para extração de constituintes Wh (Cf. ROSS, 1967). Essa afirmação é
corroborada pela contraparte gramatical da mesma frase em (10b).
Para tornar mais clara a nossa exposição, podemos comparar
diretamente as frases a seguir, que mostram ser possível a extração de um
elemento Wh a partir de uma oração completiva de verbo (tradicionalmente
rotulada como oração subordinada substantiva objetiva direta – 11b), mas
é impossível a extração a partir de uma oração relativa (tradicionalmente
rotulada como oração subordinada adjetiva restritiva – 11a).
(11) a. *O que o João conheceu [a menina [que viu ___ ]]?
b. O que o João disse [que a Maria viu ___ ]?
Mas em que consiste o nosso interesse por esse tipo de
observação? Respondemos a essa pergunta com outra questão bastante
objetiva: como a criança adquirindo uma língua toma conhecimento dos
fatos observados acima? Uma resposta que tem se mostrado bastante
adequada tem sido aquela proposta por Chomsky: a criança não toma
conhecimento desses fatos, mas ela traz esse conhecimento consigo, em
alguma medida determinado geneticamente. Perceba, em relação aos
exemplos explorados logo acima, que não é plausível considerarmos que
o estranhamento a uma sentença como (11a) se deva à instrução explícita
de que tal tipo de sentença não pode ser gerada pela língua; parece ser
igualmente implausível a afirmação de que chegamos ao conhecimento
de tal restrição por analogia. Não somos orientados/instruídos de
qualquer maneira em relação a tal tipo de restrição na língua, tampouco
a depreendemos por analogia, já que sentenças bastante similares são
possíveis, como é o caso de (11b).
Chomsky demonstra que podemos de fato colocar parte da nossa
teorização sobre a linguagem no interior da biologia, ao propor que uma
certa parcela do nosso conhecimento sobre a nossa língua tem expressão
em nossos genomas, de maneira que o surgimento desse conhecimento
é automático durante o crescimento de uma criança normal.
1544
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Em formulações mais recentes a respeito da representatividade
desse componente genético da FL, denominado Gramática Universal
(GU), Chomsky argumenta que a competência linguística exclusiva da
espécie humana deve ser resultado de uma interação entre três fatores
(Cf. CHOMSKY, 2005, p. 6): o Primeiro Fator corresponde à GU, ou
seja, uma dotação genética propriamente dita; o Segundo Fator envolve
a experiência fornecida por estímulos do ambiente; e o Terceiro Fator
compreende princípios que não são exclusivos da FL, tais como princípios
de eficiência computacional, princípios de análise de dados, entre outros.
Mais especificamente em relação à concepção de GU, Chomsky
vem argumentando, ao longo de seus últimos trabalhos, que a dotação
genética representada pela GU deve corresponder a um simples
mecanismo combinatorial recursivo, compreendido sob a forma de uma
operação computacional denominada Merge, a ser tecnicamente definida
ao final da próxima subseção.
Se a nossa teorização sobre a língua pode ser colocada no interior
da biologia, tal que possamos investigar como se deu a evolução da
linguagem humana, então o alvo dessa abordagem evolutiva é certamente
a GU, já que é esse o componente da FL que, por hipótese, figura como
uma expressão do genótipo humano. Como vimos, a postulação de uma
GU parece ser capaz de explicar o fato de que crianças demonstram
um rico e organizado conhecimento linguístico, em um curto intervalo
de tempo, e com recursos limitados (problema lógico da aquisição da
linguagem).
A postulação de uma GU implica, portanto, uma explicação para
o surgimento da FL que considere certas especificidades dessa capacidade
cognitiva da espécie, como por exemplo, a aparente autapomorfia8 da
GU, e o seu suposto desenvolvimento recente, conforme retomaremos
adiante. Se as especificidades mencionadas acima são verdadeiras,
então a definição de GU como sendo um único e simples mecanismo
combinatorial recursivo facilita o entendimento acerca da evolução da
FL (Cf. CHOMSKY, 2007; NÓBREGA, 2018).
O termo autapomorfia, assim como usado em estudos a respeito de relações filogenéticas
na Biologia, é aqui empregado em relação à FL para indicar que essa faculdade cognitiva
representa uma inovação evolutiva cuja existência não encontra algo correspondente na
natureza, ou seja, constitui um caractere exclusivo da espécie humana.
8
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019
1545
A seguir, resumimos uma proposta que tem ganhado cada vez
mais proeminência entre aquelas que discutem a emergência da FL. Em
seguida passaremos a tratar diretamente do tópico de interesse deste
artigo, qual seja, a aplicação de uma definição biológica de função.
3.1 A evolução da FL de acordo com a conhecida Tese Minimalista Forte
A essa altura, passaremos a nos referir à evolução da linguagem
mais apropriadamente como evolução da FL. Isso porque, conforme
explica Chomsky (2013, nota 7), embora o termo “evolução da
linguagem” possa ser usado como um atalho para se referir à evolução da
capacidade dos humanos de terem um língua (e isso é o que entendemos
ser a FL), esse mesmo termo pode fazer referência também à evolução
de comportamentos envolvendo linguagem, como, por exemplo, a
evolução da comunicação, que, na perspectiva adotada aqui, é bastante
diferente da evolução da capacidade de gerar expressões linguísticas da
maneira como apenas nós humanos somos capazes. Evidentemente, essa
capacidade exclusiva da espécie humana é usada para comunicação e
muitas outras coisas.
Quanto a esse aspecto, é justo mencionar que a abordagem
aqui assumida não é a única disponível. Diferentemente da hipótese
internalista que adotamos aqui em relação ao surgimento da FL,
outras abordagens consideradas externalistas podem ser encontradas
na literatura biolinguística (e.g., TOMASELLO, 2008; FITCH, 2010;
FISHER; VERNES, 2015; GRAHAM; FISHER, 2015; FISHER, 2016;
EVERETT, 2017). Essas abordagens diferem fundamentalmente daquela
aqui assumida, pois elas partem do pressuposto de que a FL, apesar de
diferir de comunicação, tem essa como sendo a sua característica mais
essencial. A exemplo desse último caso, a comunicação humana pode
ser entendida como uma capacidade única dessa espécie, na medida em
que apenas ela (a comunicação humana) manifesta o que se denomina
como intencionalidade compartilhada (Cf. TOMASELLO, 2008),
diferentemente de sistemas comunicativos encontrados em outras
espécies, incluindo primatas não humanos. Mais adiante (ver seção 3.2),
apresentamos um conjunto de fatos empíricos que favorecem a hipótese
internalista.
Ao discutirem o papel da comunicação na evolução da FL,
Berwick e Chomsky (2016, p. 64) consideram, seguindo Jerison (1973),
que a capacidade de ter uma língua não evoluiu inicialmente como
1546
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um sistema de comunicação, mas como um sistema que possibilita a
construção de “um mundo real”, como uma espécie de “ferramenta de
pensamento”.
Aqui, portanto, a especulação diz respeito ao como e ao em
vista do que deve ter surgido e evoluído essa capacidade exclusiva
da nossa espécie, que tem como propriedade mais elementar a de nos
permitir construir e interpretar expressões linguísticas estruturadas
hierarquicamente, compreendendo o que se considera ser um sistema de
pensamento altamente sofisticado. Chomsky (2005), usando as palavras
de François Jacob, parece resumir bem o que entende ser um sistema de
pensamento estruturado de maneira única:
“A qualidade da linguagem que a torna única não parece ser tanto o seu
papel na comunicação […]”, mas sim “seu papel em simbolizar, em
evocar imagens cognitivas”, “em moldar” nossa noção de realidade e
produzir nossa capacidade de pensamento e planejamento, através de
sua propriedade única de permitir “infinitas combinações de símbolos”
e, portanto, “criação mental de mundos possíveis” […] (CHOMSKY,
2005, p. 3-4, tradução nossa).9
De acordo com o empreendimento gerativista, tal faculdade
cognitiva, quando observada sob uma perspectiva mais ampla (Cf.
HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002) é viabilizada pela composição
de, pelo menos, três “ingredientes” elementares: (i) um sistema sensóriomotor (ou simplesmente, S-M), (ii) um sistema conceitual-intencional
(C-I), e (iii) um sistema combinatorial recursivo.
Com base no que se discute em Hauser, Chomsky e Fitch (2002),
bem como em uma vasta literatura posterior, os sistemas (i) e (ii) são
atestadamente verificados em animais não humanos, o que sugere a sua
existência antes mesmo do surgimento da FL. O caráter diferencial da
FL estaria, por sua vez, em propriedades observadas no sistema (iii),
mais especificamente em sua especialidade recursiva. Hauser, Chomsky
e Fitch (2002) argumentam que esse terceiro ingrediente, diferentemente
9
Trecho original: “The quality of language that makes it unique does not seem to be
so much its role in communicating directives for action’’ […], but rather ‘‘its role in
symbolizing, in evoking cognitive images,’’ in ‘‘molding’’ our notion of reality and
yielding our capacity for thought and planning, through its unique property of allowing
‘‘infinite combinations of symbols’’ and therefore ‘‘mental creation of possible worlds
[…]”.
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1547
dos ingredientes (i) e (ii), é exclusivo à espécie humana, e deve ser
apropriadamente encarado como a FL em um sentido mais estrito.
Além disso, os autores defendem que tal ingrediente, isto é, um sistema
combinatorial recursivo, se constitui como aquilo que certamente deve
fazer a diferença em termos de um sistema de pensamento.
Basicamente, a FL consiste em um sistema que relaciona som/
sinal e significado por meio de recursividade, gerando estruturas sintáticas
hierarquizadas. A figura a seguir representa, de forma simplificada, a
arquitetura da FL num sentido mais amplo, como discutido em Hauser,
Chomsky e Fitch (2002).
FIGURA 1 – Adaptação daquilo que é considerado como sendo a arquitetura da FL,
segundo a visão gerativista.
Na figura, a seta 1 indica o sistema combinatorial recursivo; as
setas 2 e 3 indicam sistemas de interface entre componentes considerados
externos à FL estrita, e com os quais ela interage: respectivamente, um
componente conceitual-intencional e um componente sensório-motor.
Diz-se que, em Forma Fonética (ou PF, do inglês Phonetic Form),
um objeto linguístico deve apresentar as informações que atuarão
como instruções para o componente S-M. Em Forma Lógica (ou
simplesmente LF, do inglês Logical Form) as informações relevantes
do objeto linguístico são de natureza semântica, e interessam, portanto,
exclusivamente ao componente C-I.
Uma vez que apenas o componente S-M fica a cargo de
externalização, podemos, grosseiramente, assumir que os componentes da
FL indispensáveis a um sistema de pensamento – logo, os componentes
1548
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voltados para um uso interno à mente – são o componente combinatorial
e o componente C-I. Este último componente, alimentado por aquele,
redunda na qualidade diferenciada do sistema de pensamento humano.
Ainda na figura 1, uma vez que o nosso propósito aqui é tratar de
questões evolutivas, dispomos as setas 1 e 2 de maneira unidirecional,
como maneira de indicar que a FL evoluiu como um sistema com função
interna à mente. Em outra direção, a externalização de objetos mentais
parece ter um papel secundário na evolução da FL, como discutiremos.
Voltemos o nosso olhar para a seta 1. Sendo o sistema
combinatorial recursivo um componente de caráter exclusivo, devemos
entender que, em termos de FL, essa foi a inovação evolutiva da espécie.
Ao dirigir o olhar para a FL sob um ponto de vista evolucionário,
Chomsky recorrentemente traz para o debate ainda as seguintes
considerações.
(I)
A FL parece ser um desenvolvimento evolucionário recente
Baseado sobretudo nos trabalhos do paleontólogo Ian Tattersall –
especialmente em seus trabalhos que fazem uso de registros arqueológicos
na busca de entender a relação entre evolução humana e cognição (Cf.
TATTERSALL, 2008, 2010) – Chomsky (2012b) entende que a FL surgiu
em nossa espécie por volta de 100 mil anos atrás, data aproximada de
quando são encontrados os primeiros registros de comportamento mediado
simbolicamente que se supõe ser impossível sem uma FL, já que parece
ser essa a capacidade cognitiva que nos possibilita processar informações
sobre o mundo de maneira como nenhuma outra espécie é capaz. Dessa
maneira, parece não haver qualquer indicação de que a FL tenha existido
em um momento anterior àquele em que os efeitos de tê-la passaram
a ser registrados, isto é, até o momento em que é possível encontrar
artefatos simbólicos, notações que refletem eventos astronômicos e
meteorológicos, estruturas sociais complexas, etc. (CHOMSKY, 2012b,
p. 29). Partindo desse entendimento, pode-se dizer que, de um ponto de
vista evolucionário, a FL é sugestivamente uma aquisição bastante recente.
(II) Não se sabe da existência de algo equivalente à FL em outras espécies
Até agora, não é possível atestar a existência de um sistema
gerativo de linguagem semelhante ao nosso em qualquer outra espécie,
incluindo os nossos parentes mais próximos, os macacos. Como alguns
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1549
estudos mostram (Cf. YIP, 2006; BERWICK et al., 2011; SAMUELS,
2011; BERWICK et al., 2012; NÓBREGA; MIYAGAWA, 2015),
espécies não humanas também empregam sistemas dos quais a FL
também faz uso, como é o caso dos sistemas S-M e C-I. Entretanto, a
distinção chave entre os sistemas de linguagem humano e não humano
parece estar em habilidades computacionais sintáticas: enquanto sistemas
computacionais de outras espécies estão limitados a operar com relações
de precedência linear, por exemplo, a habilidade sintática humana é a
única capaz de lidar com relações de precedência hierárquica, um poder
computacional, ao que tudo indica, único, que é devido a Merge, a
operação computacional que descreveremos mais adiante.
(III) A capacidade de ter uma língua parece ter se mantido uniforme desde o
seu surgimento
Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a habilidade
para digerir lactose ou mesmo com a pigmentação da pele, a capacidade
de adquirir uma língua não divide a população humana em grupos
(BOLHUIS et al., 2014, p. 2). Assim, Chomsky sustenta que nenhuma
diferença genética relacionada à nossa FL parece ser observável entre a
população humana atual, e supostamente esse é o caso desde a dispersão
da nossa espécie a partir da África, aproximadamente 50 000–80 000 anos
atrás. De fato, não há dúvidas hoje de que uma criança normal nascida
no Brasil, se levada para o Japão logo após o seu nascimento, irá adquirir
o japonês como sua primeira língua tanto como qualquer outro falante
nativo do japonês ou vice-versa.
Essas são as principais considerações que têm levado Chomsky e
estudiosos de outras áreas que não a linguística exatamente a argumentarem
que a FL foi adquirida não sob seleção natural,10 em contexto de
modificações lentas e graduais de sistemas preexistentes, mas sim em
um evento único, rápido e emergente, construído sobre esses sistemas
anteriores, mas não previsto por eles (BOLHUIS et al., 2014, p. 4).
10
Mais uma vez, é justo mencionar que essa não é a única visão dentro da biolinguística.
Veja-se, por exemplo, a proposta de Pinker e Bloom (1990), para quem a evolução da FL
tem como processo de base um mecanismo necessariamente gradual de seleção natural.
Uma discussão apropriada dessa literatura está além do escopo deste artigo. O leitor
interessado em uma comparação entre as perspectivas gradualistas e não gradualistas
pode consultar Mesquita (2017).
1550
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Tem-se, a partir daí, o entendimento de que o componente
unicamente humano da FL deve ter uma explicação evolutiva
“saltacional”, e a evolução da FL em um sentido mais amplo – isto
é, a FL tal como com a arquitetura representada na figura 1, em
que o componente combinatorial recursivo se relaciona com outros
componentes periféricos – recebe uma explicação evolutiva em termos
de exaptação. Como proposto por Gould e Lewontin (1979), Gould e
Vrba (1982), Gould (1991), exaptação corresponde à cooptação da função
de uma determinada estrutura biológica para uma outra função diferente
daquela envolvida em sua origem.11
A FL em sentido amplo, assim como discutida em Hauser,
Chomsky e Fitch (2002), apresenta, portanto, propriedades de outros
sistemas preexistentes, como os sistemas periféricos C-I e S-M, as quais
teriam sido recrutadas para uma nova função, a partir do momento em
que evento genético único implantou um novo componente entre aqueles
preexistentes.
Mas que evento único, rápido e emergente pode ter sido esse?
A hipótese mais simples, segundo Chomsky, é que passamos a operar
com que se denomina, em teoria linguística, como Merge, uma operação
computacional que nos permite tomar objetos mentais já construídos – os
quais podemos entender como sendo conceitos de algum tipo – e elaborar
objetos mentais ainda maiores a partir deles (CHOMSKY, 2012b, p.
30). Tal hipótese deriva da conhecida Tese Minimalista Forte (Strong
Minimalist Thesis – SMT), encaminhada por Chomsky desde o início do
Programa Minimalista (Cf. CHOMSKY, 1995 e trabalhos posteriores),
um programa de investigação sobre a FL que se constituiu como uma
extensão da Teoria de Princípios e Parâmetros.
A SMT claramente facilita o entendimento acerca da evolução
da FL, na medida em que ela reduz o componente genético da FL – i.e.
a GU, como vimos antes – a um simples mecanismo computacional
combinatorial, com o qual a cognição humana passou a operar. Observe
11
Um caso de exaptação bastante mencionado na literatura é o das penas das aves.
De acordo com os modelos atualmente mais aceitos, as penas evoluíram como um
mecanismo de termorregulação em dinossauros ancestrais das aves, que não eram
capazes de voar. Posteriormente, as penas teriam sido recrutadas para uma função
diferente, a de permitir que as aves voem. Temos, nesse caso, uma função atual que é
diferente daquela envolvida na origem evolutiva da estrutura em questão.
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1551
que a hipótese de Merge como sendo o único “conteúdo” da GU – e,
consequentemente, o ingrediente exclusivo da FL, já que esse ingrediente
não se observa em outras espécies (cf. HAUSER; CHOMSKY; FITCH,
2002) – está em harmonia com a concepção de um evento “rápido,
único e emergente”, que não se explica por seleção natural (hipótese
saltacionista).
Em síntese, podemos dizer que a SMT se erige a partir da seguinte
pergunta: o que viria a ser uma solução ideal/ótima para as condições
impostas pelos sistemas com os quais a FL interage, notadamente, os
sistemas S-M e C-I? A hipótese perseguida pela SMT é a de que a solução
ideal/ótima é um sistema gerativo que conta apenas com Merge – a
operação computacional combinatorial mencionada logo acima – e com
um requerimento cognitivo geral de busca computacionalmente mínima
e eficiente (Cf. CHOMSKY, 2000 e trabalhos subsequentes).
Como já adiantamos, por definição, Merge é uma operação que
toma dois objetos já construídos, X e Y, e os reúne em um novo objeto,
digamos, Z, rotulado por meio de um mecanismo computacional de busca
mínima, digamos, um algoritmo de rotulação (Cf. CHOMSKY, 2013).
Assim, seja X “o” e seja Y “garoto”, a sua combinação vai resultar no
objeto sintático {o,garoto}, correspondendo ao sintagma nominal “o
garoto”. Crucialmente, Merge pode se aplicar ao resultado de seu próprio
output, tal que a unidade {o,garoto} pode sofrer Merge com “ver”, de
modo a produzir um novo conjunto, {ver,{o,garoto}}, correspondente
ao sintagma verbal “ver o garoto”.12
Interessantemente, a operação Merge também produz casos de
deslocamento/movimento de objetos sintáticos, conforme explorado
superficialmente, por meio dos exemplos em (8), (10b) e (11b), no
início desta seção. Movimento de constituinte, um dos grandes fatos que
as línguas naturais compartilham, pode, à primeira vista, parecer uma
imperfeição do sistema gerativo, isto é, da sintaxe. Considere a sentença
em (12), a seguir.
(12) Adivinha o que João viu?
12
A rigor, a operação Merge não é sensível à ordem em que os elementos devem ser
concatenados, de maneira que o output, nos exemplos aqui explorados, também pode
ser {garoto,o} ou {o garoto,ver}. Assim, diz-se que Merge é cega à ordem daquilo que
deverá ser analisado como núcleo do sintagma.
1552
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Nessa sentença, muito embora seja pronunciado em outro lugar,
o constituinte “o que” é originalmente interpretado na posição de objeto
direto da forma verbal “viu”, como na frase “João viu um elefante”. Sob a
perspectiva da SMT, casos de movimento como o ilustrado acima devem ser
automaticamente analisados como sendo gerados por Merge, nos seguintes
termos. Inicialmente, Merge constrói a expressão mental correspondente
a “João viu o que”. Conforme propõe Chomsky, expressões podem ser
construídas por Merge de duas maneiras: podemos ter o que se traduz como
Merge Interno e o que se traduz como Merge Externo. Por Merge Interno,
podemos adicionar à estrutura algo já interno a ela, gerando, por exemplo,
a estrutura “o que João viu o que”, em que uma cópia do constituinte “o
que”, já concatenado antes, é reconcatenada; podemos ainda, por Merge
Externo, adicionar objetos novos, ainda não manipulados, gerando, por
exemplo, a estrutura “adivinha o que João viu o que”.
Essa sequência gerada não é, no entanto, aquela que externalizamos.
Isto é, apesar de as duas posições de “o que” serem semanticamente13
requeridas, é apenas uma ocorrência de “o que” que pronunciamos,
crucialmente aquela gerada por Merge Interno.
A reboque dessa última observação, passaremos a discutir alguns
fatos empíricos que mostram uma assimetria entre os sistemas S-M e
C-I. Tal assimetria revela que a FL não é um sistema adaptado para
comunicação, o que, por conseguinte, favorece a hipótese internalista, e
diz muito sobre qual é a sua função em um sentido etiológico.
3.2 Alguns fatos que mostram assimetria entre os sistemas S-M e C-I
3.2.1 O apagamento de cópias
Como observado ao final da seção anterior, a estrutura “adivinha o
que João viu o que” não coincide com a sequência externalizada “adivinha
o que João viu”, em que a cópia mais baixa do constituinte “o que” é
suprimida. De acordo com Chomsky, a propriedade das línguas naturais
de suprimir, para fins de externalização, todas menos uma ocorrência
13
A posição de base, isto é, aquela gerada por Merge externo, indica que o constituinte
deve ser interpretado como objeto direto do verbo “ver”, no caso exemplificado,
enquanto que a posição derivada, aquela à esquerda do verbo “ver”, gerada por Merge
interno, deve ser interpretada como um quantificador ligando uma variável, de modo
que a expressão significa algo como “para alguma coisa X, João viu a coisa X”.
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1553
de um constituinte copiado é uma propriedade que segue princípios
elementares de eficiência computacional. Nesse sentido, afirmam
Berwick e Chomsky (2011, p. 31): “De fato, tem sido frequentemente
notado que atividade motora em série é computacionalmente custosa,
uma questão que pode ser atestada em vista da grande quantidade do
córtex motor que é devotada tanto ao controle motor das mãos quanto
aos gestos articulatórios orofaciais”.14 Assim, Berwick e Chomsky
argumentam que externalizar uma estrutura como “o que João viu o
que”, gerada internamente, requer pronunciar um mesmo “o que” duas
vezes, o que acabaria por colocar uma inadequada carga na computação
para a interface de externalização.15 Se todas menos uma ocorrência do
14
Trecho original: “In fact, it has often been noted that serial motor activity is
computationally costly, a matter attested by the sheer quantity of motor cortex devoted
to both motor control of the hands and for oro-facial articulatory gestures.”
15
Conforme pontuou um parecerista, há de se mencionar uma potencial evidência
contrária ao argumento aqui usado: em algumas línguas, mais de uma cópia pode ser
pronunciada. Um exemplo claro pode ser observado em (i), a seguir, do Romani (os
dados em i, ii e iii foram extraídos de NUNES, 2003):
(i)
Kas misline
kas o Demìri dikhlâ?
quem você-pensa quem o Demir viu
‘Quem você acha que o Demir viu?’
Como discute Nunes (2003), a julgar pelo Romani, fica evidente que, nos casos em que
duas cópias são pronunciadas, não é qualquer elo da cadeia de constituintes copiados que
pode ser pronunciado; além disso, deve-se considerar que nem todo tipo de constituinte
copiado pode ser pronunciado mais de uma vez. Esses fatos são explicitados por meio
dos dados a seguir:
(ii)
*Kas
misline
kas
o Demìri dikhlâ kas?
Quem você-pensa quem o Demir viu
quem
‘Quem você acha que o Demir viu?’
(iii)
*Save chave mislinea
save chave o Demìri dikhlâ?
que menino você-pensa que menino o Demir viu
‘Que menino você acha que o Demir viu?’
Pelo que se entende de Nunes (2003), no Romani, duas cópias só podem ser pronunciadas
desde que haja uma cadeia de constituintes copiados com mais de dois elos, de maneira
que um deles, necessariamente o mais encaixado (Cf. ii), jamais poderá ser realizado;
além disso, o fato de cópias complexas não poderem ser pronunciadas (Cf. iii) parece
tornar bastante limitado esse fenômeno. Se esse também for o caso com outras línguas
em que mais de uma cópia pode ser pronunciada, temos um provável caminho para
explorar e demonstrar como tal fato não vai contra a argumentação aqui trazida.
1554
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constituinte deslocado é suprimida, então temos um enorme alívio de
carga computacional. Dessa forma, Berwick e Chomsky (2011, p. 32)
concluem que “[...] a faculdade da linguagem recruta um princípio geral
de eficiência computacional para o processo de externalização”.16
Apesar de demonstrar eficiência computacional, o mecanismo
de supressão de cópias aqui discutido coloca uma certa carga sobre a
interpretação de expressões geradas pela sintaxe, e, assim, coloca um
problema para a comunicação. Esse problema é visto da seguinte maneira:
quando ouvimos uma expressão como aquela em (12), precisamos
descobrir qual é a posição possível em que o constituinte deslocado deve
ser interpretado. Esse já é um fato problemático para frases bastante
simples como aquela em (12), mas uma frase um pouco mais complexa,
como (13), a seguir, torna o problema mais óbvio.
(13) Quem João viu quando entrou na sala?
Sabe-se que, por razões que não vêm ao caso discutir aqui,
o constituinte interrogativo “quem”, na frase em (13), do português
brasileiro, só pode estar relacionado com a posição de objeto direto do
verbo “ver”. No entanto, apenas com base no que é externalizado, e
não com base na estrutura tal como ela é gerada computacionalmente,
poderíamos supor outra posição sintática possível com a qual o constituinte
“quem” também pudesse estabelecer uma relação interpretativa: a
posição de sujeito do verbo “entrar”, por exemplo, a qual também não
tem realização fonológica no exemplo em (13). A pronúncia de apenas
uma cópia parece seguir de uma condição de eficiência mais geral que
requer que computações fonológicas sejam minimizadas, mas pode levar
a complicações significativas quanto ao uso da língua, complicações
relacionadas ao processamento e à percepção, como discutido em
Berwick e Chomsky (2011, 2016) e Chomsky (2013, 2015).
O ponto aqui é, portanto, o seguinte: parece haver uma tensão
entre eficiência computacional e eficiência interpretativa-comunicativa,
e as línguas universalmente resolvem essa tensão em favor de eficiência
computacional (BERWICK; CHOMSKY, 2011, p. 32). O fato de
as línguas naturais serem otimizadas para operarem com eficiência
16
Trecho original: “[…] the language faculty recruits a general principle of computational
efficiency for the process of externalization”.
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1555
computacional em detrimento de eficiência comunicativa sugere, segundo
Berwick e Chomsky (2011), que a FL evoluiu como um sistema de
pensamento, portanto um sistema interno à mente, com a externalização
sendo um processo secundário.
3.2.2 A primazia da ordem hierárquica sobre a ordem linear
Sabe-se que, para ser externalizada, uma estrutura hierárquica
qualquer, gerada por Merge, deve passar por algum processo de
linearização, já que o sistema S-M é sensível à ordem linear. Sabemos,
por outro lado, que apenas a ordem estrutural/hierárquica – i.e., aquela
a partir da qual é gerada a ordem linear – é o que de fato está acessível e
interessa ao sistema C-I. Um aparente contraexemplo a essa afirmação
poderia surgir a partir da frase a seguir, em que a modificação feita pelo
advérbio “instintivamente” é ambígua17.
(14) Aves que voam instintivamente nadam.
Como discute Berwick (2017, p. 93), poderíamos erroneamente
concluir, a partir de uma frase como em (14), que o impacto interpretativo
que uma modificação adverbial tem no sistema C-I é um fato que se baseia
na distância linear do advérbio em relação ao verbo. Nesse sentido, a frase
acima seria ambígua em função de o advérbio “instintivamente” estar
linearmente tão distante do verbo “voar” quanto está do verbo “nadar”,
podendo, assim, modificar qualquer um dos dois verbos.
Entretanto, a sentença a seguir mostra que esse não é bem o caso.
(15) Instintivamente, aves que voam nadam.
Na sentença não ambígua (15), o advérbio “instintivamente” pode
modificar apenas o verbo que está linearmente mais distante, “nadar”.
O fato aqui curioso é que, desta vez, o impacto interpretativo que a
modificação adverbial tem no sistema C-I se baseia em uma associação
linearmente remota, mas não em uma associação linearmente proximal,
entre o advérbio e o verbo. Em hipótese alguma, na frase em (15), o
Os exemplos em (14) e (15) são a versão, em português, dos mesmos exemplos
explorados em Berwick e Chomsky (2016) e em Berwick (2017).
17
1556
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advérbio “instintivamente” poderia exercer qualquer efeito interpretativo
sobre o verbo “voar”, do qual está linearmente mais próximo.
Na sentença em (15), o advérbio está hierarquicamente – mas
não linearmente – mais próximo de verbo que ele modifica, como vemos
a seguir, na representação sintática dessa sentença, crucialmente gerada
por Merge, assim como essa operação foi descrita ao final da seção 3.1.
FIGURA 2 – Representação sintática da sentença em (15), gerada por Merge,
em que os itens nos nós terminais, destacados em negrito, representam aqueles
que serão externalizados, e os itens em cinza são simples rótulos da concatenação
de objetos sintáticos (ver CHOMSKY, 2013, 2015). Detalhes sintáticos irrelevantes
foram omitidos.
Como vemos na figura 2, se podemos explicar a modificação
adverbial em termos de uma operação computacional de busca mínima
(minimal search) que atua com Merge –presumivelmente um princípio
do Terceiro Fator, como proposto no modelo de Três Fatores de Chomsky
(2005) –, então esse mecanismo de busca mínima deve fazer uso de
distância estrutural em detrimento da distância linear, apesar do fato de
a distância linear ser um mecanismo computacionalmente mais simples.
Esses fatos sugerem, mais uma vez, que a FL – compreendida
como um sistema biológico que permite a geração de arranjos estruturados
hierarquicamente, a serem interpretados pelos componentes periféricos
S-M e C-I – é, de fato, um sistema assimétrico. Em relação ao contraste
aqui observado entre ordem estrutural vs ordem linear, nas palavras de
Huybregts (2017), tal assimetria é entendida nos seguintes termos:
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[...] o mapeamento da sintaxe para o sistema conceitual-intencional
é cego à ordem linear e depende apenas das propriedades
estruturais, enquanto o mapeamento para o sistema sensório-motor
também é sensível às propriedades lineares. A externalização é,
portanto, secundária, tanto em relação à função linguística quanto
em termos de evolução. (HUYBREGTS, 2017, p. 282, tradução
nossa)18
A seguir, apresentamos mais algumas evidências para essa
assimetria.
3.2.3 Assimetria ainda mais transparente: casos de elipse e de ambiguidade
estrutural
Em 3.2.1, vimos que a redução/apagamento de cópias constitui
um mecanismo que atende a um suposto requerimento obrigatório de
eficiência computacional – ao que tudo indica, um princípio do Terceiro
Fator. Entretanto, as línguas naturais também exibem instâncias de
apagamento de material linguístico que não parecem envolver cadeias de
constituintes copiados por meio de Merge interno. Esses são, portanto,
casos em que o apagamento não é obrigatório, e envolvem o que a
literatura denomina como elipse. O exemplo em (16a) ilustra um tipo
de elipse que envolve apagamento de um único verbo, na segunda frase
de um período composto por coordenação. A elipse em questão recebe,
na literatura, o nome de gapping (ROSS, 1970; JACKENDOFF, 1971;
COPPOCK, 2001).
(16) a. Maria chegou ontem e João ____ antes de ontem.
b. Maria chegou ontem e João chegou antes de ontem.
Como evidenciado por meio de (16), em casos de gapping, temos
um mesmo conteúdo conceitual, servindo à interpretação da sentença
no sistema C-I, associado a duas formas fonológicas passíveis de serem
externalizadas por meio do sistema S-M – tecnicamente, uma mesma
representação em LF para duas representações possíveis em PF. A
18
Trecho original: “[...] the narrow syntax mapping to CI is blind to linear order and
relies on structural properties only while the mapping to SM is also sensitive to linear
properties. Externalization is therefore secondary both in linguistic function and in
evolutionary time”.
1558
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despeito de não ser pronunciado na segunda frase da sentença em (16a), é
o verbo “chegar” que é interpretado como o verbo dessa frase, exatamente
como no caso em (16b), em que esse verbo é realizado. Assim, casos de
elipse manifestam, claramente, o tipo de assimetria sob discussão, na
medida em que, como vemos, uma mesma representação de sentido – e
em uma mesma língua particular – pode se associar a diferentes formas
de representação de sua externalização.
Uma assimetria com ordem inversa dos fatores também pode ser
observada a partir de fenômenos comuns de ambiguidade estrutural. Tais
são os casos em que temos duas diferentes representações em LF, a serem
interpretadas pelo sistema C-I, associadas a uma mesma representação
fonológica –i.e., uma mesma representação PF, a ser externalizada.
A estrutura ambígua explorada previamente em (14), repetido
adiante como (17), pode receber as seguintes duas interpretações,
expressas por meio das paráfrases que seguem. Tais interpretações estão,
evidentemente, relacionadas a diferentes representações estruturais dessa
sentença.
(17) Aves que voam instintivamente nadam.
Paráfrase A: As aves que voam instintivamente são aqueles que
nadam.
Paráfrase B: As aves que nadam instintivamente são aqueles que
voam.
Mais uma vez, a assimetria aqui discutida pode ser observada.
Nos casos em que temos ambiguidade estrutural, um fato interessante
deve ser destacado. Ambiguidades representam uso ineficiente da
linguagem, na medida em que elas podem ser consideradas um problema
para comunicação. Se é assim, temos mais um caso em que eficiência
computacional prevalece sobre eficiência comunicativa.
Não apenas os fatos mencionados até aqui, mas também
muitas outras constatações empíricas manifestam uma assimetria entre
os sistemas que compõem a FL, ao mesmo tempo em que sugerem
fortemente a sua evolução como um sistema de pensamento, a ser
posteriormente utilizado para fins comunicativos. Evidências em favor
desse entendimento não se circunscrevem apenas à área da linguística,
Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019
1559
mas podem ser levantados a partir de outros campos do conhecimento,
tais como a paleontologia, a arqueologia e a biologia molecular.19
3.3 Resumindo a seção
Nesta seção, apresentamos um pouco de como a FL pode ser vista
de uma perspectiva que podemos denominar Biolinguística. A partir de
tal olhar para a linguagem, nos detivemos a uma proposta conhecida
como Tese Minimalista Forte, que persegue a hipótese de que o caráter
supostamente autapomórfico da FL pode ser explicado de uma maneira
ótima e econômica, recorrendo-se a uma única operação gerativocomputacional denominada Merge, que, em atuação com princípios
elementares de eficiência computacional, é capaz de derivar expressões
estruturadas hierarquicamente, sob a forma do que se entende ser uma
linguagem de pensamento. Conforme sustentam Bolhuis et al. (2014), se
considerarmos como fato que Merge é uniforme na população humana
contemporânea tanto quanto em registros históricos, tal uniformidade e
estabilidade certamente apontam para a ausência de mudança evolutiva
desde o surgimento da FL. Esses autores acrescentam ainda que, tomados
em conjunto, esses e alguns outros fatos fornecem boas evidências de
que Merge foi realmente a inovação evolutiva para o surgimento de uma
FL (BOLHUIS et al., 2014, p. 2).
Por fim, apesar de FL e comunicação serem, não muito raro,
consideradas equivalentes, apresentamos, nas últimas subseções, algumas
evidências que endossam a tese de que a externalização de pensamento
– e, portanto, a comunicação – merece ser entendida como um processo
secundário, não direta ou inicialmente envolvido na evolução da FL.
A razão para tal entendimento decorre do fato de que, sendo a FL uma
capacidade cognitiva humana que se constitui de três componentes
elementares – notadamente, um sistema S-M, um sistema C-I, e um
sistema computacional combinatorial –, uma vez que assimetrias entre
os sistema S-M e C-I são encontradas, e o sistema C-I é favorecido, é
natural entendermos que comunicação, que fica a cargo do sistema S-M,
é uma característica secundária, tanto do ponto de vista de sua função
interna à FL, quanto do ponto de vista de sua evolução.
Um trabalho recente, e que reúne argumentos de várias áreas, é o trabalho de Huybregts
(2017) a respeito de cliques fonêmicos usados por povos khoisan no sudoeste da África.
19
1560
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Tendo em vista a proposta que acabamos de resumir sobre a
natureza evolutiva da FL, vejamos que explicação funcional podemos
oferecer para essa faculdade cognitiva, no contexto da formulação de
função proposta por Wright, apresentada na seção 2.1.
4. Discutindo a função biológica da FL à luz de contribuições de
Wright e de Chomsky
Antes de verificarmos como a hipótese internalista acerca da
emergência da FL pode ser acomodada à abordagem etiológica de Wright,
vejamos uma aparente desarmonia entre as propostas desses dois autores,
e de que maneira essa desarmonia pode ser resolvida.
4.1 Pode uma abordagem etiológica lidar com exaptações?
Como mencionamos na seção 2, à época em que foi formulada, a
proposta de Wright só podia se valer da concepção darwinista de seleção
natural como meio de construir uma narrativa evolutiva. Não poderia
ser diferente, pois “a importância de considerar-se um pluralismo de
processos na biologia evolutiva começou a tornar-se clara muito depois da
publicação do artigo de Wright, em 1973” (NUNES-NETO; EL-HANI, p.
359). O termo exaptação, por exemplo, bem como um conhecimento mais
sistemático desse mecanismo na biologia evolutiva, só foi introduzido
por Gould e Vrba em 1982, quase 10 anos após a primeira publicação
do artigo de Wright.
Por causa disso, operar com um conceito etiológico de função
significa operar, implicitamente, com o entendimento de que toda
e qualquer caracterização funcional etiológica envolve adaptação.
Selecionismo estrito é, portanto, uma das críticas que abordagens
etiológicas têm sofrido (Cf. CUMMINS, 1998). A proposta etiológica de
Wright, da maneira como foi formulada, perde o seu poder explicativo
sempre que se depara com casos em que o item biológico sob investigação
é fruto de processos não seletivos, como é o caso da FL, assumida aqui,
seguindo a abordagem gerativista, ser fruto de uma exaptação.
Para resolver esse tipo de dificuldade, recorremos à proposta de
Godfrey-Smith (1998). Nas palavras de Nunes-Neto e El-Hani (2009,
p. 371), Godfrey-Smith, em sua teoria da origem moderna das funções,
reconhece a limitação da proposta de Wright em não indicar o “quão longe
temos de voltar no passado para reconstruir a etiologia de um traço atual
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1561
de um organismo”, e propõe que limitemos a busca da etiologia à história
recente do caractere cuja função desejamos explicar etiologicamente.
Seguindo o entendimento de Godfrey-Smith (1998), propomos
que, de maneira a manter a importante distinção entre função e acidente
proposto por Wright, uma explicação funcional etiológica para a FL
deve dispensar sua narrativa histórica mais antiga, e partir da sua
história evolutiva mais recente. Assim, é dispensada da nossa explicação
funcional etiológica uma explicação evolutiva sobre como sistemas
preexistentes e periféricos ao que se entende ser a FL em sentido estrito
(os componentes C-I e S-M) foram adaptados para a espécie humana.
Assim, se queremos definir apropriadamente a função da FL a partir de
uma perspectiva evolutiva, devemos olhar para essa estrutura apenas a
partir do momento em que um evento biológico – possivelmente uma
mutação – incluiu, na cognição humana, um componente combinatorial
recursivo, dando origem à FL em um sentido amplo.
Assumimos, seguindo Chomsky e colaboradores, que a inclusão
de um componente combinatorial recursivo encontrou a condição
adequada para a criação de um sistema único de pensamento, a saber
a preexistência de um componente C-I. Esses dois componentes, o
componente combinatorial recursivo e o componente C-I, certamente
constituem o mínimo necessário à existência de um sistema diferencial
de pensamento.
Vejamos, a seguir, como a proposta etiológica de Wright pode
usada de modo a endossar a tese de que a FL vincula-se mais intimamente
a um sistema do pensamento.
4.2 A FL tem uma função primária interna à mente
Qual deve ser exatamente a função da FL? Como já mencionamos,
uma resposta bastante convencional é aquela segundo a qual a sua função
é a comunicação. Essa é uma visão sustentada mesmo no âmbito da
biologia, por abordagens selecionistas que partem dessa interpretação.
Entretanto, existem razões para considerar que essa é uma visão incorreta.
Consideremos inicialmente a distinção fundamental que
Wright faz entre função e acidente. Se Chomsky está correto em sua
argumentação de que a FL evoluiu como um sistema de pensamento,
com a externalização de pensamento sendo um processo secundário
que só emergiu posteriormente ao “grande salto para a frente”[great
1562
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leap forward] (CHOMSKY, 2012b, p. 30), então temos razões para
argumentar que a comunicação é um subproduto, isto é, uma atividade/
comportamento acidental relacionado à nossa FL, mas não sua função
natural propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2011; BOLHUIS
et al., 2014, entre outros).
Seguindo o raciocínio empregado por Wright, entendemos que a
obtenção de uma habilidade adquirida posteriormente ao surgimento da
FL, a saber, a externalização de pensamentos, não deve estar envolvida
em sua etiologia funcional. Assim, comunicação não pode ser a função
natural da FL, na medida em que um evento no futuro não pode ter
eficácia causal sobre um evento que o precede.
Evidências de que a externalização de pensamento, e, portanto,
a comunicação não pode ser aquilo para o qual a FL foi inicialmente
otimizada foram apresentadas na seção 3.2. Naquela seção, mencionamos
alguns, entre diversos fatos empíricos, que mostram que um sistema
combinatorial recursivo gera, por meio de Merge, objetos sintáticos que
satisfazem, primeiramente, exigências impostas pelo sistema C-I. Ou
seja, há de fato uma relação muito mais estreita entre os componentes
da FL exigidos para compor um sistema de uso interno da linguagem,
e essa relação mais estreita se torna transparente quando observamos
casos de assimetria entre os sistemas S-M e C-I, sendo este favorecido
em detrimento daquele.
Adaptando as palavras de Nunes-Neto e El-Hani (2009, p. 364) ao
nosso contexto de discussão, não há, em relação à FL, qualquer “inversão
misteriosa de causalidade”. Evidentemente, humanos podem fazer uso
de sua FL e ainda assim não estarem se comunicando efetivamente –
qualquer que seja a definição de comunicação com a qual decidamos
operar. Se por comunicação entendemos qualquer forma de interação
com outros indivíduos, devemos considerar, como lembra Chomsky
(2012b), que uma parte muito pequena da linguagem é externalizada,
sendo o seu uso característico majoritariamente interno à mente. Se
somos mais rigorosos a ponto de operar com uma noção mais restritiva de
comunicação, em que comunicação signifique, por exemplo, “veiculação
de informação”, então deveremos considerar que, na verdade, uma parte
ainda menor do que é externalizado é o que serve à comunicação.
Partindo dessa perspectiva, sustentamos, seguindo Chomsky
ao longo de seus trabalhos, que foi a retenção evolutiva de capacidades
internas à mente – tais como “pensar, planejar, interpretar, de maneira
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1563
como nenhuma outra espécie podia até então, além de uma gama de opões
criativas disponíveis para os seres humanos no âmbito de uma teoria da
mente” (BERWICK; CHOMSKY, 2011, p. 30) – que trouxe vantagens
adaptativas, e, portanto, são esses elementos que prioritariamente devem
estar envolvidos em uma explicação funcional da nossa FL. Essa é, por
consequência, a razão pela qual continuamos a usá-la primariamente
para pensar (uso interno), isto é, seu principal uso continua sendo aquele
associado à sua etiologia.
Dada a fórmula em (18) a seguir, seja X a nossa FL e seja Y a
sua função, podemos adequadamente afirmar que Y = tornar possível a
construção de uma infinitude de expressões organizadas hierarquicamente,
de modo a viabilizar um sistema sofisticado de pensamento.
(18) a. X existe porque faz Y
b. Y é uma consequência (ou resultado) de X existir.
Portanto, sendo Y a consequência da presença prévia de X, o
entendimento mais razoável, seguindo a formulação de Wright, seria
aquele segundo o qual Y é o responsável por manter X, a FL, na nossa
espécie. Assim, se considerarmos, com Chomsky, que uma pequena
mutação ocorrida num único indivíduo dominou um grupo em um período
de tempo aparentemente muito curto, então somos levados a supor que
esse grupo modificado certamente passou a contar com alguma vantagem
seletiva. A vantagem de pensar, planejar, interpretar, de uma maneira
única, não disponível para nenhuma outra espécie até então, certamente
aumentou as chances de sobrevivência e reprodução de certos indivíduos
da espécie no passado, e isso manteve X na espécie, sendo X instanciado
hoje de diversas maneiras, mas sobretudo em sua forma primária, isto
é, aquela interna à mente.
Assim, ao abordarmos, sob uma perspectiva da biologia, a função
de uma faculdade cognitiva como é o caso da FL, devemos considerar
aquilo que é o seu uso característico, sob pena de, se não o fizer, estarmos
operando com considerações funcionais de um certo tipo anêmico.
Embora a FL possa ser útil à comunicação – e o fato é que ela não é útil
apenas à comunicação –, é a sua utilidade mais imediata, ou seja, aquela
que se supõe estar envolvida em seu surgimento, que deverá constituir
um tipo importante de explicação funcional. Não é coincidência que o
uso supostamente envolvido na emergência da FL em nossa espécie seja
aquele que, ainda hoje, constitui o seu uso característico.
1564
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Evocando as perguntas apresentadas em (3), no início deste
artigo, dessa vez entendendo X como sendo a FL, Cs como sendo seres
humanos e Y como sendo a comunicação humana, temos as seguintes
perguntas, cujas respostas devem representar, na perspectiva de Wright,
a função de X, isto é, a função da FL.
(19) a. Qual é a função da FL? (equivalente a Qual é a função de X?)
b. Por que humanos têm um FL? (equivalente a Por que Cs têm X?)
c. Por que a FL possibilita um sistema de comunicação
qualitativamente diferente daqueles encontrados em espécies
não humanas? (equilavente a: Por que Xs fazem Y?)
As respostas a todas as três questões redundam em afirmações
com um mesmo substrato: (a) a função da FL é servir a um sistema
diferenciado de pensamento (uso interno); (b) essa é a razão porque
humanos a têm; e (c) essa também é a razão porque humanos fazem
uso de um sistema de comunicação qualitativamente superior ao de
outras espécies. Ou seja, apesar de ser um dos efeitos de se ter uma FL,
a comunicação não é a sua explicação causal.
5. Considerações finais
Para concluir a nossa argumentação, trazemos a seguinte
consideração. Qualquer abordagem evolutiva de caráter gradualista,
portanto firmada no pressuposto de um longo e denso processo de seleção
natural, poderá utilizar-se da formulação de Wright apresentada em (18)
para sustentar uma explicação funcional da FL, já que, a propósito, uma
das razões para Wright recomendar fortemente a sua análise é o fato de
ela elucidar o conceito de seleção natural – apesar de não se restringir
a esse tipo particular de seleção (NUNES-NETO; EL-HANI, 2009, p.
364). Entretanto, se tal abordagem gradualista partir da visão bastante
comum de que FL e comunicação se equivalem, então essa abordagem
certamente estará paradoxalmente muito distante da proposta de Wright,
na medida em que ainda é incapaz de operar com uma distinção elementar,
a saber, a distinção entre aquilo que é função e aquilo que é acidente.
Uma visão baseada nesses termos certamente ainda não reconhece
que o uso característico da FL está longe de ser a comunicação. Além
disso, uma abordagem externalista sobre a evolução da FL é, no nosso
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1565
entendimento, incapaz de apresentar uma justificativa convincente, em
termos de evolução, para a assimetria encontrada entre os sistemas que
compõe a FL.
Agradecimentos
Por suas valiosas orientações e sugestões, agradeço imensamente a
Thiago Sampaio, Vitor Nóbrega e Fábio Mesquita, especialistas no
assunto de que trata este artigo. Todos eles me orientaram na produção
deste texto, o qual é fruto de uma das etapas (qualificação de área) que
compõem o meu percurso acadêmico na Unicamp, onde desenvolvo
minha pesquisa de doutorado, financiada pelo CNPq (processo n°
141487/2017-8). Também sou grato aos dois pareceristas anônimos da
revista pelas sugestões e críticas indispensáveis.
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