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RELIN 27:3 (2019)

ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.27 - Nº 3 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 27 n. 3 p. 1125-1570 jul./set. 2019 REvista dE Estudos da liNguagEm universidade Federal de minas gerais REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira Faculdade de letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETORA: Sueli Maria Coelho Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Revisão e Normalização Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Heliana Ribeiro de Mello Gustavo Ximenes Cunha Alda Lopes Durães Ribeiro secretaria Úrsula Francine Massula REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 REvista dE Estudos da liNguagEm V. 27 - Nº 3 - jul.-set. 2019 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Científico) [Spain] Sindex (Sientific Indexing Services) [USA] Web of Science [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany] REvista dE Estudos da liNguagEm Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Editores-associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Conselho Editorial Alejandra Vitale (UBA, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, França) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Scott Schwenter (OSU, Columbus, Ohio, Estados Unidos) Shlomo Izre'el (TAU, Tel Aviv, Israel) Stefan Gries (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Teresa Lino (NOVA, Lisboa, Portugal) Tjerk Hagemeijer (ULisboa, Lisboa, Portugal) Comissão Científica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Alessandro Panunzi (Unifi, Florença, Itália) Alina M. 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(Freitag, UFS, Brasil) Roberto de Almeida (Concordia University, Montreal/QC, Canadá) Ronice Müller de Quadros (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Ronald Beline (USP, São Paulo/ SP, Brasil) Rove Chishman (UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Seung- Hwa Lee (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Sírio Possenti (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Suzi Lima (U of T / UFRJ, Toronto/ON - Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Tommaso Raso (UFMG, Belo Horizonte/MG-Brasil) Tony Berber Sardinha (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Vander Viana (University of Stirling, Stirling/Sld, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF, Niterói/RJ, Brasil) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL, Londrina/PR, Brasil) Vera Menezes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Vilson José Leffa (UCPel, Pelotas/RS, Brasil) Sumário / Contents Relação foto-poesia em fotolivros de literatura: uma análise do Quarenta clics em Curitiba Photo-poetry relation in photobooks of literature: an analysis of the Quarenta clics em Curitiba Ana Luiza Fernandes João Queiroz ..................................................................................... 1337 Implicaturas de futuridade em usos de querer + infinitivo em PB: interpretação temporal do ato de fala a partir do aspecto e da modalidade Futurity implicatures in the uses of the verbal periphrasis querer + infinitive in Brazilian Portuguese: Temporal Interpretation of Speech Acts Stemming from Aspect and Modality Valéria Cunha dos Santos .................................................................. 1167 Os sentidos deônticos na peça teatral The Glass Ménagerie Deontic meanings in the play The Glass Ménagerie Maria Fabiola Vasconcelos Lopes ..................................................... 1195 Perfilação sistêmica da Popularização da Ciência baseada na argumentação axial Systemic functional profiles of Popularization of Science based on axial argumentation Aline Barreto Costa Braga ................................................................ 1233 Valoração e variações semânticas em estágios narrativos de Eveline, de James Joyce: um estudo de reinstanciações Appraisal and semantic variation in narrative stages of Eveline, by James Joyce: a study of re-instantiations Natalia Cristofaro .............................................................................. 1259 Remarks on the Arabic complementizer 'inna Observações sobre o complementizador 'inna em árabe Mansour Alotaibi .............................................................................. 1295 O estudo do futuro perifrástico e do futuro sintético com verbos hipotéticos no português brasileiro The study of the periphrastic future and the synthetic future tenses with hypothetical verbs in Brazilian Portuguese Aline Peixoto Gravina Eduardo Henrique Brizola ................................................................ 1313 Rastros do discurso: poder e interdição na decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal Remarks of the speech: power and interdiction in the decision of a minister of the Supreme Federal Court Rafael Venancio ................................................................................ 1345 Análise de verbalizações de fórmulas matemáticas por professores com experiência no ensino de pessoas com deficiência visual Analysis of mathematical formulas verbalizations by teachers with experience in teaching visually impaired people Mirella Alves de Lima Daniela Rodrigues Patricia Vasconcelos Almeida Paula Christina Figueira Cardoso André Pimenta Freire ........................................................................ 1371 El punto y coma y los dos puntos: estudio de las ediciones de la Ortografía de La Real Academía Española de 1741, 1844 y 2010 The semicolon and the colon: historiographical study of the editions of the Orthography of the Royal Spanish Academy of 1741, 1844 and 2010 Susana Ridao Rodrigo ....................................................................... 1399 O papel dos marcadores prosódicos na fluência de leitura The role of prosodic markers in reading fluency Alcione de Jesus Santos Vera Pacheco Marian dos Santos Oliveira ............................................................... 1417 Ocorrências de discurso reportado: relações entre produto e processo em contos etiológicos inventados por uma díade recém-alfabetizada Reported speech occurrences: relations between product and process in etiological tales invented by a newly literate dyad Lidiane Evangelista Lira Eduardo Calil .................................................................................... 1459 Um estudo sobre o licenciamento e a interpretação de ‘pouco’ em português do Brasil (PB) A survey on the licensing and the readings of “pouco” in Brazilian Portuguese (BP) Ana Paula Quadros Gomes Juliana dos Santos Delduque ............................................................ 1489 Uma perspectiva etiológica sobre a função natural da Faculdade da Linguagem An etiological perspective on the natural function of the Faculty of Language Francisco Iokleyton de Araujo Matos ............................................... 1531 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 Relação foto-poesia em fotolivros de literatura: uma análise do Quarenta clics em Curitiba Photo-poetry relation in photobooks of literature: an analysis of the Quarenta clics em Curitiba Ana Luiza Fernandes Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil analuizadagama@gmail.com João Queiroz Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil queirozj@gmail.com Resumo: Como descrever as relações entre foto e poesia em casos de intermidialidade observados em fotolivros de literatura? No fotolivro de literatura, o signo verbal parece estar vinculado à imagem fotográfica em uma interação bidirecional, criando um sistema acoplado que pode ser visto como um novo sistema. Influências mutuamente modulatórias e contínuas vinculam texto e fotografia. Mas é preciso definir a natureza de tais influências. De que tipo de interação estamos tratando? Neste artigo, propomos um modelo para descrever a relação “foto-poesia” derivado da teoria do signo de C. S. Peirce e apresentamos alguns resultados preliminares de análise do Quarenta Clics em Curitiba ([1976] 1990), um fotolivro de Paulo Leminski e Jack Pires. Em termos sumários, caracterizamos a relação foto-poesia no fotolivro de Leminski e Pires no interior da teoria de Peirce. A relação é decomposta entre os papéis funcionais ocupados pelo signo (poema) e pelo objeto (fotografia). A irredutibilidade triádica que caracteriza a semiose, segundo Peirce, é a principal propriedade aplicada à relação foto-poesia no fotolivro Quarenta Clics em Curitiba. Palavras-chave: fotolivro de literatura; Quarenta Clics em Curitiba; intermidialidade; C. S. Peirce. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1137-1166 1138 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 Abstract: How to describe “photo-poetry” relationship in cases of intermediality observed in photobooks of literature? In photobooks of literature, the verbal sign seems to be linked to the photographic image in a bidirectional interaction, creating a coupled system that can be seen as a new system. Mutually modulatory and continuous influences link verbal text and photography. But the nature of such influences should be defined. What kind of interaction are we dealing with? In this article, we propose a model to describe the relationship “photo-poetry” derived from C. S. Peirce’s theory of the sign and we present some preliminary results of analysis of the Quarenta Clics em Curitiba ([1976] 1990), by Paulo Leminski and Jack Pires. Our main focus is not the work itself, but the methodology used to describe the relationship between the coupled systems. Summarizing, we characterize photo-poetry relationship in the book of Leminski and Pires within Peirce’s theory. This relation is decomposed between the functional roles occupied by sign (poem) and object (photograph). The triadic irreducibility that characterizes semiosis, according to Peirce, is the main property applied to the relation photo-poetry in the photobook Quarenta Clics em Curitiba. Keywords: photobooks of literature, Quarenta Clics em Curitiba; intermediality; C. S. Peirce. Recebido em 09 de agosto de 2018 Aceito em 21 de novembro de 2018 1 Quarenta Clics em Curitiba Quarenta fotos em preto e branco de Jack Pires são combinadas a quarenta poemas de Paulo Leminski, dispostas em pranchas1 soltas de dimensões idênticas. Essa é a composição de Quarenta Clics em Curitiba,2 considerado um dos mais surpreendentes fotolivros da história da literatura brasileira, um experimento intermidiático e colaborativo sem precedentes. Mais do que uma compilação de imagens fotográficas e poemas breves, sua organização é caracterizada pela combinação de diversos sistemas semióticos. O texto verbal, o design gráfico, a tipografia, a distribuição sintática-visual de todos os componentes impressos, tudo 1 O termo “prancha” aparece no texto de apresentação da obra, Quarenta Clics em Curitiba, escrito pelo editor Garcez Mello. 2 Este fotolivro teve duas edições. A primeira, de 1976, teve uma tiragem de trezentos exemplares. A segunda, publicada em 1990, teve uma tiragem de três mil exemplares, segundo o editor Garcez Mello. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1139 é decisivo na concepção do fotolivro. Sua estrutura sem vinco e sem numeração impede o leitor de qualquer tentativa de ordenação da leitura, ou de sequências capazes de sugerir qualquer forma linear de narrativa. Suas pranchas, tomadas conjuntamente, iconizam o deslocamento descentralizado pelas ruas da capital paranaense. O fotolivro é um ícone da procrastinação por Curitiba, ou o que pode ser interpretado como um deslocamento por acontecimentos triviais da cidade. Mas nossa principal questão aqui é como fotografia e poesia estão relacionadas no fotolivro. O que significa afirmar que quarenta fotos em preto e branco de Pires são combinadas a quarenta poemas de Leminski? FIGURA 1 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics em Curitiba (LEMINSKI; PIRES, [1976] 1990) Haicai: Ruas cheias de gente / Seis horas / Comida quente / Caçarolas. Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990 Ruas cheias de gente. Seis horas. Comida quente. Caçarolas. Quarenta Clics é um fenômeno semiótico em que ao menos dois sistemas de signos, poesia verbal e fotografia, são interpretados 1140 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 como estando combinados, um fenômeno que poderíamos chamar de “acoplamento”. Isto significa que poesia verbal e fotografia são interpretados, prancha a prancha, como estando em uma relação de “complementariedade”, ao ponto de não poderem ser abordados como independentes. É claro que os termos “combinação”, “acoplamento”, “complementariedade”, devem estar comprometidos com teorias e modelos, caso contrário são apenas metáforas epistêmicas mais ou menos interessantes. Nós submetemos as noções de combinação e acoplamento à regulação de um modelo teórico. Em nossa abordagem, o modelo triádico peirceano3 de semiose (ação do signo) fornece uma estrutura para descrição dos sistemas combinados no fotolivro. A propriedade de “acoplamento” entre foto e poesia resulta da relação irredutivelmente triádica observada entre foto, poesia e interpretante, ou o efeito em um intérprete. A relação é irredutivelmente triádica, porque não pode ser decomposta em estruturas mais simples, e é interpretante-dependente, porque não pode ser concebida sem um intérprete. Por décadas, tentativas em diferentes áreas (Literatura Comparada, Estudos Interartes, Estudos de Intermidialidade) foram feitas para definir e classificar o fenômeno de combinação entre sistemas e mídias. Vamos rever rapidamente algumas delas. 2 Intermidialidade em Quarenta Clics Intermidialidade é, segundo Clüver, “um termo relativamente recente para um fenômeno que pode ser encontrado em todas as culturas e épocas, tanto na vida cotidiana como em todas as atividades culturais que chamamos de ‘arte’. Como conceito, ‘intermidialidade’ implica todos os tipos de interrelação e interação entre mídias” (CLÜVER, 2007, p. 9). Sumariamente, intermidialidade é um termo que define fenômenos em que duas ou mais mídias/artes se relacionam, um termo “capaz de designar qualquer fenômeno envolvendo mais de uma mídia” (WOLF, 1999, p. 40-41), portanto, toda relação entre mídias/artes (MOSER, 2006). É um fenômeno ubíquo, com grande variação morfológica, e sobre o qual pesquisadores encontram aspectos ou atributos comuns. A obra de Peirce é citada como CP (seguido pelo número do volume e parágrafo), The Collected Papers of Charles S. Peirce; EP (seguido pelo número do volume e página), The Essential Peirce; W (seguido pelo número do volume e página), Writings of Charles S. Peirce; MS (seguido pelo número do manuscrito), Annotated Catalogue of the Papers Of Charles S. Peirce. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1141 Independente das várias tradições de pesquisa apresentarem diferenças importantes quando submetidas a um olhar mais atento, parece existir um (certo) consenso, entre os estudiosos, com relação à definição de intermidialidade em um sentido amplo. Em termos gerais, e segundo tal consenso, intermidialidade é, em primeiro lugar, um termo flexível e genérico. (RAJEWSKY, 2012, p. 52). De acordo com Müller (2012), baseado na compilação elaborada por Helbig4 (1998), os estudos de intermidialidade incluem ao menos três formas possíveis de relação: relações entre mídias em geral (denominadas relações intermidiáticas), transposições de uma mídia para outra (transposições intermidiáticas ou intersemióticas) e união (ou fusão) de mídias. Rajewsky (2005, p.51), baseada nesta classificação, propõe outra lista de categorias: combinação de mídias, referências intermidiáticas e transposição midiática (RAJEWSKY, 2012, p. 48-49) (Tabela 1). TABELA 1 – Categorias intermidiáticas e características distintivas (RAJEWSKY, 2012, p. 48-49) Categorias Combinação de mídias Características Determinada pela “constelação midiática”; resultado ou próprio processo de combinação de ao menos duas mídias convencionalmente distintas ou formas midiáticas de articulação. O produto midiático usa os meios específicos, tanto para se referir a um trabalho individual produzido em outra mídia, quanto para se referir a uma sub-mídia específica. Ao invés de combinar diferentes mídias, o produto Referências midiático tematiza, evoca ou imita elementos ou estruturas de outra mídia, intermidiáticas convencionalmente distinta através do uso de seus próprios meios (mídiaespecíficos). Nesta categoria há somente a possibilidade de imitação e evocação. Ttransposição midiátivca 4 Processo “genético” de transformação de um texto composto em uma mídia em outra mídia, de acordo com as possibilidades materiais e as convenções dessa nova mídia. Obra organizada por Helbig: Intermidialidade: teoria e prática de uma área de estudos interdisciplinares. Título original em alemão, Intermedialität: Theorie und Praxis eines interdisziplinären Forschungsgebiets. 1142 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 Segundo tais definições (Tabela 1), o fotolivro que examinamos, de Leminski e Pires, pode ser classificado como um caso de (i) combinação de mídias, porque é resultado da combinação de ao menos duas mídias convencionalmente distintas, poesia verbal e fotografia. Ele não pode ser classificado como um caso de (ii) transposição midiática, já que o processo não é de “transformação” de uma mídia em outra, nem de (iii) referência intermidiática, porque o fotolivro não evoca ou imita elementos de outra mídia. Ele submete-se somente à categoria combinação de mídias que, nas análises de Clüver (CLÜVER, 2006, p. 19-20), recebe três subtipos classificatórios (Tabela 2). TABELA 2 – Combinação de Mídias e subtipos (CLÜVER, 2006, p. 19-20) Subtipos de Combinação de Mídias Características Multimídias Sistemas separáveis e separadamente coerentes compostos em diferentes mídias. Mixmídias Signos complexos em mídias diferentes que não alcançariam coerência ou auto-suficiência fora daquele contexto. Intermídias / Intersemióticos Dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de forma tal que os aspectos visuais e/ou verbais, musicais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e indissociáveis. Quarenta Clics, de acordo com a categorização em subtipos proposta por Clüver, satisfaz duas das três classes de configurações. Porque há ao menos duas mídias relacionadas, o fotolivro pode ser caracterizado como um caso de (i) multimídia, já que poesia verbal e fotografia são “coerentes”5 quando interpretados isoladamente, e (ii) mixmídia, porque as mídias perdem “coerência” quando interpretadas separadamente. Ele não pode ser considerado um caso de (iii) intermídia, uma vez que foto e poesia verbal são mídias distintas que podem ser abordadas separadamente. 5 O leitor deve atentar para um problema metodológico que não vamos enfrentar diretamente neste trabalho - definição de “coerência” da interpretação. Para acessar uma discussão mais extensa sobre este problema, ver Clüver (2006, 2011). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1143 Essas categorias permitem descrever e classificar a variada morfologia observada, estabelecendo comparações entre fenômenos distintos e correlatos. Mas elas não respondem a uma questão fundamental: como explicar a relação entre sistemas reconhecidos como distintos? A proliferação de termos, modelos e métodos é notável. Para Rajewsky, o “debate sobre intermidialidade caracteriza-se pelo uso de uma grande variedade de abordagens, abarcando uma extensa rede de temas e perspectivas analíticas” (RAJEWSKY, 2012, p. 51). Vamos tratar do problema da relação entre foto e poesia, em fotolivros de literatura, no interior da teoria do signo de Peirce, de acordo com a principal propriedade que caracteriza seu modelo da semiose – a irredutibilidade triádica da relação signo-objeto-interpretante. Há, por trás desta ideia, uma importante suposição – termos como “interação”, “inter-relação”, “combinação”, “fusão”, “acoplamento”, entre outros, devem estar submetidos à regulação de um modelo, ou de uma teoria. É quase certo que a “extensa rede de temas e perspectivas analíticas”, a que se refere Rajewsky (acima), não tenha se dedicado a isso. Para Elleström (2010, p. 13), as noções de intermidialidade e multimodalidade são raramente relacionadas umas às outras e “raramente existem referências cruzadas entre os dois campos de pesquisa de estudos intermidiáticos e multimodais. Além disso, está longe de ser claro como os termos intermedial, multimodal, intermodal e multimedial estão relacionados”. Só uma abordagem metateórica é capaz disso. Mas nosso propósito aqui é mais modesto. Usamos algumas noções fundamentais da semiótica de Peirce para definir com certa precisão as noções de “combinação”, “acoplamento”, e derivados. 3 Relação poesia-fotografia: modelo triádico de Peirce Peirce definiu a semiótica como uma espécie de lógica, uma ciência da natureza essencial e fundamental de todas as variedades concebíveis de processos semióticos (semiosis) (FARIAS; QUEIROZ, 2017; ATKIN, 2016, 2006; QUEIROZ, 2004). A semiótica fornece (i) um modelo geral da semiose (FISCH, 1986, p. 321) e (ii) uma lista de variedades fundamentais de signos baseada em uma teoria de categorias lógicas (FREADMAN, 2001). Para Peirce, a semiose (“ação do signo”) é um fenômeno irredutivelmente triádico (relação indecomponível de três termos) que relaciona um signo (S) a seu objeto (O), para um interpretante (I), ou o efeito em um intérprete – o signo “é determinado pelo objeto 1144 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 relativamente ao interpretante, e determina o interpretante em referência ao objeto, de tal modo a produzir o interpretante a ser determinado pelo objeto através da mediação do signo” (MS 318, p. 81; CP 5.484, EP2, p. 171). Com frequência, Peirce usa as noções de “determinação” e “especialização” para definir a relação entre os termos da tríade, S-O-I. Segundo Ransdell (1983, p. 23), “para Peirce, esta palavra [determinação] carrega, de uma só vez, um sentido causal e um lógico, correspondendo a uma diferença complementar entre observar a ‘representação’ formalmente, como uma relação, e observá-la dinamicamente, como um ato ou processo de tal ato”. Sobre a propriedade de irredutibilidade triádica: “por semiose, eu quero dizer [...] uma ação, ou influência, que é, ou envolve, a cooperação de três sujeitos, tais como um signo, seu objeto, e seu interpretante, esta influência tri-relativa não podendo, de modo algum, ser resolvida em termos de ações entre pares” (CP 5.484).6 Na figura abaixo (Figura 2), vemos o esquema gráfico simplificado da relação irredutível S-O-I, signo-objeto-interpretante: FIGURA 2 – Esquema gráfico da relação irredutivelmente triádica signo-objeto-interpretante (S-O-I). S O 6 I A demonstração de que S-O-I constitui uma relação indecomponível foi primeiro conduzida logicamente (cf. HOUSER, 1997, p.16). A razão da precedência de um tratamento formal de relações sobre um tratamento empírico, e semiótico, reside no fato de que só formalmente pode-se conduzir uma análise das propriedades de completude e suficiência das categorias (PARKER, 1998, p.43). Apenas ulteriormente a propriedade de irredutibilidade lógica pode ser verificada em um domínio dos signos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1145 Notem que trata-se de uma tríade, não de um triângulo. Esta diferença é relevante uma vez que na tríade os três termos estão irredutivelmente relacionados, enquanto num triângulo dois vértices estão ligados independentemente do terceiro (MERRELL, 1997). Um signo também é definido por Peirce como um Meio para a comunicação de uma Forma. Como um meio, o signo está essencialmente em uma relação triádica, com seu objeto que o determina, e com seu interpretante que ele determina. […] Aquilo que é comunicado do objeto através do signo para o interpretante é uma Forma; significa dizer, não é nada como um existente, mas é um poder, o fato de que alguma coisa aconteceria sob certas condições (EP2, p. 544, n. 22). “Forma” tem a natureza de um “predicado” (EP 2.544), de um “hábito”, ou de uma “proposição condicional” afirmando que certas coisas aconteceriam, ou deveriam acontecer, sob certas circunstâncias (EP 2.388; ATÃ; QUEIROZ, 2016). Há, nessa tese, uma importante pressuposição metafísica, embora ela seja formalmente independente de qualquer tese metafísica: realidade das tendências e disposições. A Forma comunicada do objeto para o intérprete através do signo não é uma “coisa”, mas uma “regra de ação” (CP 5.397; CP 2.643), uma “disposição” (CP 5.495; CP 2.170), ou um “potencial real” (EP 2.388). Outra consequência da noção de semiose (ação do signo) como um “hábito” comunicado do objeto para o interpretante através da mediação do signo é que ela nos permite conceber “significado”, “significação”, em uma moldura processista, ou processualista, não-substancialista (QUEIROZ; EL-HANI, 2006). Outra importante propriedade é que S, O e I não são definidos por quaisquer atributos intrínsecos. Suas ontologias dependem dos papéis funcionais que ocupam na tríade. Se a ação do signo é um processo triádico-dependente, no sentido de conectar irredutivelmente S, O, e I, o papel funcional de S só pode ser identificado numa relação de mediação que estabelece entre O e I. E não podemos inferir os papéis de S, O e I de quaisquer relações diádicas (S-I, S-O, ou I-O). Nosso argumento aqui pode ser assim sumarizado: qualquer descrição ou explicação sobre as relações entre poesia verbal e fotografia, no fotolivro, deve basear-se neste modelo (S-O-I), e nas classes fundamentais de signos (ícone, índice, símbolo), e suas subdivisões. 1146 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 O modelo e as classes são usados para descrever a natureza da relação irredutível foto-poesia e seus efeitos (interpretantes). Para analisar o fotolivro, “fixamos” algumas relações e estabelecemos certas correspondências entre seus correlatos, que são os termos relacionais. O poema (P) de Paulo Leminski é o signo (S na tríade S-O-I) da fotografia (F) de Jack Pires, que é seu objeto (O na tríade S-O-I). Abaixo, o modelo gráfico das relações e o esquema S-O-I através das substituições funcionais (Figuras 3 e 4). FIGURA 3 – Esquema S-O-I no qual S (signo) equivale ao poema, O (objeto) à fotografia e I ao interpretante, ou efeito interpretativo poema S O foto I efeito Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1147 FIGURA 4 – Esquema das substituições funcionais: O poema (S) “está para” a foto (O na tríade S-O-I) de modo a produzir um efeito no intérprete, ou interpretante (I) Mais detalhadamente, a relação S-O-I, aplicada aos componentes observados (poema-foto-interpretante), é analiticamente arbitrária. O “hábito”, ou regra de ação, comunicado da foto, que é o objeto na tríade S-O-I, para o intérprete, através do poema, que é o signo na tríade S-O-I, assegura a irredutibilidade triádica da relação. A principal questão, neste ponto da análise, é o que (e como) é comunicado do objeto, através do poema, para o intérprete. Para explicar a variedade morfológica de relações S-O da relação S-O-I, Peirce sugeriu uma divisão bastante conhecida – ícones (signos de analogia), índices (signos de reação) e símbolos (signos convencionais). Eles, aproximadamente, correspondem a relações de similaridade, de contigüidade física e de lei que podem ser estabelecidas entre um signo e seu objeto. Como foto e poema estão irredutivelmente relacionados através dessa divisão? 4 Ícones (e hipoícones), índices e símbolos Ícones são signos que estão para seus objetos através de alguma similaridade (CP 2.276), sem consideração por qualquer conexão espaçotemporal que possam ter com objetos existentes (CP 2.299; RANSDELL, 1148 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1986; ATÃ; QUEIROZ, 2013). Na definição de Peirce, “um ícone é um signo que se refere ao objeto que denota meramente por virtude de seus próprios caracteres, que ele possui, seu objeto realmente exista ou não” (CP 2.247). Em termos esquemáticos, se S é signo de O em virtude de uma qualidade que S e O compartilham (CP 2.248), então S é ícone de O. Se S é ícone de O, ele é uma qualidade que é um signo de O (CP 2.276). S e O constituem, nesse caso, uma identidade em algum aspecto. Muitos exemplos são mencionados por Peirce – imagens, diagramas e grafos, metáforas, analogias (ver CP 2.279, CP 4.513, EP 2, p. 306). A subdivisão dos ícones7 particularmente nos interessa. Em 1903, Peirce fez uma importante distinção entre ícones puros, e signos icônicos, ou hipoícones, e introduziu uma divisão em imagens, diagramas e metáforas (JAPPY, 2014; FARIAS; QUEIROZ, 2006). No primeiro caso, são relacionadas “qualidades superficiais”, de modo que representam qualidades simples, por exemplo, certa propriedade de reflectância visual dos materiais observados, ou uma certa tensão de superfície observada em certos materiais. Uma qualidade superficial ou simples pode ser definida “como algo que pode ser observado como uma unidade” (SAVAN, 1987-1988, p. 11), sem partes constituintes. Uma imagem é um ícone que está diretamente relacionado ao material de que é feito seu objeto. Se aquilo que é comunicado do objeto para o interpretante é uma propriedade superficial compartilhada entre signo e objeto, estamos observando uma imagem. As imagens são qualidades indecomponíveis compartilhadas por S e O, para I. O segundo caso está relacionado a operações com “diagramas”. Diagramas são a principal forma de representar relações (JOHANSEN, 1993). O diagrama representa, através das relações entre suas partes, as relações que constituem as partes relacionadas do objeto que o signo representa. O objeto do diagrama, portanto, é sempre uma relação. As partes relacionadas do diagrama representam as relações que constituem o objeto representado. Diferente da imagem que relaciona qualidades, o diagrama é um arranjo de partes relacionadas, e seu objeto só pode ser uma relação análoga. Em resumo, um diagrama comunica uma relação, ou uma estrutura relacional. Se as relações que observamos no signo são análogas àquelas observadas nos objetos, interpretamos um diagrama. 7 Para uma caracterização detalhada do ícone, ver Ransdell (1997). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1149 No terceiro caso, os signos representam relações entre efeitos interpretativos. São análogos os efeitos produzidos por dois ou mais signos ou representações relacionados (CP 2.277). Diferente dos diagramas e das imagens, nas metáforas as relações de analogia são exercidas entre os efeitos interpretativos. As metáforas comunicam uma comparação indireta, que são efeitos interpretativos análogos. Diferente do diagrama, que é uma abstração das relações entre as partes do objeto representado, em termos estruturais, uma metáfora é uma comparação com outra coisa, que deve ser seu efeito interpretativo. Se um signo é um diagrama porque seu objeto é análogo ao seu arranjo estrutural (relações parte-parte, parte-todo), um signo é uma metáfora porque seu objeto é análogo aos efeitos interpretativos produzidos por ele. Além das relações icônicas, o signo (S) pode relacionar-se com seu objeto (O) em razão de “conexão física direta”, que é um índice (CP 1.372). Nesse caso, S é realmente determinado por O de tal modo que ambos devem existir como eventos. A noção de co-variação espaçotemporal é a propriedade mais mencionada dos processos indexicais. Finalmente, S pode ser um símbolo de O, através de normas, regras, ou convenções. O símbolo é um signo que está relacionado ao seu objeto em virtude de uma lei. Símbolos são capazes de representar “coisas” que não precisam existir de fato, ou que existem mas que não estão perceptualmente manifestas, que jamais existiram, ou, ainda, entidades que não podem sequer ser intuitivamente concebidas (“estranhos” objetos das lógicas não-clássicas, criaturas imaginárias, etc). Um símbolo é “um signo que é constituído meramente, ou principalmente, pelo fato de que é usado ou entendido como tal, seja natural ou convencional o hábito, e sem observar os motivos que originalmente governaram sua seleção” (CP 2.307). 5 Irredutibilidade triádica das relações foto-poesia Em nosso argumento, tais classes podem ser consideradas necessárias e suficientes para descrever as relações entre foto e poesia, no fotolivro de literatura. Mas é importante notar que há outras relações além daquela representada na tríade que chamamos de “principal” (poema-foto-interpretante, P-F-I). São relações que possuem objetos que não estão nas pranchas do Quarenta Clics. Destacamos duas dessas relações. O poema e a foto são signos de objetos “externos”, ou signos 1150 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 que possuem objetos que não estão na prancha – OP (objeto externo do poema) e OF (objeto externo da foto). O poema, que é signo na tríade principal P-F-I, é signo de outra tríade, P-OP-I. Ele comporta-se, desse modo, como signo em duas relações triádicas distintas – na primeira em que está relacionado com a fotografia que aparece na prancha do fotolivro (P-F-I); e na segunda, em que é também um signo, e possui um objeto que encontra-se fora da prancha, seu objeto externo (P-OP-I). Da mesma forma, a fotografia, que comporta-se como objeto na tríade principal P-F-I, em outra relação, é signo desta tríade, F-OF-I. Abaixo, na Figura 5, representamos estas três relações e destacamos os objetos externos do poema e da foto. As três relações triádicas representadas são: a central (P-F-I), que chamamos de principal, relaciona o poema (P), a foto (F) e o intérprete (I). A tríade inferior (F-OF-I), relaciona a foto (F), que é o objeto da tríade principal, com outro objeto (OF) “externo” à prancha (canto inferior esquerdo na figura). A tríade superior (P-OP-I) relaciona o poema (P), que é o signo da tríade principal, com outro objeto (OP) “externo” à prancha (canto superior esquerdo na figura). A foto comporta-se como objeto e signo de relações distintas; e o poema comporta-se como signo de duas relações distintas. FIGURA 5 – Três relações triádicas Há, além da relação entre os objetos externos de poema e foto (OP e OF), outras duas importantes relações: (i) a relação entre poema e fotografia (signo e objeto da tríade principal, P e F) (Figura 6), (ii) e a Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1151 relação entre o poema e o objeto da foto (signo da tríade principal com o objeto externo da tríade inferior, P e OF) (Figura 7). FIGURA 6 – Relação P-F: relação do poema (signo da tríade P-F-I), com a foto (objeto da tríade P-F-I). Na relação descrita acima (Figura 6), destacam-se dois componentes, poema e foto, e a relação entre o poema (signo P) e a foto (objeto F). Abaixo (Figura 7), destaca-se a relação entre o poema, impresso na prancha, e o objeto da fotografia (OF), fora dela. Neste caso, observa-se um componente destacado da prancha, poema (P), e outro componente externo à prancha, que é a própria cena real fotografada. 1152 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 FIGURA 7 – Relação P-OF: relação do poema (signo da tríade P-F-I) com o objeto “externo” da fotografia (objeto da tríade F-OF-I). Se o poema é signo da foto porque possui propriedades estruturais análogas àquelas observadas na foto, então o poema (S) é um diagrama da foto (O). Neste caso, o poema comunica para o intérprete propriedades estruturais observadas na foto. Tais propriedades, compartilhadas entre foto (O) e poema (S), podem incluir diversas formas de paralelismos formais (e.g. padrões rítmicos, rimas, paralelismos sintáticos visuais e verbais). No fotolivro, o objeto “externo” do poema (signo da tríade P-F-I) e o objeto “externo” da foto (objeto da tríade P-F-I) podem ser o “mesmo” objeto. Dizemos que os objetos externos OP e OF são “coincidentes”, como aparece em diversas pranchas analisadas do Quarenta Clics (Figuras 8, 9, 10 e 11). Nestes casos, os objetos externos (OP e OF) coincidem, sem “compartilhamento” das propriedades qualitativas entre poema e foto. Ambos, poema (signo da tríade principal) e foto (objeto Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1153 da tríade principal), “estão para” (representam, designam, indicam) o “mesmo” objeto externo, ou classe de objetos externos (sombras, frutas, tempo, etc) (Figuras 8 e 11). Nesses casos, o poema comporta-se como índice da foto, para o intérprete. FIGURA 8 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: isso aqui / acaso / é lugar / para jogar sombras? Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990 isso aqui acaso é lugar para jogar sombras? Na prancha acima (Figura 8), o poema (signo da foto na tríade principal) “isso aqui / acaso / é lugar / para jogar sombras?” possui um objeto externo (OP), fora da prancha, pertencente a outra relação triádica (P-OP-I). É um truísmo afirmar que esse objeto, externo, pode ser descrito como um movimento de sombras. A fotografia, que é o objeto do signo (poema) na tríade principal, também possui um objeto externo (OF), fora da prancha, que inclui movimento de sombras, e que pode ser comparado ao objeto externo do poema (OP). A relação entre OP e OF baseia-se numa coincidência de atributos referenciais. 1154 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 Também há, nessa prancha (Figura 8), uma relação de natureza indexical, entre OP e F. O poema pode ser interpretado como uma questão (acaso / é lugar / para jogar sombras?) sobre as propriedades estruturais da fotografia. O objeto do poema são as qualidades observadas na foto. O objeto do último verso do poema são as propriedades da foto. Um “jogo de sombras” real, capturado num instante fotográfico, comunica uma “regularidade” para o intérprete através do poema, seu signo na prancha. Um “jogo de sombras” existente é indexicalmente representado por F, que transmite este “hábito”, através do poema, para o intérprete. Sobre a relação entre poema (signo) e foto (objeto), há uma relação de similaridade estrutural (P-F), uma vez que ambos, P (signo) e F (objeto), estão ritmicamente organizados de acordo com um sutil balanço de correspondências estruturais, sintáticas, no caso da foto, de relações entre luz e sombras. O poema possui um paralelismo8 rítmico-sonoro observado na rima “/é lugar/ /para jogar/” na terceira e quarta linhas. Há presença de outros paralelismos – fracos ou aproximados – em “/isso/ / sombras/” e “/aqui/ /acaso/”. O poema (signo) é um ícone relacional, um diagrama, da foto (objeto) através de correspondências rítmicas e sonoras. 8 Não é propósito deste trabalho detalhar cada figura de linguagem utilizada por Leminski em seus haicais. Contudo, notamos a constante presença de paralelismos (semântico e sintático), além de aliterações, assonâncias e paranomásias. Paralelismo é o nome dado à organização de ideias e expressões de estrutura idêntica. Há dois tipos: sintático, relacionado aos termos de mesma estrutura sintática dentro de uma frase; e o semântico, relacionado às ideias semelhantes dentro de uma frase. A aliteração consiste na repetição de consoantes ou de sílabas – especialmente as sílabas tônicas – em duas (ou mais) palavras, dentro do mesmo verso, estrofe, ou frase. A assonância é a repetição de sons vocálicos, em sílabas tônicas de palavras distintas ou na mesma frase para obter certos efeitos de estilo. Frequentemente, a assonância tem um efeito de rima quando é usada para fazer corresponder vogais em versos finais. A paronomásia consiste na aproximação de palavras semelhantes pelos sons, mas de sentidos diferentes, ou seja, é o emprego de palavras parônimas. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1155 FIGURA 9 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: Amando, / aumenta / até duas mil vezes / o tamanho. Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990 amando aumenta até duas mil vezes o tamanho. Na prancha acima (Figura 9), o poema “Amando, / aumenta / até duas mil vezes / o tamanho”, signo da tríade principal P-F-I, e signo da outra tríade P-OP-I, possui um objeto externo (OP), algo que poderia ser designado como “amor que aumenta o tamanho”. A fotografia, objeto da tríade principal P-F-I, e signo da outra tríade F-OF-I, possui um objeto externo (OF), um casal abraçado. O poema é um índice da foto. O objeto externo da fotografia, destacado, é um casal de grandes dimensões, abraçado, o objeto indexical do “amor que aumenta as pessoas de tamanho” do poema. OP e OF coincidem em termos referenciais. Sobre a relação P-F, trata-se de uma relação metafórica. A foto (objeto) comunica para o intérprete um efeito interpretativo do signo (poema). Os efeitos da foto são análogos aos efeitos produzidos pelo poema. 1156 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 FIGURA 10 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: 1• dia de aula / na sala de aula / eu e a sala Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990 1º dia de aula na sala de aula eu e a sala Na prancha acima (Figura 10), o objeto externo do poema (OP) é a experiência do primeiro dia de aula (“1• dia de aula / na sala de aula / eu e a sala”). O objeto externo da fotografia (OF) é um menino que investiga coisas próximas às latas de lixo, um acontecimento trivial em grandes centros urbanos. O poema é uma metáfora da fotografia, e a rua é interpretada como um análogo do “primeiro dia de aula”. Resulta que OP e OF tendem a ser observados como similares. A sala de aula do poema “transforma-se” em rua, quando o leitor interpreta a foto, e o 1• dia de aula, em iniciação da vida na rua. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1157 Figura 11 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: Frutas que só ficam / Maduras depois de colhidas / Minhas velhas conhecidas Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990 Frutas que só ficam Maduras depois de colhidas Minhas velhas conhecidas Na prancha da Figura 11 (acima), o objeto externo do poema (OP) são frutas, ou seu amadurecimento (“Frutas que só ficam / Maduras depois de colhidas / Minhas velhas conhecidas”). O objeto externo da foto (OF) é uma mulher e um homem que escolhem frutas no chão. É predominantemente indexical portanto a relação entre P e F, e uma coincidência entre OP e OF. A foto, signo da tríade F-OF-I, é um índice de OF, e objeto indexical do poema. P (signo) é índice de F (objeto). OF está indexicalmente representada no segundo verso do haicai (“maduras depois de colhidas”). O que observamos como uma analogia entre poema (S) e foto (O) pode ser uma analogia entre os objetos do poema (OP) e os objetos da foto (OF). Em termos analíticos, há uma superposição entre diversos “níveis de relação”. Esse parece ser um caso em que o poema é interpretado 1158 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 como um índice da fotografia. Isto acontece todas as vezes em que ele “indica” ou “aponta” diretamente para a foto, através de seu objeto, ou quando poema e foto são interpretados como estando “correlacionados” espaço-temporalmente. FIGURA 12 – Reprodução de uma das pranchas de Quarenta Clics (LEMINSKI, PIRES, [1976] 1990) Haicai: Amor, então / também, acaba? / Não, que eu saiba. / O que eu sei / É que se transforma / Numa matéria-prima / Que a vida se encarrega / De transformar em raiva. / Ou em rima. Jack Pires Paulo Leminski 1ª fornada – 1976 2ª formada – 1990. Amor, então, também, acaba? Não, que eu saiba. O que eu sei É que se transforma Numa matéria-prima Que a vida se encarrega De transformar em raiva. Ou em rima. Na prancha acima (Figura 12), o objeto externo da fotografia (OF) são casais de duas espécies, no primeiro e segundo planos, humanos e psitacídeos. Sobre a relação P-F, o poema atua como uma metáfora da Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1159 foto. Há uma “rima visual” que pode ser considerada uma metáfora nesta prancha, já que trata-se de uma correspondência entre os casais (humanos e psitacídeos) e duas “rimas”, a primeira presente na estrutura do próprio haicai (correspondências sonoras no haicai), e a segunda na palavra “rima” do haicai (“de transformar em rima”). OP e OF são interpretados como análogos, uma vez que o “amor”, em OP, está representado metaforicamente em OF. A relação P-F é diagramática. A rima visual (manchas gráficas dos dois casais na foto) são ícones relacionais das rimas do haicai: “saiba/raiva” e “prima/rima”. São relações de similaridade estrutural, entre P e F, ou, mais detalhadamente, entre as partes que constituem P (correspondências sonoras no haicai: “saiba/raiva” e “prima/ rima”) e as partes de F (correspondências visuais na foto). 6 Sistemas irredutivelmente acoplados? O modelo triádico e algumas implicações Como estão irredutivelmente relacionados foto e poesia no fotolivro analisado? Como descrever a indecomponível relação entre foto e signo verbal em fotolivros de literatura? O próprio Leminski parece, teórica e metodologicamente, atento ao problema: Como pode haver tanta afinidade entre uma velha forma da poesia japonesa e a mais jovem das artes? Os parentescos íntimos entre o haicai e a fotografia me intrigam, desde que, por voltas de 1965, comecei a me interessar por essa estrutura poética mínima que os japoneses praticam há, pelo menos, quatrocentos anos. A certeza desse parentesco me levou a realizar o Quarenta Clics em Curitiba, com fotos de Jack Pires, mais poemas breves, álbum editado em 1976, em Curitiba, numa caixa com pranchas soltas, uma foto, um haicai. Foram diversos os critérios de aproximação entre foto e haicai: fiz haicais para algumas fotos já prontas, mas, em muitos casos, casamos fotos e haicais que eu já tinha prontos. Em alguns casos, Pires fez fotos para haicais anteriores (LEMINSKI, 2012, p. 139). Se quarenta fotografias “possuem afinidade” com quarenta haicais, como descrever este fenômeno? Muitos autores se detiveram neste problema. Para Barthes, “a forma de arte que permite conceber o haikai = [é] a fotografia” (BARTHES, 2005, p. 144). Fontanari (2011, p. 34), diante do noema barthesiano da fotografia, “isso foi” ou “isso 1160 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 existiu”, sugere uma similitude estrutural com o haicai – “A noção de ‘isso existiu’ da fotografia converge também com a linguagem poética do haicai. É pura contingência”. O poeta haijin,9 para Fontanari (2011, p. 32), “elabora em um golpe de linguagem o instante, transformando uma experiência em linguagem poética. O fotógrafo captura um instante, ou mesmo, uma experiência e os aprisionam em forma de imagem fotográfica”. Trata-se de uma analogia entre os procedimentos de captura e produção de dois sistemas semióticos, poesia e fotografia. Poemahaicai e fotografia resultam de processos tipicamente indexicais; são dependentes, portanto, de correlações espaço-temporais com seus objetos. No caso de fotolivros de literatura, o livro torna-se um suporte específico cuja experiência perceptiva, estética, se define pelo casamento estreito, poroso, entre fotografia e livro, fotografia e texto, fotografia e design; ou seja, é uma imagética fotográfica que se expande ou se hibridiza com as condições plásticas que a diagramação especial e o design oferecem, assim como a combinatória afinada de visualidade e textualidade (NAVAS, 2017, p. 85-86). O signo verbal parece estar vinculado à imagem fotográfica em uma interação bidirecional, criando um sistema acoplado que pode ser visto como um novo sistema. Influências mutuamente modulatórias e contínuas vinculam texto e fotografia, para um intérprete. Mas é preciso definir com alguma precisão a natureza de tais influências. De que tipo de interação estamos tratando? Em nossa abordagem, a idéia de “acoplamento” sugere que a foto ocupa uma posição funcional na prancha, que é observada como objeto de um signo que é um poema, para um interpretante, que pode ser uma co-relação espaço-temporal ou uma analogia, e esta relação triádica não pode ser decomposta. Ela é irredutivelmente triádica. Uma explicação sobre as relações poema-foto baseia-se, aqui, na teoria e no modelo de Peirce sobre a ação do signo (semiosis). A semiose é descrita por Peirce como um padrão de relações de determinação entre correlatos (S-O-I) especificados funcionalmente. Como Savan (1987-1988, p. 43) afirma, “os termos interpretante, signo e objeto são uma tríade cuja definição é circular. Cada um dos três é definido 9 Aquele que escreve haicais. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1161 conforme os outros dois”. A única propriedade que especifica as naturezas de S, O e I é a maneira como se posicionam, em seus papéis funcionais, uns em relação aos outros, como primeiro, segundo e terceiro termos de uma relação triádica. Seus papéis funcionais não podem ser identificados a partir de estruturas mais simples. Por exemplo, o papel funcional de S só pode ser identificado na “relação de mediação”, indecomponível, que ocupa entre O e I. Similarmente, o papel funcional de O é identificado na relação em que determina I por meio de S, e o papel de I é identificado pela determinação de O por meio de S. Se consideramos apenas relações diádicas, S-I, S-O, ou I-O, ou se consideramos os termos em isolamento, não poderemos inferir o comportamento deles na relação triádica S-O-I (EP 2: 391). De fato, a rigor nem poderíamos identificar o fenômeno como semiótico. A irredutibilidade relacional deve ser entendida em termos da não-dedutibilidade do comportamento dos elementos lógico-funcionais da tríade (S-O-I), a partir de seus comportamentos em relações (diádicas ou monádicas) mais simples. Em nossa análise, quando o poema (signo) é determinado pela foto (objeto) relativamente ao interpretante, determina o interpretante relativamente à foto. Se a foto está em uma relação irredutivelmente triádica com o poema, produz um efeito, uma analogia por exemplo, que está para a foto através do poema. Quando compartilha certas qualidades (superficiais ou estruturais) com a foto, o poema é um ícone da foto para um interpretante que é uma analogia. Quando o poema é interpretado como estando em uma co-relação direta com a foto, ele é um índice dela. Nestes casos, os objetos externos do poema e da foto são interpretados como coincidentes. Os limites entre os dois sistemas (foto e poesia) são os limites reconhecíveis entre signo e objeto, em uma relação S-O-I. Se uma estrutura da foto (O) é comunicada para o interpretante (I) por meio do poema, então observamos uma relação diagramática entre poema e foto. Neste caso, o interpretante deve ser uma analogia entre estruturas. Se o poema (S) é uma metáfora da foto (O), é comunicada uma analogia entre os efeitos (I) produzidos por S (poema) e por O (foto). Neste caso, poema e foto são análogos porque são análogos seus efeitos interpretativos. Em todos estes casos, a influência modulatória entre poema e foto atua em uma relação triádica, cuja variedade morfológica é exaurida por três classes fundamentais de relação S-O (ícone, índice, símbolo) e subdivisões do ícone (imagem, diagrama, metáfora). 1162 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 Esta abordagem permite: (i) precisar, no interior de uma teoria robusta, diversas noções usadas para descrever as relações entre diferentes sistemas de signos em fotolivros de literatura; tais noções usualmente se distribuem num amplo escopo de termos mal definidos – combinação, relação, associação, vinculação, influência, entre outros; (ii) classificar a variada morfologia de relações concebíveis entre os sistemas combinados ou acoplados (ícone, índice, símbolo; e subdivisões do ícone - imagem, diagrama e metáfora); trata-se de uma lista exaustiva de classes de relações concebíveis entre signo e objeto; (iii) explorar as propriedades de irredutibilidade triádica que caracterizam a semiose no ambiente de análise específico dos fotolivros de literatura – a indecomponibilidade relacional entre os termos S-O-I é estendida para os sistemas combinados (poemafoto-intérprete). Uma decomposição analítica dos papéis exercidos pelos correlatos (S-O-I, poema-foto-interpretante, respectivamente) é capaz de informar-nos com precisão a estrutura das relações observadas no fenômeno do “fotolivro de literatura”. Agradecimentos Ana Luiza Fernandes é doutoranda no Departamento de Letras, do programa Literatura, Cultura e Contemporaneidade, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil. A autora agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) o apoio recebido. João Queiroz é professor do Instituto de Artes e Design, UFJF. Ele é membro da International Association for Cognitive Semiotics (IACS), membro do Linnaeus University Centre for Intermedial and Multimodal Studies, Vaxjo (Suécia), e pesquisador associado do Linguistics and Language Practice Department, University of the Free State (África do Sul). Site: www.semiotics.pro.br. Contribuição dos autores Os autores atuaram colaborativamente em todas as seções deste artigo. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1137-1166, jul./set. 2019 1163 Referências ATÃ, Pedro; QUEIROZ, João. Icon and Abduction: Situatedness in Peircean Cognitive Semiotics. In: MAGNANI, Lorenzo (org.). ModelBased Reasoning in Science and Technology. New York: Springer, 2013. p. 301-313. ATÃ, Pedro; QUEIROZ, João. Habit in Semiosis: Two Different Perspectives Based on Hierarchical Multi-level System Modeling and Niche Construction Theory. In: WEST, Donna; ANDERSON, Myrdene (ed.). Consensus on Peirce’s Concept of Habit: Before and Beyond Consciousness. Berlin: Springer, 2016. p. 109-119. ATKIN, Albert. Peirce. New York: Routledge, 2016. (The Routledge Philosophers) ATKIN, Albert. Peirce’s Theory of Signs. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Winter 2003 Edition, 2006. Disponível em: <http://plato. stanford.edu/entries/peirce-semiotics>. Acesso em: 10 jun. 2018. BARTHES, Roland. 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Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Implicaturas de futuridade em usos de querer + infinitivo em PB: interpretação temporal do ato de fala a partir do aspecto e da modalidade1 Futurity implicatures in the uses of the verbal periphrasis querer + infinitive in Brazilian Portuguese: temporal interpretation of speech acts stemming from aspect and modality Valéria Cunha dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil csvaleria91@gmail.com Resumo: Com base em estudos sobre as categorias tempo, aspecto e modalidade (PALMER, 1986; BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a; SWEETSER, 2001), destacamos o processo de gramaticalização de marcadores de futuro em línguas como inglês, dinamarquês e grego, envolvendo implicaturas (CHIERCHIA, 2003; LEVINSON, 2007) e atos de fala (SEARLE, 1995). Para compreender o uso similar dessa marcação de tempo em português brasileiro (PB), observamos implicaturas de futuridade a partir de usos em que o verbo de volição querer atua como auxiliar. Avaliamos se as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam à interpretação de futuro nas ocorrências em primeira pessoa acompanhadas de verbo de volição ([eu/nós/a gente +] querer + verbo). A partir da análise das ocorrências, sugerimos que está ocorrendo em PB o mesmo processo ocorrido em outras línguas: marcas de volição tornam-se marcas de futuridade. Tendo como corpus o C-ORALBRASIL I (RASO; MELLO, 2012), composto por amostras de fala espontânea, com diálogos, monólogos e conversações, destacamos os atos de fala compromissivos e a atitude dos participantes da comunicação em relação às proposições, ressaltando o contexto extralinguístico de cada registro. Nosso objetivo foi observar como esses 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1167-1194 1168 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 usos funcionam na língua e, para isso, foram analisadas as 139 gravações do corpus, que somam 759 usos do verbo querer. Desse número, nos detivemos à análise de 55 ocorrências do auxiliar em primeira pessoa que disparam implicatura de futuridade, atuando como perífrase de futuro nesses casos. Palavras-chave: gramaticalização; implicatura; futuro. Abstract: Based on studies on the categories of tense, aspect and modality (PALMER, 1986; BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a; SWEETSER, 2001), we highlighted the grammaticalization process of future markers in some languages. Such a process involves implicatures (CHIERCHIA, 2003; LEVINSON, 2007) and speech acts (SEARLE, 1995). To understand the similar use of that tense marking in Brazilian Portuguese (PB), we observed the implicature of futurity from uses in which the volition verb (querer) operates as an auxiliary. As a theoretical background, we used previous studies on the grammaticalization of lexical items that denoted desire, will and necessity and became future markers such as will in English. We evaluated whether implicatures associated with the expression of intent or desire leads us to future in sentences exhibiting the first person with a volition verb ([eu/nós/a gente +] querer + verb). Our hypothesis is that PB may be going through the same process occurred in other languages: volition markers become marks of futurity. The corpus we used was C-ORAL-BRASIL I (RASO; MELLO, 2012). Using this we highlighted the commissive speech acts and the attitudes of communication participants in relation to propositions. Our approach started from conversation analysis, emphasizing the extra-linguistic context of each record. We analyzed 105 recordings in a private context and 34 in a public one, all of which add up to a sum of 759 uses of the verb querer. Among those, we highlighted 55 occurrences in which the item appears as a first person auxiliary that gives rise to a futurity implicature, working, in such cases, as a future periphrasis. Keywords: grammaticalization; implicature; future tense. Recebido em 29 de setembro de 2018 Aceito em 02 de janeiro de 2019 1 Introdução Com base em estudos de abordagem pancrônica sobre gramaticalização, podemos compreender o desenvolvimento de auxiliares e afixos utilizados como marcadores gramaticais de futuro a partir de itens lexicais que inicialmente significavam desejo ou obrigatoriedade e Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1169 passaram a codificar marcação temporal, como é o caso do verbo auxiliar will em inglês (GIVÓN, 2001a). A interpretação de temporalidade a partir da expressão de modalidade nesse tipo de construção surge por implicatura, inferência que é feita com base no conteúdo semântico das proposições somado ao contexto conversacional. Podemos, então, projetar a mesma situação ao português brasileiro (PB), uma vez que fontes lexicais distintas tendem a convergir em vias de gramaticalização (BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994). Notamos, a partir de enunciados como “Até o fim do mês quero renovar meu passaporte para viajar no ano que vem”, que, em PB, o uso de querer como verbo auxiliar implica futuridade, funcionando, portanto, não como uma marca de futuro, mas uma indicação. É preciso considerar elementos contextuais, linguísticos (como as delimitações temporais “até o fim do mês” e a ancoragem em outro evento referido na sentença, “viajar no ano que vem”) e extralinguísticos (como informações sobre a probabilidade da ocorrência do evento – a compra das passagens para a viagem, por exemplo) para extrair essa leitura. A trajetória de gramaticalização a partir da implicatura de desejo disparada pelo verbo nos leva a crer que se uma ação é desejada pelo falante, de alguma forma esse falante projeta a realização dessa ação no futuro. Assim, se o mesmo ato de fala comporta a expressão de desejo e a indicação de futuro na estrutura querer + verbo, essa seria uma forma indireta de expressar o tempo em português, pois querer expressa volição e implica predição. Inferimos a marcação de tempo futuro a partir de um verbo de volição, mas não interpretamos esse tipo de proposição como um ato de fala expressivo (SEARLE, 1995). Isso pode ocorrer devido a uma escala de implicação de futuro que faz parte das expressões de desejo e volição: quanto mais próximo do desejo for o ato de fala, menor será a inferência de futuro. Neste artigo, trazemos os resultados que obtivemos em uma pequena análise sincrônica (CUNHA DOS SANTOS, 2015) feita com base em reflexões sobre modalidade (PALMER, 1986; BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1991; 1994; GIVÓN, 2001a; SWEETSER, 2001) e aspecto (COMRIE, 1976; FOSSILE, 2012; FREITAG; ARAÚJO; BARRETO, 2013). Observamos a relação entre essas duas categorias em usos que levam ao domínio da futuridade (GIBBON, 2000; BITTENCOURT, 2014). A partir da observação da atitude do falante em relação aos enunciados que o cercam, tencionamos testar se 1170 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam à inferência de futuro em PB. Para isso, elencamos nos enunciados que disparam essa implicatura os usos mais aspectuais e mais modalizados, a fim de verificarmos qual categoria funcional exerce maior influência na marcação de temporalidade. Desse modo, nosso objetivo foi levantar, em dados de corpus, o número de ocorrências do verbo querer em primeira pessoa e verificar as proposições nas quais a implicatura de futuridade pode ser claramente inferida. Além disso, buscamos testar se as implicaturas associadas à expressão de intenção ou desejo levam à inferência de futuro e descrever quais são os contextos em que querer dispara essa inferência de temporalidade. Acreditamos que o uso da perífrase com querer, no lugar de outra marca de futuro, indica desejo interno do agente que o move a uma ação futura. Portanto, há forte grau de comprometimento do falante (nos usos em primeira pessoa) diante da proposição: a ação projetada para o futuro é resultado de intenção própria. Dessa forma, ao pretender uma implicatura de futuridade com querer, o falante faz um ato de fala compromissivo. Tendo em vista que “os futuros de desejo terão nuances de vontade em algum estágio de seu desenvolvimento” (BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994, p. 255, tradução nossa), hipotetizamos que “o futuro de desejo” é perceptível em português brasileiro com o uso de querer como auxiliar modal. A fim de ilustrar o percurso até nossa hipótese, a seguir trazemos uma breve discussão acerca do domínio funcional Tempo, Aspecto e Modalidade (TAM), das construções de futuro em PB e das implicaturas geradas a partir de enunciados. Nas seções seguintes, apresentamos a metodologia utilizada na pesquisa de Cunha dos Santos (2015) e os resultados das análises dos enunciados destacados nesse estudo. Situamo-nos na perspectiva cognitivo-funcional e analisamos dados de fala retirados do corpus C-ORAL-BRASIL I (RASO; MELLO, 2012), composto por gravações de monólogos, diálogos e conversas e suas transcrições, para buscar responder nossas questões de pesquisa. Por fim, nas considerações finais, tecemos algumas observações a partir da discussão dos resultados e da relação com as informações encontradas na literatura e apontamos algumas possibilidades de percurso para pesquisas futuras. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1171 2 A expressão de futuridade no domínio funcional Tempo, Aspecto e Modalidade Por nosso objeto de estudo envolver uma possível marcação temporal, consideramos em nossa análise o domínio funcional complexo Tempo, Aspecto e Modalidade (TAM) (GIVÓN, 2001a). Segundo Givón (2001a), tempo é uma categoria essencialmente pragmática, pois se ancora no contexto discursivo e faz referência a um ponto externo à proposição. Trata-se de uma categoria dêitica, porque indica um acontecimento no mundo: identifica a situação enunciada (momento do evento - ME) em relação ao momento de fala (MF), e pode ser codificado na língua através do tempo verbal e do aspecto, valores expressos em verbos plenos ou auxiliares. No que diz respeito a essa categoria funcional e, de maneira mais específica, ao tempo futuro, é importante pontuar a distinção entre futuro e futuridade. A futuridade é um domínio funcional amplo “que recobre noções que apontam para situações projetadas a partir do momento de fala” (GIBBON, 2000), sendo, portanto, uma projeção hipotética proveniente do conhecimento experiencial do ser humano. Inserido no amplo domínio da futuridade está o futuro, que também se refere a situações projetadas a partir do momento de fala, além de expressar modalidade e aspecto. A hipótese de Bybee, Pagliuca e Perkins (1994) sobre futuro é de que ele decorre de grams2 que evoluíram a partir de uma gama bastante restrita de recursos lexicais – construções que envolvem verbos de movimento, de obrigação, desejo e habilidade, e de advérbios temporais. Desse modo, no desenvolvimento do chamado futuro orientado para o agente, ou desire future, a expressão de desejo ampliouse para expressão de vontade,3 de intenção e, finalmente, de predição (BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994, p. 256), levando à trajetória de gramaticalização ilustrada na Figura 1 a seguir. 2 Grams são morfemas gramaticais que decorrem de morfemas lexicais. Uma definição mais detalhada sobre a diferença entre os conceitos “desejo”, “vontade” e “intenção” pode ser vista em Cunha dos Santos (2015). 3 1172 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 FIGURA 1 – Trajetória de gramaticalização do futuro de desejo (BYBEE; PAGLIUCA; PERKINS, 1994, p. 256) Outra categoria funcional essencial para considerarmos o fenômeno estudado, por sua relação inerente ao tempo, é o aspecto, que diz respeito também à duração do evento, sendo referente ao tempo interno de uma situação (COMRIE, 1976). Aqui, especialmente, trataremos do aspecto iminencial, que leva à modalidade de mais certeza, pois a iminência da ocorrência do evento pressupõe uma curta “distância temporal” entre MF e ME, uma vez que a situação está prestes a se iniciar. Entretanto, qualquer proposição que toma o futuro como referência é inerentemente irrealis, já que acontecimentos futuros são hipotéticos, podem vir a acontecer. Por esse motivo, consideramos que Dentro de uma semântica da aspectualidade, o iminencial se refere a contextos em que há a expectativa de que uma situação ocorra, mas que não necessariamente se concretizou, ficando, assim, na fronteira limítrofe entre o domínio do aspecto e o da modalidade (FREITAG; ARAÚJO; BARRETO, 2013, p. 112). Sobre a expressão da iminencialidade, Freitag, Araújo e Barreto (2013, p. 104) consideram que “é possível fazer uma leitura com gradações que vão do [- irrealis] ao [+ irrealis], a depender do conjunto de traços contextuais que indicam o grau de certeza expresso no enunciado”. Por se referir a situações que estão prestes a ocorrer, mas que necessariamente não precisam se concretizar, esse valor aspectual está ligado à factualidade, logo, ao âmbito da modalidade. Como se sabe, a modalidade expressa a atitude do falante em relação à proposição. Não trata de valores de verdade, mas da escolha do falante entre os dois tipos de julgamento, epistêmico ou avaliativo (deôntico), que podem ser feitos sobre a informação proposicional trazida na sentença (BYBEE; PERKINS; PAGLIUCA, 1994, p. 240). Givón (2001a) apresenta uma lista de estados epistêmicos e metas comunicativas dos participantes da interlocução – pressuposição, asserção realis, asserção irrealis e asserção negativa – e considera que a atitude do falante não incide somente sobre a asserção, mas, também, sobre a atitude do ouvinte Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1173 face à proposição. Em um outro viés de observação, Bybee, Pagliuca e Perkins (1994) consideram os seguintes quatro tipos de modalidade: orientada para o agente (agent-oriented), orientada para o falante (speakeroriented), epistêmica e modos subordinantes (subordinating). Ressaltamos como possibilidades de expressão de modalidade em PB os usos de verbo auxiliar modal (como dever, poder...) e de verbos de significação plena, indicadores de opinião, crença e saber (como achar, pensar...) (NEVES, 1996, p.166-167). Neste estudo, na investigação dos usos de querer na construção de tempo por perífrase, nos interessa destacar essas possibilidades, bem como a modalidade orientada para o agente e o aspecto iminencial. Julgamos que o fenômeno investigado aqui é mais uma evidência que aponta para a necessidade de se analisar qualquer categoria do domínio TAM de maneira interligada às demais. Por esse motivo, apresentamos a seguir algumas considerações sobre a formação da marcação perifrástica de futuro em PB, salientando o processo de gramaticalização envolvendo a expressão de modalidade e processos pragmáticos de inferenciação. 3 Construção de futuro perifrástico em PB A marcação canônica de futuro em português, via desinência, se desenvolveu a partir do latim, com o uso do auxiliar habere, que anteriormente funcionava apenas como verbo pleno com significado de posse. A construção com esse verbo auxiliar originalmente tinha sentido de obrigação ou destino e, com o passar do tempo, tal forma se gramaticalizou como um morfema de futuro. Para ilustrar essa transformação, Ilari (2014, p. 28) apresenta o seguinte trajeto de desenvolvimento para a marcação de futuro via desinência, do latim para o português: amabo > amare habeo > amar hei > amarei. No que se refere ao processo de gramaticalização dessa marcação temporal, destacamos, na marcação de futuro em português, os estágios de estratificação e divergência – considerando os cinco estágios de gramaticalização definidos por Hopper (1991, p. 22): estratificação, divergência, especialização, persistência e decategorização. O estágio de estratificação diz respeito ao surgimento de novas camadas, dentro de um amplo domínio funcional, na utilização de mais de uma forma para funções idênticas. Nesse sentido, os estratos antigos podem permanecer, coexistindo e interagindo com os estratos mais recentes, como é o caso 1174 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 da coexistência das marcações de futuro por morfema e por perífrase. No estágio de divergência, os estratos mais antigos não são necessariamente descartados, e o item lexical se mantém em outros contextos – como é o caso do verbo ir em PB, que funciona tanto como auxiliar quanto como verbo pleno, em contextos distintos. Conforme ressalta Heine (2003, p. 579), o processo de gramaticalização envolve quatro mecanismos de mudança interrelacionados: dessemanticização (bleaching), extensão (ou generalização contextual), decategorização e erosão (ou redução fonética). Esses mecanismos podem ou não resultar na gramaticalização de um item e ocorrem em diferentes estágios desse processo. Por exemplo, a mudança semântica nos estágios iniciais de gramaticalização não envolve necessariamente dessemanticização (bleaching); pelo contrário, essa transformação geralmente ocorre por meio de especificação alcançada por inferenciação (TRAUGOTT; KÖNIG, 1991, p. 212). Além desse, outros mecanismos de mudança semântica são a expansão metafórica, relacionada à expansão de um domínio a outro, e a expansão metonímica, que acontece dentro de um mesmo domínio. Considerar a inferenciação, processo pragmático, como fator desencadeador da mudança semântica nos parece pertinente, pois a gramaticalização é motivada por fatores extralinguísticos, principalmente cognitivos (HEINE; CLAUDI; HÜNNEMEYER, 1991, p. 27). Acreditamos que a motivação cognitiva para a expansão metafórica seja grande influenciadora do uso investigado neste estudo – verbo querer utilizado de forma análoga ao verbo ir enquanto auxiliar de tempo. Isso porque, conforme aponta Givón (2001a, p. 367), a partir de estudos tipológicos tomando como base várias línguas, podemos observar a gramaticalização de um pequeno grupo de verbos – dentre eles, querer – que passam a ser marcadores de aspecto ou modalidade. É somente mais tarde que esses verbos passam por uma gramaticalização secundária, como marcadores de tempo. De acordo com a trajetória ilustrada na Figura 1 acima, temos como evidência para nossa hipótese a gramaticalização de itens que passaram da expressão de desejo para expressão de intenção e que, posteriormente, passaram a funcionar como marca de futuro, como o auxiliar will em inglês. Uma outra trajetória, que parte da expressão de movimento em direção a um alvo para o domínio da modalidade, com a expressão de intenção, para, então, passar a ser marca de futuro, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1175 aponta o caminho da gramaticalização de be going to, também do inglês. Outro exemplo a ser citado é a trajetória de expressão de obrigação, no âmbito da modalidade, para a indicação de tempo futuro, como ocorre na construção ter que + infinitivo em português. Como resultado desse mesmo percurso, obteve-se, em latim, o uso de infinitivo + habeo, que motivou as desinências temporais -ré em espanhol e -re em português. A mudança de expressão de modalidade para marcação de futuro do auxiliar modal will (de verbo pleno para auxiliar) ilustra a associação entre os significados anterior (modalidade) e novo (tempo). Essa relação parte de motivações cognitivas e é vinculada ao domínio funcional complexo TAM, pois, como os exemplos citados nos permitem considerar, “muitas construções utilizáveis para expressar tempo exprimem também outros conteúdos, sobretudo de modo e aspecto” (ILARI, 2014, p. 9). Considerando que o futuro é codificado em enunciados indicando a previsão do falante de uma situação que ocorrerá subsequente ao evento de fala, o “fator modalidade” não pode estar desvinculado desse domínio. A partir da modalidade, principalmente das orientadas para o agente e para o falante, se desenvolvem fontes de gramaticalização para marcadores de futuro. Como afirma Gibbon (2000, p. 45), em seu estudo sobre a forma perifrástica de futuro ir + infinitivo, é possível destacar o componente de modalidade no tempo futuro, já que a modalidade é relevante para o futuro, não só na sua expressão, mas também na sua formação. A autora defende que a forma perifrástica entrou na língua para expressar modalidade (indicando intenção e certeza) e que, após um primeiro momento, assumiu também a codificação de futuro, ocupando o espaço do futuro do presente. O verbo que originalmente significava apenas “movimento para” passou pelo processo de dessemantização, perdendo seu valor referencial e passando a veicular significados de natureza pragmático-discursiva. Atualmente, em português brasileiro, a marcação de tempo futuro é feita por formas simples: no futuro simples (Farei aniversário em breve) e no presente do indicativo (Amanhã faço aniversário), e por formas perifrásticas, como: hei de + infinitivo (Hei de fazer uma grande festa de aniversário), ir + infinitivo (Vou fazer aniversário amanhã) (PERINI, 2010) e querer + infinitivo (por implicatura) (Quero fazer uma festa de aniversário) (CUNHA DOS SANTOS, 2015). É sobre essa última forma de marcação temporal, via implicatura, que iremos nos debruçar de maneira mais aprofundada aqui. 1176 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Na seção seguinte, de modo mais detalhado, tratamos do papel da pragmática no processo de gramaticalização de marcadores temporais, especialmente no que tange à variação e mudança linguística motivada por inferenciação. 4 O papel da pragmática na gramaticalização: indicação por implicatura Como já vimos afirmando, nesta pesquisa tencionamos investigar usos de querer + infinitivo que possibilitam a interpretação de tempo futuro a partir do verbo de volição. Nesses casos, os enunciados não servem meramente para expressar um estado do falante, ou seja, o enunciador não tem como objetivo comunicativo apenas informar seu interlocutor sobre um desejo seu. Antes, o enunciador, fazendo uso dessa forma de expressão de intenção, fornece ao ouvinte as ferramentas necessárias para que seja acessada, dentre outras implicaturas, a de que o conteúdo proposicional faz referência a evento futuro. Desse modo, não interpretamos esse tipo de proposição como um ato de fala expressivo ou declarativo, mas como um compromissivo, que tem como propósito comprometer o falante com uma certa linha de ação (AUSTIN, 1990; SEARLE, 1995). Atos desse tipo tendem a provocar “mudanças no mundo para que este corresponda ao conteúdo proposicional do ato de fala” (SEARLE, 1995, p. 10), já que há comprometimento do falante, assumindo a responsabilidade de desenrolar uma ação futura. Julgamos ser esse o tipo mais próximo dos observados nos usos em que querer, enquanto verbo auxiliar, dispara implicaturas de futuridade. Ao realizar um ato de comprometimento, o falante fornece as ferramentas necessárias para que o ouvinte interprete seu compromisso como ação futura através de uma implicatura. Isso pode ocorrer devido a uma escala de implicação de futuro que faz parte das expressões de desejo e volição: quanto mais próximo da expressão do desejo for o ato de fala, menor será a inferência de futuro, conforme ilustramos na Figura 1, na trajetória de gramaticalização do futuro de desejo proposta por Bybee, Pagliuca e Perkins (1994, p. 256). Consequentemente, quanto mais “distante” do desejo – dentro do cline em questão –, maior será o sentido de predição. No que se refere ao conceito de intencionalidade, Givón o relaciona com a realização de fatos no mundo a partir da intenção. Segundo ele, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1177 ações são mudanças no estado do universo em que o comportamento intencional de agentes esteve envolvido. Em outras palavras, a causa/agente percebeu o estado precedente do universo, então, através de comportamento intencional, causou-lhe uma mudança para um estado diferente subsequente (GIVÓN, 2012, p. 436). Para o autor, verbos que carregam significado de intencionalidade podem ser classificados em termos de força intencional, na seguinte escala: querer > intencionar > planejar > poder. Esse ranking é relacionado à realização bem sucedida por meio da inferência pragmática: quanto mais forte é a intenção do agente, maior a probabilidade de sucesso (GIVÓN, 2001b, p. 57), ou seja, maior probabilidade de o acontecimento ocorrer no mundo. Retomando o que vimos afirmando, consideramos que o ato de fala compromissivo é alcançado via implicatura. Para Levinson (2007, p. 207), está claro que a implicatura desempenha um papel importante na mudança linguística, acionando mudanças sintáticas e semânticas. Na verdade, parece ser um dos mecanismos mais importantes pelos quais as questões do uso linguístico realimentam e afetam as questões da estrutura linguística. É, portanto, uma rota importante pela qual as pressões funcionais deixam a sua marca na estrutura de uma língua. Diferente das inferências semânticas, a implicatura é considerada um tipo de inferência pragmática, por ser não dedutiva (não lógica), mas indutiva, uma vez que é inferida a partir do uso. Por implicaturas, é possível compreendermos e comunicarmos mais do que dizemos, porque a significação vai além do literal, é composta por outros elementos além do significado de cada palavra. As ideias centrais sobre implicatura foram propostas por Grice (1967) e têm ligação com as noções de comunicação intencional e significado do falante. Portanto, podemos dizer que as implicaturas são inferências pretendidas pelo falante. É também Grice quem propõe a existência de um grupo de diretrizes que conduz a conversação, de modo que a língua seja utilizada cooperativamente. O Princípio da Cooperação determina que, numa situação comunicativa, o falante deve fazer sua contribuição para a comunicação, com finalidade e direção aceitas na troca em que está envolvido (CHIERCHIA, 2003; LEVINSON, 2007). 1178 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Dentro desse Princípio, para uma conversação eficaz, os interlocutores devem ser sinceros, relevantes, claros e suficientemente informativos. Nesse sentido, ao optar por utilizar uma certa forma que dispara uma série de implicaturas, o falante conta com uma certa interpretação do seu interlocutor, a partir da situação de uso. Considerando isso, pontuamos que essa inferência envolve dois significados: o conteúdo literal (significado da proposição) e a mensagem pretendida (significado do falante). Segundo Levinson (2007, p. 121), “o conceito de implicatura parece oferecer algumas explicações funcionais significativas dos fatos linguísticos”. O falante opta por falar por implicaturas porque quer veicular uma informação diferente do dito ou quer ser mais expressivo, tendo em vista o Princípio da Cooperação. Portanto, sempre que evito uma expressão simples em favor de uma perífrase mais complexa, pode-se supor que não o faço levianamente, mas porque os detalhes, de certa maneira, são relevantes para o empreendimento em curso (LEVINSON, 2007, p. 134). As implicaturas que são disparadas nos usos de querer + infinitivo são conversacionais. Essas inferências são canceláveis (ou anuláveis) – é possível cancelar a inferência acrescentando algumas premissas adicionais às premissas originais –; não destacáveis – possuem ligação com o conteúdo semântico, não com a forma linguística e, por isso, não podem ser destacadas de um enunciado (exceto as que se devem à máxima do modo) –; calculáveis – tendo em vista o significado literal, o sentido da enunciação e o princípio cooperativo, o destinatário faria a inferência para preservar a cooperação presumida –; não convencionais – não fazem parte do significado convencional das expressões linguísticas (GRICE, 1967). As implicaturas conversacionais podem ser particularizadas, exigindo contextos específicos para interpretação, ou generalizadas, sem que seja necessário um determinado contexto para serem inferidas. Nestas, particularmente, o conteúdo semântico é dificilmente distinguido das expressões linguísticas, já que são associadas a expressões relevantes em todos os contextos. As implicaturas ligadas ao uso do verbo querer indicando futuro podem ser consideradas escalares (subtipo das implicaturas generalizadas). Vemos em Horn (1972 apud Levinson, 2007, p. 166) uma escala possível para o caso analisado aqui, onde o item mais forte é colocado à esquerda: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1179 <succed in V+ing, try to V, want to V> <conseguir V, tentar V, querer V> Se um falante afirma um item à direita na escala (mais fraco prevalece), ele veicula a implicatura de que o item à esquerda (mais forte) não prevalece. Por exemplo, num enunciado como em (1): (1) Eu quero ganhar! Ou melhor, eu vou ganhar! “Eu quero ganhar” pode implicar “quero, mas há possibilidade de não ganhar”. Quando há o acréscimo de “eu vou ganhar” ao enunciado, infere-se, por acarretamento, que o falante quer ganhar. Ou seja, o item mais fraco nega o mais forte, mas o mais forte inclui, acarreta, o mais fraco. “Quero” (expressão de intenção) se refere a uma possibilidade mais remota, enquanto que “vou” (expressão de predição já gramaticalizada) marca maior comprometimento do falante com a ação descrita na proposição. Essa relação é ilustrada na Figura 2 a seguir, associando intenção e predição a diferentes níveis de modalidade. FIGURA 2 – Relações das inferências entre intenção e predição O acarretamento, também conhecido como implicação lógica, não é calculável, mas induzido no discurso por uma linha de raciocínio: “se uma proposição a implica uma proposição b, isso significa que se a é verdadeira, então b é necessariamente verdadeira” (MOURA, 2006, p. 15). Portanto, se: (2) Eu vou me inscrever no curso, então (3) Eu quero me inscrever no curso, ou (4) Eu devo me inscrever no curso.4 4 No exemplo (4), o verbo dever é tomado em seu uso deôntico. 1180 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Se o falante vai realizar uma ação que depende dele para se concretizar, implica-se logicamente que ele queira que essa ação aconteça ou que ele tenha o dever de executá-la. Porém, vale ressaltar que o falante querer algo nem sempre é condição suficiente para a realização de uma ação. É nesse sentido que situamos esse tipo de expressão em um ponto + irrealis numa escala de modalidade. Retomando o que já destacamos sobre implicaturas escalares, vale ainda pontuar que, apesar de não precisarem de um contexto específico para ocorrerem, essas são afetadas pelo contexto. Inferências desse tipo, disparadas por um mesmo item, podem variar. Elas podem servir para expressar predição, em sentenças como: Eu quero sair ou Eu quero trocar de carro, e para expressar desejo, como em: Eu quero ganhar na loteria e Eu quero ser forte, mas não consigo. Todos os exemplos projetam as ações (sair, trocar, ganhar, ser) para o futuro, mas os interpretamos de maneiras diferentes. As inferências de predição derivam de ações que dependem do falante para se concretizarem. As intenções do falante/ agente são condições suficientes para a realização de sair e trocar de carro. Já na expressão de desejo, a vontade do falante não interfere na realização de ganhar e ser forte – considerando o último exemplo, poderíamos inferir que o falante quer e vai ser forte, mas essa implicatura é cancelada com o acréscimo da informação seguinte “mas não consigo”, que revela sua incapacidade para efetuar a ação. Pistas como referências temporais, tempo verbal de outros verbos em enunciados próximos e adjuntos nos levam à interpretação de futuro a partir de querer, desde que o item em questão esteja inserido em contexto linguístico favorável. A fim de investigar esse fenômeno – a implicatura conversacional como fator que modifica a interpretação do tempo verbal – realizamos uma busca de ocorrências em um corpus fechado, com o intuito de analisar os contextos de uso e observar quais elementos estariam exercendo maior influência na interpretação dos enunciados, expressivos a priori, como atos de fala compromissivos. Detalhes sobre o corpus e a metodologia utilizados em nossa investigação estão descritos na seção a seguir. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1181 5 Análise dos usos de querer + infinitivo e fatores que disparam implicaturas de futuridade Para fins práticos, optamos por utilizar um corpus fechado que contivesse dados de fala espontânea em português brasileiro. Todas as sentenças analisadas neste estudo fazem parte do C-ORAL-BRASIL I (RASO; MELLO, 2012), que tem suas informações disponíveis em CD-ROM. Buscamos ocorrências de uso do verbo querer como auxiliar em contextos em que se infere, a partir de implicatura gerada, que a ação descrita na proposição ocorrerá no futuro. Foram analisados monólogos, diálogos e conversações, em contextos privado e público. Assim, foi possível observar a ação dos interlocutores (nos diálogos e nas conversações) diante do enunciado e se o significado implicado na proposição foi compreendido naquele contexto. Foram destacadas ocorrências de primeira pessoa (singular e plural – P1 e P4) + querer + verbo no infinitivo, tendo em vista a conclusão do estudo diacrônico apresentado em Bybee, Pagliuca e Perkins (1991; 1994) de que “na formação do futuro, desejo e obrigação podem ser usados em sentenças expressando intenções do agente, especialmente em primeira pessoa” (BYBEE, PAGLIUCA, PERKINS, 1994, p. 178). Cada gravação do corpus foi ouvida ao mesmo tempo em que sua transcrição era lida, para que fosse possível captar outros sons daqueles contextos que poderiam contribuir para as inferências dos enunciados – como a aproximação do falante ao microfone do gravador depois de enunciar “quero mandar um recadinho pra quem ouve a minha voz”, por exemplo. A busca foi realizada nas transcrições dos áudios em arquivo .doc, com a localização automática pelo comando crtl + l de “quer-” e “quis-”. Cada caso foi destacado e passou por uma problematização posterior em que foram salientados elementos que acompanham a ocorrência na investigação sobre um padrão de uso. Destacamos todas as ocorrências de querer em primeira pessoa, quantificamos os resultados dos usos e analisamos apenas os de volição que implicavam predição. Realizamos uma análise qualitativa já que a pouca quantidade de ocorrências seria pouco representativa num estudo de caráter quantitativo. Dados sociolinguísticos não foram levantados para essa análise, pois acreditamos que o condicionamento para a interpretação investigada se dá mais pelo contexto e pela situação comunicativa que por fatores como idade ou escolaridade do falante. 1182 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 No total, foram analisadas 139 gravações: 105 em contexto privado (34 conversações, 36 monólogos e 35 diálogos) e 34 em contexto público (09 conversações, 14 monólogos e 11 diálogos). Nesses áudios, há 759 ocorrências do verbo querer. Desse número, destacamos os 55 usos do auxiliar em primeira pessoa que disparam implicatura de futuridade, atuando como perífrase de futuro nesses casos. Como tratar de implicaturas fora do contexto da conversação pode ser muito subjetivo, optamos pelos enunciados onde havia evidências, dentro do mesmo dado analisado, de como o interlocutor interpretou as implicaturas pretendidas pelo falante. Assim, foi possível observar a resposta do interlocutor diante do enunciado e se o significado implicado na proposição foi compreendido. Muitas ocorrências certamente ficaram de fora ao definirmos essa condição, mas distanciado das interações gravadas, o olhar do analista não pode captar outras pistas extralinguísticas para a interpretação, como gestualidade, contexto mais amplo, relações interpessoais e nível de conhecimento compartilhado. Portanto, dentro das limitações descritas, elencamos apenas as gravações que nos fornecem elementos suficientes para calcularmos implicaturas de futuridade possíveis. Nosso intuito foi olhar para as ocorrências, as pistas linguísticas e comunicativas e descrever quais são os contextos em que querer dispara a implicatura de temporalidade. Para essa análise, destacamos os seguintes fatores: • • • • • • • • • • Tipologia interacional: conversa, diálogo ou monólogo; Ambiente de interação: público ou familiar/privado; Querer: verbo pleno ou auxiliar; Papel temático do sujeito: agente, experienciador, paciente; Tempo: determinado ou indeterminado; Presença/ausência de marcas de futuridade fora do verbo: verbos conjugados no mesmo turno de fala e advérbios; Projeção de futuridade (OLIVEIRA, 2006): futuro próximo, distante ou indefinido; Inferências a partir dos enunciados: acarretamento e implicatura; Tipos de verbos principais: regulares e irregulares; Usos com valor mais aspectual e mais modal. 1183 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Nos casos em que tivemos dúvidas quanto à possibilidade da implicatura no contexto da conversação examinada, foi feito o seguinte “teste”: trocar querer por ir (como verbo auxiliar na perífrase de futuro). Não havendo perda de sentido de futuridade, o uso de querer foi considerado possibilidade de futuro perifrástico, disparando implicatura de temporalidade, consequentemente. A seguir, na seção de discussão dos resultados, trazemos alguns recortes dos dados analisados. Os excertos não são apresentados nos moldes de transcrição do C-ORAL-BRASIL I, mas foram adaptados para a modalidade escrita da língua portuguesa para que pudessem ser acomodados neste trabalho da melhor maneira. Anotações sobre prosódia e outros elementos observados na transcrição original podem ser consultados diretamente nos arquivos organizados no corpus. 6 Discussão dos resultados Nosso objetivo foi levantar o número de ocorrências do verbo querer em primeira pessoa e verificar as proposições nas quais a implicatura de futuro pode ser claramente inferida. Foram analisados todos os dados do corpus: 46 diálogos, 50 monólogos e 43 conversas, totalizando 139 gravações de, aproximadamente, 10 minutos cada. Querer foi utilizado 759 vezes em todas as gravações e é o 14º verbo mais frequente no corpus, aparecendo como verbo pleno (Quero a caneta azul), como verbo auxiliar (Quero fazer um mestrado em educação) e em expressões (Ela é de Uberlândia. Quer dizer, eu acho que é). Conforme apontamos anteriormente, nosso estudo observou apenas os usos em primeira pessoa, que somam 31,6% do total dos registros (240). Na maioria dos usos destacados, vemos que o verbo atua como auxiliar, como ilustra a Tabela 1: TABELA 1 – Usos do verbo querer em primeira pessoa (singular e plural) nas gravações em contexto público e privado Diálogos P1 P4 Total Conversas Monólogos Verbo pleno Auxiliar Verbo pleno Auxiliar Verbo pleno Auxiliar 39 - 42 04 25 - 60 04 18 02 39 07 85 89 66 1184 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Dentre as ocorrências analisadas, que totalizam 156, nem todas disparam a implicatura explorada aqui. Na Tabela 2, vemos que pouco mais de um terço dos usos como verbo auxiliar em primeira pessoa foi contabilizado em nossa pesquisa, pois foram essas 55 ocorrências que tiveram implicaturas de futuridade claramente inferidas. TABELA 2 – Total de usos do verbo como auxiliar, em primeira pessoa (singular e plural), e quantidade de vezes em que houve gatilho para implicatura de futuridade Auxiliar P1 P2 Total 141 15 156 Uso disparando implicatura 52 03 55 Lembramos que foram destacados apenas os usos em que é possível – pela realização da ação mencionada no verbo principal durante o tempo de gravação ou pela resposta do interlocutor – confirmar a inferência por implicatura. Para ilustrar os dados considerados como usos que disparam implicaturas, abaixo trazemos uma análise mais detalhada de um recorte do áudio bfamdl23, do C-ORAL-BRASIL I, de um diálogo em contexto familiar/privado, em que duas pessoas estão conversando e pelo menos uma delas está jogando no computador durante o tempo da gravação: BAR: Eu já passei todos meus itens. Tô tentando falar com esse cara aqui que tá online na minha lista de amigos. Mas ele tá em outra cidade, então não tem como eu ir pra lá, porque, se for pra lá, eu vou gastar dinheiro, sabe? Eu quero passar meu dinheiro pra alguém que pelo menos esteja aqui, porque todos meus personagens estão nessa cidade, pra que eu possa, tipo, passe pra alguém que esteja nessa cidade, entro com outro personagem e esse cara passa pra minha personagem, entendeu? Então, não vale a pena eu ir pra outra cidade. [...] JAN: Mas que missão que cê tem que fazer nesse jogo? BAR: Ah... é tipo assim... Calma que eu vou... Olha, eu sou, no caso, a personagem que eu quero jogar aqui eu sou uma maga. Então eu tenho que evoluir essa maga porque eu quero virar Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1185 bruxa. Então eu tenho que jogar, matar monstro pra ganhar experiência até eu poder virar bruxa. No caso eu posso virar bruxa com level quarenta, mas eu vou virar com level cinquenta pra eu ganhar o máximo de pontos de habilidades. Eu distribuir entre as minhas habilidades... Então eu tenho que evoluir, comprar equipamentos melhores, ganhar dinheiro, etc. Vemos nesse trecho um contexto todo modalizado, um conjunto harmônico que permite o uso e a interpretação do modal querer como marca de futuro. Cada ocorrência analisada dá pistas para interpretar quando a atitude do falante revela mais predição ou mais intenção. “Quero jogar” é menos irrealis (expressão de aspecto iminencial) que “quero virar” e “quero passar” (expressão de volição), e vem seguido de “eu sou”, indicando tempo presente. No decorrer do diálogo, percebemos, a partir de sons captados pelo microfone do gravador (que indicam uso de teclado e mouse e a inicialização do jogo), que BAR iniciou o jogo durante o momento de fala (MF), confirmando a possível implicatura: “BAR está prestes a iniciar o jogo no momento em que fala”, já que podemos inferir que “aqui” é uma referência ao momento da conversação (Figura 3). Na escala de futuro de desejo, essa proposição estaria mais próxima à predição que ao desejo. FIGURA 3 – Sequência em que ME (quero jogar) é imediatamente posterior ao Momento de Referência (MR) (aqui), que coincide com MF (eu sou) Já “quero virar” vem precedido que “tenho que evoluir”, com modalidade deôntica marcada pela estrutura ter que + verbo (mais irrealis). Após enunciar a proposição, BAR lista uma série de requisitos, ações futuras, que devem ser cumpridos para que se alcance a intenção expressada. Novamente, como ilustra a Figura 4, o momento do evento (ME) é posterior ao momento de fala (MF). 1186 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 FIGURA 4 – Sequência em que ME (virar bruxa) é posterior a MR (tenho que evoluir) A partir desse exemplo, destacamos que, assim como as demais categorias que envolvem o complexo domínio funcional TAM, o aspecto não é marcado apenas pelo valor inerente do verbo. O mesmo verbo pode assumir diferentes valores aspectuais conforme seu contexto de uso, o que foi comprovado em nossa observação. Evidenciamos, dentro da análise aspectual, usos em que o verbo principal acompanhado pelo auxiliar querer é uma ação projetada para ocorrer em um futuro imediato, muito próximo ao momento da fala. Então, na interpretação de futuridade gerada pela implicatura, falante e ouvinte vão da modalidade, na expressão de um estado do falante (querer, ter intenção), passam pelo aspecto iminencial (a partir dessa intenção alguma coisa ocorrerá) e chegam à temporalidade (contexto de futuro, onde a ação se realizará). Dos 55 usos que geram inferência e que foram considerados em nossa investigação, o aspecto iminencial possui destaque em 40% dos casos. Mesmo não sendo maioria, nas sentenças em que o aspecto iminencial foi observado, essa marca veio acompanhada do alto grau de comprometimento do falante frente à proposição, resultando em enunciados menos irrealis. Para ilustrar essa conclusão, salientamos o seguinte recorte, do áudio bfamdl34, de conversa em contexto familiar, em que o falante anuncia sua próxima jogada, enquanto os interlocutores jogam damas durante o tempo de gravação: HEL: Deixa eu pensar uma coisa aqui. Calma... Vou fazer isso mesmo. Fazer isso, que eu quero comer a rainha. Ela tá com a rainha minha, eu quero comer uma rainha dela. HEL: Sem rainha! CAS: Pera aí! Cê tava aqui. HEL: É. Eu posso comer. Eu posso usar a minha torre, né? Ela anda assim: horizontal, vertical. CAS: É. HEL: Aí eu fui lá e comi sua rainha. CAS: Ah, certo! Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1187 Nos usos de “quero comer”, não apenas há expressão da intenção de HEL, como, no próprio tempo da enunciação, há seu engajamento enquanto agente: o falante projeta sua ação de mudança para um tempo posterior imediato. Nesse exemplo, temos, com a característica aspectual, a modalidade, no grau de comprometimento do falante diante da proposição. Em casos como esse, o desenrolar do ME é imediato e o falante (e apenas ele) é o responsável pela realização da ação descrita. Já em relação à flexão de tempo dos verbos analisados, o uso mais frequente dentre os casos de implicatura foi do verbo auxiliar conjugado no presente do indicativo (eu quero e a gente quer). O verbo principal mais frequente nos recortes destacados em nossa pesquisa foi fazer, totalizando 20%. O tipo de verbo principal não se mostrou um fator relevante para os usos em primeira pessoa de querer como auxiliar, inclusive nos usos que disparam implicatura. Em contrapartida, o papel temático do sujeito, outro fator considerado em análise, se mostrou propício para interpretação de implicatura de futuridade. Observamos apenas sujeitos experienciadores e agentes, o que já era esperado por destacarmos apenas ocorrências em primeira pessoa. A grande maioria (87%) das implicaturas é inferida a partir de contextos em que o sujeito do verbo, além de enunciador, é agente da ação mencionada na proposição. Por ser agente, responsável por desencadear a ação indicada no verbo principal, a significação típica de volição ou intenção de querer perde espaço para a interpretação de implicatura de futuridade (posição de predição), onde, novamente, há maior comprometimento por parte do falante. No exemplo a seguir, retirado do áudio bpubdl01, dois falantes conversam e seu ambiente é uma obra em andamento. O falante PAU é o responsável pela construção de um muro e utiliza quero chegar e quero deixar permitindo que seu interlocutor compreenda que “chegar” e “deixar” se referem à conclusão do evento da obra, momento localizado em tempo posterior ao momento de fala. A partir de usos como esses, chegamos às nossas conclusões sobre a influência desempenhada pelo papel temático do sujeito na interpretação de futuridade: ROG: Esse aqui vai ficar mais alto um pouquinho, né? Ou não? PAU: Capaz... ROG: Uhm. PAU: Depende do barranco lá, e lá eu quero chegar com ele até a divisa com o Paulo. Isso até aquele murinho lá, sabe como? 1188 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 ROG: Sei. [...] PAU: Ah, tem um outro lugar aqui que vai gastar muita pedra também. Aqui ó, no piso. ROG: É, uai! PAU: Aquela passagem lá eu quero deixar marcada também, sabe? Tô achando que eu vou fazer ela com um metro. Acho que com um metro e vinte ela fica boa, né? Além desse, outros fatores que influenciam a inferência por implicatura são a projeção de futuridade e a delimitação do tempo. Em 15 ocorrências (27% do total) o tempo de referência era indeterminado, com projeção de futuridade mais irrealis, sem nenhuma pista que informasse se a ação ocorreria mais próxima ou mais distante do momento da fala. Um caso como esse é ilustrado pelo trecho do áudio bfammn17, transcrito abaixo: HBF: Aí uma vez eu, vendo o restaurante lá, falei assim: “um dia eu vou vim aqui nesse restaurante, mas eu quero subir esse morro a pé!” Tem estrada pra carro e tudo mais, vai fazendo as voltas e tal e a gente chega lá no alto. E a Hortênsia tinha menos de quatro anos. O lance era fazer a Hortênsia subir o morro com menos de quatro anos. A Marina tinha uns dez anos e a Cíntia devia de ter doze. Aí eu fiz essa vontade, sabe? Fiz essa vontade. Aí peguei, deixei o carro no pé do morro e fui subindo, né?! E pra poder subir e fazer essas meninas... não podia dar colo pra Hortênsia, nem pra Marina, né? A Cíntia não ia pedir colo mesmo, né? Mas nem eu, nem a Cíntia não íamos aguentar subir o morro carregando criança, né? Tive que ter uma conversa danada pra empurrar essas três morro acima, pra chegar até lá no alto. Aí a gente almoçou, depois do almoço descansamos bastante. Também situado num contexto de tempo indeterminado, o trecho do áudio bfammn23, de um relato de MEL sobre sua experiência profissional, difere do excerto acima, pois menciona um fato (dar aula) e o localiza em um momento posterior à sua fala, sem que saibamos se esse fato ocorreu realmente no mundo. Entretanto, mais adiante, MEL utiliza como alternativa para atingir seus propósitos comunicativos a forma perifrástica já gramaticalizada de marcação de futuro: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1189 MEL: E vai ter uma aula, eu quero dar uma aula também sobre a sala de aula, né? Pra eles aprender a falar “caderno”, “livro”, “borracha”, “lápis”, “caneta”, outras coisas igual “levantar a mão”, “escrever”, “ler”... A gente vai dar uma aula sobre isso também. Casos como esse, em que há marcas temporais em outros itens da sentença (fora da forma verbal analisada), somam 40 ocorrências (73%). As ações indicadas nos verbos principais ocorreram num futuro próximo do momento da fala em 33 (60%) orações e num futuro mais distante em 07 (13%). Nesses casos, temos ainda modalidade irrealis, mas com maior grau de certeza. Por fim, apresentamos os dados que contêm outras marcas de futuridade, além da flexão do verbo auxiliar. Contabilizamos outros verbos conjugados no mesmo turno de fala, advérbios e demais referências que influenciam a interpretação de predição por implicatura. Um exemplo é retirado da gravação bpubcv09, de uma conversação entre instrutor e aluno, em uma academia de ginástica, em que, assim como no último trecho que apresentamos, o falante MAR utiliza quero fazer e substitui essa forma por vai fazer. Essa reformulação provavelmente decorreu da resposta de MRC, que, ciente da implicatura de que a ação “fazer doze repetições do exercício e não mais” seria realizada por MAR no momento seguido de sua fala, cancelou essa inferência utilizando a forma gramaticalizada ir + infinitivo. Esse movimento interpretativo foi semelhante ao que apresentamos em (2), (3) e (4) anteriormente. MAR: Ô, é sério! Eu quero fazer doze só. MRC: Ocê quer, mas vai fazer vinte! MAR: Não, vou fazer doze! MRC: Não existe “doze” no meu vocabulário. MAR: Ah! Cê acabou de falar! MRC: Então faz doze ao contrário: vinte e um. MAR: Não! MRC: Doze vezes dois: vinte e quatro. MAR: Não! Vou fazer doze. Todos os enunciados que nos permitem inferir futuridade por implicatura, disparada por querer + infinitivo, estão inseridos em um contexto harmônico. Os elementos linguísticos que constituem os contextos favoráveis para a significação que investigamos são, principalmente, verbos próximos do enunciado conjugados no futuro 1190 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 (25 do total) e no presente (12 do total) (em muitos casos de marcação de tempo futuro, como em “Isso eu faço amanhã”) e advérbios (já, então, aí...) (15 do total). Os advérbios que mais foram frequentes nos casos de inferência de futuridade foram “aí” e “daí”, seguidos de “então”, “já” e “agora”. Tais advérbios contribuem para interpretarmos valores aspectuais e, consequentemente, temporais nos enunciados que os carregam. 7 Considerações finais A partir das análises dos dados, podemos sugerir que utilizamos formas mais complexas, como as perífrases, provavelmente porque as formas simples para significar determinado conceito não são tão expressivas. Na marcação de futuro em PB, vemos que as formas perifrásticas carregam, além do sentido do verbo principal, o valor do verbo auxiliar, e, por isso, podem ser consideradas mais significativas para certos fins. Nossos resultados vão ao encontro dos apontados nos estudos de Gibbon (2000) e Oliveira (2006) sobre futuro perifrástico com ir + infinitivo. As autoras já haviam apontado para a preferência de usos perifrásticos, principalmente quando o sujeito é agente ou experienciador (OLIVEIRA; OLINDA, 2008, p. 114). É a polissemia do verbo ir (movimento no espaço e no tempo) que desencadeia uma mudança semântica, fonte da gramaticalização desse verbo como auxiliar que exprime futuridade (OLIVEIRA; OLINDA, 2008). A polissemia de querer também é responsável pela possibilidade desse item funcionar como auxiliar nessa marcação temporal: quando querer exprime um desejo, trata-se de um enunciado expressivo; quando exprime intenção, é uma predição. Nos dados analisados, as implicaturas decorrentes da expressão de volição veiculadas pelo verbo auxiliar querer levam a uma interpretação de tempo futuro, principalmente porque uma das origens do futuro (tempo verbal) é derivada de noções como desejo e intenção. Porque essa inferência está no plano do não dito, utilizar querer para marcar futuro indica pouco comprometimento por parte do falante em alguns casos – pois, dentro de uma escala, ele opta por utilizar a forma mais “fraca”, que não acarreta a mais “forte”. Entretanto, quando a realização da ação descrita no verbo principal depende do Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 1191 falante enquanto agente, temos alto comprometimento, trazendo uma intepretação como “essa ação acontecerá porque essa é minha vontade enquanto agente”. Querer + infinitivo, em usos em primeira pessoa, pode denotar que a ação descrita no verbo principal é um desejo ou que ela será desenvolvida após o momento de fala, num ato comissivo, por exemplo. Palmer (1986, p.116) chama atenção para o fato de marcadores de futuro, em geral, serem interpretados como promessas, mas seria melhor considerá-los como significado indireto ou derivado desse uso. A maioria dos casos em que destacamos implicaturas se encaixa em atos comissivos, mas usos de querer envolvem também atos expressivos, quando é descrita uma intenção como um estado. Verbo inerentemente irrealis, querer agrega valores temporais e aspectuais às sentenças em que dispara implicatura de predição. Usos com ação iminente, sujeito agente, acompanhado de marcas temporais como advérbios ou outros verbos conjugados têm o contexto em que querer serve para marcar evento futuro, além de significar que o desenrolar desse evento é desejado pelo falante. O uso desse verbo como auxiliar em perífrase de futuro em português brasileiro coocorre com outras formas temporais, pois expressa uma nuance específica de significado de intenção, não marcada nas outras formas de futuro. Vale ressaltar aqui que a marca do aspecto, particularmente do iminencial, é um ponto anterior à marcação do futuro. Quando há atuação do aspecto, interpretamos o enunciado com maior marca de tempo do que modalidade. Ou seja, diante de aspecto iminencial, a interpretação temporal é favorecida e a expressiva é menos considerada. Destacamos que o baixo número de ocorrências não nos diz muita coisa sobre um possível processo de mudança ou revela algum estágio de gramaticalização. Entretanto, a possibilidade de uma interpretação recorrente em diversos contextos é o que destacamos, mais do que a quantidade dessas inferências dentro de um corpus. Ressaltamos que quantificar dados de inferências como implicaturas pode ser problemático, já que, enquanto analistas, estamos distantes do contexto em que a forma investigada foi utilizada. Nossa interpretação, apesar de pautada em uma série de critérios, é artificializada. No uso efetivo, na interação face a face, muitos fatores são elencados para compor a significação, tantos que não conseguimos recuperar em dados gravados. 1192 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1167-1194, jul./set. 2019 Finalmente, defendemos que as respostas encontradas nesta investigação podem servir como ponto de partida para outros trabalhos, principalmente sobre o valor modal de querer enquanto verbo auxiliar e a marcação de futuro de desejo em português brasileiro. Outras questões e outras respostas podem surgir numa abordagem mais filosófica dos conceitos de desejo e intenção. Do mesmo modo, o estudo aprofundado sobre implicaturas, contexto e atos de fala certamente poderá esclarecer pontos que tenham ficado vagos. Referências AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BITTENCOURT, D. L. R. O domínio funcional do futuro do subjuntivo: entre temporalidade e modalidade. 2014. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014. BYBEE, J. L.; PAGLIUCA, W.; PERKINS, R. D. Back to the Future. In: TRAUGOTT, E. C.; HEINE, B. (Ed.). Approaches to Grammaticalization. Filadélfia: John Benjamins Publishing Company, 1991. p.17-58. v. 2: Focus on Theoretical and Methodological Issues. DOI: https://doi. org/10.1075/tsl.19.2.04byb BYBEE, J. L.; PAGLIUCA, W.; PERKINS, R. D. The Evolution of Grammar: Tense, Aspect, and Modality in the Languages of the World. Chicago: The University Chicago Press, 1994. CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. COMRIE. B. 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Para tal finalidade, são considerados os aspectos sintáticos, semânticos, e pragmático-discursivos desses enunciados. Palmer (2001), Bybee (1995), Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), Furtado da Cunha e Souza (2011), dentre outros, dão suporte ao estudo. Dentre os itens que expressavam modalidade, quanto ao tipo de modalidade, identificamos 50,9% de modalidade orientada para o agente e 49,4% orientada para o falante. No que concerne ao valor, 59,5% de obrigação foram revelados nos dois tipos de modalidade supracitados. Por fim, o estudo contribui para a construção do mapeamento dos sentidos ligados à modalidade em diversos contextos de uso na peça teatral. Palavras-chave: modalidade deôntica; uso; sentidos. Abstract: In order to understand language under a textual discursive perspective, the paper aims at investigating the category of deontic modality in two specific contexts: the characters’ dialogues and opening and closing statements of the scenes within the play The glass ménagerie, dialogues whose focus is on the construction of meanings in the generation of the dominating characters. For this purpose, syntactic, semantic, and pragmatic-discursive aspects of such statements will be considered. Palmer (2001), Bybee (1995), Bybee, Perkins and Pagliuca (1994), Furtado da Cunha and Souza (2011), among others, give support to the study. Among the items that expressed modality, as to the type of modality, we identified 50,9% of agent-oriented modality and 49,4% of speaker-oriented. Concerning value, 59,5% of obligation was revealed in the two types eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1195-1231 1196 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 of modality above mentioned. At last, the study contributes to the mapping of meanings associated with modality in the various contexts of use in the play. Keywords: deontic modality; use; meanings. Recebido em 12 de outubro de 2018 Aceito em 15 de janeiro de 2019 Introdução O presente artigo desenvolveu-se a partir da maturação dos estudos de pós-doutoramento na linha dos Estudos da Língua em Uso no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Minas Gerais1 e de reflexões anteriormente iniciadas, dentro do Grupo de Estudo em Modalidade Deôntica – GEMD/CNPq, este, coordenado pela autora deste artigo. Assim, apoiados nos estudos e reflexões anteriormente citados, o artigo tem por objetivo discutir fenômenos relacionados à língua em uso em contextos de interpretação deôntica. A fim de atingir nosso objetivo e, uma vez que consideramos “a língua [...] como meio de interação social” (HEGENVELD, 1988, p. 229), entendemos que um dos gêneros que constituem um lugar propício para que a linguagem possa se apresentar como atividade sócio-cultural é o gênero peça teatral, que tem como característica o fato de ser escrito para ser falado. Por gênero, compreende-se “uma categoria estabelecida socialmente caracterizada em termos de ocorrência de uso, fonte e propósito comunicativo ou qualquer combinação deles”2 (HOUSE, 1997, p. 107). Nesse contexto, e, entendendo que um estudo que se volte para o discurso possa levar ao melhor entendimento do uso da língua, 1 Estudo desenvolvido sob a supervisão da Profa. Dra. Adriana Maria Tenuta de Azevedo do programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG durante o pós-doutoramento entre março de 2018 e fevereiro de 2019. 2 (...) Genre is a socially established category characterized in terms of occurrence of use, source and a communicative purpose or any combination of these. (HOUSE, 1997, p. 107). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1197 destacamos Furtado da Cunha e Souza (2011, p. 23): “Estudar a língua sob a perspectiva discursivo-textual permite, assim que a gramática seja flagrada em seu funcionamento, evidenciando que ela é a própria língua em uso”. Diante do exposto, discutiremos inicialmente os contextos de uso, voltando-nos para as funções modais nas categorias orientadas para o agente e orientadas para o falante, a partir de Bybee, Perkins e Pagliuca (1994). Tais funções concentram-se em: função modal de procedimento, função modal imperativa ou diretiva, função modal de instrução, função modal permissiva, função modal proibitiva, função modal concessiva, função modal de habilidade, dentre outras, tendo sido encontradas em contexto real de uso na peça teatral The glass ménagerie de Tennessee Williams. Em seguida, temos como enfoque as categorias orientadas para o agente e orientadas para o falante, tendo em vista as funções modais. 1 Função modal Com o propósito de estudar diferentes usos e sentidos da modalidade em enunciados e contextos de língua inglesa, discutimos algumas contribuições a partir de pesquisas de vertente funcionalista. As contribuições aqui apontadas giram em torno da função modal nas categorias orientadas para o agente e orientadas para o falante, destacadas por Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) para a classificação da modalidade. Cabe salientar que tais autores também consideram em sua perspectiva de análise da modalidade os tipos epistêmico e subordinado. Contudo, estas não farão parte do recorte escolhido para o estudo da peça teatral. É nosso interesse a construção de sentidos que carregam na sua semântica o componente “obrigação”. Nesse sentido, propomos procedimentos de análise de base funcionalista para o tratamento da gramática em texto escrito para ser falado, como é o caso do corpus escolhido para esse fim, a peça teatral. Dessa forma, torna-se relevante entender primeiramente como ocorre o estabelecimento das funções modais em seus contextos de uso. Ilustraremos nossa análise com elementos do corpus composto por excertos da peça teatral The glass ménagerie, de Tennessee Williams, e nos concentraremos, por ora, na categoria modalidade orientada para o agente e para o falante, tentando compreender a função modal em cada tipo. 1198 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 Segundo Shaffer, Jarque e Wilcox (2011), a modalidade orientada para o agente doravante (OA) expressa que um agente é orientado a fazer algo. Por exemplo, quando dizemos a um interlocutor que ele deve respeitar seu pai, orientamos esse interlocutor a agir de uma determinada maneira. Por outro lado, a modalidade orientada para o falante doravante (OF) implica em alguém capacitar ou habilitar um outro a fazer algo, criando condições do tipo imperativas e diretivas para que algo se realize por outro. Nesse caso, quando dizemos: Saia!, estamos dando uma ordem direta portanto, sendo impositivos. De acordo com Nogueira (2011, p. 65) apoiada em Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), em se tratando da modalidade orientada para o agente, esta [...] “anuncia a existência de condições internas e externas sobre o agente com relação ao complemento da ação expressa no predicado principal”. Assim, no que diz respeito à modalidade orientada para o agente, algumas noções semanticamente mais específicas estão associadas a obrigação, habilidade e desejo. É importante também destacar que o conhecimento das categorias OA (atos que orientam ou promovem uma conduta) e OF (atos que influenciam o outro), bem como de suas funções se faz necessário para o desenvolvimento de ações no que diz respeito ao tratamento da gramática, auxiliando profissionais da área do ensino de língua estrangeira, em particular de inglês. Assim, a fim de entendermos a ideia contida na função modal que se apresenta na categoria modalidade, definiremos o termo função modal. Por função modal entendemos as circunstâncias de uso que compreendem obrigações e deveres. Tais obrigações e/ou deveres estão intimamente ligadas a obrigações do tipo interna ou externa. A obrigação interna diz respeito a obrigações que alguém tem consigo mesmo, aquelas ditadas pela consciência. Já as obrigações externas se atrelam a obrigações oriundas de uma instituição, por exemplo, que ditam regras externas a nós. Dessa forma, quando alguém se compromete a encontrar um outro, este se vê obrigado por um comprometimento que sua consciência lhe impõe. Para tal pessoa, é preciso se fazer presente ao encontro, uma vez que se comprometeu, ou seja; a pessoa se vê obrigada a não se atrasar mantendo o compromisso assumido. Por outro lado, se alguém trabalha, e sua empresa determina que o funcionário tem que iniciar o trabalho às 7:30, já estamos diante de uma obrigação externa ditada pelas normas da empresa. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1199 Entendido o que envolve as obrigações interna e externa, e as funções modais, passemos a alguns casos elucidativos para entendermos as categorias orientadas para o agente (OA) e orientadas para o falante (OF), encontradas em contextos de interpretação deôntica, e as funções envolvidas em tais categorias. Contudo, inicialmente, vislumbramos os materiais e os métodos para o estudo. 2 Procedimentos A fim de compreender as funções e/ou valores (sentidos) inseridos em excertos de interpretação deôntica, caracterizaremos primeiramente a peça The glass ménagerie. Na sequência, trataremos dos procedimentos metodológicos. A peça se desenrola na casa de Amanda Wingfield, uma mulher que foi abandonada pelo marido e que se mantém presa ao passado, conduzindo a vida dos filhos à moda antiga, de maneira que seu maior objetivo é ver a filha, Laura, casada. Laura é aleijada, muito frágil e muito tímida. Tal condição preocupa muito a Sra. Wingfield. Assim, a fim de atingir seu objetivo, Amanda exige do filho Tom que continue com o trabalho em um depósito de sapatos, seja sempre responsável pelas despesas da casa, e que arranje um pretendente para a irmã. Sufocado pelas pressões da mãe, Tom se volta para idas ao cinema e encontra refúgio também na bebida. Por fim, Tom convida o amigo Jim para jantar. Para surpresa de Laura, Jim era um colega da escola por quem Laura foi e ainda é apaixonada. Durante o jantar, Jim tenta fazer Laura parar de se enxergar como alguém inferior e enfrentar a realidade. Laura tem uma coleção de animais de vidro, dos quais o preferido é um unicórnio, um símbolo de fragilidade na obra. Jim acaba por separar Laura desse mundo de cristal, quando quebra o animal de vidro, preferido de Laura. Na sequência, Jim acaba por revelar que está noivo. Entendido o contexto, passemos aos procedimentos para o desenvolvimento do estudo. Em virtude de tratar-se de uma investigação de base funcionalista, que prioriza a linguagem em uso, a pesquisa se volta para a análise de dados que se dão em contexto real. Tendo em vista que a peça teatral é escrita para ser falada, nosso objetivo é investigar como a modalidade colabora na construção dos personagens na argumentação no discurso, no desenrolar do caráter dominador e no ambiente de imposições dentro da peça. 1200 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 A escolha da peça se deu por três motivos essenciais, quais sejam: a) por conter diálogos que se desenrolam em seio familiar e, por isso, os diálogos seriam mais espontâneos, b) por ser o texto escrito para ser falada, portanto, encenada e c) por conter elementos que, de fato, ocorreram na vida do autor, o que aproxima a peça da realidade. Cabe destacar que o contexto espontâneo aqui adotado, é entendido a partir de Vallès (2014, p. 48-50). Seguindo as categorias de House (1997), o autor analisa em sua versão original, a série televisiva “Os simpsons”, e aponta como espontâneo a característica de ser informal, não técnico. Assim, podemos dizer que, a peça e a série se assemelham, entre outros aspectos, quanto ao registro.3 Em particular, quanto ao modo ou número de interlocutores (monólogo, diálogo), a peça e a série são ambas escritas para serem faladas pelos personagens. Também, consideramos com base em Gregory e Caroll (1978, p. 47 apud HATIM; MASON, 1990, p. 49), que um texto pode ser escrito para ser falado como se não fosse escrito. Dessa forma, peça e série se tornam veículos para expressão da intenção comunicativa. E, como tal, estimulam a vida real. Assim sendo, e tendo em mente o que diz Vallès (2014, p. 48), a linguagem espontânea é encontrada nas atividades diárias e nas interações sociais dos personagens. Retomando os instrumentos da pesquisa, procedemos à seleção da obra e, consequentemente, dos excertos que continham modalizadores deônticos. Após selecionarmos os excertos, passamos para a etapa de análise dos valores deônticos. Nesse momento, categorizamos a manifestação deôntica (verbos plenos, auxiliar, substantivo, adjetivo em posição predicativa). Posteriormente, categorizamos os modos e a inclusão ou não do enunciador e classificamos as marcas da asseveração e atenuação. Por fim, geramos gráficos e discutimos os resultados. Cabe salientar que optamos por analisar os excertos qualificados exclusivamente por meio de itens lexicais e gramaticais. Contudo, as estratégias de mitigação/atenuação e asseveração da força ilocucionária que se manifestam por outros meios foram consideradas na análise qualitativa. 3 Nosso foco diz respeito ao entendimento de textos no original, seguindo as categorias apontadas por House (2001, p. 247-249), a partir de Halliday e Martin (1993), no que diz respeito ao registro, que se divide em campo (field), relações (tenor) e modo (mode). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1201 Com o intuito de atingir nosso objetivo, procedemos à análise qualitativa e quantitativa da manifestação da modalidade deôntica nos excertos extraídos e por meio da caracterização das ocorrências encontradas. Foram analisados 259 enunciados com marcas deônticas; ou seja, que de alguma maneira, estabelecem relação com o grau de imposição e orientação de conduta, presentes nos diálogos e nos enunciados de abertura e fechamento da peça teatral. Apresentamos, a seguir, uma síntese dos procedimentos metodológicos adotados: a) b) c) d) constituição do corpus de ocorrência dos diferentes usos da modalidade deôntica na peça teatral The glass ménagerie; caracterização dos diferentes usos da modalidade deôntica por meio da aplicação das categorias de análises discutidas a partir da fundamentação teórica; descrição e explicação do uso dos modalizadores deônticos nos excertos extraídos dos enunciados dos personagens e dos enunciados das cenas de abertura e fechamento da peça; verificação de frequência de uso dos modalizadores deônticos, por meio do programa computacional excel. A fim de que pudéssemos empreender a análise quantitativa da modalidade deôntica, optamos por usar o programa excel. Nele, inserimos os excertos, a partir dos quais foram gerados os cálculos percentuais de frequência pelo programa. No intuito de analisar em que medida a modalidade deôntica está a serviço da construção de sentidos na geração do caráter dominador e/ ou de imposições dos personagens e na abertura e fechamento das cenas, cada variável recebeu uma codificação distribuída da seguinte forma: Quanto ao tipo de modalidade (modal.): (OA, OF). Quanto à manifestação da modalidade (manif.): (verbo lex., aux., adj., subst.) Quanto às condições semiológicas por meio dos valores deônticos (valor): obrigação, ordem, proibição, permissão, volição, habilidade e exortação. 1202 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 Quanto ao tipo de fonte (fonte): (Amanda, Tom, Laura, Jim). Quanto ao alvo deôntico (alvo): (Amanda, Tom, Laura, Jim). Quanto ao distanciamento do falante (dist. fal.): inclusão, não inclusão). Quanto às marcas de asseveração e atenuação (marcas): (aten. assev.). Em se tratando das categorias de análise, foram considerados os aspectos sintáticos, semânticos e pragmático-discursivos de forma integrada. Assim, no que diz respeito aos aspectos de caráter semântico, consideramos os valores de obrigação, proibição e permissão. No que diz respeito ao tipo de fonte, foi considerado o papel das fontes deônticas em contexto de diálogos espontâneos por meio das fontes Amanda, Tom, Laura e Jim, no gênero peça teatral. Já no que compete ao tipo de alvo, Amanda, Tom e Laura foram investigados para nosso propósito. Quanto aos aspectos pragmático-discursivos, concentramonos nas marcas de asseveração e de atenuação da força ilocucionária para o entendimento do reforço ou da mitigação empregados pelas fontes na peça. Por fim, a constituição do corpus se deu mediante o agrupamento dos excertos extraídos de sete cenas da peça que tinham como característica a presença de modalizadores deônticos. 3 Categoria OA e OF com função modal diretiva Nesta seção, explicitamos alguns excertos da categoria OA e OF, levando em conta o contexto de uso. Salientamos que na peça os casos de modalidade orientada para o agente perfizeram 50,9%, enquanto que a modalidade orientada para o falante se deu em 49,4% das ocorrências que envolveram obrigações. Por esse motivo, voltamos nosso olhar para o entendimento de tais casos. É importante destacar que os excertos objeto de nosso estudo são aqueles que se dão exclusivamente no original4, haja vista que não tratamos aqui de análise contrastiva. Também o contexto de situação em que ocorrem os excertos no original, em associações com termos essenciais que se apresentam em seu entorno, é dado antes mesmo de cada ilustração, sendo possível a compreensão dos excertos do inglês. Todos os exemplos contidos no artigo são da peça The glass ménagerie de Tennessee Williams (1973). 4 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1203 Na sequência, os exemplos em português5 foram igualmente fornecidos como forma de funcionar como mais um reforço a tal entendimento. Assim, passemos aos seguintes contextos. No excerto (01), a seguir, uma observação que podemos apontar por meio da fala de Amanda, a mãe, é que a modalidade orientada para o agente está presente. No contexto em questão, a conversa entre Amanda e Laura é enriquecida com a presença da segunda pessoa “você” (you) e a forma do modo imperativo “continue” (go in front). O advérbio de negação “não” (no), que aparece no início da fala de Amanda, reforça que recai sobre o outro (Laura) a obrigação em continuar com os estudos e com a atividade de datilografia. Destacamos aqui a diferença no status social de alguém que acaba por moldar o outro com quem interage, ponto já ressaltado por MacCullum-Baylssi’s (1988, p. 70). Nesse sentido, e considerando o contexto apresentado, o falante não deixa opção ao ouvinte, a não ser o de se direcionar pelo curso imposto pela conversa. Dessa forma, o que ocorre é que, pela condição do status do falante que se encontra em posição superior, se cria para o ouvinte algo mais forte interpretado como ordem. É por meio desse mecanismo que a mãe Amanda tenta garantir que a filha Laura faça o que é solicitado. Assim, Laura deve continuar seu curso de datilografia ou deve optar por outra alternativa: “ou deve praticar um pouco sua taquigrafia” (or practice your shorthand a little). Consequentemente, o pronome “você” (you) interliga o que dita as duas ações para Laura, apresentando modalidade orientada para o agente com função modal diretiva. Em tal contexto, o falante exerce controle sobre o ouvinte, exercitando autoridade sobre este. Assim, Amanda vai mostrando a atitude que deve ser tomada pela filha. Quanto ao tipo de obrigação, em (01), encontramos a obrigação externa, já que envolve um comando da mãe que impõe as condições para a filha. (01) A: No dear, you go in front and study your typewriter chart. Or practice your shorthand a little. […]. (p. 239). (A: Nada disso, meu bem, você vai para a sala estudar o quadro do teclado para datilografia. Ou praticar um pouco de taquigrafia). (p. 32). Os excertos em português foram extraídos da tradução da peça realizada por Léo Gilson Ribeiro (WILLIAMS, 1964). 5 1204 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 No caso que se segue (02), a ordem a ser seguida é a de que Laura deve se preocupar em ficar linda para encontrar um admirador e, portanto, um marido. (02) A: [...] Stay fresh and pretty! – It’s almost time for our gentlemen callers to start arriving. […] How many do you suppose we’re going to entertain this afternoon? (p. 239). (A: [...] Conserve-se sempre fresca e bonita! já é quase tempo de os nossos cavalheiros começarem a chegar para as visitas. [...] Quantos você calcula nós vamos receber esta tarde?). (p. 33). Ao usar “Conserve-se fresca e bonita” (stay fresh and pretty), tem-se um imperativo. Na visão de Verstraete (2004), o uso do imperativo corresponde ao uso subjetivo da modalidade deôntica. É um exemplo claro de comando direto. Portanto, modalidade orientada para o falante. Nota-se claramente a forte influência da mãe, que determina que a filha esteja sempre bela para aguardar a chegada de um pretendente. Tem-se aqui modalidade orientada para o falante com função diretiva. Observando o excerto (03), extraído de uma explicação da personagem Laura, vemos ressaltado o defeito que ela tem na perna e que Laura acreditava que todos notavam ao andar. Observando o uso deôntico de “ter que” (had to) no passado, estamos diante de um caso envolvendo obrigação interna. Laura lidava com esse conflito consigo mesmo, toda vez que tinha que caminhar, principalmente na presença dos colegas. A jovem tinha que andar pela sala em frente a todos os colegas. Também tinha que subir as escadas inteiras com o barulho do aparelho, até chegar ao seu assento. Por esse motivo, atravessar toda a sala, para ela, era um verdadeiro martírio. Laura acreditava que o aparelho na perna chamava a atenção dos colegas, o que a incomodava profundamente. E, neste caso, embora não seja uma forma direta de imposição, tem-se modalidade orientada para o agente com função modal diretiva. (03) L: […] I had to walk in front of all those people. My seat was in the back row. I had to go clumping all the way up the aisle with everyone watching! (p. 294). (L: [...] Tinha que passar em frente daquela gente toda. Meu lugar era na fila detrás. Tinha que subir as escadas inteiras com o barulho do aparelho. E com todo o mundo me olhando!). (p. 119). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1205 Vê-se no trecho (04) que Amanda exerce um forte poder sobre ambos os filhos. Amanda se impõe, mandando inclusive na forma como o filho deve comer. No caso que apontamos, o diálogo é endereçado a Tom. Em (4), uma diretiva é, então, estabelecida e um comando fica implícito por meio dos verbos “comer”, “mastigar”, “dar” (eat, chew, give). Essa ocorrência envolve obrigação externa, apresentando modalidade orientada para o falante com função modal diretiva. (04) A: Eat food leisurely, son, and really enjoy it. […]. So chew your food and give your salivary glands a chance to function! (p. 236). (A: Coma devagar, meu filho, e saboreie [...]. Portanto, mastigue bem e dê oportunidade às suas glândulas salivares de funcionar!). (p. 29). Encontramos em (05) a noção deôntica de obrigação, por meio da qual se marca mais uma regra a ser seguida por Laura. No referido caso, Laura fica obrigatoriamente condicionada a abrir a porta e se deparar com o pretendente trazido pelo irmão, que obedeceu diante da exigência da mãe. Nota-se, na ordem dada por Amanda, que a regra só vale para Laura, uma vez que, Amanda se exclui da realização da ação quando emprega o modal “poder” na negativa (can’t). O modo indicativo é preferido, o que reflete que a sentença é assumida pelo falante como marcada por realização. E estamos diante de uma modalidade orientada para o agente com função modal diretiva. Nota-se o emprego do futuro + a expressão “ter que”, que, de acordo com Verstraete (2004), não expressa uma posição assumida pelo falante, mas que ecoaria na fala do ouvinte. Contudo, a resposta é posteriormente completada por Laura que também diz que não poderá atender a porta. Observa-se que Laura tenta fugir desse encontro e, consequentemente, desse universo de obrigação. Contudo, ocorre, por meio do futuro “vai ter que” (will have to), a indicação de uma atitude que deverá ser a adotada por Laura. Destacamos que, casos expressando futuridade, serão melhor explicitados na seção 3.1 1206 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 (05) L: Please, please, please, you go! A: you’ll have to go to the door because I can’t. L: [despairingly]: I can’t either! A: Why? L: I’m sick! (p. 279). (L: Por favor, abra você, por favor, eu suplico! A: Você tem que abrir porque eu não posso. L: (Desesperando-se) Nem eu! A: Por quê, criatura? L: Estou... passando mal!). (p. 93). A partir de Wärnsby (2006, p. 127), a referência temporal da proposição e a referência temporal da modalidade podem ser importantes para o reconhecimento de características que contribuem para a interpretação modal. Tais aspectos podem ser observados envolvendo a função modal diretiva e a voz passiva. Consideramos os casos dessa natureza também nessa seção. No exemplo (06), Amanda conduz a atitude do filho, no momento em que ele chega para fazer a refeição. A voz passiva mais a expressão perifrástica “ter que” (have to) empregadas por Amanda indicam que os sabores devem ser mantidos um pouco na boca a fim de que possamos apreciá-los melhor. E, assim, Tom deve proceder, a fim de sentir o gosto dos alimentos. Por meio de “ter que” mais a voz passiva, tem-se modalidade orientada para o agente com função modal diretiva. (06) A: […] A well-cooked meal has lots of delicate flavours that have to be held in the mouth for appreciation. […] (p. 236). (A: Uma refeição bem preparada tem muitos sabores delicados que têm que ser retidos na boca para serem devidamente apreciados.) (p. 29). No exemplo destacado em (07), é esperado que haja alguém que realize o evento da proposição. Nesse contexto, a voz passiva é a opção empregada por Amanda. A escolha pela voz passiva pode ser ditada pelo fato de o falante, não querer dar uma ordem explícita ao ouvinte, ou não considerar importante especificar qual agente realizará a ação. Porém, a Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1207 ação é apresentada como devendo ser realizada. O emprego da expressão perifrástica “ter que” (have to) + particípio do verbo, bem como do verbo “dever” no sentido de “precisar” (ought to) + particípio mostram que é preciso alguém polir a prataria e lavar a toalha da mesa, lavar as janelas e trocar as cortinas para a ocasião especial que terão. Portanto, apesar de não envolver um comando exatamente, tem-se modalidade orientada para o agente com função modal diretiva. (07) A: […] All my wedding silver has to be polished. The monogrammed table linen ought to be laundred! The windows have to be washed and fresh curtains put up. (p. 267). (A: [...] Temos que polir os talheres de prata de meu casamento, que lavar e passar a toalha de linho com monogramas! As janelas têm que ser lavadas e tenho que colocar cortinas novas!). (p. 72-73). Cabe destacar ainda, com base em Wärsnby (2006), que, em produção de fala deôntica, a referência ao tempo passado em inglês, envolvendo os modais may/must, daria lugar a expressões modais como be allowed to e have to no passado. Isso posto e, de acordo com Palmer (2001:76), a restrição no caso do passado, “[...] é essencialmente uma característica do inglês”.6 Outro exemplo que também contém a voz passiva e contempla o sentido deôntico apresenta-se em (08), a seguir, quando Laura escorrega, dando um grito e assustando Amanda e Tom. (08) A: […] If anyone breaks a leg on those fire-escape steps, the landlord ought to be sued for every cent he possesses! […]. (p. 257) (A: Se alguém quebrar a perna nesses degraus, o proprietário devia ser processado até o último centavo!). (p. 57) Diante do susto, Amanda aproveita o contexto e responsabiliza o proprietário do imóvel pelo fato de alguém eventualmente quebrar uma perna (if anyone breaks a leg) nos degraus da escada de emergência. 6 “[t]he restrictions on the past tense are […] essentially a feature of English.” (PALMER, 2001, p. 76). 1208 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 Nessa circunstância, o proprietário deverá ser processado. O emprego do verbo “dever” + verbo na passiva (ought to be sued) em oração do condicional retrata a situação que será imposta ao proprietário do imóvel, haja vista que o proprietário tem que conservar o imóvel de forma que os condôminos estejam sempre em segurança. Corroborando Verstraete (2004), é evidente que o condicional é direcionado contra aquele que está envolvido na manutenção do prédio: o proprietário. E, assim, o falante (Amanda) acaba por se posicionar contra o proprietário, contudo sem se comprometer. Destacamos que a responsabilidade do comprometimento não é do falante, mas recai sobre um outro. Consequentemente, a modalidade deôntica reflete o comprometimento com a subjetividade. A partir da ocorrência aqui em destaque, concluímos, com Verstraete (2004), que não podemos excluir a modalidade deôntica da categoria das modalidades subjetivas, haja vista que a modalidade deôntica subjetiva equivale a um imperativo. Nesse âmbito, expressa o desejo do falante de que uma determinada ação se realize. E embora em (08) não haja um comando direto, trata-se de uma modalidade orientada para o agente com função modal imperativa pela força da situação que será imposta ao proprietário do prédio. 3.1 Categoria OA reportando-se ao futuro Tem-se novamente em (09) a noção deôntica de obrigação, por meio da qual se marca o que é assumido pelo falante. O modo indicativo é preferido aqui por Amanda, o que reflete que estamos diante de uma modalidade orientada para o agente, com função diretiva. Amanda tem que pensar rapidamente sobre a organização do jantar e sobre os preparativos para a chegada do rapaz. Também, o asseverador de “certeza” (certainly) empregado reforça a obrigação por parte de Amanda. Tal obrigação será cumprida adiante. (09) A: I’ll certainly have to do some fast thinking, won’t I? (p. 267). (A: Terei que pensar muito rápido agora, não é?). (p. 72-73). Seguindo o mesmo raciocínio, Amanda, como expresso em (10), será obrigada a trabalhar como um mouro; ou seja, trabalhar duro para que tudo esteja pronto até o jantar, já que Tom a avisou da vinda de um rapaz no dia anterior. Assim, ela terá pouco tempo para os preparativos. O uso de “ter que” (have to) + verbo, é destacado em (10). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1209 (10) A: […] I’ll have to work like a Turk! (p. 268). (A: [...] eu vou ter de trabalhar como um mouro!). (p. 74). Em se tratando da noção deôntica em que se marca o que é assumido pelo falante, Laura usa do mesmo recurso para se referir a algo que ainda estar por vir. Assim, em (11), Laura mostra sua recusa em ficar face a face com o pretendente. Tal fato ocorre por meio do futuro (will) + a expressão “ter que” (have to), um processo com efeito refletido no futuro. Ou seja, para Laura, a mãe será obrigada a desculpá-la por não se sentar à mesa se Tom trouxer o rapaz por quem Laura era apaixonada no passado. Consequentemente, modalidade orientada para o agente, com função diretiva. (11) L: […] If that is the one that Tom is bringing to dinner – you’ll have to excuse me, I won’t come to the table. A: [...] You’ll come to the table. You will not be excused. L: I’ll have to be, Mother. (p. 277-278). (L: [...] Se for o mesmo que Tom está trazendo para jantar. . . peço desculpas, mas não aparecerei na sala. A: [...] você vai sentar-se conosco. Não tem desculpa! L: Mas você tem que me dispensar, mamãe). (p. 90-91). Outras vezes, mesmo regida pelo que dita a mãe com frequência, Laura tem um ou outro momento em que tenta se impor mostrando como deve agir. Dessa forma, em (12), temos o desenrolar de uma atitude que deverá ser adotada pelo agente: por Laura em momento futuro. A moça impõe-se dizendo que não usará o enchimento para os seios; ou seja, as duas esponjas de pó de arroz que a mãe separa para Laura usar nos seios no dia do jantar. Laura lança mão do modal will + not + verbo (I won’t wear them), para marcar que não usará os disfarces sedutores (Gay Deceivers) e reforçar sua atitude em relação ao que impõe a mãe. Portanto, a obrigação se apoia em uma modalidade orientada para o agente (12) L: Mother what are you doing? A: They call them ‘Gay Deceivers’! L: I won’t wear them! A: You will! (p. 275). 1210 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 (L: Que é que você está fazendo, mamãe? A: O que se chama de “disfarces sedutores”! L: Não vou usar isso! A: Vai, sim, senhora!). (p. 86-87) Na sequência, em (13), aparece uma imposição de Amanda que também é marcada pela futuridade, sendo preferido o uso de going to + verbo (listen). Dessa maneira, na tentativa de calar Tom, que durante a discussão desencadeia uma série de verdades, dentre elas, o fato de ser ele quem paga o aluguel, Amanda é imperativa no sentido de que agora é a sua vez de dizer algo. Do ponto de vista de Amanda, Tom está sendo insolente e ela não mais aceitará nenhuma insolência do filho. Nesse caso, embora não ocorra o uso do imperativo, estamos diante da modalidade que exerce demonstração de força, imposição, já que Amanda se encontra no limite da paciência com o filho. Portanto, temos aqui a modalidade orientada para o agente com função imperativa. (13) A: You will hear more, you T: No, I won’t hear more, I’m going out! A: […] You’re going to listen, and no more insolence from you! I’m at the end of my patience! (p. 250-251). (A: Você vai me ouvir até o fim. T: Não vou ouvir mais nada, vou é sair! A: Você vai me ouvir e não tolero mais insolência de sua parte! Não tenho mais paciência!). (p. 45). 3.2 Categoria AO e OF com função modal de procedimento e instrução Outro tipo de função modal tem seu registro na peça, a função modal de procedimento ou de instrução. Vejamos alguns exemplos. Em conversa com a mãe, Laura se vê como aleijada e, por esse motivo, não se anima em procurar um pretendente. Amanda tenta mostrar que o que ela tem é um pequeno defeito físico. Assim, passa a orientá-la, mostrando o procedimento a ser adotado em uma situação desfavorável como a de Laura. Segundo Amanda, nessas condições, as pessoas cultivam outras coisas. Dessa forma, cada vez que as pessoas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1211 se deparam com uma situação difícil, tal qual um hábito, devem sempre desenvolver “o charme e a vivacidade” (charm and vivacity), tornando-se um procedimento que deve ser seguido por Laura, como algo corriqueiro. Nessa conversa, o emprego do presente do indicativo por meio dos verbos “ter” (have) “cultivar” (cultivate) e “desenvolver” (develop) reforça a ideia do procedimento e como tal, algo que se repete a cada vez que Laura tiver uma situação dessa natureza. Por procedimento aqui, entendemos como uma técnica ou método a ser aplicado. Em suma, quando alguém tem uma desvantagem como no caso de Laura, é preciso seguir um procedimento para desviar o foco do problema, uma vez que o defeito de Laura é algo permanente. Portanto, o procedimento adotado por Laura também é permanente no sentido de que, toda vez que lembrar do defeito deve aplicar o procedimento de cultivar outras coisas. Trata-se de modalidade orientada para o agente com a função modal de procedimento, haja vista que, o defeito permanente de Laura a fará lançar mão desse procedimento apontado pela mãe, pelo resto da vida. No excerto (14), comprovamos o que asseveramos. (14) L: […] I’m crippled! A: [...] Why, you’re not crippled, you just have a little defect – hardly noticeable, even! When people have some slight disadvantage like that, they cultivate other things to make up for it – develop charm – vivacity – and – charm! […] (p. 247). (L: Eu sou ... aleijada! Bobagem! Laura, eu já lhe disse para nunca, mas nunca, usar essa palavra. Ora, você não é nada aleijada, só tem um defeitinho à-toa, que quase nem se nota! Quando alguém tem uma desvantagenzinha como essa, procura cultivar outras qualidades para compensar — desenvolver o encanto pessoal... a vivacidade... o charme! [...]). (p. 41-42). Em (15), a fim de mostrar como Laura deve agir e fazê-la ter mais confiança, Tim usa “Só olhe para você um pouco” (Just look about you a little). O caso ilustra a função modal de procedimento, uma vez que tem relação com procedimento ou com sequência de atividades habituais e frequentes que fazemos. Trata-se de um procedimento que Laura deve adotar corriqueiramente. Por esse motivo, estamos diante de um tipo de modalidade orientada para o falante. Destacamos o uso do advérbio “só” + verbo “olhar” (just + look), que insere uma obrigação externa, uma 1212 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 vez que, a realização do valor deôntico é originado de algo externo ao falante. Por meio de “só”, tem-se uma ideia de exclusão, do tipo “Faça só isso e mais nada, olhe para você!” (15) L: In what way would I think? J: Why, man alive Laura! Just look about you a little. (p. 299). (L:Em quê, por exemplo? J: Ora bolas Laura! Basta você olhar em torno de você). (p. 127). Contudo, na sequência, quando Jim se refere a ele mesmo, e não a Laura, em “Tome-me como exemplo” (take me), podemos entender como função modal de instrução. Nessa situação, Jim está usando a si mesmo como um modelo que Laura deve seguir, pois lista uma série de atividades por ele desenvolvidas. Laura deve envolver-se em alguma atividade tal qual Jim. Nota-se a inversão da fonte e do alvo, sendo Jim, o alvo. Contudo, a obrigação não é imposta pelo falante. A situação de necessidade propriamente dita, já que Laura precisa se espelhar em Jim, apenas revela que o agente tem obrigação de espelhar-se nele, como compreendido por Palmer (2001, p. 75), e Bybee, Perkins e Pagliuca (1994). Almeida (1988, p. 17), ao contrário, analisaria a questão como uma obrigação interna. Assim, de acordo com Almeida, Jim se coloca em uma posição que mostra que ele está apenas auxiliando Laura. O contexto situacional em (16) revela que Jim dá uma instrução a Laura (16) J: [...] Take me, for instance. My interest happens to lie in electro-dynamics. I’m taking a course in radio engineering at night school, Laura, on top of a fairly responsible job at the warehouse. I’m taking that course and studying public speaking. (p. 299). (J: Veja o meu caso, por exemplo. Meu interesse, por acaso, é pela eletrodinâmica, assim como poderia ser por outra coisa qualquer. Estou frequentando um curso noturno de radiotécnico. Laura, além de arcar com um emprego de muita responsabilidade no depósito, estou com esse curso e estudo também oratória). (p. 127). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1213 3.3 Categoria OA com função modal volitiva Uma vez que, na função modal, entendemos as circunstâncias de uso que compreendem obrigações e deveres, um aspecto que pode servir de pista na interpretação modal seria a volição. Assim, apoiamo-nos em Quirk (1985) e Palmer (2001), que posicionam ordem e volição em um mesmo paradigma. Dessa forma, no contexto escolhido para o estudo, constatamos que a volição pode assumir o papel de obrigação. Salientamos que, a fim de que ocorra uma interpretação deôntica, é necessário que haja uma fonte interessada na realização da ação descrita na proposição. Assim, um dos elementos de controle do agente é a volição. Nos casos analisados, e de acordo com Bybee (1995), a manifestação da volição, atua como estratégia para fazer o interlocutor agir conforme o que o falante espera. Diante desse prisma, e, considerando o que diz Amanda em (17) e, de acordo com o contexto de uso, Amanda quer tudo perfeito para o encontro com o pretendente. Então, por meio de “querer” (want), Amanda expressa seu desejo da realização do evento da proposição. E o desejo de Amanda, nada mais é, do que uma ordem. Cabe destacar que a volição é marcada na peça teatral em 16,6% das ocorrências, e está representada no excerto que se segue em (17), cujo contexto envolve os preparativos para recepcionar o suposto pretendente para Laura. Amanda quer que tudo esteja organizado para que corra tudo bem durante o jantar (I want things nice). Para Amanda, é importante fazer algo caprichado. Assim, o uso da expressão perifrástica “ter que” (have to) + verbo na oração que antecede o uso de “querer” já reforça a obrigação, à qual Amanda se submete ao se comprometer em receber um convidado. Nesse caso, tem-se modalidade orientada para o agente com função modal volitiva. (17) A: Naturally I would like to know when he’s coming! T: He’s coming tomorrow. A: Tomorrow? […] T: You don’t have to make any fuss. A: Oh Tom, Tom, Tom, of course I have to make a fuss! I want things nice, not sloppy. (p. 267). 1214 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 (A: Naturalmente, eu queria saber quando ele vem! T: Vem amanhã. A: Amanhã? [...] T: Não tem que fazer nada demais. A: Ora, Tom, Tom, Tom, claro que tenho que fazer mil coisas! Quero tudo muito direitinho, nada desleixado!). (p. 72-73). Vemos a volição se apresentar também na fala do filho. Isso ocorre quando Amanda insiste para que Tom coloque creme no café. A insistência é rebatida inicialmente com polidez, mas Tom acaba por usar o verbo “querer”, mostrando sua vontade de ter o café preto. Portanto, modalidade orientada para o agente com função modal volitiva é o que é revelado em (18): (18) A: You can’t put in a day’s work on an empty stomach. You’ve got ten minutes-don’t gulp! Drinking too- hot liquids makes cancer of the stomach…Put cream in. T: No thank you! A: To cool it. T: No thank you, I want it black. (p. 258). (A: Como é que você pode trabalhar o dia inteiro com o estômago vazio? Ainda faltam dez minutos. Não engula o café depressa! Beber líquidos quentes demais dá câncer no estômago... Ponha leite no café. T: Não, obrigado. A: É para esfriar. T: Não! Não, obrigado, prefiro sem leite). (p. 37). Outras vezes, o desejo do personagem é retratado por meio da expressão would rather, que expressa preferência. Tal fato é revelado em (19) quando Tom fala de como se sente trabalhando no depósito de sapatos e do que preferiria fazer ao invés de desperdiçar vinte e cinco anos de sua vida enfiado no depósito, cuja única vista são os sapatos e as fluorescentes. A questão o atormenta tanto que Tom preferiria mil vezes que alguém esmigalhasse seus miolos (I’d rather somebody picked up a Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1215 crowbar and battered out my brains) a ter que voltar para o depósito toda segunda. Entendemos aqui a permissão no sentido de concessão. Tom se permite algo drástico, só para não ter que voltar para o trabalho que, definitivamente abomina e que o consome, tornando-o infeliz. Tem-se, portanto, modalidade orientada para o agente com função modal volitiva (19) T: […] You think I’m in love with Continental shoemakers? You think I want to spend fifty-five years down there in that - celotex interior! with - fluorescent - tubes! Look! I’d rather somebody picked up a crowbar and battered out my brains than go back mornings! […]. (p. 251). (T: Escute aqui: você pensa que eu sou louco pelo depósito? (Ele se curva ferozmente diante da figura frágil da mãe.) Você pensa por acaso que estou apaixonado pela Manufatura de Calçados Continental? Pensa que vou querer passar cinquenta e cinco anos inteiros naquele interior de celotex com tubos de luz fluorescente? Olhe: eu preferia mil vezes que alguém pegasse um pedaço de ferro e me esmigalhasse os miolos a voltar para lá todas as manhãs!). (p. 48-49). A questão da volição também é posta na peça por meio do emprego do verbo “desejar” (wish) + subjuntivo, no exemplo (20) a seguir. No contexto, Amanda, que havia feito uma visita surpresa ao curso de Laura e descoberto que a filha nunca havia frequentado o curso, vem exigir explicações. Então, Amanda a surpreende com uma série de indagações sobre o futuro, como sobre o que Laura espera fazer na vida. Laura, inicialmente, não compreende as indagações, pois não sabia da ida da mãe ao curso. Dessa maneira, o desejo de Laura é que a mãe explique o acontecido, algo que só ocorrerá em momento posterior, no futuro. Laura emprega o verbo “desejar” (wish) + futuro do subjuntivo no intuito de conseguir que a mãe venha a dizer o que aconteceu. Trata-se de uma modalidade orientada para o agente com função modal volitiva. (20) A: What are we going to do, what is going to become of us, what is the future? L: Has something happened, Mother? […] A: […] 1216 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 L: Mother, I wish that you would tell me what’s happened! (p. 242-243). (A: O que vamos fazer agora, o que vai ser de nós, que futuro nos aguarda? L: Aconteceu alguma coisa, mamãe? A: [...] L: Mamãe, por favor me diga o que foi que aconteceu!). (p. 35). Salientamos que, a volição apareceu em 11,6% das ocorrências, marcando a desejabilidade na peça. 3.4 Categoria OA com função modal proibitiva Ainda atrelados à categoria OA com interpretação deôntica de proibição, podemos destacar, na obra de Tennessee Williams, a proibição externa. Amanda, ao telefone, conversando sobre o cancelamento da assinatura do canal do Companion pela amiga, o que a levaria a perder a novela que foi comparada ao “E o Vento Levou”, argumenta que não podia sair de casa sem assistir a tal novela. Assim, à amiga não era permitido perder tal novela, já que foi considerada pela crítica como fantástica. Evidenciamos, por intermédio do modal “poder”, mais uma vez, Amanda exercendo seu papel de liderança, no direcionamento de condutas no diálogo com a amiga. Por meio do verbo “poder” + negativa (couldn’t), instaura-se a proibição. Notamos, assim, a modalidade orientada para o agente, com função modal proibitiva em (21). (21) A: […] You simply couldn’t go out if you hadn’t read it. All everybody talked was Scarlet O’Hara. Well, this is a book that critics already compare to Gone with the Wind. It’s the Gone with the Wind of the post-world War generation! […] (p. 249). (A: Era impossível sair de casa sem ter lido até a última linha. Todo mundo só falava de Scarlett O’Hara. Pois é, essa novela de agora já é comparada pelos críticos a E o Vento Levou... Dizem que é E o Vento Levou. . . da geração de depois da Guerra Mundial!). (p. 45) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1217 Observa-se que o verbo “ousar” em construção negativa estabelece uma proibição externa. Nesse momento, Tom questiona a mãe sobre quem paga as contas da casa. A mãe reage, não permitindo que Tom sequer ouse falar assim. O emprego do advérbio de negação + presente + “ousar” (dare) torna evidente a postura adotada por Amanda; ou seja, a de não permitir que Tom alegue o pagamento das contas. De fato, tem-se uma modalidade do tipo orientada para o agente, sendo Amanda a fonte e Tom o alvo dessa proibição. Alguns segundos depois, observa-se também que Tom reforça ainda mais a proibição externa ao usar o modal “dever” + negativa (mustn’t), e “ter que” (have got to) + verbo. Como consequência, Tom não deve dizer tais coisas à mãe. Ao Tom, resta ficar calado. Modalidade do tipo orientada para o agente com função modal proibitiva é a que se apresenta em (22) como proibição externa. (22) T: House, house! Who pays rent on it, who makes a slave of himself to –? A: […] Don’t you DARE toT: No, no, I mustn’t say things! I’ve got to just – (p. 250). (T: Casa, casa! Quem é que paga o aluguel, quem é que trabalha feito um escravo para... A: [...] Não se atreva a... T: Ah, não, não devo dizer nada! Tenho é que ficar... ). (p. 45). Uma outra situação que insere o valor de proibição está no excerto (23), em que Laura se intitula aleijada e a mãe, imediatamente, a proíbe de usar tal palavra, haja vista que Amanda já a advertira diversas vezes, para nunca usá-la. O uso do advérbio de frequência “nunca” (never), empregado repetidamente por Amanda, confirma a não permissão para Laura usar a palavra aleijada e, consequentemente, essa é uma modalidade orientada para o agente, com função proibitiva. (23) L: But mother – A:Yes? […]. L: […] I’m crippled! A: Nonsense! Laura, I’ve told you never, never to use that word. (p. 246-247). 1218 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 (L: Mas, mamãe. . . A: O que é? [...] L: [...] Eu sou... aleijada! A: Bobagem! Laura, eu já lhe disse para nunca, mas nunca, usar essa palavra). (p. 41-42). Por último, sobre as interpretações deônticas com função modal proibitivas, cabe salientar que, esses casos se deram em 6,6%. 3.5 Categoria OA com função permissiva Achamos pertinente destacar o caso (24), haja vista que ocorre a não permissão ou a proibição que emana do verbo modal “poder” (can), na negativa. A modalidade estabelece um procedimento que se estende para a futuridade. Enquanto Tom não se senta à mesa, Amanda e Laura ficam impedidas de fazer a oração dando graças pelo alimento. Assim, a elas, não é permitido dar graças até que Tom tome seu lugar. Trata-se, neste caso, de modalidade orientada para o agente, sendo Tom o alvo deôntico. Saeed (2004) aponta três diferentes níveis para a modalidade, que vão do mais forte para o mais fraco, e faz a distinção entre o “poder” (could) e “poder” (can). O primeiro é entendido como mais fraco. E já que nosso corpus é para ser falado, também cabe igualmente destacar Lopes (2014), que apresenta os graus de persuasão fraca (poder), forte (não poder/ter que) e normal (poder), para a distinção da força na carga semântica do verbo ou expressão modalizadora, na proposta tipológica para a análise de parâmetros na fala do professor. Assim, em (24), pode-se ver uma forma mais informal, revelando que o uso de “poder” (could ou can) depende de diferentes julgamentos e graus de formalidade na relação entre os interlocutores. Por conseguinte, temos modalidade orientada para o agente com função permissiva. (24) A:Tom? T: Yes Mother. A:We can’t say grace until you come to the table! (p. 236). (A:Tom? T: Que é, mamãe? A: Não podemos dizer a oração de graças enquanto você não vier para a mesa!). (p. 29) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1219 No caso que se segue, tem-se a noção deôntica de permissão. É Amanda quem solicita a permissão a Tom para dizer algo, quando emprega o verbo “deixar” (let me), e cuja permissão recai sobre a própria Amanda. Assim, ocorre solicitação de permissão do tipo concessão, uma vez que, Tom deveria conceder o turno a Amanda. Vemos que, ocorre a orientação de uma conduta sobre outra pessoa. Assim, encontramos modalidade orientada para o agente, com função modal concessiva. (25) A: Let me tell you – T: I don’t want to hear any more! (p. 250). (A: Vou lhe dizer uma coisa... T: Não quero ouvir mais nada!). (p. 45). Em (26), notamos o uso do substantivo “permissão” (permission), o falante atribuindo a outro a permissão para agir. Nesse sentido, tem-se a permissão de uma obrigação do tipo externa, já que Jim pede permissão a Laura para mastigar uma goma de mascar. Em (26), então encontramos modalidade orientada para o agente, sendo Laura a fonte e Jim o alvo. (26) J: […] Will you have some gum? L: No, thank you. J: I think that I will indulge with your permission (p. 292). (J: [...] Quer mastigar chicletes? L: Não, obrigada. J: Bem, vou tomar a liberdade, com sua permissão). (p. 89). Quanto aos dados percentuais das interpretações deônticas com função modal permissiva, destacamos que estas ocorreram em 10,0% dos casos das modalidades deônticas encontradas na peça teatral. 3.6 Categoria OA com função modal de obrigação Vemos evidenciado em (27) que a necessidade condiz com uma obrigação, quando Tom é indagado por Laura sobre o motivo de ele ter ficado até o fim do show a que assistiu. Na tentativa de justificar por que chegou tarde, Tom explica que houve um show de mágica e que o mágico precisou de alguém para ajudar no número. O emprego do verbo 1220 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 “precisar” (needed) chama atenção para uma obrigação, haja vista que o mágico precisava de alguém da plateia. Ocorre, pois, a necessidade de se fazer algo, o que pode ser interpretado como obrigação de se fazer algo, indicando o uso de uma modalidade orientada para o agente. (27) T: […] because he needed somebody to come up out of the audience to help him and I came up. […] (p. 255). (T: [...] porque ele precisava de alguém que subisse no palco para ajudá-lo e eu fui [...]. (p. 53). Em dado momento da peça, deparamo-nos com um outro caso envolvendo necessidade. Desta vez, a situação ocorre quando Jim tenta trazer Laura para o mundo real e deixá-la mais confiante. Jim percebe o complexo de inferioridade que ela tem. Assim, em “alguém precisa”(somebody needs) aumentar a confiança de Laura, percebe-se que Jim a fará ser menos tímida. Tal ação culmina em um beijo, com o uso do verbo “precisar” (ought to) + verbo, por duas vezes, o que reforça que o beijo se faz tão necessário para Laura no momento, pois é o beijo que irá despertá-la do mundo de ilusões. Tem-se, em (28), modalidade orientada para o agente com função modal de obrigação. (28) J: [...] I am talking to you sincerely. [...] Somebody needs to build your confidence up and make you proud instead of shy and turning away and – blushing- Somebody – ought to – Ought to – kiss you, Laura! (p. 304) (J: Estou falando com você sinceramente. [...]Alguém tem que reforçar sua confiança em si mesma e torná-la orgulhosa de si mesma em vez de ternamente acanhada, esquiva... corando por qualquer coisa... Alguém devia é... de... Devia é de... beijá-la, Laura!). (p. 137). Também, ao tentar mostrar para Laura como as moças da época procediam, quando iam receber um rapaz, Amanda aponta o que era necessário uma moça ter e saber para a ocasião. Amanda tenta transmitir a Laura, o que é preciso aprender com as moças de antigamente para arranjar um marido. Nesse sentido, o verbo “precisar” na forma needed Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1221 + verbo “ter” (have to) sinaliza na direção do que qualquer moça tinha que ter e de que Laura tem que ter, para laçar um marido. Em (29), destacamos a modalidade orientada para o agente com função modal de obrigação, já que se trata de algo necessário a toda moça para conquistar um marido. Cabe salientar que Laura é todo tempo incitada a ter traquejo e a ter respostas rápidas para impressionar os cavalheiros que aparecessem para cortejá-la e, assim, arranjar um pretendente para se casar (29) A: […] She also needed to have a nimble wit and a tongue to meet all occasions (p. 238). (A: [...] Era preciso que ela tivesse também espírito, compreensão rápida e uma resposta para tudo.) (p. 31). Em se tratando das interpretações deônticas envolvendo a função modal de obrigação, foram estas as que mais se destacaram na peça, atingindo o percentual de 59,5% de ocorrências, o que revela um índice elevado de imposições que recairão sobre o outro. 3.7 Categoria OA com função modal de habilidade Uma vez que consideramos Bybee, Perkins e Paliuca (1994) e Palmer (2001), entendemos ser a habilidade/capacidade compreendida dentro do campo da modalidade deôntica. Eggins e Slade (2001, p. 102), no entendimento da modalidade deôntica, também consideram a habilidade, mas usam o termo modulação no lugar de modalidade. Definem modulação7 como a maneira de o falante expressar seus julgamentos sobre ações e eventos. Segundo as autoras, há dois principais recursos estruturais que expressam graus de capacidade. O primeiro pode ser identificado por meio do modal “poder” (can), quando usado para indicar habilidade e não probabilidade. E o segundo, por meio do pronome pessoal do caso reto + adjetivo de capacidade, como em “ele é capaz” (he is capable). Em (30), que se apresenta a seguir, Amanda confiscou o livro de Tom e diz não poder controlar o que sai das mentes doentes de autores como aquele que Tom está lendo. Assim, mostra sua não habilidade ou 7 Modulation is a way of tempering the directness with which we seek to act upon each other (EGGINS; SLADE, 2001, p. 102). 1222 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 não capacidade em fazer algo. Portanto, modalidade orientada para o agente, com função modal de habilidade. (30) A: I took that horrible book to the library - Yes! That hideous book by the insane Mr. Lawrence. […] I cannot control the output of diseased minds or people who cater to them. (p. 250). (A: Sim, senhor: levei de volta aquela novela horrível para a biblioteca. Aquele livro repugnante daquele maluco do Sr. Lawrence [...] Não posso controlar a produção de mentes doentias ou pessoas que se rebaixam a satisfazê-las). (p. 45). Em dada situação na peça, Amanda comenta sobre quando era jovem e tinha pretendentes. De acordo com Amanda, naqueles tempos, uma garota sabia como falar com os rapazes. Assim, na tentativa de convencer o filho a trazer algum amigo para conhecer Laura e fazer com que Laura aceite o pretendente trazido pelo irmão, Amanda se diz capaz de contar sobre como eram esses tempos. O uso do modal “poder” (can) + verbo “contar” (tell) aponta para essa capacidade ou habilidade de Amanda, que passa a explicar em detalhes como as moças procediam para entreter os pretendentes. Trata-se de modalidade orientada para o agente, com função modal de habilidade, sendo Amanda o alvo deôntico. (31) A: Girls in those days knew how to talk, I can tell you. T: Yes? […] A: They knew how to entertain their gentlemen callers. […] (p. 237-238). (A: As moças do meu tempo sabiam falar, pode ficar certo. T: Ah, é?[...] A: Elas sabiam entreter os cavalheiros de visita). (p. 30). Destacamos na peça o uso do modal “poder” por meio de could com o sentido de capacidade. Tal fato ocorre quando Amanda esclarece para Laura que deu ao Tom algum dinheiro a mais, para que ele e o Sr. O’Connor pudessem ir de carro. Assim, Tom e o Sr. O’Connor teriam condições de chegar, sem nenhum atraso, para o tão esperado jantar. O falante, no caso Amanda, avalia a realidade do estado-de-coisas (EC), em Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1223 termos de normas morais, legais e/ou sociais. Segundo Dik (1989), um estado-de-coisas é entendido como uma interpretação linguisticamente codificada de algo em algum mundo. Para o caso em questão (32), modalidade orientada para o agente, com função modal de habilidade. (32) A: […] I gave your brother a little extra change so he and Mr. O’Connor could take the service car home. (p. 277). (A: Dei um trocado extra a seu irmão para ele e o Sr. O’Connor poderem tomar o táxi para vir...). (p. 90). Das ocorrências envolvendo interpretação deôntica de habilidade/ capacidade, a peça nos revelou 6,2% nos excertos investigados. 3.8 Categorias OA e OF e o distanciamento ou não do falante Um importante aspecto envolvendo as categorias da modalidade OA e OF diz respeito à posição do falante em relação ao alvo, sobre quem recai os valores de obrigação, permissão, proibição, dentre outros apresentados no artigo. Assim, ao instaurar um determinado valor, ocorre a inclusão ou não do falante na execução de tal valor. O excerto (33) aponta na direção de uma inclusão por parte do falante, quando Laura é quem se dispõe a tirar a mesa, pedindo permissão para assim agir (let me clear the table). O verbo “deixar” (let) anuncia a solicitação de Laura, deixando claro o pedido de Laura para se encarregar da tarefa. (33) L: [rising] Mother let me clear the table. (p. 239). (L: (Levantando-se) Mamãe, deixe que eu tiro a mesa). (p. 32). Um outro caso pode ser visto em (34), e ainda com base em Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), onde as autoras entendem, sob o leque da modalidade orientada para o falante (OF), o tipo exortativo. Nesse tipo, o falante encoraja um outro a agir. Na situação que se desenrola, Amanda desabafa com Tom sobre coisas que tem guardado no peito e que não dá para descrever para Tom. Tom, em contrapartida, diz que compreende a mãe, uma vez que ele também tem muitas coisas que não pode descrever para a mãe. Assim, ambos compartilham o mesmo sentimento. Nesse contexto, Tom emprega o caso exortativo, pois está se incluindo na realização da ação, que é a de respeitar um ao outro. 1224 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 Por conseguinte, Tom deve respeitá-la, bem como a mãe também deve ter sentimento recíproco em relação ao filho. Tal inclusão manifesta-se pela utilização da primeira pessoa na expressão “nós” (Let’s) + verbo “respeitar” (respect), no sentido de obrigação, modalidade orientada para o agente, com função modal de obrigação. Contudo, por meio de “vamos”, cria-se uma aproximação com o interlocutor. (34) A: […] There’s so many things in my heart that I can’t describe to you! I’ve never told you but I – loved your father… T: I know that, Mother. A: And you – when I see you taking after his ways! Staying out late – and - well, you had been drinking the night you were in that – terrifying condition! Laura says that you hate the apartment and that you go out nights to get away from it! Is that true Tom? T: No, There’s so much in your heart that you can’t describe to me. That’s true of me, too. There’s so much in my heart that I can’t describe to you! So, Let’s respect each other’s – (p. 259). (A: Há tantas coisas dentro de meu coração que não posso nem descrever! Eu nunca lhe contei, mas a verdade é que... eu amava seu pai... T: [...] Eu sei, mamãe. A: E você... quando eu vejo que você sai a ele... ficando até tarde fora, e... bem, você bebeu naquela noite em que voltou num estado terrível!Laura diz que você odeia o apartamento e que você sai à noite para fugir daqui! É verdade, Tom? T: Não. Você disse que há tantas coisas no seu coração que nem pode descrevê-las. O mesmo acontece comigo. Há tanta coisa em meu coração que nem posso descrevê-las... para você, mamãe! Portanto, vamos respeitar-nos mutuamente...). (p. 60). No excerto a seguir (35), destacamos um caso de distanciamento do falante quando este emprega o pronome “você” (you) + verbo (have to do), que corresponde à locução “ser obrigado a”. No contexto, a personagem Amanda apresenta um argumento a Laura, a fim de que ela não se concentre no defeito que tem na perna. Segundo Amanda, é necessário cultivar outras coisas quando alguém se encontra em Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1225 desvantagem. Ou seja, Laura não deve chamar atenção para o defeito, pois é tudo que Laura tem que fazer. A expressão “ter que” é inclusive repetida como reforço para a ação a ser realizada. (35) A: Develop charm [...] That’s all you have to do! (p. 247). (A: Desenvolver o encanto pessoal [...] É só o que falta você fazer). (p. 42) Em se tratando de distanciamento do falante com relação ao que diz, destacamos ainda o caso (36). Com o uso do pronome “você” (you), na sentença que antecede o conselho dado a Laura, que é o de pensar um pouco em si mesmo, como alguém superior, pela utilização desse pronome por duas vezes, vemos reforçado o conselho. Também o pronome reflexivo “si mesmo” (yourself), na sentença seguinte, assevera que a realização da ação recairá sobre Laura. Portanto, tem-se modalidade orientada para o agente, com função modal diretiva haja vista, que estamos diante do imperativo. O caso a seguir ilustra mais uma vez o posicionamento do falante (36) J: […] You know what my strong advice to you is? Think of yourself as superior in some way! (p. 299) (J: [...] Sabe qual é o conselho sério que tenho para lhe dar? Pense que você é superior aos outros, em alguma coisa!). (p. 127) A partir das ocorrências de inclusão e não inclusão, foi possível compreender o posicionamento do falante em relação ao que diz na peça. Assim, 67% ocorrências de não inclusão revelaram que a expectativa é a de que a realização da ação recaia sobre o outro. Por outro lado, a inclusão ocorreu em 33% das ocorrências. 4 Considerações finais Uma vez que as categorias aqui arroladas se voltam para a orientação de uma conduta e a influência de um indivíduo sobre um outro, por meio de OA e OF respectivamente, voltamo-nos para interpretações várias, de acordo com cada contexto específico, na obra The glass ménagerie de Tennessee Williams. A personagem Amanda ilustra muitas das imposições na peça. Tais imposições são intensificadas 1226 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 quando Amanda exige do filho Tom, além de suprir as necessidades da casa, que também encontre um marido para a irmã. Na tentativa de realizar seus anseios, Amanda ultrapassa os limites querendo conduzir até mesmo a conduta dos filhos em diversas circunstâncias corriqueiras como determinar o curso que Laura deve fazer, a roupa que deve usar, como mastigar a comida, no caso de Tom, dentre outras. As demandas da mãe são imensas, principalmente em relação ao que Laura deve ou não deve fazer, para arranjar e segurar um marido. Assim, Amanda vai construindo uma teia de orientação de conduta aos filhos, o que se destaca fortemente na peça. O caráter mandatório se faz presente na peça teatral em 59,5% dos casos, envolvendo o valor de obrigação. A permissão perfaz 21,15%, a volição totaliza 11,6%, sendo a proibição encontrada em 6,6%. Os valores supracitados e que mais se destacam, juntos formam 100% de orientação de conduta em toda a peça. Assim, retomando o caráter autoritário refletido na obra, Amanda é responsável por 38,65% de comandos. A ordem também aparece em Laura em 6,9%, orientando a conduta do irmão, em relação à mãe. E até o convidado Jim lança mão do comando 6,9%, para conduzir a atitude de Laura, quando tenta fazer com que esta, veja a realidade. E, por fim, em menor escala, Tom aparece com o percentual de 3,86%. Consequentemente, é Tom quem mais sofre os efeitos de tais comandos por se encontrar na posição de chefe provedor da casa. Assim, as exigências incidem muito sobre ele. Por esse motivo, no tocante à autoridade, destacamos a modalidade, com função modal diretiva. Tal qual compreendido por Palmer (2001, p. 75) e Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), apontamos a obrigação com função modal imperativa. Já em se tratando de ações corriqueiras, entendemos ter encontrado a função modal de procedimento, enquanto, ao dar instrução, obtivemos a função modal de instrução. A referência temporal da proposição e a referência temporal da modalidade podem ser importantes para o reconhecimento de características que contribuem para a interpretação modal. Assim, a partir de Wärnsby (2006, p. 127), deparamo-nos no estudo com a modalidade deôntica + voz passiva, com função modal também diretiva. A partir do uso do verbo modal “dever” (must) + negativa e do advérbio de negação + verbo “ousar” (dare), a função modal proibitiva foi revelada, enquanto que o verbo “poder” (can) refletiu a função modal permissiva. Também destaque é dado ao verbo “deixar” (let). Esse surge Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1227 na peça com função modal concessiva. Por outro lado, a expressão do futuro will + “ter que” (have to), pode inserir a função modal diretiva, sendo a expressão de futuridade (will), outras vezes, empregada com função modal imperativa. Tal qual will, a expressão de futuridade (going to) é empregada com função modal imperativa. Uma outra forma de controle do agente é a volição. Compreendemos, de acordo com Bybee (1995), que a fonte deôntica acentua a expectativa em relação à atitude do outro com quem se interage, empregando o verbo “querer” (want). A volição marca, pois, a obrigação e, por meio desta, a função modal diretiva nas interações dos personagens na peça, é contemplada. Também corroborando Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) e tal qual Palmer (2001), discutimos a modalidade tratando a habilidade dentro do âmbito da modalidade deôntica. Portanto, o verbo “poder“ (can e could) foi revelado no estudo com função modal de habilidade. A partir das interpretações obtidas por meio da análise, observamos que, quanto à manifestação deôntica, as ocorrências envolveram verbo lexical com o índice de 69%, enquanto que a manifestação deôntica por meio do verbo auxiliar se deu em 29% dos casos, seguida de 1% com substantivo e 1% com adjetivo em posição predicativa. De acordo com o estudo, quanto ao tipo de modalidade, e tal qual Bybee, Perkins e Pagliuca (1994) distinguem, observamos que as modalidades orientadas para o agente (OA) e orientada para o falante (OF), foram encontradas quase que na mesma proporção, com a sutil diferença de 50,9% para a OA e de 49,4% para a OF. Pudemos verificar, quanto ao comprometimento do falante em relação ao que diz na peça, que, no que tange à inclusão do falante, em sua maioria (67% dos casos), foi de não-inclusão. Portanto, a ordem dada sempre recai sobre outra pessoa, ocorrendo o distanciamento do falante em relação ao que diz. Tal fato nos proporciona o entendimento de um caráter impositivo nas interações dos personagens que se dão em meio familiar na peça de Tennessee Williams. Notamos nas marcas de asseveração da força ilocucuionária que os personagens utilizam mais um recurso reforçando a imposição na obra e marcando o caráter dominador, principalmente, da personagem da mãe. Tal asseveração nos foi revelada na peça em 55,3% dos casos, sendo a atenuação presente em 45%. 1228 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 Quanto ao posicionamento do enunciador (inclusão e não inclusão), as ocorrências revelaram 67% de não inclusão, enquanto que 33% de inclusão. Isso reflete o distanciamento do falante em relação ao que diz e evidencia o caráter autoritário nos diálogos entre os personagens da peça e nos enunciados de abertura e de fechamento das cenas. Também sobre a atitude do falante em relação ao que diz e de acordo com Bybee, Perkins e Pagliuca (1994), que consideram sob a modalidade orientada para o falante não somente o tipo exortativo, mas ainda o tipo admoestativo (o falante está emitindo um aviso), nos deparamos com casos de exortativo principalmente nos diálogos entre Tom e Amanda e que se dão em meio a discussões. Diante do exposto, verificamos que a modalidade serve ao propósito de construção do caráter dominador dos personagens na peça teatral The glass ménagerie, de Tennessee Williams, e se mostra em um grau mais acentuado na personagem de Amanda, a mãe. Também a modalidade orienta a conduta dos personagens levando a um dos momentos ápice na peça, quando, por exemplo, Tom, o filho, farto de tantas imposições, abandona o lar. Nesse âmbito, vê-se desmoronar o mundo de Amanda, construído sobre valores antigos, adquiridos em sua época da juventude. A orientação de conduta é também apresentada em outro momento clímax na obra, envolvendo Laura e Jim, em que Laura vê seu mundo imaginário, associado aos bichinhos de cristal que coleciona, se descortinar. E são esses aspectos que os sentidos veiculados por meio da modalidade permitem melhor compreender uma obra como a peça teatral The glass ménagerie. Tendo em vista a orientação de base funcionalista deste trabalho, tais valores propiciam a visão de um grau de aprofundamento da estória revelando o entrelaçamento das ações e dos personagens dentro do discurso, com riqueza de detalhes que uma leitura superficial não daria conta. Nesse contexto, a expressão da modalidade relaciona-se a tal riqueza. Por último, torna-se essencial destacarmos de acordo com Casimiro (2007) que a análise da modalidade deôntica depende essencialmente de um conjunto de regras sociais e morais estabelecidas de onde são estipulados os valores de permissão, proibição e obrigação. Tais normas podem aparecer em forma de leis, consuetudinário e até hábitos e costumes sob pena de alguma punição. Em nosso corpus, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1195-1231, jul./set. 2019 1229 os valores no campo da conduta se deram em meio familiar, sendo o reconhecimento dessas regras e valores o que designa dado membro como autoridade ou não. Destacamos aqui a personagem Amanda com seu índice elevado de autoridade. Por fim, consideramos que a investigação é relevante, uma vez que o entendimento acerca dos modalizadores deônticos veiculados no discurso dos personagens pode gerar orientações mais seguras aos estudiosos. Tal qual destaca Marcuschi (2005, p. 35), entendemos “[...] que o trabalho com gêneros textuais é uma extraordinária oportunidade de se lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia-a-dia”. O gênero peça teatral escolhido para efeitos desse artigo, oportuniza a compreensão de contextos múltiplos e diversos significados. Por esse motivo, explorá-lo pode ser de muita valia principalmente na área de ensino. Dessa feita, acreditamos que a investigação trará luz para os estudos de argumentação e do discurso. Também poderá guiar as escolhas de análises mais detalhadas de base funcionalista sobre as condições semiológicas por meio dos valores deônticos acionados no discurso dos interlocutores, para o entendimento de gêneros distintos como o das obras literárias. Agradecimentos A autora agradece a profa. Dra. Adriana Maria Tenuta de Azevedo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pelas contribuições que proporcionaram a melhor composição do artigo. Referências ALMEIDA, J. A categoria da modalidade. Uniletras, Ponta Grossa, v. 10, p. 10-24, 1988. BYBEE, J. The Semantic Development of Past Modals in English. In: BYBEE, J.; FLEISCHMAN, S. (Org.). Modality in Grammar and Discourse. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, 1995. p. 503-517. BYBEE, J.; PERKINS, R., PAGLIUCA, W. Mood and Modality. 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Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Perfilação sistêmica da Popularização da Ciência baseada na argumentação axial Systemic functional profiles of Popularization of Science based on axial argumentation Aline Barreto Costa Braga Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil linedrumondcosta@gmail.com Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo principal a perfilação sistêmica de textos de Popularização da Ciência por meio de análise de suas escolhas gramaticais para descrever a forma pela qual estes discursos criam variáveis no contexto de cultura (i.e., como esses discursos circulam na sociedade) (MARTIN, 1992). A perfilação sistêmica baseou-se na argumentação axial, mais especificamente nos sistemas de MODO, TRANSITIVIDADE, TEMA e MENSAGEM (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Desta forma, foram analisados através da Teoria Sistêmico-Funcional os níveis de interação e avaliação (metafunção interpessoal), representação da experiência (metafunção ideacional), construção e organização discursiva (metafunção textual) (HALLIDAY, 1967a, b, 1968) nos discursos da Popularização da Ciência em inglês e suas traduções para o português brasileiro. Para realização desta análise foi compilado um corpus de quatro textos baseado na tipologia dos textos no contexto de cultura (MATTHIESSEN et al., 2008), sendo estes: um texto em inglês do website “How Stuff Works” e sua tradução para o português brasileiro e um texto em inglês do programa televisivo “Beakman’s World” e sua tradução para o português brasileiro. Em seguida, os textos foram anotados segundo as metafunções ideacional, interpessoal e textual (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) e analisados de forma semiautomática para averiguar as frequências e distribuição funcional nos textos de Popularização da Ciência. A análise dos dados mostrou que os processos mais significativos para a construção do mundo de experiências foram os processos materiais e relacionais atributivos e identificativos. Interpessoalmente, a relação entre produtor e receptor do texto é representada através dos Modos Indicativo Interrogativo, Indicativo Declarativo e eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1233-1257 1234 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Imperativo. Textualmente, os textos são organizados de modo que as mensagens iniciais respondem às questões apresentadas, as continuidades acrescentavam informações às iniciais, as mensagens de descontinuidade: mudança colocavam participantes em evidência e as de descontinuidade: desvio, focalizavam o texto em algum evento em particular. Palavras-chave: abordagens sistêmicas da tradução; teoria sistêmico-funcional; argumentação axial; popularização da ciência. Abstract: This research aims at the creation of systemic functional profiles of Popularization of Science texts through the analysis of their grammatical choices. Those systemic functional profiles are based on axial argumentation, more specifically on the systems of MOOD, TRANSITIVITY, THEME and MESSAGE (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). In this sense, Popularization of Science texts in English and its translations into Brazilian Portuguese were analyzed according to Systemic Functional Theory on its levels of interaction, evaluation, representation of experience, discourse construction and discursive organization (HALLIDAY, 1967a, b, 1968). Based on the typology of language in the context of culture (MATTHIESSEN et al., 2008), four texts were collected: two texts from the website “How Stuff Works” – the English text and its translation into Brazilian Portuguese, and two texts from the TV program “Beakman’s World” – the English text and its translation into Brazilian Portuguese. These texts were annotated according to the ideational, interpersonal, and textual metafunctions (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) and the distribution of functions in Popularization of Science texts were retrieved. Data analysis showed how the texts where recontextualized (HALLIDAY; MARTIN, 1993), creating variables in the context of culture (MARTIN, 1992). The results showed that, ideationally, the most significant processes to represent the world of experiences in the texts were material and relational. Interpersonally, the relation between the producer and the receiver of the text was realized by Indicative Interrogative, Indicative Declarative, and Imperative Moods. Textually, initial messages guide the scientific explanation whereas continuity messages add further information about scientific facts. Discontinuity messages switch focus to specific events of the scientific explanation. Keywords: systemic approaches to translation; systemic functional theory; axial argumentation; popularization of science. Recebido em 29 de outubro de 2018 Aceito em 18 de dezembro de 2018 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1235 1 Introdução: perfilação sistêmica dos discursos da ciência Toda vez que um novo contexto de atividade científica surge, há uma tendência de que haja um empréstimo de outros contextos já existentes, que são reconfigurados e reordenados aos nos novos contextos (HALLIDAY; MARTIN, 1993). Esse processo de reconfiguração e reordenação do conhecimento é chamado de “recontextualização”. Uma das razões para a recontextualização do discurso científico é fazer com que ele se torne significativo aos não-especialistas. Com o intuito de demonstrar linguisticamente as implicações de uma das formas de recontextualização dos discursos da ciência (HALLIDAY; MARTIN, 1993), a presente pesquisa analisa os discursos da Popularização da Ciência em inglês e suas traduções para o português brasileiro através da Teoria Sistêmico-Funcional, analisando seus níveis de interação, avaliação, representação da experiência, construção e organização discursiva (HALLIDAY, 2002). Foram utilizados para a análise dois textos de Popularização da Ciência extraídos do website “How Stuff Works”, um texto em inglês e sua tradução para o português brasileiro e dois textos extraídos do programa televisivo “Beakman’s World”, um texto em inglês e sua tradução para o português brasileiro. Os objetivos desta análise são, primeiramente, apresentar através da tradução a perfilação sistêmica dos textos de Popularização da Ciência através de suas escolhas interpessoais, experienciais e textuais em inglês e tradução para português brasileiro, em segundo lugar, descrever como os discursos da ciência são recontextualizados (HALLIDAY; MARTIN, 1993) e, por fim, descrever a forma pela qual os textos destes diferentes sistemas linguísticos criam variáveis nos contextos de cultura (MARTIN, 1992). Tendo como base pesquisas anteriores (cf. FULLER, 1998), parte-se aqui do pressuposto de que um texto que busca tornar os métodos científicos acessíveis para a população em geral fará com que o produtor deste texto se preocupe em simplificar os termos técnicos e a abstração da ciência por meio de operações de recontextualização. Uma análise da Popularização da Ciência a partir da Teoria Sistêmico-Funcional por meio de análise metafuncional (MATTHIESSEN, 1995; MARTIN; ROSE, 2007), poderá levar a um melhor entendimento das estratégias de construção da Popularização da Ciência, bem como de suas estratégias de tradução, contribuindo assim para os Estudos da Tradução por uma abordagem sistêmica. 1236 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1.1 Argumentação axial e perfilação sistêmica A perfilação sistêmica dos textos de Popularização da Ciência baseou-se na argumentação axial, mais especificamente nos sistemas de MODO, TRANSITIVIDADE, TEMA e MENSAGEM (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) do inglês e do português brasileiro. Embora os textos pertençam a sistemas linguísticos diferentes, em um nível de delicadeza menor estes sistemas apresentam funções passíveis de comparação (TEICH, 1999), o que tornou possível a sistematização e comparação das escolhas gramaticais e semânticas de todos os textos selecionados para compor o corpus da pesquisa. De acordo com a Teoria Sistêmico Funcional (HALLIDAY, 2002), o sistema de MODO é parte da metafunção interpessoal. Este sistema possui as funções utilizadas para realizar a interação linguística, que acontece da função semântica (declaração, questão, comando, oferta) para a função gramatical (declarativa, interrogativa, imperativa). O sistema de TRANSITIVIDADE é parte da metafunção ideacional (HALLIDAY, 2002) e é responsável por representar o mundo da experiência (“o que está acontecendo”) gramaticalmente na oração através das figuras (de sentir, acontecer, fazer, ser ou ter) que são realizadas semanticamente através de processos (material, mental, relacional, verbal, comportamental e existencial). Os sistemas de TEMA e MENSAGEM são parte da metafunção textual (HALLIDAY, 2002). O sistema semântico de MENSAGEM engloba os recursos linguísticos textuais que operam para produzir e acumular significados. Estes significados são realizados gramaticalmente pelo sistema de TEMA. Nota-se, portanto, que a argumentação axial permite uma descrição textual que engloba a totalidade das funções gramaticais e semânticas dos textos tanto em inglês como português brasileiro. 2 Metodologia A metodologia desta pesquisa envolveu a coleta de um corpus de acordo com os processos sócio-semióticos (MATTHIESSEN et al., 2008) e a anotação semiautomática do corpus no programa UAMCorpusTool® para a extração das frequências relativas dos textos e posterior análise e discussão dos resultados. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1237 2.1 Coleta e Análise do Corpus Para a análise desta pesquisa, foram coletados quatro textos de Popularização da Ciência, dois do website “How Stuff Works”, um original em inglês e sua tradução para o português brasileiro, e dois do programa televisivo “Beakman’s World”, um original em inglês e sua tradução para o português brasileiro: O website “How Stuff Works” foi criado em 1998 e faz parte da companhia Discovery Communications e seu principal objetivo é “revelar como funciona o mundo de uma forma simples, clara e qualquer pessoa possa entender”.1 Este objetivo corresponde à definição do termo Popularização da Ciência, que envolve transmissão dos métodos e precisão da ciência utilizando uma linguagem clara e acessível a um grande número de pessoas (FULLER, 1998). Os textos extraídos do website “How Stuff Works” são o original em inglês “How does popcorn work?” e a tradução para o português brasileiro “Como funciona a pipoca?”. Ambos têm como tema a pipoca, ou seja, como os grãos de milho se transformam em pipoca. O programa televisivo “Beakman’s World” foi um programa televisivo educativo infantil que estreou nos Estados Unidos em 1992 pelo canal “The Learning Channel” e no Brasil em 1994 pelo canal “TV Cultura”. Nesse programa, o cientista Beakman acompanhado por uma assistente (na primeira temporada, Josie) e o rato de laboratório Lester, respondia cartas enviadas por telespectadores reais (americanos) com curiosidades sobre fatos, conceitos e acontecimentos científicos. Os textos do programa “Beakman’s World” extraídos para a análise são do episódio de número cinco da primeira temporada do programa em inglês “Leaves, Beakmania & Paper” e sua tradução para o português brasileiro “Folhas, Beakmania & Papel”. Esses textos correspondem a um trecho do programa no qual Beakman explica sobre a mudança de cor das folhas conforme a estação do ano. A Tabela 1 abaixo apresenta o corpus dessa pesquisa e seus respectivos números de tokens. 1 “Demystify the world and do it in a simple, clear-cut way that anyone can understand.” Disponível em: <http://www.howstuffworks.com/about-hsw.html>. Acesso em: 8 ago. 2012. 1238 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 TABELA 1 – Corpus e número de tokens Inglês Português brasileiro How Stuff Works 389 358 Beakman’s World 417 406 Total 806 764 A seleção dos textos para utilização como corpus de análise nesta pesquisa foi feita através da classificação de seus processos sóciosemióticos (MATTHIESSEN et al., 2008), como pode ser visto na Figura 1 abaixo. FIGURA 1 – Corpus desta pesquisa classificado de acordo com os processos sócio-semióticos Fonte: adaptado de Matthiessen et al., 2008 Como pode ser observado na Figura 1, os textos do website “How Stuff Works” são do processo sócio-semiótico Explicar, processo este onde a língua é usada para transmitir conhecimento. Já os textos do Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1239 programa televisivo “Beakman’s World” são do processo sócio-semiótico Recriar, onde outro processo sócio-semiótico que já foi codificado é recodificado de forma ficcional. A classificação dos textos do corpus de acordo com seus processos sócio-semióticos (MATTHIESSEN et al, 2008) contribuiu tanto para a coleta dos textos quanto para a localização dos mesmos no contexto de cultura. A ánalise do corpus se deu de forma semiautomática através do programa UAMCorpusTool®. O UAMCorpusTool® é um programa criado para a anotação linguística de textos e imagens (O’DONNELL, 2008). 3 Resultados e Discussão Os dados fornecidos pelo programa UAMCorpusTool® possibilitaram a perfilação sistêmica dos textos de Popularização da Ciência em inglês e suas traduções para o português brasileiro. As análises interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos do website “How stuff works” e do programa televisivo “Beakman’s World” e os perfis sistêmicos decorrentes destas análises são apresentados nas seções a seguir. 3.1 Website How Stuff Works Os textos escolhidos do site How Stuff Works para as análises desta pesquisa foram “How does popcorn work” e sua tradução “Como funciona a pipoca”. Seus perfis interpessoal, ideacional e textual serão apresentados a seguir. 3.1.1 Análise Interpessoal O que se observou dos dados2 do corpus na análise interpessoal é que, por se tratarem de textos do tipo Explicar, a grande probabilidade de ocorrência do Modo Indicativo Declarativo é esperada tanto em inglês quanto em português brasileiro, uma vez que este processo sócio-semiótico tem por característica a transmissão de conhecimento, no caso de um especialista a um leigo (MATTHIESSEN et al., 2008). Essa transmissão de conhecimento se dá através do Modo Indicativo 2 Todas as informações apresentadas nesta pesquisa foram decorrentes dos dados extraídos do corpus no programa UAMCorpusTool®. 1240 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Declarativo que tem por função semântica o fornecimento de informação, como pode ser visto nos exemplos (1) e (2): (1) Unless the percentage of moisture in the kernel is just right, the kernel won’t pop. (2) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura. Nota-se também que o uso do Modo Interrogativo nesses textos realiza a função semântica de demanda de informação. Nos exemplos (3) e (4) abaixo, são explicitadas as duas orações do Modo Interrogativo presentes no começo tanto do texto em inglês quanto em sua tradução para o português brasileiro: (3) How does popcorn work? (4) Como funciona a pipoca? A análise dos Modos Indicativo Declarativo e Interrogativo demonstrou que a demanda e o fornecimento de informação em um texto de Popularização da Ciência corresponde a uma simulação de uma interação real: um leigo possui uma curiosidade sobre um fato científico e demanda uma explicação sobre esse fato ao cientista através do Modo Interrogativo, que o responde através do Modo Indicativo Declarativo. A reconstrução do senso comum para o mundo científico não deveria ocorrer pelo princípio monológico da reformulação e sim pelo princípio da negociação (FULLER, 1998). Isso implica na junção de diferentes vozes sociais contextualizadas discutindo um problema e não apenas uma só voz que o constrói tecnicamente. Essas “diferentes vozes sociais” são realizadas no texto através dos Modos Indicativo Declarativo e Interrogativo. A voz do leigo é realizada pelo Modo Indicativo Interrogativo – “How does popcorn work?” – e a voz do cientista pelo Modo Indicativo Declarativo – “When a popcorn kernel heats up (either in a popcorn popper or in the microwave), the moisture inside the kernel expands”. Outro Modo presente nos textos é o Modo Imperativo. Nos exemplos (5) e (6) abaixo, temos o uso do Modo Imperativo, que realiza a função discursiva de demanda de bens e serviços: (5) Use a needle or pushpin to puncture the shells of a number of popcorn kernels. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1241 (6) “Use uma agulha ou alfinete para furar as cascas de algumas sementes de pipoca. Através do Modo Imperativo, o autor faz com que o leitor seja convidado a participar do mundo científico. Gramaticalmente, o leitor é realizado como sujeito da oração imperativa levando-o, por si próprio a ter uma experiência com os fatos que lhe foram apresentados, ajudando na “revelação de como funciona o mundo”. Além disso, o autor busca também contra argumentar juízos que possam ser feitos sobre sua obra (FULLER, 1998). Com o auxílio do Modo Imperativo, o autor pode solicitar ao seu leitor que efetue uma experiência para provar o que foi dito e ao mesmo tempo, estabelece suas credenciais com o leitor, pois comprova a veracidade do texto. 3.1.2 Análise Ideacional Quanto a análise ideacional, através da análise dos dados, notouse que, por se tratarem de textos científicos, os acontecimentos relatados são mudanças que acontecem no mundo real, o que é expresso por processos materiais tanto no texto em inglês como na tradução, o que pode ser visto nos exemplos abaixo (7) e (8): (7) The kernel explodes. Processo: Material (8) Uma semente de pipoca esquenta. Processo: Material Os processos relacionais atributivos e identificativos também são significativos nos dois textos. Eles aparecem quando é necessária uma explicação mais detalhada dos conceitos científicos apresentados. Nos exemplos (9), (10), (11) e (12) abaixo, aos conceitos científicos são dadas identidades e atributos para que se tornem mais claros: (9) Silly string is a liquid. Processo: Relacional Identificativo (10) A pipoca é um prato feito de uma variedade de milho. Processo: Relacional Identificativo 1242 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 (11) That part seems normal enough. Processo: Relacional Atributivo (12) A umidade é extremamente importante para a pipoca. Processo: Relacional Atributivo Ao se divulgar a ciência, é preciso que haja uma simplificação dos termos técnicos da ciência para a linguagem cotidiana (FULLER, 1998). Estes termos são então “traduzidos” para uma linguagem mais simples, comentados, criticados e/ou validados. O recurso utilizado para a “tradução” dos termos técnicos são os processos relacionais atributivos e identificativos. Os processos mentais, apesar de apresentarem baixa ocorrência relativa, são significativos, pois são utilizados quando há uma tentativa de aproximação entre o autor e o leitor, uma vez que o leitor do texto é realizado gramaticalmente como o experienciador desses processos mentais. Através do uso dos processos mentais, o leitor é convidado a participar do mundo científico, a perceber o que vem sendo dito. Nos exemplos (13) e (14) abaixo, o leitor aparece através dos processos mentais: (13) You will find. Processo: Mental (14) Veja abaixo três experiências que você pode fazer... Processo: Mental Um entendimento crítico da ciência envolve a mudança entre o foco de transmissão de informação para o da construção de significado (BROKS, 2006). Os processos mentais aparecem no texto para que o leitor/ouvinte não seja representado como um receptor passivo de informação e sim como um construtor ativo de significado, pois eles o invocam para que se busque esta construção. 3.1.3 Análise Textual Na análise textual, os dados demonstraram que, ao se ler as mensagens iniciais juntamente com as suas continuidades, não só a pergunta é respondida, como outras informações importantes sobre a ciência envolvida no fenômeno da pipoca são apresentadas. A função das Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1243 mensagens de continuidade é, portanto, acrescentar maiores informações as mensagens iniciais. Assim como no texto em inglês, as mensagens iniciais e suas continuidades do texto em português respondem a pergunta inicial “Como funciona a pipoca?”, como pode ser visto nos pares de exemplos (15) e (16) e (17) e (18): (15) Popcorn is certainly unique. Mensagem Inicial (16) Not too many foods act this way. Continuidade (17) Quando uma semente de pipoca esquenta (em uma panela, pipoqueira ou forno de microondas), a água dentro da semente se expande. Mensagem Inicial (18) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura. Continuidade No que concerne às mensagens inicias e continuidades, a diferença entre o texto em inglês e a tradução para o português está na primeira inicial e sua continuidade (ver exemplos 19 e 20): (19) Como funciona a pipoca? Mensagem Inicial (20) A pipoca (do tupi antigo pira - pele + pok - estourar = pele estourada) é um prato feito a partir de uma variedade de milho (milho de pipoca), que explode quando aquecido. Continuidade Essa diferença se deve a uma continuidade nova adicionada pelo tradutor do texto à primeira mensagem inicial, o que não existia no texto em inglês. Cabe ressaltar, contudo, que o padrão de organização textual não se altera, uma vez que a relação entre a mensagem inicial e sua continuidade é responder à pergunta/explicação adicional. 1244 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 As mensagens de descontinuidade:mudança colocam em evidência participantes e acrescentam características específicas destes participantes, como visto nos sublinhados dos exemplos (21) e (22) abaixo: (21) Popcorn certainly is unique. You toss a flat pouch no larger than a wallet into a microwave oven and in three minutes, it has expanded to a volume 40 or 50 times its original size. Descontinuidade:mudança (22) A pipoca tem características muito interessantes.Você coloca uma embalagem achatada (menor do que uma carteira) no forno de microondas e em três minutos ela se expande até chegar a um volume 40 ou 50 vezes maior do que sua forma original. Descontinuidade:mudança Os exemplos (21) e (22) demonstram que as mensagens iniciais anteriores as de descontinuidade:mudança apresentavam um participante (a pipoca), que foi enfocado e caracterizado pelas mensagens de descontinuidade:mudança. Portanto, essas mensagens direcionam o fluxo do texto a um participante específico, ao enfocar suas características. As mensagens de descontinuidade:desvio desviam o foco do texto para um dos eventos que acontecem com o milho de pipoca, como pode ser visto nos exemplos (23) e (24), destacados em sublinhado. (23) Unless the percentage of moisture in the kernel is just right, the kernel won’t pop. When the pressure inside the hard shell gets high enough, the kernel explodes. Descontinuidade:desvio (24) Se não houver água na medida certa, a semente não estoura. Quando a pressão dentro da casca aumenta bastante, a semente estoura. Descontinuidade:desvio Os exemplos (23) e (24) demonstram que as mensagens de descontinuidade:desvio, focalizam o texto em eventos em particular referentes aos participantes citados nas orações anteriores. Quanto ao arranjo, algumas das mensagens iniciais de cada uma das partes do possuem um tipo de arranjo que é seguido tanto pelas Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1245 continuidades como pelas mudanças (na forma de arranjo-default). Os exemplos (25), (26), (27), (28) explicitam os tipos de arranjo encontrados no texto original em inglês. E os exemplos (29), (30) e (31) explicitam os tipos de arranjo encontrados no texto traduzido para o português brasileiro: (25) How does popcorn work? arranjamento explícito (periódico) (26) Popcorn is certainly unique. arranjamento explícito (periódico) (27) There are three elements that make popcorn work like this. arranjamento implícito (em série) (28) Here are three experiments you can perform to get a better understanding of how popcorn works. arranjamento implícito (em série) (29) Como funciona a pipoca? arranjamento explícito (periódico) (30) Existem três elementos que fazem a pipoca funcionar assim. arranjamento implícito (em série) (31) Veja abaixo três experiências que você pode fazer para entender melhor como funciona a pipoca. arranjamento implícito (em série) A análise textual dos textos do website “How Stuff Works” em inglês e tradução para o português brasileiro permitiu visualizar suas configurações, bem como são organizados os significados interpessoais e ideacionais nesses textos. 3.1.4 Perfilamento sistêmico dos textos do website “How Stuff Works” As análises interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos do website “How Stuff Works” em inglês “How does popcorn work?” e português brasileiro “Como funciona a pipoca?” levaram aos perfis sistêmicos apresentados nas Figuras 2 e 3 abaixo: 1246 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 FIGURA 2 – Perfil sistêmico do texto original em inglês “How does popcorn work?” Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1247 FIGURA 3 - Perfil sistêmico do texto traduzido para o português brasileiro “Como funciona a pipoca?” Os perfis sistêmicos permitiram dividir os textos em fases: “dúvida”, “características gerais”, “explicação” e “experimento”. Desta forma, é possível observar os padrões gramaticais escolhidos para cada uma das fases. Na seção a seguir serão apresentados os perfis referentes aos textos do programa televisivo Beakman’s World. 1248 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 3.2 Programa Televisivo Beakman’s World “Beakman’s World”, traduzido para o português brasileiro como “O Mundo de Beakman” foi um programa televisivo da década de 90 que tinha por objetivo a transmissão do conhecimento de especialistas para crianças. Os textos escolhidos para a análise desta pesquisa foram “Leaves, Beakmania & Paper” e sua tradução para o português brasileiro “Folhas, Beakmania & Papel”. Seus perfis interpessoal, ideacional e textual serão apresentados a seguir. 3.2.1 Análise Interpessoal A análise interpessoal demonstrou que, assim como os textos do website “How Stuff Works”, há uma predominância do Modo Indicativo Declarativo nos textos do programa televisivo “Bekman’s World”. O Modo Indicativo Declarativo neste caso também possui a mesma função discursiva: o fornecimento de informação. Isso é visto nos exemplos (32) e (33) abaixo: (32) In the fall leaves turn into yellow, and red or orange but they don’t really change color. (33) No outono as folhas tornam-se amarelas, vermelhas ou cor de laranja, mas não chegam a mudar de cor. O que difere estes textos quanto ao Modo Indicativo Declarativo é uma ocorrência do Modo Indicativo Declarativo tendo como função discursiva a demanda de bens e serviços, como explicitado nos exemplos (34) e (35): (34) Josie, I need a boguscope! (35) Josie, eu preciso do boguscópio! Neste caso, o Modo Indicativo Declarativo está sendo utilizado como uma metáfora interpessoal, pois o Modo esperado nesta situação seria o Imperativo, uma vez que Beakman está demandando bens e serviços (boguscópio). Quanto ao Modo Indicativo Interrogativo, este está distribuído ao longo dos textos do programa “Beakman’s World”. Toda vez que Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1249 existe a necessidade de se explicar mais detalhadamente sobre algum assunto tratado no programa, o Modo Indicativo Interrogativo aparece. Os exemplos (36), (37), (38), (39), (40) e (41) abaixo são exemplos do Modo Indicativo Interrogativo com função discursiva de demanda de informação: (36) Why do the leaves in my backyard change color? (37) Por que as folhas do jardim mudam de cor? (38) What do they do? (39) O que elas fazem? (40) What’s chlorophyll doing on the leaf in the first place? (41) O que é que a clorofila faz para a folha? Por se tratar de um texto do tipo Recriar que recria ficcionalmente um texto Explicar, personagens interagem a todo o tempo então o Modo Indicativo Interrogativo é uma maneira de constantemente demandar informações para simplificar ainda mais os conceitos apresentados. Percebe-se também através da pergunta polar a tentativa de um dos personagens de fazer com que os conceitos apresentados se tornem mais claros. Como pode ser visto nos exemplos (42) e (43), as perguntas polares fazem com que seja enfocada uma determinada parte da explicação que pode não ter ficado exatamente clara para o telespectador e é explicada em seguida: (42) They turn color, but they don’t change color? (43) Elas mudam de cor, mas não mudam de cor? O Modo Imperativo é utilizado por Beakman para chamar a atenção do telespectador, solicitando bens e serviços, como pode ser visto nos exemplos (44) e (45) abaixo: (44) Come with me! (45) Venha comigo! 1250 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Através do Modo é possível observar a forma pela qual cada um dos personagens contribui de forma diferente para o texto. Quem escreve a carta faz a pergunta inicial da Popularização por meio de uma interrogativa – “Dear Beakman, why do the leaves in my backyard change color?” –; Josie faz a interrogativa por mais explicação – “What do they do?” –; Beakman faz as declarativas que respondem – “They loose a color: green”. Além disto, Beakman faz os imperativos que chamam a atenção do telespectador. 3.2.2 Análise Ideacional Os dados mostraram que os processos materiais foram os que apareceram em maior número, uma vez que os fenômenos apresentados durante o texto causam impacto no mundo material (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 1999), como visto nos exemplos (46) e (47) abaixo: (46) The green color goes away. Processo: Material (47) A cor verde desaparece. Processo: Material O texto em português brasileiro possui dois processos materiais a mais que o em inglês porque os processos comportamentais do inglês foram traduzidos em português como materiais – “We breathe out the carbon dioxide the tree needs to live”; “E nós liberamos em troca o gás carbônico que ela precisa para viver”. Os processos relacionais identificativos e atributivos aparecem quando é necessária uma explicação que torne mais claros os conceitos apresentados: (48) The green chemical is called chlorophyll Processo: Relacional Identificativo (49) A maple leaf has lots of colors. Processo: Relacional Atributivo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1251 Os processos verbais aparecem quando Beakman interage com um personagem imaginário. As respostas do personagem contêm processos verbais. (50) Don’t ask me (51) Não pergunte para mim! Já os processos mentais aproximam Beakman tanto do autor da pergunta do programa (Bert) quanto dos telespectadores. (52) The color we see most is green. (53) A cor que vemos melhor é o verde. 3.2.3 Análise Textual Na análise textual, o que diferencia o programa televisivo “Beakman’s World” do website “How Stuff Works” são os arranjamentos com fases interpoladas. Esses arranjamentos foram separados segundo as diferentes fases a fim de facilitar a análise e melhor explicitar os movimentos do diálogo. As fases são I – carta do telespectador; II – comentário do Lester; III – nova dúvida do telespectador e IV – maiores informações. A Fase I, a mensagem inicial (em negrito) tem arranjamento explícito (periódico). Essa mensagem inicial é a que introduz a dúvida do telespectador e os diálogos que se seguem a ela são de continuidade (em sublinhado) com arranjo-default. A mensagem de descontinuidade:mudança (em itálico) é usada para fazer com que o telespectador fique focado na resposta da pergunta: (54) What do they do? descontinuidade: mudança Josie, através da fala do exemplo (54) faz uma pergunta que muda o foco do diálogo para o que acontece com as folhas, já que a pergunta de Lester foi uma continuidade e não uma mudança e, portanto, não exige que Beakman mude o foco de sua explicação, podendo apenas ignorá-lo. 1252 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Na fase II, Lester faz um comentário através de uma mensagem inicial que muda o arranjamento do texto, tanto em inglês, quanto em português. Na continuação da fase I que foi interpolada pela fase II, o comentário de Lester é ignorado por Beakman que conclui a explicação da pergunta através do arranjo anterior ao que foi feito por Lester, que era o arranjamento explícito (periódico), portanto a continuidade expressa por Beakman não é em relação a inicial de Lester, mas sim a primeira inicial. As mensagens de descontinuidade:mudança usadas por Beakman destacam um dos aspectos da explicação: as folhas de bordo. As mensagens de descontinuidade:desvio (em letras maiores), mudam o foco do texto para o que acontece com as folhas no outono. Na fase III, após a conclusão da resposta da pergunta inicial do programa, Josie recebe um “telefonema” do telespectador que escreveu a carta, que é expresso por uma mensagem inicial. No telefonema, o telespectador faz uma pergunta que Beakman responde através das continuidades. E por fim, na fase 4, Beakman dá mais informações sobre as árvores através de uma inicial e suas continuidades. Todos estes movimentos de diálogo podem ser observados na próxima seção. 3.2.4 Perfilamento sistêmico dos textos do programa televisivo “Beakman’s World” As análises interpessoal, ideacional e textual dos textos extraídos do programa televisivo “Beakman’s World” em inglês “Leaves, Beakmania and Paper” e português brasileiro “Folhas, Beakmania e Papel” levaram aos perfis sistêmicos apresentados nas Figuras 4 e 5 abaixo: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1253 FIGURA 4 – Perfil sistêmico do texto em inglês “Leaves, Beakmania & Paper” Fase I: carta do telespectador Fase II: comentário do Lester Fase I: carta do telespectador (continuação) Fase III: nova dúvida do telespectador Fase IV: Beakman adiciona novas informações 1254 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 FIGURA 5 – Perfil sistêmico do texto traduzido para o português brasileiro “Folhas, Beakmania & Papel” Fase I: carta do telespectador Fase II: comentário do Lester Fase I: carta do telespectador (continuação) Fase III: nova dúvida do telespectador Fase IV: Beakman adiciona novas informações Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 1255 4 Conclusão Partindo da questão da recontextualização (HALLIDAY; MARTIN, 1993) dos discursos científicos, a presente pesquisa analisou o tipo de recontextualização que busca levar o conhecimento científico ao maior público possível: a Popularização da Ciência (BROKS, 2006). As escolhas interpessoais, experienciais e textuais dos textos do corpus foram analisadas e levaram a resultados que visaram descrever como acontece a recontextualização tanto em inglês como na tradução para o português brasileiro, em dois tipos de textos (MATTHIESSEN et al., 2008) relativos à Popularização da Ciência: Explicar/Monólogo/Escrito (“How Stuff Works”) e Recriar/Diálogo/Falado (“Beakman’s World”). Tendo como objetivo principal descrever a forma pela qual os textos destes diferentes sistemas linguísticos criam as variáveis no contexto de cultura (MARTIN, 1992), esta pesquisa procurou desenvolver uma proposta de sistematização das escolhas gramaticais de modo a produzir a perfilação sistêmica dos textos. A análise gramatical mostrou que, no que concerne às escolhas interpessoais, elas são as responsáveis pela relação entre produtor e receptor do texto. As escolhas mais relevantes dos textos de Popularização da Ciência tanto em inglês quanto nas traduções para português brasileiro foram o Modo Indicativo Interrogativo que tem a função de introduzir a curiosidade científica que será explicada. O Modo Indicativo Declarativo tem a função de explicar os fatos científicos e Modo Imperativo convida o leitor a participar da experiência científica. Nas escolhas ideacionais, que são as responsáveis pela representação do mundo de experiências, as escolhas mais relevantes dos textos de Popularização da Ciência em inglês e português brasileiro são: processos materiais e relacionais. Os processos materiais representam os fenômenos do mundo natural que são estudados pela ciência. Os relacionais “traduzem” os termos técnicos da ciência. Por fim, nas escolhas textuais, a função das mensagens iniciais é buscar responder às questões que são apresentadas. A função das mensagens de continuidade é acrescentar informações às iniciais. As mensagens de descontinuidade: mudança colocam participantes em evidência e as de descontinuidade: desvio, focalizam o texto em algum evento em particular. 1256 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1233-1257, jul./set. 2019 Conclui-se que a dimensão sistêmica permite uma descrição textual que compreende a totalidade das funções gramaticais e semânticas dos textos, garantindo que os perfis sistêmicos gerados sejam aplicáveis a várias áreas do conhecimento linguístico. No que concerne à tradução, os perfis sistêmicos criados são aplicáveis às escolhas tradutórias, uma vez que as escolhas metafuncionais de dois sistemas linguísticos diferentes foram contrastadas. Já ao ensino de línguas, os perfis sistêmicos podem ser utilizados como parâmetros para produção textual, uma vez que demonstram como os textos se desenvolvem, bem como seus padrões sistêmicos. Além dos resultados, a metodologia desta pesquisa também se mostrou útil, demonstrando seu potencial de replicabilidade para pesquisas futuras que visem explicitar aspectos funcionais de outros tipos de recontextualização dos discursos científicos. Referências BROKS, P. Understanding Popular Science. Berkshire: Open University Press, 2006. FOLHAS, BEAKMANIA & PAPEL. O Mundo de Beakman. São Paulo: TV Cultura, 1994. Programa de TV. FULLER, G. Cultivating science: negotiating discourse in the popular texts of Stephen Jay Gould. In: MARTIN, J.; VEEL, R. Reading Science: Critical and Functional Perspectives on Discourses of Science. London; New York: Routledge, 1998. p. 35-62. HALLIDAY, M. A. K. On grammar. London: Continuum, 2002. HALLIDAY, M. A. K.; MARTIN, J. R. Writing Science: Literacy and Discursive Power. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1993. HALLIDAY, M. A. K.; MATTHIESSEN, C. M. I. M. An Introduction to Functional Grammar. 3. ed. London: Arnold, 2004. HALLIDAY, M. A. 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Esta pesquisa tem como objetivo investigar as ocorrências de valoração por estágios narrativos em excertos do conto Eveline, de James Joyce, e suas variações semânticas em duas traduções distintas para o português brasileiro. O trabalho se calca no arcabouço do sistema de valoração e adota o conceito literário de estágio (ROTHERY, STENGLIN, 1997) para o estudo das ocorrências. A metodologia utilizada foi semiautomática e envolveu três passos principais: seleção dos excertos de cada estágio narrativo e seus correspondentes nos textos-traduzidos; inserção e anotação dos excertos em planilhas eletrônicas; e comparação entre ocorrências de valoração entre os textos a fim de possibilitar a identificação de variações semânticas nas reinstanciações. Os resultados alcançados indicam a ocorrência de valorações com configurações similares, alinhadas a orientações de valor. Variações semânticas foram devidas majoritariamente a variações em acoplamento e calibragem nos subsistemas de atitude, carga e gradação. O subsistema de gradação foi especialmente produtivo no estudo de variações, devido ao não-acoplamento ou calibragem em menor grau nas ocorrências valorativas nas reinstanciações. a análise valorativa revelou-se produtiva para a identificação de valorações com configurações similares e de variações semânticas em textos traduzidos. Palavras-chave: valoração; reinstanciação; variações semânticas; Eveline. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1259-1294 1260 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 Abstract: This study investigates occurrences of appraisal (MARTIN, WHITE, 2005) in a literary text written in English and the re-instantiation of appraisal in translations to Brazilian Portuguese. This study aims to analyze appraisal occurrences in excerpts of the short story Eveline by James Joyce, and semantic variation in two distinct translations to Brazilian Portuguese. Analysis is based on the appraisal system’s framework and adopts the literary concept of stage (ROTHERY, STENGLIN, 1997). The adopted methodology was semi-automatic and involved three main steps: selection of excerpts from each narrative stage and their correspondent excerpts in the translated texts; insertion of texts in electronic sheets and annotation; and comparison of appraisal occurrences between texts in order to enable the identification of semantic variations in the re-instantiations. Results indicate the occurrence of evaluations with similar configurations, which were aligned to value orientations. Semantic variation was due mainly to different coupling and commitment of the attitude, loading and graduation subsystems. graduation was especially productive due to non-coupling or commitment in lesser degree in appraisal occurrences in the re-instantiations. appraisal analysis was shown to be productive for the identification of occurrences with similar configurations and semantic variation in translated texts. Keywords: appraisal; re-instantiation; semantic variation; Eveline. Recebido em 11 de outubro de 2018 Aceito em 03 de janeiro de 2019 1 Introdução O sistema de valoração (appraisal), como desenvolvido em Martin e White (2005), tem o propósito de possibilitar a investigação das formas como textos são construídos por comunidades de valores compartilhados e como posicionam o escritor e os leitores quanto a sentimentos e afirmações normativas. Desenvolvido dentro de um âmbito sistêmico-funcional, a valoração é um sistema da metafunção interpessoal: lida, portanto, com a negociação de relações sociais. Por sua orientação interpessoal e por se ocupar de sentimentos e valores compartilhados por comunidades, a valoração tem sido utilizada como arcabouço em diversos estudos empíricos com textos traduzidos, a fim de verificar variações nas construções desses valores em diferentes comunidades. Estudos como Rosa (2008), Munday (2012), Blauth (2015) e Dias e Magalhães (2017) provaram a relevância do estudo do sistema Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1261 para a investigação de textos literários traduzidos, através da verificação de variações em significados valorativos em textos-fonte (TFs) e textos traduzidos (TTs). Estes estudos, entretanto, não puderam abranger a inter-relação das valorações no desdobramento do texto literário, uma vez que sua abordagem de corpus envolve a análise de ocorrências isoladas no texto. Visto que a valoração é um sistema pertencente ao estrato semânticodiscursivo da linguagem, os significados valorativos se propagam ao longo do texto e colorem outros significados (MARTIN, WHITE, 2005; MARTIN, ROSE, 2007), afetando o posicionamento do leitor. Assim, a análise semântico-discursiva da valoração implica a consideração de ocorrências não de forma isolada, mas em relação a outras ocorrências que podem afetar sua leitura. A fim de preencher esta lacuna, este artigo segue a perspectiva semântico-discursiva e apresenta um recorte da pesquisa desenvolvida em Cristófaro (2018), investigando excertos do TF Eveline, conto de autoria de James Joyce e publicado em 1914 na coletânea Dubliners, e duas traduções para o português brasileiro. A primeira delas foi publicada em 1964 e feita por Hamilton Trevisan; a segunda foi feita por José Roberto O’Shea e publicada em 1993. Propõe-se, assim, investigar a ocorrência de significados valorativos nos estágios e verificar a ocorrência de variações semânticas nas reinstanciações dos excertos do conto Eveline, utilizando os conceitos narrativos de Rothery e Stenglin (1997) e fase de Macken-Horarik (2003) e Martin e Rose (2008). Os conceitos de variação semântica e reinstanciação, desenvolvidos por Souza (2013), são utilizados na investigação dos significados valorativos nos TTs em comparação com o TF. A metodologia da pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo calca-se em Martin e White (2005) quanto à classificação geral do sistema de valoração e em Macken-Horarik e Isaac (2014) no que tange às categorizações do subsistema de atitude, especialmente no que concerne aos quadros desenvolvidos para análise. Com base no arcabouço teórico utilizado, foram elaboradas as seguintes perguntas de pesquisa para o presente artigo: 1262 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1) Como se configuram os acoplamentos de subsistemas em ocorrências valorativas nos estágios do excerto? Ocorrências podem ser alinhadas a orientações de valor? 2) São identificadas variações semânticas nas configurações valorativas? Estas implicam variação no alinhamento de ocorrências a orientações de valor nas reinstanciações? 3) São identificadas variações nos subsistemas de gradação e carga? Como se configuram? A fim de procurar responder às perguntas de pesquisa formuladas e alcançar os objetivos deste trabalho, foi elaborada a fundamentação teórica apresentada na seção a seguir. 2 Fundamentação teórica Esta seção visa apresentar os textos sobre os quais esta pesquisa se calca e está dividida em três subseções. Primeiramente serão apresentadas as definições de estágio e fase na abordagem semântico-discursiva, a fim de elucidar os conceitos-base que norteiam a pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo. Na subseção seguinte serão apresentados conceitos e classificações relativos ao sistema de valoração. A terceira subseção revisará alguns trabalhos que abordaram a valoração em textos traduzidos. 2.1 Os conceitos de estágio e fase na abordagem semântico-discursiva A abordagem semântico-discursiva da valoração envolve o estudo do significado para além das orações – isto é, em textos. Como aponta Martin e White (2005), realizações atitudinais tendem a se propagar pelo discurso, “colorindo” outros significados. Assim, a análise valorativa realizada sob a perspectiva semântico-discursiva se propõe a investigar como as prosódias valorativas negociam poder e solidariedade entre os leitores do texto que instancia o gênero e o gênero em si, como operam para alcançar o objetivo do gênero e como significados deste tipo variam a cada estágio do discurso. Os estágios discursivos de um texto são estáveis, como aponta Martin e Rose (2008). As configurações específicas dos estágios são, portanto, reconhecíveis em todas as instâncias de um mesmo gênero, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1263 isto é, em todos os textos que instanciam o gênero. A fim de definir características dos estágios discursivos, Rothery e Stenglin (1997) adota essa perspectiva e a expande. Especificamente sobre o gênero narrativa, no qual o excerto do conto analisado neste estudo se encaixa, Rothery e Stenglin (1997) aponta que é construído em torno de uma problemática, usualmente introduzida no estágio chamado Complicação, e que implica ruptura de eventos usuais no universo narrativo. Rothery e Stenglin (1997) identifica quatro estágios obrigatórios nesse gênero: Orientação, Complicação, Avaliação e Resolução. A Orientação é o estágio obrigatório inicial, cujo propósito é orientar o leitor quanto ao cenário e personagens. A Complicação é o estágio no qual é introduzida a ruptura na sequência usual de atividades, e a partir de qual é construída a problemática da narrativa e a procura de sua solução; visto que a procura de uma solução é o ponto central, este estágio é considerado o centro do gênero narrativa. A Resolução é o estágio final, no qual é oferecido um retorno à estabilidade. De acordo com Rothery e Stenglin (1997), a Avaliação está intercalada na Complicação. Isso se deve ao destaque dado aos significados interpessoais e à ruptura da usualidade no universo narrativo, o que implica destaque da reação emocional dos personagens inseridos na problemática. Abordando os estágios do gênero narrativa sob uma perspectiva valorativa, Macken-Horarik (2003) descarta a separação da Avaliação, visto que este estágio se encontra intercalado. Esta é a perspectiva adotada neste trabalho: considerando-se que as avaliações (e, por consequência, escolhas valorativas) estão espalhadas ao longo dos demais estágios, não seria possível limitá-las a somente um estágio narrativo. Os estágios de um texto, por sua vez, são compostos por segmentos menores, chamados de fases discursivas. Fases, em oposição a estágios, são segmentos pouco previsíveis e bastante variáveis de um texto para outro, como destaca Martin e Rose (2008). No que tange à segmentação de textos em fases discursivas, Macken-Horarik (2003) opta por utilizar a valoração como um dos parâmetros para separação: diferenças em configurações avaliativas, isto é, em diferentes alvos de avaliações, tipos de atitude, e outras classificações, são cruciais para a delimitação de fases em um texto. 1264 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 2.2 O sistema de valoração Tendo sido definidos os conceitos de estágio e fase, parte-se para a exposição das diferentes escolhas dos subsistemas da valoração, de acordo com as categorias apresentadas em Martin e White (2005). Os subsistemas abordados na presente análise são cinco: atitude, carga e modo de realização; comprometimento; e gradação. O Quadro 1 a seguir ilustra as opções dos subsistemas que compõem o sistema de valoração: QUADRO 1 – Opções do sistema da valoração Subsistema 1º. grau de especificidade 2º. grau de especificidade Afeto atitude Julgamento -- Apreciação Positivo carga Negativo -- Inscrito modo de realização Evocado -- Monoglossia -Contrair comprometimento Heteroglossia Expandir Aumentar Força Diminuir gradação Enfocar Foco Desfocar Fonte: Elaborado pela autora para fins desta pesquisa com base em Martin e White (2005). Da forma como são utilizadas nesta pesquisa, as escolhas do sistema podem chegar até o segundo grau de especificidade. Destaca-se que, embora escolhas em outros graus estejam disponíveis, não foram utilizadas no presente trabalho. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1265 São três as escolhas do primeiro grau de especificidade do subsistema de atitude: afeto, julgamento e apreciação. O afeto aborda os recursos linguísticos relacionados às reações emocionais, tais como “feliz”, “chatear”. Destaca-se que, por serem valorações sentimentais, aquele que as sente (isto é, a origem da emoção) é considerado o emotivo e, portanto, o avaliador. Aquilo que gera a emoção é chamado de gatilho, isto é, o avaliado. O julgamento é relacionado a valorações de comportamentos de acordo com princípios normativos, e relativo a aspectos sociais ou institucionais. Assim, exemplos de valorações deste tipo são “corajoso”, “honesto”, “powerful”, “evil”, verbos modais como “deveria”, “should”, ou “obrigação”. O julgamento pode incidir sobre pessoas ou instituições. Já a apreciação age sobre coisas e fenômenos naturais, envolvendo valorações de natureza primariamente estética; realizações ilustrativas são “bonito”, “fantástico”, “captivating”, “tedious”. Todas essas valorações podem ter carga positiva ou negativa: uma valoração de carga positiva seria o recurso linguístico “bonito”, enquanto uma escolha de carga negativa seria “feio”. Todas as valorações são feitas de forma inscrita ou evocada, escolhas localizadas no primeiro grau de especificidade do subsistema modo de realização. Valorações inscritas são aquelas explícitas no texto por uma palavra ou expressão; valorações evocadas são aquelas escolhas implícitas, cujos significados valorativos podem ser depreendidos pelo contexto ou co-texto. O subsistema de comprometimento lida com estratégias empregadas a fim de alinhar o leitor aos valores propostos no texto. São duas as opções do primeiro grau de especificidade para o comprometimento acoplado à atitude: monoglossia e heteroglossia. Na monoglossia o espaço para diálogo com vozes alternativas é contraído ao máximo; na heteroglossia, há abertura para outras posições valorativas. Esta opção apresenta as opções “contrair” e “expandir”: “contrair” representa o reconhecimento de outras vozes, mas implica negação destas (“não”, “mas”, “sem dúvida”, “however”, “even though”), enquanto a opção “expandir” envolve o reconhecimento destas (“provavelmente”, “ele disse que...”, “he claimed that...”, “I think...”). O subsistema final é o de gradação, cujo papel é ajustar as valorações de atitude em grau. As primeiras escolhas disponíveis são “foco” e “força”. A escolha “foco” é relacionada à gradação de itens usualmente não graduáveis (“verdadeiro amigo”, “a real father”) e 1266 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 engloba as escolhas enfocar e desfocar, que implicam aumento de grau e diminuição de grau. “Força” gradua escolhas normalmente graduáveis e possui as escolhas “aumentar” (“muito feliz”, “very angry”) e “diminuir” (“um pouco triste”, “a bit angry”). Destaca-se que a gradação pode ser feita de forma isolada, caso em que um recurso linguístico realiza a gradação (“muito feliz”, “very angry”), ou fusionada, quando a gradação é realizada no próprio item valorativo (“felicíssimo”, “furious”); adicionalmente, metáforas são também realizações de gradação de aumento. Outros conceitos relativos à valoração que devem ser destacados são aqueles de acoplamento e calibragem, desenvolvidos em Martin (2010). Estes conceitos fazem-se cruciais para estudos que abordam relações entre textos, tais como os da tradução, por possibilitarem a investigação das formas como variações semânticas ocorrem. Acoplamento é definido como “a combinação de significados (ao longo de estratos, metafunções, ordens, sistemas simultâneos e modalidades)”1 (p. 19); cosseleções de subsistemas da valoração configuram, portanto, acoplamento. Ilustrativamente, a cosseleção de gradação e atitude verificada na ocorrência “muito chateado” configura acoplamento dos dois subsistemas. A calibragem, por sua vez, é definida como o grau de especificidade da instância no texto. Esse grau é definido em relação ao número de opções selecionadas e ao nível de especificidade das escolhas realizadas. Ilustrativamente, a escolha “muito, muito chateado” calibra gradação em maior grau em comparação à escolha “very upset”, o que é devido à repetição, responsável por aumentar a intensidade da valoração. Assim, diferentes escolhas entre textos traduzidos e textos-fonte podem implicar variações tanto em acoplamento quanto em calibragem em análise comparativa. 2.3 A valoração em textos traduzidos Os trabalhos revisados a seguir mostraram que a análise calcada no sistema de valoração é relevante para estudos que tomam textos traduzidos como objeto de estudo. Alguns desses trabalhos serão 1 No original: “[Coupling is] the combination of meanings (across strata, metafunctions, ranks, simultaneous systems, and modalities)” (p.19). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1267 revisados nessa seção, embora destaque-se que esses estudos foram desenvolvidos sob uma perspectiva de corpus, não tendo envolvido análises semântico-discursivas que levassem em conta a inter-relação dos significados no desdobramento das narrativas. Munday (2012) verifica as ocorrências de valorações de atitude em uma narrativa literária traduzida. O estudo aborda o conto Emma Zunz de Jorge Luis Borges em traduções para a língua inglesa e identifica ocorrências de valoração acopladas ao modo de realização inscrito com maior frequência nos textos traduzidos; especialmente produtivo foi o subsistema de gradação, cujo efeito foi a intensificação de itens valorativos em maior frequência em relação ao TF. Rosa (2008) também analisa o subsistema de atitude a fim de identificar, em interface com análise de apresentação de fala, como o controle do narrador varia em textos traduzidos. Rosa (2008) trabalha com três traduções para adultos da obra Oliver Twist, de Charles Dickens e três traduções para o público infantil. Os achados deste estudo relativos à análise valorativa dos TTs para o público adulto indicam aumento da polaridade positiva no subsistema de carga e aumento de valorações explícitas (isto é, inscritas) nas traduções da obra. Dias e Magalhães (2017) segue a perspectiva de Rosa (2008) para estudar o romance Arrow of God, de Chinua Achebe, e uma tradução para o português brasileiro. Os resultados relativos à análise da valoração indicam recursos de atitude mais frequentemente negativos nas traduções, e acoplados ao modo de realização inscrito em maior frequência. No que tange aos recursos de gradação, são identificadas diversas variações nos TTs, os recursos linguísticos relacionados a este subsistema sendo menos frequentes. Consequentemente, os achados deste estudo revelaram menor intensificação nas ocorrências de valoração na tradução para o português brasileiro. Blauth (2015) estuda a obra Heart of Darkness, de Joseph Conrad, e duas traduções para o português brasileiro. Procura investigar o estilo das traduções com base no subsistema de gradação, além de outros recursos, todos investigados por meio de corpus. Significados conotativos, isto é, valorações acopladas ao modo de realização evocado, apresentam-se mais frequentes nos TTs. Variações em gradação mostram-se frequentes nas traduções; a análise destas revela que uma das traduções intensifica o grau das valorações verificadas, enquanto a segunda frequentemente diminui o grau dos significados valorativos. 1268 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 Finalmente, destacam-se os conceitos introduzidos por Souza (2013), cruciais para o estudo da valoração em textos traduzidos. Estes conceitos se fazem importantes considerando-se a abordagem semânticodiscursiva da presente pesquisa, visto que entendem a tradução como uma reconstrução do potencial de significado da linguagem e apresentam uma visão semântica das mudanças provavelmente identificáveis em textos traduzidos. Souza (2013) propõe um modelo para a análise de traduções calcada na Linguística Sistêmico-Funcional e defende que o conceito de “mudança” não pode ser utilizado em um estudo calcado no sistema da valoração. Este é um sistema semântico-discursivo, portanto, não há relação com a análise de estruturas gramaticais: sendo assim, Souza (2013) propõe a adoção do termo “variação semântica”. Como a valoração se preocupa com significados em oposição a estruturas gramaticais, a adoção do termo representa uma escolha terminológica importante para a pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo. O segundo conceito proposto por Souza (2013) é o de reinstanciação. No modelo desenvolvido, Souza (2013), com base nas noções de instanciação e reinstanciação de Martin (2006), entende a tradução como uma reinstanciação. Visto que a instanciação é a relação entre a linguagem como potencial de significado e o texto como uma instância concreta, o texto traduzido é entendido como uma reinstanciação por reconstruir o potencial de significado a partir de uma fonte. Essa terminologia é adotada neste trabalho por permitir verificar como a valoração é reinstanciada nas traduções em comparação ao TF. Os textos revisados neste referencial teórico tornaram possível a elaboração de uma metodologia para a pesquisa. Esses procedimentos metodológicos serão apresentados na seção a seguir. 3 Metodologia Duas etapas principais compõem a metodologia desenvolvida para a pesquisa cujo recorte é apresentado neste artigo: o primeiro deles abrange a seleção do corpus e o segundo engloba os procedimentos de análise, realizados de forma semiautomática. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1269 3.1 Seleção do corpus O corpus utilizado nesta pesquisa origina-se na coletânea Dubliners (Dublinenses), publicada pela primeira vez em 19142 e escrita por James Joyce, e em duas traduções para o português brasileiro. A coletânea é composta por quinze contos e faz parte do corpus RETRAD3 (Corpus de Traduções e Retraduções) (MAGALHÃES, 2014), compilado pelo Laboratório Experimental de Tradução (LETRA) da Universidade Federal de Minas Gerais. Destaca-se que a utilização do termo “corpus” neste artigo se refere aos textos selecionados para análise e não possui ligação com o termo como utilizado na Linguística de Corpus. As traduções escolhidas foram duas: a primeira, por Hamilton Trevisan, foi publicada em 1964 pela editora Civilização Brasileira. A segunda foi feita por José Roberto O’Shea e publicada em 1993 pela editora Hedra. Uma vez que o corpus já se encontrava compilado e preparado no momento de início da pesquisa da qual esse recorte foi retirado, os procedimentos relacionados à preparação dos textos não se fizeram necessários. Optou-se pelo trabalho com a coletânea visto que a obra apresenta uma “denúncia de passividade, corrupção, fraqueza, limitação e ocasional perversão” (JOYCE, apud JOYCE, 1993, tradução de José Roberto O’Shea, p. 8), de acordo com o próprio Joyce; assim, a obra pareceu configurar-se como produtiva para a investigação da ocorrência de prováveis significados negativos no TF e pela provável verificação de variações semânticas nas reinstanciações para o português brasileiro. O conto Eveline foi escolhido por abordar a frustração e desesperança na personagem principal, que dá nome ao conto. Eveline, uma cidadã de Dublin, é uma jovem cuja vida familiar não a agrada, empregada em uma loja cuja dona a humilha. Ao conhecer Frank, um marinheiro, e se apaixonar, ela se depara com a chance de fugir para Buenos Aires. Apesar de desgostar da vida que leva na Irlanda, Eveline é tomada pela indecisão e reflete sobre sua vida até aquele ponto. Finalmente, embora se decida por partir, Eveline é tomada novamente pela indecisão e não embarca no navio que a levaria à Argentina com Frank, deixando o namorado partir sem ela. 2 Nesta pesquisa foi utilizada a republicação de 2001 pela editora Wordsworth Editions. O corpus ESTRA, apresentado em Magalhães (2014), foi renomeado como RETRAD no ano de 2017. 3 1270 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 A seleção de excertos se orientou pelos estágios da narrativa como definidos em Rothery e Stenglin (1997) e utilizados em Macken-Horarik (2003). O excerto referente à Orientação é composto pelo início do texto e apresenta os cenários e personagens; Eveline está sentada à janela e reflete sobre passado e presente. A Complicação é representada pelo evento em que Eveline se lembra da vida triste que sua mãe levara, entra em pânico e decide fugir; em seguida é apresentado o momento em que Eveline está no cais, pronta para embarcar, e é novamente tomada pela indecisão. Por fim, o estágio de Resolução é representado pelo evento em que Eveline é tomada pela passividade e permanece no cais enquanto Frank, seu namorado, adentra a embarcação. Procedimentos de análise Os procedimentos adotados para a análise se baseiam em Martin e White (2005) no que tange à análise valorativa de forma abrangente e em Macken-Horarik e Isaac (2014) no que concerne à anotação dos sistemas de atitude e gradação. Ambos os trabalhos utilizaram quadros para o desenvolvimento da análise valorativa; com base neles, foram desenvolvidas planilhas eletrônicas para a anotação de ocorrências de valoração, criadas no software Microsoft Excel® 2010. As planilhas foram planejadas conforme a Figura 1 ilustra: FIGURA 1 – Configuração da planilha de análise Fonte: Elaborada pela autora para fins desta pesquisa. 1271 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 A seção à esquerda da planilha foi composta por três colunas, dedicadas à análise do comprometimento. A classificação foi feita de forma topológica, como sugerem Martin e White (2005): a coluna mais à esquerda foi dedicada à opção heteroglossia: expandir, a coluna central foi dedicada à heteroglossia: contrair e a coluna mais à esquerda foi dedicada às sentenças monoglóssicas. Cada sentença foi inserida na coluna apropriada; recursos de heteroglossia foram destacados em negrito. A seção à direita da planilha foi dedicada à atitude e à gradação a ela cosselecionada. Esta seção foi toda validada com opções, a fim de permitir a seleção de escolhas através de menus. Este passo foi feito por meio de validação de dados e inserção das opções pertinentes a cada coluna. A exceção à validação é a coluna “item valorativo”, na qual a ocorrência de valoração em análise foi inserida. As categorias analisadas nesta seção estão ilustradas no Quadro 2, a seguir: QUADRO 2 – Categorias de análise atitude gradação Avaliador Avaliado carga modo de realização Afeto Força/(+) Julgamento (inserção manual) (inserção manual) Positivo Inscrito Força/(-) Negativo Evocado Apreciação Foco/(+) -- -- -- Foco/(-) Fonte: Elaborada pela autora para fins desta pesquisa. A anotação dos recursos linguísticos nesta seção seguiu as recomendações metodológicas de Macken-Horarik e Isaac (2014). Ocorrências de atitude foram identificadas e anotadas concomitantemente com o avaliador (fonte da valoração) e o avaliado (alvo da valoração). Em seguida, as ocorrências foram classificadas de acordo com o modo de realização e carga. Por fim, a gradação, se acoplada, foi anotada. As síndromes de escolhas valorativas, isto é, sequências de valorações com configurações similares, foram então identificadas e destacadas por meio de cores. 1272 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 As ocorrências foram alinhadas a orientações de valor definidas após a anotação, tais como “paralisia” e “pânico”, dependendo do tipo de configuração valorativa identificada. Isto permitiu o agrupamento de ocorrências segundo acoplamentos de subsistemas, principalmente de atitude e carga e combinações de avaliador e avaliado. O processo foi realizado nos três textos (TF e dois TTs), todos inseridos na mesma planilha eletrônica e separados em diferentes abas. O processo de comparação foi realizado de forma manual e envolveu a verificação de cada item avaliativo em todos os três textos. O alinhamento dos textos se provou inviável devido à quantidade de categorias utilizadas na planilha, o que implicaria uma planilha muito extensa horizontalmente. As planilhas completas passaram por um processo de doublechecking, no qual outro pesquisador conferiu as análises a fim de minimizar a subjetividade provável na classificação. Com as planilhas revisadas, foi possível passar para a separação de fases discursivas, feita de acordo com mudanças nas configurações dos significados valorativos, conforme as indicações de Macken-Horarik (2003). Após a execução das etapas metodológicas, foi possível passar à análise dos resultados. Os resultados relativos ao recorte da pesquisa apresentado neste trabalho são relatados na seção a seguir. 4 Resultados As subseções a seguir descrevem os resultados encontrados nos três distintos estágios do gênero narrativa: Orientação, Complicação e Resolução. 4.1 Orientação No estágio de Orientação foram identificadas as orientações de valor de positividade do passado, negatividade do presente, tristeza/ saudade e esperança. À orientação de valor de positividade do passado se alinham as ocorrências que apresentaram configurações valorativas de afeto ou apreciação acoplados à carga positiva, cujos avaliados foram o passado da personagem. À orientação de valor de negatividade do presente se alinham as ocorrências que apresentaram configurações valorativas de afeto acoplado à carga negativa, cujos avaliados foram aspectos do presente de Eveline. valorações de tristeza/saudade são ocorrências cujas configurações avaliativas foram de afeto negativo 1273 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 em relação ao passado; finalmente, valorações de esperança foram identificadas como estando alinhadas àqueles itens valorativos de afeto positivo cujos alvos foram a possibilidade de deixar a casa. Foi identificada neste estágio uma tendência de ocorrência de valorações de atitude do tipo apreciação; é possível argumentar que, devido à valoração estética de coisas e fenômenos representada por este tipo de atitude, a apreciação seja mais utilizada no estágio inicial da narrativa como forma de orientar ao leitor quanto ao cenário em que a narrativa ocorre. O Quadro 3 a seguir ilustra ocorrências de apreciação, alinhadas à orientação de valor de negatividade do presente: QUADRO 3 – Apreciações no estágio de Orientação The man out of the last house passed on his way home; she heard his footsteps clacking along the concrete pavement and afterwards crunching on the cinder path before the new red houses. Item valorativo compr. Avaliador Clacking along the concrete pavement Monoglossia Narrador Crunching on the cinder path Monoglossia Narrador atit./ modo real. Avaliado grad. (-) apr. Inscrito Ambiente -- (-) apr. Inscrito Ambiente -- carga Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Os sons relativos aos passos do homem na calçada, inscritos no texto por meio dos recursos linguísticos “clacking” e “crunching”, são valorados de forma negativa. Por serem valorações relacionadas à estética do som desagradável, são consideradas ocorrências de atitude do tipo apreciação. A configuração valorativa de apreciação acoplada à carga negativa constrói, portanto, um presente desagradável no universo narrativo. As ocorrências de afeto neste estágio foram identificadas como estando acopladas tanto à carga negativa quanto à positiva. O Quadro 4, a seguir, ilustra ocorrências deste tipo de atitude em uma das fases do conto. É identificada oposição em carga, feita no domínio da contração 1274 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 heteroglóssica no campo do comprometimento, através dos recursos “not” e “but”, identificados em sublinhado no quadro abaixo. Estabelece-se contraste entre a negatividade do presente e a positividade do passado: QUADRO 4 – Ocorrências de afeto positivo e negativo One time there used to be a field there in which they used to play every evening with other people’s children. Then a man from Belfast bought the field and built houses in it – not like their little brown houses but bright brick houses with shining roofs. Item valorativo atit./ modo carga real. Avaliado grad. Eveline (+) afeto Evocado Ambiente Força/ (+) Monoglossia Eveline (-) afeto Evocado Ambiente -- Little brown houses Heter./contrair Not Eveline (+) afeto Evocado Ambiente -- Bright brick houses with shining roofs Heter./contrair But Eveline (-) afeto Evocado Ambiente Força/ (+) compr. Avaliador Play every evening Monoglossia Built houses in it Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Esta fase descreve a destruição de um campo onde a personagem e seus amigos costumavam brincar quando crianças. A felicidade causada em Eveline pelo ambiente no passado é evocada no texto pelo item valorativo “play every evening”: as brincadeiras de causam sentimentos positivos à Eveline do passado. Esta valoração é contrastada em carga com o item valorativo “built houses in it”: esta é uma ocorrência de afeto negativo e evocado, por representar a destruição do passado positivo para Eveline. A positividade é reforçada de forma evocada logo em seguida no item “little brown houses”; embora sejam casas pequenas, aspectos relacionados ao passado 1275 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 da personagem são avaliados de forma positiva. Por conseguinte, as casas que substituíram o campo são avaliadas de forma negativa. “Bright” e “shining”, embora sejam valorações inscritas de apreciação positiva, por se relacionarem ao valor estético das casas, implicam sentimentos negativos em Eveline: sentimentos que são causados pela destruição do campo e do ambiente positivo do passado. É importante destacar que Eveline é o avaliador nestas configurações valorativas por estas serem atitudes de afeto. Assim, Eveline, como origem do sentimento, é o emotivo destas, e, portanto, se encaixa na categoria avaliador. As variações semânticas identificadas neste estágio são relacionadas a acoplamentos de variados subsistemas, principalmente aqueles de atitude, carga e gradação. Adicionalmente, foi também identificada uma ocorrência de atitude não instanciada no TF, conforme o Quadro 5, a seguir, ilustra: QUADRO 5 – atitude não instanciada no TF TF TT O’Shea The man Ø out of the last house passed on his way home; she heard his footsteps clacking along the concrete pavement and afterwards crunching on the cinder path before the new red houses. O sujeito que morava no fim da rua passou a caminho de casa; ela ouviu seus passos estalando na calçada de concreto e em seguida rangendo sobre o caminho coberto com cascalho em frente às casas vermelhas. Item valorativo compr. Avaliador TF Ø Ø Ø O’Shea sujeito Monoglossia Eveline atit./ modo real Avaliado grad. Ø Ø Ø -- (-) afeto Evocado Ambiente -- carga Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. A análise semântico-discursiva revela que a adição desta ocorrência de valoração reverbera outras ocorrências de afeto negativo neste estágio, visto que indica e enfatiza a construção da personagem Eveline como emocionalmente distante do ambiente que a cerca. Esta ocorrência de valoração se alinha à orientação de valor de negatividade do presente. 1276 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 No que tange às variações semânticas identificadas neste estágio, também foram verificadas variações no acoplamento de atitude, como o Quadro 6 ilustra: QUADRO 6 – Variações no acoplamento de atitude TF TT O’Shea Her father was not so bad then; and besides, her mother was alive. Seu pai ainda não estava tão mal e, além disso, a mãe ainda estava viva. atit./ modo carga real. Narrador (-) julg. Pai (-) afeto Item valorativo compr. Avaliador TF Not so bad Heter./ contrair Not O’Shea Não estava tão mal Heter./ contrair Não Avaliado grad. Inscrito Família Força/(-) Inscrito Família Força/(+) Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Este exemplo ilustra a variação no acoplamento de atitude na reinstanciação de O’Shea. Pelo caráter mau do pai de Eveline, opta-se no TT por uma classificação do comportamento do homem – portanto, julgamento de carga negativa. Na reinstanciação de O’Shea, porém, há a implicação de que o homem se sente mal no tempo atual da trama, tendo em vista que “estar mal” implica doença e, portanto, insatisfação. Assim, esta valoração é de atitude do tipo afeto negativo no TT de O’Shea. As variações no acoplamento de atitude também são identificadas em conjunto com variações no subsistema de carga e modo de realização neste estágio. As configurações valorativas relativas às ocorrências identificadas estão ilustradas no Quadro 7: 1277 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 7 – Variações em atitude e carga TF TT Trevisan Then a man from Belfast bought the field and built houses in it --not like their little brown houses but bright brick houses with shining roofs. TT O’Shea Mais tarde, um homem Mais tarde um indivíduo de de Belfast comprara o Belfast comprara o terreno e terreno e construíra casas construíra casas --mas não eram nêle --não pequenas e casas pequenas e escuras como escuras como aquela em aquelas em que eles moravam; que morava -- mas casas eram casas vistosas de tijolo e de tijolo claro e telhados com telhados luzidios. luzidios. atit./ modo carga real. Eveline (+) afeto Heter./ contrair Não Narrador Heter./ contrair Não Narrador Item valorativo compr. Avaliador TF Little brown houses Heter./ contrair Not Trevisan Casas pequenas e escuras O’Shea Casas pequenas e escuras Avaliado grad. Evocado Ambiente -- (-) apr. Inscrito Ambiente -- (-) apr. Inscrito Ambiente -- Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Em ambas as reinstanciações o afeto positivo em “little brown houses”, relacionado às lembranças agradáveis do passado de Eveline, é inscrito como apreciação negativa da casa. Isso se deve à impossibilidade de se relacionar as casas a sentimentos positivos pela inscrição da negatividade em “escuras”: faz-se necessário optar pela negatividade inscrita nos itens avaliativos. O presente de Eveline é construído como mais negativo nessas reinstanciações, portanto. Isto representa variação nas orientações de valor identificadas, visto que o ambiente do passado é positivo para Eveline no TF. Nas reinstanciações, essa variação implica um passado não mais tão alegre. 1278 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 Variações em carga e atitude também foram identificadas ao final do excerto, na fase de número 8. O Quadro 8 a seguir ilustra as configurações valorativas relativas às ocorrências no TF e um dos TTs: QUADRO 8 – Variações em atitude e carga TF TT Trevisan Now she was going to go away like the others, to leave her home. Agora, ela também iria partir, abandonar a casa. Item valorativo compr. Avaliador TF Leave her home Monoglossia Eveline Trevisan Abandonar a casa Monoglossia Narrador atit./ modo real Avaliado grad. (+) afeto Evocado Eveline -- (-) julg. Evocado Eveline -- carga Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Na reinstanciação de Trevisan identifica-se um julgamento negativo relacionado à falha de Eveline em cumprir com as suas obrigações para com sua casa e seu pai, deixando tudo para fugir. O item avaliativo no TF é “leave her home”: uma valoração de afeto positivo relacionado à esperança de fugir da personagem. Isto representa variação, visto que a positividade (e, portanto, a esperança) não é mais identificada e essa ocorrência não se alinha mais à orientação de valor. Pode-se argumentar que a reverberação de significados com configurações valorativas similares, relacionados à felicidade de Eveline em relação à fuga, perde força nesta reinstanciação em comparação ao TF. Finalmente, a reinstanciação de Trevisan apresenta algumas variações relacionadas ao acoplamento em menor grau, ou não acoplamento, do sistema de gradação, como ilustra o Quadro 9: 1279 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 9 – Variação no subsistema de gradação TF TT Trevisan One time there used to be a field there in which they used to play every evening with other people’s children. Antigamente, havia ali um terreno baldio onde, ao entardecer, costumava brincar com as crianças dos vizinhos. Item valorativo compr. Avaliador TF Play every evening Monoglossia Eveline Trevisan Brincar Monoglossia Eveline atit./ modo real Avaliado grad. (+) afeto Evocado Pessoas: passado Força/ (+) (+) afeto Evocado Pessoas: passado Ø carga Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. A consequência desta variação semântica é a perda de força em grau da positividade do passado da personagem principal, devido à não reinstanciação da gradação presente no item valorativo. A indicação de frequência, responsável por intensificar a felicidade dos personagens no domínio do passado de Eveline, não é identificada na reinstanciação. Assim, o passado, embora ainda alegre, tem sua positividade diminuída em grau. 4.2 Complicação No estágio de Complicação, tanto no TF quanto nas reinstanciações, foram identificadas valorações alinhadas às orientações de valor de esperança, pânico e paralisia. À orientação de valor de esperança, tal como no estágio anterior, alinharam-se ocorrências de valoração cujas configurações foram de afeto positivo em relação à fuga de casa. À orientação de valor de pânico alinharam-se ocorrências de afeto acoplado à carga negativa. Finalmente, à orientação de valor de pânico alinharam-se ocorrências de julgamento negativo. O Quadro 10 a seguir ilustra alguns significados de afeto negativo identificados na fase 1 da Complicação: 1280 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 10 – Valorações de afeto acoplado à carga negativa She stood up in a sudden impulse of terror. Escape! She must escape! Item valorativo compr. Sudden impulse Monoglossia of terror Escape! She must escape! Heter./ contrair Must atit./ modo carga real. Eveline (-) afeto Eveline (-) afeto Avaliador Avaliado grad. Inscrito Família: passado Força/ (+) Evocado Família: passado Força/ (+) Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Os significados valorativos nesta fase são intensificados por meio de recursos de gradação (“terror”, exclamações e repetições), cujo efeito é o aumento de grau do sentimento negativo de Eveline em relação ao passado de sua família ao se lembrar dos momentos finais de sua mãe. O pânico da personagem é, assim, destacado no início deste estágio. Em oposição ao pânico, foi identificada na fase seguinte uma síndrome de valorações relacionadas à esperança de Eveline de fugir de casa com o namorado. As configurações valorativas na maioria das valorações identificadas nesta fase são bastante semelhantes entre si, principalmente no que tange ao comprometimento e à atitude, conforme o Quadro 11 ilustra: 1281 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 11 – Síndrome de valorações de esperança Frank would save her. He would give her life, perhaps love, too. But she wanted to live. Why should she be unhappy? She had a right to happiness. Frank would take her in his arms, fold her in his arms. He would save her. Item valorativo compr. Avaliador Save her Heter./ expandir would Give her life atit./ modo carga real. Eveline (+) afeto Heter./ expandir would Eveline Love Heter./ expandir perhaps Wanted to live Avaliado grad. Evocado Frank -- (+) afeto Evocado Frank -- Eveline (+) afeto Inscrito Frank -- Heter./contrair But Eveline (+) afeto Inscrito Eveline Unhappy Heter./contrair Pergunta retórica Eveline (-) afeto Inscrito Eveline -- A right to happiness Monoglossia Eveline (+) afeto Inscrito Eveline Força/ (+) Take her in his arms, fold her in his arms Heter./ expandir Would Eveline (+) afeto Evocado Frank Força/ (+) Save her Heter./ expandir Would Eveline (+) afeto Evocado Frank -- Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. -- 1282 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 Significados valorativos similares se acumulam nesta fase, intensificando a esperança de Eveline. Adicionalmente, algumas ocorrências, tais como “take her in his arms, fold her in his arms”, são em si intensificadas, este exemplo em específico por conta da repetição identificada. Frank é o gatilho dessas emoções; logo, pode-se dizer que Frank é construído como aquele que traz esperança a Eveline. Variação semântica foi identificada nesta fase na reinstanciação de Trevisan. O Quadro 12 ilustra as configurações avaliativas relativas a essa variação: QUADRO 12 – Variação em gradação em Trevisan TF TT Trevisan Frank would take her in his arms, fold her in his arms. Frank a tomaria nos braços. Item valorativo compr. Avaliador TF Take her in his arms, fold her in his arms Heter./ expandir Would Trevisan A tomaria nos braços Heter./ expandir tomaria atit./ modo carga real. Eveline (+) afeto Eveline (+) afeto Avaliado grad. Evocado Frank Força/ (+) Evocado Frank Ø Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Visto que a repetição no item valorativo não é reinstanciada no TT de Trevisan, a valoração de afeto positivo relacionada à esperança de Eveline diminui em força. Embora não configure variação em seu alinhamento à orientação de valor, implica menor grau no sentimento de esperança de Eveline pelo não acoplamento do subsistema de gradação. A positividade perde força nesta fase em comparação ao TF. A fase discursiva seguinte apresenta uma síndrome de afeto acoplado à carga negativa. Foram identificadas diversas variações semânticas nas valorações verificadas nesta fase, a maioria delas relacionada ao acoplamento ou calibragem do subsistema de gradação. 1283 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 O Quadro 13 a seguir ilustra as configurações valorativas referentes a esta fase, bem como as variações semânticas identificadas: QUADRO 13 – Variações em síndrome de afeto TF TT Trevisan TT O’Shea She felt her cheek pale and cold and, out of a maze of distress, she prayed to God to direct her, to show her what was her duty. Sentia o sangue fugindo do rosto e numa angustiada indecisão, pedia a Deus que a orientasse, que lhe mostrasse o caminho certo. Sentia o rosto pálido e frio e, num labirinto de aflição, rezou pedindo a Deus que lhe guiasse, que lhe apontasse o caminho. TF TT Trevisan Her distress awoke a nausea in her body and she kept moving her lips in silent fervent prayer. A angústia provocava-lhe náusea e seus lábios moviam-se numa prece fervorosa. atit./ modo carga real Eveline (-) afeto Inscrito Eveline Monoglossia Eveline (-) afeto Evocado Eveline Força/ (+) TF Maze Monoglossia Eveline (-) afeto Evocado Eveline Força/ (+) Trevisan Indecisão Monoglossia Eveline (-) afeto Inscrito Eveline Ø TF Distress Monoglossia Eveline (-) afeto Inscrito Eveline Força/ (+) Trevisan Angustiada Monoglossia Eveline (-) afeto Inscrito Eveline Força/ (+) O’Shea Aflição Monoglossia Eveline (-) afeto Inscrito Eveline Ø TF Long mournful Monoglossia Narrador (-) apr. Inscrito Ambiente Força/ (+) Item valorativo compr. Avaliador TF Pale and cold Monoglossia Trevisan Fugindo do rosto Avaliado grad. 1284 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 Trevisan Ø Ø Ø Ø Ø Ø Ø TF Duty Monoglossia Eveline (-) julg. Inscrito Eveline -- Trevisan caminho certo Ø Ø Ø Ø Ø Ø O’Shea Caminho Ø Ø Ø Ø Ø Ø TF She kept moving (...) prayer Monoglossia Eveline (-) afeto Evocado Eveline Força/ (+) Trevisan Seus lábios moviam-se numa prece fervorosa Monoglossia Eveline (-) afeto Evocado Eveline Força/ (+) Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. As ocorrências valorativas identificadas nesta fase no TF são alinhadas à orientação de valor de pânico devido a suas configurações avaliativas consistentes. Estas características similares configuram ocorrência de síndrome valorativa, isto é, é identificado acúmulo de valorações com configurações parecidas. As valorações de atitude do tipo afeto se seguem uma após a outra, apresentando sentimentos extremamente negativos, dos quais Eveline é não somente o emotivo, isto é, o avaliador, mas também o gatilho, isto é, o avaliado. Isto se justifica pelo fato de ser a indecisão da própria personagem a responsável pelo seu estado emocional. A primeira variação semântica, identificada na reinstanciação de Trevisan, é relacionada tanto à gradação quanto ao modo de realização: o item valorativo “pale and cold” é reinstanciado como “fugindo do rosto”. Assim, o modo de realização passa a ser evocado, visto que o pânico de Eveline é metaforizado. Adicionalmente, por ser uma metáfora, esta valoração calibra maior grau de força; a negatividade é enfatizada nessa reinstanciação. A segunda variação semântica identificada nesta fase é relativa ao item valorativo “maze”. A reinstanciação de Trevisan tem o efeito inverso Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1285 daquele identificado na variação anterior por inscrever a metáfora com o item “indecisão”, o que implica variação no subsistema de modo de realização; isso implica o não-acoplamento do subsistema de gradação. Assim, a intensidade do pânico de Eveline é diminuída nesta ocorrência em comparação ao TF. “Distress”, o terceiro item valorativo identificado nesta fase, apresenta variação semântica em ambas as reinstanciações. Em Trevisan, a escolha identificada, “angustiada”, representa um sentimento mais forte em comparação à escolha de Joyce, portanto a gradação é calibrada de forma mais intensa. Na reinstanciação de O’Shea é identificado o item “aflição”, o que, inversamente, representa um sentimento menos intenso. Portanto, a gradação é calibrada em menor grau em comparação à escolha do TF. Os itens valorativos seguintes, “long mournful whistle” e “duty”, apresentam variação semântica relacionada à não-reinstanciação dos itens valorativos nas traduções. O texto de Trevisan não reinstancia “long mournful whistle”, a sentença não tendo sido traduzida; assim, a negatividade relacionada ao ambiente de Eveline, construída desde o início da narrativa, não reverbera neste estágio narrativo. Similarmente, tanto em Trevisan como em O’Shea, o item valorativo “duty” não é reinstanciado como ocorrência de valoração: as escolhas “caminho” e “caminho certo” são itens ideacionais, somente descritivos. Não podem ser relacionados a “duty”, julgamento negativo da falha da personagem em cumprir com sua obrigação. A variação semântica final identificada nesta fase é relacionada à diferente calibragem de gradação, similarmente a outras ocorrências nesta fase. O item “she kept moving her lips in silent fervent prayer” evoca o pânico de Eveline, sendo uma valoração de afeto negativo; esta valoração é graduada por “fervent” e pela indicação de frequência (kept moving”). Na reinstanciação de Trevisan, entretanto, esta frequência não é identificada no item valorativo, o que implica calibragem em menor grau do subsistema de gradação. O pânico de Eveline é, portanto, diminuído em grau em comparação ao TF. Na fase 4 deste estágio é identificada variação relacionada ao acoplamento de gradação, novamente na reinstanciação de Trevisan: 1286 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 14 – Variação em acoplamento de gradação TF TT Trevisan All the seas of the world tumbled about her heart. Os mares do mundo envolviam seu coração. Item valorativo compr. TF All the seas (…) Monoglossia heart Trevisan Os mares do mundo (...) coração Monoglossia atit./ modo carga real Eveline (-) afeto Eveline (-) afeto Avaliador Avaliado grad. Evocado Eveline Força/ (+) Evocado Eveline Ø Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. O não acoplamento de gradação devido à não reinstanciação do recurso “all” faz com que o pânico de Eveline perca força na reinstanciação de Trevisan em comparação ao TF de Joyce, similarmente a outras variações semânticas identificadas nestes excertos, cuja tendência foi de diminuição de grau nas ocorrências de atitude. 4.3 Resolução No estágio final, a Resolução, significados de julgamento passam a ocorrer novamente. Esses julgamentos, acoplados à carga negativa, são relacionados à incapacidade de agir e passividade da personagem, alinhadas à orientação de valor de paralisia. O Quadro 15 a seguir ilustra os significados de julgamento negativo na fase 2 deste estágio. 1287 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 15 – Valorações da fase 2 da Resolução de Eveline She set her white face to him, passive, like a helpless animal. Her eyes gave him no sign of love or farewell or recognition. atit./ modo carga real Monoglossia Narrador (-) julg. Evocado Eveline -- Helpless animal Monoglossia Narrador (-) julg. Evocado Eveline Força/ (+) (-) julg. Inscrito Eveline Força/ (+) Item valorativo Passive No sign of love or farewell or recognition compr. Heter./ contrair no Avaliador Narrador grad. Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Estes itens valorativos se relacionam à passividade e incapacidade de agir de Eveline. Seu comportamento é valorado de forma negativa. O item “helpless animal” acopla gradação de forma fusionada, cujo papel é o aumento em grau desta ocorrência de valoração devido à metáfora; o item final, “no sign of love or farewell or recognition” também acopla o subsistema pela repetição dos sentimentos que Eveline já não mais possui em sua paralisia. Estes significados de julgamento negativo são aumentados em grau no TT de O’Shea, como o Quadro 16 ilustra: QUADRO 16 – Variações na fase 2 da Resolução de Eveline TF TT O’Shea Her eyes gave him no sign of love or farewell or recognition. Seus olhos não demonstravam qualquer sinal de amor, saudade, ou gratidão. atit./ modo carga real. Narrador (-) julg. Narrador (-) julg. Item valorativo compr. Avaliador TF No sign of love or farewell or recognition Heter./ contrair no O’Shea Qualquer sinal de amor, saudade ou reconhecimento. Heter./ contrair não Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. Avaliado grad. Inscrito Eveline Força/ (+) Inscrito Eveline Força/ (+) 1288 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 A variação semântica identificada é relacionada à negação completa dos sentimentos de Eveline: é uma escolha mais intensa em comparação ao TF. O ajuste de grau dessa valoração constrói uma Eveline mais passiva neste TT, e, portanto, uma personagem construída de forma mais negativa por meio da diferente calibragem de gradação neste item valorativo. Tendo sido identificadas as ocorrências de valoração por estágios e as variações semânticas verificadas, é apresentada a discussão dos resultados na seção seguinte deste trabalho. 5 Discussão A análise dos excertos de Eveline revelou a ocorrência de diversas valorações e possibilitou a identificação de variações semânticas em ambas as reinstanciações, sendo elas devidas a diferentes acoplamentos ou a diferentes calibragens de subsistemas em comparação ao TF de Joyce. Serão retomadas as perguntas de pesquisa formuladas para este trabalho a fim de discutir os resultados apresentados. A primeira pergunta de pesquisa indaga sobre a configuração dos acoplamentos de subsistemas em ocorrências valorativas nos estágios e sobre o alinhamento de ocorrências a orientações de valor. No que tange aos acoplamentos por estágios, na Orientação foi identificada a tendência de ocorrência de valorações de atitude dos tipos de apreciação e afeto e acopladas à carga tanto negativa quanto positiva. Na Complicação foi identificada a tendência de ocorrência de valorações negativas de afeto e julgamento; algumas ocorrências de afeto positivo foram identificadas, mas a análise semântico-discursiva revelou que estes significados se acumulam em uma única fase do excerto. O estágio final, a Resolução, apresenta ocorrências de julgamento negativo sobre Eveline, intensificadas pelo acoplamento de gradação. Foi possível alinhar as ocorrências de valoração a orientações de valor, agrupadas conforme suas configurações valorativas consistentes. O Quadro 17 ilustra a distribuição das orientações de valor por estágios: 1289 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 QUADRO 17 – Orientações de valor por estágios em Eveline Orientação Complicação Resolução Positividade do passado Pânico/confusão Paralisia afeto afeto negativo Avaliado: passado Avaliado: Eveline Tristeza/saudade Esperança afeto Orientações de valor positivo negativo afeto Avaliado: Frank Negatividade do presente Paralisia negativo e negativa Avaliado: presente negativo Avaliado: Eveline positivo Avaliado: passado findo afeto julgamento julgamento negativo apreciação Avaliado: Eveline Esperança positivo afeto Avaliado: Frank Fonte: Classificação pela autora desta pesquisa. São identificadas valorações relacionadas à positividade do passado, tristeza/saudade, negatividade do presente e esperança no estágio de Orientação. De todas as quatro orientações identificadas no primeiro estágio, somente uma delas ocorre novamente no estágio seguinte, a Complicação; outras orientações identificadas neste estágio foram aquelas de pânico e paralisia. No estágio final, significados valorativos relacionados à orientação de valor de paralisia foram verificados. A ocorrência de significados valorativos de configuração similar implica a inter-relação de significados ao longo dos excertos, posicionando o leitor a adotar diferentes atitudes. A análise de significados valorativos recorrentes e de sua inter-relação é possibilitada pela análise semântico-discursiva, que envolve o estudo de como os significados reverberam ao longo do texto; reforça-se, portanto, a importância deste tipo de abordagem para estudos do sistema de valoração. As orientações de valor nesta abordagem se relacionam, assim, à forma como o potencial retórico do texto é construído atrás das interconexões de significados similares. Valorações alinhadas a orientações de valor foram identificadas 1290 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 nos estágios dos excertos selecionados do conto Eveline, tendo em vista que as valorações de configurações similares se repetiram ao longo dos estágios dos excertos. A pergunta de pesquisa seguinte indaga sobre a ocorrência de variações semânticas nas reinstanciações e se estas implicam mudanças no alinhamento de ocorrências a orientações de valor. Diversas variações foram verificadas nos TTs, relacionadas principalmente a diferentes acoplamentos dos subsistemas de atitude, carga e gradação. Estas variações fizeram com que certas valorações tivessem suas configurações alteradas e não se alinhassem mais às orientações de valor. Ilustrativamente, valorações relacionadas à positividade do passado foram alteradas em acoplamento de carga, construindo o passado sob uma luz negativa (“little brown houses”/“casas pequenas e escuras”) em ambas as reinstanciações, em contraste à positividade identificada no TF. É possível argumentar que o potencial retórico do texto varia, por consequência, nas reinstanciações, uma vez que as valorações alinham o leitor aos valores de diferentes formas e em diferentes graus. A terceira pergunta de pesquisa indaga sobre variações semânticas nos subsistemas de gradação e carga. Variações no acoplamento e calibragem do subsistema de gradação foram identificadas em diversas ocorrências de valoração nas reinstanciações, confirmando a relevância do estudo deste sistema para a análise de textos traduzidos, conforme apontam Munday (2012), Blauth (2015) e Dias e Magalhães (2017). O grau de intensidade dos significados valorativos tendeu à diminuição em várias ocorrências, principalmente na reinstanciação de Trevisan, o que corrobora os achados de Dias e Magalhães (2017) e parcialmente aqueles de Blauth (2015). Estas valorações, relacionadas a diversas orientações de valor, implicam a construção de um presente menos positivo e um pânico menos intenso nesta reinstanciação, além de apresentar Eveline como uma personagem de atitude menos esperançosa. A reinstanciação de O’Shea intensifica a passividade e falta de ação de Eveline no estágio final, aumentando sua paralisia. Foram também identificadas variações semânticas no subsistema de carga. As variações identificadas no acoplamento deste subsistema tendem a ocorrer do polo positivo para o negativo: ilustrativamente, a valoração positiva “little brown houses” é traduzida negativamente como “casas pequenas e escuras” e a ocorrência positiva “leave her home” é traduzida como o item negativo “abandonar a casa” em Trevisan. Este Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1291 achado corrobora aquele identificado em Dias e Magalhães (2017), cujos resultados apontam o aumento de valorações negativas na reinstanciação. Embora este resultado não corrobore os achados de Rosa (2008), que identifica aumento de carga positiva, é possível hipotetizar que o aumento de significados negativos seja uma tendência de textos traduzidos para o português brasileiro. Destaca-se, adicionalmente, que a análise valorativa realizada sob a perspectiva semântico-discursiva tornou possível a identificação de temas da narrativa e sua distribuição por estágios dos textos, identificando a distribuição das atitudes adotadas no texto narrativo. Isto foi possível por meio do alinhamento de ocorrências de valoração com configurações similares a orientações de valor. O sistema de valoração, portanto, se configura como uma ferramenta para a investigação de temas em textos literários. 6 Conclusão O recorte apresentado neste artigo se concentrou na análise de excertos do conto Eveline de James Joyce sob uma perspectiva interpessoal, fazendo uso do sistema de valoração para investigar significados valorativos e variações semânticas em estágios da narrativa e utilizando uma metodologia de análise desenvolvida a partir de Martin e White (2005) e Macken-Horarik e Isaac (2014). A análise foi realizada por uma perspectiva semântico-discursiva, que possibilitou o estudo da inter-relação de significados valorativos no desdobramento do texto. Os resultados alcançados por este trabalho indicaram o acúmulo de certas configurações avaliativas por estágios da narrativa. Foi possível alinhar essas configurações a orientações de valor, devido a sua repetição no desdobramento do texto. Verificou-se que, nas reinstanciações, certas ocorrências passaram a não se alinhar às orientações de valor identificadas, devido a variações semânticas nos significados avaliativos. Adicionalmente, identificou-se a relevância do subsistema de gradação nas reinstanciações, seja por acoplamento ou diferente calibragem, no que tange às variações semânticas. A partir dos resultados alcançados, sugere-se que futuras pesquisas poderiam investigar os demais textos de Dubliners a fim de verificar se os achados deste estudo são confirmados em outros contos da coletânea no que tange às variações semânticas na valoração, especialmente no 1292 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 subsistema de gradação. Futuros estudos poderiam também investigar as variações semânticas no subsistema de carga a fim de verificar se é uma tendência de reinstanciações de textos para o português brasileiro que valorações sejam reinstanciadas de forma a acoplar carga positiva em maior frequência em comparação aos textos-fonte. Finalmente, este trabalho revelou a relevância do sistema da valoração para análise de narrativas literárias por estágios narrativos, bem como para a investigação de variações semânticas em configurações valorativas e em orientações de valor. Este trabalho mostra, adicionalmente, como a abordagem semântico-discursiva é proveitosa à análise valorativa, visto que esta abordagem é capaz de identificar interrelações entre significados ao longo do desdobramento do texto. Este artigo contribui para os estudos da tradução através da apresentação de resultados oriundos de análise empírica de textos traduzidos, bem como pela apresentação de possibilidades para futuros trabalhos. Agradecimentos Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq), projeto PQ 301720/2013-9; Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPEMIG), projeto PPMVIII 00059-14, e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), projeto PACCSS-II 151/2013 e bolsa de mestrado. Laboratório Experimental de Tradução (LETRA) da Universidade Federal de Minas Gerais, Grupo de Análise Textual e Tradução (GRANT) e Profa. Dra. Célia M. Magalhães pela orientação em pesquisa de mestrado. Referências BLAUTH, T. A paisagem indizível em duas traduções brasileiras de Heart of Darkness: uma análise de estilo com base em corpus. 2015. 138 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. DIAS, C.; MAGALHÃES, C. M. Intervenção tradutória em textos literários: um estudo da apresentação da fala e da avaliação. Belas Infiéis, Brasília, v. 6, n. 1, p. 103-122, 2017. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1259-1294, jul./set. 2019 1293 CRISTÓFARO, N. Variações semânticas em duas reinstanciações de Eveline e The Dead para o português: um estudo baseado no sistema da valoração. 2018. 224f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. JOYCE, J. Dubliners. [S.l.]: Wordsworth Editions, 2001. JOYCE, J. Dublinenses. Tradução de Hamilton Trevisan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. JOYCE, J. Dublinenses. Organização e tradução de José Roberto O’Shea. 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Resumo: Um complementizador no árabe padrão, conhecido como ‘inna, impõe uma restrição na ordem das palavras da oração por ele introduzida e induz marcação de Caso acusativo nos SNs preverbais que em outras circunstâncias têm marcação de Caso nominativo. Seguindo o modelo de Chomsky (2001) para a morfossintaxe de Caso, este artigo argumenta que ‘inna é um designador de Caso e que ele carrega um traço de Caso não interpretável que determina o valor que o mesmo designa para um traço de Caso até então não marcado de uma meta acessível na projeção de A-barra. O artigo mostra que esse argumento captura as cláusulas ‘inna impostas pela restrição. Palavras-chave: Árabe; complementizador; marcação de Caso; ordem de palavras; minimalismo. Submitted on October 31st 2018 Accepted on March 5th 2019 1 I write ‘Case’ with a capital C for the abstract theoretical entity in GB/Minimalism in order to distinguish it from other ordinary element. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1295-1312 1296 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1. Introduction Arabic allows both subject-initial and verb-initial clauses. As sentences (1a) and (1b) demonstrate, respectively, the verb can either precedes or follows the subject: 1. a. l-’awlaad-u qara’-uu l-kitaab-a the-boys-NOM read.3PM the-book- ACC ‘The boys read the book.’ b. qara’a l-’awlaad-u l-kitaab-a read.3SM the-boys-NOM the-book- ACC ‘The boys read the book.’ The verb also shows full agreement in subject-initial-clauses (1a), but partial agreement in verb-initial-clauses (1b) in person and gender only, and not in number as the former does. In addition, Arabic is considered as a subject pro-drop language. The verb shows full agreement when its subject is not overt: 2. qara’-uu l-kitaab-Acc read.3PM the-book-Acc ‘The boys read the book.’ However, subordinate clauses introduced by ‘inna are restricted to subject-initial clauses.2 A typical example is given here: 3. qultu ‘inna l-’awlaad-a qara’uu said.1S that the-boys-ACC read.3PM ‘I said that the boys read the book.’ l-kitaab-a the-book-ACC As can be seen, ‘inna is followed by an accusative NP which can be interpreted as a subject of the following verb. However, this accusative ʔinna is one of seven members called ʔinna and its “sisters”; they almost have the same function, but differ in meaning. Some of them including ʔinna can introduce both independent and subordinate clauses. However, this paper limits its discussion to ʔinna. 2 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1297 NP is not always interpreted as a subject. The following shows that the accusative NP is interpreted as an object: 4. qultu ‘inna l-kitaab-a qara’a=hu l-’awlaad-u said.1S that the-book-ACC read.3S-it the-boys-NOM ‘I said that (as far as) the book, the boys read it.’ Notice that there is a pronominal clitic attached to the verb, a similar construction with no pronominal clitic is ungrammatical: 5. *qultu ‘inna l-kitaab-a qara’a l-’awlaad-u said.1S that the-book-ACC read.3S the-boys-NOM ‘I said that (as far) the book, the boys read it.’ Notice also that you cannot have a gap in the preverbal position. As stated above, preverbal subjects are optional in null CPs, but it is not possible to have a gap in the embedded preverbal position (here and subsequently the paper marks gaps by ‘__’): 6. *qultu ‘inna ____ qara’-uu l-kitaab-a said.1S that read.3PM the-book- ACC ‘I said that the boys read the book.’ Thus, the example above, where the subject has been omitted, is ungrammatical. However, a similar example with a pronominal clitic attached to ‘inna is grammatical: 7. qultu ‘inna=hum qara’-uu l-kitaab-a said.1S that-they read.3PM the-book- ACC ‘I said that the boys read the book.’ Note also that verb-initial clauses cannot occur in the domain of ‘inna: 8. *qultu ‘inna qara’a l-’awlaad-a said.1S that read.3SM the-boys-ACC ‘I said that the boys read the book.’ l-kitaab-a the-book-ACC 1298 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 This paper attempts to provide an account of accusative Case checking in this construction, in which the accusative preverbal NPs are embedded under a Case-assigning complementizer. In addition, it will account for the restriction that is imposed by ‘inna on its clauses. It is important to mention that ‘inna can introduce complement clauses; ‘inna in this type of clauses signals that the clause under its domain is subordinated to the matrix clause. In addition, ‘inna can introduce independent clauses (or sentence-like) in that the complement clauses are similar in form to what it would have as an independent clause without ‘inna. However, in both cases, clauses under the domain of ‘inna have an identical form. 2. Theoretical background This section introduces the major concepts of the Minimalist program (MP) which has played a crucial role in the analysis introduced in the paper. 2.1 Merge and Move Chomsky (1995) argues that the human language faculty consists of lexicons and derivational systems. There are two major operations: Select and Merge which operate over a group of lexical items named Numeration to form syntactic structures. The language faculty allows these syntactic structures to appear only in a binary set. Of the two, Merge is that operation which acts free in the syntactic component of Language (CHOMSKY, 2004, p. 108). It is a combinational operation which forms a syntactic object by merging two linguistics expressions (α and β) and form a new unified linguistic expression, resulting in the structure: 9. K α β In this sense, Merge is a recursive structure-building process operating on linguistic expressions based on their selectional features. For example, an X is a head and carries an uninterpretable feature which Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1299 requires it to merge with a ZP to form an XP, resulting in deleting X’s selectional feature. This is the first instance of Merge, called External Merge. The other instance is Internal Merge which is understood as Move (CHOMSKY, 2001). Move deals with linguistic expressions and phrases. It applies to the merged linguistic expressions; it places a copy of the object in another position. Move is triggered by the requirement to satisfy the Edge feature (EF) of a specific functional head. Move is required to take a place early in the syntax before the operation Spell Out which transfers the structure to the phonological component (PF) and the semantic component (LF).3 2.2 Interpretable vs. uninterpretable features Features are divided into two kinds of features: interpretable and uninterpretable features. Some of them are legible by semantic component, whereas others are not. Those with semantic component would get a semantic interpretation and thus would be interpretable, whereas the others that would not get a semantic interpretation, would be uninterpretable dues to the absence of the semantic component. Likewise, functional and lexical categories too have a set of features. Functional heads carry ‘formal features’ such as person, number and gender (CHOMSKY, 2001). They are uninterpretable, and thus enter the derivation unvalued as they have no effect on semantic interpretation of heads such as C, T, and v at LF. By contrast, features on nominal expressions are important for their semantic interpretation, and thus would enter the derivation valued. However, the Case feature on nominal expressions has no semantic role, and thus it is uninterpretable at LF. 2.3 Agree Unlike Merge, Agree is concerned with features rather that with lexical items. Its crucial function is to value these features which enter the derivation unvalued and to delete uninterpretable features that have no semantic content. Agree establishes a relation between Probe and Goal 3 The PF component maps the syntactic structure into a PF representation of its phonetic from, resulting in a phonetic spell-out for every word. The LF component, on the other hand, maps the syntactic structure into its counterpart semantic representation. 1300 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 both of which have to be active with uninterpretable features.4 In order to value its unvalued uninterpretable features, Probe searches for an active Goal in its c-commanding domain. A Probe is an uninterpretable feature carried by a minimal projection, while its Goal is an interpretable feature of the same type carried by a maximal projection. 2.4 Case Assignment In the Minimalist Program, Case assignment continues to play a major role in the derivation of syntax. Abstract Case, in the original presentation of Case theory in Chomsky (1980), is related to the morphological property Case. The formal features that regulate the distribution of NPs are the same features that are overtly considered as Case morphology in some languages. Within GB framework, Chomsky (1981) proposed the Case Filter as a solution to the ambiguity of the distribution of lexical NP subjects in infinitive clauses in English as illustrated in (10): 10. a. b. c. d. e. Leo decided [(*Lina/himself) to leave]. Leo believed [Lina to be a genius]. Leo decided [for Lina to leave]. For Leo to win would be great. *Leo to win would be great. The subject cannot be overt in (10a,e), but this restriction is relaxed when the infinitival clause functions as a complement of a specific class of matrix verbs like the verb believe (10b), or when the infinitival clause includes the prepositional complementizer for (10c,d). Where the overt lexical NP subject is not permitted, the subject of the infinitive is considered as a silent pronominal element PRO. This assumption is the key of the Case Theory which proposes that all lexical NPs require Case 4 However, Pesetsky and Torrego (2006, p. 1) propose that the relation between Probe and Goal must be established by the operation Merge. This is to say that when Merge combines two elements, a Probe-Goal relation ‘must be established between these elements’. They name this the Vehicle requirement on Merge and is formulated as: Vehicle Requirement on Merge (VRM) If α and β merge, some feature F of α must probe F on β. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1301 (CHOMSKY, 1981, p. 49). A rather basic proposal of Case assignment for English is in (11): 11. a. subject of tensed clause: b. object of verb: c. object of preposition: nominative accusative accusative (or oblique) This is to say that verbs and prepositions have the distinctive properties of being Case assigners and this property accounts for why only verb and preposition in English take NP complements. Nouns and adjectives are not Case assigners and therefore are restricted to CP and PP complements (BOBALJIK; WURMBRAND, 2012, p. 46). For Minimalism, the central study of Case Theory is to investigate the differences between nominative and accusative Case assignments and to develop a uniform theory with them. To achieve that, Chomsky (1991) proposal was to assimilate accusative Case assignment to the similar type of structural configuration as nominative, namely Spec(ifier)-head relation (for more information, see KOOPMAN, 2006).5 The proposal assumes that all Case assignments are subject to c-command and locality,6 the relation is later termed Agree (CHOMSKY, 2000).7 This suggests that all subjects in Spec-IP (Spec-TP, in the most recent Minimalist works) are moved there from a lower position (this proposal is originally proposed in KOOPMAN; SPORTICHE, 1991). The mechanism of the uniform Case assignment considers the functional versus lexical differences in the Case assigners. Chomsky (1991) and Johnson (1991) assume that VP-external functional projection is responsible for Case on objects, and this assumption in turn leads to unify a proposal that Case is assigned by functional heads (see WURMBRAND, 2001, for empirical evidence). Under the most recent Minimalist conceptions, Case is generalized as part of a system of uninterpretable features that takes a place at the core of the linguistic coding of what Chomsky (2004, p. 110) 5 See Wurmbrand (2006) for empirical problems in adopting Spec-head relation in Germanic. 6 A transitive head assigns the accusative Case to a NP which it c-commands. 7 Note that the Agree perspective changes the burden of the motivation for movement from Case theory to the Extended Projection Principle (EPP). 1302 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 called ‘duality of semantics’: one part is the argument structure and the second is the information structure. So, Case features permit the proper working of the Probe-Goal system, a feature-checking mechanism that was not understood in GB framework (see also PESETSKY; TORREGO, 2001, for another speculation). However, the literature (e.g. HARLEY, 1995; SCHUTZE, 1997; OUHALLA, 1994; AOUN et al., 2010) shows that Universal grammar contains a notion of ‘Default Case’ which has a mechanism different from the one discussed above. The notion of ‘default Case’ is advanced in Marantz (1992) as the Case that does not interact with the Case Filter or ‘feature-Checking’. So, what is mechanism of the Default Case’ It is the mechanism that is used to spell out NPs that are not in association with the mechanism of the feature-checking. Thus, I assume that the model of grammar schematically follows three nominals through the syntactic derivation: two with an uninterpretable (ACC or GEN) feature to be checked and one with no Case (NOM) feature. The NPs with NOM Case feature survives at Spell-out level, given that it never had any uninterpretable features to be checked. 3. Discussions In section (1), it has been shown that the adjacent of the complementizer must be in accusative Case: 12. qultu ‘inna t-tabiib-a waSala said.1SM that the-doctor-ACC arrived.3SM ‘I said that the doctor arrived.’ ‘inna heads finite clauses and the embedded preverbal ‘subject’ NP bears the accusative Case as it is obvious from the accusative Case on T-tabiib-a (-a is an accusative marker). The fact that the embedded ‘subject’ is assigned an accusative Case raises an important question about its status with respect to the Case-assigment. Following the assumption that heads are endowed with Case features which must be checked, Mohammed (2000) assumes that both T and C assign their Case feature on the embedded preverbal NP (T-tabiib-a, the doctor, in (12)). He adds that the Case feature overtly shown on the NP is the one assigned by the highest projectional head Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1303 which is C in this sense. However, it is not clear how it is possible for the head of CP to assign the accusative Case to an element that is located in the specifier position of TP (Spec-TP). The idea that an NP can get more than one Case is required to be constrained by some locality conditions, otherwise it is difficult to prevent C (the highst head) from assigning its Case to some element in a lower position. Consider the following example where the predicate precedes the subject, the subject is located in a lower position:8 13. qultu ‘inna=hu waSala t-tabiib-u said.1SM that-he arrived.3SM the-doctor-NOM ‘I said that the doctor arrived.’ Here, the expletive –hu is attached to ‘inna but the subject (t-tabiib-u, the doctor) is in a position following the verb and it is in nominative Case that is formally assigned by T. The Case here is structural and not inherent since inherent Cases are limited to lexical elements that get a thematic role from the Case assigner which is not the case in (13). In the following, I will argue that the embedded preverbal NP is not located in Spec-TP, but rather in a position located between CP and TP. It is more likely in Spec-TopP. 3.1 Valued Case features Given that Case is an unterpretable feature which needs to be checked and deleted (CHOMSKY, 1995), and that NPs in Spec-TP must be assigned Case being in an argument position (CHOMSKY, 1981, 1986) and that the head of Spec-TP (or agreement) assigns the nominative Case under some versions of Case Theory, the status of the accusative NP in Spec-TP would be difficult to explain. Consider the ungrammaticality of the following example in which a gap occurs in the position of direct object of the verb: In the literature (KOOPMAN; SPORTICLE 1991; McCLOSKEY 1996, 1997), there are at least two positions for the genuine subjects: one is for the thematic subjects that can get a thematic role from the predicate. They occupy a position that is within the thematic shell which can be realized with the VP. The other position is Spec-TP, the functional head c-commands the VP. 8 1304 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 14. *‘inna l-kurat-a rakala l-walad-u that the-ball-ACC kicked.3SM the-boy-NOM ‘That, the ball, the boy kicked.’ __ Accoerding to Pesetsky and Torrego (2001), the ungrammaticlaity of (14) can be explained as follows: complementizers have some uniterpratable features that must be licensed by an element with interpretable features, presumply the complementizer ‘inna has an uninterpretable Case feature which must be discharged. As simplified in (15), the accusative NP in (14) is a focus-fronting that raises from its original position to the specifier of a functional projection, named FocP, in order to receive a contrastive reading. 15. [ForceP [Force ‘inna][FocP l-kurat-a [Foc Ø [FinP rakala l-walad-u l-kurat-a ]]]]] Here, the fronted NP, l-kurat-a, is Case-marked in its canonical position; the accusative Case is a reflection of the sharing properties between the fronted NP and the associated gap. So, if the accusative NP l-kurat-a, is assigned its accusative Case by virtue of being a nominal goal to the lexical verb, rakala, the Case feature of the complementizer ‘inna would remain unchecked. The resulting derivation crashes, as we see from the ungrammaticality of (14). However, the sentence in (14) can be repaired by inserting a pronominal clitic that is cliticized onto the verb as an accusative direct object of the verb. A typical example of this construction is given below (the considered clitic is in boldface): 16. ‘inna l-kurat-a rakala=ha l-walad-u that the-ball-ACC kicked.3SM-it the-boy-NOM ‘The ball, the boy kicked it.’ Derivationally, the Case feature of the lexical verb is checked against the Case feature on the pronominal clitic. The NP, l-kurat-a, therefore, is not a fronted focused object, but rather it is a left-dislocated topic that occurs in A’-position. Aoun et al. (2010, p. 191) state that clitic-left-dislocations are realized by the appearance of a NP in the left peripheral position of the clause and it is associated with a pronominal Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1305 clitic inside the clause. Assuming this to be so, the left-dislocated-topic, l-kurat-u, is active because its Case feature has not yet been valued. Assuming the complementizer ‘inna is a Case-assigner, it carries an uninterpretable Case feature which determines the value that it assigns to an unvalued Case feature on the accessible goal (RADFORD, 2009, for more discussions). Consequently, the complementizer ‘inna will enter the derivation carrying a feature which enables it to assign accusative Case to the left-dislocated-topic, l-kurat-u, the goal, which has an unvalued Case feature. 3.2 Left-Dislocation like Property First, embedded preverbal accusative NPs obligatory occur in the kind of peripheral position that left-dislocated phrases do. This can be captured by the observation that the embedded preverbal accusative NPs can occur to the left of the copula kaan (“be”), but not on the right. Consider the contrast: 17. a. ‘inna t-taalib-a kaana fii l-jaami’at-i that the-student-ACC was in the-university-GEN ‘The student was at the university.’ b. *’inna kaana t-taalib-a fii l-jaami’at-i that was the-student-ACC in the-university-GEN ‘The student was at the university.’ The contrast between (17a) and (17b) suggests that the accusative NP should be in a position higher than T. Second, Soltan (2007) and Alotaibi (2015) argue that preverbal subjects are taken to be genuine topics that are associated with a null resumptive pronoun, pro, in the clause (see also MOHAMMAD, 2000; FASSI FEHRI, 1993; AOUN et al., 2010). This approach also assumes that NPs that appear in structural positions where there is no Case assigner they are assigned nominative Case by a default mechanism. Consider the contrast between the following examples: 1306 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 18. a. jaa’a l-’walaad-u came.3SM the-boys-NOM ‘The boys came’ b. *jaa’uu l-’walaad-u came.3PM the-boys-NOM ‘The boys came’ SA has both preverbal and postverbal subjects and that they differ with respect to the agreement fact. The former triggers number, person and gender agreement, while the latter triggers only person and gender agreement. (18a) is grammatical because the verb, jaa’a ‘came’ agrees with its NP subject in person and gender, but not in number. The verb, however, in (18b) agrees in number as well and hence the sentence in ungrammatical. Now consider the following contrast with subject-initial clauses: 19. a. l-’walaad-u jaa’uu the-boys-NOM came.3PM ‘The boys came.’ b. *l-’walaad-u jaa’a the-boys-NOM came.3SM ‘The boys came’ (19a) is grammatical because of that the subject triggers full agreement, and (19b) is ungrammatical as the subject triggers partial agreement. This suggests that subject-initial clauses (19a) have a pro subject in a post-verbal position. Thus, full agreement is expected with a clause that is includes a pro subject. 3.3 The Non-Identity Effects Following Miller and Sag (1997), I assume that clitics in Arabic are affixes realizing an otherwise unexpressed argument, and it is not a result of some superficial cliticization (see McCLOSKEY, 2006, for more details). I shall call this kind of arguments pro. This pro is in fact the resumptive pronoun. Under the copy theory of movement, it should 1307 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 be clear that the relation between the accusative NP following ‘inna and pro is not generated via movement. The theoretical assumptions of Minimalism assume that movement leaves a copy with identical syntactic features. Adger and Ramchand (2005) argue that movement can be involved in cases where the apparently displaced constituent shows the same copy in the base position. More precisely, if the element in the higher position shares its corresponding in the lower position in respect to agreement, selection and Case-marking, then it can be said that the derivation involves movement, otherwise it should involve basegeneration account. In ‘inna-clauses, the distribution of Case-marking between the accusative NP and the pro at the foot of the dependency is not the same. This is supported by the following examples for both independent and dependent ‘inna-clauses, respectively: 20. a. ‘inna r-rajul-a hajama ‘alai=hi that the-man-ACC attacked.3SM on-it ‘The man, the lion attacked him.’ l-’sad-u the-lion-NOM b. qultu ‘inna r-rajul-a hajama ‘alai=hi l-’sad-u said.1S that the-man-ACC attacked.3SM on-it the-lion-NOM ‘I said that the boys read the book.’ Here, the topicalized prepositional object bears an accusative Case which is distinct from the one that is associated with in its base position. The accusative Case on the embedded NP would be surprising under the movement account. This would argue that the accusative NP does not originate in an argument position of the lower predicate, but rather it originates in A’-position, namely the specifier position of Topic projection. (20) is diagrammed in (21): 21. [ForceP[Force ‘inna][TopP r-rajul-a [Top Ø] [FinP [Fin Ø][TP [Hajama ‘alai-hi l-’sad-u]]]] According to our analysis the accusative Case on the preverbal NP r-raji-a ‘the man’ is assigned under c-command by an appropriate kind of head. So, since the complementizer ‘inna c-commands the subject, r-raji-a, and since ‘inna is a transitive complementizer, it follows that the NP r-raji-a, the man, will be assigned accusative Case at the stage of derivation shown in (21). However, ‘inna can also be 1308 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 followed immediately by a PP which can intervene between ‘inna and the accusative NP. The following example expresses this fact: 22. qultu ‘inna fii l-bait-i rajul-an said.1SM that in the-house-GEN man-ACC ‘I said that there is a man in the house.’ Mohammad (2000, p. 22) observes that in ‘inna-clauses no thing can intervene ‘inna and the preverbal accusative NP except Prepositional Phrases (PPs). A plausible question arises is: why PPs and not others’ A similar case is found in Italian sentence structures. For instance, Belletti (2004, p. 26) observes that post-subject XP can be a PP in VSXP structures, but cannot be a NP: 23. a. (?) Ha telefonato Maria al giornale. Has phoned Maria to the newspaper. b. *Ha comprato Maria il giornale. Has bought Maria the newspaper. As mentioned in Belletti (2004), the sentences in (23) must be pronounced with continuous intonation without a special break between S and its complement.9 As for Belletti (2004), he suggests that XPs can be PPs because the PPs do not absorb Case as they need no Case, while NPs need Case. Therefore, Belletti (2004) assumes that the intervening of the subject with its already checked Case between XP and the responsible of the Case assignment would cause a Defective Intervention Effect (DIE) (CHOMSKY, 2000, p. 123) which would not allow the Case assigner to check the uninterpretable Case feature of its goal: 24.[v+AccØ[FocusP[NPSubject][Focus[FocusØ][TopicP[TopicØ][vP[NPSubject][v[vØ][VP[VØ][NP/PP]]]]]]] DIE 9 However, one reviewer suggests that sentences in (23) wouldn’t label as ungrammatical. The reviewer adds that they are perfectly acceptable with focus on MARIA; they would be possible in a focus configuration. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1295-1312, jul./set. 2019 1309 If this analysis is on the right track, it is possible to extend the same analysis to account for the contrast between (22) and (5, repeated in 25). 25. *qultu ‘inna l-kitaab-a qara’a l-’awlaad-u said.1S that the-book-ACC read.3S the-boys-NOM ‘I said that (as far) the book, the boys read it.’ If PPs in Arabic do not have a Case feature, then their intervention between the Case assigner ‘inna and the accusative NP would not cause any problem as the uninterpretable Case feature on NPs would be able to undergo feature checking. 4. Conclusion This paper has investigated the behaviour of ‘inna-clauses in Standard Arabic. The findings of this study reveal that ‘inna assigns the accusative Case to the closest NP via Agree. It has also been argued that the accusative NP following ‘inna occupies Spec- TopP and not Spec-TP as proposed in the literature. In addition, this study has accounted for the fact that PPs and not NPs can intervene between the complementizer ‘inna and the accusative NP. It has explained this contrast in term of the Defective Intervention Effect in which a probe-goal relation holding between the Probe (‘inna) and the Goal (the accusative NP) is blocked by an intervening active goad such as NPs but not PPs. NPs triggers a Defective Intervention Effect that bars the complementizer from entering into Agree relation with its goal,. On the other hand, PPs do not absorb a Case and therefore they are not problematic for the derivation. References ADGER, David; RAMCHAND, G. Merge and Move: Wh-Dependencies Revised. Linguistic Inquiry, Cambridge, v. 36, n. 2, p. 161-193, 2005. Doi: https://doi.org/10.1162/0024389053710729 ALOTAIBI, Mansour. Wh-Questions in Modern Standard Arabic: Minimalist and HPSG Approaches. 2015. Dissertation (Ph.D.) – Essex University, Colchester, UK, 2005. 1310 Rev. Est. 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Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 O estudo do futuro perifrástico e do futuro sintético com verbos hipotéticos no português brasileiro The study of the periphrastic future and the synthetic future tenses with hypothetical verbs in Brazilian Portuguese Aline Peixoto Gravina Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó, Santa Catarina / Brasil aline.gravina@uffs.edu.br Eduardo Henrique Brizola Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó/ Santa Catarina/Brasil eh.brizola@gmail.com Resumo: O uso do futuro perifrástico tem se mostrado como a construção preferencial dos falantes do português brasileiro e apontado como um fenômeno de mudança linguística na língua. Diante disso, esta pesquisa buscou inovar e aprofundar possíveis análises dessa mudança, ao se propor averiguar, a partir de um ponto de vista formal da gramaticalização, a escolha do tempo verbal futuro (simples ou perifrástico) de informantes nativos do português brasileiro diante de verbos hipotéticos. Para cumprir esse objetivo, a metodologia consistiu em aplicar um questionário online com quinze verbos hipotéticos nos tempos futuro simples e futuro perifrástico a informantes brasileiros, maiores de dezoito anos e que tivessem concluído o ensino médio. Os resultados encontrados constataram a presença de uma variação no uso dessas construções, justificada, na ótica deste estudo, pela influência da gramática periférica do falante (nos termos de KATO, 2005). Ainda assim, os indícios de mudança podem ser averiguados na pesquisa, na medida em que mesmo com verbos hipotéticos, a construção do futuro pelo uso da perífrase apresentou um percentual maior de preferência em todos os contextos analisados. Palavras-chave: futuro perifrástico; gramática nuclear; gramática periférica; mudança linguística. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1313-1344 1314 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 Abstract: The use of the periphrastic future tense has been shown as a variant in the trajectory of change of Brazilian Portuguese. Several studies have been demonstrating the speaker’s preference for the use of verbal periphrasis in the future tense - eg: vou / irei estudar - in the place of use of the simple future tense – eg.: estudarei. In this sense, this research sought to innovate and deepen an analysis of that change, by proposing to find out, from a formal viewpoint on grammaticalizion, the choice of verbal tense (simple or periphrastic future) of native informants of the brazilian portuguese with hypothetical verbs. The methodology consisted of applying an online form to Brazilian subjects, over 18 years of age and who had completed high school. In relation to the results found, we observe that because it is a written experiment, peripheral grammar (schooling) was present in a quantitative way in our results. However, signs of change in the language can be examined and analyzed, that is, even with hypothetical verbs the future construction in the language is in the way of the implementation of verbal periphrasis. At the same time, it was possible to observe, by studying the contexts, that the synthetic future tense is still present, especially due to the influence of schooling. Keywords: periphrastic future; nuclear grammar; peripheral grammar; linguistic change. Recebido em 15 de março de 2019 Aceito em 31 de março de 2019 1 Introdução Estudos como os de Santos, A. (1997) Santos, J. (2000), Gibbon (2000, 2014), Oliveira (2006), Bragança (2008) Fonseca (2010) e Viera (2014) apontam que o futuro verbal no Português Brasileiro (doravante PB) tem apresentado mais de uma possibilidade de construção sintática nos últimos tempos, tendo sofrido uma mudança linguística, ou estaria, ao menos, no caminho dessa mudança. A principal inovação seria a partir de construções perifrásticas com o uso do verbo ir, como em vou/irei fazer no lugar de farei. É possível observar processos de mudança no uso do tempo futuro desde o latim, contudo, nessa língua, constatou-se a formação de uma construção “nova” para o futuro de maneira inversa ao que se tem visto na atualidade do PB: o futuro no latim era feito por uma forma modal analítica (ex.: cantare habeo – primeira pessoa) que foi se simplificando (ex.: cantar hei) até ser aglutinada ao final do verbo como desinência (ex.: cantarei) (CÂMARA JR., 1985). No PB, no entanto, já havia (e há) a formação do futuro do presente do indicativo por adição de Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1315 desinência, mas esse está dividindo espaço com outra variante, construída pela adição de verbos auxiliares antes de verbos no infinitivo (exemplos: vou cantar, irei cantar – primeira pessoa). Diante de tais fatos, a presente pesquisa teve o objetivo de analisar se a intuição do falante do PB está realmente direcionando-se à internalização dessas inovações linguísticas, deixando de lado, de maneira lenta, o uso de construções tradicionais. Aqui, faz-se referência aos Futuros Perifrásticos e Sintético, respectivamente. Para tanto, utilizou-se, a partir de um formulário online, a coleta de dados de intuição de informantes do PB que concluíram o Ensino Médio. Foram-lhes fornecidos verbos inexistentes (hipotéticos) com seus respectivos significados e esperou-se que, depois de inseridos num contexto situacional, eles indicassem a forma mais natural que expressasse o futuro. Optou-se por não utilizar verbos existentes no PB para que o falante não fosse influenciado por construções já cristalizadas por suas experiências, consequentemente, não havendo interferências em suas escolhas sobre fazer uso de um ou outro tipo de futuro. Ao se depararem com palavras nunca antes ouvidas, faladas ou escritas foram testadas suas liberdades enquanto falantes e investigadas as regras de nível sintático que se mostraram mais protuberantes no que se poderia chamar de tecido mental da língua. Relacionando todas essas questões, visualizou-se quais rotas o PB tem tendência a seguir em relação ao uso do tempo futuro. Após essa breve introdução da pesquisa, serão apresentados a seguir os principais referenciais teóricos sobre o tema, a metodologia detalhada da forma de análise e a reflexão sobre os resultados obtidos. 2 Gramaticalização A construção perifrástica, formadora do futuro no PB, tem como característica a presença do verbo “ir” e esse verbo, por sua vez, teria sofrido um processo de deslexicalização, ou seja, perdido seu conteúdo lexical de verbo de deslocamento e adquirido um valor mais abstrato, temporal. Em outras palavras, ir teria passado por um processo de gramaticalização. O termo gramaticalização foi introduzido inicialmente pelo linguista Antoine Meillet para designar determinados fenômenos de natureza diacrônica. Uma de suas obras, a Linguistique historique et linguistique générale, publicada no ano de 1921, foi a que trouxe o artigo 1316 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 inaugural que formulou o conceito de gramaticalização da maneira como é utilizado modernamente. Meillet definiu a gramaticalização como sendo um processo no qual uma palavra autônoma passa a apresentar um caráter gramatical. Para exemplificar, o francês apresentou as fases as quais o verbo être enfrentou até sofrer um esvaziamento semântico e deixar de ser uma palavra principal – com o sentido de “ser/estar” – para tornar-se um auxiliar de formação do passado composto. De maneira geral, na gramaticalização, itens lexicais, como verbos, adjetivos e nomes, passam a categorias esvaziadas semanticamente, como verbos auxiliares ou preposições. Assim, nas perífrases analisadas nesse estudo, o verbo ir teria passado pelo mesmo processo que o verbo “to go” no inglês. Na língua inglesa, há um verbo “to go” com moção no espaço e outro que funciona como verbo auxiliar. De acordo com estudos históricos, é possível averiguar que o verbo com o sentido de moção (movimento) no espaço veio antes do verbo como auxiliar e, por isso, a hipótese é de que esse verbo tenha sofrido um processo de gramaticalização. Hopper (1991) afirma que a gramática de uma língua é sempre emergente, ou seja, estão sempre surgindo novas funções/valores/usos para formas já existentes e, nesse processo de emergência, verificável a partir de padrões fluidos da linguagem, é possível reconhecer graus variados de gramaticalização que uma forma vem assumir nas novas funções que passa a executar, tornando-se imperioso, então, contar com recursos que permitam identificar os primeiros estágios desse processo de mudança. Quando gramaticalizadas, as palavras deixam de ser simplesmente comandadas pelo discurso para fazer parte do conjunto de mecanismos que as estruturam – a categoria gramatical é responsável pela organização de um texto, pela referência de partes já ditas, além de identificar tempo, aspecto e modo. Como o fenômeno da gramaticalização decorre em estágios, as várias funções que os itens lexicais desempenham até transformarem-se completamente em itens gramaticais podem acabar coexistindo. Por essa razão, Hopper e Traugott (1993) afirmam que é possível fazer um estudo da gramaticalização tanto por um viés diacrônico quanto por um viés sincrônico. Câmara Jr., por exemplo, professor, pesquisador e linguista brasileiro, esmiuçou, em sua obra de 1985 intitulada História e estrutura da língua portuguesa, um pouco sobre as etapas que o verbo latino habere (haver) passou ao longo de sua história, desde o período em que sua Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1317 função era de apenas verbo auxiliar até o período em que foi aglutinado como desinência indicadora de tempo futuro. O autor esclareceu que existia, a princípio, uma forma perifrástica que possuía um forte caráter de auxiliaridade. Esta se dispunha, flexionada no presente, ao lado de um verbo no infinitivo (ex.: cantare habeo) desempenhando, no latim vulgar, o encargo de exteriorizar a vontade do falante da ocorrência de algo. Tal partícula fora, com o tempo, simplificando-se (ex.: cantar hei) até atingir o ponto de aglutinar-se ao verbo principal (ex.: cantarei). A trajetória de mudança dessa estrutura pode servir como ponto de partida para entender o que vem sucedendo com o verbo ir no PB. Ele tem manifestado um caminho bastante semelhante ao exposto acima, todavia, pela direção contrária: nossa língua, que já porta uma construção de futuro sintética por intermédio da adição de desinências ao final dos verbos (ex.: nós falaremos) tem sido palco de uma disputa entre esse tipo de estrutura e outras elaboradas a partir da junção de um verbo auxiliar antes de verbos no infinitivo (ex.: nós vamos falar; nós iremos falar). Essas partículas perifrásticas, as quais se citam nessa pesquisa, segundo Câmara Júnior (2002), interessam às locuções gramaticais em que um item auxiliar desempenha apenas um papel gramatical e o restante das noções semânticas ficam alocadas no vocábulo principal. Essa será a definição assumida nesta pesquisa, juntamente com o uso do termo “perífrase verbal”. A maioria das gramáticas apresenta outras nomenclaturas para fazer referência a estes tipos de construções, no entanto, sem qualquer preocupação de se explicar os pormenores de suas escolhas. Said Ali (1966), por exemplo, em sua Gramática Secundária da Língua Portuguesa, não diferencia os conceitos de construção perifrástica e tempo composto e nem sequer menciona a função do verbo ir quando nessas posições. A mesma indistinção parece ocorrer com Cunha e Cintra (1985) que apenas discutem sobre a existência da locução verbal, a união entre um verbo auxiliar e um verbo principal. Para realizar as análises desta pesquisa, o respaldo utilizado vem da vertente teórica gerativista, assim para uma definição de gramaticalização mais adequada com essa vertente, o estudo de Vitral e Ramos (2006) é tomado como referência para fundamentar o processo sofrido pelo verbo ir nas perífrases verbais de futuro. Os autores discutem a validade dos conceitos de (i) gradualidade nas etapas do ciclo de gramaticalização e de (ii) concomitância das formas em competição ao longo do processo de mudança sintática. De 1318 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 maneira geral, assumem a postura de que a gramática interna dos falantes interpreta os itens em competição como elementos de categorias distintas. Eles afirmam que “o sistema computacional não ‘enxergaria’, portanto, o processo de recategorização. Este, na realidade, seria um epifenômeno captado pelo linguista quando compara estágios diferentes de uma língua” (VITRAL; RAMOS, 2006, p. 23). Para dar prosseguimento a uma explicação formal sobre a gramaticalização, os autores apresentam as seguintes sentenças: (1) a) Eu tenho dez vira latas. b) Eu tenho conhecido muita gente boa. (VITRAL; RAMOS, 2006, p.23) Com o propósito de esclarecer o papel do sistema computacional no processo de gramaticalização, por uma visão gerativista, Vitral e Ramos (2006, p. 24) explicam (1a) e um (1b) acima, retomados na citação abaixo como (5 a) e (5 b) respectivamente, da seguinte maneira: No estágio atual da língua portuguesa, o verbo tenho, em (5a) indicando posse, coexiste com o auxiliar tenho em (5b). Vamos supor, assim, que se trata de dois itens diferentes que pertencem ao componente lexical. O primeiro deles é categorizado como pertencente à classe de verbos e o outro à da classe dos auxiliares. Quando o sistema computacional, através de suas operações, insere dois itens em arranjos sintáticos, ele “enxerga” os traços categoriais que definem a classe sintática dos dois itens e os alocam de acordo com esses traços. Assim, em (5), tenho [lexical] é inserido no ambiente __NP e tenho [gramatical] encontra-se no ambiente __VP. Em nossa ótica, portanto, a gradualidade identificada nos trabalhos sobre gramaticalização não tem a ver com a possibilidade de indefinição da classe de um item. Para nós, ou o item é de uma classe ou de outra. Em outras palavras, quando o item é inserido numa estrutura oracional, ele já tem sua classe sintática definida. Diferentemente de outras abordagens, não estamos focalizando aqui as potencialidades do item, mas sua presença em um contexto específico, o que acarreta a necessidade de um estatuto categorial definido, não ambíguo. Deve-se ressaltar aqui que o que dá a impressão de gradualidade categorial do item é o “olhar” externo sobre a língua. Dentro de uma estrutura um item nunca tem estatuto categorial indefinido ou mesmo ambíguo. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1319 Como pode ser visto, Vitral e Ramos propõem que a gramaticalização do verbo ter no português desenvolveu dois itens diferentes, um com valor de posse e outro com valor existencial. Por esse entendimento, os autores estabelecem uma das formas de distinção entre a abordagem formal da gramaticalização e a perspectiva funcionalista: na primeira o item é inserido em uma estrutura oracional com sua classe sintática definida, ou seja, sem a possibilidade de um valor ambíguo; já, no modelo funcionalista, a definição da classe sintática de um item só pode ser estabelecido através de sua inter-relação com os outros itens dos enunciados devido às suas potencialidades semântico-sintáticas, caracterizando uma ambiguidade em determinadas construções, segundo esta abordagem. O modelo gerativista não discute o valor polissêmico de um item, tal como o verbo ter. A teoria entende a existência de uma única forma com duas entradas lexicais. Em outras palavras, na vertente funcionalista, o verbo ter seria uma palavra polissêmica, ou seja, uma única palavra com mais de uma possiblidade de sentido; na vertente formal gerativista, o verbo ter seria uma homonímia, ou seja, haveria dois verbos com entradas lexicais diferentes, mas escritos de uma mesma forma. Neste estudo, advoga-se que da mesma forma que Vitral e Ramos (2006) consideram existir uma única forma com duas entradas lexicais para o verbo “ter”, haveria também uma única forma com duas entradas lexicais para o verbo “ir”. (2) (a) Eu vou à praia. (b) Eu vou pensar na praia. No português atual, o verbo “vou”, em (2a) com o sentido de movimento, coexiste com o verbo auxiliar “vou” em (2b). A possibilidade de acessar essas duas entradas lexicais desse verbo veio a partir da gramaticalização desse item. Dessa forma, o sistema computacional enxerga traços categorias distintos em cada uma dessas sentenças, uma vez que quando o item é inserido numa estrutura oracional, ele já tem sua classe sintática definida. Portanto, o verbo “ir” não possui uma ambiguidade de uso no sistema linguístico, mas sim uma forma homonímica para entradas lexicais distintas: uma como verbo pleno (2a) e outra como verbo auxiliar (2b). Entender a formação da perífrase verbal com o verbo “ir” como uma entrada lexical independente, gerada pela gramaticalização do verbo 1320 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 “ir” pleno, é algo importante neste estudo. Acredita-se que a variação (ou mudança em progresso) da forma do futuro no PB atual, com o uso de construções perifrástica, seja motivada por essa forma inovadora de construção na língua, independentemente de qual verbo o acompanhe. Desse modo, na próxima seção, serão discutidas as duas possibilidades de construção do futuro no PB: futuro sintético e futuro perifrástico. 3 A realização do futuro sintético e do futuro perifrástico Estudos sobre a variação do uso do tempo futuro é um tema que vem sendo trabalhado por vários autores, especialmente, a partir de uma perspectiva da sociolinguística variacionista, trazendo resultados de várias regiões do país, como da região de Vitória no Espírito Santo (BRAGANÇA, 2008), da cidade de São José do Rio Preto em São Paulo (FONSECA, 2010) e de cidades do Ceará (VIEIRA, 2014). Especificamente para esta seção, serão apresentados resultados de trabalhos realizados por Adriana de Oliveira Gibbon (2000), Adriana Morcelles dos Santos (1997) e Josete Rocha dos Santos (2000). A escolha por esses trabalhos se deu porque, de maneira geral, os resultados desses estudos sintetizam, para esta revisão bibliográfica, as principais formas de uso do futuro em seus principais contextos de realização: fala e escrita em situações formais e informais. Os estudos de Santos, A. (1997) e Santos, J. (2000) apontam resultados sobre o uso do futuro em situação formal de uso. O primeiro de forma escrita e o segundo de forma oral. Já Gibbon (2000) traz resultados sobre o uso do futuro em situação de fala informal. Ou seja, as pesquisas dessas linguistas contrapuseram a utilização das construções de expressão do futuro em relação ao registro de modalidade formal/informal e em relação a fala e a escrita. As construções de futuro encontradas nesses estudos foram: futuro sintético, o futuro perifrástico e o presente com referência futura, (nós falamos isso amanhã). Santos, A. (1997), ao analisar algumas revistas de alcance nacional e transcrições de discursos pronunciados no Congresso Nacional, atestou que em textos formais escritos prevalece o uso do futuro sintético e do presente do indicativo com referência futura. Já a pesquisa realizada por Santos, J. (2000) com debates em emissoras de rádio do Rio de Janeiro (RJ) demonstrou que quando se trata de um texto formal, mas no registro oral, as três variantes do futuro aparecem concomitantemente no discurso. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1321 Gibbon (2000), por sua vez, evidenciou que o futuro sintético praticamente inexiste em textos orais informais. Ao analisar dados do Projeto Varsul com entrevistas concedidas por moradores da cidade de Florianópolis/SC, a linguista averiguou apenas a presença do futuro perifrástico e do presente do indicativo denotando futuro. A pesquisa da autora constatou ainda que o fator idade tem influência significativa no uso entre uma construção e outra, sendo possível deduzir que se trata de uma mudança em progresso: indivíduos jovens e de meia-idade apresentaram maior frequência no uso das formas inovadoras em relação aos mais velhos, que se mostraram mais conservadores. A partir de resultados como esses, o objetivo deste estudo está em mensurar a intuição do falante, quando diante de verbos hipotéticos. A hipótese se baseia no fato de que se for uma mudança em estágio avançado, como mostram os resultados da literatura sobre o tema, mesmo diante de verbos nunca vistos, a tendência maior será o uso do futuro perifrástico e não do uso do futuro sintético nas sentenças. Apesar de ser um experimento intuitivo, por estar em uma plataforma online e executado por informantes escolarizados, pretende-se ainda averiguar o grau de influência da gramática periférica sobre a gramática nuclear desses informantes. 4 Gramática Nuclear versus Gramática Periférica O experimento deste artigo foi pensado de modo que o informante não acessasse de maneira contínua seus conhecimentos escolares.1 Para isso, os formulários foram elaborados de maneira que o informante devesse marcar uma alternativa dentre três disponíveis, optou-se por não pedir ao informante que escrevesse, pois poderia suscitar um exercício de análise gramatical escolar de uma forma explícita. No entanto, como não foi possível mensurar o tempo que o informante demorou para marcar as questões e por se tratar de um formulário escrito com indícios de um estudo sobre linguagem, acredita-se que os resultados possam ter sofrido algum tipo de influência que não seja observada na fala espontânea. 1 Destaca-se que por se tartar de verbos hipotéticos, não foi possível realizar um experimento sem o uso de questionários. Realizar um experimento oral, como por entrevistas, seria algo muito artificial e com resultados poucos confiáveis, uma vez que não trataria de uma situação real de uso da língua. 1322 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 Para tanto, é importante levar em conta dois conceitos introduzidos por Chomsky (1981) e posteriormente discutidos por Kato (2005): o conceito de gramática nuclear e o de gramática periférica. No sentido chomskiano do termo, a gramática de periferia armazena resíduos de mudança, empréstimos, inovações linguísticas, dentre outros, sendo que os indivíduos de uma mesma comunidade linguística podem divergir em larga escala na manifestação ou não desses aspectos; já a gramática nuclear abarca os elementos que compõem a competência natural dos falantes, determinada no processo natural de aquisição da linguagem ao longo de sua infância. Em outras palavras, o primeiro desses termos refere-se à gramática gradativamente criada pela criança na medida em que ela entra em contato com o input linguístico de sua comunidade. Tal gramática absorve os parâmetros dessa língua, desenvolvendo, desse modo, um sistema de funcionamento. O segundo, por sua vez, reporta à gramática gradativamente criada pelo falante quando ele inicia o seu processo de escolarização. Assim como a outra, essa gramática assimila os parâmetros ensinados pela escola para o uso da língua o que acaba desenvolvendo outro sistema de funcionamento na mente. Diante disso, Kato (2005) adapta a ideia de que no Brasil a aquisição dessa gramática assemelha-se à aprendizagem de uma segunda língua. Ou seja, a autora argumenta que em favor da ideia de que as fontes provedoras da periferia estão ligadas à escolarização, que é a responsável pelo aprendizado da escrita. Isso em decorrência de ela possuir parâmetros de funcionamento às vezes opostos aos da gramática nuclear, ou seja, aquela adquirida pela criança antes de sua inserção no mundo escolar. Nesse sentido, é possível que ocorra na mente do falante uma competição entre ambas, uma vez que tanto a gramática da escrita, quanto a gramática de periferia teriam início depois de uma idade crítica para a aquisição, condição que abre espaço para a emergência de diferenças individuais marcantes. A interferência da gramática periférica na gramática nuclear do falante faz com que determinadas mudanças linguísticas sejam mais lentas e apresentem-se mais conservadoras em determinados contextos quando comparados a outros. Neste trabalho, ao envolver informantes escolarizados, pretende-se mensurar o quanto a gramática periférica pode influenciar um falante nativo em um contexto de teste linguístico, elaborado por questionário online. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1323 5 Exposição das etapas de elaboração do experimento Como apresentado na seção três, a disseminação nas modalidades oral e escrita de novas possibilidades sintáticas para a formação do futuro do presente do indicativo guia o PB em direção a uma provável mudança linguística, o que mostra que nossa língua, assim como qualquer outra, também se metamorfoseia. E já que muitas das expressões advindas do uso dessas inovações tornaram-se recorrentes no cotidiano dos falantes, ou seja, já que essa comunidade linguística tem sido frequentemente exposta às perífrases, optou-se por adotar uma metodologia que anulasse ou, ao menos, limitasse a interferência dessas construções paulatinamente cristalizadas. Para tanto, definiu-se que a utilização de verbos hipotéticos seria a melhor alternativa para perceber o avanço dessa mudança na intuição daqueles que têm o PB como língua materna. Essa escolha, inclusive, entra em concordância com a visão gerativista assumida para fazer a análise dos dados, pois a ela não pesa tanto discutir sob que contextos sócio-econômico-culturais ocorre maior ou menor uso de um futuro e outro e sim como essas formas se distribuem em relação à língua em si. A criação de um conjunto de palavras nessa classe gramatical ofereceu aos informantes a possibilidade de moldarem-nas de acordo com suas próprias regras. Claro, tais regras não são tão individuais assim, visto que provêm, ademais de outros fatores, de relações de caráter social. Porém, deve-se reconhecer que o contato com expressões nunca antes ouvidas, faladas ou escritas, certamente cedeu uma maior liberdade ao indivíduo, pois lhe permitiu o acesso consciente a sua memória linguística iniciando um processo de reflexão que findou na preferência de uso de uma estrutura sintática em detrimento de outra. Para compreender de forma mais clara essas questões, utilizarse-ão posteriormente exemplos da inserção desses verbos num contexto situacional. Antes disso, serão esmiuçados os métodos que nortearam esse primeiro momento de produção dos verbos conduzido não somente pela criatividade linguística inerente, segundo Chomsky (1972), a todos os falantes, como também por uma base de elementos prefixais, sufixais e radicais da formação de palavras da língua portuguesa. 1324 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 5.1 Processo lógico-criativo de elaboração dos verbos A fim de que houvesse a simulação das estruturas verbais do PB, decidiu-se pela criação de quinze verbos hipotéticos divididos igualmente nas três conjugações existentes: os de primeira conjugação (terminados em –ar), de segunda conjugação (terminados em –er) e os de terceira conjugação (terminados em –ir). Desse modo, seria possível manter um olhar analítico sobre a equiparação ou não da interferência dos futuros sintético e perifrásticos em cada um desses grupos. Buscouse seguir os padrões de formação verbal da língua portuguesa e por isso o detalhamento em descrever todo o processo lógico-criativo da elaboração dos verbos. Como os sujeitos da pesquisa foram, preferencialmente, pessoas que já tivessem ingressado no ensino superior, houve a preocupação em apresentar verbos que denotassem alguma ação do cotidiano desses graduandos. Alguns exemplos são os verbos cafoitar, tececer e vuniver. Este condiz ao ato de economizar cada mísera moeda possível para arcar com os custos do ensino superior; esse ao de amanhecer escrevendo o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e aquele à ação de passar uma noite inteira desperto à base de cafeína (café, energéticos etc.). Sabe-se que, às vezes, há pouco tempo disponível para que os estudantes lidem com todas as obrigações que esse nível de ensino demanda, portanto, passar madrugadas acordado é algo que a maioria vivencia, vivenciou ou viu alguém vivenciar. Os verbos facevirar e tougar, de primeira conjugação, foram pensados como uma forma de aproximar a tecnologia e as redes sociais ao mundo dos informantes. Enquanto o primeiro representa o ato de fazer com que uma postagem adquira rapidamente curtidas e compartilhamentos no Facebook, o segundo refere-se ao uso do Near Field Communication (NFC), uma tecnologia para smartphones desenvolvida há um pouco mais de uma década. Facevirar surgiu a partir das promoções realizadas no Facebook em que o ganhador de um prêmio é aquele que consegue a maior quantia de curtidas e/ou compartilhamentos dentro de um espaço de tempo limitado. Cinlaranjer, por sua vez, foi pensado a partir da necessidade de se trabalhar com um verbo impessoal. Ele exprime um fenômeno da natureza: o processo pela qual o céu, em dias nublados, recebe os matizes da luz solar criando um belíssimo contraste entre as cores cinza Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1325 e laranja. Como ele não será utilizado em sentidos figurados, só poderá ser conjugado na terceira pessoa do singular. Dentre os quinze verbos, há também dois de tipo reflexivo, ou seja, aqueles em que a ação do sujeito recai sobre si mesmo. Enchovescerse é um dos verbos que satisfaz essa característica; ele alude ao sentimento de tristeza e/ou paz no qual imerge uma pessoa durante ou após ouvir o som da chuva. O outro é atempor-se que remete àquelas situações em que se fala com uma pessoa, porém ela não o ouve porque sua mente está em outro lugar, outro tempo. Há de se notar aqui que fora utilizado a terminação –or, justamente numa tentativa de representar o verbo pôr e seus derivados (dispor, repor, transpor etc.). Apesar de sua terminação, ele pertence ao grupo dos verbos de segunda conjugação já que o mesmo fora criado a partir da junção do prefixo a- (negação, afastamento), do substantivo tempo e do verbo pôr, que antigamente se transcrevia como poer. E já que se falou em prefixo, será esquadrinhada agora a formação dos verbos a partir desses elementos linguísticos. Abscamar, por exemplo, que indica a ação de lutar contra o irresistível desejo de permanecer na cama mesmo quando se tem compromissos a fazer, surgiu com a aglutinação do prefixo abs-, que expressa uma relação de afastamento, e do substantivo cama. Peristorir traz consigo o prefixo peri-, que expressa a relação “em torno de”, unido ao substantivo história Ele remete ao processo de adentrar-se totalmente num universo narrativo a ponto de emocionar-se e preocupar-se com o destino das personagens. Enchovescer-se, o qual teve seu significado explanado anteriormente, é resultado da ligação entre o prefixo em-, que indica movimento para dentro, com o substantivo chover e o sufixo –escer, marcador dos verbos incoativos (aqueles que denotam o início de uma ação, tal como ocorre com envelhecer e adormecer). Há outros verbos que não foram mencionados. Portanto, a seguir, encontram-se todos os quinze, em ordem alfabética, divididos silabicamente e seguidos de suas respectivas transcrições fonéticas, definições, exemplos de uso e as combinações que os inspiraram: (3) a) abs.ca.mar /aβskɐ'maɾ/ Ação de lutar contra o irresistível desejo de permanecer na cama mesmo quando se tem compromissos a fazer. Exemplos de uso: Nós temos abscamado muito neste inverno; Atrasei-me hoje 1326 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 porque fiquei abscamando por uma hora. Inspiração: combinação entre o prefixo abs- (relação de afastamento) e o substantivo cama; b) a.ner.gir /aneɾ'ʒiɾ/ Ação de deslocar-se sem forças/energias c) d) e) f) g) até algum lugar. Exemplo de uso: Anergi ao posto, pois estava muito doente e não havia ninguém que pudesse me oferecer carona. Inspiração: combinação entre o sufixo an- (relação de negação), o substantivo energia e o verbo ir; a.tem.por-se /atem'poɾsi/ 1 Pôr-se em outro tempo 2 Viajar mentalmente a um tempo que não o presente e perder a atenção sobre o que os outros lhe falam. Exemplo de uso: João, você anda se atempondo. Nunca mais ouve o que falo! Inspiração: combinação entre o prefixo a- (relação de negação, afastamento), o substantivo tempo e o verbo pôr; ca.foi.tar /kafoj'taɾ/ Ação de passar uma noite em claro à base de cafeína (xícaras de café, energéticos etc.). Exemplo de uso: Eu lhe disse que você só conseguiria finalizar aquele artigo se cafoitasse por alguns dias. Inspiração: combinação entre o substantivo café e o verbo pernoitar; cin.la.ran.jer /sĩlaɾɐ'̃ ʒeɾ/ Processo em que o céu em dias nublados recebe as diferentes matizes de um pôr do sol formando, assim, um admirável contraste entre cinza e laranja. Exemplo de uso: Nossa! Vou tirar uma fotografia desse céu. Não é sempre que se pode vê-lo cinlaranjendo. Inspiração: combinação entre os substantivos cinza e laranja e o sufixo –escer (verbo incoativo). en.cho.ves.cer-se /ẽʃove'seɾsi/ Entrar em um estado de espírito de paz ou tristeza durante ou após ouvir o som da chuva. Exemplos de uso: Geralmente em dias assim, eu sempre enchovesço; Agora ela está com uma expressão tão distante. Acho que ficou enchovescida. Inspiração: junção entre o prefixo em- (relação de movimento para dentro), o verbo chover e o sufixo –escer (verbo incoativo); e.xir /e'ziɾ/ Ação de chegar na hora exata em que fora marcado um encontro/compromisso. Exemplos de uso: Eu nunca deixei de exir a algum encontro; Tenho muitas dificuldades para exir, por isso perco muitas pretendentes. Inspiração: combinação entre o adjetivo exato e o verbo ir; Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1327 h) fa.ce.vi.rar /fɐjsivi'ɾaɾ/ Ato ou efeito de fazer com que alguma postagem adquira curtidas e compartilhamentos rapidamente no Facebook (rede social). Exemplo de uso: Aquele nosso vídeo para a promoção foi o que mais facevirou. Inspiração: combinação entre o substantivo Facebook e o adjetivo viral; i) jo.vir /o'viɾ/ Desejar ou ter a capacidade de retornar aos tempos de juventude. Exemplos de uso: Como queria tanto jovir aos meus vinte anos de idade só para fazer tudo diferente; Naquele momento em que o mundo caiu sob seus pés, ele desejou jovir mais que nunca. Inspiração: combinação entre o substantivo juventude e o verbo ir; j) pe.ris.to.rir /peɾisto'ɾiɾ/ Adentrar-se totalmente no universo narrado de uma história a ponto de, por alguns momentos, emocionar-se e preocupar-se com o destino das personagens. Exemplo de uso: Aquele romance que minha mãe me deu é tão bom que estou peristorindo do início ao fim. Inspiração: combinação entre o prefixo peri- (relação de entorno) e o substantivo história; k) pre.se.mir /pɾese'miɾ/ Ato de insinuar a alguém, quando próximo a uma data festiva, do(s) presente(s) que se deseja ganhar. Exemplo de uso: Acertei no presente, não é? Percebi que estava presemindo aquela cafeteira. Inspiração: combinação entre o substantivo presente e o radical sema (sinal); l) su.fri.nar /sufɾi'naɾ/ 1 Entrar em estado de tristeza por imaginar situações hipotéticas ruins. 2 Sofrer por antecedência. Exemplo de uso: Eu não entendo o porquê de eu sufrinar por todos os meus relacionamentos. Inspiração: combinação entre os verbos sofrer e imaginar; m) te.ce.cer /tese'seɾ/ Ação de amanhecer o dia escrevendo o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Exemplo de uso: Essa semana tive que tececer quase todos os dias. Inspiração: combinação entre o substantivo TCC (tececê) e o verbo amanhecer; n) tou.gar /tow'gaɾ/ Utilizar a tecnologia Near Field Communication (NFC) para realizar pagamentos e/ou transferir arquivos de um celular a outro apenas aproximando-os. Exemplo de uso: Querido, não precisa usar dinheiro vivo para o ingresso 1328 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 do cinema. Tente tougar que é mais cômodo. Inspiração: combinação entre os verbos tocar e pagar; o) vu.ni.ver /vuni'veɾ/ Ação de economizar cada mísera moeda a fim de se guardar dinheiro o suficiente para arcar com os custos de se estudar em uma instituição de ensino superior. Exemplo de uso: Ultimamente, não está sendo fácil vuniver à UFFS; Tenho medo de que depois de mudar de cidade não vunivamos lá. Inspiração: combinação entre o verbo viver e o substantivo universidade. Deve-se perceber que existiu a preocupação enquanto à extensão dos verbos. Isso devido ao fato de que, talvez, essa característica influísse sobre a porcentagem de uso ou não das formas perifrásticas: porventura, preferir-se-ia a forma sintética com verbos de menor extensão e com os de maior extensão as formas perifrásticas. Por esse motivo, três verbos da quinzena foram construídos dissilabicamente, oito trissilabicamente e quatro possilabicamente. 5.2 Sobre o caráter estrutural do formulário Todos os informantes dessa pesquisa tiveram contato com cada um desses hipotéticos verbos a partir de um formulário online criado com a plataforma google.docs. Nesse formulário, constou a explicação do que se tratava a atividade e além dos verbos em si, separados de forma silábica, houve também um pequeno trecho detalhando seus significados e orações ilustrando o uso. Tais orações não estavam no futuro do presente do indicativo justamente pelo fato de que esse é o objeto da pesquisa. Além dessas informações, o informante teve disponível um áudio para que não tivesse qualquer dúvida no que concernia à pronúncia correta do verbo. Viu-se necessário o uso desse mecanismo, porque alguns deles são formados por letras que coincidem com mais de um fonema. É o caso do verbo exir. A letra x, nessa palavra, tem o som do fonema /s/, /z/, / ∫/ ou do fonema /ks/? E quanto ao verbo facevirar? O informante repararia que alguns traços fonológicos dessa palavra mantêm os traços fonológicos originais da palavra Facebook, de origem inglesa? Com os áudios, essas dúvidas seriam sanadas. Após a apresentação do verbo, um espaço foi dedicado às orações que serviram para induzir os informantes a utilizar alguma forma futura do Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1329 verbo. Essas orações apresentaram lacunas para que eles as visualizassem e elegessem a palavra que melhor se encaixava àquele espaço. Além disso, existiram outras frases distratoras, com construções verbais distintas. Essas frases se prestaram ao desvio da atenção do informante, com vistas de que ele não descobrisse o objeto o qual se estava estudando. Abaixo, poder-se-á ter uma noção de como tudo isso foi retratado ao informante através do exemplo do verbo hipotético presemir: FIGURA 1 – Apresentação do formulário para o informante pre.se.mir 1 Ato de insinuar a alguém, quando próximo a uma data festiva, do(s) presente(s) que se deseja ganhar. Exemplo de uso: Acertei no presente, não é? Percebi que estava presemindo aquela cafeteira. 11 - Quando fomos ao centro, Jonas _________ aquele Playstation 4, mas como não tínhamos dinheiro para isso o presenteamos com outra coisa.  tinha presentido; presemiu; presemia. 1330 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 Como pode ser visto, na figura 1 acima, inicialmente, foi apresentado ao informante o significado do verbo hipotético, como em um dicionário. Junto à explicação do sinônimo, havia exemplos de aplicação do verbo em sentenças, nenhuma delas no tempo futuro para não direcionar as respostas dos informantes. Havia também um arquivo de som para que o informante pudesse ouvir a pronúncia do verbo, caso quisesse. Só depois disso, o experimento propriamente dito era solicitado. No exemplo acima, a primeira sentença solicitada para completar o questionário, trata-se de uma sentença distratora, pois ela não contempla o ambiente de interesse do presente estudo: o futuro. A sentença com o contexto de interesse desse estudo vinha logo a seguir: FIGURA 2 – Exemplo de sentença elaborada para o informante escolher a melhor forma de uso do verbo hipotético no futuro 12 - No próximo fim de semana, _________ aquele celular que vi na Havan para o meu namorado. Quem sabe assim ele não sabe o que comprar para o Natal.  presemirei; irei presemir; vou presemir. Todo verbo hipotético continha ao menos duas sentenças para que o informante pudesse marcar o contexto que mais lhe agradava, sendo uma com sentido de futuro e a outra em qualquer tempo verbal, diferente do futuro, com a função distratora. A ordem de apresentação dessas sentenças foi feita de forma aleatória para que não condicionasse o informante, ou seja, ora a sentença com o futuro vinha em primeiro, ora a sentença distratora aparecia primeiro. Nesse caso do verbo presimir, trabalhou-se com a conjugação na primeira pessoa do singular (eu). No entanto, foram elaboradas, nessa pesquisa, sentenças com exemplos de todos os pronomes, com exceção do tu e do vós; este último, por não ser mais utilizado no PB, tanto nas modalidades oral quanto escrita (a não ser em contextos extremamente 1331 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 específicos como em textos bíblicos); e aquele por não apresentar um paradigma de conjugação de uso recorrente. Na maior parte do Brasil, o pronome de segunda pessoa do singular é conjugado com as mesmas desinências da terceira pessoa do singular. Então, em vez de tu escreves o –s é suprimido e se converte em tu escreve, no lugar de tu tens se ouve tu tem e assim por diante. Seguindo com a exposição do componente metodológico da pesquisa, depois que todas as respostas foram recolhidas, foi criado um banco de dados em que se analisou a frequência de uso das formas sintética e perifrásticas e sob que contextos elas eram concebidas. Algo importante a ser ressaltado aqui é que toda esta pesquisa passou primeiramente por uma avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)2 para garantir a integridade e a dignidade dos informantes contribuindo, assim, com o desenvolvimento científico dentro de padrões éticos aceitáveis. 5.3 Perfil dos participantes O experimentou contou com a participação voluntária de 62 (sessenta e duas) pessoas brasileiras com idade igual ou superior a 18 (dezoito) anos e com, minimamente, o ensino médio3 concluído. A faixa etária variou de 18 (dezoito) a 52 (cinquenta e dois) anos. No que se reporta ao grau de instrução, houve um maior número de informantes com ensino superior completo, como ilustra o Quadro 1. QUADRO 1 – Distribuição dos informantes segundo a formação escolar Grau de instrução Número de informantes Ensino Médio Completo e/ou Ensino Superior Incompleto 25 Ensino Superior Completo 37 Fonte: Elaborado pelos autores. 2 Número do processo de aprovação no CEP: CAAE: 81843517.8.0000.5564 O foco deste estudo está em observar a intuição de falantes escolarizados, por esse motivo, optou-se pela exigência mínima do ensino médio completo. 3 1332 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 6 Apresentação e apreciação dos dados Pode-se enunciar, desde aqui, que a compilação dos resultados trouxe asseverações bastante relevantes. Portanto, a princípio, serão apresentados os dados numa visão mais geral do fenômeno e, posteriormente, serão apresentados os resultados em relação a contextos específicos, buscando identificar se há algum fator linguístico favorecendo o uso de uma forma ou de outra das variantes. A Tabela 1 abaixo traz os dados estatísticos gerais de uso dos dois tipos de construção sintática de futuro (Futuros Perifrásticos – FPs – e Futuro Sintético – FS) com cada um dos verbos hipotéticos: TABELA 1 – Dados estatísticos gerais do uso dos dois tipos de construção futura Verbos hipotéticos FPs FS FPs (%) FS (%) sufrinar peristorir tougar facevirar abscamar exir anergir vuniver tececer cafoitar presemir cinlaranjer atempor-se jovir enchovescer-se Total parcial 31 32 32 33 34 34 35 39 39 40 41 42 42 42 48 564 31 30 30 29 28 28 27 23 23 22 21 20 20 20 14 366 50,00% 51,61% 51,61% 53,23% 54,84% 54,84% 56,45% 62,90% 62,90% 64,52% 66,13% 67,74% 67,74% 67,74% 77,42% 60,65% 50,00% 48,39% 48,39% 46,77% 45,16% 45,16% 43,55% 37,10% 37,10% 35,48% 33,87% 32,26% 32,26% 32,26% 22,59% 39,35% Fonte: Elaborado pelos autores. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1333 Como pode ser observado, as duas possibilidades de se fazer referência a uma ação futura a partir de perífrases (uma com o verbo ir no presente e outra com o verbo ir no futuro) atingiram uma porcentagem de uso igual ou superior aos 50% com todos os verbos hipotéticos. A forma tradicional, por sua vez, concebida pela adição de desinências ao final de verbos no infinitivo, atingiu uma margem que variou de 50% aos 22%, corroborando para a hipótese de que ela vem sendo preterida em relação à forma inovadora. Os diagnósticos foram auferidos, como mostra a última linha da tabela, por meio da obtenção de 930 (novecentos e trinta) dados linguísticos – 62 (sessenta e dois) dados por verbo. Desse total, em mais de 60% averiguou-se a manifestação das perífrases, restando ao FS um aparecimento em aproximadamente 39% dos casos. Não é plausível afirmar, diante desses resultados, que há uma mudança linguística efetivada; os dados, porém, sinalizam de forma clara que existe uma tendência à implementação do uso de um futuro constituído por partículas perifrásticas. É interessante ressaltar que esses resultados divergem, quantitativamente, de pesquisas realizadas com gravações orais, tais quais a de Gibbon (2000), em que foi praticamente evidenciada a ausência do uso do FS. No entanto, os resultados demonstram que mesmo diante de informantes escolarizados, que passaram pela influência da gramática periférica, a forma inovadora para o futuro, com o uso de perífrase, apresentou uma porcentagem superior em relação à construção com o futuro sintético. Metodologicamente, há grandes diferenças entre o estudo de Gibbon (2000), que analisou contextos de fala, e o presente experimento, realizado com o suporte de um questionário online, em que o exercício de leitura acabou remetendo a uma modalidade mais formal e relacionada à escrita. Assim, pesquisas como de Santos, A. (1997) e Santos, J. (2000), que analisaram contextos formais de produção e detectaram a presença do futuro com formas sintéticas e perifrásticas, possuem resultados mais convergentes com a presente pesquisa. Além disso, por se tratar de verbos hipotéticos, acredita-se que, diante do novo, o informante tenha acionado sua gramática periférica para conjugar os verbos nos contextos apresentados, tornando o FS ainda produtivo na língua. A seguir, o gráfico 1 traz as mesmas informações contidas na primeira tabela, ilustrando visualmente a flutuação detectada no experimento em relação ao uso de um tipo de futuro e outro. É importante 1334 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 destacar a figura produzida pelo tempo verbal em relação aos verbos, pois além dos valores, a figura aponta indícios de inconstâncias nessa relação, demonstrando uma dificuldade em determinar a existência de um fator linguístico (terminação verbal e/ou tamanho do verbo) como justificativa para a variação encontrada nos dados, reforçando a hipótese de uma competição de gramáticas devido às influências da gramática periférica do falante em sua gramática nuclear. GRÁFICO 1 – Dados estatísticos gerais do uso dos dois tipos de construção futura Fonte: Elaborado pelos autores Antes de serem feitas as análises das variáveis dos verbos criados para este experimento, de maneira mais aprofundada, é preciso explanar sobre o sucesso da escolha metodológica em relação à forma de apresentação dos verbos para os informantes. Ao reorganizar a Tabela 1 na ordem em que os verbos foram apresentados, é possível observar na Tabela 2 o exitoso trabalho que as sentenças distratoras desempenharam ao impedir que os participantes da pesquisa desvendassem o objetivo do estudo. A inexistência de um padrão de respostas no decorrer do avanço do questionário é um indício que comprova esse acerto metodológico. É importante evidenciar esse acerto, pois por se tratar de um experimento que envolve conhecimentos linguísticos gramaticais escolares, os resultados apresentarem uma ausência de gradação percentual traz 1335 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 mais confiabilidade ao estudo. Essa ausência de gradação percentual é visualmente perceptível nessa segunda tabela, uma vez que verbos com taxas de uso iguais ou similares para os dois tipos de futuro não estavam próximos no corpo do formulário (ex.: peristorir e tougar, com 51,61% de uso com FPs, foram apresentados aos informantes na segunda e décima quinta posições, respectivamente) e verbos com taxas de uso significativamente distintas estavam, muitas vezes, próximos entre si (ex.: os verbos jovir e sufrinar, que se encontravam um na sequência do outro no formulário, exibiram resultados com diferença superior a dezessete pontos percentuais). TABELA 2 – Distribuição dos verbos na ordem de aparecimento no formulário Ordem no formulário 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 11º 12º 13º 14º 15º Verbos hipotéticos enchovescer-se peristorir abscamar facevirar cinlaranjer presemir cafoitar vuniver atempor-se jovir sufrinar tececer anergir exir tougar FPs (%) FS (%) 77,42% 51,61% 54,84% 53,23% 67,74% 66,13% 64,52% 62,90% 67,74% 67,74% 50,00% 62,90% 56,45% 54,84% 51,61% 22,59% 48,39% 45,16% 46,77% 32,26% 33,87% 35,48% 37,10% 32,26% 32,26% 50,00% 37,10% 43,55% 45,16% 48,39% Fonte: Elaborada pelos autores Como dito na seção 5.1, optou-se por criar verbos com tamanhos diferentes com o propósito de identificar se sua extensão seria motivo para a escolha de um futuro ou outro. A Tabela 3, a seguir, distingue três 1336 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 grupos verbais por dimensões silábicas e seus respectivos resultados para cada um dos futuros investigados: TABELA 3 – Resultados dos dados em relação à extensão dos verbos Extensão dos verbos FPs FS FPs (%) FS (%) Dissílabos 108 78 58,06% 41,94% Trissílabos 301 195 60,69% 39,31% Polissílabos 155 93 62,50% 37,50% Fonte: Elaborado pelos autores. Diante desses resultados, conclui-se que, independentemente do tamanho do verbo, a preferência dos informantes foi pelo uso dos FPs (todos valores acima de 50%). Ao analisar de forma cuidadosa a extensão dos verbos, é possível ainda averiguar que à medida que se aumenta o número de sílabas do verbo, observa-se uma leve inclinação para a manifestação de partículas perifrásticas, ou seja, verbos polissílabos apresentam maior porcentagem de realização com FPs que os verbos trissílabos e dissílabos; já os verbos dissílabos apresentam a maior porcentagem de ocorrências com FS na comparação com trissílabos e polissílabos. Ainda sobre a extensão verbal, destaca-se que a mais alta taxa de aparecimento de FPs se deu com o verbo enchovescer-se (77,42%). Além de fazer parte dos polissílabos, este era o verbo hipotético com maior número de grafemas, ou seja, o mais alongado de todo o experimento. Exir, por sua vez, era o verbo que, dentre os dissílabos, possuía menos grafemas e o que apresentou a quarta maior porcentagem para uso de FS (45,16%). Em outras palavras, diante de uma conjugação como “ele se enchovescerá” e “ele vai se enchovescer”, a preferência dos informantes se deu pela segunda opção; já com verbos curtos, como Exir, os informantes preferiram “eu exirei” à construção “eu vou exir”. Tais apurações apenas adensam a suspeita de que realmente há um grau de alterabilidade de uso das duas construções sintáticas de futuro acarretado pela dimensão dos verbos principais diante de uma situação de teste online e de informantes com escolaridade mínima de ensino médio completo. 1337 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 Em resumo, os resultados sobre a extensão verbal nos apontam que longos ou curtos, a construção pelos FPs é a preferencial pelos informantes. Ao separar os verbos por suas dimensões silábicas, observou-se que verbos longos suscitaram uma leve inclinação para a manifestação de partículas perifrásticas, enquanto que, em verbos curtos, essa inclinação foi menos proeminente. A coleta da remessa de 930 dados linguísticos para o estudo tinha também como propósito inspecionar se haveria certa equiparação ou desarmonia na distribuição de uso dessas estruturas dentro das três conjugações existentes no PB. Relembrando que essa fora a motivação inicial para a repartição dos verbos em grupos de igual grandeza: exprimir a configuração verbal da língua em questão. Ou seja, ao criar os verbos, pensou-se no padrão usual da língua portuguesa, 1a, 2a e 3a conjugações (terminações em ar – er –ir, respectivamente). Assim sendo, produziu-se a Tabela 4, na qual é possível identificar que todas as três conjugações obtiveram porcentagens acima de 50% na preferência pela construção perifrástica. A 2a conjugação (verbos terminados em –er) apresentou uma porcentagem um pouco maior (67,74%) em relação às outras duas (54,84% e 59,35%, respectivamente): TABELA 4 – Resultados dos dados em relação à conjugação dos verbos Conjugação dos verbos FPs FS FPs (%) FS (%) 1ª conjugação (–ar) 170 140 54,84% 45,16% 2ª conjugação (–er) 210 100 67,74% 32,26% 3ª conjugação (–ir) 184 126 59,35% 40,65% Fonte: Elaborado pelos autores. A tabela 4 mostra que os contextos com verbos de primeira conjugação apresentaram uma maior realização com verbos no FS quando comparados com verbos da terceira e da segunda conjugação. Curioso esse contexto ter sido o mais restritivo (quando comparado às outras conjugações) à forma inovadora, pois no PB, muitos dos verbos novos que são incorporados à língua correspondem à primeira conjugação. Exemplos de alguns verbos incorporados a partir de empréstimos da língua inglesa: “deletar”, “digitar”, “zipar”, “xerocar”, “clicar”, dentre outros. Ou seja, a primeira conjugação, que é a mais produtiva na 1338 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 incorporação de novos verbos na língua portuguesa, é também a que mais possibilita um número maior de construções com FS, forma mais conservadora. Uma possível explicação para esse quadro seria o fato de a gramática periférica dos informantes ter sido mais acionada no contato com verbos hipotéticos da 1a conjugação, uma vez que há mais verbos com essa conjugação na língua e, consequentemente, com um número maior de usos nas escolas4. Além da extensão verbal e da conjugação verbal, outro rearranjo dos dados se viu pertinente a ser investigado: o que contrapõe as taxas de uso dos FPs e FS no tocante à faixa etária dos participantes: TABELA 5 – Resultados dos dados em relação à idade dos informantes Faixas etárias FPs FS FPs (%) FS (%) 18 a 22 155 145 51,67% 48,33% 23 a 27 121 59 67,22% 32,78% 28 a 32 104 31 77,04% 22,96% 33 a 37 123 57 68,33% 31,67% 38 a 42 52 53 49,52% 50,48% 43 a 47 6 9 40,00% 60,00% 48 a 52 3 12 20,00% 80,00% Fonte: Elaborado pelo autor. A partir dos resultados encontrados na tabela 5, pôde-se verificar duas evidências que ratificam a hipótese de que as perífrases estão enfrentando uma mudança linguística em progresso: uma pelo fato de que elas coexistem com as formas tradicionais e outra pelo fato de que os indivíduos mais jovens, nativos de PB, têm maior preferência pelas formas perifrásticas em comparação à fração mais velha do experimento. Um cenário de interpretação da tabela acima se dá pelas seguintes vertentes: (i) os mais jovens (18 a 22 anos), por terem concluído o ensino médio há menos tempo que os outros informantes, estariam mais 4 Estudos futuros com verbos reais precisam ser realizados para que essa hipótese seja testada. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1339 vulneráveis a desempenhar regras gramaticais, por isso apresentaram maior alternância entre as duas variantes; melhor dizendo, travou-se uma competição de gramáticas entre aquelas que seriam suas gramáticas nucleares e aquelas previstas como sendo gramáticas periféricas; (ii) a faixa etária de 23 a 37 anos estaria há mais tempo afastada das padronizações escolares, logo, menos suscetível às regras prescritivas, o que fomenta, por sua vez, um maior índice de uso dos FPs; (iii) já a faixa etária de 38 a 52 anos teria optado, preferencialmente (média de 63,49%) pelo FS por ser uma geração anterior, sendo assim, mais conservadora às regras gramaticais. Evidentemente, para validar tais perspectivas, um estudo minucioso e com padrões etários mais monitorados necessitaria ser realizado em trabalhos futuros. Nesta pesquisa, o objetivo era o de averiguar se haveria diferença no comportamento linguístico dos falantes por faixa etária de idades, já que se está lidando com variáveis em processo de mudança, portanto, interessou aqui apreciar a realização do fenômeno por diferentes gerações. Julgou-se, ainda, interessante a construção do Gráfico 2, que desenha as sinuosidades ocasionadas por essas diferenças de predileção entre uma construção sintática e outra em intervalos de idade particulares. GRÁFICO 2 – Resultados dos dados em relação à faixa etária dos informantes Fonte: Elaborado pelos autores 1340 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 A partir do gráfico apresentado acima, podem-se demarcar dois pontos de convergência e dois picos de divergência. Os de convergência correspondem às faixas etárias de 18 a 22 e 38 a 42 anos e os de alta divergência às idades entre 28 a 32 e 48 a 52 anos. O Gráfico acima desenha a situação encontrada na tabela 5. A maior variação entre as duas formas de construção do futuro encontra-se na primeira faixaetária (18 a 22 anos) devido a interferência da gramática periférica desses falantes. Estes por terem concluído o ensino médio a menor tempo, que os demais informantes, estariam mais vulneráveis às regras gramaticais e por isso mais tendenciosos em ainda produzir o FS. Assim, a competição de gramáticas demonstrada pelos dados estaria diretamente ligada às questões de interferência da escolarização, tanto que na geração seguinte, 28 a 32 anos, é quando apresenta-se o maior pico de uso da forma inovadora do futuro. Esta faixa-etária, mais tempo afastada das prescrições gramaticais, demonstrou maior uso da FPs. Já a diminuição do uso do FPs e o aumento do FS, a partir da faixa-etária dos 40 anos, demonstram um maior conservadorismo dessa geração, privilegiando formas mais conservadoras e não uso de formas inovadoras para a construção do futuro. As linhas desse gráfico, portanto, mostram com clareza a interferência causada pela gramática periférica do falante na geração mais nova e uma gramática nuclear mais conservadora a partir dos 40 anos de idade. Por fim, apurar as porcentagens de uso entre o FP com verbo ir no presente e o FP com verbo ir no futuro foi colocado como um objetivo coadjuvante nesta pesquisa, mas interessante, principalmente, para estimular futuros estudos: TABELA 6 – Contraste entre o FP com verbo ir no presente e FP com verbo ir no futuro Tipo de FP Dados brutos Percentual de uso (%) Verbo IR no Presente 372 65,97% Verbo IR no Futuro 192 34,04% Total 564 100% Fonte: Elaborado pelos autores Quantificar esse contraste tinha vistas a investigar se, dentre as perífrases, haveria algum tipo de preferência significativa dos informantes Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1341 por uma delas. A tabela acima nos mostra a preferência pelo uso do verbo “ir” no presente com 65,97% das escolhas dos informantes em relação à construção do verbo “ir” com uso no futuro. Esse resultado aponta indícios de uma resistência do falante em não produzir o FS no PB em qualquer tipo de contexto, inclusive na função de verbo auxiliar em uma construção perifrástica. Em suma, os participantes que fizeram parte do estudo elegeram os FPs como uma forma mais natural para referenciar-se ao futuro quanto tinham possibilidade ainda de escolherem o FS. Ao adotarem formas perifrásticas, novamente demostraram inclinações de preferência por aquelas que excluíam o futuro em sua construção, Irei + V infinitivo, preferindo a construção do verbo auxiliar no presente: Vou +V infinitivo. 7 Ponderações finais A partir dos resultados obtidos neste estudo, verifica-se que o uso do futuro no PB está no caminho da mudança linguística: no lugar de uso do futuro sintético, vê-se a preferência pelo futuro perifrástico, uma vez que diante verbos hipotéticos, os informantes demonstraram preferência pela forma inovadora de futuro. Ressalta-se ainda que nessa pesquisa considerou-se a gramaticalização do verbo pleno “ir” sob um viés formal (VITRAL; RAMOS, 2006). Ou seja, considerou-se que há duas formas para acessar o verbo ir: uma em que ele é tido como um verbo lexical de movimento e outra em que é um verbo auxiliar na formação do futuro. Assim, levou-se em consideração que os informantes, diante dos verbos hipotéticos, estavam acessando uma configuração em que o verbo ir + V/infinitivo como uma entrada lexical e não como uma possibilidade de interpretação para esse verbo. Ao analisar e testar informantes nativos com verbos hipotéticos em um formulário online, o estudo averiguou que a gramática periférica do falante, nos termos de Kato (2005), se fez presente, uma vez que ao se deparar com a língua escrita, o informante acessou seu conhecimento de escolarização, diante do novo (verbos hipotéticos) em vários momentos, promovendo a produção da forma de FS na língua nos contextos analisados. Além disso, diante da iminência de uma mudança, foi possível observar a influência de algumas variáveis para a realização do futuro no PB. Para o FS, foi constatado que verbos da primeira conjugação apresentam um maior número de ocorrências neste contexto, quando 1342 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 comparado às outras conjugações. O tamanho do verbo não foi uma variável que apresentou grandes oscilações mas, de maneira geral, observou-se que verbos dissílabos apresentaram maior preferência pelo uso do FS em relação aos trissílabos e polissílabos. No que diz respeito à idade, informantes adultos acima de 38 anos demonstraram maior preferência pelo FS que pessoas nas faixas etárias anteriores. A justificativa para essa preferência estaria no fato de ser parte de uma geração anterior à geração mais nova do experimento, ou seja, informantes mais conservadores, consequentemente, com uma intuição gramatical com variantes menos inovadoras. Para o futuro perifrástico, além de, quantitativamente, ter sido possível observar sua preponderância em praticamente todos os contextos, qualitativamente, averigou-se que, diante do novo (verbos hipotéticos), os verbos de segunda conjugação impeliram uma maior preferência por construções perifrásticas. No que tange ao tamanho, de maneira geral, verbos com três sílabas ou mais mostraram índices maiores que 60% para a variante inovadora. E o verbo enchovescer-se apresentou 77,42% de preferência com o uso de locução verbal, o maior índice do estudo. Sobre a idade, os informantes de 18 a 37 anos preferiram a variedade com FPs. Ainda em relação à faixa etária, o grupo mais jovem, de 18 a 22 anos, foi um dos que mais apresentou maior instabilidade numérica no uso das variantes (praticamente 50%/50%). Esse fato reforça nossa hipótese de que a gramática periférica do informante foi acionada ao se deparar com verbos hipotéticos, isso porque essa geração seria a mais vulnerável às regras gramaticais devido ao curto período desde a finalização do ensino médio desses informantes. Contribuição dos autores O presente artigo foi produzido de maneira colaborativa pelos dois autores: Aline Gravina e Eduardo Brizola. Em relação à metodologia, os quinze verbos foram pensados, elaborados e conceituados por Brizola que também ficou responsável pela compilação dos dados. Gravina ajudou na elaboração do questionário online, além de ficar responsável pelo preenchimento do formulário na Plataforma Brasil para aprovação no Comitê de Ética da Universidade Federal da Fronteira Sul. O arcabouço teórico, a discussão e as análises dos resultados foram realizados em conjunto com a participação de ambos autores na redação do texto. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1313-1344, jul./set. 2019 1343 Referências BRAGANÇA, Marcela Langa Lacerda. A gramaticalização do verbo IR e a variação de formas para expressar o futuro do presente: uma fotografia capixaba. 2008, 146f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Padrão. 1985. CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 35. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. CHOMSKY, N. Linguística Cartesiana: um capítulo da história do pensamento racionalista. Tradução de Francisco M. Guimarães. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EdUSP, 1972. CHOMSKY, Noam. Lectures on government and binding. Dordrecht, The Netherlands: Foris Publications, 1981. CUNHA, C.; CINTRA. F. L. L. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. FONSECA, Ana Maria Hernandes. 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Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Rastros do discurso: poder e interdição na decisão de um ministro do Supremo Tribunal Federal Remarks of the speech: power and interdiction in the decision of a minister of the Supreme Federal Court Rafael Venancio Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil venanciorafaelecritor@gmail.com Resumo: Apesar de comumente se alardear que o discurso jurídico é regido por uma norma de neutralidade que impede a manifestação de posições ideológicas, nos flancos das decisões judiciais, onde há, por parte do Estado, maior cuidado para se garantir a justa distribuição da Justiça a todos os jurisdicionados, por vezes, cifras de um outro dizer se apresentam no enunciado produzido pelo magistrado. É como se, imperceptivelmente, o não dito fosse a verdadeira razão para se obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, embora o Direito adotado pelo Brasil, enquanto prática da juridicidade, seja o positivo. É o caso da Suspensão de Liminar 1.178/ PR, peticionada pelo Partido Novo, no ano de 2018 (BRASIL, 2018), cujo relator foi o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, liminar na qual se proibiu a entrevista do ex-presidente Lula ao Jornal Folha de São Paulo. Na decisão, o ministro Fux, argumentando defender o pleito eleitoral de 2018, ordena que Lula se abstenha de qualquer meio de comunicação que possa divulgar suas palavras, mostrando assim a face repressora do Estado. Por isso, nossa pesquisa, numa conexão entre a Análise do Discurso de linha francesa, alinhada aos pressupostos teóricos de Foucault (1996, 2002, 2014, 2015), pretende investigar, no corpus em cena, as marcas ideológicas que se evidenciam no discurso decisório do magistrado integrante da Suprema Corte do país. Palavras-chave: discurso; decisão judicial; Lula; censura. Abstract: Although it is commonly boasted that the legal discourse is governed by a norm of neutrality that prevents the manifestation of ideological positions, in the flanks of judicial decisions, where there is, on the part of the State, greater care to guarantee the fair distribution of Justice to all the jurisdictions, sometimes, ciphers of another say eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1345-1369 1346 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 are presented in the statement produced by the magistrate. It is as if, imperceptibly, the unspoken is the real reason to force someone to do or not to do something, although the law adopted by Brazil, as a practice of juridicity, is the positive. This is the case of the Suspension of Limitation 1,178 / PR (BRAZIL, 2018), petitioned by the New Party, in the year 2018, whose reporter was Minister Luiz Fux of the Federal Supreme Court, in which the interview of former President Lula was banned from the newspaper Folha de São Paulo. In the decision, Minister Fux, arguing to defend the 2018 election, orders Lula to abstain from any means of communication that could divulge his words, thus showing the repressive face of the state. Therefore, our research, in a connection between the analysis of French Speech Discourse, in line with the theoretical assumptions of Foucault (1996, 2002, 2014, 2015), intends to investigate, in the corpus on the scene, the ideological marks that are evidenced in discourse of the country’s Supreme Court magistrate. Keywords: discourse; judicial decision; Lula; censorship. Recebido em 20 de março de 2019 Aceito em 03 de maio de 2019 1 Considerações iniciais As eleições gerais de 2018 foram marcadas pela polarização política e ideológica em torno da disputa pelo cargo de maior envergadura da Administração Pública, a saber, o de presidente da República. Mas, muito antes do início do período eleitoral, os partidos políticos já se alinhavam para a obtenção de apoio capital, bem como eleitoral para as campanhas de 2018, como foi o caso do Partido dos Trabalhadores, doravante PT, que lançara a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, apesar do fato de ele ter sido preso desde abril de 2018 por ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a fim de que cumprisse a pena de 12 anos e um mês de prisão dada em grau de apelação. Impossibilitado de sair da prisão, porque cumpria a pena em regime fechado, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva acordou juntamente com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) lançar uma tripla chapa em que a deputada estadual Manuela D`Ávilla figuraria como provável vice de Fernando Haddad, caso o registro do ex-presidente viesse a ser cassado pela Justiça Eleitoral, o que, de fato, ocorreu no dia Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1347 01 de setembro de 2018, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela inelegibilidade de Lula com base na Lei da Ficha Limpa. Desde o momento em que Lula se tornou inelegível, o PT lutava incessantemente para, ao menos, ter a imagem do ex-presidente como apoiador de Haddad, visto que, de acordo com os dados das pesquisas eleitorais feitas pelo Datafolha e pelo IBOPE, antes da cassação do registro, Lula era tido como o favorito na disputa, aparecendo, sempre, em primeiro lugar. Mas isso não significou que o substituto na chapa, Fernando Haddad, crescesse o suficiente a ponto de figurar como favorito na disputa. Em outras palavras, a transferência de votos esperadas pelo PT após a cassação de Lula não ocorreu tal qual se acreditou de início. Nesse sentido, a imagem de Lula era de suma importância, pois, além de ser creditado como o favorito na disputa pelo cargo, o ex-presidente tinha como um de seus pontos positivos ter governado o país num ambiente em que foi possível implementar os principais programas dos governos petistas, para além do fato de que, normalmente associado à corrupção pelas coligações rivais, o PT considerava a necessidade de se tornar simpático ao público eleitor a partir da candidatura de Lula, agora cassada. Ainda que esperadas, a incomunicabilidade de Lula, bem como sua cassação no TSE tiravam do PT o que se acreditava ser o seu maior trunfo para a obtenção do primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto. No entanto, as coligações ideologicamente rivais, entre as quais estava o Partido Novo, entraram com pedido de liminar, no âmbito da Justiça Eleitoral, para suspender todas as propagandas do PT em que a imagem de Lula aparecesse, obtendo da Justiça, em praticamente todas as petições, deferimento em favor da suspensão da menção de Lula como candidato. Nesse interim, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, acatou Reclamação do Jornal Folha de São Paulo que pedia autorização para entrevistar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, visto que a 12ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela execução da pena de Lula, negou o pedido, usurpando, conforme a Folha, precedentes do próprio Supremo Tribunal. Concordando com os argumentos do veículo de imprensa, Lewandowski deferiu, de forma monocrática, a entrevista, entendendo que não caberia à juíza de Execução Penal a não observância do decidido pelo órgão máximo do Poder Judiciário quanto à liberdade de imprensa e de expressão. 1348 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Contudo, no dia 28 de setembro de 2018, às vésperas do 1º turno das eleições gerais, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, emitiu outra decisão, atendendo ao pedido do Partido Novo, para suspender a entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se encontrava preso na sede da Polícia Federal do Paraná, ordenando também ao ex-presidente que “se abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral.” (BRASIL, 2018, p. 4). A decisão, conforme argumentado pelo ministro, visava impedir que as declarações de Lula influenciassem o eleitor quando da votação que ocorreria no dia 7 de outubro de 2018. Preliminarmente, vale destacar que a decisão judicial, como a que se fez menção acima, é parte integrante do discurso jurídico, definida pelo teórico Bittar (2017) como uma prática textual “capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito, pelo simples fato de sua enunciação [...]” (p. 288), ou seja, a partir do momento em que é emitida, ela tem autoridade para, por si só, fazer-se obedecer pelos sujeitos a quem se dirige.1 Não à toa que, nas palavras de Althusser (1980), a Justiça pode ser considerada um Aparelho Repressor do Estado que tem como função primeira contribuir para a sujeição dos membros do corpo social à dominação da classe dominante, a fim de que se perpetue a “reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração” (BRANDÃO, 2004, p. 23). Nesse sentido, é interessante observar o caráter coercitivo de que ela goza para fazer cumprir as ordens que emana: quando se manifesta é para determinar aos indivíduos que façam ou deixem de fazer alguma coisa em virtude de algum dispositivo legal, no qual se baseia, objetivando endireitar condutas contrárias à lei.2 E, para se fazer obedecer, a Justiça tem junto a si a força de agentes treinados para reprimir não só a desobediência, mas qualquer outra manifestação que não se coadune com as leis positivadas no ordenamento jurídico. 1 No entanto, não é qualquer pessoa que pode emitir uma decisão judicial, pois a decisão judicial é um ato de fala performático. Exige, portanto, condições de produção específicas para que se realize. Do contrário, ainda que uma pessoa emita decisão, não sendo juiz e não se manifestando nos autos de um processo, o ato é nulo. 2 Diz o texto constitucional no art. 5º, inciso II: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1349 Há que se notar, no entanto, que o aparelho repressor, cognominado Justiça, é composto de inúmeros membros, cujas funções são previamente descritas e determinadas por atos normativos que ajudam tanto na administração do Poder Judiciário quanto na aplicação da lei a todos os cidadãos. Por isso, é preciso que, desde agora, faça-se saber que nos referimos especificamente à face julgadora da Justiça, a qual, na pessoa de um juiz, emite decisões que têm peso de autoridade para pôr fim ao conflito entre duas partes num processo. Nesse sentido, a decisão judicial foi escolhida como corpus deste trabalho por ter como uma de suas características marcantes o mito da neutralidade de seu enunciador e, portanto, do enunciado. Mesmo que seja unânime entre os estudiosos do discurso que não há que se falar em neutralidade no discurso, é interessante que, mesmo assim, os operadores do Direito continuem a defender uma imparcialidade do discurso jurídico; essa insistência certamente tem uma razão de ser, a qual não nos é revelada, e nem é o objeto de estudo desta pesquisa, mas é um campo fértil para se tecer considerações a partir dos estudos da linguagem. Desde Benveniste que se enfatiza o caráter subjetivo da língua, ou seja, a presença de um sujeito que fala e se posiciona no discurso por meio de estratégias enunciativas que indicam um eu que fala, e, se fala, fala a alguém. Essa presença poderá ser explícita ou implícita, de modo que, para se depreendê-la, os pronomes pessoais “constituem o primeiro ponto de apoio na revelação da subjetividade da linguagem” (BRANDÃO, 2004, p. 56). Com o avanço nos estudos da AD, compreende-se que o sujeito não é mais unívoco, como defendia Benveniste, mas sim descentralizado, vivendo em constante dialética com um outro que é tanto a causa quanto a razão do discurso produzido pelo enunciador, abrindose espaço para se entender que o discurso é uma dispersão de vozes que o fundamentam e, ao mesmo tempo, explicam a sua própria existência. Esclareça-se, por fim, que este trabalho discorre sobre alguns dos conceitos fundamentais da AD francesa, a saber, ideologia, interdiscurso, formação discursiva e formação ideológica, os quais são manuseados para evidenciar as marcas da enunciação pelas quais é possível depreender a ideologia que se presentifica no texto. Ou seja, objetivamos trazer noções introdutórias que sirvam de suporte para entendermos a linha argumentativa adotada neste trabalho. Feitas as considerações preliminares, cumpre dizer que este artigo tem como objeto de estudo a Suspensão de Liminar 1.178/PR 1350 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 (BRASIL, 2018), a qual já foi mencionada no início deste trabalho, em que se censurou, de forma prévia, a entrevista que seria concedida à Folha de São Paulo pelo ex-presidente Lula. Visa-se, por meio do estudo das marcas da enunciação, depreender os elementos ideológicos e os valores que recobrem a decisão. Para isso, valemo-nos dos pressupostos teóricos de Foucault (1996, 2002, 2014, 2015). Por uma questão metodológica, optamos por dividir este trabalho em três momentos que permitem entender tanto o objeto quanto a pertinência deste trabalho para a AD francesa: em um primeiro momento, faremos um breve percurso histórico da evolução da Justiça, no âmbito da juridicidade, a fim de que entendamos a procedência da autonomia e do poder coercitivo da Justiça na esfera estatal; num segundo momento, exporemos as bases teóricas que norteiam esta pesquisa cientifica, para, num terceiro momento, debruçarmo-nos sobre o objeto de estudo e efetuarmos uma análise coerente do corpus em cena. 2 Justiça: da punição à vigilância Para que entendamos a evolução da Justiça, é preciso unir a história dela com a da evolução do Estado Moderno e, nesse sentido, considerar que a função primeira do Estado consiste em garantir a ordem e a manutenção da paz social, apesar de que, há que se destacar, o Estado era, primeiramente, imbuído de poder ou o concentrava na figura de um soberano que encarnava o seu querer. Não à toa, o arbítrio do soberano era o que caracterizava a relação dele com os seus súditos e motivava revoltas nos territórios dominados. Maquiavel, em seu livro O Príncipe, de 1532, bem ilustra, com seus conselhos ao soberano da República Florentina, Lourenzo II de Médici (1492-1519), a necessidade dele se sustentar no poder por meio da força e da estratégia. No entanto, esta relação idealizada por Maquiavel é entendida por Foucault como frágil e constantemente ameaçada pelo fato de que o príncipe só recebe o principado “por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior” (FOUCAULT, 2015, p. 410), de modo que, como dito, o arbítrio era o meio pelo qual o soberano havia de estabelecer laços com os súditos, com o objetivo claro de que o “exercício do poder será manter, reforçar e proteger o principado, entendido não como o conjunto constituído pelos súditos e territórios, [...] mas como relação do príncipe com o que ele possui, com o território que Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1351 herdou ou adquiriu e com os súditos” (FOUCAULT, 2015, p. 410). Pelo que o Estado, muito antes do cristianismo se consolidar como principal segmento religioso oficial do Ocidente, podia ser compreendido como a concentração do poder em uma única pessoa, poder que se estendia a todas as esferas sociais e políticas em que houvesse interesse por parte do soberano. Não havia que se falar, neste contexto, de direitos dos súditos, pois tudo o que deviam ao Estado era a mais completa obediência, sendo comum que a classe que compunha a elite estatal desfrutasse não só dos privilégios que o dinheiro e o bom nascimento propiciaram, como também fossem extremamente cruéis em suas punições aos malfeitores que, de alguma forma, se insurgiam contra o arbítrio dos poderosos, características marcantes na França, sob a égide do Antigo Regime no séc. XVII. Não havia lugar ou esfera social que, literalmente, não fosse invadida pela competência autoritária do nobre, e, no que tange à punição de um crime, por exemplo, ainda que o soberano delegasse ao Judiciário a prerrogativa para julgar e executar o criminoso, ele detinha o poder de suspender a execução de um condenado à morte: Só ele como senhor deve decidir se lava as mãos ou as ofensas que lhe foram feitas; embora tenha conferido aos tribunais o cuidado de exercer seu poder de justiça, ele não o alienou; conserva-o integramente para suspender a pena ou fazê-la valer (FOUCAULT, 2014, p. 55). Era preciso dissociar, então, o poder de julgar das vontades arbitrárias de um soberano, o qual, de acordo com Foucault (2014), valia-se dos castigos públicos para afirmar seu poder perante os súditos, tentando inspirar neles temor para que não se revoltassem contra as condições de vida em que se encontravam. Ademais, o poder arbitrário do soberano, tornava a Justiça arbitrária também: Não são tanto, ou não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus direitos sem controle que são criticados; mas antes a mistura entre suas fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas e sobretudo o princípio dessa mistura, o superpoder monárquico (FOUCAULT, 2014, p. 80). 1352 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Somente no séc. XVIII, a partir das revoluções francesa e americana, há a queda do Antigo Regime, e com ele a força do soberano e de sua nobreza, permitindo o delineamento de direitos que, conforme Bobbio (2004), se oporão ao Estado e irão buscar garantir a liberdade individual do homem, bem como seus direitos civis e políticos. Na medida em que há a positivação do que dantes eram só teorias filosóficas, o poder Estatal e, em consequência, o do soberano declinam consideravelmente: “No momento em que essas teorias são acolhidas pela primeira vez por um legislador [...] e postas na base da concepção de Estado – que não é mais absoluto e sim limitado” [...] (p. 18), isto é, limitado por um novo ordenamento jurídico capaz de colocar freios à atuação do Estado em relação ao homem, bem como dividir suas funções até então concentradas na pessoa de seu soberano, ao mesmo tempo em que, separando-se e limitando-se o poder, fosse garantido que este pressuposto haveria de ser respeitado por aqueles que comandassem o Estado. Nasceram, desse modo, as primeiras constituições que, na prática, eram os documentos garantidores de que o poder do soberano havia de ser limitado pelo que, expressamente, estava positivado.3 No final, as primeiras constituições são, nas palavras de Comparato (2003), manifestações de rebeldia contra a concentração absurda de poder tanto do clero quanto da nobreza que exigiam cada vez mais privilégios em detrimento da vontade do povo ou dos súditos. Com a ascensão da burguesia, não mais se ligava o poder ao bom nascimento, caso dos aristocratas, mas sim à condição financeira a que se podia chegar tendo os meios de produção para isso. Foi dessa forma que a classe burguesa obteve o apoio da classe mais pobre e conseguiu derrubar a aristocracia, com seus nobres e privilégios. Sob a aparência de uma democracia, a classe burguesa consolidou-se, financeira e ideologicamente, como classe dominante, reformando o Estado conforme bem lhe aprouve. Foi o caso, por exemplo, de, deliberadamente, não se resgatar o sentido grego da demokratia, fazendo com que o governo passasse para mãos de representantes eleitos, numa participação indireta do povo, a quem cabia escolher os seus representantes. É importante destacar que, nesta parte introdutória, não ignoramos as afirmações do constitucionalista Pedro Lenza (2017), no que se refere ao que ele denomina constitucionalismo, segundo as quais já havia, mesmo na Idade Antiga, um cenário de eventos que contribuíram para a formação das constituições oficiais, esses eventos vão desde pactos coloniais até as revoluções que deram fim ao Antigo Regime. 3 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1353 No Brasil, embora tenha havido constituições durante sua história, somente em 1988 é que, de fato, foi fundado o Estado Democrático de Direito, pois “A Constituição de 1988 destaca-se como a mais democrática de nossa história” (MAUÉS; WEYL, 2007, p. 110), visto ter sido feita em um ambiente de plena liberdade, com ampla participação popular. Com ela, o Brasil foi reconhecido enquanto o único ente soberano da República Federativa, extinguindo-se, portanto, a concentração de funções estatais em única pessoa que, neste país, como em muitos outros, deu forma a regimes ditatoriais e totalitários. A Justiça, agora em um regime democrático, ganha a autonomia que sempre desejou: seus membros possuem vitaliciedade e não estão mais sujeitos aos caprichos de um monarca. É o caso dos juízes a quem o Estado delegou o poder de decidir para dirimir conflitos que possam existir entre os cidadãos quanto a um direito em disputa. Em outras palavras, o juiz representa o próprio Estado que se põe entre dois sujeitos para por fim a uma querela e (re)estabelecer o equilíbrio. Por conta disso, quando aplica a linguagem no ato da decisão judicial, o Estado exige que ela seja expressa com a mais total e completa neutralidade, ou seja, o Estado manda que não haja qualquer ideologia que sirva de embasamento à decidibilidade, promovendo-se, assim, uma espécie de “[...] ocultamento ideológico que forja a ideia de que a linguagem é neutra e produzida num vácuo social” (COLARES, 2014, p. 123).4 Consenso é, entre os estudiosos do discurso, que não há neutralidade no discurso: todo discurso é marcado pelas ideologias, já que, diz-nos Mainguenau (2015), o discurso é contextualizado, ou seja, é preciso depreender o contexto particular de produção para depreenderse o sentido, ainda que o mesmo não seja determinável. Nessa ideia, compreende-se a necessidade da análise do discurso no campo dos estudos da linguagem: enquanto teoria, a AD é um instrumento capaz de por em evidência aspectos outros que, como bem visto acima, tendem a ser ignorados pelos operadores do Direito e os demais participantes da relação jurídica, ao mesmo tempo em que permite a compreensão de fatos da língua que não encontrariam explicação a partir de outras análises das ciências da linguagem. É que o discurso está intrinsecamente ligado aos condicionantes de sua própria produção e à ideologia de seu tempo. 4 Ou, pelo menos, tentando promover visto que não há discurso sem ideologia. 1354 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Torna-se imprescindível, portanto, uma teoria que explique estas condições de produção, bem como as marcas ideológicas que permeiam os textos que nos chegam e circulam no cotidiano, a fim de que entendamos os sentidos deles e os seus propósitos. A AD demonstra, dessa forma, que um texto é muito mais do que aparenta ou deseja aparentar. Por isso, na próxima seção, discorreremos sobre os conceitos-chaves da AD francesa, base teórica deste trabalho, para que possamos entender por que meios e métodos podemos depreender as marcas da enunciação que delatam as ideologias que ora se escondem (ainda que isso não signifique que as marcas não estejam lá), ora se deixam entrever nas camadas da decisão judicial, objeto de estudo desta pesquisa. 3 Análise do Discurso: ideologia, formação discursiva e formação ideológica A Análise do Discurso francesa é uma corrente de estudos linguísticos, iniciada em 1960, que, em deferência ao estruturalismo saussuriano, toma a fala e o contexto de produção como objetos de estudo. No contexto de grande efervescência política, a AD francesa avoca para si o discurso político como seu objeto de estudo. Mas logo, a partir de seu caráter interdisciplinar, agrega para seu campo de estudos outros discursos, adotando premissas teóricas que a tornaram uma teoria autônoma. É o caso de, na construção de seus pressupostos teóricos, a AD francesa alinhar-se às contribuições de Foucault (1996) referentes ao discurso, na medida em que o filósofo francês toma o discurso “[...] como uma dispersão, ou seja, como sendo formados por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade” (BRANDÃO, 2004, p. 32). Abre-se espaço para pensar-se em algo que, do ponto de vista constitucional, explique a heterogeneidade discursiva: ao analista do discurso é dada a chance de descobrir as regras que estão presentes nessa dispersão, e, a esse respeito, continua Brandão: Tais regras, chamadas por Foucault de “regras de formação”, possibilitariam a determinação dos elementos que compõem o discurso, a saber: os objetos que aparecem coexistem e se transformam num “espaço comum” discursivos [...], relacionados em um sistema comum; os temas e teorias, isto é, o sistema de relações entre diversas estratégias capazes de dar conta de uma formação discursiva, permitindo ou excluindo certos temas e teorias (2004, p. 32, grifos da autora). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1355 Temos, portanto, regras que delimitam o que deve ou não deve ser dito no interior do discurso: uma formação discursiva, conceito foucaultiano, em que a ideologia encontra concretude, o que não significa dizer que uma mesma formação ideológica não possa se manifestar em diferentes formações discursivas. Destaca-se, no entanto, que determinadas formações discursivas depreendem uma certa formação ideológica, visto que “os discursos são governados por formações ideológicas” (BRANDÃO, 2004, p. 47), e é no discurso que a ideologia se concretiza enquanto práxis. Nesse sentido, Foucault (1996) defende a tese de que “o discurso está na ordem das leis” (p. 7), isto é, sua produção é controlada e selecionada pela sociedade a fim de desviar-se do que pode haver de mais temível e pesado na materialidade do dizer, para usar as palavras de Foucault. Para além das questões ideológicas, a AD francesa também evidenciou a presença de um eu que fala, ou seja, de um sujeito que se coloca no discurso como seu enunciador. Esse sujeito ora tenta se ocultar nas tessituras do texto, sob a roupagem de uma impessoalidade, ora se deixa entrever como aquele que enuncia (BRANDÃO, 2004). Considera-se que esse sujeito não é um ser uno, ou centralizado, mas que está em constante interação com o Outro, ou seja, que não só fala a um Outro que, do ponto de vista lacaniano, antecedeu-o, mas também é atravessado pelo discurso desse Outro. Nesse sentido, o discurso jurídico é um clássico exemplo do que acabamos de afirmar: não importa se o discurso jurídico deva ser neutro, como o quer o Estado. Há que se considerar que existe um sujeito que fala e que esse sujeito é atravessado pelo discurso do Outro que o antecedeu e que continua a existir depois dele, formando a ideologia, dando sentidos ao discurso ora utilizado para Vigiar os indivíduos e Punir os malfeitores. Orlandi (2002) diz que todo dizer é ideologicamente marcado. Se isso é verdade, haverá rastros de ideologia no discurso, como se o próprio discurso fizesse uma espécie de delação da enunciação do qual é resultado. Fala-se tanto de ideologia neste trabalho, mas ainda não dissemos o que, do ponto de vista concreto, pode ser entendida enquanto tal. Para Orlandi, Ideologia não se define como o conjunto de representações, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique (1998, p. 48). 1356 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Vê-se que o conceito de ideologia, proposto por Orlandi, assume um caráter interdisciplinar na medida em que é possível vislumbrar as contribuições marxistas, altusserianas e ricouerianas, ou seja, ideologia enquanto abstração da realidade, em Marx; mecanismo de controle e de ação do sujeito, em Althusser e mediadora da ação social, em Ricouer, mas, ao mesmo tempo em que a autora adota as contribuições mencionadas, demonstra até que ponto é possível utilizá-las. Rejeita-se, por exemplo, a ideia determinista de Marx de que a ideologia nada mais é do que a pura abstração da realidade, usada pela classe dominante para controlar a classe trabalhadora; a ideologia não é, tão-somente, a representação da realidade manipulada, mas é uma prática exercida por um sujeito que se situa no espaço e no tempo. Além disso, a ideologia está ligada ao sujeito, porque é efeito da relação dele com a língua e com a história. Portanto, ideologia e sujeito são dois seres indissociáveis do ponto de vista da AD. Daí termos escolhidoa AD francesa como suporte teórico de nosso trabalho, já que, nas palavras de Gomes (2013), a Análise do Discurso, da escola francesa, trabalha “a relação sujeito, ideologia e situação social e histórica” (p. 45). Não se quer dizer com isso que a AD francesa esteja interessada só na história ou que entende que somente através da história se poderá considerar o discurso, mas o que se está afirmando é que a AD francesa não dissocia o sujeito que fala do lugar e do tempo em que fala. Desse modo, a AD francesa deixa que se entrevejam as ideologias que estão no discurso, e que dinamizam e determinam a práxis discursiva, estabelecendo, com o contexto sócio-histórico de produção uma relação de sentido ou, melhor dizendo, de construção de sentido, porque ela, a ideologia, é ferramenta necessária à interpretação do discurso. É com essa ideia que, neste trabalho, pretendemos empreender uma análise do discurso decisório, isto é, entendemos que o sentido de um discurso é algo construído e que pode ser depreendido a partir de uma visão das condições de produção que se apresentam no ato de enunciá-lo. O discurso jurídico não foge à regra, mesmo porque, se considerarmos que no ato decidir existe um eu que fala, também consideraremos que esse sujeito é atravessado por outros dizeres que o motivam a adotar, como práxis discursiva, determinadas concepções de mundo e de sociedade para dizer do direito e determinar o que os demais devem e/ou não devem fazer. Nesse sentido, pelas vias judiciárias, é justo dizer que, em sua prática ideológica/discursiva, o Estado se coloca como o regulador do Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1357 que deve ser dito pelo povo, bem como nas relações entre particulares, sempre pronto a punir todo aquele que violar as regras do bom dizer. Não estamos, com isso, dizendo que o Estado impõe censura às múltiplas ideologias que se encontram no território, apesar de que a censura é uma das muitas formas que o Estado possui de impor a ideologia que o governa e proibir outras que o questionem. Afirmamos, sim, que todos os membros do corpo social estão cientes do que podem dizer para o outro.5 Na verdade, o Estado avoca para si o direito e o dever de declarar o que deve ser dito e quando deve ser dito, e, contra o seu poder – manifestado nas decisões judiciais –, não há a quem recorrer. Estas considerações nos levam ao caso em apreço, objeto desta pesquisa, onde se verifica claramente o Poder Estatal avocando para si o direito e o dever de proibir a entrevista do ex-presidente Lula que seria concedida à Folha de S. Paulo: em linhas gerais, havia a necessidade, conforme o ministro Fux, de impedir que o ex-presidente falasse. Mais ainda: era preciso cassar a decisão de um par que, antes, havia dado autorização para que a entrevista se realizasse. 4 Decisão judicial: censura e poder Cabe esclarecer alguns termos próprios do discurso jurídico, que se encontram no corpus em apreço. Comecemos por entender que liminar, instrumento utilizado para proibir a entrevista do ex-presidente Lula, “é aquilo que se situa no início, na porta, no limiar [...] no momento em que se instaura o processo” (FABRICIO, 1996, s/p), ou seja, é uma espécie de garantia de que o direito a ser demandado pelas partes será preservado de qualquer prejuízo antes da conclusão do processo. Nesse sentido, não é preciso haver manifestação do demandado, basta que o juiz se convença de que a demora do socorro do Estado, pelas vias processuais, pode acarretar dano irreparável ao demandante.6 5 Os crimes de honra, previstos nos arts. 138, 139 e 140, do Código Penal Brasileiro, são um claro exemplo disso: não se deve dizer tudo o que se pensa sobre o outro. Do contrário, o Estado, se provocado, poderá impor uma sanção ao ofensor como uma forma de reparar os danos causados ao ofendido. 6 No caso em tela, verifica-se que o Partido Novo ajuizou ação para suspender a decisão que havia sido tomada pelo ministro Ricardo Lewandowski, que autorizara a entrevista do ex-presidente Lula ao jornal Folha de S. Paulo. Desde já notamos um movimento 1358 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 As liberdades fundamentam a República e o Estado Democrático e, não é por outra razão, que são o pilar central que sustenta as propostas do Partido NOVO, ora requerente. Sustenta-se, de outro lado e na mesma medida, que liberdade não se desvincula de responsabilidade. E a liberdade de imprensa encontra dimensão de igual importância na liberdade do voto, formada pela vontade do eleitor. Não se pretende com a presente ação impor qualquer tipo de censura. Muito longe disso, o que se pretende é que a entrevista não seja realizada antes das eleições (SILVEIRA et al, 2018, p. 2) O que se põe em questão na peça inicial do pedido, formulado pelo Partido Novo (PN), é que há um direito que pode ser violado, se a entrevista for mantida (a saber, a igualdade dos postulantes na disputa pelos cargos eletivos) e, não menos importante, haverá descumprimentos das ordens exaradas pela Justiça Eleitoral, quanto à proibição de o expresidente não praticar atos de campanha. O que se pode inferir é que, para o Partido Novo, a disputa eleitoral deve estar acima de qualquer outra liberdade individual, e, por esse argumento, as liberdades fundamentais, consagradas pela Carta Magna, não só podem como devem ser cassadas. Nesse sentido, fica subentendido que a omissão do Estado diante dos fatos produzirá a irresponsabilidade dos jurisdicionados e, mais especificamente, do próprio eleitor: por movimento projetivo, o PN argumenta que “o eleitor se confunde com a complexidade do sistema e com a insistência dos próprios candidatos em deixar a informação opaca pelo maior tempo possível” (SILVEIRA et al, 2018, p. 3), ou seja, não se pode confiar no discernimento do eleitor, não quando um político é capaz de manipular seus desejos e inverter o jogo eleitoral. Pode-se mesmo dizer que, considerando-se a importância do ex-presidente Lula, o que se teme é que as suas palavras, antes das eleições, criem desvantagens, pois seus adversários não gozam de um espaço de maior identificação junto ao eleitorado. Daí o que se pode dizer é que a tal desvantagem é algo que se fez sócio-historicamente.7 estratégico: ministros do Supremo Tribunal são autoridades máximas da Justiça no Brasil, razão pela qual recorrer ao ministro que deferiu a entrevista não seria inteligente. 7 O que o PN põe em cena, na petição inicial, são os temores de uma eventual derrota em virtude desta entrevista. Cabe indagar: o que Lula poderia dizer, dentre tudo o que já disse, que seria tão lesivo ao pleito e ao eleitor? O PN argumenta que ele, Lula, não é obediente, porque, mesmo preso, insistiu em ser candidato. Nesse sentido, vê-se que aquilo que poderia ser algo até certo ponto normal, do ponto de vista jurídico (como Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1359 Caberá, portanto, ao Poder Judiciário decidir sobre a veracidade dos fatos narrados. É, em síntese, a primeira coisa que se busca no âmbito do discurso jurídico: a verdade dos fatos, e esta deve ser construída sobre as bases sólidas da lei em vigor em conjunto com uma narrativa que demonstre a ameaça ao direito positivado no ordenamento jurídico. A busca pela verdade se reveste de elaborações argumentativas que objetivam persuadir o outro do que se diz e, em nosso caso, do que se decide: não pode o juiz decidir alguma coisa sem que demonstre, na lei e em outros decididos, que o que ele diz é a verdade. Na decisão, o ministro Fux encontra um primeiro obstáculo: outra decisão já havia sido proferida pelo seu par, o ministro Lewandowski, decisão essa em favor do jornal Folha de S. Paulo para a concessão da entrevista; nesse julgado, o colega, monocraticamente, entendeu que o impedimento da entrevista, perpetrado pela 12ª Vara Federal de Curitiba, afrontava a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, na ADPF130/DF, derrubou a censura prévia. A estratégia de Fux é descontruir o discurso do outro, e, para que possa fazer isso, é preciso concatenar as ideias, considerando o entendimento do outro, ainda que não concorde. O relator, monocraticamente, julgou procedente a Reclamação para cassar a decisão reclamada e determinar “seja franqueado ao reclamante e à equipe técnica, acompanhada dos equipamentos necessários à captação de áudio, vídeo e fotojornalismo, o acesso ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a fim de que possa entrevistá-lo, caso seja de seu interesse”. O decisum ora vergastado se amparou no princípio constitucional que garante ”a ‘plena’ liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva dequalquer tipo de censura prévia”. Argumentou-se, ainda, que o ato do juízoda execução equivale a “censurar a imprensa e negar ao preso o direito decontato com o mundo exterior”. (BRASIL, 2018, p. 2, grifos do autor) A decisão do ministro Fux é um interdiscurso, ou seja, foi construída a partir de outro discurso que o antecedeu, gerando uma entrar com recursos junto à Justiça, por exemplo), torna-se argumento para demonstrar a indocilidade do apenado, além de evidenciar que o PT também assume este mesmo comportamento indócil, na medida em que quis lutar judicialmente pela candidatura de Lula. 1360 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 polêmica discursiva em torno da entrevista do ex-presidente Lula, quando consideramos que a decisão proferida pelo ministro Lewandowski constitui uma espécie de discurso primeiro, o qual o ministro Fux, por sua vez, se preocupa em refutar.8 Além do mais, é possível perceber a heterogeneidade mostrada9 do discurso do ministro Fux, pelas claras citações diretas que ele evidencia, quando faz menção ao que foi decidido pelo colega. Vê-se, por exemplo, que Fux cita diretamente aquilo com que não concorda e grifa para não só ser fiel ao pensamento do outro, mas também para demarcar a sua posição contrária aos argumentos que busca combater. Nessa ideia, Maingueneau (2008) nos diz que: “O discurso primeiro não permite a constituição de discursos segundos sem ser por eles ameaçados em seus próprios fundamentos (p. 39).” Temos uma heterogeneidade tanto mostrada quanto constitutiva ou, nas palavras do teórico, um interdiscurso, que serve de suporte para a construção da decibilidade em análise. Fux dialoga diretamente com a decisão de Lewandowski e se propõe a refutá-la, após haver reproduzido, no que lhe interessava, parte daquilo que não concordava e que desejava desfazer. Entretanto, a interpretação conferida ao conteúdo do julgamento desta Corte nos autos da ADPF n.º 130 exorbita de seus termos e expande a liberdade de imprensa a um patamar absoluto incompatível com a multiplicidade de vetores fundamentais estabelecidos na Constituição (BRASIL, 2018, p. 2-3). É interessante observar que o ministro Fux não aponta em que ponto, claramente, a decisão de seu colega exorbitou o que havia decidido o Supremo Tribunal Federal na ocasião do julgamento da ADPF n.º 130: se houve termos que foram ultrapassados, eles não são mencionados, ao menos não explicitamente, pelo que se conclui que Fux está, na verdade, concordando com os argumentos apresentados pelo Partido Novo: no caso em tela, não se pode conceder a liberdade de imprensa à Folha, 8 Não podemos nos esquecer de destacar que a petição do partido que deu início ao processo judicial é parte integrante do evento discursivo em análise. 9 Conforme Maingueneau (2008, p. 31), a heterogeneidade mostrada consiste em marcas enunciativas acessíveis “aos aparelhos linguísticos, na medida em que apreender sequências delimitadas mostram claramente sua alteridade (discurso citado, autocorreções (sic), palavras entre aspas etc...)”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1361 nem mesmo dar à ADPF n.º130 o sentido que o ministro Lewandowski lhe havia conferido. Por essa razão, para que consiga o que deseja, Fux se arvora numa posição superior: enquanto Presidente em Exercício do Tribunal, avoca para si o dever e o poder de questionar a decisão de um colega. Perceba-se que, não apontando textualmente onde houve exagero de Lewandowski, Fux confere ao vazio de uma citação sua própria interpretação do decidido na ADPF n.º 130 e aceita como verdade os argumentos do Partido Novo, agora tidos como seus. Na verdade, como Foucault (2002) explica, o discurso jurídico se coloca como o discurso da verdade, mas como existem conflitos quanto à verdade (já que a verdade precisa ser interpretada enquanto tal), cada sujeito expressará a verdade que encontra fundamento na Formação Discursiva e no interdiscurso que permeia tal FD. A verdade, portanto, não é una, nem pertencente a um sujeito, mas o Estado deseja ser aquele que não só busca a verdade como decide se há verdade. Nesse sentido, para tentar uma verdade, o ministro Fux se coloca em posição maior que a do outro, para contestá-lo e refutá-lo, enquanto detentor da verdade: o outro, argumenta, interpretou mal o texto, o outro ultrapassou os seus limites, razão pela qual é preciso corrigir o erro e restabelecer o sentido do entendimento para o caso concreto, ainda que, como dito, essa ultrapassagem não tenha sido textualmente demonstrada. Nessa linha de desconstrução, Fux argumenta: Sabe-se que o “mercado livre de ideias”, primeiramente referido por Oliver Wendell Holmes Jr. no caso Abrams v. United States, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1919, possui falhas tão deletérias ao bem-estar social quanto um mercado totalmente livre de circulação de bens e serviços (BRASIL, 2018, p. 3, grifo nosso). Na concepção de Fux, ideias são perigosas e, por isso mesmo, devem ser reguladas pelo Estado: “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar qualquer coisa” (FOUCAULT, 1996, p. 7), e é o Estado que, no caso em análise, coloca-se na posição de dizer quando, como e de que forma deve ser dito alguma coisa por parte do ex-presidente Lula. 1362 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Além disso, Fux pressupõe que, em sendo Lula um político, há de mentir ou desinformar o eleitor, em máxima concordância com os temores que o Partido Novo demonstrou na petição inicial. Novamente, é por causa do outro que esse texto é feito, o que significa que há uma imagem do outro que já existe na mente do sujeito: políticos mentem, políticos condenados mentem; políticos condenados, que são amados pelo povo, mentem, se tiverem a oportunidade: A regulação da livre expressão de ideias é particularmente importante no período que antecede o pleito eleitoral, porquanto o resguardo do eleitor em face de informações falsas ou imprecisas protege o bom funcionamento da democracia [...], a igualdade de chances, a moralidade, a normalidade e a legitimidade das eleições [...] (BRASIL, 2018, p. 4, grifo nosso).10 Fux, dessa forma, deixa implícita a ideia pré-concebida, ideologicamente construída, de que Lula não é de confiança. E, quanto ao eleitor, não se pode confiar em seu discernimento, mesmo que, ao fim e ao cabo, a decisão seja do eleitor. É destacado o quão prejudicial à capacidade cognitiva do votante poderão ser as palavras de Lula: “Isso porque a desinformação do eleitor compromete a capacidade de um sistema democrático para escolher mandatários políticos de qualidade” (BRASIL, 2018, p. 3, grifo nosso). É interessante notar o que a locução adjetiva grifada indica: desinformação acarreta escolhas desqualificadas. Para Fux, há, efetivamente, políticos qualificados. Estes são os que não mentem, o que não é o caso de Lula, nem mesmo de seu partido. É preciso deixar claro que Lula não era mais candidato, ou seja, quem estava como cabeça da chapa era Fernando Haddad, mas, na concepção de Fux, a entrevista de Lula só poderia beneficiar a coligação O Povo Feliz de Novo, do PT, dando certa vantagem ao presidenciável Haddad, e, na verdade, era esse o temor do Partido Novo manifestado na petição inicial: “É nesse 10 A presença do outro é fundamental para a construção do discurso, mesmo que ele não esteja presente porque “Qualquer enunciação supõe a presença de outra instância de enunciação, em relação à qual alguém constrói seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2015, p. 26). Vale dizer que o discurso decisório em análise demonstra se constituir em virtude de vários outros discursos que, mesmo sem que se mostre enquanto heterogeneidade mostrada, atravessam-no e lhe dão sentido, ou seja, para além do que os dispositivos legais dizem e da visível impessoalidade há um sujeito que fala, ainda que mascarado. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1363 sentido que se faz necessária a relativização excepcional da liberdade de imprensa, a fim de que se garanta um ambiente informacional isento para o exercício consciente do direito de voto.” (BRASIL, 2018, p. 3). O eleitor, novamente, é posto em uma posição de um sujeito claramente pronto a errar em caso de ser exposto a um ambiente informacional que não goze de máxima isenção. O ex-presidente, por sua vez, é tido como um mentiroso contumaz (os substantivos e adjetivos estão no plural): fica implícito no trecho acima que Lula há de mentir, bem como só será capaz de mentir, se não o fizer por informações falsas, com certeza o fará por informações imprecisas. Tais crenças implícitas no texto decisório do ministro Fux só podem ser entendidas quando, junto a Foucault (2014), compreendemos o conceito de periculosidade: de acordo com o filósofo francês, os burgueses criaram-no para designar os atos e/ou atitudes que um criminoso poderia fazer em face da sociedade, ou seja, era uma espécie de juízo de valor que se fazia a respeito daqueles que tinham, por alguma razão, adentrado o sistema prisional: caso o juiz não acreditasse na regeneração do apenado e, pelo contrário, fosse convencido de que ele poderia reincidir na vida criminosa, negava-lhe a liberdade. A crença da periculosidade demonstra muito mais do que a simples desconfiança da Justiça em relação aos seus custodiados. Ela foi a razão para se privar alguém de sua liberdade por tempo indeterminado. É por meio da implicitude que Fux deixa entrever sua ideologia, sócio-historicamente construída, e a implicitude é um modo de operação da ideologia, transmitindo significados que, se manifestos claramente, soariam preconceituosos. No caso, a polidez da linguagem é uma forma de a) garantir a neutralidade que o Estado requer de seus operadores e b) velar a ideologia que embasa e permeia a decisão do magistrado (COLARES, 2014). E, para embasar sua crença ideológica, Fux enumera várias liminares que foram emitidas pelo Tribunal Superior Eleitoral para impedir a aparição do apenado nas propagandas de rádio e televisão, mesmo que os descumprimentos não tenham partido do próprio Lula, mas sim da coligação da qual fazia parte: Todavia, a determinação foi reiteradamente descumprida, sendo que a Corte Superior Eleitoral deferiu cinco liminares para a suspensão de propagandas contendo referências ao requerido [...] Dessa maneira, resta evidente a recalcitrância deste na observância 1364 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 da decisão judicial que lhe vedou a prática de atos de campanha, configurando-se o periculum in mora pelo fato de que a pretendida entrevista encerraria confusão no eleitorado, sugerindo que o requerido estivesse se apresentando como candidato ou praticando atos que lhe foram interditados. (BRASIL, 2018, p. 4, grifo do autor). Não à toa a expressão latina periculum in mora (em tradução livre para o português quer dizer “perigo da demora”) é utilizada por Fux, pois indica o desejo de se derrubar a decisão de seu colega, bem como, com base na recalcitrância do apenado, tornar urgente a proibição da perigosa fala. O próprio Fux já diz o que, em tese, poderia ser dito por Lula, em caso de ser entrevistado: ele iria sugerir ao eleitor que estava se apresentando como candidato e, mesmo preso, estava praticando atos “que lhe foram interditados”. Era preciso, portanto, que se prevenisse a ação perigosa do apenado, impondo a ele, para além da privação de liberdade, a proibição de toda e qualquer forma de comunicação ao público em geral, por qualquer meio que fosse: [...] determino que o requerido Luiz Inácio Lula da Silva se abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação, seja a imprensa ou outro veículo destinado à transmissão de informação para o público em geral. Determino, ainda, caso qualquer entrevista ou declaração já tenha sido realizada por parte do aludido requerido, a proibição da divulgação do seu conteúdo por qualquer forma, sob pena da configuração de crime de desobediência [...] (BRASIL, 2018, p. 4) Não é preciso dizer que, para os efeitos pretendidos, bastava que o magistrado enunciasse a suspensão da liminar anterior, mas Fux buscou ser o mais enfático possível, quando, para além da suspensão, determinou que Lula se abstivesse de qualquer meio de comunicação destinado à informação do público em geral. Com isso o ministro deixa transparecer o próprio desejo de fazer cumprir o dever de proibir o apenado de se manifestar, bem como põe em cena a sua crença de que, sem sombra de dúvidas, o desejo de Lula era, sim, de ser entrevistado, para, como descrito acima, desinformar o eleitor. Além disso, também proíbe, em segundo plano, que, na possibilidade de uma entrevista já ter sido feita, sua vinculação seja vetada. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1365 Fux, sobretudo, não quer ser contrariado e, por isso, também na hipótese de Lula se insurgir ou, em segundo plano, a Folha de S. Paulo o fazer, ambos terão como pena a configuração de sua conduta como crime de desobediência nos termos da lei, não deixando qualquer margem de dúvida sobre qual é a sua vontade, enquanto ministro do Supremo Tribunal Federal. Resta configurada a interdição do discurso por parte do Estado, e o mais curioso é que, no ato de mandar, o eu aparece e se põe como o enunciador do discurso: “[Eu] determino que o requerido Luiz Inácio Lula da Silva se abstenha de realizar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação [...]”. Brandão (2004) explica que esse fenômeno de marcação ou não do eu no discurso tem a ver com a intenção do locutor quando da produção do discurso: Os discursos que utilizam formas indeterminadas, impessoais como o discurso científico, por exemplo, [...] mostram uma enunciação que mascara sempre um sujeito. Isto é, nesses tipos de enunciação, o sujeito enuncia de outro lugar, postando-se numa outra perspectiva, seja da impessoalidade em busca de objetivação dos fatos ou de um apagamento da responsabilidade pela enunciação [...] (p. 58) Nesse sentido, Fux, no início de sua decisão, procurava garantir a maior objetivação possível, tanto ao narrar os fatos quanto ao expor as razões que o levavam a suspender a decisão de seu colega e proibir Lula de ser entrevistado pela Folha de S. Paulo. Mascarava, em outras palavras, a subjetividade da qual seu texto é sintoma e tentava não imprimir à sua própria decisão concepções pré-construídas a respeito do ex-presidente Lula, bem como de seu partido. No entanto, no ato de decidir o que devia ser feito, o eu se pôs em cena para determinar quais as condutas os envolvidos seriam obrigados a adotar desde o momento em que tomassem conhecimento do teor da decisão. O eu, na condição de autoridade suprema, já que é o Presidente em Exercício do Supremo Tribunal Federal, diz qual é o seu desejo e não vê mais a necessidade de se distanciar dos fatos. É interessante observar que, na petição, requer-se que a Folha de S. Paulo se abstenha de entrevistar o ex-presidente, e, na decisão de Lewandowski, condiciona-se a entrevista à vontade de Lula, mas, para Fux, a vontade e o desejo de Lula se manifestam na própria Folha de S. 1366 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 Paulo. Não é, portanto, a Folha que está sendo combatida ou proibida, mas o próprio Lula que, mesmo sem ter se manifestado, haveria de querer, conforme suposto pelo ministro Fux. Dessa forma, interditam-se não só a entrevista, mas também o desejo de ser entrevistado. 5 Considerações finais A decisão judicial que levou a censura da entrevista do expresidente Lula, imposta pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, foi o objeto de estudo deste trabalho. Buscamos, a partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, evidenciar cifras ideológicas que fundamentaram e motivaram a decisão do magistrado, com esta ideia nos propomos a destrinchar o texto jurídico a fim de identificar os sinais da enunciação que se escondem por trás da linguagem culta padrão da decisão judicial. Percebemos que, ao considerarmos os aspectos sócio-históricos da evolução do Estado Moderno, a Justiça alcançou autonomia para decidir sobre as condutas dos cidadãos, sem ser importunada pela intervenção do soberano, figura presente no Antigo Regime. Esta autonomia, no entanto, se dá através de leis positivadas que, em tese, inibem a arbitrariedade por parte dos juízes. Na verdade, o Estado, enquanto invenção da classe burguesa, cria leis que protegem a propriedade privada e mantêm o status político-ideológico das classes dominantes sobre as dominadas, não à toa que Althusser coloca o Judiciário na esfera dos Aparelhos Repressores do Estado. Visando à manutenção da ordem e do controle e gozando de poder coercitivo capaz de obrigar alguém a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, o Estado se reveste de uma capa de neutralidade, exigindo que os seus representantes também façam o mesmo quando estiverem valendose da linguagem, como se não se pudesse cogitar uma ideologia que subjaz às palavras postas na decisão. Ocorre que, segundo os estudiosos do discurso, não é possível dizer que um discurso é neutro, pois sempre estará marcado pelas condições de produção de seu tempo. Nessa ideia, empreendemos uma análise que buscou as formações ideológicas que se faziam presentes na decisão do caso em tela. Para isso, definimos alguns termos da Análise do Discurso de linha francesa, os quais foram efetivamente selecionados e trabalhados na evolução deste trabalho. De posse dos instrumentos necessários à realização de nosso Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 1367 objetivo, fizemos uma análise de trechos da decisão para, como dito, evidenciar os rastros de ideologia que estavam presentes nas tessituras do texto: encontramos, de início, um eu que tentava se distanciar ao máximo do fato, mas que, o tempo todo, deixava transparecer seus medos e suas projeções quanto a um outro a quem combatia constantemente. Dessa forma, o ministro Fux se arvorou em uma posição que poderia lhe dar legitimidade e segurança para dizer do direito, ou seja, falar a verdade que ora foi, na sua concepção, mal interpretada pelo seu colega, ora era violada pelo desejo do ex-presidente Lula de ser entrevistado. Fux, por isso, não só interditou o discurso, como também a vontade do outro (Lula) de falar a alguém, deixando mais do que evidente o caráter preventivo de sua decisão: em pleno período eleitoral, as palavras de Lula poderiam disseminar no eleitor sentimentos perturbadores que comprometeriam a disputa, ainda que, como frisamos ao longo da análise, nem tenha sido Lula quem havia solicitado a entrevista, nem houvesse se manifestado a respeito do fato. Consideramos que o teor da decisão tinha como ponto fulcral a desconstrução do outro, bem como enfatizar a sua periculosidade discursiva. Assim, sem dizer, mas deixando implícito, a Suspensão de Liminar fundamentava-se em ideias previamente estabelecidas de um direito de se prevenir a ação delinquente do apenado. A decisão analisada, portanto, enquanto discurso, acaba por colocar em cena a ideia preventiva de ação do Poder Público quanto ao que deve e não deve ser dito pelos sujeitos, provando que, conforme Foucault (1996), todo discurso é regido por leis, leis implícitas ou explícitas que dizem quando, como e de que maneira deve ser dita alguma coisa por alguém. Referências ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad. Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editora Presença, 1980. BITTAR, E. C. B. Linguagem jurídica: semiótica, discurso e direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. 1368 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1345-1369, jul./set. 2019 BRANDÃO, H. N. Introdução à análise do discurso. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2004. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Liminar 1.178 Paraná nº 1.178. Autor: Partido Novo. Requerido: Relator da RCL nº 32.035 do Supremo. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, DF, de 28 de setembro de 2018. Presidência do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https:// www.conjur.com.br/2018-set-28/fux-concede-liminar-suspendendoentrevista-lula. Acesso em: 28 set. 2018. COLARES, V. Análise Crítica do Discurso Jurídico (ACDJ): o caso Genelva e a (im)procedência da mudança de nome. ReVEL, [s.l.], v. 12, n. 23, 2014. Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em: 4 ago. 2018. COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003. FABRICIO, F. A. Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares. Ajuris, Porto Alegre, ano 23, n. 66, 1996. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. L. F. de Sampaio: Loyola, 1996. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002. FOUCAULT, M. 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Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 Análise de verbalizações de fórmulas matemáticas por professores com experiência no ensino de pessoas com deficiência visual Analysis of mathematical formulas verbalizations by teachers with experience in teaching visually impaired people Mirella Alves de Lima Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil mialima5972@gmail.com Daniela Rodrigues Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil danielachiyo@gmail.com Patrícia Vasconcelos Almeida Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil almeidaufla@gmail.com Paula Christina Figueira Cardoso Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil paula.cardoso@ufla.br André Pimenta Freire Universidade Federal de Lavras (UFLA), Lavras, Minas Gerais / Brasil apfreire@ufla.br Resumo: Um dos problemas enfrentados pelos usuários da web com deficiência visual é a falta de recursos de Tecnologia Assistiva para ler corretamente o conteúdo matemático. Visando buscar possibilidades para produzir tais recursos, o trabalho investigativo que originou este artigo se ocupou de compilar um corpus produzido pelos professores ao lerem as fórmulas matemáticas para os alunos com deficiência visual. Transcrições eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1371-1397 1372 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 dos áudios foram feitas no intuito de obter padrões de leitura e levantar questões que podem vir a afetar a restauração da estrutura da fórmula matemática. Com base na leitura dos professores, foram examinados determinados elementos presentes nas falas e identificados posicionamentos distintos na manifestação oral dos símbolos, pausas e alterações no tom de voz, bem como das partículas conectivas (preposições, artigos, conjunções) e verbos. Por meio do corpus sistematizado das fórmulas matemáticas é possível refletir sobre a variação, padronização, divergência e significado, itens os quais podem auxiliar na demarcação de fenômenos linguísticos encontrados nas transcrições das gravações e com isso oportunizar uma base para futuras pesquisas na área. Palavras-chave: fórmulas matemáticas; corpus; análise linguística; acessibilidade; deficiência visual. Abstract: One of the problems faced by visual impairment web users is the lack of assistive technologies to read mathematical content correctly. Aiming to find possibilities to produce such resources, the research work that originated this article was devoted to compiling a corpus produced by teachers when reading the mathematical formulas for students with visual impairment. Transcripts of the audios were done in order to obtain reading standards and raise questions that may affect the restoration of the structure of the mathematical formula. Based on the teachers’ reading certain elements present in the speech were examined and distinct positions were identified in the oral manifestation of the symbols, pauses and alterations in the tone of voice, as well as in the connective particles (prepositions, articles, conjunctions) and verbs. By means of a systematized mathematical formulas corpus, it is possible to reflect on the variation, standardization, divergence and meaning, which can help in the demarcation of linguistic phenomena found in the recordings transcriptions and with this provide a basis for future research in the area. Keywords: mathematical formulas; corpus; linguistic analysis; accessibility; visual impairment. Recebido em 07 de dezembro de 2018 Aceito em 15 de maio de 2019 1 Introdução Atualmente, 53% da população mundial, ou cerca de 4,021 bilhões de pessoas, possui acesso à Internet, conforme indica o último relatório Digital in 2018, divulgado pelos serviços online Hootsuite e We Are Social. Segundo essas companhias, no Brasil, aproximadamente 66% Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1373 da população já está conectada à Internet. No que diz respeito à educação e ao mundo científico, essa “era digital” representa um compartilhamento de conhecimento no qual documentos técnicos, arquivos e informações de toda natureza são disponibilizados por uma infinidade de páginas da web a todo o momento. Ocorre, porém, que nem todas as pessoas têm as mesmas condições de acesso a esse conteúdo online, seja ele tecnológico, seja físico. No Brasil, um relatório divulgado em 2015 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que, de acordo com a Pesquisa Nacional da Saúde (PNS) realizada em 2013, a deficiência visual1 atinge aproximadamente 7,2 milhões de brasileiros. De acordo com estimativas fornecidas em 2017 pela World Health Organization, em todo o mundo, cerca de 253 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência visual. Dessas, 36 milhões são cegas e 217 milhões possuem deficiência visual moderada ou grave. No que concerne a esses grupos de pessoas, o acesso à educação e à informática é normalmente bastante restrito, devido às limitações tecnológicas e de ferramentas adequadas para a construção do conhecimento que a área demanda. Embora o Braille2 se constitua como uma importante ferramenta de acesso à informação, nem todas as pessoas com deficiência visual possuem o domínio para utilizá-lo. Ao lado desse sistema, existem ainda outros formatos acessíveis falados (como audiolivros) ou digitais que também são estratégias profícuas para auxiliá-los na aquisição de conhecimento. Todavia, como destacam Ferreira e Freitas (2006), além das publicações técnicas em formato de áudio serem ainda limitadas, “a dificuldade para os cegos aumenta e o grau de acesso diminui à medida que cresce o nível de informação técnica no documento” (p. 137). Apesar disso, os autores reconhecem que a inserção de novos recursos de Tecnologia Assistiva e a ampliação do uso de computadores pessoais têm colaborado para que as condições de acesso à informação das pessoas “Considerou-se deficiência visual os casos de cegueira de ambos os olhos, cegueira de um olho e visão reduzida do outro, cegueira de um olho e visão normal do outro e baixa visão de ambos os olhos” (IBGE, 2015, p. 28). 2 “Sistema de leitura e de escrita para cegos, em que as letras, os algarismos e os sinais gráficos são representados por uma combinação de seis pontos em relevo, que são lidos da esquerda para a direita, com uma ou ambas as mãos” (BRAILLE, 2018). 1 1374 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 com deficiência visual sejam aprimoradas, embora esse processo também tenha se deparado com alguns empecilhos técnicos. Dentre os obstáculos, é premente ressaltar o problema da falta de acessibilidade de acesso a conteúdos matemáticos na web. Visando obter subsídios para minimizar esse problema, está em desenvolvimento o projeto NavMatBR, que intenciona melhorar a acessibilidade da Educação Matemática às pessoas com deficiência visual a partir da investigação de técnicas de leitura e compreensão de fórmulas complexas e do desenvolvimento de recursos de Tecnologia Assistiva (TA). O projeto envolve uma equipe multidisciplinar com pesquisadores das áreas da Ciência da Computação, de Educação Matemática e da Linguística, possibilitando a integração de conhecimentos técnicos para a implementação de recursos de TA, bem como conhecimentos sobre os fundamentos matemáticos e a análise linguística das transcrições de descrições de fórmulas matemáticas lidas por professores e profissionais brasileiros que possibilitem a leitura de conteúdo em português do Brasil. O projeto surgiu no contexto da carência de recursos computacionais que permitissem a leitura de fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual em português do Brasil. A leitura feita na língua materna de estudantes com deficiência visual é fundamental para permitir a compreensão desse tipo de conteúdo, considerando as limitações no ensino de língua inglesa para estudantes em Ensino Fundamental, por exemplo. A compreensão de conteúdo matemático com a leitura em uma segunda língua apresentaria uma dificuldade a mais para o entendimento e estudo de tal conteúdo para esses estudantes, ainda mais considerando as dificuldades comumente relatadas no estudo da Matemática e de outras áreas que envolvem o uso de notação com equações e fórmulas, como a Física e a Química. A forma como é feita a leitura de conteúdos matemáticos apresenta grande variação entre diferentes países, e mesmo entre as diferentes regiões de um país. Assim, para possibilitar a leitura de fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual por um software leitor de telas, a simples tradução automatizada ou tradução direta termo-a-termo dos conteúdos não seria eficaz para possibilitar a compreensão desse conteúdo. Recorte do projeto de pesquisa supramencionado, este artigo, que tem como objetivo contribuir para a área de estudos linguísticos, descreve a criação de um corpus de fórmulas matemáticas e sua análise a Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1375 partir de transcrições das gravações de leituras realizadas por professores especialistas no ensino de pessoas com deficiência visual. O resultado dessa análise irá apoiar o desenvolvimento de recursos de TA para usuários com deficiência visual no Brasil. Isto posto, este artigo segue organizado em mais quatro seções. Na seção 2, descrevem-se trabalhos relacionados com a produção de recursos de TA para a Matemática. Na seção 3, descreve-se a construção do corpus de trabalho e suas características. Na seção 4, discute-se o processo de criação do corpus e a análise do material transcrito. Por fim, na seção 5, apresentam-se as considerações finais e trabalhos futuros. 2 Trabalhos relacionados Nesta seção, são apresentadas algumas pesquisas que produziram corpus de referência e recursos de TA para ler adequadamente conteúdo matemático para pessoas com deficiência visual. Tendo em vista que a criação e a adequação de TA são tarefas que devem levar em consideração diversos fatores, dentre eles os sociais, é pertinente pensar em preparar um corpus de referência que auxilie não somente no estudo e na compreensão do fenômeno, mas também no desenvolvimento e na avaliação de sistemas de leituras de fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual. Dessa forma, vale ressaltar o trabalho de Sepúlveda e Ferres (2012), que utilizaram uma base de 355.684 fórmulas matemáticas da Wikipedia e geraram descrições em espanhol para serem lidas pelo leitor de telas do usuário. Ocorre que o conteúdo da Wikipedia é organizado em páginas HTML (HyperText Markup Language), logo, fórmulas são imagens que possuem um atributo HTML com um texto alternativo que descreve o que é apresentado (tag alt). Na proposta dos autores, a descrição é transcrita para a linguagem MathML (Mathematical Markup Language – uma linguagem de marcação matemática) a fim de evitar problemas semânticos no momento em que for renderizada em uma página web como uma fórmula. Para conhecer a forma correta de leitura de fórmulas em espanhol, 38 participantes com diferentes background foram convidados a escrever como liam um determinado conjunto de fórmulas matemáticas de diferentes assuntos. A partir desse corpus de transcrições, os autores geraram padrões de leitura (referência) com base nas formas de maior frequência. 1376 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 Outro estudo que vale a pena ser mencionado, pois estabelece alguma relação com o escopo do trabalho realizado que embasa este artigo, é o de Salamonczyk e Brzostek-Pawlowska (2015). Para encontrar padrões de leitura de fórmulas matemáticas na língua polonesa, os autores contaram com o auxílio de um grupo de professores com experiência no ensino para pessoas com deficiência visual que relataram suas preferências de leitura. Os autores não produziram um corpus de fórmulas, mas determinaram padrões de leitura a partir do relato dos professores. Entre os padrões destacam-se: ler letras como elas de fato são lidas; ler números inteiros ao invés de dígito por dígito. Os autores enfatizam que a Matemática é principalmente comunicada de forma escrita, ocasionalmente complementada com fala, por essa razão o conteúdo matemático escrito geralmente não possui ambiguidade em contraste com a fala. Desse modo, o usuário com deficiência visual precisa restaurar a estrutura de uma fórmula com base na fala, portanto, a forma oral não pode ser ambígua. Com base nos padrões sugeridos pelos professores, os autores desenvolveram um software que recebe uma fórmula matemática escrita em MathML e gera a sua representação em linguagem natural (texto) para ser lida pelo leitor de telas. É importante frisar que existem poucas ferramentas que convertem uma representação matemática para um formato que permita ao leitor de telas ler adequadamente. Nessa linha, destacam-se o software AudioMath para o português europeu (FERREIRA, 2005), o i-Math para o tailandês (WONGKIA et al., 2012) e um módulo no navegador ChromeVox para a língua inglesa (SORGE et al., 2014). Por essa razão, é preciso destacar que, embora existam algumas pesquisas que buscam melhorar o acesso a conteúdo matemático para pessoas com deficiência visual, há pouca investigação sobre padrões de leituras de fórmulas matemáticas. Como esse é um espaço em que os estudos que originaram este artigo desejam ocupar, acredita-se que compreendendo como é feita a leitura desse tipo de conteúdo para pessoas com deficiência visual, padrões poderão ser identificados e automatizados, possibilitando sua inserção/criação em recursos de TA. Posto que até o momento não foi encontrado na literatura um corpus de fórmulas matemáticas ou manuais de leitura específicos para o português do Brasil, neste trabalho optou-se pela criação de um corpus de fórmulas matemáticas contendo as leituras realizadas por professores de Matemática especialistas no ensino de pessoas com deficiência visual. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1377 Para a criação do corpus, foram conduzidas primeiramente leituras de textos de pesquisadores da Linguística de Corpus, especificamente, uma vez que há diferenças entre a concepção do termo corpus de acordo com a área em que o pesquisador está inserido. Dentro dessas leituras foram analisadas definições de corpus a fim de estabelecer a que mais se ajustaria ao projeto. O presente artigo destaca a concepção de Sardinha (2004), pois se trata do pesquisador brasileiro de maior relevância na área, autor do primeiro manual de Linguística de Corpus do país. Para Sardinha (2004, p. 18), corpus é Um conjunto de dados linguísticos (pertencentes ao uso oral ou escrito da língua ou a ambos) sistematizados segundo determinados critérios suficientemente extensos em amplitude e profundidade de maneira que sejam representativos da totalidade do uso linguístico ou de algum de seus âmbitos, dispostos de tal modo de possam ser processados por computadores, com finalidade de propiciar resultados vários e úteis para descrição e análise. De acordo com o autor, essa definição é mais completa porque menciona a origem, o propósito, a composição, a formatação, a representatividade e a extensão do corpus. Vale ainda ressaltar o trabalho de Fromm (2003), que foi utilizado como parâmetro para a análise do corpus já formado. Segundo o autor, existem diversas aplicações práticas do corpus após a sua construção e, dentre essas, a que mais se aproxima do objetivo do projeto, e também apresentada no presente artigo, é a “comprovação de colocações na língua” (p. 3). Nesse caso, as colocações referem-se à “combinação provável mais aceita pelos falantes nativos da língua” (FROMM, 2003, p. 3). Essa afirmação foi adaptada para o contexto da análise proposta pelo projeto, passando então a ser observada como uma combinação de vocábulos mais aceita dentro das nomenclaturas matemáticas quando aplicadas em um software de leitura de telas, facilitando o entendimento das pessoas com deficiência visual. Os resultados das observações sobre a variação de vocábulos e suas implicações serão mais bem explicados na seção 4. Sabe-se que a construção de um corpus consome bastante tempo e é uma tarefa cara, em que é necessário preocupar-se com a confiabilidade, a validade e a consistência de seu processo de criação (HOVY; LAVID, 2010). Dessa maneira, passos adotados na construção de corpus em outras linhas de pesquisa da área de processamento de linguagem natural foram adaptados para este trabalho. 1378 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 3 Criação de um corpus de fórmulas matemáticas Antes de começar a descrição do trabalho de pesquisa é preciso destacar que para desenvolver o projeto NavMatBR tem-se, a priori, que compreender como é feita a leitura de fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual. Pois, a criação de um conjunto de fórmulas matemáticas para serem lidas por professores de Matemática com experiência no ensino de pessoas com deficiência visual foi motivada pela ausência de manuais ou literatura sobre o tema no Brasil. Esse conjunto de fórmulas e suas respectivas leituras formam o corpus que apoia o desenvolvimento do projeto NavMatBR. Por meio desse corpus, questões científicas a respeito do processo de leitura de fórmulas matemáticas para pessoas com deficiência visual poderão ser respondidas, tais como a identificação de padrões de leituras que podem ser automatizados. Além de fórmulas, o corpus criado a partir dos dados das transcrições contém operadores aritméticos, operadores relacionais, algarismos romanos e outros símbolos do contexto da Matemática. Nesta seção, descrevem-se os passos da criação do corpus. 3.1 Seleção das fórmulas Para a criação do conjunto de fórmulas, a equipe multidisciplinar que compõem o projeto de pesquisa se reuniu por diversas vezes a fim de traçar um roteiro de ação que desse conta dos objetivos do projeto. Depois de algumas discussões de cunho teórico e também metodológicos de geração de dados, decidiu-se por compor uma banca com professores do Departamento de Ciências Exatas (Universidade Federal de Lavras – UFLA), uma graduanda do curso de Física e outra do curso de Matemática, para que fizessem a análise de alguns materiais didáticos em busca daqueles que apresentavam os conteúdos matemáticos tratados nos anos finais do Ensino Fundamental de forma que pudessem nortear a geração de dados. Além disso, como o conteúdo matemático é bastante extenso, decidiu-se ainda que o material escolhido deveria contemplar conteúdos pertencentes aos objetos de conhecimento das grandes unidades temáticas da área da Matemática elencadas pela Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2016): Números e Operações, Álgebra e Funções, Geometria, Grandezas e Medidas e Probabilidade e Estatística. Assim sendo, foram selecionadas então as coleções Matemática (BIANCHINI, 2015) e Praticando Matemática 1379 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 (ANDRINI; VASCONCELLOS, 2011). Vale ainda ressaltar que os critérios mencionados, que orientaram a definição das coleções, visavam afunilar o escopo de possibilidades a serem pesquisadas. O próximo passo foi a análise dos livros. Ao longo do processo surgiram várias sugestões sobre qual fórmula seria mais adequada para ser selecionada. Após a análise, todavia, criou-se um conjunto final de fórmulas e símbolos que puderam ser subdividido em 11 grupos diferentes, mas que tinham relações entre si. No Quadro 1, identificam-se tais grupos, bem como um exemplo de cada um e sua representatividade no corpus. Observa-se que o grupo “Equações, inequações e sistemas” possui maior representatividade que os demais, pois se trata do assunto de maior complexidade em relação aos outros grupos. Já o grupo “Função modular” tem apenas um exemplo, pois se trata especificamente dos símbolos usados para identificar esse tipo de conteúdo (nesse caso, o par “| |”). Vale destacar neste momento que, no restante do texto, será adotada o termo “fórmula” para referir-se a um item de qualquer um dos grupos representados abaixo. QUADRO 1 – Grupos de conteúdo que compõem o conjunto de fórmulas Grupos Exemplo Total de “itens” no conjunto de fórmulas Números romanos I 7 Relações entre números e símbolos > 10 (– 2ax). (3⁄ (2ax2). (–1)⁄2a) = 0 12 25 + √4 2 r//s 7 3 4 3 Números decimais, dízimas 1,333... 2 Graus, unidades de tempo e símbolos 1° = 60´ 2 Equações, inequações e sistemas Potências e raízes Retas e ângulos Frações 8 Conjuntos numéricos Relações entre conjuntos Função modular xA 9 f (x)= |x + 1| 1 1380 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 3.2 Seleção de profissionais para a leitura do conjunto de fórmulas Após o extenso trabalho de análise e seleção de material para a geração de dados, ficou decidido entre os participantes do grupo de pesquisa que cada fórmula do conjunto deveria ser lido por cinco (5) profissionais da área da Matemática, que trabalham com o ensino de pessoas com deficiência visual e que possuem, no mínimo, um ano de experiência nesse processo. Embora o trabalho não tenha a intenção de argumentar sobre gêneros, é importante citar que o grupo que se disponibilizou a auxiliar a pesquisa se constituiu em um (1) homem e quatro (4) mulheres e a média de idade dos profissionais é de vinte e seis (26) anos. Dentre os selecionados, dois professores são ligados a cursos de Ciências Exatas da UFLA, duas professoras atuam em um centro de apoio educacional ao ensino de pessoas com deficiência visual e auditiva de uma cidade do estado de Minas Gerais e uma aluna é graduanda do curso de licenciatura em Matemática. É interessante mencionar ainda que dos cinco participantes, quatro declararam conhecer algum recurso de TA utilizado por pessoas com deficiência visual, o que sinaliza um conhecimento prévio básico de TA por parte dos participantes. 3.3 Especificação do procedimento de leitura de fórmulas Para compreender como se deu o procedimento de leitura de fórmulas é preciso aludir que os cinco professores leram as mesmas fórmulas matemáticas e, para que não houvesse nenhuma influência ou intervenção externa durante a gravação, as entrevistas com esses profissionais aconteceram em uma sala especial preparada para tal fim. Cabe destacar que as entrevistas ocorreram individualmente, ou seja, um participante de cada vez e em diferentes datas. Antes de iniciar as entrevistas, os professores foram informados de que eles seriam participantes colaboradores de um projeto de pesquisa cujo nome é NavMatBR e que, por trabalhar diretamente com coleta de dados com seres humanos, o projeto foi devidamente submetido ao Comitê de Ética da UFLA e havia sido aprovado. Os professores ainda foram esclarecidos sobre a natureza e os objetivos do referido projeto e também sobre a possibilidade que tinham de interromper a entrevista a qualquer momento e sem nenhum prejuízo. Na primeira etapa das entrevistas, antes efetivamente da leitura das fórmulas, foi solicitado aos professores que contassem um pouco Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1381 sobre suas experiências com o ensino de Matemática para pessoas com deficiência visual. Vale salientar que para que houvesse uma linha norteadora para esse relato, o entrevistador tinha em mãos um roteiro3 impresso com uma série de perguntas para também auxiliar os professores no prosseguimento de seus relatos. As principais respostas a essas perguntas foram também registradas por escrito durante esse momento da entrevista pelo próprio entrevistador. Na segunda etapa, cada professor recebeu, na forma impressa, o conjunto de fórmulas matemáticas que, como apresentado anteriormente, estavam organizadas em grupos de conteúdo, para serem lidas na sequência. Foi solicitado aos professores que lessem as fórmulas conforme fazem em sua prática diária, isto é, da forma mais natural possível, sem se preocupar com ritmo ou cadência de leitura. Ressaltase que os professores não tiveram nenhum treinamento sobre a tarefa, pois se assumiu que tinham experiência no ensino de pessoas com deficiência visual e também para que os dados pudessem ficar o mais perto do “natural” possível. Embora não seja foco dos objetivos de pesquisa assinala-se que, em média, as duas etapas das entrevistas duraram aproximadamente sessenta (60) minutos, e para realizar a leitura do conjunto de fórmulas, os professores levavam cerca de vinte (20) minutos. Reitera-se que as duas etapas das entrevistas gravadas foram transcritas para que a equipe do projeto pudesse conhecer um pouco mais sobre os participantes e também tomar notas importantes que viessem a nortear os trabalhos para as próximas etapas. 3.4 Transcrição das fórmulas Compondo a equipe multidisciplinar do projeto, a fase de transcrições das leituras das fórmulas foi realizada por duas graduandas dos 3º e 5º períodos do curso de Letras Português/Inglês da UFLA. O parâmetro técnico utilizado para as transcrições foi baseado no conjunto de normas4 para transcrição de entrevistas gravadas que constam na obra O discurso oral culto, sob a organização do linguista brasileiro Dino 3 Este roteiro pode ser conferido em Anexo I. Tais normas foram idealizadas para o Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta de São Paulo (Projeto NURC/SP – Núcleo USP), do qual o professor Dino Preti é Coordenador Científico. 4 1382 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 Preti (1999). A escolha dessas regras para a transcrição das entrevistas do projeto NavMatBR se deu em função da clareza de tais normas, que são bastante acessíveis e amplamente utilizadas em diversos projetos brasileiros que trabalham com transcrições de gravações. Ainda em torno das transcrições de entrevistas gravadas, Preti (2009) destaca, na obra Oralidade em textos escritos, que Quem faz pesquisa de língua oral se defronta, após colher o seu corpus, com o problema da transcrição do material colhido. Realizar o trabalho somente como texto gravado não é uma estratégia que se revele eficaz. O ideal será utilizar uma transcrição de base ortográfica que, com toda a precariedade que possa apresentar, é mais oportuna, a não ser que se tenha em mente fazer uma análise de ordem fonética/fonológica, quando então a transcrição fonética se impõe como única forma para a análise. Mas em todas as outras áreas de pesquisa, morfossintática, léxica, discursiva, será melhor começar o trabalho pela transcrição ortográfica, usando o texto oral sempre como um material de controle (p. 305). É válido frisar que, após discussões com os participantes do projeto, decidiu-se que as questões do âmbito fonético/fonológico não deveriam ser contempladas durante as transcrições, pois não eram o foco de atenção da pesquisa. Dessa forma, essa decisão permitiu que as transcrições fossem registradas ortograficamente, sem preocupações com a pronúncia. O conjunto de regras mencionado pode ser conferido no quadro em Anexo II. É importante registrar que as regras utilizadas permitiram uma padronização das transcrições, conferindo uniformidade ao trabalho. Especificamente sobre o processo de transcrição, cabe relatar que as transcrições completas das cinco gravações levaram em média o triplo do tempo de duração total de cada entrevista, visto que, por decisão do grupo de trabalho, tais registros foram feitos manualmente, sem o auxílio de softwares. 3.5 Anotação das fórmulas em MathML As fórmulas foram anotadas em MathML, que é uma linguagem de marcação matemática desenvolvida e recomendada pela W3C. MathML é utilizada para integrar fórmulas matemáticas nas páginas web Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1383 e em outros documentos. Por meio da representação de uma fórmula nesse formalismo, é possível gerar automaticamente um texto em linguagem natural que poderá ser lido por um leitor de telas. Para anotar fórmulas em MathML podem ser utilizados editores online ou editores de textos disponíveis nos computadores. A desvantagem destes últimos é que as anotações poderão conter muitos erros, como não fechar uma tag, o que impedirá processamentos automáticos posteriores. No projeto NavMatBR, foi utilizada a plataforma online Wolfram5 para gerar a codificação MathML de cada fórmula. Esse ambiente converte uma representação matemática em um código MathML. Para exemplificar um código na linguagem MathML, na Figura 1 apresenta-se a codificação da fórmula “a2 + b2 = c2”. Cada tag possui um significado no código. Por exemplo, <mi> é utilizada para marcar identificadores (variáveis e constantes), <mo> para operadores e <mn> para números. FIGURA 1 – Representação em MathML da fórmula a2 + b2 = c2 <!DOCTYPE html> <html> <body> <math> <mrow> <msup><mi>a</mi><mn>2</mn></msup> <mo>+</mo> <msup><mi>b</mi><mn>2</mn></msup> <mo>=</mo> <msup><mi>c</mi><mn>2</mn></msup> </mrow> </math> </body> </html> 5 Link da plataforma online Wolfram: https://reference.wolfram.com/language/XML/ tutorial/MathML.html 1384 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 4 Análise e discussão de dados Como já mencionado, este artigo descreve a criação de um corpus de fórmulas matemáticas para apoiar o desenvolvimento de recursos de TA para usuários com deficiência visual no Brasil. Nesta seção, relatase com mais detalhes a análise do material produzido pelos professores, as dificuldades no processo de transcrição e os direcionamentos a partir do corpus. No que diz respeito ao processo de transcrição manual das fórmulas lidas, pode-se dizer que alguns pontos se sobressaíram mais durante a verificação do todo. Alguns trechos foram selecionados e apresentados no Quadro 2, mas antes é preciso ressaltar que nas transcrições, todas as pausas, longas ou curtas, foram representadas por reticências (“...”). Destaca-se, no entanto, que as pausas feitas pelos entrevistados não foram propositais ou visando a uma melhor compreensão das pessoas com deficiência visual mediante o que foi lido. Essas pausas geralmente ocorriam quando as pessoas estavam pensando no que dizer. Já em relação à entonação, é preciso assinalar que não houve alterações intencionais no tom de voz, de modo que determinada parte ou termo da fórmula fossem relevados. Por seu turno, as pausas e a entonação, é pertinente registrar, são elementos prosódicos intrínsecos à fala e não devem ser ignorados no estudo da oralidade. Além desses dois, o tom, o acento, os alongamentos, a duração, a silabação, o ritmo, a fluência, as inflexões de voz etc. também são outros importantes elementos prosódicos que contribuem para uma melhor expressão de uma língua e, consequentemente, seu entendimento. Observa-se também que houve diferentes formas de leitura de alguns sinais gráficos, tais como parênteses, colchetes e chaves. É trivial o fato de que um enunciado não é construído a partir de palavras e orações amontoadas. E os sinais de pontuação, por sua vez, contribuem para a adequação sintática e semântica do texto escrito (BECHARA, 2009). Portanto, uma pontuação equivocada traria grandes prejuízos à comunicação. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1385 À grosso modo, e conforme uma concepção mais restrita, como aponta Bechara (2009), sinais como os parênteses, colchetes6 e chaves7 são exemplos de sinais de comunicação ou “mensagem” (ao contrário dos “separadores”, como a vírgula ou o ponto final). Ainda segundo o autor, Os parênteses assinalam um isolamento sintático e semântico mais completo dentro do enunciado, além de estabelecer maior intimidade entre o autor e o seu leitor. Em geral, a inserção do parêntese é assinalada por uma entonação especial (BECHARA, 2009, p. 612). Essa breve explanação do ponto de vista gramatical permitenos vislumbrar o uso desses sinais na língua e como eles contribuem para um melhor entendimento do texto. Já no que se refere à linguagem matemática, a utilização de tais sinais gráficos, sobretudo pela Álgebra, é bastante frequente e preponderante, possuindo diversos significados específicos e denotando, em especial, algum agrupamento. Pelo fato dos sinais supramencionados impactarem tanto a Gramática, quanto a Matemática, achou-se interessante registrar a forma como suas ocorrências eram lidas pelos professores. Alguns entrevistados liam “abre/fecha parênteses, chaves etc.”8 enquanto que outros faziam a leitura direta desses símbolos. Além disso, algumas vezes os símbolos eram lidos no singular (parêntese, colchete, chave) e outras vezes no plural (parênteses, colchetes, chaves). É conveniente ressaltar que ambas as formas utilizadas, plural e singular, são utilizadas na Língua Portuguesa e estão corretas, e não interferem na apreensão do conteúdo pelas pessoas com deficiência visual. Ainda no que tange esses símbolos, cabe dizer que apenas um dos entrevistados recorreu ao uso de parênteses adicionais “Intimamente ligados aos parênteses pela sua função discursiva, os colchetes são utilizados quando já se acham empregados os parênteses, para introduzirem uma nova inserção. Também se usam para preencher lacunas de textos ou ainda para introduzir, principalmente em citações, adendos ou explicações que facilitam o entendimento do texto. Nos dicionários e gramáticas, explicitam informações como a ortoépia, a prosódia etc.(...)” (BECHARA, 2009, p. 613). 7 “A chave [{}] tem aplicação maior em obras de caráter científico (...)” (BECHARA, 2009, p. 614). 8 A utilização ou não dos verbos, como “abrir/fechar”, enquadra-se na explicação do parágrafo posterior ao Quadro 2. 6 1386 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 às fórmulas para evitar o entendimento ambíguo em certos momentos (isso será retomado adiante). Além disso, constatou-se que alguns entrevistados ora trocavam algumas nomenclaturas, como no caso dos símbolos “” (lê-se “está contido”) e “” (lê-se “contém”), ora não se lembravam de outras. Em vistas a essa diferença no momento da leitura das fórmulas, sugere-se que talvez fosse mais interessante se o entrevistado tivesse acesso ao roteiro das fórmulas antes da entrevista, de modo que pudesse esclarecer eventuais dúvidas para se esquivar de confusões entre as nomenclaturas corretas de símbolos, sinais gráficos, operadores etc. Além do mais, considerando que esse trabalho se dá em um contexto educacional, no qual os professores normalmente preparam suas aulas antes de executálas, esse acesso poderia ajudar os profissionais do ensino a preverem possíveis dúvidas de seus alunos no momento da leitura. Em outras palavras, outra vantagem desse contato antecipado com o roteiro seria uma leitura mais “limpa”, em que os entrevistados evitariam hesitações e pausas sem vínculo com o processo de apreensão das fórmulas pelas pessoas com deficiência visual. Para evidenciar diferentes formas de leitura e problemas relacionados a nomenclaturas, foi selecionado um exemplo. No Quadro 2 são apresentadas as transcrições das cinco leituras feitas pelos professores, identificados por P1 a P5, para a fórmula “48 – {28 – 4. [3. (40: 5 – 3): (17 – 3.4)]} ≤ 4”. Registra-se que os parênteses adicionais mencionados por um dos entrevistados estão sublinhados, as ocorrências dos símbolos estão em negrito e os erros de nomenclatura/leitura, comentados anteriormente, estão destacados em itálico. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1387 QUADRO 2 – Exemplificação de leituras de uma fórmula 48 – {28 – 4. [3. (40: 5 – 3): (17 – 3.4)]} ≤ 4 P1 P2 P3 P4 P5 quarenta e oito menos colchete vinte e oito menos quatro vezes... colchete três vezes parênteses parênteses ... quarenta dividido por cinco fecha parênteses menos três fecha parênteses parênteses... dividido por... parêntese dezessete menos três... vezes quatro parênteses chave colchete... menor igual quatro quarenta e oito menos abre chave vinte e oito menos quatro vezes abre colchete três vezes abre parênteses quarenta dividido por cinco menos três fecha... parênteses dividido abre parênteses dezessete menos três vezes quatro fecha parênteses fecha colchete fecha chave menor igual a quatro quarenta e oito menos... abre chave vinte e oito menos quatro vezes abre colchete vezes... três vezes abre parêntese quarenta dividido por cinco menos três fecha parêntese... (divide) abre parêntese dezessete menos três vezes quatro fecha parêntese fecha colchete fecha chave e tudo isso tem que ser menor igual a quatro quarenta e oito menos abre parêntese... vinte e oito menos quatro vezes abre colchete três vezes abre parêntese quarenta dividido por cinco menos três fecha parêntese dividido abre parêntese dezessete menos três vezes quatro fecha parêntese fecha colchetes fecha chave menor ou igual a quatro quarenta e oito menos abre chaves vinte oito menos quatro vezes abre colchete três vezes abre parênteses quarenta dividido por cinco menos três fecha parênteses dividido abre parênteses dezessete menos três vírgula quatro fecha parênteses fecha colchete fecha chaves menor igual a quatro Outra questão interessante a ser destacada nos exemplos abordados diz respeito ao uso, do que é chamado aqui, de partículas conectivas: preposições, artigos, conjunções e os próprios verbos, inclusive. Ao analisar os excertos acima percebe-se que alguns entrevistados prezaram mais pelo uso dessas partículas conectivas enquanto que outros as excluíam, tornando suas leituras mais “enxutas”. Entretanto, embora se tenha a impressão de que essa leitura “enxuta” possa ser mais vantajosa para os alunos, alguns professores especialistas da área Matemática assinalam que quanto mais detalhada e completa é a leitura, melhor será o entendimento do ouvinte. Os referidos conectores foram realçados em negrito e as leituras mais aconselháveis, na visão dos especialistas, estão sublinhadas nos exemplos apresentados Quadro 3.9 9 O símbolo “Ø” foi utilizado para ressaltar que naquelas determinadas posições nenhum “conectivo” foi empregado pelos entrevistados durante a leitura. 1388 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 QUADRO 3 – Conectivos presentes nas leituras = Ø igual Ø / Ø igual a / é igual a / é igual Ø > Ø maior Ø / é maior que / Ø maior que ÷ dividido Ø / dividido por A B á união com bê / á união Ø bê É pertinente lembrar que são unidades linguísticas como essas que contribuem para a coesão de uma frase, texto etc. A coesão é um fenômeno essencial para uma língua, uma vez que “(...) diz respeito ao modo como os elementos linguísticos presentes na superfície textual encontram-se interligados, por meio de recursos também linguísticos, formando sequências veiculadoras de sentido” (KOCH, 1997, p. 35). Também se notou, em vários momentos durante as transcrições, uma grande diversidade de leituras para um mesmo termo. Para ilustrar esse fato, no Quadro 4 detalham-se as diversas leituras para cada termo da fórmula “25 + √4”. Em negrito estão ressaltadas as formas distintas. Para a leitura da potência houve quatro formas diferentes (“elevado à quinta”, “elevado à cinco”, “à quinta” e “elevado à quinta potência”), enquanto que na leitura da raiz houve duas variações (“raiz de” e “raiz quadrada de”). A variedade de termos existente para expressar um mesmo conceito é um movimento espontâneo e rotineiro em qualquer idioma (basta recuperarmos as noções de “variedade linguística” ou mesmo de “sinonímia”). Porém, nesse contexto matemático específico, acreditamos que essa variação não é positiva, pois ter-se um padrão facilitaria não somente para as pessoas que precisam compreender a leitura sem visualizar a fórmula, mas também para aqueles que têm que ensiná-las. 1389 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 QUADRO 4 – As diferentes leituras para a fórmula 25 + √4 √4 25 + P1 parênteses dois elevado à quinta... fecha o parênteses desse primeiro termo... mais raiz de quatro P2 dois elevado à cinco mais raiz de quatro P3 dois à quinta mais raiz de quatro P4 dois elevado à quinta potência mais raiz quadrada de quatro P5 dois elevado à cinco mais raiz quadrada de quatro Outro ponto que gerou dificuldade no momento da transcrição, e acredita-se que deverá ser também um problema para os leitores e para os ouvintes das fórmulas, refere-se ao duplo sentido (ambiguidade) das leituras, sobretudo no que toca ao grupo “Equações, Inequações e Sistemas”. Por vários momentos, a tarefa de distinguir os termos da raiz, das frações, das potências etc. do restante da operação tornou-se bastante difícil, principalmente quando se assume uma posição ocupada pela pessoa com deficiência visual, que não tem acesso à disposição visual das fórmulas. No que concerne à Linguística, “ambiguidade” trata-se da duplicidade de sentidos, em que palavras, expressões ou frases podem admitir mais de uma acepção. Uma vez que geram confusões, as ambiguidades precisam ser evitadas na linguagem formal (licenças poéticas à parte). Devido à desatenção que cerca a sua ocorrência, a ambiguidade é tida como um vício de linguagem. Dentre os diferentes tipos desse “fenômeno”, podemos citar a ambiguidade estrutural (ou sintática), na qual o duplo sentido é oriundo de uma má organização dos elementos internos constituintes da oração. O referido tipo de ambiguidade foi identificado nas leituras feitas pelos professores, já que houve dúvidas de interpretação por causa da ordem de alguns termos. No Quadro 5, apresentam-se duas fórmulas para explicitar essa situação. As partes “ambíguas” estão sublinhadas e as observações concernentes a elas estão destacadas em itálico. Na leitura da primeira fórmula, por exemplo, quando o termo “√1/9” é lido como “raiz de um sobre nove”, abre-se margem para “interpretá-lo” ainda como “√1/9”, o que muda totalmente a linha de raciocínio para a resolução do problema em que a fórmula é a base. 1390 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 QUADRO 5 – Exemplo de fórmulas cujas leituras continham ambiguidades ( ( (2 – √1/9)2 . √64 – 1 = 15 25 abre parênteses dois menos raiz de um sobre nove*... fecha parênteses elevado ao quadrado vezes abre parênteses raiz de sessenta e quatro dividido por vinte e cinco** menos um fecha parênteses igual a quinze * não é possível saber se é ou ** mesmo caso: não se sabe se a raiz envolve o 25 ou não (2,7/0,9) – ( ( 1 + 0,75  267 2.0,5 abre parêntese dois vírgula sete sobre zero vírgula nove fecha parêntese menos abre parêntese uma fração numerador um denominador dois vezes zero vírgula cinco mais zero vírgula setenta e cinco* fecha parêntese menor ou igual a duzentos e sessenta e sete * 0,75 poderia estar tanto no denominador quanto fora da fração A partir das observações sobre o material transcrito, constatase que não há um padrão de leitura de fórmulas matemáticas adotado pelos professores de Matemática de pessoas com deficiência visual. A variedade de formas de leitura compreende a simplificação de nomenclaturas, o acréscimo de símbolos que não estão explícitos, o uso ou não de conectivos. Assim, embora a linguagem matemática disponha de um conjunto de símbolos próprios, codificados e que se relacionam segundo determinadas regras, que supostamente são comuns a certa comunidade que as utiliza para comunicar, ela carece do complemento de uma linguagem natural. No caso de pessoas com deficiência visual, a linguagem utilizada para lhes apresentar fórmulas matemáticas deve ser a mais clara possível para evitar problemas de interpretação, que podem causar, por exemplo, erros de cálculos ou de aprendizagem de conceitos. A grande variação de leitura e a falta de um padrão são problemas que devem ser considerados para os estudiosos da área. Há uma premissa em anotação de corpus que, se as pessoas não podem concordar o suficiente, então ou a teoria está errada (mal declarada, instanciada) ou o processo em si é falho (HOVY; LAVID, 2010). No caso do corpus produzido neste trabalho, não é possível medir a concordância entre as formas de leituras, pois conforme já discutido, cada professor usou um vocabulário variado. Contudo, isso não invalida tal corpus, pois demonstra a riqueza que é inerente à linguagem natural, mesmo Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1391 quando utilizada para descrever a Matemática, que tem estilo próprio. Isto posto, ainda assim é possível estabelecer frequência de uso e padrões que poderão ser utilizados para geração de regras automáticas de leituras. Como resultado deste trabalho, destaca-se então a produção de um corpus de fórmulas matemáticas e a sua disponibilização para fins de pesquisa. O corpus contém 100 textos que correspondem às transcrições das fórmulas, totalizando 2600 palavras. Trata-se de um corpus piloto que não tem a pretensão de ser exaustivo, mas ser uma amostra para o fenômeno sob investigação. A média de palavras por transcrição é de 41,74. Além das transcrições, para cada fórmula estão disponíveis 5 arquivos de áudio (formato mp3) com as leituras das fórmulas, a representação em MathML e a imagem da mesma em formato jpeg. Os arquivos de áudio totalizam 59min20s.10 5 Considerações finais Este artigo apresentou o processo de criação de um corpus de fórmulas matemáticas para subsidiar o projeto de pesquisa NavMatBR, cujo objetivo principal é produzir um recurso de Tecnologia Assistiva que leia corretamente em português (Brasil) fórmulas matemáticas para usuários com deficiência visual. As principais contribuições do artigo foram: apresentar o processo de criação de corpus de fórmulas matemáticas e discutir esse processo, bem como a análise do material coletado. Embora o corpus produzido mostre que há variedades nas formas de leituras de uma mesma fórmula, ainda assim é possível extrair regras para serem inseridas em um recurso de TA. Como trabalhos futuros, temse a consulta a especialistas do ensino de Matemática para resolver os casos divergentes. Para esses casos, planeja-se utilizar os formalismos da Matemática para definir uma leitura padronizada. Além disso, serão elaboradas regras de leituras com base na frequência de uso e na sugestão dada pelos especialistas para os casos divergentes. Tais regras serão inseridas em um parser para expressões matemáticas, que funcionará junto com um leitor de telas. Com isso, almeja-se gerar um recurso de TA que auxilie pessoas com deficiência visual a obterem conhecimentos matemáticos por meio da web. 10 O corpus do projeto pode ser conferido no link: http://twixar.me/hx5K. 1392 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 Após a implementação do parser em um software que possa ser executado com fórmulas em MathML, serão realizadas avaliações envolvendo pessoas com deficiência visual visando identificar quão satisfatória é a compreensão que eles têm do conteúdo lido na forma de voz. A partir dessa avaliação, será possível identificar possíveis pontos de melhoria para reformular as formas de verbalização das fórmulas visando melhor compreensão por pessoas que não podem utilizar a percepção visual para fazer a leitura. Agradecimentos Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro à pesquisa. Agradecemos à Isabella C. Teófilo e Natália C. T. Nascimento, que atuaram na realização de parte das entrevistas e na preparação do conjunto de fórmulas elencadas para inclusão nas entrevistas com professores a partir da análise de livros didáticos de Ensino Fundamental da área de Matemática e de Ciências; à Rosana M. Mendes, Helena Libardi e Evelise R. C. G. Freire, que atuaram na orientação das análises de materiais didáticos para seleção das fórmulas e na análise das verbalizações das fórmulas matemáticas com contribuições do ponto de vista de Educação Matemática; à Otávio F. Oliveira e Stênio de Abreu, que atuaram na realização de entrevistas com professores; à Jorge S. R. Silva e Antônio A. O. Barbosa, que atuaram na análise do material coletado com contribuições do ponto de vista de computação e navegação em fórmulas. Contribuição dos autores Além de redigir o texto final do artigo, Lima e Rodrigues transcreveram e analisaram os dados coletados. Almeida contribuiu com as análises dos dados coletados e com a escrita do texto final. Cardoso e Freire organizaram a coleta de dados e também contribuíram com a escrita do texto final. Todos os colaboradores são membros do projeto de pesquisa NavMatBR. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 1393 Referências ANDRINI, A.; VASCONCELLOS, M. J. Praticando matemática. 2. ed. São Paulo: Editora do Brasil, 2011. 4 v. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BIANCHINI, E. Matemática. 8. ed. São Paulo: Moderna, 2015. 4 v. BRAILLE. In: Dicionário infopédia da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2003-2018. Disponível em: https://www.infopedia.pt/ dicionarios/lingua-portuguesa/braille. Acesso em: 17 nov. 2018. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 2. versão rev. Brasília, DF, 2016. Disponível em: http:// historiadabncc.mec.gov.br/documentos/bncc-2versao.revista.pdf. Acesso em: 10 set. 2017. FERREIRA, H. F. P. C. Leitura automática de expressões matemáticas – AudioMath. 2005. 287 p. Dissertação (Mestrado em Engenharia Informática) - Universidade do Porto, Porto, 2005. FERREIRA, H.; FREITAS, D. Leitura de fórmulas matemáticas para cegos e amblíopes: a aplicação AudioMath. In: IBERSCAP, 4., 2006, Vitória, ES. Anais […] Vitória, ES, 2006. v. 1, p. 137-142. FROMM, G. O uso de corpora na análise linguística. Revista Factus, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 69-76, 2003. HOVY, E.; LAVID, J. Towards a science of corpus annotation: a new methodological challenge for Corpus Linguistics. International Journal of Translation Studies, [S.l.], v. 22, n. 1, p. 13-36, jan./jun. 2010. IBGE, Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística. Pesquisa nacional de saúde 2013. Rio de Janeiro: IBGE, 2015. Disponível em: https:// biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv94522.pdf. Acesso em: 08 set. 2018. KOCH, I. G. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997. PRETI, D. (org.). O discurso oral culto. 2. ed. São Paulo: Humanitas Publicações – FFLCH/USP, 1999. 1394 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 PRETI, D. (org.). Oralidade em textos escritos. Projetos Paralelos – NURC/SP. v.10. São Paulo: Humanitas, 2009. SALAMONCZYK, A.; BRZOSTEK-PAWLOWSKA, J. Translation of MathML formulas to Polish text, example applications in teaching the blind. In: IEEE - INTERNATIONAL CONFERENCE on CYBERNETICS (CYBCONF), 2., Gdynia, Poland. Proceedings […]. Piscataway, NJ: IEEE, 2015. p. 240-244. Doi:10.1109/CYBConf.2015.7175939 SARDINHA, T. B. Linguística de corpus. Barueri, SP: Manole, 2004. SEPÚLVEDA, J. F.; FERRES, L. Improving accessibility to mathematical formulas: the Wikipedia Math Accessor. New Review of Hypermedia and Multimedia, [S.l.], v. 18, n. 3, p. 183-204, 2012. Doi: https://doi.org/10. 1080/13614568.2012.702134 SORGE, V.; CHEN, C.; RAMAN, T. V.; TSENG, D. 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Código de Identificação: ___________ Sexo: o Feminino o Masculino 3. 4. Idade: ____ anos. Formação: o 2º Grau completo o Ensino superior completo o Ensino superior incompleto o Pós-graduação completa o Pós-graduação incompleta 5. Há quanto tempo trabalha com alunos com deficiência visual? o Menos de 1 ano o 1 a 2 anos o 2 a 4 anos o 5 anos ou mais 6. Com quantos alunos com deficiência visual você já trabalhou ao longo da sua experiência com o ensino de Matemática? o Apenas 1 aluno o 2 a 5 alunos o 5 a 10 alunos o Mais de 10 alunos 7. Com quantos alunos com deficiência visual você trabalha atualmente? o Apenas 1 aluno o 2 a 3 alunos o 4 a 5 alunos o Mais de 5 alunos 8. Quantos alunos eram cegos congênitos? 9. Você sentiu diferença no trabalho com alunos cegos congênitos e não congênitos? Comente. 10. Em quais situações você trabalha/trabalhou com esses alunos? 11. Que tipo de conteúdo você ensina/ensinou para esses alunos? (Álgebra, Geometria, Trigonometria, etc.). 1396 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 12. Que tipo de material utiliza/utilizou nas suas aulas? Se necessário, marque mais de uma opção. o Material manipulativo o Livro didático o Softwares o Material impresso em Braille o Outros. ______________________________________ 13. Que tipo de dificuldades os alunos tinham? 14. Usava algum tipo de tecnologia na aula? Quais? o Sim Quais? ________________________________________ o Não 15. Conhece alguma tecnologia utilizada por cegos? Quais? o Sim Quais? ________________________________________ o Não 16. Qual sua experiência com computadores? Já usou um Ambiente de Aprendizado Virtual? Já utilizou algum editor de fórmulas? Qual? 17. O que você acha da experiência de ensinar Matemática/Física para alunos com deficiência visual? 18. Tinha/ tem algum tipo de apoio pedagógico/técnico? o Sim o Não 1397 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1371-1397, jul./set. 2019 ANEXO II Regras de Transcrição Ocorrências Sinais Incompreensão de palavras ou segmentos () Hipótese do que se ouviu (hipótese) Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ ou timbre) / Entonação enfática Maiúscula Exemplificação Do níveis de renda ( ) nível de renda nominal (estou) meio preocupado (com o gravador) E comé/e reinicia Porque as pessoas reTÊM moeda :: podendo Prolongamento de vogal e consoante aumentar para ::::: Ao emprestarmos éh::: ... dinheiro (como s, r) ou mais Silabação - Interrogação ? E o Banco... Central... certo? Qualquer pausa ... São três motivos... ou três razões ... que fazem com que se retenha moeda ... existe uma ... retenção Comentários descritivos do transcritor ((minúscula)) Comentários que quebram a sequência temática da exposição: desvio temático -- Por motivo tran-sa-ção -- Superposição, simultaneidade de vozes Ligando as linhas Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto. Não no seu início, por exemplo. (...) ((tossiu)) … a demanda de moeda - - vamos dar essa notação - - demanda de moeda por motivo a. na casa de sua irmã b. [sexta-feira? a. fazem LÁ b. [cozinham lá (...) nós vimos que existem... Pedro Lima... ah escreve na ocasião... “O cinema falado em língua estrangeira não precisa de nenhuma baRREIra entre nós...” 1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc) 2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? Você está brava?) 3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados. 4. Números por extenso. 5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa) 6. Não se anota o cadenciamento da frase. 7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::... (alongamento e pausa) 8. Não se utilizam sinais de pausa, típicas da língua escrita, como ponto e vírgula, ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa. Citações literais de textos, durante a gravação “entre aspas” Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 El punto y coma y los dos puntos: estudio historiográfico de las ediciones de la Ortografía de la Real Academia Española de 1741, 1844 y 20101 The semicolon and the colon: historiographical study of the editions of the Orthography of the Royal Spanish Academy of 1741, 1844 and 2010 Susana Ridao Rodrigo Departamento de Filología, Universidad de Almería, Almería / España sridao@ual.es Resumen: El objetivo de este trabajo es ofrecer un repaso historiográfico por la evolución de dos signos ortográficos que suelen suscitar bastantes dudas de uso: el punto y coma y los dos puntos. En particular, se someten a análisis tres obras sobre ortografía publicadas por la Real Academia Española en 1741, 1844 y 2010. Como conclusión destaca que el único uso que la edición de 1741 incorporaba para el punto y coma ha permanecido hasta la actualidad; en cambio, en los dos puntos se observa divergencia entre el empleo que describía la edición de 1741 frente a las publicaciones de 1844 y 2010. Palabras clave: ortografía; punto y coma; dos puntos; Real Academia Española. Abstract: The aim of this paper is to provide an historiographical review about the evolution of two orthographic signs that often lead to doubts about their use: the semicolon and the colon. In particular, three works about orthography published by the Royal Spanish Academy in 1741, 1844 and 2010 are submitted to analysis. In conclusion, this paper emphasizes that the only use the 1741 edition mentioned regarding the semicolon has remained until the present. In contrast, the colon shows divergence between its employment described in the 1741 edition and the 1844 and 2010 publications. Keywords: orthography; semicolon; colon; Royal Spanish Academy. 1 Este artículo se ha desarrollado en el seno del grupo de investigación HUM783, el cual está vinculado al centro de investigación CEMyRI de la UAL. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1399-1415 1400 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 Recebido em 26 de março de 2019 Aceito em 28 de maio de 2019 1 introducción El controvertido tema de la puntuación ha sido objeto de reflexión por distintos autores de reconocido prestigio. Ya en la Edad Antigua recomendaba Aristóteles (2009) en el Libro III de su obra Retórica una serie de reglas para el correcto uso de la lengua y, entre ellas, advertía que los textos no podían resultar complicados a la hora de puntuarlos, para lo cual citaba a Heráclito como modelo no deseado. Desde una aproximación al enfoque normativo, el Diccionario de Autoridades (Tomo V, 1737) de la Real Academia define la orthographia como «El Arte que enseña a escribir correctamente, y con la puntuación y letras que son necessarias, para que se le dé sentido perfecto, quando se lea. Es voz Griega, que significa recta escritúra». La edición número 23 del DLE de la RAE-ASALE (2014) indica que la ortografía es, en primera acepción, «Conjunto de normas que regulan la escritura de una lengua» y, en segunda acepción, «Forma correcta de escribir respetando las normas de la ortografía». En el ámbito comunicativo, la escritura ha de entenderse como un proceso en el que un individuo redacta un texto para que sea leído por otra persona y ambos han de compartir las convenciones del escrito con miras a un correcto entendimiento (SOTOMAYOR et alii, 2017, p. 318). Ciertamente, la escritura conforma un medio de comunicación clave para la sociedad actual, y en concreto la ortografía representa un papel protagonista en el ámbito del buen entendimiento comunicativo, sin olvidar que la manera de escribir del individuo es juzgada –ya sea consciente o inconscientemente– por sus lectores (CÁNOVAS, 2017, p. 7). Por tanto, dado que de ella depende el éxito o fracaso de los intercambios comunicativos e incluso la imagen social del escriba, se debería entender la escritura, en general, y la ortografía, en particular, como una habilidad de irrefutable relevancia. Determinadas cuestiones propician las faltas de ortografía: el poco interés que suele despertar la lectura entre los alumnos, la pérdida de prestigio que han ido sufriendo de manera progresiva las normas ortográficas, la propia forma de aprender las reglas de ortografía basándose en la memoria o, incluso, la metodología empleada por los docentes Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1401 (CARRATALÁ, 2014, p. 18-21). Por supuesto, no se puede pasar por alto el aprendizaje de la denostada gramática, dado que existen pruebas tanto teóricas como empíricas que corroboran que para el aprendizaje de algunos aspectos de ortografía resultan necesarios conocimientos gramaticales (TEBEROSKY, 2017, p. 23). A ello se le suma que los nuevos alumnos conforman generaciones digitales, en el sentido de que desde muy tempranas edades están familiarizados con la escritura en entornos electrónicos; en estos sujetos se observa una generalizada infravaloración de la corrección en la escritura, quizá como consecuencia de que en los contextos digitales son necesarias características como la instantaneidad, la improvisación, la velocidad o la economía lingüística (FERNÁNDEZRUFETE NAVARRO, 2015, p. 8). Por su parte, Montesinos López (2018, p. 281) sostiene la existencia en estos entornos virtuales de una ortografía fonética y abreviadora acompañada de una tendencia lúdica del lenguaje. Si se aprecia descuido a la hora de escribir las letras, esta situación se agrava en el caso de las tildes y resulta aún más despreocupado el empleo de los signos de puntuación. Como indica Carratalá (2014, p. 17), en estos momentos se vive un «caos ortográfico», el cual deja en evidencia que en el proceso de enseñanza/aprendizaje de la lengua española hay carencias que afectan más a la estructura que a la coyuntura. En palabras de Martínez de Sousa, «La ortografía es una de las asignaturas pendientes de la lengua española» (1995, p. 9). De facto, este desconcierto en torno a la ortografía –como es lógico– no solo compete a los aprendices, sino también a su enseñanza. El déficit de indagaciones concretas sobre el área de la ortografía dificulta su abordaje; esta situación de complejidad repercute en el docente, pues carece de material efectivo que le permita trabajar la ortografía con sus discentes (CAMPS et alii, 2007, p. 5). Los objetivos de esta modesta investigación se centran en dos cuestiones fundamentales: (1) examinar, desde el enfoque de la historiografía, cómo aparecen descritos dos signos de puntuación que suelen suscitar bastantes dudas de utilización por parte de los escritores como son el punto y coma y los dos puntos en la Orthographía española de 1741, el Prontuario de ortografía de la lengua castellana de 1844 y la Ortografía de la lengua española de 2010; y (2) tras un análisis de manera individualizada de las obras citadas, posteriormente se comparan y contrastan tanto las similitudes como las diferencias existentes con respecto a las normas de uso establecidas por las distintas ediciones. 1402 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 Por supuesto, también se aporta una panorámica sobre determinadas cuestiones en la evolución de la ortografía, en general, y de los signos de puntuación analizados, en particular, que sirven de punto de partida para enmarcar la presente investigación. De manera explícita conviene aclarar a esta altura de la investigación que se trata de un estudio historiográfico, no de un análisis normativo de la utilización de las propias normas de puntuación que fijan tales obras. 2 Breve panorámica de la evolución de la ortografía Sin duda, la ortografía constituye –en el plano escrito– un pilar fundamental para establecer las reglas que rigen la lengua española, junto al léxico y a las normas gramaticales. La necesidad de una ortografía en el seno de la Academia se puso de manifiesto al observar la carencia de modelos gráficos coherentes y aceptados de manera generalizada. Precisamente, en el tomo primero del Diccionario de Autoridades de 1726 se habla de la relevancia del código ortográfico, en particular en el Discurso proemial de la orthographía de la lengua castellana (RAEASALE, 2010, p. XXXVII). Aparte, la Academia se basó en reglas para establecer la ortografía, ofreciendo soluciones que en la mayor parte de los casos se aproximaban al origen de las palabras, si bien en la práctica casaron esta tendencia etimologista con el uso que se había extendido y con la pronunciación (FREIXAS, 2016, p. 145). Existe una pugna entre, por un lado, conservar la escritura de las palabras en función de su procedencia y, por el otro, fundamentar tal escritura en el plano fonético. En el siglo XV, la ortografía española apoyaba con firmeza el basarse en criterios de pronunciación, tal como se puede observar en Nebrija que, a su vez, bebe de Quintiliano; en cambio, en la Orthographía española de 1741 desaparece este monopolio para dar paso a una triple fuente: la pronunciación convive con la etimología y con el uso (PEñALVER CASTILLO, 2015, p. 325). En el Discurso proemial de la orthographía de la lengua castellana se recopilan las primeras normas ortográficas de la Real Academia Española, si bien en el año 1741 se publica la primera edición de la ortografía académica. La segunda ve la luz en 1754, la tercera en 1763, la cuarta en 1770, la quinta en 1775, la sexta en 1779, la séptima en 1792, la octava en 1815 y la novena en 1820, que se reimprimió en 1826. Entre los años 1820 y 1959 la ortografía se incluye como parte de Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1403 la gramática académica. La quinta edición de la Gramática de la lengua castellana es publicada en 1854, la sexta en 1858, la séptima en 1862, la octava en 1864, la novena en 1865, la décima en 1866, la undécima en 1867, la duodécima en 1870, la decimotercera en 1874, la decimocuarta en 1878, la decimoquinta en 1880, la decimosexta en 1883, la decimoséptima en 1885, la decimoctava en 1888, la decimonovena en 1890, la vigésima en 1895, la vigesimoprimera en 1900, la vigesimosegunda en 1901, la vigesimotercera en 1904, la vigesimocuarta en 1906, la vigesimoquinta en 1908, la vigesimosexta en 1909, la vigesimoséptima en 1911, la vigesimoctava en 1913, la vigesimonovena en 1916, la trigésima en 1917, la trigésima primera en 1920, la trigésima segunda en 1924, la trigésima tercera en 1928 y la trigésima cuarta en 1931. En 1844 aparece el Prontuario de la ortografía de la lengua castellana –cuenta con trece ediciones y la última fechada en 1866– con el carácter de uso obligatorio en las escuelas públicas. Años más tarde, en 1870 nace el Prontuario de ortografía de la lengua castellana en preguntas y respuestas, cuya última edición data de 1931, habiendo tenido treinta y una ediciones. Además, la primera edición de Nuevas normas de prosodia y ortografía sale en 1952, en 1959 la segunda y en 1965 la tercera. En 1969 tiene lugar la publicación de una nueva Ortografía, la cual «incorpora al texto tradicional las nuevas normas declaradas de aplicación preceptiva desde 1.º de enero de 1959» y en 1974 una nueva edición que mantiene «las nuevas normas declaradas de aplicación preceptiva desde 1.º de enero de 1959». En 1999 ve la luz otra edición de la Ortografía de la lengua española, que es la primera acordada por todas las academias de la lengua española. En 2010 se publica la Ortografía de la lengua española, la cual conforma la primera ortografía académica que incluye una descripción pormenorizada del sistema ortográfico español. La versión abreviada de esta última aparece en 2012 con el título Ortografía básica de la lengua española. El análisis se ha acotado a tres obras dada la inviabilidad de incluirlas todas; como es de esperar, se han seleccionado las más significativas. Desde un enfoque cuantitativo, sería conveniente abordar la utilización de los signos de puntuación en los últimos siglos, dado que no existe heterogeneidad en cuanto a su frecuencia de uso. En la siguiente tabla, aportada por Miller (1969, apud CASSANY, 1995, p. 179), se aprecian en frecuencia absoluta datos numéricos del empleo de los signos de puntuación –en concreto, la coma, el punto, el punto y coma, los dos puntos, 1404 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 el guion, los paréntesis, los puntos suspensivos, los signos de interrogación y los signos de exclamación–; estos datos son el resultado del análisis de obras escritas por reconocidos literatos de los siglos XVIII, XIX y XX. Si bien estos autores analizados no escriben en español, se citan estos datos porque –según las fuentes consultadas– existe una carencia de estudios desde un perfil cuantitativo que arrojen luz sobre el empleo de los signos de puntuación en español tomando como corpus documentos extensos. TABLA 1 – Frecuencia absoluta en el uso de los signos de puntuación en literatos de los siglos XVIII, XIX y XX , . ; : - () ... ¿? ¡! Siglo XVIII Daniel Defoe 718 134 121 10 4 3 0 8 2 Samuel Richardson 534 161 85 37 65 34 0 33 51 Henry Fielding 584 198 119 14 22 19 0 28 13 Jane Austen 522 270 6 31 4 0 2 4 92 Siglo XIX Walter Scott 687 177 58 1 48 1 0 12 12 W. M. Trackeray 569 213 64 22 44 20 0 30 3 Charles Dickens 583 233 57 12 35 20 0 25 34 George Meredith 466 336 58 25 29 4 6 32 44 Thomas Hardy 510 323 55 9 41 6 3 31 20 Siglo XX Edith Wharton 433 302 65 31 70 7 15 50 27 H. G. Wells 441 337 30 3 53 1 32 30 31 Arnold Bennett 440 368 31 20 19 8 7 37 69 John Galsworthy 447 292 61 28 58 5 1 38 70 Angela Thirkell 586 368 4 5 3 2 0 28 9 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1405 Las cifras de esta tabla ratifican que las preferencias por el uso de los distintos signos de puntuación han variado con el transcurso del tiempo. Los signos a los que se recurre con mayor asiduidad son, en primer lugar, la coma y, en segundo lugar, el punto. En particular, se aprecia que conforme pasan los años los autores examinados optan en mayor medida por el punto frente a la coma, lo que indica que las oraciones evolucionan hacia la simplificación. Por su parte, los dos puntos presentan una frecuencia de utilización bastante parecida en los periodos analizados. En el caso del punto y coma, hay un marcado descenso, igual que los paréntesis. En contraposición, se ha incrementado el uso de los puntos suspensivos. También ha aumentado el empleo de los signos de interrogación y de exclamación (CASSANY, 1995, p. 179-180). 2.1 El punto y coma y los dos puntos A pesar de la heterogeneidad existente durante la Edad Media en los signos de puntuación, sí se hallaban con frecuencia combinaciones de rayas y curvas con puntos con la finalidad de crear nuevos signos. El íncipit del punto y coma se les otorga a los humanistas italianos bajo el nombre de semicolon; en particular, la imprenta –que se hallaba falta de nuevos signos de puntuación con los que cubrir la necesidad de facilitar la diferenciación entre las diversas unidades del discurso– posibilitó su difusión a un ritmo bastante elevado. La llegada a España de este signo de puntuación se registra en el año 1606 de la mano del célebre gramático Felipe Mey con el nombre de colon imperfecto; precisamente el hecho de que también en esa época se usaran los dos puntos como signo intermedio ralentizó su expansión (RAE-ASALE, 2010, p. 349). Los dos puntos ya se utilizaban en latín para separar unidades intermedias. El nombre clásico de este signo ha sido colon o colon perfecto. Desde la remota etapa visigótica se registran documentos con combinaciones de dos, tres o más puntos. En función de los autores, existe una heterogeneidad en los signos de puntuación, que no solo atañe a las funciones características de cada uno, sino también al nombre designado. En el Siglo de Oro se constata la convivencia de los dos puntos y el punto y coma como signos que señalan una pausa intermedia de manera que resulta complicado discernir entre el uso de uno y otro signo, si bien con el paso del tiempo los dos puntos han evolucionado hacia el valor anunciativo que hoy los define (RAE-ASALE, 2010, p. 355). 1406 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 A esta altura, resulta conveniente aportar información concreta sobre la diversidad terminológica de los signos de puntuación estudiados en la presente investigación. Así pues, el símbolo que actualmente se conoce como dos puntos (:) es denominado comma por Nebrija (1502), coma o cortadura y articulus por Venegas (1531), comma por Dolet (1540), dos puntos por Torquemada (1547), colum por Yciar (1548), coma por Villalón (1558), geminatio puncti por Aldo Manuzio (1561), dos puntos por Guillermo Foquel (1593), colon perfecto por Felipe Mey (1606), colon por Jiménez Patón (1614), kolon por Correas (1630), colón perfecto por Juan Villar (1651) y colon perfecto o dos puntos por Víctor de Paredes (1680). En cambio, lo que hogaño se entiende por punto y coma (;) aparece con menos frecuencia y más tardíamente en los estudios lingüísticos anteriores a la creación de la Real Academia Española: Aldo Manuzio (1561) lo llama punctum semicirculum positum, Felipe Mey (1606) colon imperfecto, Correas (1630) hupokolon, Juan Villar (1651) colón imperfecto y Víctor de Paredes (1680) colon imperfecto o punto y medio (SEBASTIÁN MEDIAVILLA, 2000, p. 78-99). 3 Análisis 3.1 Orthographía española (1741) 3.1.1 El punto y coma En esta primera edición tan solo se alude a este signo de puntuación de manera muy lacónica, pues presenta su forma de escritura y, a continuación, le confiere únicamente un uso en estructuras adversativas; en particular, informa de que este signo de puntuación ha de colocarse justo antes de dicha partícula adversativa (RAE, 1741, p. 337). 3.1.2 Los dos puntos Se limita a indicar cómo se escribe este signo y a aclarar un solo empleo: en casos de oraciones incompletas desde el punto de vista semántico, de ahí que motivado por esa falta de contenido resulte necesario incorporar más información que posibilite completar el significado de la oración (RAE, 1741, p. 337-338). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1407 3.2 Prontuario de ortografía de la lengua castellana (1844) 3.1.1 El punto y coma Se observan cuatro reglas para el uso del punto y coma: (1) si la oración contiene varias comas, el punto y coma sirve para representar una pausa mayor que tales comas; (2) recomienda colocar un punto y coma precediendo a las partículas adversativas cuando el periodo sea extenso; (3) para separar cláusulas con cierta independencia semántica; y (4) para distinguir entre proposición y el ejemplo con que se ilustra tal idea, de ahí que indique que por ejemplo vaya precedido de un punto y coma (RAE, 1844, p. 29-31). 3.1.2 Los dos puntos Este Prontuario recopila cinco reglas para la utilización de los dos puntos: (1) para citar las palabras literales de un autor o interlocutor; (2) cuando existen varias proposiciones seguidas sin interrupción en las que cada una posee sentido gramatical se recomienda dividirlas con dos puntos; (3) en los casos en que hay una proposición general de la que emanan otras cláusulas que la explican y comprueban; (4) en los periodos completos seguidos de una sentencia o proposición breve que es deducción de tal periodo; y (5) en expresiones prototípicas de saludo que suelen encabezar las cartas (RAE, 1844, p. 31-32). 3.3 Ortografía de la lengua española (2010) 3.1.1 El punto y coma La RAE-ASALE (2010) durante seis páginas (349-354) aborda esta cuestión. Comienza aportando la descripción gráfica que le corresponde al punto y coma. Tras ello, aborda la correcta ortotipografía: junto a la palabra o signo que lo precede y separado de un espacio de la palabra o signo que va después. Tras el punto y coma ha de utilizarse la minúscula inicial, con la excepción de los textos de naturaleza lingüística, puesto que es muy característico utilizar este signo de puntuación para separar ejemplos, de manera que se escribe con mayúscula inicial tras el punto y coma. Como signo delimitador principal, posee la función de dividir unidades textuales básicas. Si bien con miras a puntuar un texto la extensión de una pausa resulta un criterio poco sólido, existe la dilatada 1408 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 creencia de que el punto y coma marca una pausa mayor que la coma. Aclara explícitamente que el hecho de que el punto y coma y la coma compartan usos no implica que siempre sean intercambiables. Además, se pueden observar similitudes entre el punto y coma y el punto en tanto que el punto y coma también sirve para separar oraciones independientes; ello no significa que se trate de un signo del que se pueda prescindir, dado que existen la coma o el punto. He aquí dos valores que evidencian la necesidad del punto y coma: (1) arroja luz sobre las relaciones entre las distintas unidades que componen los textos de forma que jerarquiza la información, y (2) permite señalar la vinculación semántica establecida entre las unidades lingüísticas, de manera que denota una separación mayor entre las unidades con respecto a una coma, pero una menor unidad con respecto a un punto. Establecer una nómina de los usos del punto y coma resulta una tarea muy compleja dado que no solo depende del contexto, sino también de la extensión y la complejidad de las secuencias que conforman la oración, e incluso de la presencia o no de otros signos de puntuación. Pese a ello, la RAE-ASALE establece la siguiente taxonomía: (1) entre oraciones yuxtapuestas; (2) entre unidades coordinadas; (2.1) coordinación copulativa y adversativa; (2.2) coordinación adversativa; (3) ante determinados conectores, si bien recomienda utilizar punto cuando los periodos sean bastante extensos. 3.1.2 Los dos puntos Este signo de puntuación es descrito por la RAE-ASALE (2010) en once páginas (354-364). En primer lugar, ofrece una descripción gráfica de los dos puntos. A continuación, aporta las normas ortotipográficas que rigen el empleo de este signo de puntuación: unidos a la palabra o signos que los antecede y separados por un espacio de la palabra o signo que aparece después. Se escribe con minúscula el vocablo que está detrás de los dos puntos en los casos en que anuncian una enumeración o cuando establecen relaciones semánticas entre las unidades que separan. Por el contrario, se ha de poner en mayúscula inicial la palabra que sigue a los dos puntos si introducen una cita y en ciertos usos epistolares. Para un estudio detallado de cuándo se debe utilizar la minúscula o la mayúscula tras los dos puntos, remite a otro epígrafe. Del mismo modo, menciona el uso no lingüístico de los dos puntos (en ámbitos numéricos como es Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1409 la división matemática o la separación entre las cifras que indican la hora de manera digital), si bien deriva al epígrafe al que compete dicha cuestión. Enseguida, se detiene en la función delimitadora de los dos puntos (que resulta afín con otros signos muy empleados como son la coma, el punto o el punto y coma), a la vez que recomienda no abusar de este signo de puntuación. En cuanto a los usos, distingue siete tipologías: (1) en enumeraciones con un elemento anticipador; (2) en estructuras no enumerativas con un elemento anticipador; (3) en el discurso directo; (4) entre oraciones yuxtapuestas que expresan causa-efecto, conclusión, consecuencia o resumen de la oración anterior, verificación o explicación de la oración precedente la cual suele presentar un significado más amplio y oposición; (5) con conectores, si bien no es muy habitual, pueden preceder a un conector discursivo en casos en que se inicie un discurso directo, o bien tras determinados conectores que anuncian una explicación, un resumen, una ampliación y una contraargumentación; (6) en títulos y epígrafes; y (7) en algunos escritos específicos como las cartas tras el saludo que las encabeza y en textos jurídicos y administrativos después de determinados verbos que indican el objetivo del documento, como certificar, exponer o solicitar. Por último, examina la concurrencia de los dos puntos con otros signos: con el punto que cierra las abreviaturas puesto que este no se considera un signo de puntuación, con los signos de interrogación, de exclamación, los puntos suspensivos, las comillas, los paréntesis, los corchetes o las rayas. 4 Discusión y conclusiones Con respecto a la información analizada, se ha de indicar que la Orthographía española (RAE, 1741), tanto en el punto y coma como en los dos puntos, se limita a indicar cómo se representan ambos signos de puntuación y tan solo explica un uso, que en el caso del punto y coma se circunscribe a construcciones adversativas y en el de los dos puntos a oraciones que se complementan desde el punto de vista semántico. Por su parte, el Prontuario de ortografía de la lengua castellana (RAE, 1844) recoge cuatro reglas para el empleo del punto y coma, de las cuales la segunda coincide con los preceptos aportados en la edición de 1741. Las otras tres responden a: representar pausas más largas que una coma, dividir cláusulas con significados diferentes y separar la 1410 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 explicación del ejemplo que la ilustra. Con respecto a los dos puntos, incluye cinco reglas, de ellas la primera la dedica a la separación de citas literales y la quinta a los saludos protocolarios en las cartas; en cambio, las otras tres normas restantes las centra en la división entre oraciones que poseen relación semántica entre sí, ya sean varias proposiciones seguidas con autonomía gramatical individual (regla 2) y la explicación (regla 3) o la deducción (regla 4) de lo aportado en la oración precedente. La Ortografía de la lengua española (RAE-ASALE, 2010) utiliza una estructura similar para describir el punto y coma y los dos puntos: en primer lugar, describe su representación gráfica, después identifica la correcta ortotipografía (ambos se escriben pegados a la palabra o signo precedente y separados por un espacio de la palabra o signo que les sigue, pero existen divergencias en cuanto a la escritura en minúscula o mayúscula inicial de la palabra que se escribe tras estos signos de puntuación); posteriormente aborda la función delimitadora y, por supuesto, detalla los usos. Las diferencias radican en que en el punto y coma –tras la explicación ortotipográfica– aporta las similitudes que comparte con la coma y con el punto, para desembocar en la justificación de los usos propios del punto y coma, de forma que argumenta la existencia de este signo. Como cierre al apartado dedicado al punto y coma, se echa de menos que no detalle la concurrencia con otros signos de puntuación, cuestión que sí se aprecia en los dos puntos. Aparte, en los dos puntos se alude a usos no lingüísticos bastante frecuentes, como es el símbolo matemático que significa división y en la escritura de la hora de forma digital. Se ha de destacar que las ediciones de 1741 y 2010 tienen como denominador común la descripción gráfica de estos signos de puntuación, asunto que pasa inadvertido en la publicación correspondiente al año 1844. Por tanto, los usos es la única cuestión que aparece en las tres ediciones comparadas. En el caso del punto y coma no se observa información contradictoria en las distintas ediciones examinadas, sino que en la de 1741 tan solo prescribe su uso antes de un nexo adversativo, en la de 1844 se le añaden tres empleos más: para diferenciarlos de las comas indicando pausa más larga, para marcar la división de oraciones independientes semánticamente y para separar una proposición de su ejemplo. Con respecto a los usos que describe en la edición de 2010, habla explícitamente de su empleo en oraciones yuxtapuestas, incluye las coordinadas copulativas y disyuntivas, y se recomienda su utilización Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1411 ante determinados conectores. Por ende, en esta última edición se observa mejor diferenciación de recomendaciones generales con utilizaciones más específicas, abordaje del que carece la edición de 1844. Centrados en el análisis de los dos puntos, también se aprecia una evolución en la descripción alcanzando mayor detalle en la última publicación. En la primera edición, la de 1734, tan solo aludía a su uso en frases incompletas de manera que resultaba necesaria otra oración para completar el significado. En cambio, en 1844 se incluyen cinco usos, de los cuales ninguno se corresponde con el que se ofrecía en la primera edición. En particular, se recomienda su utilización en citas literales, entre distintas proposiciones con independencia gramatical, para diferenciar entre proposición general y la que la explica, ante una deducción de periodo anterior y en encabezamientos de saludos en cartas. La edición de 2010 recoge siete usos, de ellos resultan novedosos su empleo como elemento anticipador ya sea en enumeraciones o no, ante determinados conectores que se vinculan al discurso directo o que comunican una explicación, un resumen, una ampliación y una contraargumentación, en títulos y epígrafes y en textos jurídicos o administrativos delante de ciertos verbos. El cuarto uso que establece la edición de 2010 puede entenderse como una reformulación de la regla 3.ª e incluso –aunque resulta bastante comprometida esta asociación– de la regla 4.ª de la edición de 1844. El empleo de este signo de puntuación para indicar el estilo directo se observa tanto en la edición de 1844 como en la de 2010. Del mismo modo, la utilización de los dos puntos en los saludos que inician las cartas aparecen en las ediciones de 1844 y 2010, en ambos casos como última norma. Sin duda, analizar la historiografía de los signos de puntuación constituye un vasto campo de estudio en el que no faltan las dificultades. Así pues, la evolución y el desarrollo de los signos de puntuación no solo afecta a cuestiones como el número, el nombre o la forma, sino también a su utilización (GARCÍA FOLGADO, 2002, p. 153). Un análisis detallado del devenir de la puntuación en el mundo occidental puede consultarse en Parkes (1993). En cambio, la presente investigación se ha centrado en indagar –desde un enfoque historiográfico– la evolución de dos signos de puntuación que suelen suscitar bastantes dudas por los escribas. Una muestra de la confusión terminológica, por citar más ejemplos aparte de los mencionados más arriba, se halla en el siglo XVI en la conocida Gramática castellana (1558) de Villalón, en la cual este autor cita lo que 1412 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 llama coma si bien su representación gráfica se corresponde con lo que hogaño se denomina dos puntos e indica que se coloca en la cláusula entre una oración u otra; a continuación, aborda el llamado colum escrito como lo que hoy en día se entiende por coma con la función de ubicarse en la cláusula junto a cada verbo que acaba oración. Se ha de precisar que la clasificación de los signos de puntuación y auxiliares que aparece en el Discurso prohemial de la lengua castellana se hace eco de la establecida por Villar (1651) (PEñALVER CASTILLO, 2015, p. 326). A su vez, conviene justificar la dependencia bidireccional de diccionario y ortografía, en tanto que el diccionario está condicionado por la fijación ortográfica a la hora de disponer los lemas y los artículos, a la vez que la ortografía se ve reflejada en el diccionario porque en este se sanciona o no la escritura de las palabras, de forma que no solo normaliza sino también fija la ortografía (ALCOBA, 2012, p. 274). Por otro lado, se ha de tomar en consideración que el Prontuario de 1844 representa el primer paso que efectúa la Real Academia con el objetivo de adaptar la ortografía al campo de la enseñanza de la lengua (PEñALVER CASTILLO, 2015, p. 316). En suma, la ortografía conforma el pilar básico no solo para el entendimiento comunicativo en el plano escrito del español, sino que está inexorablemente enlazada con la confección de diccionarios, con el estudio de la gramática y, por supuesto, con la enseñanza del español como lengua extranjera. A su vez, indagar en la evolución diacrónica de los signos de puntuación permite constatar cómo se han ido complejizando las reglas sobre su uso. En el caso concreto de los dos signos aquí examinados –el punto y coma y los dos puntos– resulta bastante paradójico que, por una parte, se documente su utilización en escritos tan tempranos y que, por otra parte, en la actualidad el punto y coma lamentablemente está casi extinguido y los dos puntos se emplean en escasas ocasiones; de hecho, incluso en las aulas universitarias los discentes con frecuencia demuestran desconocer el uso de estos dos signos de puntuación. Esta investigación se cierra evocando el peculiar sentido del humor del prestigioso literato Stendhal, quien en La Cartuja de Parma pone en boca de Ludovico la polémica frase «La ortografía no da talento» (1987, p. 317). Reflexionar sobre dichas palabras corrobora el ingente abismo existente entre el pensamiento de buena parte de la sociedad y el rigor filológico necesario para que la comunicación resulte efectiva. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1399-1415, jul./set. 2019 1413 Referencias ALCOBA, S. El proceso de fijación ortográfica de las palabras en los DRAE. En: CLAVERÍA NADAL, G.; FREIXAS, M.; PRAT SABATER, M.; TORRUELLA CASAñAS, J. Historia del léxico: perspectivas de investigación. Madrid: Iberoamericana, 2012. p. 273-302. Doi: https:// doi.org/10.31819/9783865278784-009 ARISTÓTELES. Retórica. Introducción, traducción y notas de Alberto Bernabé. Madrid: Alianza, 2009. CAMPS, A.; MILIAN, M.; BIGAS, M.; CAMPS, M.; CABRÉ, P. La enseñanza de la ortografía. Barcelona: Graó, 2007. CÁNOVAS, M. La Ortografía en Secundaria y en Bachillerato: análisis de los errores más frecuentes en letras. Tejuelo. Didáctica de la Lengua y la Literatura, Badajoz, España, v. 25, p. 5-30, 2017. 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Arte de la lengua española, reducida a reglas, y preceptos de rigurosa gramática, con notas y apuntamientos utilíssimos para el perfeto conocimiento de esta, y de la lengua latina. Valencia: Francisco Verengel, 1651. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 O papel dos marcadores prosódicos na fluência de leitura The role of prosodic markers in reading fluency Alcione de Jesus Santos Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais /Brasil alcionejs@yahoo.com.br Vera Pacheco Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, Bahia / Brasil vera.pacheco@gmail.com Marian dos Santos Oliveira Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Vitória da Conquista, Bahia / Brasil mdsoliveira@gmail.com Resumo: A escrita conta com recursos gráficos como marcadores prosódicos gráficos e marcadores prosódicos lexicais que indicam aspectos melódicos e rítmicos para o leitor (CAGLIARI, 2002a, 2002b; CHACON, 1998). O leitor fluente deve necessariamente recuperar, em sua leitura, esses aspectos prosódicos (SHREIBER, 1991; KUHN et al., 2003; BREZNITZ, 2006). Portanto, a prosódia é vista como uma característica que deve ser considerada para constatar a fluência. Nosso objetivo foi caracterizar a leitura em voz alta de leitores em diferentes níveis de ensino: leitores do 2º ano de ensino primário, leitores do 2º ano de ensino médio; leitores com nível de graduação, a fim de entender a relação entre a fluência de leitura e questões prosódicas. Preparamos um design experimental, no qual controlamos as frases-alvo sob o impacto de marcadores prosódicos. Preparamos duas condições experimentais: uma para o marcador prosódico lexical “perguntou” e uma para o marcador prosódico lexical “disse”. Através do Praat, medimos os valores da frequência fundamental de todas as sílabas tônicas das frases-alvo e extraímos as curvas melódicas das frases-alvo. Os resultados mostram que a capacidade de recuperar aspectos prosódicos incitados em texto por marcadores prosódicos são diretamente proporcionais aos níveis de escolaridade. Palavras-chave: fluência de leitura; leitura e escrita; marcadores prosódicos. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1417-1457 1418 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 Abstract: Writing has graphic resources such as graphic and lexical prosodic markers that indicate melodic and rhythmic aspects to the reader. (CAGLIARI, 2002a, 2002b); CHACON, 1998). The skilled reader must necessarily recover, in her/his reading, these prosodic aspects. Therefore, prosody is seen as a feature that should be considered during reading evaluation in order to check reading fluency. (SHREIBER, 1991; KUHN, 2003 et al.; BREZNITZ, 2006). This paper aims to characterize reading aloud of readers at different levels of education: readers on the 2nd year of primary education, readers on the 2nd year of high school and readers at the college undergraduate level in order to understand the relationship between reading fluency and prosodic issues. An experimental design was set, in which we control target phrases under the impact of prosodic markers. We also prepared two experimental conditions: one for the lexical prosodic marker “asked” and another for the lexical prosodic marker “said”. Through Praat we measured the values of fundamental frequency of all the tonic syllables of the target sentences and extracted the melodic curves of the target phrases. The results show that the ability to recover prosodic aspects brought about in text by prosodic markers is directly proportional to levels of education. Keywords: reading fluency; reading and writing; prosodic markers. Recebido em 06 de fevereiro de 2019 Aceito em 19 de maio de 2019 Introdução No processo de leitura, estão envolvidos mecanismos complexos como decodificação e compreensão de sinais gráficos que comportam aspectos sintáticos e semânticos. Dentre os aspectos envolvidos no desempenho da leitura, destaca-se a prosódia que, segundo Cagliari (2002a, 2002b), mais que a função de enfeitar o texto, exerce função fundamental de tornar o texto compreensível. Autores como Shreiber (1991), Kuhn et al. (2003) e Breznitz (2006) defendem os aspectos prosódicos no desempenho da leitura quanto à relevância destes na compreensão do material lido. Assim, leitores capazes de utilizar os aspectos prosódicos de forma apropriada apresentam uma leitura mais fluida, expondo características de expressividade da linguagem oral somadas à precisão, velocidade e compreensão podem ser considerados leitores fluentes. Um texto escrito conta com recursos gráficos como Marcadores Gráficos (MG) e marcadores prosódicos lexicais (MPLs) que direcionam Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1419 o leitor para o modo de procedência com as variações melódicas e entoacionais da passagem que estão sob o escopo dessas marcas gráficas. (CAGLIARI, 2002a, 2002b; PACHECO, 2006). Como a finalidade do texto escrito é a leitura, quer silenciosa quer em voz alta, um leitor fluente deverá ser capaz de, necessariamente, recuperar e apresentar (na produção de leitura) e recuperar mentalmente (na leitura silenciosa), esses aspectos prosódicos. Conforme Cagliari (1989), para que a leitura de um texto escrito seja de fato significativa, é necessária procedência adequada com as variações melódicas e entoacionais incitadas por marcadores. Partindo do pressuposto de que quanto maior for a experiência e maior o hábito de leitura do leitor, mais marcada prosodicamente será a sua leitura, espera-se que um bom leitor apresente variações prosódicas satisfatórias desencadeadas por marcadores prosódicos. Nosso objetivo foi avaliar a leitura em voz alta de textos ricos em marcadores prosódicos realizada por indivíduos estudantes das séries iniciais, iniciando o contato com a leitura; estudantes em séries mais avançadas; e indivíduos formados, a fim de confirmar ou não a hipótese de que leitores mais escolarizados (fluentes) resgatam, mais satisfatoriamente, aspectos prosódicos desencadeados pela presença de marcadores prosódicos gráficos e marcadores prosódicos lexicais. 1 Prosódia e fluência de leitura Atualmente, há estudos preocupados em investigar questões relacionadas à fluência de leitura atrelada a uma realização prosódica adequada como sendo essencial à compreensão, haja vista que a fluência na leitura é uma das habilidades necessárias para que compreensão do sentido de um texto ocorra (LEITE, 2012; BREZNITZ, 2006; HUDSON; LANE; PULLEN, 2005). Quando falamos sobre a relação entre prosódia e compreensão de leitura, de qualquer modo, estamos pensando na compreensão daquele que lê, mas também daquele que ouve a leitura. Assim, o leitor fluente, no ato da leitura, deverá lançar mão do gerenciamento adequado dos recursos prosódicos a fim de transmitir os mais variados tipos de informação (sintático-semântico-discursivas), destacar constituintes importantes dentro dos enunciados etc. Uma leitura que traz essas características revela, quase sempre, que o leitor compreendeu as relações estabelecidas entre as estruturas complexas 1420 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 que compõem o texto – o que de algum modo – demonstra certo grau de compreensão, exceto quando se trata de um texto cujo conteúdo seja desconhecido pelo leitor, a ponto de ele não ter nenhum conhecimento prévio que possa auxiliá-lo na compreensão do material lido. Sendo assim, diante de uma leitura que traz uma cadência apropriada, o ouvinte é capaz de lançar mão do seu modelo de fala para articular, inferir e compreender o conteúdo da mensagem que está sendo veiculada pelo leitor. Para isso, assim como o leitor, o ouvinte também deve ter, em certa medida, conhecimentos prévios sobre o assunto da leitura que sustentem a sua compreensão. Wennerstrom (2000), partindo de uma análise de diálogos informais entre falantes nativos e não-nativos do inglês, avalia o contributo das propriedades prosódicas para a caracterização da fluência discursiva. Os resultados do seu estudo apontam que os falantes considerados mais fluentes produzem o seu discurso respeitando a coerência e coesão dos constituintes prosódicos e produzem tons de fronteira que indicam a continuação discursiva. Uma pesquisa realizada por Ferreira (2009) avaliou a fluência de leitura em crianças com e sem necessidades educativas especiais, estudantes do 2º ano, levando em consideração a utilização das pausas, bem como o uso adequado das entonações – o uso das vírgulas, dos pontos finais, reticências, dois pontos, travessão, ponto de interrogação e ponto de exclamação. Fussek (2009) investigou a importância dos aspectos prosódicos para a compreensão da linguagem oral e da leitura. Apresentando um texto (com e sem variação prosódica) para uma turma do 3º ano do ensino fundamental, seguidos de dois questionários sobre texto lido, a pesquisadora concluiu que há correlação entre o desempenho dos participantes na compreensão da escuta (com e sem prosódia) e o desempenho na compreensão da leitura. Se a leitura em voz alta de modo fluente estiver atrelada à marcação da prosódia adequada, de forma coerente, realizando as pausas nos momentos apropriados, as curvas ascendente e descendente da entonação, as chances de a compreensão do texto lido ocorrer de forma rápida e precisa serão maiores. O contrário ocorrerá se a leitura em voz alta desconsiderar o modo de procedência anteriormente citado. Nesse caso, a leitura tende a ser mais lenta de modo que a atenção se voltará para a decodificação, comprometendo, assim, a compreensão do material lido. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1421 A falta de marcação prosódica adequada em uma leitura em voz alta é com frequência encontrada nos primeiros estágios de aquisição de leitura. Nessa fase, é comum a criança decifrar o texto de modo lento, na maioria das vezes, negligenciam as marcas de pontuação de modo que a variação prosódia encontra-se comprometida. Esse fato interfere significativamente na construção do sentido do texto lido. Contudo, a partir do aprimoramento e desenvolvimento da habilidade de leitura, a criança torna-se mais fluente, exceto crianças com algum distúrbio de leitura. Considerando que a escrita conta com recursos gráficos que são capazes de representar aspectos suprassegmentais da fala, a leitura de um texto deve, pois, apresentar variações de volume, de velocidade de fala e de entoação típicas da linguagem oral. Além disso, a recuperação das marcas prosódicas presentes no texto escrito é extremamente importante para a compreensão do discurso que está sendo veiculado. Assim sendo, creditamos que um leitor escolarizado é mais apto para compreender um texto escrito porque consegue, com mais facilidade, apresentar na leitura aspectos suprassegmentais responsáveis pela organização discursiva como, por exemplo, as pausas, ritmo, grupos tonais, velocidade de fala, volume e qualidade de voz. Conforme Cagliari (1989), do ponto de vista do sistema escrito, o ato da decodificação das palavras na leitura é muito importante. Contudo, na leitura, muito mais que decifrar palavras, é necessária a concatenação das palavras em unidades fonológicas, sintáticas, semânticas e discursivas para que se compreenda o conteúdo do texto. Apesar de não existir um consenso na sua definição, o conceito de fluência de leitura já vem considerando os aspectos prosódicos. Percebese que a prosódia – aspecto integrante da fluência de leitura – constitui uma condição para a leitura eficaz. Sendo desse modo, a fluência atrelase à automatização, prosódia e compreensão. As discussões dos autores citados neste trabalho convergem no sentido de que a adequação da variação de prosódia durante a leitura é um indicador de sua competência leitora. 2.1 Os marcadores prosódicos gráficos/sinais de pontuação - MPG Os sinais de pontuação têm, na escrita, usos e funções bastante diversificadas (PACHECO, 2008). Desde os escritos do grego antigo 1422 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 vê-se o uso dos sinais de pontuação, sobretudo o uso dos sinais que diferenciam as interrogativas e afirmativas (CAGLIARI, 1995). O uso dos sinais de pontuação justifica-se tanto por razões sintáticas quanto por razões prosódicas já que, como propõe Cagliari (2002a, 2002b), os sinais de pontuação referem-se, quase sempre, a atos sintáticos que apresentam um padrão prosódico próprio, como as frases afirmativas, interrogativas. Por essa razão é que os gramáticos tradicionais atribuem o uso dos sinais de pontuação à tentativa de reprodução das pausas, cadências, ritmo, entonação e as melodias da fala (PACHECO, 2003). Para esta autora, as normas propostas pelos gramáticos tradicionais para os usos dos sinais de pontuação estão estritamente ligadas à sintaxe ou à semântica, embora sejam uma tentativa de representação dos aspectos da língua falada. Chacon (1998) desenvolveu estudos importantes a respeito de um ritmo da escrita. Para ele, a escrita, assim como a fala, possui um ritmo próprio, determinado pelo uso de sinais de pontuação. Além disso, o recurso da pontuação atrela-se à expressão do escrevente e à espacialização da linguagem, simultaneamente em várias dimensões: (a) na dimensão fônica, associada a pausas, contornos entoacionais, intensidade e duração; (b) na dimensão sintática, associada à delimitação de unidades; (c) na dimensão textual, indicada como a responsável pela organização e coerência textual; (d) na dimensão enunciativa, ligada à expressividade do escrevente no código semiótico. Todas essas dimensões estão organizadas de forma não isomórfica, unidas por meio da enunciação ao ritmo da escrita e, juntas, formam o aspecto multidimensional da linguagem. Para Corrêa (2004), há uma prosódia presente na circulação do escrevente pela imagem que ele faz da gênese da escrita. Na concepção desse autor, a prosódia aparece na escrita somente através da articulação com outros planos como o léxico e a sintaxe, por exemplo. Além disso, quase sempre, a leitura de um texto escrito é feita mediante a imposição, quer seja em voz alta quer não (considerando que, na leitura silenciosa, o leitor recupera, ainda que mentalmente, os aspectos prosódicos), de uma prosódia. Nesse sentido, a prosódia não é única e exclusivamente da fala, haja vista que se constitui como exigência da leitura, demarcada, também, pelo uso dos sinais de pontuação. Ademais, o leitor poderá, perfeitamente, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1423 recuperar a prosódia por meio de diferentes pistas linguísticas deixadas pelo escrevente. (CORRÊA, 2004, p. 116) Dentre os estudiosos que atribuem aos sinais de pontuação a importância na organização sintática, semântica, bem como na representação das variações da fala, destacam-se Kondo e Mazuka (1996); Cohen et al (2001) que veem os sinais de pontuação como sendo análogos visuais da prosódia. Teóricos como Baldwin e Coady, (1978), Chen et al. (1988) atribuem à pontuação a função de organizadora da sintaxe. Estudiosos como Cagliari (1995) entendem os sinais de pontuação enquanto marcas de coerência e coesão. Chacon (1998) classifica os sinais de pontuação como delimitadoras de unidades rítmicas. Cagliari (1989) apresenta a hipótese de que os sinais de pontuação funcionam como marcadores prosódicos. Essa hipótese é reafirmada por Cagliari (2002a, 2002b) quando apresenta uma descrição prosódica dos principais sinais de pontuação do português brasileiro. Os trabalhos de Cagliari apontam que a presença de um sinal de pontuação tende a incitar variações prosódicas. Os trabalhos de Pacheco (2003) endossam as considerações de Cagliari (1989, 2002a, 2002b) acerca dos marcadores prosódicos da escrita. A pesquisadora desenvolve estudo no qual caracteriza acusticamente os sete sinais de pontuação mais comuns do português brasileiro quais sejam: dois pontos, interrogação, ponto e vírgula, reticências, ponto final, exclamação e ponto final. Com base na leitura oral de seis informantes, a autora encontra variações de F0, intensidade, duração e pausa nos componentes tônico e pretônico nas frases que aparecem sob incidência dos sinais de pontuação por ela investigados. As conclusões às quais Pacheco (2003) chega são de que os sinais de pontuação podem ter características acústicas particulares, de modo a se diferenciarem entre si. Em linhas gerais, os sinais de pontuação têm funções diversas e influenciam sob diferentes aspectos a organização da linguagem escrita. Eles se constituem como marcas sintático-prosódico-discursivas que contribuem para a organização e compreensão do texto escrito. Levando em conta que a finalidade do texto escrito é a leitura, esta deve, pois, recuperar informações importantes que são introduzidas no texto pelo uso dos sinais de pontuação. Um leitor fluente deverá ser capaz de gerenciar a sua leitura, quer em voz alta, quer silenciosa, recuperando aspectos da fala oral importantes para a compreensão do que está sendo lido. 1424 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 2.1.2 Os marcadores prosódicos lexicais – MPLs As diversas situações comunicativas em que o falante está inserido cotidianamente exigem dele uma intenção comunicativa, fazendo-o lançar mão de escolhas de ordem sintagmática e paradigmática (PACHECO, 2006). De acordo com Reis (2001, p. 223), “a entonação desempenha papel fundamental no ato de comunicação linguística através da manifestação de atitudes de falantes”. Sendo assim, a entonação exerce um papel importante na atribuição da carga semântica à atitude dos falantes. Pode-se dizer, então, que a entonação nos permite aferir atitudes do falante como polidez, autoritarismo, arrogância, tristeza, alegria etc. A atitude do falante se distingue, pois, da emoção que se trata de um comportamento adotado e controlado pelo falante, com implicações morais e intelectuais como, por exemplo, a reprovação, a justificativa e a ironia (FÓNAGY, 1993). Conforme Fónagy (1993), o próprio ato comunicativo exige que o falante apresente em sua fala variações entoacionais como as sentenças interrogativas e exclamativas, por exemplo. Encontramos, ainda, nas situações comunicativas do dia a dia, variações entoacionais que não são controladas pelos falantes. Estas, por sua vez, são reflexos da tensão psíquica: cólera, alegria, tristeza, manifestadas inconscientemente na fala. De acordo com o autor supracitado, essas variações melódicas presentes nas situações comunicativas, decorrentes das atitudes do falante, a saber, da modalização e da emoção, são variações prosódicas que podem também ser registradas na escrita através de expressões semânticas que fazem referência à prosódia da língua, já que estas atitudes, emoções e modos de dizer requerem um modo de procedência do ponto de vista fonético. A respeito de tais expressões Cagliari (2002a, p. 7) pontua que: Caracterizam atitudes do falante, emoções e modos de dizer que fazem uma referência à prosódia da língua, uma vez que tais atitudes, emoções e modos de dizer precisam ser realizados foneticamente de uma determinada maneira e não de outra (CAGLIARI, 2002a, p. 7). Embasada nas discussões de Cagliari (2002a, 2002b), Pacheco (2006) considera esses marcadores prosódicos como sendo “entradas lexicais no léxico mental dos falantes”, enquanto tal, podem muito Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1425 bem estarem sujeitas ao funcionamento de qualquer unidade lexical e pertencer, por exemplo, a uma classe gramatical. Entende-se, então, que essas unidades semântico-lexicais de cunho prosódico podem pertencer a categorias gramaticais diversas, podendo ser um, verbo (gritou, sussurrou), adjetivo, advérbio (raivosamente, calmamente), expressões adverbiais (disse baixinho), que são usadas para qualificar prosodicamente o significado de um verbo que se refere ao ato de falar (CAGLIARI, 2002a, 2002b). A classificação dessas entradas lexicais como marcadores prosódicos deve-se a sua carga semântica, que comporta informações de cunho prosódico, que podem se referir às atitudes do falante: raiva, polidez, autoritarismo, e/ou ritmo, volume. (CAGLIARI, 2002a, 2002b; PACHECO, 2006). Do ponto de vista de Pacheco (2006), essas referências, na condição de um marcador prosódico do tipo lexical, podem, então, ser consideradas como Marcadores Prosódicos Lexicais (MPLs) portadores tanto de informações da ordem da escrita (na condição de palavras constituídas ortograficamente), quanto de informações da ordem da fala precisamente prosódica (na condição de palavras e/ou expressões cuja carga semântica traz necessariamente informações que remetem a variações prosódicas). A hipótese apresentada pelos autores supracitados é de que atitudes e emoções podem ser resgatadas na escrita por meio de recursos como os marcadores prosódicos lexicais, por exemplo. Sendo assim, pode-se afirmar que a leitura em voz alta de textos que trazem registrados os marcadores prosódicos lexicais pode ser avaliada observando variações de velocidade de fala, tessitura e volume, desencadeadas por MPLs. Considerando que a razão de ser do texto escrito é a sua leitura e para que tal leitura seja eficaz é necessário que o leitor proceda adequadamente com os aspectos rítmicos e melódicos indicados no texto por determinadas marcas gráficas (sinais de pontuação, itens lexicais, tipos de letras, formatação do texto etc.) espera-se que leitores fluentes sejam capazes de recuperar na sua leitura as variações melódicas e entoacionais desencadeadas por marcadores prosódicos gráficos e por marcadores prosódicos lexicais. Na leitura de um texto, o leitor experiente recupera com facilidade os aspectos prosódicos desencadeados pelos marcadores prosódicos de modo que sua leitura apresenta características e expressividade 1426 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 da linguagem oral. Espera-se, portanto, que leitores escolarizados apresentem, na leitura, padrões melódicos e entoacionais mais satisfatórios em detrimento de leitores menos escolarizados. 3 Considerações sobre entoação Um dos propósitos do presente artigo constituiu-se em caracterizar o contorno melódico de frases sob a incidência de diferentes sinais de pontuação introduzidas pelos marcadores prosódicos lexicais “perguntou” e “disse”, lidas por crianças estudantes das séries iniciais, estudantes em séries mais avançadas e por indivíduos com nível superior de escolaridade. A nossa hipótese foi a de que os contornos melódicos e entoacionais das frases lidas pelos participantes escolarizados seriam mais compatíveis com o marcador prosódico que lhes antecede e que lhes sucedem. Sendo assim, considerações acerca da entoação tornamse relevantes para descrever e compreender os contornos melódicos das frases produzidas pelos diferentes grupos de leitores aqui investigados. Em se tratando do aspecto estritamente linguístico, Moraes (1993) define a entoação como sendo responsável por desempenhar funções específicas (sintáticas, semânticas e pragmáticas) no nível da frase. A entoação é extremamente importante para o processo comunicativo. O falante utiliza-se da entoação, nas suas diversas dimensões, para atribuir e distinguir os mais variados significados à fala que vão desde conteúdos afetivos e emocionais da comunicação a aspectos sociolinguísticos (QUILIS, 1988). Contudo, interessa-nos, aqui, a entoação apenas na sua dimensão linguística, mais especificamente na sua função distintiva das diferentes modalidades de frases, a saber, declarativa ou afirmativa, das frases interrogativas, exclamativas etc. Dentre as diversas funções da entoação, destaca-se a função modal, responsável por determinar a modalidade da frase, bem como “a força ilocutória que deve ser atribuída ao enunciado” (MORAES, 1993, p. 102). A literatura relaciona a entoação aos parâmetros acústicos de Frequência Fundamental (F0), intensidade e duração (SCARPA, 1999; FRY, 1976; t’HART; COLLIER; COHEN, 1990). As vibrações das pregas vocais têm como correlato acústico a F0, em termos perceptuais, a altura (SCARPA, 1999). Sendo assim a F0 é o correlato direto do aspecto fonético que a entoação assume nos estudos prosódicos. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1427 A entoação, então, refere-se à “escala de elevação e abaixamento da voz em uma frase” (MATTOSO CÂMARA, 1977, p. 6). Essa escala à qual se refere Mattoso Câmara nada mais é que as variações de F0 que, ora ascende, ora descende de modo que o contorno melódico é modelado. Essas variações melódicas ocorrem devido às vibrações da pressão do ar na laringe no momento em que a fala é produzida. As variações de F0 dentro de uma sentença vão determinar se ela se trata de uma afirmativa, interrogativa, exclamativa, ou quaisquer outras. Em se tratando do português brasileiro, a entoação tem a função de discriminar os enunciados afirmativos, interrogativos e exclamativos e/ou outros. Assim, a configuração do contorno melódico de um enunciado interrogativo está relacionada a suas estruturas sintáticas e lexical. As interrogativas totais para as quais se espera como resposta sim ou não (e que caracterizam os enunciados interrogativos investigados nesse estudo), apresentam proeminência melódica na sílaba tônica final da sentença. Nesse tipo de interrogativas, a altura melódica inicial é um pouco mais baixa, em relação às frases declarativas. No entanto, é o comportamento da sílaba tônica final que vai distinguir as declarativas das perguntas sim ou não (REINECKE, 2007). Portanto, os enunciados vão diferenciar entre si devido às particularidades do seu contorno melódico. As diferenças que há entre os diferentes tipos de frases são estabelecidas a partir de pontos específicos determinados pela posição da sílaba tônica saliente. Logo, a entoação fornece diferentes padrões prosódicos para que, tanto o falante quanto o ouvinte, expressem e decodifiquem o que se quer dizer com determinada entoação (SOUZA, 2007, p. 12). Uma mesma frase pode apresentar padrões prosódicos distintos a depender das variações de F0, o que garante à entoação, além do papel semântico e fonológico, o sintático. Segundo Massini-Cagliari e Cagliari (2001, p. 117), os diferentes tipos de enunciados do português “carreiam padrões melódicos que são determinados pelo sistema”. Desse modo, as frases afirmativas vão se diferenciar das frases interrogativas quanto às variações das curvas melódicas: enquanto as frases interrogativas apresentam padrões melódicos ascendentes – em que as frequências aumentam ao longo da sentença, as frases afirmativas apresentam padrões melódicos descendentes – em que a frequência dos sons diminui ao longo da sentença. 1428 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 Conforme Mateus et al. (1994), além das sentenças afirmativas e exclamativas, há os enunciados imperativos por meio dos quais exprimese uma certeza, uma conclusão ou uma ordem nos quais se observa variação de F0 no sentido descendente. Além dos contornos melódicos ascendente e descendente, há também o contorno melódico plano em que não há modificação perceptível ao longo da sentença. Pacheco (2003), em estudo no qual avaliou o padrão prosódico dos principais sinais de pontuação do português brasileiro, verificou que enunciados finalizados pelas reticências tendem a apresentar um contorno melódico nivelado, sem alterações na curva entoacional. O contorno melódico gerado pela elevação e abaixamento da F0 em uma sentença é importante porque permite aos interlocutores de uma interação discursiva captar tanto a modalidade quanto a intenção subjacentes a uma sentença lida ou pronunciada. Sendo assim, considerando que os valores de F0 determinam a curva melódica responsável pelo estabelecimento do significado, a questão que trazemos para esta pesquisa é: variações de F0 compatíveis com a modalidade (interrogativa, afirmativa, exclamativa, neutra) estabelecida para as sentenças por meio dos MPGs e MPLs podem caracterizar leitores quanto à fluência e à compreensão textual? No intuito de caracterizar leitores fluentes e não fluentes quanto à capacidade de resgatar variações prosódicas do texto escrito incitadas por marcas gráficas, bem como quanto à capacidade de compreensão textual, este trabalho avaliou as variações da F0 em sentenças produzidas por leitores em processo de escolarização (grupo I e II) e leitores formados (grupo III). 4 Materiais e métodos 4.1 Seleção dos participantes Para a seleção dos participantes do grupo I – estudantes do 2º ano do ensino fundamental – foi necessária uma seleção prévia dada a dificuldade de leitura que leitores dessa faixa de escolaridade apresentam. Para a seleção dos participantes da pesquisa, optamos por escutar a leitura do texto “O Palhaço” realizada por seis colegiais para observar se apresentavam um nível de domínio de leitura satisfatório para a observação das variáveis propostas na primeira etapa desse estudo, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1429 quais sejam, a velocidade e precisão de leitura para avaliar a fluência de leitura. A escolha do texto “O palhaço” deveu-se por se tratar de um texto com sintaxe simples, com grau de dificuldade de leitura compatível com a seriação escolar do grupo I. Foram excluídos os indivíduos que apresentaram um nível de leitura lentificado e/ou silabado. O texto o palhaço somente foi usado para seleção dos participantes do grupo I. Diante desse critério, buscando compor o grupo com quatro participantes, dois homens e duas mulheres; excluímos dois dos seis alunos avaliados que apresentaram uma leitura lenta e silabada. Todos os participantes desse grupo tinham idade de sete anos. O grupo II – leitores estudantes do 2º ano do ensino médio – foi composto de quatro jovens, sendo dois homens e duas mulheres com idade entre 15 e 17 anos. O grupo dos leitores com nível superior de escolaridade, que constitui o grupo III, foi composto de dois homens e duas mulheres com idade entre 30 e 44 anos. Participaram, então, 12 indivíduos – seis homens e seis mulheres. 4.2 Procedimentos para seleção dos marcadores prosódicos lexicais 4.2.1 MPL “Perguntou” e MPL “Disse” A escolha desses dois marcadores deve-se ao fato de serem dois extremos – enquanto o marcador “perguntou” tem dupla face, ao mesmo tempo em que carrega uma carga semântica, traz também uma informação prosódica que remete a um enunciado interrogativo, o marcador lexical “disse” é neutro, isto é, a sua natureza não traz nenhuma informação prosódica específica. Trata-se, pois, de um verbo dicendi que pode introduzir perfeitamente, as mais diferentes modalidades de frases. Com isso, o nosso objetivo foi saber se, diante de um MPL como “disse” que não incita um comportamento prosódico específico o leitor menos experiente é capaz de organizar as variações prosódicas de modo que sejam compatíveis com o MPG que finaliza a frase. Além disso, a escolha pelo marcador “perguntou” nos possibilitou verificar em que medida leitores experientes são capazes de, a partir da presença do MPL “perguntou”, modelarem sua leitura em tom ascendente (típico dos enunciados interrogativos) ainda que as frases não sejam finalizadas pelo ponto de interrogação correspondente ao MPG “perguntou”. 1430 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 4.2.2 Seleção dos marcadores prosódicos gráficos Partindo das constatações de Cagliari (1989, 2002a, 2002b), bem como de Pacheco (2003, 2006, 2008) as quais evidenciam que as variações melódicas da fala podem ser representadas na escrita por meio de marcas gráficas, selecionamos, neste trabalho, como objeto de investigação, os sinais de pontuação: exclamação, interrogação, ponto final, reticências por se tratarem dos sinais de pontuação mais usuais na escrita do português brasileiro. 4.2.3 Seleção e produção das frases-alvo Foram criadas três frases para serem utilizadas sob a incidência dos MPLs e dos MPGs, como segue: QUADRO 1 – Frases usadas sob a incidência dos MPL e dos MPGs Frase 1 – Isso é tudo o que vossa majestade quer Frase 2 – É tudo o que eu preciso fazer Frase 3 – Vossa majestade acredita mesmo nisso Frase 4 – É possível sair dessa vida Todas as frases-alvo ocorrem, nas condições da presença do MPL/ DISSE e MPL/PERGUNTOU, seguidas dos MPGs: (?),(!), (...), (.), (s/p sem pontuação), conforme disposto no quadro 2, seguinte: QUADRO 2 – combinações dos MPL com os respectivos MPGs investigados MPL2/Disse Frase-alvo MPG3/? MPL2/Perguntou Frase-alvo MPG3/? MPL2/Disse͢͢ Frase-alvo MPG3/! MPL2/Perguntou Frase-alvo MPG3/! MPL2/Disse Frase-alvo MPG3/... MPL2/Perguntou Frase-alvo MPG3/... MPL2/Disse Frase-alvo MPG3/. MPL2/Perguntou Frase-alvo MPG3/. MPL2/Disse Frase-alvo S/P1 MPL2/Perguntou Frase-alvo S/P1 Fonte: elaboração própria. Obs 1: S/P: sem pontuação; 2: MPL: marcador prosódico lexical; 3: MPG: marcador prosódico gráfico; S/P: sem pontuação. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1431 Sendo assim, os informantes foram expostos basicamente a duas condições experimentais: Condição 1, na qual os informantes eram expostos aos textos com frases-alvos introduzidas pelo marcador prosódico “perguntou”, e finalizadas ora por ponto de exclamação, ora por ponto final, ora por ponto de interrogação, ora por reticências. Nessa condição, houve uma coincidência entre variação melódica da frase-alvo e o marcador prosódico anunciado antes da frase-alvo quando esta era finalizada pelo ponto de interrogação. Quando as frases-alvos ocorriam nesse contexto, elas traziam informações prosódicas de uma sentença interrogativa tanto do marcador prosódico lexical quanto do marcador prosódico gráfico. Nesse caso, foi possível verificar se houve um aumento na recuperação de aspectos prosódicos prototípicos quando MPL E MPG são coincidentes. Quando as frases ocorriam nos demais contextos, finalizadas por sinais de pontuação não coincidentes com o marcador prosódico perguntou, elas carregavam informações prosódicas tanto do MPL quanto do MPG que são diferentes entre si. Essas ocorrências possibilitaram verificar qual é a estratégia utilizada pelos diferentes leitores, isto é, se diante de marcadores prosódicos com cargas prosódicas diferentes o que prevalece é a variação incitada pelo MPL ou pelo MPG. Condição 2, na qual os informantes eram expostos aos textos com frases-alvos introduzidas pelo marcador prosódico disse, e finalizadas ora por ponto de exclamação, ora por ponto final, ora por ponto de interrogação, ora por reticências. Nessa condição, em que o marcador prosódico lexical que antecede a frases-alvo é neutro, não carregando informações prosódicas, foi possível verificar a capacidade dos diferentes grupos de leitores de resgatarem as variações prosódicas típicas de ponto de interrogação, exclamação, ponto final, reticências das frases investigadas. As condições experimentais apresentadas no quadro 2, bem como as ocorrências das combinações dos diferentes MPLs com os respectivos MPGs permitiram compreender o comportamento dos diferentes grupos de leitores, aqui investigados, com as variações melódicas incitadas por marcadores prosódicos. No quadro 3 constam exemplos de ocorrências das combinações dos diferentes MPLs com os respectivos MPGs. 1432 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 QUADRO 3 – Exemplos de frases-alvo sob incidência dos PMLs e MPGs MPL/Disse Frase-alvo MPG/? A rosa com muito ódio DISSE: – Vossa majestade acredita mesmo nisso? MPL/Disse͢͢ Frase-alvo MPG/! A rosa em soluços sorriu para o Cravo e DISSE: – É possível sair dessa vida! MPL/Disse Frase-alvo MPG/... E quase decidida a visitar o cravo, para si DISSE: – É tudo o que eu preciso fazer... MPL/Disse Frase-alvo MPG/. Desejando amolecer o coração do cravo DISSE: – Isso é tudo que Vossa Majestade quer. MPL/Perguntou Frase-alvo MPG/? A rosa com muito ódio PERGUNTOU: – Vossa majestade acredita mesmo nisso? MPL/Perguntou Frase-alvo MPG/! A rosa em soluços sorriu para o Cravo e PERGUNTOU: – É possível sair dessa vida MPL/Perguntou Frase-alvo MPG/... E quase decidida a visitar o cravo, para si PERGUNTOU: – É tudo o que eu preciso fazer... MPL/Perguntou Frase-alvo MPG/. Desejando amolecer o coração do cravo PERGUNTOU: – Isso é tudo que Vossa Majestade quer. 4.2.4 Seleção e produção dos textos Foram elaborados três textos para serem inseridas as frases-alvos sob incidência dos MPGs e MPLs, nas situações descritas no quadro 3. Escolhemos três narrativas conhecidas da literatura infantil, a saber, Branca de Neve, O Cravo e a Rosa e A Cigarra e a Formiga. Criamos uma versão para cada uma dessas narrativas. Feito isso, elaboramos, para cada uma dessas narrativas, nove versões com pequenas mudanças em cada uma. Sendo assim, cada narrativa conta com 10 versões, totalizando 30 textos. Inserimos estrategicamente as quatro frases-alvo nessas narrativas de modo que cada combinação aparece três vezes ao longo dos textos. Como forma de padronizarmos o ambiente de ocorrência dos marcadores prosódicos investigados nessa pesquisa, cada um dos três textos possui 10 versões (I, II, III, IV, V, VI, VII. VIII, IX e X). Essas versões apresentam diferenças mínimas entre si as quais se justificam pelas adaptações realizadas nos trechos nos quais foram inseridas as frases-alvo sob a incidência dos diferentes MPLs. Todos os participantes leram todas as versões. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1433 Em síntese, o corpus desse trabalho contou com três textos distintos, cada um deles com 10 versões, sendo composto, portanto, por 30 textos (15 para a investigação do MPL “perguntou” e os respectivos MPGs (?), (!), (...), (.) e frases sem pontuação, e 15 para a investigação do MPL “disse” e os respectivos MPGs (?), (!), (...), (.). Cada frase-alvo aparece três vezes sob a incidência de um mesmo MPL e mesmo MPG de modo que obtivemos três repetições para cada frase. Tanto o MPL “disse” como o MPL “perguntou” aparece em 15 versões nas 4 frases-alvo analisadas sendo 60 frases-alvo para cada MPL com seus 4 respectivos MPGs portanto. Ao total são 120 ocorrências para cada informante. 4.2.5 Realização das gravações As gravações foram realizadas no Laboratório de Pesquisa e Estudos em Fonética e Fonologia (LAPEFF) da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em uma cabine acústica, utilizando-se o programa Audacity 2.0.5, a uma taxa de amostragem de 44.100 Hz. Foi pedido aos informantes que lessem os textos em voz alta. A cada três versões lidas, foi dada uma pausa de 10 minutos para minimizar o cansaço do informante. As gravações duraram, em média, 1:30h minutos para cada informante. 4.2.6 Mensuração da F0 Transferimos o material coletado para o software Praat 5.0 para análise acústica. Mensuramos a F0 de todas as sílabas tônicas das frases-alvo investigadas. O procedimento foi feito, selecionando a vogal da sílaba tônica e mensuramos o ponto central da mesma, por meio do comando Ctrl + 0. Com esse procedimento foi possível avaliar a curva de F0 das sílabas tônicas, bem como verificar o movimento da F0 em todas as sílabas tônicas e, assim, descrever e caracterizar a tendência dos padrões melódicos de frases sob a incidência de marcadores prosódicos produzidas por leitores ainda em processo de aquisição de leitura, leitores em séries mais avançadas e leitores com nível superior de escolaridade. A análise dos dados subsidiada nos pressupostos teóricos apresentados por Moraes (1998, 1993), Fry (1976), t’Hart, Collier e Cohen (1990), Scarpa (1999) acerca da percepção de F0 e sua importância para a entoação, sobretudo no que tange à distinção de modalidades de frases. 1434 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 5 Resultados e discussões 5.1 As estratégias prosódicas em situação de coincidência e não coincidência entre MPL e MPG: uma análise acústica Nosso objetivo, aqui, foi analisar as estratégias prosódicas em situação de leitura de coincidência e não coincidência entre MPL e MPG. Com esse procedimento apresentamos mais um parâmetro para análise de fluência de leitura, que está relacionada ao planejamento prosódico. 5.1.1 Condição experimental MPL/Perguntou + frases-alvo + MPG Nosso objetivo, aqui, é analisar as estratégias prosódicas em situação de leitura de coincidência e não coincidência entre MPL e MPG. Com esse procedimento seremos capazes de trazer mais um parâmetro para análise de fluência de leitura, que está relacionada ao planejamento prosódico. São apresentados na tabela 1 os resultados para as frases-alvo introduzidas pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou” e finalizadas pelos Marcador Prosódico Gráfico (?) ponto de interrogação. TABELA 1 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelo MPG ponto de interrogação (?). MPG MPL/PERGUNTOU ? 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 272.8750 285.2500 277.8833 250.2083 231.2083 0.0073s INF 2 323.4917 293.5917 265.4750 239.3750 338.5500 < 0.0001s INF 3 246.7417 217.6592 247.0417 210.6333 260.9833 0.0307s INF 4 238.5500 236.7500 229.7000 185.1783 232.0167 0.0209s INF 5 245.9833 266.1250 265.9583 221.7333 213.2000 0.0005s INF 6 273.4167 224.6250 269.9167 199.8167 272.2000 0.0003s INF 7 168.8608 203.1417 192.6417 166.4500 239.4500 < 0.0001s INF 8 155.3875 116.6108 149.2000 123.9942 166.8833 0.0005s 1435 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 INF 9 172.5250 153.6667 149.8167 154.8417 202.8000 < 0.0001s INF 10 268.1000 220.5083 267.2167 200.3917 265.0000 0.0002s INF 11 294.1333 246.8667 232.2758 226.6092 298.2917 0.0619ns INF 12 132.6142 130.7600 156.1250 122.2492 158.3833 0.0121s Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Para esta combinação, temos dois estímulos que remetem à carga prosódica interrogativa: o marcador prosódico lexical “perguntou” e o marcador prosódico gráfico (o ponto de interrogação). Desse modo, as frases afirmativas vão se diferenciar das frases interrogativas quanto às variações das curvas melódicas: enquanto as frases interrogativas apresentam padrões melódicos ascendentes – em que as frequências aumentam ao longo da sentença. Como mostram os dados dispostos na tabela 1, os participantes de todos os grupos recuperaram o padrão entoacional ascendente, típicos de frases interrogativas. As curvas melódicas encontradas para as frasesalvo lidas pelos participantes evidenciam configuração final caracterizada por um movimento ascendente. De um modo geral, observamos que as curvas apresentam-se em pontos mais baixos logo antes da sílaba tônica final para, em seguida, apresentar proeminência na parte final, onde se localiza a sílaba tônica final. As médias encontradas para os valores de F0 das sílabas tônicas foram submetidos ao teste estatístico ANOVA de Kruskal Wallis. Encontramos valores estatisticamente diferentes entre as médias das frases lidas por todos os participantes, exceto para o 11. Observamos que, para a combinação de (perguntou + ?) dessa condição experimental 1, em que há coincidência entre o padrão prosódico do marcador que introduziu a frase e o marcador que as finalizou, o padrão melódico das sentenças assemelha com um dos padrões interrogativos descritos por Moraes (1998) – o padrão de dupla ascendência – típico de perguntas retóricas sim ou não, pedidos, enunciados em início de diálogo, nos quais as informações são consideradas novas . Percebese, de um modo geral, para todos os participantes, proeminência de F0 1436 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 sobre as sílabas tônicas iniciais, e um novo pico acontece sobre a sílaba tônica final. Apresentamos na tabela 2 os resultados para as frases-alvo introduzidas pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou” e finalizadas pelos Marcador Prosódico Gráfico (...) reticências. TABELA 2 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelo MPG reticências (...). MPG MPL/PERGUNTOU ... 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 287.1167 274.1250 253.6333 242.0167 283.3000 0.0123s INF 2 328.9750 294.0750 264.5583 252.7417 300.1417 0.0101s INF 3 278.1917 229.0500 217.4592 205.1350 290.5250 0.0010s INF 4 239.0000 219.6000 217.1167 180.8833 254.5250 0.0032s INF 5 252.1833 238.9333 247.8250 206.0917 267.3333 0.0051s INF 6 275.4500 251.5917 254.8917 197.4500 252.2333 0.0019s INF 7 187.5383 201.1667 196.8750 173.2542 219.6750 0.1481 INF 8 132.1375 123.4642 110.8067 130.1683 189.6667 0.0003s INF 9 169.1583 156.7083 169.2083 170.3500 220.9250 0.0002s INF 10 256.4000 236.5250 242.8750 189.6083 263.4833 0.0003s INF 11 281.3417 237.6417 242.6250 216.4667 246.1667 0.1370ns INF 12 141.5450 161.3250 151.2442 125.0033 172.3583 0.0052s Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Para essa combinação, temos o que é denominado mismatch (desencontro entre informações vindas de dois ou mais estímulos). O marcador prosódico lexical “perguntou” indica ao leitor que o padrão entoacional a ser seguido é o interrogativo, enquanto as reticências indicam um tom suspensivo (incompletude) e, conforme dados Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1437 encontrados por Pacheco (2003), esse sinal de pontuação desencadeia contorno melódico nivelado, sem alterações na curva entoacional. Sendo assim, os informantes poderiam privilegiar qualquer um dos marcadores prosódicos durante a leitura. Embora não tenha sido possível distinguir os grupos quanto à fluência observando o seu comportamento prosódico nessa combinação experimental, verificamos que os leitores mais escolarizados, diante da situação mismatch, retomavam a leitura, no sentido de correção e, por fim, priorizaram o padrão interrogativo. Esse comportamento não foi observado no grupo I, composto por leitores das séries iniciais. Verificamos padrão ascendente na leitura de todos os informantes, mesmo para os leitores menos escolarizados. Como mostram os dados dispostos na tabela 2, os participantes de todos os grupos recuperaram o padrão entoacional ascendente, típicos de frases interrogativas. Os valores de F0 encontrados para as frases-alvo lidas pelos participantes evidenciam configuração final caracterizada por um movimento ascendente. Embora a frase estivesse finalizada pelo ponto de reticências (...) que sugere padrão melódico nivelado ou descendente, o que percebemos é que todos os participantes mantiveram o padrão prosódico ascendente incitado pelo Marcador Prosódico Lexical “perguntou”. De um modo geral, observamos que as curvas apresentam-se em valores mais baixos logo antes do contorno final para, em seguida, apresentar proeminência na parte final, onde se localiza a sílaba tônica final. O teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou, para todos os informantes, diferenças significativas entre as médias encontradas para as sílabas tônicas. Apenas para o participante 11 não foram encontradas diferenças significativas entre as médias das sílabas tônicas. 1438 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 TABELA 3 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelo MPG ponto de exclamação (!). MPG MPL/PERGUNTOU ! 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 274.2333 257.2500 246.5983 217.3250 283.7167 0.0836ns INF 2 319.8833 289.1083 265.1417 247.1000 336.2583 0.0002s INF 3 275.6500 242.7917 239.9583 210.1833 272.6333 0.0088s INF 4 241.6833 222.2083 208.7958 184.8050 255.3083 0.0218s INF 5 269.8833 244.6000 249.1000 222.2167 277.5833 0.0019s INF 6 266.1333 231.3750 264.6750 193.1417 245.4833 0.0029s INF 7 182.4750 196.6000 200.7333 176.2917 229.9500 0.4523ns INF 8 156.5300 137.6908 157.1167 125.3483 199.8083 0.0011s INF 9 159.2750 164.6167 162.2250 144.3917 198.7250 0.0017s INF 10 273.4833 244.6500 266.2583 201.7333 276.4750 0.0004s INF 11 263.2000 279.0000 254.1275 242.1917 286.5500 0.0105s INF 12 127.0958 152.9950 149.0667 124.4908 169.1167 0.0075s Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Como mostram os dados dispostos na tabela 3, também para essa combinação com mismatch (desencontro entre as informações prosódicas dos dois marcadores – perguntou e ponto de exclamação), os informantes de todos os grupos recuperaram o padrão entoacional ascendente, típicos de frases interrogativas. Os valores de F0 encontrados para as frases-alvo lidas evidenciam configuração final caracterizada por um movimento ascendente. Apesar de as frases tiverem sido finalizadas pelo ponto de exclamação (!) que sugere padrão melódico descendente, verificamos que todos os participantes mantiveram o padrão prosódico ascendente incitado pelo marcador prosódico lexical “perguntou”. Vemos que os valores mais baixos de F0 encontram-se na penúltima sílaba tônica, antes do contorno final para, em seguida, apresentar proeminência na parte final, onde se localiza a sílaba tônica final. 1439 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 Encontramos valores médios da F0 estatisticamente diferentes entre si entre as sílabas tônicas das frases para todos os informantes, exceto para os informantes 1 e 7. TABELA 4 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelo MPG ponto final (.). MPG MPL/PERGUNTOU . 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 286.9167 274.8083 285.3333 236.1500 297.3583 0.0010s INF 2 301.7083 279.0333 258.5167 211.4083 307.4167 0.0024s INF 3 255.4500 269.1917 237.0000 220.4667 302.7583 0.0018s INF 4 320.9000 219.5333 210.5250 170.5917 255.8133 0.0006s INF 5 239.8250 208.2083 215.7417 198.8250 269.1583 0.0002s INF 6 276.5750 248.6167 237.0500 189.2917 282.1967 0.0002s INF 7 186.3058 197.2750 197.9667 174.2500 232.8500 0.0467s INF 8 136.5258 124.5725 128.7025 117.0175 149.5167 0.4858ns INF 9 170.9500 153.8500 164.7500 151.9083 218.5250 < 0.0001s INF 10 254.3833 241.9250 242.1583 185.6500 267.8667 0.0005s INF 11 285.1083 251.2417 257.7250 247.7250 289.0167 0.0082s INF 12 125.1767 146.0125 145.0375 140.4333 154.6417 0.4463ns Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Para essa combinação apresentamos também dois marcadores prosódicos: o marcador prosódico lexical “perguntou”, cuja carga semântica remete às variações prosódicas de interrogação e o marcador prosódico gráfico (.) ponto final que, segundo Pacheco (2003), em se tratando da sua realização acústica, especificamente no que diz respeito ao parâmetro acústico F0, indica uma queda no componente pretônico e no componente tônico. Logo, as frases finalizadas pelo ponto de interrogação apresentam padrão descendente devido à redução da F0. 1440 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 Como é possível verificar na tabela 4, os valores de F0 das frases-alvo evidenciam padrão final ascendente na leitura realizada por todos os participantes. A informação prosódica do MPL “perguntou” foi suficiente para que os participantes entendessem que se tratava de uma frase interrogativa, ainda que o ponto final finalizasse a frase. O teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou diferenças significativas entre as médias das sílabas tônicas das frases-alvo na leitura de todos os informantes, excetuando os informantes 8 e 12. TABELA 5 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e sem pontuação ao final. MPG MPL/PERGUNTOU s/p 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 291.2583 271.5000 244.7425 236.8000 286.4083 0.0004s INF 2 326.8083 272.3417 260.1000 236.4250 313.1500 < 0.0001s INF 3 234.4517 269.0917 241.0333 198.8583 306.9583 < 0.0001s INF 4 230.4083 213.8583 219.9500 196.9000 259.2167 0.0501ns INF 5 272.0750 252.4583 240.2750 225.2750 270.6833 0.0092s INF 6 299.2167 238.9833 259.0917 210.7833 266.8417 0.0336s INF 7 181.6417 201.4083 199.9417 179.0833 228.2775 0.0056s INF 8 124.2342 133.1975 143.6050 128.8608 185.0925 0.0307s INF 9 159.1833 164.0783 155.8333 162.2167 231.5000 0.0006s INF 10 253.0083 252.1750 250.0083 208.0083 275.5500 0.0071s INF 11 269.3333 237.7917 238.4917 258.6333 282.5333 0.0058s INF 12 120.4167 146.0675 138.1067 119.9133 168.8417 0.0211s Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Para as frases introduzidas pelo marcador prosódico lexical “perguntou” e sem pontuação ao final, os informantes foram expostos a apenas um estímulo prosódico no que se refere à entoação da modalidade da frase. Nesse tipo de condição experimental, um leitor fluente é capaz de se guiar pelo marcador prosódico inicial que lhe indica que a frase se Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1441 trata de uma interrogativa. Assim, o mais natural seria encontrar, para essa combinação, padrão ascendente nos contornos melódicos, característicos de enunciados interrogativos. Conforme é possível verificar na Tabela 5, o movimento de F0, na combinação MPL/perguntou + frases-alvo/sem pontuação, configurou-se da seguinte forma: valores altos de F0 associados às três primeiras sílabas tônicas, queda de F0 sobre a penúltima sílaba tônica e aumento significativo de F0 sobre a sílaba tônica final. O teste ANOVA atestou diferenças significativas entre as médias encontradas para essa combinação na leitura de todos os informantes, exceto para o informante 4. 5.1.2 Condição experimental MPL/Disse + frases-alvo + MPG e MPL/Disse Para a condição experimental 2, em que as frases foram introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelos diversos marcadores prosódicos gráficos, a saber ponto de interrogação (?), reticências (...), exclamação (!) e frases sem pontuação ao final não temos mismatch, e o que determinará o planejamento prosódico dos participantes é capacidade deles de gerenciar sua leitura a partir dos marcadores prosódicos que lhes serão apresentados. Como o marcador prosódico lexical “disse” é neutro do ponto de vista prosódico, ou seja, ele pode perfeitamente introduzir as mais diferentes modalidades de frases: interrogativas, afirmativas, exclamativas, imperativas etc. Vejamos como foi o planejamento prosódico dos diferentes grupos diante da condição experimental 2 (MPL + frases-alvo + MPG; MPL + frases-alvo + frases sem pontuação ao final). A Tabela 6 apresenta os resultados encontrados para as frases introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelo marcador prosódico lexical ponto de interrogação (?). 1442 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 TABELA 6 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo marcador prosódico gráfico ponto de interrogação (?). MPG MPL/DISSE ? 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 277.0167 260.3333 256.9933 256.1333 294.2000 0.0442s INF 2 319.2833 280.8333 271.1667 254.7417 335.6083 0.0002s INF 3 263.2833 261.0333 234.7667 200.8917 226.2525 0.0086S INF 4 232.2333 214.0000 208.4500 187.6333 254.2833 0.0073s INF 5 248.5833 217.2500 248.4750 198.6833 264.2917 0.0138s INF 6 278.7333 222.6250 232.2917 204.8583 269.3667 0.0574ns INF 7 186.3250 195.1667 194.0167 170.6167 200.8933 0.4575ns INF 8 125.2533 124.2983 124.9483 110.4317 157.1250 0.0016s INF 9 153.1917 132.0192 140.3667 137.8750 174.2750 0.0013s INF 10 227.3167 208.9667 218.1250 175.3333 260.6667 < 0.0001s INF 11 281.1667 253.9250 253.1667 247.5333 266.0333 0.4905ns INF 12 137.5650 129.5550 146.5342 135.4842 180.0833 0.0099s Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Conforme os dados dispostos na tabela 6, os valores de F0 encontrados para as frases-alvo lidas por todos os participantes dos grupos I, II e III revelam padrão ascendente na parte final da frase onde se localizam as sílabas tônicas finais. Os valores de F0 mensurados revelam padrão melódico ascendente associado às sílabas tônicas, sobretudo sobre a sílaba tônica final. O padrão interrogativo desencadeado pelo marcador prosódico gráfico é resgatado por todos os participantes. Nesse caso, a presença do marcador prosódico gráfico ponto de interrogação (?) justifica o padrão melódico típico de interrogativas. Conforme evidencia Pacheco (2003), o ponto de interrogação é caracterizado, acusticamente, pelo aumento da F0 no componente tônico. Assim, o padrão encontrado para 1443 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 as frases-alvo produzidas pelos participantes dos grupos aqui investigados foi compatível com os MPLs e os MPGs que incidiram sobre as frases. O teste ANOVA de Kruskal Wallis não atestou diferenças significativas entre as médias encontradas para as frases lidas pelos informantes 6, 7, 11 e 12. Contudo, diferenças significativas foram encontradas entre as médias das frases lidas pelos demais participantes. TABELA 7 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo MPG reticências (...). MPG MPL/DISSE ... 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 287.4250 270.2667 251.0083 234.7667 257.6500 0.0727ns INF 2 341.7750 285.5500 277.4667 244.1833 359.2833 < 0.0001s INF 3 235.0375 238.6583 230.3033 210.0733 281.0000 0.0996ns INF 4 208.2133 220.3500 238.4417 186.0017 272.6250 0.0393s INF 5 251.7833 238.0833 203.6000 204.4333 155.9250 0.0053s INF 6 249.7750 227.8650 245.2000 203.0667 167.7500 0.0001s INF 7 163.9700 195.0500 190.7000 177.4083 165.3167 0.0501ns INF 8 137.1500 126.2500 139.2483 118.1008 118.9050 0.4242ns INF 9 146.6917 137.3583 142.1917 128.5833 124.5750 0.0335s INF 10 235.6917 217.9000 203.9167 170.9417 152.0000 < 0.0001s INF 11 252.7417 246.2583 224.9908 214.2750 161.8008 0.0006s INF 12 134.7567 140.7742 128.9300 139.0175 132.8200 0.3747ns Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante Os dados da tabela 7 revelam padrão final ascendente nos valores de F0 encontrados para as frases-alvo lidas pelos participantes do grupo I. Contudo, não há nenhuma justificativa para que a frase seja entendida como sendo uma interrogativa, já que o nem marcador prosódico 1444 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 lexical “disse” tampouco o marcador prosódico gráfico reticências (...) sugere padrão interrogativo. Já os valores d F0 das frases-alvo lidas pelos participantes dos grupos II e III configuram-se com padrão descendente. Conforme Pacheco (2003), as reticências são caracterizadas acusticamente pela queda da F0 no componente tônico das frases sob o seu escopo. Sendo assim, as frases sob incidência desse sinal de pontuação devem apresentar ou contorno nivelado, sem alterações significativas de elevação e abaixamento da F0, ou padrão final descendente, ocasionado pela redução da F0, como ocorre em enunciados declarativos. Portanto, também nesse caso, percebemos que os participantes mais escolarizados foram capazes de administrar acertadamente as variações melódicas e entoacionais desencadeadas pelos diferentes marcadores prosódicos se comparados aos participantes do grupo I (menos escolarizados). Diferenças significativas não foram encontradas para as médias das sílabas tônicas das frases lidas pelos informantes 1, 3, 7, 8 e 12. Mas o teste ANOVA de Kruskal Wallis atestou diferenças significativas entre as médias encontradas na leitura dos demais informantes. Os participantes do grupo I leram a frase-alvo com entoação típica de interrogativa, como é possível visualizarmos o padrão ascendente, mesmo não havendo nenhuma justificativa para tal, uma vez que nem o marcador prosódico lexical nem o marcador prosódico gráfico que introduziram e finalizaram a frase remetem ao padrão interrogativo. Por outro lado, os participantes dos grupos II e III procederam adequadamente com as variações entoacionais típicas dos marcadores prosódicos “disse” e as reticências. 1445 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 TABELA 8 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo MPG ponto de exclamação (!). MPG MPL/DISSE ! 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 283.1333 268.1000 274.5583 238.9417 255.4833 0.2487ns INF 2 325.4400 281.1917 267.4417 219.6583 332.3750 < 0.0001s INF 3 288.9250 230.9042 245.9333 215.0583 260.8017 0.0129s INF 4 245.4917 213.5333 226.4833 187.2250 266.8417 0.0026s INF 5 258.2083 213.4900 248.2417 206.0667 177.6667 < 0.0001s INF 6 246.7333 236.9333 234.7000 203.7083 164.0075 < 0.0001s INF 7 160.8067 191.8333 200.4167 169.5583 156.0750 0.0071s INF 8 146.7467 132.4458 141.1167 135.3350 123.8400 0.6588ns INF 9 146.2167 149.8583 142.8167 146.5750 122.9500 0.0503ns INF 10 235.8833 225.0333 193.1417 169.2417 134.1833 < 0.0001s INF 11 255.9000 246.5275 259.1842 244.0250 219.6192 0.4965ns INF 12 134.2625 151.8242 133.9517 141.2058 141.7700 0.5157ns Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante Nas frases-alvo introduzidas pelo MPL “disse” e finalizada pelo ponto de exclamação (!), produzidas pelos participantes do grupo I, visualizamos as seguintes características: valores mais altos de F0 são encontrados na parte inicial da frase. A seguir, na parte intermediária, são vistos pontos mais baixos e, na parte final, onde está localizada a sílaba tônica final vemos outro pico da curva melódica. Essa configuração ascendente é típica de enunciados interrogativos. Ao contrário do que acontece com as curvas melódicas da frase lida pelos participantes do grupo I, os valores de F0 encontrados para as frases lida pelos participantes dos grupos II e III apresentam pontos mais baixos na parte final da frase, caracterizando um movimento descendente, característicos de enunciados 1446 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 afirmativos e exclamativos. O padrão prosódico mais adequado diante da leitura de frases finalizadas pelo ponto de exclamação é o descendente, pois, conforme comprovou Pacheco (2003), em se tratando da F0, a realização acústica desse sinal de pontuação apresenta aumento do componente tônico e queda no componente tônico, exatamente o que percebemos nas frases lidas pelos participantes dos grupos II e III. Os valores de F0 das frases-alvo lidas pelos participantes do grupo I, expostas na tabela 8, apresentaram picos altos no início do contorno que caem ao longo da sentença e, ao final do enunciado, voltam a apresentar picos altos. O esperado para sentenças finalizadas pelo ponto de exclamação é uma queda da F0 no fim do enunciado o que ocasionaria uma curva descendente. Diante dos resultados, observase que os participantes do grupo I, por estarem ainda em processo de escolarização, em estágios inicias de leitura, não são capazes de recuperar as características prosódicas específicas dos diferentes sinais de pontuação. Diferenças estatisticamente diferentes entre as médias das sílabas tônicas das frases foram encontradas pelo teste ANOVA de Kruskal Wallis na leitura dos informantes 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 10. Nas médias das sílabas tônicas das frases lidas pelos participantes 1, 8, 9 e 12 não foram atestadas diferenças significativas. TABELA 9 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6, 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo MPG ponto final (.). MPG MPL/DISSE . 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 280.2000 278.6500 282.7000 227.5500 266.0667 0.0568ns INF 2 306.3667 271.3250 282.0667 257.0667 297.6250 0.0394s INF 3 257.7250 224.2583 247.7750 212.5167 251.5583 0.0294s INF 4 246.0250 223.5500 214.4000 194.8333 244.4750 0.0097s INF 5 246.7167 192.9317 231.3750 174.7758 165.1750 0.0014s INF 6 252.8667 242.1250 271.6750 189.2925 168.8300 < 0.0001s INF 7 187.7517 194.0233 189.7333 167.5667 156.1283 0.0194s 1447 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 INF 8 134.4233 121.0900 119.8083 155.9367 115.9567 0.0506ns INF 9 140.6750 142.2925 139.6333 133.8883 135.8417 0.6593ns INF 10 207.7917 216.1000 200.2667 161.9583 149.9250 < 0.0001s INF 11 256.1642 227.6500 248.7833 204.8667 163.7008 0.0005s INF 12 122.0600 127.5258 152.5667 127.4275 132.6833 0.1847ns Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Para Cagliari (1989), os sinais de pontuação funcionam como marcadores prosódicos. Tal função é reafirmada por Cagliari (2002a, 2002b) ao descrever prosodicamente os principais sinais de pontuação do português brasileiro. Os trabalhos de Cagliari confirmam que a presença de um sinal de pontuação tende a incitar variações prosódicas. Os trabalhos de Pacheco (2003, 2006) endossam as considerações de Cagliari (1989, 2002a, 2002b) acerca dos marcadores prosódicos da escrita. Ao encontrar variações de F0, intensidade, duração e pausa nos componentes tônicos e pretônico nas frases sob incidência dos sinais de pontuação dois pontos, interrogação, ponto e vírgula, reticências, ponto final, exclamação e ponto final, a pesquisadora confirma que os sinais de pontuação podem ter características acústicas particulares, de modo a se diferenciarem entre si. Tratando, especificamente, do ponto final (marcador prosódico gráfico), caracteriza-se por apresentar queda de F0 no componente pretônico e no componente tônico nas frases sob sua incidência. (PACHECO, 2003). Como mostram os dados da tabela 9, os valores de F0 encontrados para as frases-alvo introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e finalizadas pelo ponto final (marcador prosódico gráfico), lidas pelos participantes dos grupos II e III visualizamos as características apontadas por Cagliari (1989, 2002a, 2002b) e Pacheco (2003). A configuração do contorno melódico é a de um enunciado afirmativo, apresentando contorno final descendente. O contrário é percebido nas curvas melódicas da frase-alvo lida pelos participantes do grupo I. Notamos contorno final ascendente (evidenciado pelo aumento da F0), prototípico de enunciados interrogativos. Os dados apresentados na Tabela 9, para os informantes 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, demonstram a configuração de curvas prototípicas de frases afirmativas 1448 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 ou exclamativas, caracterizadas por um contorno final descendente. O contorno final ascendente, encontrado para os informantes 1, 2, 3, e 4, demonstra que os participantes do grupo I não foram capazes de proceder adequadamente com os padrões melódicos e entoacionais desencadeados pelos diferentes marcadores prosódicos, já que o MPL “disse” não suscita contorno ascendente. Diferenças significativas entre as médias das tônicas foram encontradas pelo teste ANOVA na leitura dos informantes 2, 3, 4, 5, 6, 7, 10 e 11. Para os demais participantes as médias não diferiram estatisticamente entre si. TABELA 10 – Valores médios da F0 (Hz) das sílabas tônicas realizadas pelos participantes (1, 2, 3 e 4 do grupo I); (5, 6. 7 e 8 do grupo II); (9, 10, 11 e 12 do grupo III) para as frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelo MPG ponto final (.). MPG MPL/DISSE s/p 1st 2st 3st 4st 5st P INF 1 281.1750 270.9667 267.2583 228.3500 267.9917 0.3127ns INF 2 339.5000 284.2500 270.0750 251.5500 320.5167 < 0.0001s INF 3 262.8000 264.6000 265.6667 203.2083 277.9583 0.0014s INF 4 226.2917 206.7908 209.7333 189.3667 250.8000 0.0588ns INF 5 261.8750 250.6750 258.7333 199.8333 163.1500 < 0.0001s INF 6 258.5167 234.4483 227.2500 206.0000 164.2667 < 0.0001s INF 7 197.0750 196.0658 200.0583 168.1167 167.0050 0.0272s INF 8 149.4000 126.2792 153.2108 112.0117 119.7683 0.0330s INF 9 146.4667 155.5250 147.8417 136.6500 121.3183 0.1061ns INF 10 239.9500 238.1833 224.4750 210.5667 155.7917 0.0003s INF 11 197.4000 224.9500 225.4583 176.4667 142.7808 0.0036s INF 12 133.0283 150.3167 130.1350 128.5317 135.0358 0.4489ns Obs: s: significativo para α= ≤0,05; ns: não significativo para α= >0,05. 3: MPG: marcador prosódico gráfico; MPL: marcador prosódico lexical; st: sílaba tônica; S/P: sem pontuação; INF: informante. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1449 A Tabela 10 mostra os valores de F0 encontrados para as frases-alvo introduzidas pelo marcador prosódico lexical “disse” e sem pontuação ao final, lidas pelos informantes dos grupos II e III com configuração do contorno melódico de um enunciado afirmativo, apresentando contorno final descendente. Os valores de F0 das tônicas das frases-alvo lidas pelos informantes do grupo I evidenciaram contorno final ascendente (marcado pelo aumento da F0), prototípico de enunciados interrogativos. Os dados da Tabela 10 apontam que os informantes 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, realizaram a leitura das frases lançando mão de entonação compatível com frases afirmativas ou exclamativas, as quais apresentam um contorno final descendente. O contorno final ascendente, encontrado para os informantes 1, 2, 3, e 4, pois encontramos valores mais altos de F0 incidindo sobre a sílaba tônica final. Diferenças significativas entre as médias das tônicas foram encontradas pelo teste ANOVA na leitura dos informantes 2, 3, 5, 6, 7, 10, 11 e 12. Para os demais participantes as médias não diferiram estatisticamente entre si. Como o MPL “disse” pode introduzir as mais diferentes modalidades de frases e porque as frases-alvo nessa combinação não foram pontuadas ao final, os informantes poderiam apresentar qualquer padrão entoacional. O interessante foi o fato de os leitores mais escolarizados (grupo II e III) apresentarem padrão descendente, enquanto os menos escolarizados (grupo I) optaram pela leitura das frases em padrão interrogativo, assim como para todas as combinações das duas condições experimentais. 6 Discussão A partir dos resultados encontrados para o grupo I – leitores em processo inicial de escolarização; grupo II – leitores em estágio mais avançado de escolarização; grupo III – leitores com nível superior completo, podemos fazer as seguintes considerações: 1. O comportamento entoacional das sentenças realizadas pelos participantes do grupo II e do grupo III, sob a condição experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG (ou frasesalvo sem pontuação) e sob a combinação experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG (ou frases-alvo sem pontuação) aproxima 1450 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 esses grupos no sentido de que o comportamento entoacional dos participantes desses grupos é modelado a depender da natureza do MPL que introduz a frase. Diante do MPL “perguntou” as frases-alvo produzidas pelos participantes do grupo II e III e do MPL configuraram-se com um padrão interrogativo. Quando diante do MPL “disse”, o padrão melódico das mesmas frasesalvo produzidas por esses participantes só configurou-se como interrogativo quando as frases foram finalizadas pelo marcador prosódico gráfico ponto de interrogação. As combinações da condição experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG mostraram que a presença do MPL “perguntou” foi suficiente para que os participantes do grupo II e do grupo III reconhecessem as sentenças como sendo interrogativas, mesmo quando elas foram finalizadas por um MPG cuja carga prosódica não remete a uma interrogação (nas condições de mismatch). Observamos que, diante de uma condição de mismatch, na qual o MPG que finaliza a frase não é compatível com o MPL “perguntou” que a introduz, os participantes do grupo II e do grupo III priorizam a informação prosódica do MPL “perguntou”, qual seja, padrão interrogativo. 2. Diante do MPL “disse”, na condição experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG, os participantes do grupo II e III apresentaram padrão ascendente na combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto de interrogação. Nesse caso, o padrão interrogativo foi desencadeado pelo MPG “?”. Nas demais combinações nas quais não há a presença de um marcador prosódico que carrega informações prosódicas típicas de interrogativas, como o MPL o MPG “?”, o padrão que prevalece é o descendente, mais previsível para os MPGs ponto de exclamação, ponto final, reticências. Mesmo na combinação MPL/disse + frases-alvo/sem pontuação, o padrão que prevaleceu para esses participantes foi o descendente. Nas combinações MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto de exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final, o MPL disse neutraliza o acionamento da elevação da curva melódica, de modo que cabe ao leitor modular o enunciado de acordo com o padrão melódico correspondente aos MPGs que finalizam as sentenças, qual seja, padrão melódico descendente e, no caso da combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/reticências, padrão melódico nivelado ou descendente. Em se tratando da combinação Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1451 MPL/disse + frases-alvo/sem pontuação, qualquer padrão melódico seria aceitável, já que não há a presença de nenhum marcador prosódico que suscite uma informação prosódica específica. O que acontece, nesse caso, é que o grupo II e o grupo III optam pelo padrão descendente, enquanto o grupo I mantêm o mesmo padrão ascendente das outras combinações. Para as duas condições experimentais aqui investigadas 1 (frases introduzidas pelo MPL “perguntou” e finalizadas pelos MPGs “?”, “!”, “...”, “.” E frases sem pontuação ao final); 2 (frases introduzidas pelo MPL “disse” e finalizadas pelos MPGs “?”, “!”, “...”, “.” E frases sem pontuação final), os informantes dos grupos II e III realizam as mesmas sentenças com contornos melódicos diferentes motivados apenas pela alternância entre os MPLs “perguntou” e “disse”. O grupo I, por outro lado, apresenta o mesmo padrão entoacional para todas as frases-alvo. 3. O comportamento entoacional das frases-alvo lida pelos participantes do grupo I o aproxima dos grupos II e III nas sentenças realizadas sob a condição experimental MPL/ perguntou + frases + MPG. Entretanto, nas sentenças realizadas sob a condição experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG, o distancia. Com base nos resultados encontrados, observamos que, para as sentenças da condição experimental MPL perguntou + frases-alvo + MPG, os participantes do grupo I apresentam padrão ascendente, típico de interrogativas. Verificamos contorno final ascendente em todas as combinações dessa condição experimental. Contudo, para a condição experimental MPL/disse + frases-alvo + MPG, observa-se que os participantes do grupo I apresentaram padrão ascendente para todas as combinações. Para as combinações da condição experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG e para a combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/ ponto de interrogação, o padrão ascendente era previsível, uma vez que o MPL “perguntou”, que introduz as sentenças da condição experimental MPL/perguntou + frases-alvo + MPG, motiva o resgate da carga prosódica interrogativa, despontada na ascendência dos contornos finais das sentenças. No caso da combinação MPL/disse + frases-alvo + MPG/ ponto de interrogação, o próprio MPG/ponto de interrogação justifica a 1452 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 ascendência final das sentenças. Entretanto, para as combinações MPL/ disse + frases-alvo + MPG/reticências; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ ponto de exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final, não há justificativa para a elevação final do contorno melódico. Diante disso, lançamos mão das seguintes hipóteses: i) O fato de o padrão interrogativo ser o default da língua, isto é, as sentenças interrogativas são muito produtivas nas línguas, faz com que crianças em estágio inicial de aquisição de leitura produzam as sentenças com padrão interrogativo. ii) O fato de o marcador prosódico “perguntou” ter uma carga prosódica muito forte, e sendo característico da linguagem oral – utilizado mais frequentemente em contexto de oralidade em situações comunicativas cotidianas – tenha causado um efeito de memória nos participantes do grupo I. Como as frases-alvos eram as mesmas para todas as combinações, é provável que o padrão interrogativo tenha ficado registrado (efeito de memória), de modo que, mesmo diante das frases sem a presença do MPL/perguntou e do MPG/?, os participantes apresentaram padrão interrogativo. Como indivíduos menos fluentes ainda não têm consciência plena quanto ao uso e funções dos sinais de pontuação, a carga prosódica do MPL perguntou prevaleceu sobre todas as sentenças. Contudo, seria necessária a realização de outro experimento que confirmasse as nossas hipóteses mencionadas acima. O fato é que, de qualquer modo, os resultados encontrados para o grupo I nos indicam que: iii) Os participantes do grupo I não conseguem modelar o contorno entoacional das sentenças das combinações MPL/disse + frasesalvo + MPG/reticências; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto de exclamação; MPL/disse + frases-alvo + MPG/ponto final de acordo com os diferentes sinais de pontuação, uma vez que há padrão ascendente das frases dessas combinações, mesmo sem a presença do MPL “perguntou” introduzindo as frases, ou do MPG/ponto de interrogação finalizando as frases. Como o MPL “disse” é neutro, não carrega informações prosódicas específicas, o padrão ascendente é incompatível com os MPGs que finalizam as frases dessas combinações. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 1453 7 Conclusões Os resultados encontrados para a caracterização do padrão acústico das sentenças introduzidas pelos MPLs “perguntou” e “disse” com respectivas frases sob a incidência dos MPGs (ponto de interrogação, reticências, ponto de exclamação, ponto final) e frases sem pontuação produzidas pelos participantes, mostraram que tanto o leitor com maior nível de escolaridade quanto o leitor com menor nível de escolaridade é capaz de proceder com variações melódicas e entoacionais compatíveis com enunciados interrogativos diante de frases introduzidas pelo marcador perguntou. Isso reforça a dupla natureza desse marcador (portador tanto de informações semânticas quanto prosódicas) que são captadas também por leitores menos experientes. Contudo, diante de frases introduzidas pelo MPL “disse”, verificamos que os participantes do grupo II e do grupo III, leitores mais escolarizados, procederam mais adequadamente com as variações entoacionais prototípicas dos MPGs que finalizaram as frases. Não encontramos diferenças significativas entre os dados da análise acústica do grupo II e do grupo III, o que aponta que o comportamento desses participantes foi semelhante nas duas condições experimentais às quais foram expostos. Conforme os resultados obtidos, os leitores escolarizados conseguem resgatar mais adequadamente as variações entoacionais incitadas pelos diferentes marcadores gráficos e lexicais presentes no texto escrito. O nosso trabalho confirma a hipótese de que o resgate de marcadores prosódicos gráficos e lexicais pode caracterizar leitores fluentes e não fluentes. Os marcadores prosódicos da escrita fazem parte do sistema linguístico e contribuem para a atribuição de sentido ao texto. No processo de aquisição da leitura e da escrita, incorporamos essas marcas gráficas, assim como o sistema ortográfico, e a não consideração desses recursos gráficos e lexicais, na leitura de um texto, implicaria na falta de compreensão do texto na sua totalidade. Nossas constatações sugerem que, no ensino da leitura e, consequentemente da escrita, nas tarefas de leitura e compreensão de texto, as questões prosódicas presentes no texto devem ser levadas em consideração. 1454 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1417-1457, jul./set. 2019 Agradecimentos Aos participantes da pesquisa sem os quais a sua execução não seria possível. À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em especial ao Laboratório de Pesquisa e Estudos em Fonética e Fonologia (LAPEFF) por nos fornecer a infraestrutura adequada à coleta de dados. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo subsídio financeiro à pesquisa. Contribuição das autoras Alcione de Jesus Santos: atuou na preparação do corpus para coleta de dados, na coleta de dados, bem como na seleção de referências bibliográficas e na mensuração e análise dos dados. Vera Pacheco: atuou na seleção de referências bibliográficas, montagem do design experimental e na análise de dados, correção das análises e revisão geral do texto. Marian dos Santos Oliveira: atuou na seleção de referências bibliográficas, montagem do design experimental e na revisão da análise de dados. Referências BALDWIN R. S.; COADY, J. M. Psycholinguistic Approaches to a Theory of Punctuation. Journal of Reading Behavior, Orlando, v. 10, n. 4, p. 363-375, 1978. Doi: https://doi.org/10.1080/10862967809547290 BREZNITZ, Z. Fluency in reading: synchonization of processes. Mahwah: Lawrence Elbaum Associates, 2006. CAGLIARI, L. C. Marcadores prosódicos na escrita. In: SEMINÁRIO DO GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS, 18., 1989, Lorena. 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A partir do protocolo de coleta de dados proposto pelo Sistema Ramos, foram filmados 10 processos de produção de contos etiológicos inventados por essas alunas. As alunas deveriam combinar um conto etiológico inventado e, posteriormente, a dupla escreveria o conto em uma folha de papel. Na primeira parte deste estudo, descreveremos as ocorrências de DR relacionando produto e processo de escritura. Na segunda parte, analisaremos o processo de construção do DR a partir do processo de escritura do conto inventado. Mostraremos que a baixa ocorrência de DR no enunciado escrito em relação ao DR proferido oralmente dá-se em razão do processo genético de construção 1 Os dados utilizados neste artigo fazem parte de uma pesquisa de Doutoramento, cuja entrada no Comitê de Ética da Universidade Federal de Alagoas se deu sob no 12181113.5.0000.5013 e foi aprovado em 05/02/2013. 2 Estudo financiado pelo CNPq, através de financiamento concedido a Eduardo Calil via Projeto ESCRITURA NA SALA DE AULA: Propostas, Práticas Processos e Produtos (Projeto ESALA, processo 305312/2011-1). eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1459-1487 1460 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 da narrativa inventada a dois. O DR inscrito na folha de papel é o resultado de uma série de formulações/reformulações ativadas através do diálogo entre as alunas. Essa dinâmica parece ter favorecido a dimensão inventiva da narrativa ficcional e, ao mesmo tempo, a própria produção de unidade de sentido da trama narrativa, colocando em relação as vozes das alunas/narradoras e as vozes dos personagens. Palavras-chave: discurso reportado; escrita colaborativa; genética textual; contos etiológicos. Abstract: In this study we will discuss the textual genesis (Genetics of Texts) of reported discourses (DR) identified in writing processes and their respective school manuscripts, produced by a pair of 2nd year of elementary school. From the protocol of data collection proposed by the Ramos System, 10 processes of etiological tales invented by these students were filmed. The students should combine an etiological tale invented, and later the pair of students would write the story on a sheet of paper. In the first part of this study, we describe the occurrences of DR relating product and its writing process. In the second part, we will analyze the process of DR construction from the process of writing a etiological tales. We will show that the low occurrence of DR in the written enunciation in relation to DR uttered orally is due to the genetic process of construction of the narrative invented by two students. The DR inscribed on the sheet of paper is the result of a series of formulations/reformulations activated through dialogue between the students. This dynamic seems to have favored the inventive dimension of the fictional narrative and, at the same time, the very production of unity of meaning of the narrative plot, putting in relation the voices of the students / narrators and the voices of the characters. Keywords: reported speech; collaborative writing; textual genetics; and etiological tales. Recebido em 11 de março de 2019 Aceito em 23 de maio de 2019 1 Introdução Considerando que a aprendizagem da escritura implica uma multiplicidade de questões de ordem didático-pedagógicas, relacionadas ao funcionamento da língua e do discurso, e às características cognitivas do aprendiz escrevente, (CALIL, 2016; HALTÉ, 1992), tencionamos destacar a produção escrita de contos etiológicos inventados por escreventes novatos, observando especificamente o uso de um objeto linguístico presente neste gênero, a saber, o discurso reportado. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1461 Partimos da perspectiva teórico-metodológica situada no campo da Genética Textual e buscaremos analisar a dimensão processual da escritura a partir de uma abordagem enunciativa. Intentamos relacionar o processo criativo da escrita dos alunos tomando como unidade de análise o modo como uma díade de alunas combina oralmente o que irá escrever durante situações de produção textual efetivadas sob as condições ecológicas da sala de aula. 2 Discurso reportado e escrita colaborativa É consensual entre os gramáticos a noção de que o discurso reportado (DR) é composta a partir da representação de um discurso em outro discurso e delimitada pelas formas de discurso direto (DD), discurso indireto (DI) e discurso indireto livre (DIL) (BECHARA, 1999; AZEREDO, 2009). Essas limitadas descrições quando evocadas por dicionários técnicos e especializados (DUBOIS, 2006; FLORES; BORGES, 2009) por estudos enunciativo-discursivos (AUTHIERREVUZ, 1998; ROSIER, 2008; MAINGUENEAU, 2002), bem como pelos estudos da Narratologia (JONASSON, 2003) e da Psicolinguística (GRANGET, 2008) apontam uma riqueza de formas de manifestações associadas a diversos gêneros (entrevistas, mídia televisiva, discurso político, romances), o que por conseguinte, comprova a complexidade e a heterogeneidade de suas formas. No âmbito escolar, o DR como elemento gramatical é reconhecido pelo caráter normativo de suas instâncias cuja aplicação limita-se à transposição de discursos tais como DD e DI. Contudo, o uso do DR coloca desafios que vão além da transposição dos discursos. O DR não reporta um enunciado, mas um ato de enunciação (AUTHIER-REVUZ, 1993) e isso implica situações específicas de produção, sobretudo, quando apresentado em situação de escritura escolar por escreventes novatos que escrevem seus primeiros textos. O DR, ao atuar no interior da narrativa, articula aspectos de ordem sintático-textual, interferindo diretamente na construção semântica do texto no que diz respeito ao desenvolvimento do enredo e à problematização da história, bem como a inserção de personagens, elemento essencial à representação do DR. Assim, modalizações no que diz respeito aos espaços enunciativos de aproximação e distanciamento ao citar a fala do outro são fundamentais para a sua constituição. 1462 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 Os estudos sobre a representação do DR por escreventes novatos atentam-se ao produto textual (BORÉ, 2010; DESCHILDT, 2003), às produções escritas a partir de textos já conhecidos (ou seja, os alunos reescrevem ou continuam um texto dado com personagens pré-definidos ou inventam narrativa ficcional a partir de ilustrações) (FERREIRO et al., 1996; BORÉ, 2010) e pouco contribuem para compreender quais fatores podem interferir na construção do personagem, bem como a representação de suas falas, na história. Além de não se aterem à dimensão escritural correspondente ao texto em construção, no geral, esses estudos tendem a focalizar uma abordagem modular de uso e emprego do DR para representação da escrita, seja a partir da invenção de um texto sob um determinado ponto de vista (FERREIRO; SIRO, 2010), ou ainda por meio da continuidade de uma história já iniciada (BORÉ, 2010). Apesar de abordagens teórico-metodológicas distintas, tais estudos evidenciam problemas de focalização enunciativa entre o “discurso do narrador” e o “discurso do personagem” (BORÉ, 2006; CALIL; DEL RÉ, 2009). Segundo Genette (1972), no modo narrativo (diègèsis), o narrador é o sujeito da enunciação, no plano dramático e expressivo (mimèsis) o sujeito da enunciação é/são o(s) personagem(ns). Para melhor compreensão, tomemos os contos etiológicos, gênero ao qual os alunos de nossa coleta foram submetidos. Em termos de estrutura e composição temática, os contos etiológicos possuem enredos curtos e remetem à origem e ao porquê das coisas, da fauna e da flora, trazendo explicações fantasiosas e lúdicas de comportamentos dos habitantes da floresta e, assim como dos aspectos do mundo real. No interior da trama narrativa, subjazem não somente enunciados de ação, como também enunciados que correspondem ao discurso reportado. Observemos como o DR ocorre no trecho a seguir: [...] o camundongo, que estava muito cansado, perguntou se podia ficar abrigado em sua toca por alguns dias. A andorinha tinha enviuvado recentemente e aceitou de bom grado o pedido. (ZATZ; ABREU, 2010, p. 23). Podemos notar que a interação comunicativa entre o camundongo e a andorinha é dada através do enunciado do narrador. Em “o camundongo, que estava muito cansado, perguntou se podia ficar abrigado em sua toca por alguns dias” a fala do personagem é expressa na 3a pessoa Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1463 do singular sob a forma indireta. Isso é facilmente identificado pelo uso do verbo dicendi “perguntar” acrescido de seu complemento. Em resposta, o narrador destaca a aceitação da personagem andorinha, sem deixar claro, dramaticamente, em termos de mimèsis, como tal enunciado poderia ser representado em sua fala. O que sabemos apenas é que a personagem atendeu ao pedido do camundongo de forma satisfatória. O enunciado referente à aceitação da Andorinha, compreendido como discurso narrativizado, DN, resumido e interpretado pelo narrador, expressa então o diálogo a uma forma reduzida, a um simples fato enunciativo, ou seja, tratado como acontecimento discursivo integrado à narração. Esse é um exemplo de DN que designa o “sumário diegético” (GENETTE, 1972), ou seja, especifica o seu conteúdo “aceitação”, atribuindo-lhe a descrição “de bom grado”, mas não cria um simulacro mimético do que teria sido enunciado pela personagem. Observemos agora o seguinte DD: Um dia, o ganso acordou irritado e falou: – Não aguento mais ficar com o traseiro molhado, preciso me secar. (ZATZ; ABREU, 2010, p. 23). Aqui o narrador introduz diretamente a fala do personagem, usando o verbo dicendi “falar”, os sinais de pontuação (dois pontos e travessão) e o enunciado do ganso na 1ª pessoa do singular acrescido à desinência verbal – no presente do indicativo – marcando o momento da representação da cena. Há uma alternância entre os “dizeres” representados pelo narrador e o ponto de vista do personagem, este último põe em destaque um “mise en scène”. Ou seja, o narrador cede a palavra aos personagens optando pela forma mais mimética de representação (GENETTE, 1972), na qual o personagem é o sujeito da enunciação. Como vimos, o DR assinala formas complexas que, a depender da contextualização e do gênero, alargam a sua paleta representativa linguística. É o caso específico da invenção de uma história, cuja consigna permite maior liberdade de criação, ou ainda, a inserção de elementos linguísticos (presença de balão e onomatopeias) (CALIL, 2008; CALIL; DEL RÉ, 2009; BORÉ; CALIL; AMORIM, 2013). Nosso trabalho busca entender o uso do DR em seu estado nascente, evidenciando esse caráter ecológico, sem direcionamentos específicos em relação ao posicionamento enunciativo para o desenvolvimento da história, como por exemplo narrar em 1a ou 3a pessoa como o faz Ferreiro et al. (1996) e Boré (2010). 1464 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 Para tanto, utilizamos um sistema metodológico de captura que permite observar a dinâmica colaborativa do processo de escritura (CALIL, 2016, 2017), caracterizada como “escrita colaborativa”, quando alunos em díade combinam e escrevem, juntos, um mesmo manuscrito. A articulação entre o que é inventado pela díade e o uso do DR, objeto linguístico a ser analisado no manuscrito em curso, será o foco da análise que apresentaremos e preserva sua dimensão interativa, multimodal, qualitativa e enunciativa. A dinâmica colaborativa emerge como abordagem teóricometodológica para criação de textos à medida que sua realização conjunta promove o planejamento e a linearização da narrativa ficcional. Ou seja, a gênese do DR está associada ao processo coenunciativo de planejar e inventar o que irá compor a história em termos de fala de personagens. Nesse sentido, a situação de escrita colaborativa envolve a interação e a necessidade de expressar o que está sendo pensado para sua formalização. A formulação de unidades linguísticas adequadas à situação interativa ganham relevo ao evidenciar a gênese da história e, consequentemente, a construção de um enunciado reportado escrito, correlacionando o que é formulado oralmente à sua inscrição e à sua linearização. Postulamos que os enunciados que emanam da combinação são permeados por idas e vindas e têm no trabalho coenunciativo a possibilidade de gerir não só os comentários e os argumentos acerca do que será inscrito, como dá materialidade à sua linearização escrita (CALIL, 2016). Ou seja, o processo de produção escrita a quatro mãos é analisado em função do instante em que a escrita se configura e considera todos os elementos multimodais relacionados às práticas de textualização em sala de aula. Analisar o texto em curso permite então reconstruir as etapas sucessivas de elaboração textual, o que resulta em testemunhar a transformação dos “índices visuais do espaço gráfico em propriedades temporais de um acontecimento escritural” (GRÉSILLON, 2008, p. 20). O foco na dimensão gráfico-espacial a partir da origem constitutiva dos enunciados criados e a formalização dos caracteres, a serem inscritos no texto “em vias de se fazer”, coloca em jogo o diálogo e a reflexão sobre o uso que os alunos fazem da língua escrita. Ou seja, por meio dos desacordos, arguição e contestação, os alunos ao discordarem entre si podem examinar “os seus próprios pensamentos, bem como os dos outros, e, portanto, são mais propensos a esclarecer, aperfeiçoar e expandir Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1465 seu pensamento do que quando trabalham sem questões”3 (DAIUTE; DALTON, 1992, p. 6). Cabe ressaltar que o tratamento metodológico de escrita colaborativa, de certo modo, situa a aprendizagem de escrita textual como processo lento e complexo (KELLOGG, 2008), por implicar o conhecimento de um repertório alargado de ações associadas aos componentes de planificação, textualização e de revisão. Nessa direção, o trabalho coenunciativo, em essência, caracteriza-se por combinar e planejar a história, para então, formulá-la textualmente e revisá-la com foco na avaliação e melhora na qualidade do que está sendo produzido (VAN DEN BERG; RIJLAARSDAM, 2007). Todavia, esse movimento não é linear dada a complexidade recursiva da escritura perquirir um controle sobre o texto. Em análise de ordem linguística, Calil (2016) ressalta que os comentários registrados no vídeo da escritura possibilitam o acesso às diferenças subjetivas entre os escreventes, aos conhecimentos linguísticos e textuais próprios de cada um, bem como às relações estabelecidas entre os objetos textuais,4 identificados como problemáticos dada a subjetividade de quem os produz. Compreendemos a produção textual como uma atividade metalinguística, já que ela depreende ações como explicitar, selecionar, modelar, refletir, revisar ou seja manipular a linguagem para atender os significados almejados (CHEN; MYHILL, 2016). Nesse sentido, se considerarmos o DR como uma modalidade da ficção (BORÉ, 2010), transpor a trama narrativa em palavras e dar voz a um personagem implica em descentralizar o ponto de vista de quem escreve, o que necessariamente envolve dar um centro de consciência de que o que diz não refere à sua perspectiva, mas a de um outro, o personagem (BORÉ, 2010). Nessa conjuntura, é preciso especificar que o uso do DR requer do escrevente regular o funcionamento da história. O centro de consciência do qual fala Boré (2010) se refere à capacidade de construir explicitamente a representação da fala de personagens. Para este trabalho, importa-nos No original: “their own thoughts as well as those of others, and thus are more likely to clarify, refine, and expand their thinking than when they work without question” (DAIUTE; DALTON, 1992, p. 6). 4 O objeto textual diz respeito a qualquer elemento gráfico, linguístico ou discursivo diretamente relacionado ao texto em curso e reconhecido pelo escrevente como um elemento passível de ser acrescentado ou alterado (CALIL, 2016). 3 1466 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 especificar que tal capacidade de entender e regular situações específicas de uso é demasiada complexa, uma vez que o escrevente deve articular não só aspectos linguísticos, como semântico-discursivos, a depender dos efeitos que se queira causar. Ou seja, isso implica, inevitavelmente, relacionar planos enunciativos. Em se tratando da narrativa ficcional, ora “os acontecimentos parecem ser contados por si mesmo”5 (BENVENISTE, 1966, p. 241) ora procedimentos de distinção sobre a maneira de “dizer as coisas” são colocados em destaque. De um lado, temos a exposição da história (diegèsis), representados, por sua vez, pelo DI e DN e pelo princípio de imitação (mimèsis) que dá lugar à fala do personagem propriamente dita, DD. A história inventada passa por instâncias enunciativas – representadas por narrador e personagens – as quais se relacionam ao tratamento do tempo em que se passa a história. Ainda que os acontecimentos possam por si só ser narrados, eles designam não apenas situações decorridas, ou imaginadas por aquele que cria a história, mas também fatos de consciência dos personagens (sentimentos, crenças, decisões, etc.). Nosso olhar, além de considerar os critérios formais de reconhecimento do DR, considera todo enunciado que reenvia a preexistência de um dizer e faz menção ao conteúdo de DR, bem como denota as marcas suprassegmentais ou gestuais, as quais “dramatizam” um discurso outro. Advogamos a importância de considerar o efeito de citação configurada pela perspectiva do narrador, aquele que narra e inscreve o discurso outro em seu próprio discurso. Conforme salientado em estudos anteriores, o índice linguístico do DN, ao contrário do DI e DD, não assume uma forma sintática fixa (CALIL; AMORIM, 2017; LIRA; CALIL, 2016, 2017), em essência, ele é um recurso no qual o narrador dispõe para destacar um ato de fala. O ato de fala em si faz alusão ao acontecimento do discurso (MOCHET, 2000) e isso requer uma atenção distinta aos verbos de fala, os quais podem ser atualizados em forma de léxico e não por retomada do verbo “dizer”, configurando-se, então, em forma de anúncio ou de retomada avaliativa. O sobrevoo que fizemos acerca das formas linguísticas de DR destacadas nos contos etiológicos, gênero referência para a escritura dos alunos da pesquisa em tela, nos parece viável por expor um modo de No original: “les événements semblent se raconter eux-mêmes” (BENVENISTE, 1966, p. 241). 5 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1467 regular as instâncias enunciativas designadas neste gênero em específico, apresentando as percepções, as opiniões, isto é, as perspectivas dos personagens. Nosso interesse reside em investigar se os alunos, leitores desse gênero, apresentam essas formas de DR em seus manuscritos, analisando a gênese dessas formas reportadas em situações reais de produção textual dentro da sala de aula. Acreditamos que a análise da gênese dessas formas além de revelar o percurso de escritura destaca a troca enunciativa entre a díade e isso envolve o desenvolvimento de habilidades como, considerar a perspectiva do interlocutor, ser capaz de expressar a sua própria perspectiva, ter em conta os aspectos linguísticos sintático-semânticos e as convenções sociais acerca do gênero. 3 Metodologia A pesquisa incide sobre o corpus da escola “Criar e Recriar” e envolveu o desenvolvimento de um projeto didático em uma turma do 2o ano do Ensino Fundamental, na cidade de Maceió, Brasil. A coleta6 de caráter etnográfico resultou no recolhimento de dez processos de escritura de uma díade de alunos e outra díade de alunas (6-7 anos),7 os quais seguiram procedimentos didáticos precisos: 1o) apresentação da proposta pela professora; 2o) combinação e discussão conjunta da história; 3o) inscrição e linearização,8 momento em que os alunos já tendo sua história “definida” pedem o papel e a caneta para escrevê-la; 4º) leitura e revisão: após o término da história, os alunos leem à professora o que produziram. 6 A coleta foi desenvolvida a partir de um método de captura multimodal (visual, sonora e escrita), oferecendo ao pesquisador informações simultâneas relacionadas ao processo de escritura no tempo e espaço da sala de aula (CALIL, 2019). Ademais, a coleta possui um conjunto de materiais complementares que contextualizam o cotidiano escolar e os conteúdos de ensino valorizados nas práticas didáticas, quais sejam, a proposta curricular da escola, a entrevista com a professora e a coordenadora, os livros didáticos e paradidáticos adotados, os cadernos dos alunos, as fotos da escola e, da sala de aula, etc.) 7 Para este trabalho analisaremos apenas os processos da díade de alunas, Marília e Sofia. 8 Consideramos a inscrição como qualquer marca efetivada no papel, seja ela uma letra, frase, palavra ou mesmo um traçado sem definição. A linearização refere-se a formalização dos tópicos sintáticos e posicionamento de cada elemento gráficolinguístico em uma sequência particular (acompanhada ou não por comentários) nas linhas do papel (CALIL, 2016). 1468 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 Identificamos a presença de DR nos processos analisados a partir dos aspectos formais da língua, quais sejam, as marcas de “pessoa” no discurso (pronomes pessoais e possessivos), os verbos de fala ou expressivos (dicendi, sentiendi) e a dêixis espacial e temporal referente aos personagens criados. As marcas de pontuação e as mudanças de linha também foram consideradas. Além dos critérios formais, consideramos que todo enunciado reenvia a preexistência de um dizer, ou seja, uma relação dialógica de menção ao conteúdo de DR. Esses critérios para identificação do DR permitiu a categorização das seguintes formas de DR: DD, DI e DN, tanto no planejamento oral quanto no registro escrito. No registro fílmico da combinação, acrescemos ao reconhecimento do DR as marcas suprassegmentais ou gestuais, as quais “dramatizam” um discurso outro. Uma vez identificada essas características contabilizamos as ocorrências de DR, considerando desde sua primeira formulação oral ao momento em que foram escritas na folha de papel. Nossa análise partirá do que ficou registrado na folha de papel resultado, “traço fixo” apresentado no produto textual, em direção “às operações sistemáticas da escritura”, processo (GRÉSILLON, 2007). 4 Resultados e Discussão Ao longo do desenvolvimento do projeto didático, a díade, Marília e Sofia, inventou 10 contos etiológicos. Desse corpora, identificamos 267 enunciados orais e escritos relacionados ao DR. A análise dos processos destacou a relação entre o DR constituído oralmente e aquele que foi linearizado na folha de papel. Por vezes, nas produções das alunas, um DR é linearizado após um longo processo de formulação e reformulação. Em outros momentos, um DR oral é escrito tal qual foi dito. Apesar disso, a diferença entre as quantidades de DR formulados oralmente e o DR efetivado por escrito é significativa, como mostra o gráfico abaixo. 1469 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 GRÁFICO 1 – O DR nos 10 contos inventados (Processos x Produtos) Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. Nos processos foram identificadas 212 (79%) ocorrências de DR, enquanto que nos produtos obtivemos o registro de 55 ocorrências (21%). Essa diferença indica que a presença de um DR em uma história inventada é o resultado de uma gênese enunciativa intensa. A comparação de diferentes tipos de DR em cada uma das modalidades (produto e processo) traz outro aspecto interessante. TABELA 1 – Distribuição de ocorrências entre as díades: produto X processo Díade Marília/Sofia Total percentual Produto Total Processo Total DN DI DD DR DN DI DD DR 34 16 5 55 144 38 30 212 62% 29% 0,09% 100% 68% 18% 14% 100% Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. Conforme vimos acima, a proporção em relação à variação percentual de ocorrências de DR coloca em evidência a forma DN. A sua incidência prevalece com 62% nos produtos e, 68% nos processos. Em relação às suas manifestações escritas, as quantidades de ocorrências de DD e DI destoam de forma significativa. Isso ocorre já que as alunas alternam entre as formas DD 0,09% (5 ocorrências) e DI 29% (16 ocorrências). Em relação à emergência do DN, ele aparece em sequências compostas associadas a outras formas de DR, DD e DI. O DN não é considerado isoladamente, mas em relação as outras formas 1470 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 já que ele figura como acontecimento enunciativo e retomada avaliativa, como podemos ver abaixo: (1) a. O homem queria lugares e mais seres vivos – DN b. Ele pediu que existissem ambientes e animais – DI O DN decorre quando alguma referência de fala é atribuída ao personagem, mesmo que seu conteúdo não esteja explicitado no corpo do texto. Em 1 (a) temos a inferência do referente “homem” personagem ao qual é atribuído o seguinte complemento “ queria lugares e mais seres vivos”. Inferimos nesse enunciado um ato de fala intencional, ou seja, ele possui valor de fala por remeter à intencionalidade de um dizer. “Querer” faz alusão a presença do DR e estaria relacionado ao ato de enunciar: “– Eu quero lugares e mais seres vivos na Terra”. Isso pode ser observado mais facilmente na sua relação com o enunciado subsequente, DI, 1 (b) Ele pediu que existissem ambientes e animais. Apesar do DN sinalar um caráter homogêneo ele diferencia-se do discurso indireto, DI, já que este segue uma estrutura de subordinação gramatical completiva ou interrogativa, permitindo que a fala reportada seja apresentada sob um estatuto de paráfrase. O DN, por outro lado, abrange o acontecimento enunciativo numa forma nominal ou infinitiva é o caso de: “O homem queria lugares e mais seres vivos”. No ínterim do discurso narrativizado, compreendemos que as palavras do outro (personagem) são narrativizadas no próprio enunciado daquele que está na posição de narrador. Assim, há uma integração de falas “pronunciadas” dentro do discurso do locutor/escrevente. Salientamos ainda a necessidade de especificar o papel do narrador na narrativa, aquele que cria e integra os enunciados devidamente direcionados às ações dos personagens, sejam elas de fala ou não. Lembramos que as formas linguísticas utilizadas pelo escrevente não se restringem à ordem sintática, elas são operadas sob uma ordem semântico-discursiva, à medida que o discurso atua sobre o discurso. Dessa maneira, é impossível desconsiderar o contexto narrativo na análise que segue. Os enunciados como “O homem queria lugares e mais seres vivos”; “Só [cuidava] o homem que tinha pedido que existissem”; “Ele teve uma ideia que deu certo” abrangem o acontecimento de emissão de falas de “ele” são resumidos e interpretados por quem os enunciam. Ou seja, não sabemos de que maneira os alunos formularam tal enunciado e como associaram esta fala ao personagem criado. Apenas sabemos que há a menção à fala do personagem sob a ordem narrativa. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1471 Voltemos às informações do 1o gráfico e visualizemos melhor a distribuição entre as categorias de DR – DD, DI e DN – e a soma de suas ocorrências no registro da combinação oral e sua inscrição no produto final (manuscrito). GRÁFICO 2 – Distribuição total de DR por tipos Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. Dentre os 267 enunciados com marcas enunciativas correspondentes ao DR, encontramos 178 enunciados com indicação de DN. Tais enunciados apresentam marcas de enunciação que indicam atos locutórios dos personagens criados. Ou seja, mais da metade (67%) das enunciações evidenciam o DN. Por outro lado, o discurso indireto 20% e direto 13% sinalizam uma quantidade mínima comparada ao percentual total. Essa disparidade entre as categorias e, sobretudo, a preponderância de enunciados nessa forma de discurso se desenhou de forma diferente em relação ao estudo comparativo de manuscritos franceses e brasileiros realizado por Boré et al. (2015) para quem a forma DD é a preponderante. Observemos agora a gênese do DR em correlação à formalização escrita de um processo de Marília e Sofia. 4.1 Gênese do DR: relações entre o produto e o processo As alunas escolheram a temática “Por que o coelho pula”.9 Nessa história, Sofia era a escriba e Marília, a ditante. 9 Transcrição normativa: “ Por que o coelho pula”. Há muito tempo atrás o coelho tinha perna curta. Um dia apareceu um homem que pediu para beber uma poção mágica e ficou com pernas longas. O coelho perguntou para todos os animais da floresta como ele podia andar. Ninguém sabia e o leão sabia e disse para o coelho para pular em vez de andar e o coelho aprendeu a pular e é por isso que o coelho tem pernas longas. 1472 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 FIGURA 1 – Estado do manuscrito escolar “Por que o coelho pula”, linhas 3 a 11, linearizadas entre 33:50 e 40:21 (4º processo, 07/05/2012).. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. Perna curta, um dia apareceu um Homem que pediu para beber uma Poção mágica e ficou com pernas Longa o coelho perguntou para todos Os animais da floresta como ele podia Andar Ninguém sabia e o leão Sabia e disse o disse para o Coelho para pular em vez de Andar e o e o colho coelho Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. Como podemos observar, o DR é definido a partir da interação entre os personagens, quais sejam, o homem, o coelho, os animais e o leão, em situações específicas que indiciam atos enunciativos de fala. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1473 “Pedir”, “perguntar”, “saber” e “dizer” são verbos que, associados aos personagens, vinculam à representação de suas falas. Evidentemente, essa representação não recorre ao grau dramático e expressivo exigido pela mimése, e tampouco é clara ao destacar como isso ocorre. Neste conto etiológico inventado há 5 ocorrências de DR, caracterizadas como: • DI: “Um homem apareceu que pediu (para o coelho) beber uma poção mágica.” (linhas 3, 4 e 5) • DI: “O coelho perguntou para todos os animais da floresta como ele podia andar.” (linhas 6, 7 e 8) • DN: “Ninguém sabia.” (linha 8) • DN: “E o leão sabia” (linha 8 e 9) • DI: “E (o leão) disse para o coelho para pular em vez de andar.” (linhas 9, 10 e 11) O DR apresentado entre as linhas 3 e 5: “um dia apareceu um homem que pediu [para o coelho] para beber uma poção mágica” indica o que corresponderia à fala do personagem elíptico – coelho –, “beber uma porção mágica”. Contudo, apesar do contexto descrito, não é possível saber de que forma exatamente o questionamento foi produzido, nem mesmo como o personagem “coelho” foi chamado, já que ele é apresentado de forma elíptica. Daí sua ocorrência ser caracterizada como DN. Na sequência, temos “o coelho perguntou para todos os animais da floresta como ele podia andar” (linhas 6, 7 e 8). Aqui o verbo “perguntar”, seguido do enunciado “como ele podia andar”, é caracterizado como DI. Todavia, a inserção do personagem “coelho” em interação com um grupo indeterminado de animais, “todos”, é resultante, implicitamente, da dinâmica de solicitações, indagações que em ordem direta podem ser apresentadas de variadas formas. Eis então um enunciado híbrido que possui características tanto do DI como do DN. Tendo em vista que nos referimos à criação do diálogo entre os personagens, o que fora inscrito pela díade, linearizado no produto, não fornece pistas que nos permita identificar a gênese deste DR, tampouco como ocorreria o seguimento de questões caso o personagem representado pelo pronome indefinido “todos” tivesse em sua origem sido definido por um ou mais personagens. 1474 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 Vejamos se durante a combinação deste manuscrito há alterações que permitem identificar outras formas possíveis para tais enunciados. Texto Dialogal 1: MS – Processo 004 (24:44 – 27:06) Rubrica: (Marília estava olhando para o cartaz da sala (lista de títulos de contos lidos durante o projeto didático: “Contos do como e do por que”) 711. Marília: Por que o coelho pula!::: Que tal, por que o coelho pula? 712. Sofia: Porque assim, ó assim. Há muito tempo atrás, o coelho tinha perna curta. 713. Marília: Ah, já leram essa história. 715. Sofia: Aí, a, um dia ele comeu uma coisa que a perna dele cresceu (Sofia estica os dois braços para frente)... 716. Marília: ...e ele começou... não conseguia andar. (Mudança de entonação ao pronunciar “mais”) Ele foi perguntar para o leão que era o maaais sabido da floresta, ele disse que era, você não precisava andar, era só pular. Daqui em diante... por isso que o coelho não anda, ele pula. Por que o coelho pula! Certo? 720. Marília: (Dando continuidade). Coelho e mais quem?::: (Referindo aos personagens a serem criados.) Não! Vai ser só o leão, ele pergunta pra todos animais da floresta e depois pergunta pro leão. 26: 24 726. Marília: Não vo... Eu já... Era uma vez o, o co... há muito tempo atrás, o coelho tinha uma perna curta::: Ó!:: ó! Assim, ó. É... Há muito tempo atrás, o coelho tinha perna curta, um homem apareceu e disse pra ele tomar isso, um pozinho mágico que deixava ele com pernas longas. Aos 24:42, após discutirem e pensarem numa situação inicial (“o coelho ter perna curta”), Sofia propõe como elemento desencadeador do conflito o fato do personagem comer algo para que a perna cresça “Aí, a, um dia ele comeu uma coisa que a perna dele cresceu” (turno 712). Contudo, o crescimento da perna não permitia que o personagem andasse, isso desencadeia, a partir da fala de Marília, uma série de sugestões referente às ações ligadas a atos enunciativos de fala. Observem que no turno 716, “...e ele começou... não conseguia andar. Ele foi perguntar para o leão que era o maais sabido da floresta, ele [leão] disse que era [o mais sabido da floresta]. Você não precisava andar, era só pular. Daqui em diante... por isso que o coelho não anda, ele pula. Por que o coelho pula! Certo?”, Marília constrói oralmente um diálogo entre dois personagens: o leão e o coelho. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1475 Nesta breve passagem a aluna evoca a existência de um diálogo entre os personagens: O coelho foi perguntar para o leão: – Você é o mais sabido da floresta? O leão disse que era e falou: – Você não precisava andar. Era só pular. Marília (turno 716), ao narrar o encontro desses dois personagens, omite a pergunta “você é o mais sabido da floresta?”, a qual é recuperada elipticamente a partir da resposta do leão, “o leão disse que era”. O que queremos destacar é o arranjo narrativo e o modo que a aluna opera para colocar os personagens em interação dialogal. Diferente do que evocamos no breve excerto, a aluna assume a postura do narrador, arrolando a fala dos personagens de forma bastante particular. Marília, na posição de narradora, coloca como indagação o fato do coelho ser o mais sabido, como prosseguimento irrompe o enunciado resposta sob a forma indireta “ele disse que era”. Compreendemos que o DI em destaque é a réplica referente a um possível questionamento acerca da habilidade do leão ser o animal mais inteligente da floresta. Subsequente ao DI do leão, o DD é inserido “você não precisava andar, era só pular”. Aqui, Marília não marca uma entonação diferenciada, mas destaca um sujeito interlocutor, “coelho”, a quem o leão dirige a palavra. Observem como as falas enunciativas dos personagens foram configuradas em sua formulação escrita. FIGURA 2 – Fala de personagens em “Por que o coelho pula”, linhas 6 a 11, (4º processo, 07/05/2012) Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. 1476 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 No corpo de suas produções, as alunas assumem a figura do narrador, apresentado de forma indireta a fala de personagens e arrolandoas na trama narrativa. Porém, o movimento recursivo da escritura evidencia outras possibilidades enunciativas. No minuto subsequente, a combinação primeira dá margem a outro ponto importante expresso por Marília: “Não! Vai ser só o leão, ele pergunta pra todos animais da floresta e depois pergunta pro leão.” (turno 720). O enunciado invoca a possibilidade enunciativa de perguntar a todos os animais da floresta, o que requeria a criação de mais personagens, para então questionar ao leão. Essa passagem continua sendo apontada por Marília nos turnos seguintes. Vale salientar as ênfases dadas por Marília ao pronunciar alguns elementos do texto. Ao anunciar “Ele foi perguntar ao leão...”, a aluna atribui um interessante comentário ao personagem “que era o maiiis sabido da floresta”, o adjetivo “sabido”. Essa característica tem sua intensidade revelada tanto pelo uso do advérbio “mais”, quanto pela pronúncia de sua entonação, marcada pela repetição da letra “i” na transcrição. Ao referir-se ao leão, Marília enfatiza o advérbio “mais”, não mais ditando ou combinando os elementos que farão parte da história, a aluna, na mudança de entonação e por sua intensidade ao enunciar, assume a voz do narrador. Contudo, as possibilidades enunciativas desse discurso oral emitido durante a combinação, configuraram-se de forma diferente na escrita (linhas 6 a 9): “O coelho perguntou para todos os animais da floresta como ele podia anda[r]”, seguido da resposta “Ninguém sabia” e o “leão sabia”. No turno 726, Marília retoma a ideia inicial (turno 715) dada por Sofia, qual seja, o coelho tomar algo para que suas pernas crescessem e sugere como resolução: “[...] um homem apareceu e disse pra ele tomar isso, um pozinho mágico que deixava ele com pernas longas”, (turno 726). O enunciado é inserido em forma indireta, característica evidente na apresentação do referente “homem” e a ação por ele desenvolvida (aparecer e dizer), conjugada em 3a pessoa do singular direcionando a outro personagem, “ele” (coelho). O que nos chama atenção é o fato da mensagem do “homem”, apesar de estar na estrutura indireta, remeter a um enunciado direto. Isso ocorre pelo simples fato de a aluna inserir “‘Tomar isso’, um pozinho mágico que deixava ele com pernas longas” destacando o pronome demonstrativo “isso”. Dois pontos merecem destaque: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1) 2) 1477 A estrutura esperada seria o verbo no imperativo “Tome isso”; “Isso” possuir valor demonstrativo e referir à ideia mencionada anteriormente por Sofia “Comer algo”, e ao mesmo tempo convocar o enunciado – “O que é isso?” Entre “tomar” e “comer” reside o “isso”, ele, por sua vez, anuncia o complemento seguinte e o caracteriza, o “pozinho mágico”. É este complemento “pozinho mágico para ficar com as pernas longas” que permite convocar, de forma elíptica, “O que é isso?” ou “Isso, o que é?” Os minutos seguintes colocam em destaque as reformulações propostas, desencadeando o seguinte texto dialogal. Vale lembrar que neste momento as alunas ainda combinavam a história: Texto Dialogal 2: MS – Processo 004 (27:13 – 27:44) COMBINAÇÃO 728. MARÍLIA: (Marília altera a voz ao falar “todo mundo da floresta”, fazendo um movimento rotacional com a cabeça.) Calma! Aí, ele foi perguntar pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele andava. Aí ele... 729. SOFIA: Ninguém sabia. 730. MARÍLIA: Ninguém sabia! ∟ Aí ele foi perguntar... 731. SOFIA: (Falando simultaneamente à Marília) Só que ele foi perguntar ao leão porque ele era o mais inteligente da floresta e disse que era só pro coelho pular. E por isso que o coelho... 732. MARÍLIA: Pula. Da primeira proposta “Ele foi perguntar para o leão que era o maais sabido da floresta, ele disse que era. Você não precisava andar, era só pular.” (turno 716), temos uma alteração para “Aí, ele foi perguntar pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele andava” (turno 728). Em ambos os casos, Marília faz uso de marcas entonacionais, atribuindo à história um ritmo diferenciado, como se a contasse na posição de um narrador/contador. Todavia, o complemento do turno 728, ao contrário da primeira tentativa expressa em 716 – sinalizando uma sobreposição de formas de DR (DI, DN e DD) – expõe um único bloco caracterizado pela forma narrativizada. Aqui, nós temos acesso ao conteúdo relacionado à temática do diálogo, mas as alunas não desenvolvem a constituição desse diálogo 1478 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 em formas DI ou DD. O fato do verbo “perguntar” permitir diversas possibilidades enunciativas – como, por exemplo, solicitação polida, simples pedido, interrogação ou questionamento – associado à entonação e ao movimento rotacional da cabeça de Marília quando enuncia “todo mundo” interfere em suas representações. Nos turnos seguintes, as alunas, já com a folha e a caneta na mão, têm o desafio de escrever tudo o que fora combinado. Aqui, as alunas tem a oportunidade de inscrever e marcar uma diferença, contudo, enquanto Marília escreve, Sofia, ao ditar, retoma a ideia de Marília com pequenas alterações. O primeiro enunciado inscrito é reformulado no momento em que Marília escreve, desencadeando uma inversão no que havia sido planejado. O elemento que irá promover a causa-efeito, tomar bebida-para que as pernas do coelho cresçam é inscrito logo no início da história. FIGURA 3 – Fala de personagens em “Por que o coelho pula”, linhas 3 a 5, (4º processo, 07/05/2012) Fonte: Dossiê Criar e Recriar, 2012 – LAME. Texto Dialogal 3: MS – Processo 004 (34:36 – 35:11) COMBINAÇÃO/INSCRIÇÃO 835. MARÍLIA: ...um ho...mem (Falando e escrevendo [um homem])... 836. SOFIA: ...que pediu para o coelho tomar uma coisa. 837. MARÍLIA: ...que pe...diu (Falando e escrevendo [que pidi]) é com U, né? (Sofia balança a cabeça positivamente). (Escrevendo [u]). Pediu... 838. MARÍLIA/SOFIA: (Alunas falam simultaneamente) para [para]... 839. MARÍLIA: ...be...ber (Escrevendo [beber]).... 840. MARÍLIA/SOFIA: (Falando simultaneamente) ...uma (Escrevendo [uma])... 841. SOFIA: ... coisa... 842. MARÍLIA: ...uma poção mágica. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1479 Sofia substitui “perguntar”, verbo presente desde as primeiras formulações, turnos 716, 728, 730 e 731, por “pedir” não especificando o que era exatamente para o personagem coelho tomar. A aluna usa um elemento indefinido “tomar uma coisa” (turno 836) enquanto Marília substitui “tomar alguma coisa” (turno 836) por “beber uma poção mágica” ao escrever. Como podemos notar, as alunas combinam a história e ao escrevêla elementos ora são retomados, ora não. Um dos aspectos discutidos no TD 2 refere-se a um ato de fala correspondente ao personagem coelho em direção a todos animais da floresta. A questão é que Marília altera o tom da voz ao falar “todo mundo da floresta” “Aí, ele foi perguntar pra todo mundo da his, da floresta para sas... perguntar como ele andava.” Duas observações sobrevêm neste enunciado: 1.) o fato da aluna não remeter à resposta dos animais, o que é evidente se notarmos o marcador temporal “aí” seguido do uso de referente “ele”, coelho; 2.) a entonação de Marília destoando de todo o enunciado ao dar ênfase aos personagens “Todo mundo da floresta”. É importante especificar que essa representação segue parâmetros diegéticos, enquadrando o suposto diálogo dos personagens na fala do narrador, a ênfase dada por Marília seria, neste caso, um adendo à caracterização do DN. Em resposta, Sofia, assim como Marília, reproduz o DN “Ninguém sabia”. Vejam que o valor semântico dos verbos é fundamental para assimilarmos a noção de um ato de fala. “Saber”, neste contexto, implica a verbalização da resposta ao questionamento do coelho. Ao dizer “Ninguém sabia”, ela narrativiza “e resume” as possíveis respostas negativas dada pelos animais da floresta. Ademais, o uso dos pronomes indefinidos “todos” e “ninguém” escondem a quantidade de personagens inseridos, bem como as possibilidades enunciativas correspondentes a esse ato de fala por elas imaginado. Por vários momentos, Marília assume a voz narrativa, criando a maior parte do enredo, atribuindo o problema ou a perturbação implicada na história. Isso parece estar relacionado ao fato da aluna ter uma quantidade de enunciados de DR em maior número comparados aos DR criados por Sofia. Vejamos como isso se configura no gráfico abaixo: 1480 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 GRÁFICO 3 – Distribuição de DR (processo 004 de Marília e Sofia) Fonte: Dossiê Criar e Recrear, 2012 – LAME O quantitativo de DR neste processo indica maior ocorrência por parte de Marília. Em um total de 19 DR, a aluna apresentou 16 enunciados relacionados à fala de personagens, enquanto Sofia, desenvolveu apenas 3. Contudo, apesar de Sofia não dar inicialmente as ideias para composição da história, sua participação permite que Marília desenvolva os DR, dado que esta precisa apresentar e organizar o enredo explicitando à Sofia. Apesar de falar pouco, Sofia mantém uma postura mais organizadora ao transpor o que é produzido por Marília. Isso ocorre de forma mais pontual em outro processo de escritura, quando a aluna troca um enunciado em DR sob a ordem indireta, transformando em ordem direta, demarcando-o com o uso sinal gráfico de travessão. 292. SOFIA: Faz um tracinho aqui. (Sugerindo fazer o travessão antes da fala do vulcão.) 293. MARÍLIA: Aqui? (Sofia confirma balançando a cabeça positivamente e Marília grafa [__]) “Esse é o seu castigo”. (MARÍLIA e SOFIA, processo 010, “Por que o sol brilha”. A abordagem quantitativa levanta uma série de questões relacionadas ao desenvolvimento do projeto ao longo das propostas, sobretudo em relação a maior incidência de enunciados criados por parte Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1481 de Marília. Aventar que Marília possui maior habilidade linguística e textual para a construção do DR não pode ser uma asserção sem antes passarmos pelo filtro qualitativo de seus processos. Sofia contribuiu, ainda que de forma menos intensa, para o desenvolvimento e criação das histórias. Nesse sentido, seria bastante interessante avaliar qual a natureza dos enunciados por eles ditos e como os comentários e retornos por ela sinalizados evocaram Marília a não se dar por satisfeita na primeira formulação do DR e insistir para nova formulação. A análise empreendida colocou em evidência alguns desses aspectos, este é o caso de Sofia ao apontar que é preciso demarcar a fala de personagem, fazendo o traço de travessão. Aliás, essa é uma das características mais marcantes em Sofia. A aluna, ao inferir que o enunciado criado por Marília era um DD, expressa a necessidade de incluir o sinal de pontuação relativo a essa inserção. No processo em que ela escreve, o sinal é inserido sem nenhum comentário, ou seja, a aluna ao inscrever o que é dito por Marília transpõe em ordem direta, fazendo a devida marcação. Contudo, quando Marília escreve é Sofia quem está atenta lembrando-a de fazer o sinal para demarcar a fala do personagem. Independente de quem é o escriba, Marília tem o hábito de formular toda a história e Sofia sempre chama a atenção para o fato de que elas precisam escrever, porque do contrário irão esquecer o que já haviam planejado. E em alguns momentos, Sofia expressa à Marília o fato de não entender nada, o que, por sua vez, permite que Marília reestruture, recupere e reformule o que estava pensando. Nos parece razoável supor que Marília tem a tendência de construir textualmente a história e Sofia assume a função organizadora da produção textual. Essa ajuda mútua favorece o processo criativo das alunas. Antes, em suas primeiras produções, as alunas não evidenciavam estruturas que alocassem a fala dos personagens sob a ordem direta. As últimas produções destacaram falas de personagens com demarcação de fonte enunciativa, sinalizando através da pontuação a quem corresponde o discurso, quais sejam, o narrador e o personagem. As produções, quando escritas por Marília, apresentavam rasuras, enunciados justapostos com problemas de pontuação, e talvez este seja um dos motivos da professora intervir com frequência em relação à produção das alunas. Em linhas gerais, a professora intervinha pedindo às alunas que lessem a produção e eventualmente questionava alguns 1482 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 elementos do texto, dentre eles, a demarcação da fala do personagem para maior clareza e compreensão. A interação entre Marília e Sofia permitiu que Sofia colocasse em prática os conhecimentos linguísticos que dispunha para sinalizar a formalização do DD em sua configuração escrita. A dimensão colaborativa é importante para consagrar como se dá essa formalização, Sofia verbalizou a necessidade de utilizar o sinal de pontuação para delimitar a fala do personagem. 5 Conclusão A questão que delineou o trabalho baseou-se na construção coenunciativa do DR em processos de escritura de contos etiológicos inventados por escreventes novatos. A partir disso, intentamos especificar os elementos linguísticos e suprassegmentais correspondentes ao ato de enunciação do personagem. A investigação com foco no diálogo de escreventes novatos asseverou a necessidade de evidenciar o uso deste elemento linguístico centrada nas formulações e reformulações, segundo as quais, ora o DR apresentava o ponto de vista do narrador, ora sob a ótica de algum personagem. O conto etiológico não possui tantas ocorrências de DR, talvez pelo fato deste gênero ter como objetivo a explicitação da origem das coisas. Sua natureza narrativo-ficcional ao esclarecer como determinadas características dos animais e modos de comportamento se originam, “o Coelho pular” remete, consequentemente, a uma forma mais narrativa. Nesta conjuntura, o DR era expresso sobre o ponto de vista do narrador/escrevente, predominando a forma DN. Em nossos resultados, identificamos uma significativa diferença entre as quantidades de ocorrências de DR nos processos e seus produtos. Os processos de escritura analisados mostram que a condição coenunciativa teve um papel crucial na gênese e na construção do DR. A alternância de turnos, os desacordos, as hesitações, os gestos, as expressões faciais e, sobretudo, a necessidade ficcional de inventar personagens favoreceu, em certa medida, a produção de DR. Além disso, estes aspectos colocaram em evidência a articulação entre a forma oral do DR enunciado e sua passagem para a forma escrita. Vale destacar que a pouca ocorrência de DD nos manuscritos pode estar relacionada ao pouco conhecimento que as alunas detêm sobre o funcionamento e usos dos sinais de pontuação. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 1483 Ao longo de suas produções, Marília e Sofia escreveram somente 5 DD, demarcando o discurso do personagem com sinais de pontuação apenas nos últimos processos. Tal ilação vai de encontro aos dados apresentados por Boré (2010, 2012), para quem o DD ocupa lugar de destaque na criação narrativa. A ausência de DD em nosso corpus parece estar relacionada a alta ocorrência de DN nos manuscritos. De todo modo, faz-se necessário aprofundar a relação entre a produção do DD e sua pontuação. A inserção do DR no texto em produção corresponde a um elemento fulcral à complexidade que abrange o processo de escritura. A produção escrita a partir da combinação envolvia a transformação de elementos referenciais, linguísticos e pragmáticos em traço linguístico linear. Nesse sentido, a escrita por colocar em evidência tais elementos referenciais e expô-los a partir de um conjunto de ações processuais, tais como o planejamento, a linearização/inscrição e sua revisão sinaliza que o conhecimento linguístico acerca do DR não é evidente para o escrevente novato. Dizendo de outro modo, o escrevente novato deve articular os elementos linguísticos, – ortográficos, sintáticos e semânticos –, bem como os elementos textuais – desenvolvimento do enredo, à problematização da história, inserção de personagens, associação deste com ato enunciativo de fala –, e ainda, operar e gerir a explicação do porquê das coisas serem como são. As implicações didáticas correspondentes ao ato de escrever de forma colaborativa favorecem o diálogo interlocutivo acerca não só do que se sabe sobre a língua, visto que o aluno deverá utilizá-la como objeto de argumento para a entrada de uma proposição a ser inserida no texto, bem como permite ter acesso aos conhecimentos extralinguísticos de que o aluno dispõe. Tomemos o exemplo de Sofia, para quem a invenção da narrativa parece bem mais árdua do que o é para Marília. Sofia por ser auxiliada pelo seu par, Marília, aquela que cria boa parte do enredo, consegue ater-se aos problemas de ordem ortográfica. Esta última é auxiliada o tempo todo por Sofia à inscrição gráfica de palavras como em: “837. Marília: ‘Pediu’ é com ‘u’, né?” (Processo 004 “Por que o coelho pula”). Essa é uma questão a ser refletida de forma mais detida. Os efeitos do processo de ensino-aprendizagem da escrita, resultante do processo coenunciativo de escrita a dois, dão visibilidade à dinâmica interacional e multimodal, o que permitiria, em estudo futuro, capturar as diferenças individuais da dupla e, consequentemente, identificar como elementos 1484 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1459-1487, jul./set. 2019 pragmáticos, ortográficos, discursivos, enunciativos interferem para a ocorrência de DR nas práticas de textualização efetivadas em sala de aula. Embora existam evidências de que a ocorrência do DR seja favorecida pelo diálogo entre a díade, o presente estudo certamente não sugere que as interferências para a constituição do DR sejam um benefício universal. Em vez disso, é necessário evidenciar a particularidade da escritura estar situada em um ato de enunciação (AUTHIER-REVUZ, 1993) o que implica uma complexa inter-relação de outros fatores na realização da atividade de escrita. Contribuição dos autores Este artigo escrito por mim, Lidiane Evangelista Lira, em coautoria com o professor Eduardo Calil, é o resultado de pesquisas acerca de processos de criação e escritura colaborativa. O corpus de nosso trabalho faz parte do Laboratório do Manuscrito Escolar (LAME), coordenado pelo professor Eduardo Calil. Nesse trabalho adotamos o Sistema Ramos (CALIL, 2019), método para a captura multimodal de processos de escritura no tempo e no espaço real da sala de aula. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Repères dans le champ du discours rapporté (suite). L’Information Grammaticale, Paris, n. 56, p. 10-15, 1993. AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas: Unicamp, 1998. AZEREDO, J. C. Gramática Houaiss. 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Defendemos que os casos em que a inserção de “pouco” gera agramaticalidade (*“Falta pouco um mês para as férias”, *“Os poucos dois alunos vieram para aula”, *“Maria correu pouco uma maratona domingo” etc.) não são fruto de desrespeito a regras sintáticas, e sim à seleção-semântica (s-seleção). “Pouco” seleciona expressões graduáveis de escala aberta. No domínio adjetival, o efeito das escalas se dá no produto da modificação de “pouco”: o sintagma formado por redutor + adjetivo terá sempre escala aberta, independentemente do tipo de escala do adjetivo modificado. No domínio verbal, “pouco” opera sobre verbos inerentemente graduais e sobre dimensões aspectuais escalares. Mostraremos que sentenças com “pouco” em Sintagmas Verbais (SVs) só serão bem formadas quando for modificada uma escala de grau não-máximo. Em dimensões aspectuais, isso implica ou a atelicidade ou a imperfectividade do evento denotado pelo SV. No domínio nominal, “pouco” opera sobre nomes inerentemente graduáveis e sobre a dimensão de quantidade. Sintagmas Nominais (SNs) com leitura de cardinalidade vaga ou de volume apresentam eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1489-1530 1490 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 escalas abertas. O tratamento que assumimos explica a interpretação dos sintagmas modificados pelo redutor e prevê com sucesso os contextos em que sua inserção gerará agramaticalidade. Palavras-chave: licenciamento e distribuição de “pouco”; semântica; advérbios intensificadores. Abstract: This article tackles the licensing and the distribution of “pouco” (BP), employing Formal Semantics theoretical tools. We adopt a degree semantics in the lines of Kennedy and McNally (2005). In our view, “pouco” is a degree modifier, a minimizer/diminisher, performing the same operation in the adjectival, verbal and nominal domains. We claim that the cases of ungrammaticality by the insertion of “pouco” (*“Falta pouco um mês para as férias”, *“Os poucos dois alunos vieram para aula”, *“Maria correu pouco uma maratona domingo” etc.) should not be attributed to syntactic rules, but to semantic selection (s-selection) instead. “Pouco” selects gradable expressions with open scales. In the adjectival domain, the scale effect appears on the modification product: the phrase containing “pouco” and the adjective will be always an open scale, regardless of the modified adjective scale type. In the verbal domain, “pouco” ranges over inherently gradable verbs or over aspectual scalar dimensions. We show that sentences with “pouco” in Verbal Phrases (VPs) are only well formed if the modified scale has a non-maximal degree. In aspectual dimensions, that means the atelicity or imperfectiveness of the event denoted by the VP. In the nominal domain, “pouco” modifies inherently gradable nouns and the quantity dimension. Noun Phrases (NPs) with vague cardinality or with a volume reading have open scales. Our approach explains the readings found in phrases modified by the minimizer and also successfully predicts in which contexts it will produce grammaticality. Keywords: licensing and distribution of “pouco” (Brazilian Portuguese); semantics; intensifiers. Recebido em 12 de fevereiro de 2019 Aceito em 16 de junho de 2019 1. Introdução A gramática tradicional (GT) classifica “pouco” de diversas maneiras, conforme o ambiente gramatical em que ele está e a função sintática ali exercida, ou conforme a categoria do elemento modificado: “pouco” aparece na GT como artigo, advérbio de intensidade, substantivo masculino ou pronome indefinido. Essa multiplicidade de classificações Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1491 na GT reflete a irrestrita circulação de “pouco” pelos domínios. Uma tão ampla distribuição merece ser explicada. “Pouco” é onipresente por não realizar nenhuma seleção categorial. Enquanto “lentamente” só incide sobre eventos, operando apenas sobre sintagmas verbais (SVs); “dentro” relaciona dois lugares (literal ou metaforicamente), atuando exclusivamente com sintagmas nominais (SNs); e “extremamente” somente intensifica adjetivos, alguns modificadores de grau extraordinários, como “muito” e “pouco”, aparecem tanto modificando SVs (“Eu dormi pouco/muito”) e SNs (“Poucos/Muitos alunos faltaram”) quanto Sintagmas Adjetivais (SAs) (“João é pouco/muito inteligente”). Se essa liberdade de atuação pelos domínios verbal, adjetival e nominal significa que advérbios como “pouco” não são sensíveis à categoria da expressão modificada, isso não significa que eles sejam sempre licenciados; como os exemplos abaixo ilustram, há sentenças perfeitas sem “pouco” que se tornam agramaticais quando ele é inserido: (1) a. Chegamos em casa agora. b. * Chegamos pouco em casa agora. (2) a. Pedro comprou três bananas. b. * Pedro comprou três poucas bananas. (3) a. Metade das armas do País é ilegal. b. * Metade das armas do País é pouco ilegal. A proposta deste artigo é apresentar uma explicação para os fatos ilustrados de (1) a (3). Para dar conta desses exemplos e de outros, a serem apresentados adiante, indicando fatos sobre a distribuição e a interpretação de “pouco”, propomos que “pouco” é um modificador que não faz seleção categorial, mas faz seleção semântica (s-seleção): ele seleciona um tipo de escala, a escala aberta, e, nas sentenças malformadas após sua inserção, a expressão a ser modificada por ele ou não é escalar ou apresenta escala fechada. A seleção de tipos de escala por modificadores é prevista por uma semântica de graus nos moldes de Kennedy e McNally (2005). Os autores, com base num estudo de corpos, mostraram que os advérbios intensificadores do inglês “very”, “much” e “well” estão em distribuição complementar, ou seja, que, no corpus examinado, há adjetivos modificáveis exclusivamente por 1492 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 um desses advérbios, não sendo modificados pelos demais. Os autores provaram, apresentando testes linguísticos independentes dessa seleção por advérbios em estudo, que os adjetivos podem ser agrupados pelas propriedades escalares que apresentam. A complementaridade encontrada entre os adjetivos modificados por “very”, “much” e “well” é explicada assumindo que esses intensificadores fazem s-seleção, escolhendo certas características da estrutura lógica das escalas em detrimento de outras. Em outras palavras: esses intensificadores são especializados em certos tipos de escala. Entraremos em detalhes sobre essa teoria logo mais, na seção 2, quando discutirmos os fatos de “pouco” modificando adjetivos. Em consonância com a semântica de graus, daqui em diante vamos nos referir a “pouco” não mais como “advérbio” ou “intensificador” (ou por qualquer dos rótulos propostos pela GT), mas como “modificador de graus”. (Examinaremos como se dá a operação de modificação de graus que justifica tal mudança de nomenclatura na seção 2.). Como uma das consequências de tratar “pouco” como um modificador de graus especializado em escalas abertas, seria de esperar que, de alguma forma, a semântica das expressões produzidas por “pouco” fosse a mesma, uma vez que, independentemente de o sintagma modificado ser verbal, nominal ou adjetival, o tipo de escala apresentado satisfaz a s-seleção do modificador. Assim, apesar de “pouco” transitar por diversos domínios, ao contrário do que propõe a gramática tradicional (para quem há um artigo, um advérbio de intensidade, um substantivo masculino e um pronome indefinido que, por coincidência, recebem uma forma morfofonológica idêntica), defenderemos que não há polissemia: seja no domínio verbal, nominal ou adjetival, é o mesmo “pouco” que está modificando expressões graduais. Um mesmo modificador de graus pode operar sobre sintagmas das mais diversas classes, desde adjetivos de grau (4) até nomes plurais (5), passando por verbos inerentemente graduais (6), verbos eventivos (7), nomes de massa (8) e nomes inerentemente graduais (9), mantendo um significado único, aquele atribuído por Kennedy e McNally (2005) a redutores/ minimizadores, como pode ser depreendido das paráfrases nas letras (b) abaixo: (4) a. A aluna é pouco estudiosa. b. A aluna é menos estudiosa do que deveria ser. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1493 (5) a. Tem poucas pessoas na festa. b. Tem menos pessoas na festa do que era esperado. (6) a. Maria gosta pouco do trabalho dela. b. Maria gosta menos do trabalho dela do que seria o ideal. (7) a. Essa música toca pouco no rádio. b. O tanto de vezes que a rádio executa essa canção é menor do que o esperado. (8) a. Há pouco óleo na garrafa. b. O tanto de óleo que sobrou na embalagem é menor do que o necessário. (9) a. Estou com pouco sono. b. O grau de sono que eu experimento é menor do que o normal. Como a semelhança entre as paráfrases das sentenças de (4) a (9) indica, o modificador de graus “pouco” realiza a mesma operação em qualquer domínio, adjetival, verbal e nominal. A natureza dessa operação será esmiuçada nas próximas seções, bem como serão indicados os fatores que a favorecem ou que impedem que ela se aplique. Dividimos o artigo por domínios. Na seção 2, trataremos de “pouco” no domínio adjetival; na seção 3, trataremos de “pouco” no domínio verbal; e na seção 4, trataremos de “pouco” no domínio nominal. A quinta e última seção é a conclusão, em que retomamos os pontos comuns à modificação por “pouco” em todos os domínios, mostrando que todos os casos podem ser explicados por sua s-seleção, e fazemos um balanço dos ganhos gerados por nossa proposta. Antes de prosseguirmos, para não alimentarmos falsas expectativas, gostaríamos de avisar ao leitor de que não vamos tratar de “um pouco” neste artigo. Para que os motivos dessa reserva sejam compreendidos, precisamos situar brevemente “um pouco” em relação a “pouco”. A literatura (ver HEIM, 2007; DUCROT, 1973; GOMES; SANCHEZ-MENDES, 2015) observa que, em várias línguas, um determinado tipo de modificador de grau, justamente o descrito como redutor/minimizador, aparece em duas formas: numa está acompanhado de artigo indefinido, e na outra não. Os pares “little” / “a little” 1494 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 (inglês), “peu” / “un peu” (francês) e “pouco”/ “um pouco” (português) exemplificam o fenômeno. A distribuição e interpretação dos dois membros de cada par não é completamente coincidente. No Brasil, foi a semântica da argumentação, de Ducrot (1977), a que mais se debruçou sobre a diferença na interpretação dos membros do par. Para o autor, um membro do par aponta para a suficiência, e o outro, para a insuficiência. Por exemplo, dada a pergunta “Mas você tem certeza de que está em condições de dirigir?”, a interpretação mais saliente para a resposta “Eu dormi um pouco” é “sim, acho que consigo dirigir”, enquanto que a resposta “Eu dormi pouco” é usualmente compreendida como “não, acho que não estou bem o bastante para dirigir”. Na semântica formal, gostaríamos que a interpretação do complexo “um pouco” fosse um resultado da composição entre a semântica de seus dois termos, “um” e “pouco”; mas essa é uma tarefa para pesquisas futuras. No âmbito deste artigo, vamos nos ater à forma sem o artigo, “pouco”. Começando pelo domínio dos adjetivos. 2. “Pouco” no domínio adjetival Dado que tratamos “pouco” como um modificador de graus especializado em escalas abertas, e ele modifica alguns adjetivos como “estudiosa” (4) mas não pode modificar outros, como “ilegal” (3), nossa hipótese é que adjetivos como “estudiosa” atendam aos critérios da s-seleção de “pouco”, mas adjetivos como “ilegal” não. Para podermos construir uma argumentação sólida nesse sentido, precisamos primeiramente apresentar a teoria que sustenta nossa análise, a semântica de graus. Para Kennedy e McNally (2005), os adjetivos se dividem em adjetivos graduais ou adjetivos de grau (AGs) e adjetivos sem grau. Os autores propõem testes para separar os AGs dos sem grau. Os adjetivos de grau aceitam intensificação (10), podem entrar em estruturas comparativas (11) e têm opostos: (10) a. A árvore é bastante/muito/ pouco alta.1 b. * Jean Willis foi bastante/muito/pouco eleito por 31% dos votos válidos. 1 Dados de Delduque (2016). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1495 (11) a. A árvore é mais alta que a casa. b. * Marcelo Freixo foi mais eleito que Jean Willis. Segundo os testes em (10) e (11), podemos observar que “alta” é um AG, enquanto “eleito” é um adjetivo sem grau. Além disso, só os AGs possuem opostos: “alto” – “baixo”, “aberto” –“fechado”, “seco” – “úmido” etc., mas os sem grau não. Qual seria o oposto de “eleito”? Agora que temos como separar AGs dos adjetivos sem grau, vamos examinar a proposta teórica que explica essa diferença de comportamento entre expressões da mesma categoria. Segundo Kennedy e McNally (2005), sentenças com AGs são comparativas implícitas. Nessa visão, uma sentença como “A árvore é alta” significa que o grau de altura da árvore é maior que o de algum parâmetro de comparação não pronunciado, que é recuperado no contexto. Se o falante pensar numa casa como parâmetro, então a sentença “A árvore é alta” será uma versão abreviada de (11a): sempre que uma for verdadeira, a outra também será. Elas apresentam as mesmas condições de verdade. Se pensarmos que a casa tem 3m de altura e a árvore tem 4m, a árvore será considerada alta perto da casa. Mas se compararmos essa árvore com outra coisa, o julgamento do valor de verdade da sentença “A árvore é alta” pode mudar. Por exemplo, se compararmos a árvore de 4m com um prédio de 10m, a árvore não será considerada alta, e a sentença “A árvore é alta” será julgada falsa. Como os falantes podem escolher livremente o parâmetro de comparação em comparações implícitas, os julgamentos de valor de verdade podem variar. Por exemplo, se Maria diz a João “A árvore é alta” tomando a casa de 3m como parâmetro, mas João ao ouvir a sentença assume o prédio de 10m como parâmetro, eles vão discordar. Isso quer dizer que adjetivos como “alto” são comparações implícitas de superioridade: para uma sentença como x é alto (um equivalente de x é mais alto que y, em que y não é pronunciado) ser verdadeira, o grau de altura de x tem de ser superior ao de um parâmetro de comparação contextual (y). O adjetivo oposto (“baixo”) está na mesma escala, no caso, a de altura, mas vai na direção inversa: é uma comparação de inferioridade. A verdade de uma sentença do tipo x é baixo (em que x é um SN apresentando a propriedade escalar de altura, equivalente a x é mais baixo que y, sem que y seja pronunciado) exige que o grau de altura de x seja inferior ao do parâmetro de comparação contextual (y). 1496 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Uma escala é uma sucessão de graus de uma propriedade, ordenados de forma crescente. Os AGs apresentam estruturas de escala diferentes (aberta; parcialmente fechada; totalmente fechada) (KENNEDY; McNALLY, 2005). Adjetivos em que não se pode prever se o parâmetro contextual de comparação terá grau maior ou menor que o do argumento do adjetivo, como é o caso de “alto”, são de escala aberta. A escala aberta é uma escala em que uma ponta é fixa, dada pelo grau do argumento do AG, mas a posição da outra ponta em relação ao grau do argumento nominal do adjetivo não foi previamente fixada. Num segundo tipo de escala, a totalmente fechada, temos uma comparativa implícita de igualdade entre o grau da propriedade exibido pelo argumento do AG no momento a que a sentença se refere e um estado limite desse indivíduo. Pelo fato de o parâmetro ser sempre esse estado limite, o julgamento da verdade de sentenças com AGs de escala totalmente fechada, como é o caso da escala de ocupação, de que participam os opostos “cheio” e “vazio”, não varia com o contexto. Um copo será considerado vazio se o exibir um grau de ocupação igual a 0% de preenchimento; se adicionarmos qualquer quantidade de líquido em um copo, ele deixará de ser vazio. Um copo está cheio quando seu conteúdo atinge 100% de preenchimento, se a capacidade total do copo é 300 ml e adicionarmos 350 ml, o copo irá trasbordar. Dada a escolha padrão desse parâmetro não pronunciado, o julgamento do valor de verdade de sentenças como “o copo está vazio” pelos falantes costuma convergir. Há um terceiro tipo de escala, a escala parcialmente fechada, em que o grau de uma ponta é fixo (daí a ponta ser fechada), mas o grau da outra ponta é flexível. Se a escala é parcialmente fechada, um dos AGs que participam dela será uma comparação de igualdade (o da ponta fechada) e seu oposto será uma comparação de superioridade (o AG da ponta aberta). Por exemplo, vamos considerar a propriedade da umidade: uma roupa no varal é considerada seca se tiver exatamente 0% de umidade; e estará molhada com qualquer grau maior que zero de umidade, independentemente de o nível de umidade ser 5% ou 100%. O AG “seco”, a ponta fechada da escala, é uma comparação de igualdade entre o estado atual da roupa e essa referência. Já o AG “molhado”, a ponta aberta da escala, requer que a roupa apresente um grau diferente (para cima) de zero, ou seja, maior que o parâmetro. Dizemos que as escalas parcialmente fechadas têm uma ponta aberta, que corresponde Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1497 a um adjetivo de grau mínimo (“molhado”), e uma ponta fechada, que corresponde a um adjetivo de grau máximo (“seco”). Bem, foi proposto que os modificadores de AGs reconhecem e distinguem essa variedade de estruturas de escala. Modificadores de AGs tomam uma escala de certo tipo e acrescentam nova condição para a verdade da sentença. Dito de outro modo, os modificadores alteram a interpretação do grau do adjetivo pedindo que mais uma condição seja satisfeita. Vejamos a diferença entre os modificadores: (12) a. João é alto. b. João é muito alto. c. João é pouco alto.2 Consideremos contextos diferentes. No primeiro, João tem 6 anos e 1,4m, e seu irmão de 8 anos mede 1,3m. Nesse contexto, a sentença (12a) pode ser considerada verdadeira. “João é alto” será verdadeira se o grau de altura dele for só um pouquinho superior ao do parâmetro de comparação contextual. Mas, nesse mesmo contexto, dificilmente (12b) será considerada verdadeira. Para ser tido como “muito alto”, não basta que o grau de altura de João seja o maior entre os comparados: além disso, a diferença entre os dois tem de aumentar. Daí a ideia de que “muito” é um ampliador. No mesmo contexto, (12c) não é apropriado (atenção: não estamos dizendo que “João é um pouco alto”, mas que ele “é pouco alto”). Agora vamos imaginar um contexto distinto. João continua com 1,4m, e ele quer pegar alguma coisa que está sobre o armário de 2,5m, sem usar escadas. Ele não vai alcançar, nem esticando os braços ao máximo. 2 Agradecemos a um dos pareceristas anônimos, que apontou que a sentença (12c) lhe pareceu estranha e relatou não ter encontrado no Google exemplos qualificando alguém como “pouco alto”. Entendemos que a sentença é realmente rara, mas por razões pragmáticas. Ela não é agramatical. Dada a semântica que propomos para “pouco”, (12c) significa que João tem altura abaixo de um padrão contextual, o que é uma avaliação negativa de uma propriedade inerente num humano adulto; esse tipo de crítica não está de acordo com as regras da cortesia do PB. É mais tranquilo achar “pouco” em uso para dizer que um objeto é menos alto do que deveria. De fato, encontramos com facilidade numa busca no Google sentenças como “a mesquita é separada do hipódromo por um muro pouco alto”, e registros de uma mulher com “um sapato pouco alto” (a qual não atingia, calçada, nem 1,7m). 1498 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Nesse contexto, a sentença (12a) é falsa, já que o grau de altura de João não supera o grau do parâmetro contextual de comparação, o armário. Naturalmente, (12b) também é falsa nessa situação, visto que o ampliador requer que o grau de altura de João seja o maior entre os comparados (o que não ocorre) e que a diferença entre ambos seja grande (o que também não ocorre). Mas (12c) é verdadeira nesse contexto, podendo ser usada para expressar que João tem menos altura que a necessária para alcançar aquilo que está em cima do armário. Que diferença semântica a inserção de “pouco” em (12a) faz, então? Ou, perguntando de outro modo, qual é a diferença entre (12a) e (12c)? Podemos dizer que a contribuição de “pouco” é indicar que o grau da propriedade atribuído ao argumento do adjetivo está abaixo do parâmetro. Por isso, modificadores de grau como “pouco” são redutores/ minimizadores (cf. KENNEDY; McNALLY, 2005). As sentenças (12a) e (12b) são comparações implícitas de superioridade, mas (12c) é uma comparação implícita de inferioridade. Na mesma escala, a da propriedade de altura, enquanto “alto” (12a) e “muito alto” (12b) apresentam uma mesma direção (o grau do argumento está acima do grau do parâmetro), (12c) apresenta a direção inversa (o grau do argumento está abaixo do grau do parâmetro). Em inglês, segundo os próprios Kennedy e McNally (2005), os modificadores de grau são especializados em modificar AGs com certo tipo de escala: “very” s-seleciona escalas abertas, “well” s-seleciona escalas fechadas no grau máximo e “much” s-seleciona escalas fechadas no grau mínimo. Os autores defendem ainda que os redutores selecionam as pontas abertas de escalas fechadas (“slightly wet” “ligeiramente molhado”, *“slightly full” “ligeiramente cheio”). Bogal-Allbritten (2012) afirma que os redutores também selecionam escalas abertas, mas há um maior custo de processamento. Para todos esses autores, não são bem formadas as combinações entre redutores e adjetivos de grau máximo. Isso não pode ser estendido aos redutores do português, uma vez que “pouco” modifica AGs de escala aberta, como vimos em (12c), de escala fechada no grau mínimo (“O sapato está pouco sujo, considerando que passamos por tantas poças de lama”) e de escala fechada no grau máximo (“O chão ainda está pouco limpo, esfregue mais”). Como lidar com essa diferença selecional entre os modificadores de grau do inglês e os do português, sobretudo quanto aos redutores, o tema deste artigo? Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1499 Seguiremos Gomes (2010), que afirma que o efeito das escalas é universal, mas os parâmetros variam de uma língua para outra: em inglês é na seleção do item modificado e em PB o efeito do tipo de escala é no produto. Segundo essa proposta, “pouco” modifica qualquer AG, mas, seja qual for a estrutura de escala do AG modificado, o produto da modificação de um AG por “pouco” é invariavelmente uma escala aberta, em que o a denotação do nome modificado por “pouco” AG apresenta o grau mais baixo entre os comparados. Vejamos: (13) a. A roupa estava pouco molhada. b. A roupa está pouco seca. c. João é pouco alto. (=12c) Todas as sentenças em (13) são bem formadas, contendo a primeira um AG de escala fechada no grau mínimo, a segunda um AG de escala fechada no grau máximo, e a terceira, como já vimos, um AG de escala aberta. Isso é inesperado para a literatura. Kennedy e McNally (2005) preveem que tanto (13b) quanto (13c) sejam agramaticais, enquanto Bogal-Allbritten (2012) previa que (13b) fosse agramatical. Mas, embora os exemplos em (13) mostrem que em PB os modificadores de graus não fazem distinção entre estruturas de escala na s-seleção dos AGs que modificam, há uma regularidade na interpretação. Sempre que “pouco” modifica um adjetivo, o produto é uma comparação de inferioridade. Já discutimos (13c); em (13a), o grau de umidade da roupa precisa estar abaixo do parâmetro contextual; e em (13b), o grau de secura da roupa precisa estar abaixo de um parâmetro contextual; ambas as sentenças podem expressar que a roupa está menos molhada/ seca do que o esperado, dadas as circunstâncias. Assim, (13a) implica que o falante desejava que a roupa estivesse mais molhada do que se encontra, e (13b) expressa o oposto, que o desejo era o de que a roupa que estivesse mais seca do que se encontra. A seleção semântica é por adjetivos de grau; o produto da modificação é sempre uma escala aberta, em que o nome modificado pelo adjetivo apresentado o grau mais baixo entre os comparados. Portanto, se o tipo de escala não influencia no licenciamento ou não de um adjetivo para modificação por “pouco”, o sintagma resultante da modificação mostra sensibilidade aos tipos de escala, sendo o tipo de escala do conjunto previsível. O produto da modificação por “pouco” 1500 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 no domínio adjetival é sempre uma escala aberta (mesmo quando o AG modificado é de escala fechada). Dado que “pouco” introduz uma comparação implícita de inferioridade, faz sentido que haja muita sensibilidade contextual ao licenciamento de “pouco” + AG em contextos avaliativos e expressivos. Entendemos o motivo pelo qual “pouco” é mais natural com AGs de avaliação negativa do que com AGs de avaliação positiva. A razão é pragmática. É preciso um contexto especial para que a máxima da Polidez “nunca aponte os defeitos das outras pessoas” possa ser atravessada. Por exemplo, “João é pouco chato, se comparado a Pedro”, significa que a chatice de João está abaixo da de Pedro; ou seja, inserir “pouco” em “João é chato” diminui a chatice de João. Já “Maria é pouco bonita” não é elogioso, exatamente por reduzir o grau da beleza de Maria. Assim, o resultado da modificação de adjetivos por “pouco” sofre restrições pragmáticas, justamente pelo significado gerado, que diz que algo/ alguém não alcança um parâmetro de comparação. Quando o parâmetro de comparação for um padrão positivo, como “bonito”, inserir “pouco” corresponderá a uma crítica. Quando o parâmetro de comparação for um padrão negativo, como “chato”, inserir “pouco” atenuará a crítica. 3. “Pouco” no domínio verbal Começamos pelo domínio adjetival por facilitar a introdução de conceitos teóricos como escalas, estruturas de escala e modificadores de grau. Mas começamos pelo menos típico. No domínio verbal, a sensibilidade de “pouco” a estruturas de escala se manifesta claramente na seleção do SV modificado. No SV, a distribuição de “pouco” é fortemente condicionada pela existência de graus ou escalas. Diferentemente do que acontece com os adjetivos, no caso do domínio verbal “pouco” não modifica qualquer escala aspectual, mas seleciona um determinado tipo, como veremos adiante. Nesse sentido, o comportamento de “pouco” no domínio verbal se aproxima mais do comportamento descrito para os redutores de inglês no domínio adjetival. Vamos aos fatos que precisam de explicação. Assumindo que “pouco” em SVs ocupe sempre a mesma posição sintática, não temos razões estruturais para o fato de que sentenças bem formadas na ausência de “pouco” se tornem agramaticais quando o modificador de graus é inserido, como por exemplo: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1501 (14) a. Maria guardou (*pouco) o livro na estante. b. Ele chegou (*pouco) há 10 minutos. c. A água esquentou (*pouco) até 100 graus. d. O almoço será (*pouco) servido aos convidados. e. A moça passou (*pouco) no vestibular. f. Andrea foi (*pouco) à igreja neste domingo às 7 horas. g. João está (*pouco) na fila agora. h. Paulo morreu (*pouco) ontem. i. Carlos será (*pouco) dentista.3 Por que a inserção de “pouco” nesses diversos SVs é agramatical? O que impede a modificação desses SVs por “pouco”? Retomando o que vínhamos dizendo, neste artigo pretendemos fazer generalizações que permitam prever os casos onde “pouco” será (a)gramatical em SVs, a partir das nossas hipóteses. Prevemos que “pouco” poderá modificar todos os SVs de grau inerente, desde que eles não marquem o grau extremo, máximo da propriedade; mas não todos os sem grau inerente. Entre esses últimos, há dimensões aspectuais que apresentam tipos de escala. “Pouco” é sensível à natureza da escala dessa dimensão aspectual. Neste ponto, é preciso esclarecer o que entendemos por “dimensão aspectual”. Ao tratar de adjetivos de grau, dissemos que uma escala é uma sucessão de graus de uma propriedade, ordenados de forma crescente. Uma propriedade é uma dimensão. Por exemplo, os adjetivos “alto” e “baixo” associam seu argumento a um grau na dimensão de ALTURA. Já “cheio” e “vazio” associam seu argumento a um grau na dimensão de OCUPAÇÃO. Adjetivos apresentam como dimensões propriedades de indivíduos. Sintagmas verbais (SVs) denotam tipos de eventualidade4 (“comprar o juiz de futebol”, “chutar o balde”, “pedir água”). Os SVs são classificados por Vendler (1957) em categorias aspectuais: estados, atividades, accomplishments e achievements, como veremos mais adiante. Essa divisão, conhecida como em classes acionais, separa os SVs segundo propriedades ou dimensões aspectuais. Essas 3 Dados de Delduque (2017) e de Delduque e Gomes (2018). Eventualidade é o nome genérico usado pela semântica formal para “acontecimentos”, “estados de coisas” ou situações localizadas numa coordenada espaço-temporal ou estendidas por um intervalo de tempo. 4 1502 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 dimensões são projetadas por tipos de eventualidade. Por exemplo, mudança de estado é uma dimensão encontrada em SVs dinâmicos (atividades, accomplishments e achievements), mas ausente em estados. Já a duração (distância entre o momento inicial e o final da eventualidade) é uma dimensão encontrada em estados, atividades e accomplishments, mas ausente em achievements. A telicidade, por sua vez, só está presente em accomplishments e em achievements. A dimensão aspectual “progressão para a culminância” só é encontrada em accomplishments, pois requer um intervalo temporal entre o início e a culminância da eventualidade. Outra dimensão aspectual é a frequência ou iteratividade, que denota uma repetição do mesmo tipo de eventualidade, formando uma quantidade plural; para poder repetir o tipo de eventualidade, é preciso ter episódios, ou seja, múltiplas eventualidades culminadas; por isso, estados não apresentam a dimensão de frequência. Tais dimensões são aspectuais porque dependem da classe acional do SV. Algumas delas são graduais, e, portanto, escalares, como a de frequência e a de duração; mas a telicidade não é escalar (ou uma eventualidade culmina, ou não); e a progressão para a culminância é uma escala fechada, pois, após a culminância, a eventualidade cessa. Assumimos que os modificadores de grau como “pouco” e “muito” podem operar sobre qualquer tipo de escala, e, portanto, atuam também sobre escalas aspectuais. Uma vez que defendemos que “pouco” seleciona escalas abertas, esperamos que ele selecione as dimensões aspectuais que apresentem essa característica, e que seja incompatível com aquelas que não têm grau ou que constituem escalas fechadas. Detalharemos essa abordagem logo mais. Antes de prosseguir, precisamos dizer que, assim como ocorre com os adjetivos, que se dividem em com ou sem graus, também há verbos que são inerentemente, lexicalmente graduais, ao lado de núcleos de SVs que não entram na derivação sintática já com gradabilidade em sua denotação. Começaremos tratando da leitura descrita na GT como de intensidade, que é a produzida quando “pouco” modifica um predicado verbal inerentemente escalar. Segundo Gomes (2018), que se baseou em Fleischhauer (2016), há eventualidades escalares por sua natureza semântica. Alguns verbos são escalares por denotarem emissão de substância mensurável, produzindo luz, som, água etc. (“vazar”, “chorar”, “iluminar” etc.), outros por herança da escala adjetival presente em sua base (“esquentar”, “esfriar” etc.), outros pela característica do movimento (direcionalidade) que lexicalizam Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1503 (“subir”, “elevar” etc.). Verbos psicológicos como “amar”, “gostar de”, “apreciar”, “divertir”, “temer”, “assustar” vão fornecer escalas sobre a profundidade/intensidade do sentimento/sensação. Verbos incrementais, de consumo ou criação, também fornecem escalas naturais (“comer”, “beber” etc.), dado o fato de a relação parte-todo e as dimensões fixas da entidade referida por seu complemento fixarem uma progressão gradual para o (des)aparecimento de determinado(s) indivíduo(s). Verbos incrementais como “salgar”/”adoçar” indicam acúmulo de sal/açúcar sobre o alimento/ a bebida denotada pelo argumento interno do verbo: quanto mais tempo durar o episódio de “salgar”/”adoçar”, maior será o tanto de sal/açúcar encontrado no alimento/ na bebida que é o argumento interno do verbo. Há mais verbos incrementais, que descrevem atividades escalares em quantidade (“cavar”, “empilhar”, “juntar” etc.), pelo acúmulo crescente de (sub)produtos. Há eventualidades, ainda, que podem ganhar uma leitura de grau pelo nosso conhecimento enciclopédico ou de mundo sobre elas. Por exemplo, o nosso conhecimento sobre a contribuição apropriada numa conversa permite dizer que alguém “falou demais” em uma situação, por esse falante ter deixado escapar informações que deveriam ter sido mantidas em segredo. Não é possível listar todos os verbos que geram leitura de intensidade, porém, essa leitura se dá a partir de uma de duas fontes: ou a lexical ou a pragmática. Há verbos graduais que apresentam argumento com grau extremo (máximo) da propriedade. Nossa análise pressupõe que “pouco” não combine com esse tipo de verbo. (15) a. João gosta pouco de pagode. (grau não-máximo) b. João adora (*pouco) pagode. (grau máximo) c. João odeia (*pouco) pagode. (grau máximo) d. João detesta (*pouco) pagode. (grau máximo) Dado que a leitura de intensidade depende da entrada lexical do verbo, cumpre observar que os verbos de grau não-máximo sempre apresentam escalas abertas (“O navio afundou pouco”, “O corte sangrou pouco”, “A água esquentou pouco” etc.). Isto posto, queremos avisar que a leitura de intensidade não será mais considerada neste trabalho, porque independe do aspecto gramatical e não se relaciona com os aspectos propostos por Vendler (1957). O ponto mais interessante no domínio verbal é o tipo de escala associada a certas dimensões aspectuais bastante 1504 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 discutidas na literatura (a esse respeito, ver, por exemplo, o apanhado feito em Wachowicz e Foltran (2006)). É dessas dimensões aspectuais que vamos tratar agora. Só a seleção semântica de “pouco” explica sua distribuição por SVs com dimensões aspectuais escalares. Para a análise proposta, vamos precisar distinguir entre as classes acionais propostas por Vendler (1957). As classes acionais dividem os verbos a partir de sua acionalidade ou aspecto lexical. A classificação foi proposta de acordo com a interação dos verbos com esquemas de tempo (time schemata); posteriormente, as classes apontadas por Vendler foram distinguidas umas das outras por algumas características apontadas como traços semânticos de SVs, tais como “mudança de estado”, “duração”, “telicidade” ou “culminância”, “progressão para a culminância” e a possibilidade de gerar leitura iterativa ou de frequência. São essas as dimensões aspectuais que consideramos neste trabalho. Segundo Vendler (1957), o aspecto lexical dos sintagmas verbais é depreendido de quatro divisões: (i) estados – têm duração, mas não têm culminância intrínseca (podem ser permanentes, como “Dois mais dois são quatro” ou provisórios, como “Estou com fome”) e resistem ao perfectivo (*“Dois mais dois foram quatro”); (ii) atividades – têm duração, não têm culminância intrínseca (“João dorme”), mas o aspecto perfectivo coloca um fim a essa eventualidade (“João dormiu”); (iii) accomplishments – têm duração (e etapas diferentes – apresenta subeventos heterogêneos – “preparar o almoço” inclui etapas distintas, como lavar o arroz, refogar o arroz, temperar o frango, assar o frango etc.) e também têm culminância intrínseca (a eventualidade de “construir uma ponte” em “O engenheiro construiu uma ponte” não pode continuar depois de a ponte ficar pronta); e (vi) achievements _ não têm duração, pois são pontuais, e apresentam culminância intrínseca (em “João ganhou a corrida”, a vitória de João se dá no instante em que ele atravessa a linha de chegada, e a eventualidade não pode mais prosseguir daí em diante). Como já foi bem estabelecido na literatura (cf. WACHOWICZ; FOLTRAN, 2006, entre outros autores), a classe acional não é própria dos verbos em isolamento; na verdade, o que é classificado é o Sintagma Verbal, com o complemento verbal incluído. Há testes já consagrados para identificar a classe acional de um SV. Estados não servem de resposta a perguntas com o verbo “fazer” (DOWTY, 1979), que requer agentividade (16); não entram no imperativo (17) (DOWTY, 1979), e não coocorrem com advérbios “deliberadamente”, “cuidadosamente” (DOWTY, 1979) (18) nem com “lentamente” (van VALIN JR., 1998) (19): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1505 (16) O que você está fazendo? a. Estou estudando. b. * Estou sendo brasileira. (17) a. Fique quieto! b. # Sinta fome! (18) * João é deliberadamente estrangeiro. (19) * João gosta lentamente de viajar. Segundo Dowty (1979), as atividades coocorrem com advérbio “por X tempo”, coocorrem com advérbios “deliberadamente”, “cuidadosamente” e a sentença no progressivo com o advérbio acarreta que a ação aconteceu: (20) a. Maria caminhou por duas horas. b. Maria caminhou cuidadosamente. c. “Maria estava caminhando” implica “Maria caminhou um pouco”. Para identificar accomplishments, Dowty (1979) indica que o SV ocorre com advérbios do tipo “em X tempo”, que o progressivo não acarreta que a ação se deu, e que após a modificação por “quase” há duas interpretações: (21) a. Maria pintou o quadro em dois dias. b. Maria estava pintando o quadro. (Não significa que ela terminou o quadro.) c. Maria quase pintou o quadro. (A primeira interpretação é de que Maria não começou a pintar o quadro, e a segunda é a de que Maria começou a pintá-lo, mas não terminou.) Com achievements, construções com “por” soam estranhas; e achievements não são aceitáveis com “parar”, e o advérbio “quase” não deixa a sentença ambígua: 1506 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 (22) a.* João chegou por poucos minutos. b. * João parou de chegar. c. João quase chegou. (Única leitura: ele estava vindo, mas a eventualidade não culminou) Uma vez mostrados os modos consagrados de distinguir entre as classes acionais, que utilizamos para classificar as classes acionais dos SVs modificados ou não por “pouco”, podemos falar agora em propriedades de eventos ligadas a cada uma delas. Os estados e as atividades têm duração, mas não têm uma culminância intrínseca, isto é, não possuem um ponto final definido, podendo se prolongar indefinidamente. Se “João gosta de chocolate” (estado), isso pode nunca mudar. Se “João corre” (atividade), não há um tempo previamente determinado para essa corrida acabar. Quanto aos accomplishments, eles também apresentam duração, como os estados e atividades; o que os distingue é que apenas os accomplishments apresentam também culminância. Quanto aos achievements, eles têm culminância, mas não duração. Dissemos que modificadores de grau operam sobre dimensões aspectuais escalares. Resta saber se essas propriedades (duração, culminância) são ou não escalares, e se há outras dimensões de eventualidades que possam se manifestar em certas classes acionais, mas não em outras. A proposta de Kennedy e McNally (2005) se limitou às estruturas graduáveis dos adjetivos, mas trabalhos como o de Sanchez-Mendes (2015), Gomes (2018), Gomes e Sanchez-Mendes (2015) e Delduque (2018) realizam a transposição de características das escalas de Kennedy e McNally (2005) para as classes acionais de Vendler (1957). Defendemos que “pouco” é sensível à natureza escalar das dimensões aspectuais dos SVs, modificando escalas abertas, mas não podendo modificar escalas fechadas. Algumas propriedades ou dimensões associadas na literatura (a esse respeito, ver o resumo apresentado em Gomes (2018)) ao aspecto verbal são: frequência, que é uma pluralidade de episódios (ex. “Fui pouco ao cinema este mês” pode ser interpretada como “O número de vezes em que estive no cinema este mês é menor do que o esperado”), duração (ex. “Corri pouco hoje” pode ser interpretada como “A duração da corrida de hoje foi menor do que a esperada”) e mudança de estado e culminância ou telicidade (ex. “Cheguei (*pouco) na escola agora” – veremos que “pouco” não pode modificar essa dimensão Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1507 escalar aspectual, por ser uma escala fechada: a culminância é o grau máximo de eventualidades télicas). Frequência sempre aceitará “pouco” (ex. “João viaja pouco”), por ser uma escala aberta: não há um teto, um número máximo de vezes para os episódios contidos num recorte indefinido de tempo: acima de duas vezes, qualquer quantidade naquele período serve. Os estados não podem apresentar leitura de frequência porque não apresentam mudança de estado, e, portanto, não podem denotar episódios culminados, o que impede que sejam lidos como múltiplos episódios. Por isso, nunca teremos um estado modificado por “pouco” com leitura de frequência. Duração medida é uma dimensão aberta, mas também essa leitura não está disponível para “pouco” modificando estados. Hipotetizamos que a duração medida é uma dimensão de eventualidades que podem culminar; ela vale para atividades, mas não para estados, assumindo Gomes (2018). Como estados não culminam, não sobrou para os estados nenhuma dimensão aspectual sobre a qual um modificador de graus possa operar. Esperamos então que só estados com verbos inerentemente graduais possam ser modificados por “pouco” (ex. “Ele sabe pouco disso”). As hipóteses se sustentam: até onde sabemos, nenhuma leitura de frequência ou duração medida produzida pela modificação de um estado por “pouco”: (23) a. Baleias são (*pouco) mamíferos. b. Pedro é (*pouco) mudo. c. O livro está (*pouco) sobre a mesa. d. A panela já está (*pouco) no fogo. e. Eles têm (*pouco) uma dívida para conosco5. f. No Brasil, (*pouco) existem aproximadamente 20 espécies de pulga. g. Antes de ser anexado ao Brasil, o estado do Acre (*pouco) pertencia à Bolívia. h. O Brasil (*pouco) faz fronteira com a Argentina. 5 Por sugestão de um parecerista anônimo, a quem muito agradecemos, acrescentamos, aos exemplos de (23a) a (23d), que trazem estados com verbos de ligação, os exemplos de (23e) a (23l), com SVs de estado com núcleos verbais que não são intrinsicamente graduais, para mostrar que o fenômeno não é restrito a predicados nominais. 1508 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 i. Pedro (*pouco) entende perfeitamente que o momento não é propício para isso. j. Ele (*pouco) mora atualmente em um hotel. k. Rio Claro (*pouco) se localiza no interior de São Paulo l. Alérgicos, cuidado: este produto (*pouco) contém glúten. O estado em (23a) pode ser salvo na leitura de que o grau de “mamiferice” da espécie baleia é menor que o de uma vaca, por exemplo, por aquela ser um representante menos típico dos mamíferos que esta última; tratando-se de uma questão de grau de tipicidade na representação da classe dos mamíferos, essa leitura não é semântica, mas pragmática. Não obstante, também nela “pouco” introduz uma comparação de inferioridade, mostrando que sua semântica é sempre a mesma. Porém, se quisermos deixar de lado a pragmática e omitir essa interpretação, se partirmos da interpretação mais comum da sentença sem “pouco”, que é “a baleia é um subconjunto do superconjunto dos mamíferos”, não há como a inserção do redutor ser interpretada como diminuindo o tempo em que isso ocorre (leitura de duração menor de a baleia ser um mamífero que o ideal) nem como frequência baixa (a baleia é um mamífero menos vezes do que se esperaria). Se a sentença (23a) é genérica, a (23b) é específica: o sujeito “Pedro” é um indivíduo único e específico. Novamente, para (23b) não aparece a interpretação de que a frequência com que Pedro é mudo é pequena, nem a de que a duração da mudez dele (numa certa vez) é pequena. Quanto a (23c), “pouco” não pode levar a entender que o livro passou um tempo menor sobre a mesa do que o esperado (leitura de duração), nem que esteve naquele lugar menos vezes do que devia (leitura de frequência). Também para (23d), a inserção de “pouco” não produz o sentido de que a panela ficou um tempo curto no fogo (duração) nem de que ela foi poucas vezes ao fogo durante certo período (frequência). Não há grau lexical nos verbos em (23e) (ou a dívida foi contraída ou não), nem em (23f) (ou existem essas espécies no Brasil ou não), nem em (23g) (ou bem a Bolívia era a proprietária do Acre ou não era), nem em (23h) (ou os países são colados um no outro ou não), nem em (23i) (ou Pedro assim entende ou não), nem em (23j) (ou a pessoa reside lá ou não), nem em (23k) (ou a cidade fica naquele estado ou não fica), nem em (23l) (ou o produto têm glúten ou não tem). Os SVs de estado em (23) não são inerentemente graduais, daí a introdução de “pouco” depender Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1509 de haver uma dimensão aspectual escalar disponível. Mas esses SVs não oferecem escalas aspectuais sobre as quais “pouco” possa operar. Daí só podermos ter “pouco” em SVs de estado com verbos inerentemente graduais, como em “Eu sei pouco sobre esse tema”. Chamamos a atenção para o fato de que, quando “pouco” é licenciado em SVs de estado, não são produzidas leituras de frequência, nem de duração medida. Por exemplo, “Eu sei pouco sobre esse tema” significa que “eu sei menos sobre esse tema do que outros sabem”, ou que “eu sei menos sobre esse tema do que sobre outros temas”, ou que “o tanto de conhecimento que eu tenho sobre o tema é menor que o ideal”, mas não pode significar que o número de vezes em que eu sei coisas sobre o tal tema é pouco (frequência), nem pode significar que a duração do tempo em que eu sei coisas sobre esse tema é pouca (leitura de duração). As classes vendlerianas de mudança de estado são os achievements, os accomplishments e as atividades. Nas leituras de episódio singular (o evento aconteceu apenas uma vez), atividades não culminam (não são inerentemente télicas). Já achievements e accomplishments culminam. A culminância é considerada por Gomes (2018) a ponta fechada da escala, sendo uma dimensão escalar presente em accomplishments e achievements (télicos). Na falta de culminância, um SV apresenta escala aberta, semelhantemente aos adjetivos de escala aberta; as atividades são atélicas, e, portanto, apresentam escalas abertas. A duração é essa propriedade aspectual de escala aberta. Por quanto tempo o João correu/ dormiu naquela ocasião? Não há um limite intrínseco. Por outro lado, uma vez que uma pessoa saiu do quarto, ela não pode continuar saindo do quarto; uma vez que bebeu toda a garrafa de água, não pode continuar a beber a mesma água. Apresentamos neste ponto um resumo das dimensões aspectuais dos SVs mencionadas até aqui, e que seguem o mesmo esquema exposto em Gomes (2018) para explicar a distribuição de “muito” por SVs: 1510 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 QUADRO 1 – Resumo das dimensões aspectuais consideradas duração dinamismo culminância progressão para frequência a culminância estados sim não não não não atividades sim sim não não sim, após medida accomplishments sim sim sim sim sim achievements não sim sim não sim A duração (distância entre o momento do início e o momento de término do evento) só pode ser medida em classes aspectuais dinâmicas, ou seja, com mudança de estado. A introdução de um momento de término numa atividade torna a atividade, que já é iniciada, também culminada; por exemplo, “correr” em “João correu por 60 min” é uma eventualidade com duração medida, assim como “João correu por 3 km”. Isso equivale a dizer que a duração de um estado não pode ser medida, uma vez que não temos a marcação de um momento inicial para estados. A frequência também é dependente do dinamismo. Só eventualidades que culminam podem ter leitura de episódios, dado que a leitura de frequência é a leitura de episódios distintos espalhados por um intervalo de tempo aberto (p.ex. “João corre 3km toda semana”, “Maria é eleita representante da classe todos os anos”). Estados não podem gerar leitura de frequência por não culminarem (?*“Maria ama João todos os anos”). A progressão para a culminância depende de a eventualidade culminar (só accomplishments e achievements culminam) e de ter, também, duração interna (o que só se aplica aos accomplishments). Sanchez-Mendes (2015) analisa “pitat”, da língua nativa brasileira Karitiana, que atua como um intensificador (modifica adjetivos) e também como um advérbio (modifica sintagmas verbais), como um modificador de graus, capaz de atuar sobre todos os tipos de escalas, sejam elas fornecidas pelo verbo ou pelo adjetivo. “Pouco”, diferentemente de “pitat”, seleciona escalas aspectuais abertas, não podendo modificar escalas aspectuais fechadas. Nossa previsão é a de “pouco” que não possa modificar SVs télicos. Vamos verificar se ela se confirma, começando pelo exame de “pouco” em accomplishments. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1511 Verbos de achievements podem ser monoargumentais (“chegar”), mas os accomplishments costumam ser biargumentais e pedir complemento. É bastante conhecida na literatura (cf. DI SCIULLO; SLABAKOVA, 2005; DOETJES, 1997) a sensibilidade de accomplishments à natureza sintática do seu complemento. Se o complemento for um SD, teremos um SV accomplishment; se o complemento for um nome nu, teremos uma atividade, com o mesmo verbo. A troca do complemento SD por um nome nu, cumulativo, altera a telicidade, como vemos abaixo: (24) a. Ela pintou um quadro. (accomplisment) b. *Ela pintou quadro. (agramatical) c. Ela pintou quadros (ao longo da carreira). (atividade) (25) a. Pedro escalou a montanha. (achievement) b. *Pedro escalou montanha. (agramatical) c. Pedro escalou montanhas (neste ano). (atividade) Os testes de combinação com “em x tempo” ou “por x tempo” mostrariam que só as sentenças com complemento SD são predicados télicos em (24) e (25). Esses fatos mostram as condições da seleção semântica de “pouco”. Se predicados télicos são escalas fechadas e predicados atélicos são escalas abertas, esperamos incompatibilidade de “pouco” com SVs télicos lidos como um episódio único culminado. E esperamos que “pouco” sempre modifique os atélicos, como as atividades, atuando na dimensão da duração interna do evento, que permanece aberta. Esperamos que “pouco” nunca modifique achievements. E que só modifique verbos típicos de accomplishments na ausência de um complemento expresso, porque então o SV será na verdade uma atividade, e não mais um accomplishment. As atividades apresentam dimensões escalares aspectuais que são escalas abertas. De fato, é alta a produtividade de sentenças com “pouco” e transitivos sem o complemento nominal expresso, e é agramatical inserir pouco em SVs accomplishment (com complemento SD): (26) a. O homem comeu (*pouco) o bolo inteiro em um dia. b. O engenheiro construiu (*pouco) um prédio em dois anos. c. Eu pintei (*pouco) a parede inteira em duas horas. 1512 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Os accomplishments com verbos transitivos, cujos complementos estejam na forma de SDs (ver 26a, 26b, 26c, acima, e 27a, abaixo) exibirão grau máximo da progressão em direção à culminância. Nesse caso, os SVs são télicos, e “pouco” é agramatical se inserido neles. Porém, se o complemento for um nome nu, não há leitura de episódio culminado. A leitura é de atividade, e “pouco” poderá entrar (27b, abaixo). É importante notar que, se inserirmos “pouco” num SV que era accomplishment, ou o complemento será um nome nu ou teremos de “derrubar” (eliminar) o complemento SD, como vemos em (27c), abaixo: (27) a. João bebeu (*pouco) duas garrafas de pinga em um dia. (accomplishment) b. João sempre bebeu pouco cachaça, mas muito cerveja. (atividade: leitura de frequência) c. Até que João bebeu pouco (*todo o estoque de cerveja) neste carnaval. (atividade) Esses fatos comprovam nossa hipótese sobre a seleção semântica de “pouco”. Pelo fato de “pouco” não modificar escalas fechadas, ele não entra em accomplishments (mostramos que a retirada do complemento SD serve para tornar o SV numa atividade, que traz escala aspectual aberta) nem em achievements. No caso dos achievements, não há mudança de classe acional associada à presença ou não de complemento, nem, no caso de haver complemento, à sua natureza, se SD ou nome nu. Não havendo um mecanismo que transforme um achievement numa atividade, “pouco” será sempre agramatical com SVs achievements: (28) a. Ela chegou (*pouco) à faculdade às 10 horas hoje. b. Ela chegou (*pouco). Zwarts (2005) aponta que verbos de movimento são atividades quando o Path (destino) não está expresso (29a). Se um SD realiza o alvo (ponto de chegada) do movimento, estamos diante de um predicado télico (29b). Como previsto, “pouco” só modifica atividades: (29) a. Maria andou pouco (desta vez). b. Maria andou (*pouco) 2km/ 3 quarteirões ontem. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1513 Nas sentenças (29), só é possível ter “pouco” quando o SD complemento (ou que mede o Path, o trajeto, gerando a progressão para a culminância) não é pronunciado. “Pouco” só pode ser inserido no predicado verbal se o SD complemento (que mede o Path) for apagado. Esse fenômeno ocorre pela s-seleção de “pouco”, como decorrência da aversão de “pouco” a graus máximos. Outro tipo de SV que mostra bem como está correta a nossa hipótese é o chamado Degree Achievement. Degree Achievements são sempre SVs inerentemente escalares, por conterem verbos cuja base formante é um adjetivo de grau (KENNEDY; LEVIN, 2008). Eles são ambíguos entre leituras atélicas e leituras télicas. Por exemplo, se um enólogo quer servir o vinho tinto indicado por ele quando a bebida estiver a exatamente 15º C, num dia de calor no Rio, e depois de 10min na geladeira alguém lhe pergunta se o vinho já esfriou, o enólogo vai negar, pois o vinho, que passou da temperatura ambiente de 30 graus para 22 graus, ainda não chegou a 15 graus. Ao atingir essa temperatura, o grau desejado foi atingido, um grau limite, máximo, e isso pode ser expresso por “O enólogo esfriou o vinho” (leitura télica: o vinho chegou aos desejados 15 graus). A mesma sentença pode ser dita quando o vinho passa de 30º. C a 22º. C, mas nesse caso a sentença é atélica: significa que o vinho está mais frio do que antes, mas não que chegou a um ponto predestinado. Inserir “pouco” num SV Degree Achievement é sempre possível, mas só produz leituras atélicas. O resultado da modificação de SVs por “pouco” é previsível: o grau atribuído ao elemento modificado diminui notavelmente, mas não atinge o grau estabelecido como alvo. Observaremos por meio da realização de paráfrases (30b, 30c) a comparação implícita realizada por “pouco”: (30) a. O vinho esfriou pouco. b. “O grau de temperatura do vinho abaixou, mas o grau atual ainda é menor do que a desejado pelo enólogo” (leitura atélica) c. # “A temperatura do vinho chegou ao grau desejado e esse grau é menor do que um parâmetro contextual” (leitura télica).6 A paráfrase oferecida em (30c) é logicamente contraditória, pois a temperatura do vinho não pode ser ao mesmo tempo igual ao parâmetro desejado (15 graus) e também menor que esse parâmetro. A leitura atélica exige uma comparação de igualdade, e “pouco” 6 1514 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Como vimos, “pouco” sempre seleciona e produz escalas abertas em SVs. Além disso, o resultado da modificação de SVs por “pouco” é previsível: o grau atribuído ao elemento modificado é inferior ao de um padrão tirado do contexto, e nunca atinge o máximo. A leitura de um sintagma modificado por “pouco” é sempre a de uma comparação de inferioridade implícita, como podemos observar por meio da realização de paráfrases:7 (31) a. Maria salgou pouco a sopa. b. “O grau de quantidade de sal colocado por Maria na sopa está consideravelmente abaixo ao parâmetro considerado como o ideal” (32) a. Maria estuda pouco. b. “O grau de estudo de Maria está consideravelmente abaixo do ideal para ser aprovada no vestibular”. (33) a. João bebe pouco. b. “O grau de quantidade de bebida consumida por João é menor que o a média”. Esse tipo de paráfrase será válido para qualquer boa sentença com “pouco” modificando um SV. Os requerimentos de que o grau exibido pelo argumento do predicado verbal modificado seja inferior a um parâmetro, e, ainda, de que seja não-máximo, são parte das condições de verdade de uma sentença com “pouco” em SV. Então, considerando que “pouco” seleciona escalas onde possa marcar vagamente um grau não-máximo, abaixo do parâmetro de comparação, o produto de sua produz uma comparação de inferioridade. Ambas as comparações são inconciliáveis, não podem ser verdadeiras simultaneamente. 7 Agradecemos a um parecerista anônimo que nos apontou que o exemplo (31a) é um accomplishment. Por isso mesmo, gostaríamos de frisar que “salgar” e “adoçar” são verbos incrementais, inerentemente graduais. Eles já vêm do léxico com grau, na linha de Fleischhauer (2016); se o verbo for lexicalmente de grau, sua classe acional não fará diferença. Crucialmente, não é sobre uma escala aspectual que “pouco” está operando nesse exemplo, mas sobre a escala de quantidade de sal ou açúcar acumulados como resultado da eventualidade, componente inseparável do significado de “salgar” / “adoçar”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1515 modificação é previsível. Assim explicamos por que “pouco”, sempre que o verbo não for lexicalmente escalar, em sentenças com leitura de episódio singular, modificará apenas SVs da classe acional de atividades. “Pouco” está permanentemente banido de SVs achievements e de accomplishments a que falte um núcleo inerentemente escalar, se a leitura não for de frequência. Os SVs de estado que não forem inerentemente graduais não serão jamais modificados por “pouco”. A razão é uma só: “pouco” opera apenas sobre escalas abertas, mesmo nas dimensões aspectuais. Veremos a seguir como essa análise se aplica à distribuição de “pouco” no domínio nominal. 4. “Pouco” no domínio nominal Também no domínio nominal há itens lexicais inerentemente graduais (nomes de sentimentos, sensações, escalas etc.); “pouco” pode modificar trivialmente todos eles: a. João tem pouco amor à vida. b. Maria tem pouco interesse por filmes. c. A pouca disponibilidade de horários é um problema. d. Fez pouco frio/calor hoje. Porém, a maior parte dos nomes não é inerentemente escalar. Para esses, é a dimensão da quantidade que vai proporcionar escalas. Novamente, prevemos que as escalas abertas possam ser modificadas por “pouco”, e as fechadas, não. Veremos como isso explica por que a modificação por “pouco” não é licenciada em todos os sintagmas nominais abaixo:8 (35) *O pouco gato miou. (36) a. Poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria. b. Pouco aluno já ficou reprovado nessa matéria. 8 Dados de Delduque (2018). 1516 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 (37) a. Dois alunos já ficaram reprovados nessa matéria. b. *Dois poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria. (38) a. Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje. b. Os alunos dessa disciplina eram poucos. (39) a. A pouca comida que eles tinham se acabou. b. Eles tinham pouca comida. (40) a. Os alunos eram muito poucos/ bem poucos. b. *Os alunos eram poucos três. (41) a. Sobrou pouca farinha depois de fazer o bolo. b. *Sobrou a pouca farinha. Explicaremos esses fatos dividindo as escalas de quantidade em abertas e fechadas. Nomes que não apresentam grau em sua entrada lexical podem ser modificados na dimensão de quantidade, que tem leitura de volume ou de cardinalidade. Se a quantidade nominal for tratada como uma escala, então a cardinalidade exata e o volume delimitado são escalas fechadas, pois tomam o grau máximo de quantidade do elemento no contexto; já a cardinalidade vaga e o volume não mensurado são escalas de quantidade aberta. Como mostramos, apenas em leitura de cardinalidade exata não é possível modificar nominais com “pouco”. Na cardinalidade exata, há um teto que permite dizer exatamente quantos são os indivíduos membros daquela pluralidade, o que corresponde a um grau máximo. Assumimos com Barner e Snedeker (2005) que nomes massivos têm preferencialmente leitura de volume, e nomes contáveis, preferencialmente leitura de cardinalidade. Defenderemos aqui que a sintaxe dos sintagmas nominais do PB importa, conforme Gomes e Sanchez-Mendes (2018). Vamos esmiuçar os exemplos. Nomes singulares nus contáveis, como “aluno”, em (36b), não são lidos como exatamente um aluno, nem como exatamente 3: esse nominal pode se referir a absolutamente qualquer número de alunos. A isso chamamos “cardinalidade aberta”. Se apenas um aluno foi reprovado na matéria nos últimos 5 anos, podemos usar (36b) para descrever isso. Também podemos usar (36b) no caso de 30 alunos terem sido reprovados, desde que esse número esteja abaixo do esperado. O mesmo nominal pode Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1517 se referir a qualquer tanto de alunos, mas uma vez que “pouco” esteja presente na sentença, vamos entender que, seja qual for a quantidade de reprovados, ela é menor que um parâmetro contextual. Plurais nus como “alunos”, em (36a), não podem fazer referência a um único indivíduo, e é isso que os distingue do singular nu “aluno”, de (36b). Plurais nus têm um limite mínimo de quantidade (referem-se a dois indivíduos ou mais), mas não apresentam um limite máximo. Também podemos usar (36a) no caso de 30 alunos terem sido reprovados, desde que esse número esteja aquém do esperado. Ou no caso de 2 alunos terem sido reprovados, desde que essa quantidade esteja abaixo do parâmetro de comparação. Plurais nus, assim como singulares nus, com nomes contáveis como núcleo, são cardinalidades abertas, escalas de quantidade sem grau máximo. Portanto, “pouco” sempre poderá modificar nominais nus, dado que as escalas de quantidade associadas a eles são abertas. É diferente quando tratamos de sintagmas de determinante (SDs), como em (35): “o gato” é um SD singular que pode fazer referência a exatamente um indivíduo, nem mais, nem menos. Não podemos usar (35) para falar de dois ou três gatos. Como há um grau máximo de quantidade em SDs singulares, que denotam cardinalidades exatas, “pouco” fica agramatical como modificador e graus, uma vez que essa é uma escala fechada. Por isso não podemos dizer “(*Pouca) a mãe dele chegou”, nem “A (*pouca) mãe dele chegou”, ou “(*Pouco) o carro quebrou” nem “O (*pouco) carro quebrou”. Tanto SDs singulares quanto SDs plurais com núcleos contáveis denotam cardinalidade exata. Vemos em (37) que ou o cardinal “dois” ou o modificador “poucos” pode estar presente, mas ambos não podem coocorrer. Por isso não podemos dizer *“João escreveu poucas aquelas cartas” nem podemos dizer *“Poucos os alunos desta disciplina faltaram hoje”. Porém, podemos perfeitamente dizer “João escreveu aquelas poucas cartas” ou, como em (38a), “Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje”. Isso ocorre porque “poucos” em (38a), interno ao SD, ensanduichado entre o determinante e o nome, é um adjetivo. A mesma posição seria assumida por outro adjetivo, como “infelizes”. Teríamos a seguinte versão equivalente a (38a): “Os infelizes alunos desta disciplina faltaram hoje”. Que essa função é de adjetivo fica claro em (38b), em que “poucos” é o predicado da sentença. Vamos procurar deixar mais clara a diferença de interpretação entre “pouco” adjunto nominal (adjetivo) e 1518 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 “pouco” modificador de graus, dando uma paráfrase a (36a) e a (38a), respectivamente retomados como (42a) e (43a): (42) a. Poucos alunos já ficaram reprovados nessa matéria9. b. O número de alunos que já ficaram reprovados nesta matéria é menor que o parâmetro contextual (do que o número de reprovados em outras matérias, por exemplo). (43) a. Os poucos alunos desta disciplina faltaram hoje. b. # O número de alunos desta disciplina que faltaram hoje é menor do que o parâmetro contextual (que o número de faltantes em outras disciplinas, por exemplo). c. Os alunos desta disciplina são poucos e todos eles faltaram hoje. d. O número de alunos desta disciplina é menor do que o esperado. Esses alunos faltaram hoje. O fato de podermos parafrasear (36a = 42a) como (42b), mas não podermos parafrasear (38a=43a) como (43b), é revelador. As paráfrases em (43c) e (43d) sim, são apropriadas para (38a=43a), em que “pouco” se refere ao número de alunos que frequenta a disciplina, mas não ao número de alunos que faltaram. Dentro do SD sujeito, o adjetivo “pouco” não tem escopo sobre o predicado sentencial; mas quando não há um determinante que o domine, como em (36a) (= 42a), o modificador de graus “pouco” indica que a quantidade de participantes da eventualidade “faltar” é uma quantidade de escala aberta. Ou seja, em (38a)(=43a) temos uma dupla predicação: a quantidade de alunos da classe é menor do que um parâmetro contextual, mas a classe como um todo faltou hoje, ou seja, não está disponível a leitura de que, na mesma classe, foram poucos os alunos faltantes em relação aos alunos presentes hoje. A leitura proporcional está disponível para (36a = 42a) (comparando o número de reprovados aos não reprovados), mas não para (38a=43a) (comparando o número de alunos presentes aos que faltaram). O escopo de “pouco” muda sensivelmente. Em (39), vemos um SD cujo núcleo é um nome massivo; a dimensão de quantidade será de volume medido, e não a cardinalidade. Vemos em (39a) “pouco” adjetivo interno ao SD, oferecendo uma 9 Dados de Delduque (2018). Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1519 paráfrase parecida com a dada para (38a=43a), que seria a seguinte: o tanto de comida que tínhamos era menor que o desejável e essa comida acabou (novamente, uma dupla predicação, em que não está disponível a leitura proporcional). Mas em (39b) temos uma leitura de modificador de grau para o complemento, que é um nome nu com núcleo massivo. A paráfrase para (39b) é que o tanto de comida em posse deles é menor que o tanto desejável. O dado em (40a) mostra que “pouco” concorda com o nome em número, como um adjetivo, e que pode ser modificado por um outro modificador de graus: “muito poucos”/ “bem poucos”, significando que o número deles é bastante reduzido. Essa diferença acontece com cardinais/ numerais, que podem aparecer no lugar de determinantes (“Dois alunos faltaram”) ou como adjetivos (“Os dois únicos alunos da turma faltaram”), e também como predicados (“Os alunos dessa turma são dois”). A distribuição de “pouco” no domínio nominal é parecida. Observe-se que mesmo que se considere que três alunos é pouco para uma classe, podemos dizer “Três alunos é muito pouco”, “Os alunos da classe são três”, mas não podemos dizer *“Os alunos eram poucos três”: (40b) é agramatical por conflito na modificação da escala de quantidade, dado que os cardinais expressam cardinalidades exatas, que são escalas fechadas, e “pouco” expressa exclusivamente quantidades de escala aberta. Ora, a quantidade de alunos (ou de qualquer coisa) numa dada situação não pode ser ao mesmo tempo uma escala aberta e uma escala fechada. Em (41), vemos o contraste entre um nome nu com núcleo massivo e um SD com núcleo massivo. A sentença (41a) é bem formada porque a leitura é de que algum volume de farinha indefinido (uma quantidade vaga, em volume) ainda resta após outro tanto ter sido empregado. A paráfrase adequada é: o tanto de farinha que restou é menor do que o ideal. Mas em (41b) temos o SD “a pouca farinha”, que combina certo volume definido de farinha (aquele tanto que eu armazenei no início da semana) com o adjetivo “pouco”. A dupla predicação ficou mais difícil de ser construída. Mas, se acrescentarmos uma relativa, a sentença resultará perfeita: “[Depois de feito o bolo], sobrou apenas a pouca farinha que você escondeu ontem”. Aqui há dois predicados: o tanto de farinha correspondente ao total do que foi escondido é pouco e foi esse total que sobrou [após a feitura do bolo]. 1520 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Para podermos nos debruçar melhor sobre a s-seleção do modificador de graus, vamos deixar de lado neste trabalho o uso adjetival de “pouco”, que funciona como uma dupla predicação (parafraseável por um período coordenado) e não determina quantos são os participantes da eventualidade atrelada ao predicado sentencial, e nos concentrar nos casos em que “pouco” é o único elemento à esquerda do nome, funcionando como um quantificador generalizado, nos termos de Barwise e Cooper (1981): determinando a quantidade de participantes na eventualidade principal da sentença. Defendemos que “pouco” introduz uma comparação de inferioridade implícita. Seguindo a tradição dos julgamentos de quantidade de Barner e Snedeker (2005), os nomes podem receber leitura de volume (geralmente, os massivos) ou de cardinalidade (de modo geral, contáveis e “falsos massivos”, como “mobília” e “gente”, em que o aumento em quantidade reflete o aumento no número de indivíduos pertencentes ao conjunto, ou seja, ao número de móveis no conjunto denotado por “mobília” e ao número de pessoas no conjunto denotado por “gente”). Em PB, segundo Gomes e Sanchez-Mendes (2018), os nomes de massa resistem a ser pluralizados, em consonância com o que a literatura aponta para as línguas naturais em geral; na nossa língua materna, há nomes massivos e contáveis em estrutura de singulares nus, mas os plurais nus somente apresentam como núcleo nomes contáveis (com leitura de pluralidades cardinais, sem grau máximo). Todos os nomes nus do PB, sejam singulares (como em (44), abaixo) ou contáveis (como em (45), abaixo|) apresentam escalas de quantidade aberta, sem limite superior, haja visto que não temos como precisar a quantidade de poeira, chocolate ou cadeiras nas sentenças (44) e (45). A operação de contagem necessita de um domínio delimitado, ou seja, assumimos com Kennedy (2013) que atribuir uma cardinalidade exata a um tanto de indivíduos requer um supremo, isto é, a identificação de uma quantidade máxima desse tipo de indivíduo na situação dada. Como não há supremo na denotação de nomes nus singulares ou plurais, eles não podem apresentar uma cardinalidade exata. Por outro lado, visto que volume e cardinalidade aberta são escalas sem grau máximo, prevemos que seja possível modificar esses nomes com “pouco”; de fato é, como vemos em (46a) e (47a), cujas interpretações por contribuição do modificador de graus estão respectivamente em (46b) e (47b): Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1521 (44) Tinha poeira no móvel. (volume) (45) Tem cadeiras na sala. (cardinalidade) (46) a. Tinha pouca poeira no móvel. (volume) b. O tanto de poeira no móvel é menor que o esperado. (volume) (47) a. Tem poucas cadeiras na sala. (cardinalidade) b. O tanto de cadeiras na sala é menor que o esperado (cardinalidade) Como visto, a inserção de “pouco” é possível se a escala é aberta, mas “pouco” não altera a natureza da interpretação de quantidade associada ao nome: uma vez que o singular nu “poeira” (44) é interpretado em termos de volume, “pouca poeira” (46) também será interpretado em termos de volume; dado que “cadeiras” (45) é interpretado em termos de cardinalidade, “poucas cadeiras” (47) também é interpretado em termos de cardinalidade. Esse comportamento é paralelo ao discutido na seção 2, para os modificadores de grau, tradicionalmente exemplificado com “very”, “much” e “well” do inglês, que s-selecionam certo tipo de escala, não operando sobre os outros tipos, mas sem nunca alterarem a estrutura de escala original do adjetivo ao modificá-lo. No domínio nominal, tal como no domínio verbal, já discutido na seção anterior, “pouco” se comporta como um típico modificador de graus no domínio adjetival segundo a literatura (KENNEDY; MCNALLY, 2005). Isso está de acordo com a nossa proposta. Já sintagmas de determinante produzem escalas fechadas de quantidade. A análise clássica do artigo definido, baseada em Link (1983), é a de que ele opera sobre o supremo, ou seja, sobre a maior soma possível de ser construída entre os indivíduos presentes na situação, indicando que o supremo completo participa da eventualidade denotada pelo predicado sentencial. Assim, as leituras de volume ou de cardinalidade serão de grau máximo. Vejamos: (48) A gasolina acabou. (volume) (49) Hoje não dei aula, porque os alunos faltaram. (cardinalidade) 1522 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 (50) a. A pouca gasolina que havia no carro acabou. (volume) b. Toda a gasolina que havia no carro acabou; também pudera, havia bem pouca gasolina no carro. (volume) c. # O tanto de gasolina no carro é menor que o esperado. (51) a. Hoje não dei aula porque os meus poucos alunos faltaram. (cardinalidade) b. Hoje não dei aula porque todos os alunos da minha turma, que são poucos, faltaram. (cardinalidade exata) c. # O número de alunos da minha turma é menor que o esperado. Temos um tanto delimitado de gasolina em (48), aquele que estava dentro do tanque ao sairmos com o carro, e que foi gasto nessa saída. Trata-se de um volume delimitado, com grau máximo, e, portanto, de uma escala fechada. Consequentemente, “pouco” não pode ser inserido em (48) com a leitura de uma comparativa implícita de inferioridade, ou seja, (50a) não pode ser interpretada como (50c), mas apenas segundo o uso adjetival de “pouco”, como ilustrado em (50b), em que o predicado “acabar” incide sobre a totalidade do volume de gasolina que estava no carro, e “pouco” apenas qualifica a quantia de gasolina no carro anteriormente ao evento que gerou seu consumo como pequena. Também temos uma escala de quantidade fechada em (49), uma vez que o SD “os alunos” denota uma cardinalidade exata. Daí “pouco” não poder ser inserido em (49) com a produção de uma comparativa implícita de inferioridade, ou seja, daí (51a) não poder ser interpretado como (51c). A única interpretação possível para (51a) é aquela em que “pouco” é um adjetivo, como ilustrado em (51b), em que o predicado “faltar” incide sobre a totalidade dos alunos dessa turma, e o número total deles é qualificado como pequeno por “pouco” independentemente da contagem dos faltosos. Distinguindo entre as leituras adjetival e quantificacional, podemos sustentar que “pouco” modificador de graus sempre produz uma comparativa implícita de inferioridade, e no domínio nominal s-seleciona escalas abertas de quantidade. O caso de SDs singulares com núcleo contável é ainda mais eloquente, uma vez que sequer a leitura adjetival pode ser produzida: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1523 (52) a. O (*pouco) carro bateu. b. A (*pouca) mãe dele telefonou. c. O (*pouco) gato miou. Dado que as sentenças em (52) apresentam exatamente um indivíduo, seja carro, mãe ou gato, nem o modificar de graus encontra uma escala aberta para satisfazer sua s-seleção nem faz sentido dizer que um único indivíduo é pouco (daí não haver a leitura adjetival). Mesmo quando o SD singular tem núcleo massivo, a leitura mais saliente também é de um volume delimitado, portanto, de escala fechada, tornando a modificação por “pouco” inviável: (53) a. O (*pouco) café está amargo. b. A (*pouca) manteiga derreteu. c. O (*pouco) leite ferveu. A única forma de licenciar “pouco” em SDs singulares com núcleo massivo é produzir a leitura adjetival com uma estrutura sentencial claramente complexa, com dois predicados, como vemos aqui: (54) a. O pouco café que eu fiz está amargo. b. A pouca manteiga que ficou fora da geladeira derreteu. c. O pouco leite que coloquei no fogo ferveu. As sentenças em (54) certamente não trazem as leituras de comparação implícita de inferioridade que esperaríamos de “pouco” modificador de graus. Vemos que (55a) não é uma a paráfrase para (54a), nem (55b) é uma leitura possível para (54b), assim como não podemos dar uma interpretação como (55c) para (54c). (55) a. # O tanto de café que está amargo é menor que o tanto que está doce. b. # O tanto de manteiga que não pusemos na geladeira é menor do que tanto guardado. c. # O tanto de leite que coloquei no fogo é menor do que o tanto que não coloquei. 1524 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 Em resumo, propusemos nesta seção que as dimensões escalares disponíveis no domínio nominal são as de quantidade, seguindo a tradição de análise semântica de tratar os determinantes como quantificadores generalizados. Seguindo também a tradição semântica sobre a distinção massivo-contável, assumimos que essas escalas podem produzir leituras de volume ou cardinalidade. Considerando que escalas abertas não apresentam grau máximo, defendemos (cf. GOMES, 2018) que a estrutura sintática do nominal em PB é decisiva para a produção de uma escala de quantidade fechada. Nomes nus, sejam singulares ou plurais, tenham núcleo massivo ou contável, produzem sempre uma escala de quantidade aberta. Como previsto, “pouco” pode modificar qualquer nome nu argumental, seja singular ou plural. Quanto aos SDs do PB, neles podemos encontrar escalas fechadas, sejam de cardinalidade sejam de volume. O fato de “pouco” modificador de graus não ser gramatical em SDs singulares, ou de não poder produzir a leitura de comparativa implícita de inferioridade em SDs plurais, é uma consequência da s-seleção de “pouco”. Como já dissemos, há nomes inerentemente graduais (“calor”, “medo”, “dor”, “fé” etc.), que introduzem como parte de sua natureza lexical dimensões que são escalas abertas, e, por isso, “pouco” sempre vai poder modificá-los (p.ex.: “A pouca fé dele é impressionante”). Mas são os outros nomes, aqueles que não entram na sintaxe já com grau, que melhor mostram como opera a s-seleção do modificador de graus “pouco”. As dimensões escalares de nomes como “maçã”, “farinha”, “pedra”, “gente”, “aluno” etc. são de quantidade, subdividindo-se em cardinalidade e volume. A estrutura sintática define se haverá um grau máximo para a escala: nomes nus singulares apresentam volume e cardinalidade aberta, que satisfazem a s-seleção de “pouco”; mas SDs apresentam volume medido e cardinalidade exata, escalas com grau máximo, que não satisfazem a s-seleção de “pouco”. 5. Conclusão Neste artigo, examinamos sentenças bem formadas, em que a inserção de “pouco” produz estranhamento ou agramaticalidade. Esses fatos foram explicados como uma consequência da s-seleção de “pouco”, por nós analisado como um modificador de graus que não faz seleção categorial, podendo ser encontrado em diversos domínios, como o adjetival, o nominal e o verbal. Em todos os domínios, o modificador de Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1525 graus “pouco” faz a mesma operação: produz uma comparativa implícita de inferioridade. Isso nos leva a postular que temos o mesmo operador de graus atuando da mesma forma em todos os domínios. Vimos que, no domínio verbal, “pouco” seleciona escalas aspectuais abertas, que são as dimensões de duração mensurada e de frequência. Por isso, “pouco” não modifica SVs de estado, a menos que sejam inerentemente escalares, ou seja, que já entrem na sintaxe com grau, pois estados não apresentam dimensões aspectuais escalares. Vimos também que a progressão para a culminância é uma dimensão aspectual de escala fechada, encontrada em accomplishments. Em achievements, que são instantâneos, a mudança de estado não progride gradualmente. Como escalas fechadas não atendem à s-seleção de “pouco”, em sentenças once only, isto é, com leituras de episódio único, “pouco” nunca poderá modificar as dimensões aspectuais atreladas às classes acionais accomplishment e achievement. Isso faz com que a classe acional atividade seja a forte favorita para modificação por “pouco” quanto a dimensões aspectuais, visto que apresenta sempre uma das duas propriedades aspectuais de escala aberta, a duração, e que pode ou não apresentar uma outra, a de frequência. Assim como há verbos inerentemente escalares, há nomes inerentemente escalares. “Pouco” modifica todos eles, por trazerem escalas abertas. Mas o que é realmente interessante no domínio nominal é o exame das escalas de quantidade. As dimensões de cardinalidade e de volume podem ou não apresentar grau máximo. A linha de corte é dada pela estrutura do nominal: nomes singulares nus e nomes plurais nus apresentam volume sem delimitação e cardinalidade aberta, atendendo à s-seleção de “pouco”; SDs apresentam volume delimitado e cardinalidade fechada, que não atendem à s-seleção desse modificador de graus. Isso explica a impossibilidade de serem geradas leituras de comparação de inferioridade implícita com a inserção de “pouco” em SDs. No caso dos adjetivos, “pouco” modifica todos os que são inerentemente graduais, todos os AGs. O que chama a atenção é o fato de que a semântica gradual estabeleceu que os AGs podem ser divididos em adjetivos de escala fechada e em escala aberta, mas “pouco” modifica os de escala aberta e também os de escala fechada. A s-seleção de “pouco” não descarta escalas fechadas no domínio adjetival, diferentemente do que acontece nos domínios nominal e verbal. Porém, mesmo no domínio adjetival, seja qual for a escala inerente ao adjetivo, “pouco” vai produzir com o adjetivo modificado uma escala aberta, correspondente a uma comparativa de inferioridade implícita. Em todos 1526 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 os domínios, a modificação por “pouco” produz essa comparativa de inferioridade implícita, que é uma escala aberta. Para dar conta de não haver s-seleção no domínio adjetival, quando há clara s-seleção nos domínios nominal e verbal, lançamos mão da proposta de Gomes (2010), que diz que esse é um parâmetro semântico entre o português e o inglês: em inglês, há muitos determinantes especializados em nomes massivos (“much sugar” “muito açúcar”), e muitos especializados em nomes contáveis (“many boys” “muitos meninos”), enquanto em português a maioria dos determinantes modifica indiferentemente massivos e contáveis (“much” e “many” são traduzidos por “muito(s)”). Da mesma forma, os modificadores de grau do PB não apresentam seleção semântica como os do inglês, mas produzem com o AG modificado um tipo de escala único e previsível: “muito” + AG produz uma escala aberta que é uma comparativa de superioridade, “pouco” + AG produz uma escala aberta que é uma comparativa de inferioridade, “todo” + AG produz uma escala fechada na ponta superior, no grau máximo etc. Por força desse parâmetro, no domínio adjetival temos apenas o mesmo produto da modificação por “pouco”, em termos de escala, que no verbal e no nominal, enquanto nestes dois últimos temos também a incompatibilidade de “pouco” com escala fechada, gerando agramaticalidade. A análise aqui proposta indica que o modificador de graus “pouco” faz sempre a mesma operação em todos os domínios, e explica a sua distribuição em todos eles, fazendo previsões corretas. Todos os predicados inerentemente escalares podem ser modificados por “pouco”, sejam adjetivos, nomes ou verbos. Dimensões aspectuais (em SVs) e escalas de quantidade (em Sintagmas Nominais) são modificados, mas apenas se constituírem uma escala aberta. Contribuição das autoras Este artigo resulta da pesquisa de Iniciação Científica de Juliana dos Santos Delduque, com bolsa do CNPq, realizada sob a orientação de Ana Paula Quadros Gomes na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e de investigações correlatas, que se inserem no Projeto de Pesquisa “Semântica Formal”, no âmbito do Grupo de Estudos Semânticos do Português (GESP) (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3938420220241727). O levantamento das fontes bibliográficas foi feito por Ana Paula Quadros Gomes, tendo as obras selecionadas sido discutidas pelas duas autoras; a Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 1527 coleta dos dados, sua sistematização e a descrição das propriedades das construções foram feitas primeiramente por Juliana dos Santos Delduque; ambas as autoras trabalharam conjuntamente na análise dos dados e na redação deste artigo. Referências BARNER, David; SNEDEKER, Jesse. Quantity Judgments and Individuation: Evidence that Mass Nouns Count. Cognition, [S.l.], v. 97, n. 1, p. 41-66, 2005. Doi: https://doi.org/10.1016/j.cognition.2004.06.009 BARWISE, Jon; COOPER, Robin. Generalized Quantifiers and Natural Language. In: Philosophy, Language, and Artificial Intelligence, [S.l.], v. 4, n. 2, p. 241-301, 1981. Doi: https://doi.org/10.1007/978-94-0092727-8_10 BOGAL-ALLBRITTEN, Elizabeth. Slightly Coerced: Processing Evidence for Adjectival Coercion by Minimizers. In: MEETING OF THE CHICAGO LINGUISTIC SOCIETY, 48th., 2012, Chicago. Proceedings […]. Chicago: Chicago Linguist. Soc., 2012. p. 77-92. DELDUQUE, Juliana dos Santos. Como se comportam “pouco” e “um pouco” modificando adjetivos?. In: JORNADA GIULIO MASSARANI DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA, ARTÍSTICA E CULTURAL, 38., 2016. Rio de Janeiro: UFRJ, 2016. [Trabalho apresentado]. DELDUQUE, Juliana dos Santos. A modificação de sintagmas verbais por “pouco” e “um pouco”/ classes acionais de vps modificados por “(um) pouco”. In: JORNADA GIULIO MASSARANI DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA, ARTÍSTICA E CULTURAL, 39., 2017. Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. [Trabalho apresentado]. DELDUQUE, Juliana dos Santos. A modificação de nominais por “pouco”. In: JORNADA GIULIO MASSARANI DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, TECNOLÓGICA, ARTÍSTICA E CULTURAL, 40., 2018. Rio de Janeiro: UFRJ, 2018. [Trabalho apresentado]. 1528 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1489-1530, jul./set. 2019 DELDUQUE, Juliana dos Santos; GOMES, Ana Paula Quadros. O que o modificador “pouco” mostra sobre as classes aspectuais do PB. 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Tratamos, especificamente, de realizar uma acomodação da abordagem etiológica de função proposta pelo filósofo da biologia Larry Wright à tese do linguista Noam Chomsky e colaboradores acerca da natureza e da evolução da Faculdade da Linguagem (FL) na espécie humana, partindo do pressuposto de que a sua função natural não é a comunicação. Juntamente com Chomsky, defendemos que a comunicação deve ser mais apropriadamente compreendida como um subproduto, isto é, uma atividade/comportamento acidental relacionado à nossa FL, mas não sua função natural propriamente. Entendemos que a função da FL é primariamente interna à mente, e que a externalização de pensamento para fins de comunicação se deu posteriormente ao seu surgimento. Partindo de tal entendimento, o eixo da nossa argumentação está na ideia de que um evento no futuro não pode ter eficácia causal sobre um evento que o precede, de modo que parece inapropriada uma explicação funcional para a FL que a iguale com comunicação. A nossa discussão reforça o entendimento, segundo Chomsky, de que a função da FL é nos possibilitar, por um meio finito, infinitas combinações de símbolos estruturados hierarquicamente, sob a forma de o que Chomsky argumenta ser um sistema de pensamento sofisticado e único. Palavras-chave: Faculdade da Linguagem; evolução; função natural; externalização da linguagem; explicação causal; biolinguística. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.3.1531-1570 1532 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Abstract: In this paper, we discuss, based on Wright (1973), certain details that deserve to be taken into consideration when we want to talk about function in the field of the evolutionary biology. More specifically, we try to accommodate the etiological approach of function proposed by the biology philosopher Larry Wright to the thesis of the linguist Noam Chomsky and collaborators on the nature and evolution of the Faculty of Language (FL) in the human species, based on the assumption that its natural function is not communication. Along with Chomsky, we argue that communication should be more appropriately understood as a byproduct, that is, an accidental activity/ behavior related to our FL, rather than its natural function properly. We understand that the function of the FL is primarily internal to the mind, and that the externalization of thought for communication purposes is ancillary. Based on this understanding, the focus of our argumentation is on the idea that an event in the future cannot have causal efficacy on an event that precedes it, so that any functional explanation for FL that equates the linguistic capacity with communication will be incorrect. Our discussion reinforces Chomsky’s understanding that FL’s function is to enable us to construct infinite combinations of hierarchically structured symbols, in the form of which Chomsky argues to be a sophisticated and unique system of thought. Keywords: Faculty of Language; evolution; natural function; externalization of language; causal explanation; biolinguistics. Recebido em 09 de abril de 2019 Aceito em 16 de junho de 2019 1. Introdução Relacionar a estrutura de um objeto criado pelo homem, digamos, uma ferramenta, à sua função, não é uma tarefa difícil. Considere, por exemplo, uma ferramenta muito simples como uma chave Allen, ou um objeto um pouco mais complexo, como um relógio. Em qualquer dos casos, faz muito sentido perguntarmos quais as funções desses objetos, e é completamente fácil explicá-las graças ao simples fato de que tais objetos foram projetados pelo homem, com uma função preestabelecida. Consideremos uma chave Allen, por ora. Qualquer um que lide com esse tipo de ferramenta, quando perguntado sobre qual é a sua função, dirá, seguramente, que sua função é apertar ou soltar parafusos que tenham um encaixe hexagonal em sua cabeça. Disso deriva, aliás, a razão de uma chave Allen ter, em sua estrutura, um formato hexagonal. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1533 Em outras palavras, podemos afirmar que esse tipo de ferramenta tem essa exata estrutura em função de ter sido desenhada/projetada com a finalidade mencionada acima. Empregamos o mesmo raciocínio em relação ao relógio. O relógio, e cada parte que o compõe, foi projetado por alguém que tinha em mente a função exata que esse objeto executaria para um resultado final. Uma chave Allen ou um relógio têm em comum o fato de terem sido construídos por alguém, com uma certa intencionalidade, de maneira que faz todo sentido afirmar que esses objetos têm uma função. No âmbito da biologia contemporânea, entretanto, falar em função não é uma tarefa trivial, seja porque estruturas biológicas não refletem a intenção de um engenheiro que as projetou, seja porque a noção biológica de função pode não ser imediatamente clara (Cf. NUNESNETO; EL-HANI, 2009). Neste artigo, aplicamos uma definição de função recorrente em biologia evolutiva, notadamente aquela derivada do trabalho do filósofo da biologia Larry Wright, à tese do linguista Noam Chomsky a respeito da Faculdade da Linguagem (doravante FL) e a natureza de sua evolução na espécie humana. Com isso, argumentamos, seguindo Chomsky, que, sob uma perspectiva biológica, a FL não pode ter a comunicação como sendo a sua função natural. A principal contribuição deste artigo está, portanto, em colocar em perspectiva a função da FL, a partir de uma discussão estritamente etiológica1 como a de Wright. O artigo encontra-se estruturado da seguinte maneira. Na seção 2, discutimos a questão de como falar em função dentro da biologia, especialmente em um de seus ramos, a biologia evolutiva. À reboque dessa questão, tratamos de explicitar a proposta de Wright (1973, 1976), a qual constitui uma formulação etiológica do conceito de função natural, isto é, uma formulação teórica que visa a explicar a razão de um determinado organismo ou estrutura ser atualmente do jeito que é. Na seção 3, a discussão gira em torno de como podemos conceber uma teoria da linguagem radicada no interior da biologia, e, especialmente, discutimos uma plausível narrativa evolutiva para a FL. A seção 4 fica a cargo de uma acomodação da formalização de Wright sobre função biológica à tese defendida por Chomsky ao longo de seus trabalhos que O termo etiologia faz referência ao estudo sobre as causas que determinam a origem do objeto/fenômeno sob investigação, no caso aqui discutido, a Faculdade da Linguagem. 1 1534 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 discutem a natureza e a evolução da linguagem humana. Por fim, trazemos as nossas considerações finais. 2. Como falar em função na biologia? Assim como proposto por Ernst Mayr, um dos maiores biólogos do século XX, a biologia deve explicar os fenômenos do mundo natural a partir de duas diferentes abordagens. De acordo com Mayr (1988), os dois grandes ramos da biologia, dos quais podem derivar tipos distintos de explicações funcionais, são o ramo da Biologia Evolutiva e o ramo da Biologia Funcional. De um lado, a Biologia Evolutiva lida com causas remotas, ou seja, busca explicar as estruturas e a presença de traços e características nas espécies atuais a partir de causas que vêm de uma narrativa evolutiva – i.e., causas relacionadas à história natural da espécie ou estrutura biológica em questão. A Biologia Funcional, por sua vez, lida não com causas remotas – i.e., com explicações históricas/evolutivas –, mas com as causas imediatas. Nesse ramo da biologia, o interesse é pelo “como” e não pelo “porquê”. Considerando esses dois diferentes ramos, atribuições/explicações funcionais se fazem, de acordo com a perspectiva da filosofia da biologia, a partir de duas grandes teorias influentes sobre o assunto. No ramo da biologia evolutiva, uma proposta bastante influente parece ser aquela formalizada no artigo intitulado Functions, de Larry Wright, publicado pela primeira vez em 1973. No ramo da biologia funcional, a proposta mais influente encontra-se esboçada no trabalho de Robert Cummins, “Functional analysis”, publicado em 1975.2 Assim, na biologia, pode-se falar em função seja no âmbito de explicações sobre o “porquê”, seja no âmbito de explicações sobre o “como”. Para os interesses imediatos deste trabalho, interessa a teoria causal sobre a noção de função desenvolvida por Wright, à qual daremos relevo. 2 Para uma revisão crítica e contrastante das propostas de Wright e de Cummins, remetemos o leitor ao artigo de Nunes-Neto e El-Hani (2009), intitulado “O que é função? Debates na filosofia da biologia contemporânea”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1535 A nossa escolha por uma discussão etiológica, em detrimento de uma discussão que parte de uma perspectiva sistêmica para discutir função natural, como é o caso daquela apresentada em Cummins (1975), decorre do nosso interesse em tratar aqui de questões relacionadas à origem evolutiva da FL. Conforme apontam Nunes-Neto e El-Hani (2009), apesar de abordagens sistêmicas como a de Cummins serem legítimas na Biologia, essas abordagens operam com explicações funcionais que devem ser independentes de considerações evolutivas. Uma vez que considerações evolutivas são extremamente relevantes para a discussão apresentada no presente artigo, a escolha por uma abordagem etiológica está justificada. Cabe ainda apontar que a proposta de Wright (1973) 3 foi aqui selecionada, entre outras abordagens etiológicas predecessoras (CANFIELD, 1964; BECKNER, 1969, entre outros) e sucessoras (BIGELOW; PARGETTER, 1998; NEANDER, 1998), em razão não apenas de ser essa uma abordagem padrão entre aquelas de natureza etiológica, mas também (e principalmente) porque a proposta de Wright (1973) foi a que primeiro esboçou uma distinção fundamental para o entendimento da noção de função na filosofia da biologia: a distinção entre função e acidente. Consideramos essa uma distinção extremamente importante para as discussões a respeito da função da FL. Por originar-se da visão darwinista dominante no período em que foi formulada, a teoria de Wright lança mão apenas de seleção natural como mecanismo etiológico de base, isto é, o mecanismo que gera o item da atribuição funcional. Conforme ficará claro, uma das contribuições do presente artigo está em acomodar um outro conceito da biologia evolutiva aos debates etiológicos, a saber, o conceito de exaptação. Tal conceito, a ser apresentado na seção 3, constitui, atualmente, o entendimento dominante em Linguística Gerativa. A seguir, apresentamos uma síntese da proposta de Wright (1973). 3 Ao longo do texto, citamos trechos da primeira publicação do artigo de Wright, de 1973, mas devemos mencionar que esse artigo teve uma republicação em 1998, à qual não tivemos acesso. Além disso, Wright também publicou, em 1976, o livro intitulado Teleological Explanations, em que as ideias apresentadas no artigo recebem um maior detalhamento. 1536 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 2.1 A definição etiológica de função proposta por Wright Como já apresentamos, uma abordagem etiológica é aquela que se ocupa em determinar as causas explicativas de um determinado organismo ou fenômeno. Uma maneira de alcançar tal propósito é por meio da criação de uma história evolutiva da estrutura ou fenômeno sob investigação. O principal mecanismo usado atualmente para construir uma narrativa evolutiva, sabe-se, é o mecanismo de seleção natural (vejase DARWIN, 1859). É esse o mecanismo do qual Wright se vale para desenvolver uma abordagem explicitamente causal de função. Uma ideia basilar na proposta de Wright (1973) é a de que explicações funcionais devem ser fundamentalmente explanatórias. Assim, Wright (1973, p. 154) afirma que “dizer que alguma coisa X tem uma certa função é oferecer um certo tipo importante de explicação para X”.4 Tal ideia, segundo o seu autor, torna-se imediatamente relevante quando estamos diante de um contraste como entre as afirmações a e b a seguir, potenciais respostas à pergunta que as precede, a respeito da função de uma estrutura biológica complexa, a saber, o coração. (1) – Qual a função do coração nos mamíferos? a. A função do coração nos mamíferos é bombear o sangue. b. A função do coração nos mamíferos é produzir ruído. O contraste entre essas duas afirmações nos mostra que, enquanto a afirmação (1b) é interpretada como falsa, a afirmação (1a) é apenas falseável, o que a torna uma boa hipótese acerca da função do coração. Sabe-se que, a partir da atividade cardíaca, isto é, a partir do funcionamento do coração, não apenas o sangue é bombeado, mas também ruídos são produzidos. Por qual razão podemos, no entanto, considerar – mesmo que problematicamente, como argumentamos na introdução deste artigo – que o coração pode ter a função de bombear o sangue, mas não a função de produzir ruído? A resposta a essa pergunta parece ter a ver com o fato de que talvez seja muito importante, na biologia, a distinção entre o que podemos chamar de uma atividade funcional – como possivelmente o bombeamento do sangue, no caso aqui tomado para exemplo – e o 4 Trecho original: “saying of something, X, that it has a certain function, is to offer an important kind of explanation of X”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1537 que podemos entender por ser um subproduto, isto é, uma atividade “acidental”, inevitável, como é o caso da produção de ruído pelo coração. Seguindo o entendimento de Wright (1973), a afirmação em (1a) serve como uma resposta satisfatória à nossa pergunta, na medida em que, diferentemente de (1b), (1a) constitui um tipo importante de explicação. Entretanto, as coisas parecem não ser tão simples, já que, segundo Wright (1973, p. 154), não apenas as atribuições de função fornecem explicações, mas também o fazem as atribuições de objetivo (goal ascriptions). Podemos constatar isso por meio de uma comparação das seguintes afirmações. (2) a. O coração bate para fazer o sangue circular. b. O coelho está fugindo para escapar do cachorro. Ambos os exemplos em (2) mobilizam explicações: em (2a), a explicação está relacionada à “finalidade” (in order to, em Wright (1973, p. 154)) com que o coração bate; em (2b), a explicação se refere à “finalidade” com que o coelho está fugindo. Mas apenas (2a) é um caso de atribuição funcional, que, apesar de apelar – paralelamente a (2b) – a uma explicação, não deve se confundir com um mero caso de atribuição de objetivo (2b). Wright entende que atribuições funcionais devem ter um caráter fundamentalmente explanatório que deve ser abordado em algum sentido teleológico. Wright (1973, p. 155) argumenta que perguntas como as que seguem, todas elas, podem receber a mesma resposta, que, por sua vez representam a função de X. (3) a. Qual é a função de X? b. Por que Cs têm X? c. Por que Xs fazem Y? Enquanto (3a) requer explicitamente a função de X, (3b,c) também o fazem, todavia, por meio de uma maneira que também deixa claro que afirmar a função de X é prover uma explicação de viés causal para X, isto é, explicar a causa da existência de X. Na perspectiva de Wright, questões do tipo “por que” são a maneira mais comum de perguntar sobre uma função. 1538 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Recorrentemente em sua argumentação, esse autor afirma que o tipo de papel explanatório sugerido em suas considerações sobre função não é um tipo fraco ou anêmico (anemic), como subjacente a uma pergunta do tipo “para o quê X é bom?”, geralmente imputada para explicações funcionais que não fazem uma distinção entre atividade funcional e atividade acidental. Se especificar a função do coração é explicar, por exemplo, o porquê de os mamíferos o terem, então a função do coração é a razão pela qual ele existe nos mamíferos em um sentido etiológico – i.e., de um ponto de vista causal. A ideia é que atribuições funcionais devem ser explanatórias em um sentido bastante forte, o qual pode ser observado a partir da comparação entre as duas perguntasexemplo a seguir. (4) a. Por que os animais têm fígado? b. Para o quê o fígado de animais é bom? Enquanto a resposta à pergunta em (4a) poderá tranquilamente corresponder à função que o fígado tem nos animais, já que oferece uma explicação para o porquê de os animais o terem, a resposta a (4b) jamais poderá servir da mesma maneira, pois, seja ela qual for, ela corresponderá a uma atividade acidental que certamente não implicará em uma explicação para a existência de fígado nos animais. Historicamente, é completamente acidental o fato de fígados serem bons para muitas coisas que não correspondem à sua função. Podemos assumir, por exemplo, que fígados são bons para comer com cebola, e isso nada diz de sua função (WRIGHT, 1973, p. 156). Segundo Wright, uma maneira de evitar que função se confunda com pseudofunção é incluir, como parte da análise sobre a função de X, informações sobre como X chegou onde chegou. Quando afirmamos que X chegou onde chegou porque X faz Z, por exemplo, estamos incorrendo a um porquê notadamente etiológico. Wright (1973, p. 157) propõe que afirmar que a função de X é Z corresponde a, pelo menos, afirmar que: (5) a. X existe porque faz Z. ou b. Fazer Z é a razão de X existir. ou c. Que X faz Z é o porquê de ele existir. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1539 Com a formulação acima, Wright (1973) torna mais explícita a sua definição etiológica de função. Assim, esse autor sugere que apontar a função natural de algo, um órgão em um organismo, por exemplo, é apontar a razão pela qual o órgão está naquele organismo, e, na visão de Wright, isso pode ser apropriadamente feito apelando-se ao conhecido mecanismo de seleção natural, embora não exclusivamente a tal mecanismo. Nas palavras de Wright (1973, p. 159), “Se um órgão foi natural e diferencialmente selecionado em virtude de algo que ele faz, podemos dizer que a razão pela qual o órgão existe é que ele faz o que faz”.5 No entanto, o próprio Wright nota que é fácil mostrar que a formulação acima é insuficiente para definir função na biológica. A partir da formulação em (5), corre-se o risco de confundir uma etiologia estritamente funcional com uma etiologia causal comum. Vejamos como esses dois tipos de etiologia podem se diferenciar, examinando comparativamente as duas afirmações a seguir, formuladas a partir da discussão apresentada em Wright (1973, p. 159-60). (6) a. A razão de encontrarmos oxigênio na corrente sanguínea é porque ele se combina com hemoglobina. b. A razão de encontrarmos oxigênio na corrente sanguínea é porque ele produz energia. Wright discute que o porque em (6a) é crucialmente diferente do porque em (6b). As explicações provenientes dessas afirmações sugerem diferentes tipos de etiologia, e apenas uma delas constitui um tipo de explicação funcional. Apesar de verdadeira, a afirmação em (6a) não pode servir como uma explicação funcional. Seria tola, segundo Wright, a afirmação de que a função do oxigênio é combinar-se com a hemoglobina. De fato, a função do oxigênio na corrente sanguínea deve ser a de produzir energia a partir de reações de oxidação, e a possibilidade de combinar-se com hemoglobina parece ser precisamente apenas um meio para alcançar esse fim. Como parte da argumentação de Wright, está o entendimento de que nós não podemos afirmar que o monóxido de 5 Trecho original: “If an organ has been naturally differentially selected-for by virtue of something it does, we can say that the reason the organ is there is that it does that something”. 1540 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 carbono (CO), que também é capaz de combinar-se com a hemoglobina, estaria no sangue porque é capaz de fornecer energia. Dessa maneira, quando afirmamos, como em (5), que X existe porque faz Z ou que fazer Z é a razão de X existir ou ainda que fazer Z é o porquê de X existir, estamos afirmando a função de X. Se ao mesmo tempo oferecemos uma história narrativa, via seleção natural, por exemplo, para explicar como X chegou ali, então estamos operando especificamente com uma etiologia funcional, mas não uma etiologia causal comum. Segundo Wright (1973, p. 160), a distinção entre etiologias mencionada acima se torna ainda mais clara quando lidamos com a noção de consequência causal, isto é, quando fazemos referência às consequências da presença de X. Desse modo, quando damos uma explicação funcional para X recorrendo a Z, tal que nós afirmamos que X faz Z, Z é sempre uma consequência ou um resultado de X existir. Portanto, dizer que Z é a função de X é dizer não apenas que X existe porque faz Z, mas é também dizer que Z é (ou acontece como) um resultado/consequência de X existir (op. cit., p. 160). Com isso, Wright (1973, p. 161) chega a uma formulação da definição de função que ele argumenta ser instrumentalizável na biologia. (7) – Afirmar que a função de X é Z significa afirmar que a. X existe porque faz Z. b. Z é uma consequência (ou resultado) de X existir. De uma maneira sintética, a primeira parte dessa definição, a afirmação em (7a), envolve a forma etiológica da explicação funcional, enquanto a segunda parte, (7b) descreve a maneira útil, apontada por Wright, para distinguir etiologias funcionais de etiologias causais comuns. Apresentada a importante contribuição de Wright para a viabilização de explicações funcionais no âmbito da biologia – ou pelo menos no âmbito de um de seus ramos, a biologia evolutiva – lidaremos, na próxima seção, com a visão naturalista que o linguista Noam Chomsky tem imprimido à FL, e a natureza de sua evolução. Faremos isso com o intuito de, em seguida, tentar validar a visão de Chomsky no contexto da formulação de função biológica sugerida por Wright. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1541 3. Colocando a teoria da linguagem no interior da biologia Marcadamente, é desde a publicação do livro do linguista Noam Chomsky (1957), intitulado Syntactic Structures, que tem se desenvolvido um complexo programa de investigação da linguagem humana preocupado em entender melhor os aspectos relativos à sua forma e ao seu funcionamento. Conforme apontam França, Ferrari e Maia (2016), é, no entanto, relativamente mais recente a tentativa de uma maior explicitação do desejo e da necessidade científica, por parte de estudiosos, de se chegar à prática de uma provável biologia da linguagem. Uma ideia que é central dentro da tese defendida por Chomsky ao longo de seus diversos trabalhos é a de que a linguagem humana envolve um volume bastante significativo de conhecimento linguístico que só pode ser racionalmente explicado via a postulação de uma estrutura inata especializada, radicada na mente/cérebro do homem.6 O entendimento de que a linguagem humana deve contar necessariamente com uma estrutura inata se inspira filosoficamente em um questionamento que é, no entanto, bastante antigo, formulado por Platão em um de seus diálogos menores, intitulado Mênon, em que se apresenta a seguinte questão: como podemos saber tanto, com tão pouca evidência? Esse questionamento, que ficou conhecido como problema de Platão, se traduz, dentro da linguística Chomskyana, da seguinte maneira: como bebês e crianças podem ter e exibir um conhecimento linguístico tão complexo e sofisticado sem que tenham ao seu redor evidências linguísticas suficientes para tal conhecimento? Essa é a pergunta subjacente ao conhecido argumento da pobreza do estímulo (Cf. CHOMSKY, 2012a). Para uma ligeira exemplificação7 capaz de materializar o que se entende por pobreza de estímulo, vejamos apenas um entre vários outros sentidos em que o termo pobreza acima pode ser entendido nesse contexto. Consideremos inicialmente as frases em (8), em que a unidade interrogativa “o que”, também chamada de constituinte Wh, é interpretada 6 Apesar de toda a teoria mobilizada a partir de Chomsky, bem como toda a metodologia fornecida junto com a sua teoria, ainda hoje se desconhece, anatomicamente, tal estrutura inata especializada. 7 A exemplificação que trazemos aqui é adaptada de Grolla e Figueiredo Silva (2014, p. 76-78). 1542 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 como complemento do verbo “ver”, isto é, é interpretada como a coisa que é vista. Na próxima subseção, voltaremos a esse assunto com um pouco mais de detalhe técnico. Por ora, atentemos apenas para o fato de que, no português brasileiro, a posição canônica desse tipo de complemento verbal (objeto direto) é logo à direita do verbo, de modo que essa será a posição em que o constituinte Wh será originalmente interpretado nas frases a seguir. O traço após o verbo indica a posição de origem do constituinte Wh. (8) a. O que o João viu___? b. O que o João disse que a Maria viu___? c. O que o João disse que a Maria acha que o Pedro viu___? Em termos de generalização descritiva, observamos que um constituinte Wh na função de objeto direto de um verbo pode ocorrer “movido” (ou “deslocado”) para o início da sentença (Cf. 8a, b), e isso pode se dar mesmo em casos em que esse constituinte está originalmente bastante encaixado (Cf. 8c). Observe, adicionalmente, que esse mesmo constituinte Wh pode, em português brasileiro, não se mover para o início da sentença, mas permanecer na posição em que ele é originalmente interpretado. (9) a. O João viu o quê? b. O João disse que a Maria viu o quê? c. O João disse que a Maria acha que o Pedro viu o quê? Há, no entanto, certos casos em que essa opcionalidade não é possível. Isto é, nem sempre podemos escolher mover ou deixar in situ um constituinte Wh. Observe, por exemplo, os casos a seguir. (10) a. *O que o João conheceu a menina que viu ___? b. O João conheceu a menina que viu o quê? Tem sido amplamente assumido por sintaticistas que o movimento de um elemento Wh em construções sintáticas do tipo exemplificado em (10a) mostra-se de fato impossível em qualquer língua em que seja possível mover esse tipo de constituinte para o início da sentença, o que revela que essa não é uma particularidade do português brasileiro. Isso Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1543 também revela que essa é uma restrição de natureza especificamente sintática, já que, além de atestada translinguisticamente, essa restrição atua apenas sobre certos tipos de estruturas gramaticais, como aquela em (10a), em que o elemento Wh está dentro de uma típica sentença relativa, aquela tradicionalmente rotulada como oração subordinada adjetiva. Assim, em termos de procedimentos gerativos, sentenças relativas funcionam, supostamente em todas as línguas, como “ilhas” para extração de constituintes Wh (Cf. ROSS, 1967). Essa afirmação é corroborada pela contraparte gramatical da mesma frase em (10b). Para tornar mais clara a nossa exposição, podemos comparar diretamente as frases a seguir, que mostram ser possível a extração de um elemento Wh a partir de uma oração completiva de verbo (tradicionalmente rotulada como oração subordinada substantiva objetiva direta – 11b), mas é impossível a extração a partir de uma oração relativa (tradicionalmente rotulada como oração subordinada adjetiva restritiva – 11a). (11) a. *O que o João conheceu [a menina [que viu ___ ]]? b. O que o João disse [que a Maria viu ___ ]? Mas em que consiste o nosso interesse por esse tipo de observação? Respondemos a essa pergunta com outra questão bastante objetiva: como a criança adquirindo uma língua toma conhecimento dos fatos observados acima? Uma resposta que tem se mostrado bastante adequada tem sido aquela proposta por Chomsky: a criança não toma conhecimento desses fatos, mas ela traz esse conhecimento consigo, em alguma medida determinado geneticamente. Perceba, em relação aos exemplos explorados logo acima, que não é plausível considerarmos que o estranhamento a uma sentença como (11a) se deva à instrução explícita de que tal tipo de sentença não pode ser gerada pela língua; parece ser igualmente implausível a afirmação de que chegamos ao conhecimento de tal restrição por analogia. Não somos orientados/instruídos de qualquer maneira em relação a tal tipo de restrição na língua, tampouco a depreendemos por analogia, já que sentenças bastante similares são possíveis, como é o caso de (11b). Chomsky demonstra que podemos de fato colocar parte da nossa teorização sobre a linguagem no interior da biologia, ao propor que uma certa parcela do nosso conhecimento sobre a nossa língua tem expressão em nossos genomas, de maneira que o surgimento desse conhecimento é automático durante o crescimento de uma criança normal. 1544 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Em formulações mais recentes a respeito da representatividade desse componente genético da FL, denominado Gramática Universal (GU), Chomsky argumenta que a competência linguística exclusiva da espécie humana deve ser resultado de uma interação entre três fatores (Cf. CHOMSKY, 2005, p. 6): o Primeiro Fator corresponde à GU, ou seja, uma dotação genética propriamente dita; o Segundo Fator envolve a experiência fornecida por estímulos do ambiente; e o Terceiro Fator compreende princípios que não são exclusivos da FL, tais como princípios de eficiência computacional, princípios de análise de dados, entre outros. Mais especificamente em relação à concepção de GU, Chomsky vem argumentando, ao longo de seus últimos trabalhos, que a dotação genética representada pela GU deve corresponder a um simples mecanismo combinatorial recursivo, compreendido sob a forma de uma operação computacional denominada Merge, a ser tecnicamente definida ao final da próxima subseção. Se a nossa teorização sobre a língua pode ser colocada no interior da biologia, tal que possamos investigar como se deu a evolução da linguagem humana, então o alvo dessa abordagem evolutiva é certamente a GU, já que é esse o componente da FL que, por hipótese, figura como uma expressão do genótipo humano. Como vimos, a postulação de uma GU parece ser capaz de explicar o fato de que crianças demonstram um rico e organizado conhecimento linguístico, em um curto intervalo de tempo, e com recursos limitados (problema lógico da aquisição da linguagem). A postulação de uma GU implica, portanto, uma explicação para o surgimento da FL que considere certas especificidades dessa capacidade cognitiva da espécie, como por exemplo, a aparente autapomorfia8 da GU, e o seu suposto desenvolvimento recente, conforme retomaremos adiante. Se as especificidades mencionadas acima são verdadeiras, então a definição de GU como sendo um único e simples mecanismo combinatorial recursivo facilita o entendimento acerca da evolução da FL (Cf. CHOMSKY, 2007; NÓBREGA, 2018). O termo autapomorfia, assim como usado em estudos a respeito de relações filogenéticas na Biologia, é aqui empregado em relação à FL para indicar que essa faculdade cognitiva representa uma inovação evolutiva cuja existência não encontra algo correspondente na natureza, ou seja, constitui um caractere exclusivo da espécie humana. 8 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1545 A seguir, resumimos uma proposta que tem ganhado cada vez mais proeminência entre aquelas que discutem a emergência da FL. Em seguida passaremos a tratar diretamente do tópico de interesse deste artigo, qual seja, a aplicação de uma definição biológica de função. 3.1 A evolução da FL de acordo com a conhecida Tese Minimalista Forte A essa altura, passaremos a nos referir à evolução da linguagem mais apropriadamente como evolução da FL. Isso porque, conforme explica Chomsky (2013, nota 7), embora o termo “evolução da linguagem” possa ser usado como um atalho para se referir à evolução da capacidade dos humanos de terem um língua (e isso é o que entendemos ser a FL), esse mesmo termo pode fazer referência também à evolução de comportamentos envolvendo linguagem, como, por exemplo, a evolução da comunicação, que, na perspectiva adotada aqui, é bastante diferente da evolução da capacidade de gerar expressões linguísticas da maneira como apenas nós humanos somos capazes. Evidentemente, essa capacidade exclusiva da espécie humana é usada para comunicação e muitas outras coisas. Quanto a esse aspecto, é justo mencionar que a abordagem aqui assumida não é a única disponível. Diferentemente da hipótese internalista que adotamos aqui em relação ao surgimento da FL, outras abordagens consideradas externalistas podem ser encontradas na literatura biolinguística (e.g., TOMASELLO, 2008; FITCH, 2010; FISHER; VERNES, 2015; GRAHAM; FISHER, 2015; FISHER, 2016; EVERETT, 2017). Essas abordagens diferem fundamentalmente daquela aqui assumida, pois elas partem do pressuposto de que a FL, apesar de diferir de comunicação, tem essa como sendo a sua característica mais essencial. A exemplo desse último caso, a comunicação humana pode ser entendida como uma capacidade única dessa espécie, na medida em que apenas ela (a comunicação humana) manifesta o que se denomina como intencionalidade compartilhada (Cf. TOMASELLO, 2008), diferentemente de sistemas comunicativos encontrados em outras espécies, incluindo primatas não humanos. Mais adiante (ver seção 3.2), apresentamos um conjunto de fatos empíricos que favorecem a hipótese internalista. Ao discutirem o papel da comunicação na evolução da FL, Berwick e Chomsky (2016, p. 64) consideram, seguindo Jerison (1973), que a capacidade de ter uma língua não evoluiu inicialmente como 1546 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 um sistema de comunicação, mas como um sistema que possibilita a construção de “um mundo real”, como uma espécie de “ferramenta de pensamento”. Aqui, portanto, a especulação diz respeito ao como e ao em vista do que deve ter surgido e evoluído essa capacidade exclusiva da nossa espécie, que tem como propriedade mais elementar a de nos permitir construir e interpretar expressões linguísticas estruturadas hierarquicamente, compreendendo o que se considera ser um sistema de pensamento altamente sofisticado. Chomsky (2005), usando as palavras de François Jacob, parece resumir bem o que entende ser um sistema de pensamento estruturado de maneira única: “A qualidade da linguagem que a torna única não parece ser tanto o seu papel na comunicação […]”, mas sim “seu papel em simbolizar, em evocar imagens cognitivas”, “em moldar” nossa noção de realidade e produzir nossa capacidade de pensamento e planejamento, através de sua propriedade única de permitir “infinitas combinações de símbolos” e, portanto, “criação mental de mundos possíveis” […] (CHOMSKY, 2005, p. 3-4, tradução nossa).9 De acordo com o empreendimento gerativista, tal faculdade cognitiva, quando observada sob uma perspectiva mais ampla (Cf. HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002) é viabilizada pela composição de, pelo menos, três “ingredientes” elementares: (i) um sistema sensóriomotor (ou simplesmente, S-M), (ii) um sistema conceitual-intencional (C-I), e (iii) um sistema combinatorial recursivo. Com base no que se discute em Hauser, Chomsky e Fitch (2002), bem como em uma vasta literatura posterior, os sistemas (i) e (ii) são atestadamente verificados em animais não humanos, o que sugere a sua existência antes mesmo do surgimento da FL. O caráter diferencial da FL estaria, por sua vez, em propriedades observadas no sistema (iii), mais especificamente em sua especialidade recursiva. Hauser, Chomsky e Fitch (2002) argumentam que esse terceiro ingrediente, diferentemente 9 Trecho original: “The quality of language that makes it unique does not seem to be so much its role in communicating directives for action’’ […], but rather ‘‘its role in symbolizing, in evoking cognitive images,’’ in ‘‘molding’’ our notion of reality and yielding our capacity for thought and planning, through its unique property of allowing ‘‘infinite combinations of symbols’’ and therefore ‘‘mental creation of possible worlds […]”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1547 dos ingredientes (i) e (ii), é exclusivo à espécie humana, e deve ser apropriadamente encarado como a FL em um sentido mais estrito. Além disso, os autores defendem que tal ingrediente, isto é, um sistema combinatorial recursivo, se constitui como aquilo que certamente deve fazer a diferença em termos de um sistema de pensamento. Basicamente, a FL consiste em um sistema que relaciona som/ sinal e significado por meio de recursividade, gerando estruturas sintáticas hierarquizadas. A figura a seguir representa, de forma simplificada, a arquitetura da FL num sentido mais amplo, como discutido em Hauser, Chomsky e Fitch (2002). FIGURA 1 – Adaptação daquilo que é considerado como sendo a arquitetura da FL, segundo a visão gerativista. Na figura, a seta 1 indica o sistema combinatorial recursivo; as setas 2 e 3 indicam sistemas de interface entre componentes considerados externos à FL estrita, e com os quais ela interage: respectivamente, um componente conceitual-intencional e um componente sensório-motor. Diz-se que, em Forma Fonética (ou PF, do inglês Phonetic Form), um objeto linguístico deve apresentar as informações que atuarão como instruções para o componente S-M. Em Forma Lógica (ou simplesmente LF, do inglês Logical Form) as informações relevantes do objeto linguístico são de natureza semântica, e interessam, portanto, exclusivamente ao componente C-I. Uma vez que apenas o componente S-M fica a cargo de externalização, podemos, grosseiramente, assumir que os componentes da FL indispensáveis a um sistema de pensamento – logo, os componentes 1548 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 voltados para um uso interno à mente – são o componente combinatorial e o componente C-I. Este último componente, alimentado por aquele, redunda na qualidade diferenciada do sistema de pensamento humano. Ainda na figura 1, uma vez que o nosso propósito aqui é tratar de questões evolutivas, dispomos as setas 1 e 2 de maneira unidirecional, como maneira de indicar que a FL evoluiu como um sistema com função interna à mente. Em outra direção, a externalização de objetos mentais parece ter um papel secundário na evolução da FL, como discutiremos. Voltemos o nosso olhar para a seta 1. Sendo o sistema combinatorial recursivo um componente de caráter exclusivo, devemos entender que, em termos de FL, essa foi a inovação evolutiva da espécie. Ao dirigir o olhar para a FL sob um ponto de vista evolucionário, Chomsky recorrentemente traz para o debate ainda as seguintes considerações. (I) A FL parece ser um desenvolvimento evolucionário recente Baseado sobretudo nos trabalhos do paleontólogo Ian Tattersall – especialmente em seus trabalhos que fazem uso de registros arqueológicos na busca de entender a relação entre evolução humana e cognição (Cf. TATTERSALL, 2008, 2010) – Chomsky (2012b) entende que a FL surgiu em nossa espécie por volta de 100 mil anos atrás, data aproximada de quando são encontrados os primeiros registros de comportamento mediado simbolicamente que se supõe ser impossível sem uma FL, já que parece ser essa a capacidade cognitiva que nos possibilita processar informações sobre o mundo de maneira como nenhuma outra espécie é capaz. Dessa maneira, parece não haver qualquer indicação de que a FL tenha existido em um momento anterior àquele em que os efeitos de tê-la passaram a ser registrados, isto é, até o momento em que é possível encontrar artefatos simbólicos, notações que refletem eventos astronômicos e meteorológicos, estruturas sociais complexas, etc. (CHOMSKY, 2012b, p. 29). Partindo desse entendimento, pode-se dizer que, de um ponto de vista evolucionário, a FL é sugestivamente uma aquisição bastante recente. (II) Não se sabe da existência de algo equivalente à FL em outras espécies Até agora, não é possível atestar a existência de um sistema gerativo de linguagem semelhante ao nosso em qualquer outra espécie, incluindo os nossos parentes mais próximos, os macacos. Como alguns Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1549 estudos mostram (Cf. YIP, 2006; BERWICK et al., 2011; SAMUELS, 2011; BERWICK et al., 2012; NÓBREGA; MIYAGAWA, 2015), espécies não humanas também empregam sistemas dos quais a FL também faz uso, como é o caso dos sistemas S-M e C-I. Entretanto, a distinção chave entre os sistemas de linguagem humano e não humano parece estar em habilidades computacionais sintáticas: enquanto sistemas computacionais de outras espécies estão limitados a operar com relações de precedência linear, por exemplo, a habilidade sintática humana é a única capaz de lidar com relações de precedência hierárquica, um poder computacional, ao que tudo indica, único, que é devido a Merge, a operação computacional que descreveremos mais adiante. (III) A capacidade de ter uma língua parece ter se mantido uniforme desde o seu surgimento Ao contrário do que acontece, por exemplo, com a habilidade para digerir lactose ou mesmo com a pigmentação da pele, a capacidade de adquirir uma língua não divide a população humana em grupos (BOLHUIS et al., 2014, p. 2). Assim, Chomsky sustenta que nenhuma diferença genética relacionada à nossa FL parece ser observável entre a população humana atual, e supostamente esse é o caso desde a dispersão da nossa espécie a partir da África, aproximadamente 50 000–80 000 anos atrás. De fato, não há dúvidas hoje de que uma criança normal nascida no Brasil, se levada para o Japão logo após o seu nascimento, irá adquirir o japonês como sua primeira língua tanto como qualquer outro falante nativo do japonês ou vice-versa. Essas são as principais considerações que têm levado Chomsky e estudiosos de outras áreas que não a linguística exatamente a argumentarem que a FL foi adquirida não sob seleção natural,10 em contexto de modificações lentas e graduais de sistemas preexistentes, mas sim em um evento único, rápido e emergente, construído sobre esses sistemas anteriores, mas não previsto por eles (BOLHUIS et al., 2014, p. 4). 10 Mais uma vez, é justo mencionar que essa não é a única visão dentro da biolinguística. Veja-se, por exemplo, a proposta de Pinker e Bloom (1990), para quem a evolução da FL tem como processo de base um mecanismo necessariamente gradual de seleção natural. Uma discussão apropriada dessa literatura está além do escopo deste artigo. O leitor interessado em uma comparação entre as perspectivas gradualistas e não gradualistas pode consultar Mesquita (2017). 1550 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Tem-se, a partir daí, o entendimento de que o componente unicamente humano da FL deve ter uma explicação evolutiva “saltacional”, e a evolução da FL em um sentido mais amplo – isto é, a FL tal como com a arquitetura representada na figura 1, em que o componente combinatorial recursivo se relaciona com outros componentes periféricos – recebe uma explicação evolutiva em termos de exaptação. Como proposto por Gould e Lewontin (1979), Gould e Vrba (1982), Gould (1991), exaptação corresponde à cooptação da função de uma determinada estrutura biológica para uma outra função diferente daquela envolvida em sua origem.11 A FL em sentido amplo, assim como discutida em Hauser, Chomsky e Fitch (2002), apresenta, portanto, propriedades de outros sistemas preexistentes, como os sistemas periféricos C-I e S-M, as quais teriam sido recrutadas para uma nova função, a partir do momento em que evento genético único implantou um novo componente entre aqueles preexistentes. Mas que evento único, rápido e emergente pode ter sido esse? A hipótese mais simples, segundo Chomsky, é que passamos a operar com que se denomina, em teoria linguística, como Merge, uma operação computacional que nos permite tomar objetos mentais já construídos – os quais podemos entender como sendo conceitos de algum tipo – e elaborar objetos mentais ainda maiores a partir deles (CHOMSKY, 2012b, p. 30). Tal hipótese deriva da conhecida Tese Minimalista Forte (Strong Minimalist Thesis – SMT), encaminhada por Chomsky desde o início do Programa Minimalista (Cf. CHOMSKY, 1995 e trabalhos posteriores), um programa de investigação sobre a FL que se constituiu como uma extensão da Teoria de Princípios e Parâmetros. A SMT claramente facilita o entendimento acerca da evolução da FL, na medida em que ela reduz o componente genético da FL – i.e. a GU, como vimos antes – a um simples mecanismo computacional combinatorial, com o qual a cognição humana passou a operar. Observe 11 Um caso de exaptação bastante mencionado na literatura é o das penas das aves. De acordo com os modelos atualmente mais aceitos, as penas evoluíram como um mecanismo de termorregulação em dinossauros ancestrais das aves, que não eram capazes de voar. Posteriormente, as penas teriam sido recrutadas para uma função diferente, a de permitir que as aves voem. Temos, nesse caso, uma função atual que é diferente daquela envolvida na origem evolutiva da estrutura em questão. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1551 que a hipótese de Merge como sendo o único “conteúdo” da GU – e, consequentemente, o ingrediente exclusivo da FL, já que esse ingrediente não se observa em outras espécies (cf. HAUSER; CHOMSKY; FITCH, 2002) – está em harmonia com a concepção de um evento “rápido, único e emergente”, que não se explica por seleção natural (hipótese saltacionista). Em síntese, podemos dizer que a SMT se erige a partir da seguinte pergunta: o que viria a ser uma solução ideal/ótima para as condições impostas pelos sistemas com os quais a FL interage, notadamente, os sistemas S-M e C-I? A hipótese perseguida pela SMT é a de que a solução ideal/ótima é um sistema gerativo que conta apenas com Merge – a operação computacional combinatorial mencionada logo acima – e com um requerimento cognitivo geral de busca computacionalmente mínima e eficiente (Cf. CHOMSKY, 2000 e trabalhos subsequentes). Como já adiantamos, por definição, Merge é uma operação que toma dois objetos já construídos, X e Y, e os reúne em um novo objeto, digamos, Z, rotulado por meio de um mecanismo computacional de busca mínima, digamos, um algoritmo de rotulação (Cf. CHOMSKY, 2013). Assim, seja X “o” e seja Y “garoto”, a sua combinação vai resultar no objeto sintático {o,garoto}, correspondendo ao sintagma nominal “o garoto”. Crucialmente, Merge pode se aplicar ao resultado de seu próprio output, tal que a unidade {o,garoto} pode sofrer Merge com “ver”, de modo a produzir um novo conjunto, {ver,{o,garoto}}, correspondente ao sintagma verbal “ver o garoto”.12 Interessantemente, a operação Merge também produz casos de deslocamento/movimento de objetos sintáticos, conforme explorado superficialmente, por meio dos exemplos em (8), (10b) e (11b), no início desta seção. Movimento de constituinte, um dos grandes fatos que as línguas naturais compartilham, pode, à primeira vista, parecer uma imperfeição do sistema gerativo, isto é, da sintaxe. Considere a sentença em (12), a seguir. (12) Adivinha o que João viu? 12 A rigor, a operação Merge não é sensível à ordem em que os elementos devem ser concatenados, de maneira que o output, nos exemplos aqui explorados, também pode ser {garoto,o} ou {o garoto,ver}. Assim, diz-se que Merge é cega à ordem daquilo que deverá ser analisado como núcleo do sintagma. 1552 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Nessa sentença, muito embora seja pronunciado em outro lugar, o constituinte “o que” é originalmente interpretado na posição de objeto direto da forma verbal “viu”, como na frase “João viu um elefante”. Sob a perspectiva da SMT, casos de movimento como o ilustrado acima devem ser automaticamente analisados como sendo gerados por Merge, nos seguintes termos. Inicialmente, Merge constrói a expressão mental correspondente a “João viu o que”. Conforme propõe Chomsky, expressões podem ser construídas por Merge de duas maneiras: podemos ter o que se traduz como Merge Interno e o que se traduz como Merge Externo. Por Merge Interno, podemos adicionar à estrutura algo já interno a ela, gerando, por exemplo, a estrutura “o que João viu o que”, em que uma cópia do constituinte “o que”, já concatenado antes, é reconcatenada; podemos ainda, por Merge Externo, adicionar objetos novos, ainda não manipulados, gerando, por exemplo, a estrutura “adivinha o que João viu o que”. Essa sequência gerada não é, no entanto, aquela que externalizamos. Isto é, apesar de as duas posições de “o que” serem semanticamente13 requeridas, é apenas uma ocorrência de “o que” que pronunciamos, crucialmente aquela gerada por Merge Interno. A reboque dessa última observação, passaremos a discutir alguns fatos empíricos que mostram uma assimetria entre os sistemas S-M e C-I. Tal assimetria revela que a FL não é um sistema adaptado para comunicação, o que, por conseguinte, favorece a hipótese internalista, e diz muito sobre qual é a sua função em um sentido etiológico. 3.2 Alguns fatos que mostram assimetria entre os sistemas S-M e C-I 3.2.1 O apagamento de cópias Como observado ao final da seção anterior, a estrutura “adivinha o que João viu o que” não coincide com a sequência externalizada “adivinha o que João viu”, em que a cópia mais baixa do constituinte “o que” é suprimida. De acordo com Chomsky, a propriedade das línguas naturais de suprimir, para fins de externalização, todas menos uma ocorrência 13 A posição de base, isto é, aquela gerada por Merge externo, indica que o constituinte deve ser interpretado como objeto direto do verbo “ver”, no caso exemplificado, enquanto que a posição derivada, aquela à esquerda do verbo “ver”, gerada por Merge interno, deve ser interpretada como um quantificador ligando uma variável, de modo que a expressão significa algo como “para alguma coisa X, João viu a coisa X”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1553 de um constituinte copiado é uma propriedade que segue princípios elementares de eficiência computacional. Nesse sentido, afirmam Berwick e Chomsky (2011, p. 31): “De fato, tem sido frequentemente notado que atividade motora em série é computacionalmente custosa, uma questão que pode ser atestada em vista da grande quantidade do córtex motor que é devotada tanto ao controle motor das mãos quanto aos gestos articulatórios orofaciais”.14 Assim, Berwick e Chomsky argumentam que externalizar uma estrutura como “o que João viu o que”, gerada internamente, requer pronunciar um mesmo “o que” duas vezes, o que acabaria por colocar uma inadequada carga na computação para a interface de externalização.15 Se todas menos uma ocorrência do 14 Trecho original: “In fact, it has often been noted that serial motor activity is computationally costly, a matter attested by the sheer quantity of motor cortex devoted to both motor control of the hands and for oro-facial articulatory gestures.” 15 Conforme pontuou um parecerista, há de se mencionar uma potencial evidência contrária ao argumento aqui usado: em algumas línguas, mais de uma cópia pode ser pronunciada. Um exemplo claro pode ser observado em (i), a seguir, do Romani (os dados em i, ii e iii foram extraídos de NUNES, 2003): (i) Kas misline kas o Demìri dikhlâ? quem você-pensa quem o Demir viu ‘Quem você acha que o Demir viu?’ Como discute Nunes (2003), a julgar pelo Romani, fica evidente que, nos casos em que duas cópias são pronunciadas, não é qualquer elo da cadeia de constituintes copiados que pode ser pronunciado; além disso, deve-se considerar que nem todo tipo de constituinte copiado pode ser pronunciado mais de uma vez. Esses fatos são explicitados por meio dos dados a seguir: (ii) *Kas misline kas o Demìri dikhlâ kas? Quem você-pensa quem o Demir viu quem ‘Quem você acha que o Demir viu?’ (iii) *Save chave mislinea save chave o Demìri dikhlâ? que menino você-pensa que menino o Demir viu ‘Que menino você acha que o Demir viu?’ Pelo que se entende de Nunes (2003), no Romani, duas cópias só podem ser pronunciadas desde que haja uma cadeia de constituintes copiados com mais de dois elos, de maneira que um deles, necessariamente o mais encaixado (Cf. ii), jamais poderá ser realizado; além disso, o fato de cópias complexas não poderem ser pronunciadas (Cf. iii) parece tornar bastante limitado esse fenômeno. Se esse também for o caso com outras línguas em que mais de uma cópia pode ser pronunciada, temos um provável caminho para explorar e demonstrar como tal fato não vai contra a argumentação aqui trazida. 1554 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 constituinte deslocado é suprimida, então temos um enorme alívio de carga computacional. Dessa forma, Berwick e Chomsky (2011, p. 32) concluem que “[...] a faculdade da linguagem recruta um princípio geral de eficiência computacional para o processo de externalização”.16 Apesar de demonstrar eficiência computacional, o mecanismo de supressão de cópias aqui discutido coloca uma certa carga sobre a interpretação de expressões geradas pela sintaxe, e, assim, coloca um problema para a comunicação. Esse problema é visto da seguinte maneira: quando ouvimos uma expressão como aquela em (12), precisamos descobrir qual é a posição possível em que o constituinte deslocado deve ser interpretado. Esse já é um fato problemático para frases bastante simples como aquela em (12), mas uma frase um pouco mais complexa, como (13), a seguir, torna o problema mais óbvio. (13) Quem João viu quando entrou na sala? Sabe-se que, por razões que não vêm ao caso discutir aqui, o constituinte interrogativo “quem”, na frase em (13), do português brasileiro, só pode estar relacionado com a posição de objeto direto do verbo “ver”. No entanto, apenas com base no que é externalizado, e não com base na estrutura tal como ela é gerada computacionalmente, poderíamos supor outra posição sintática possível com a qual o constituinte “quem” também pudesse estabelecer uma relação interpretativa: a posição de sujeito do verbo “entrar”, por exemplo, a qual também não tem realização fonológica no exemplo em (13). A pronúncia de apenas uma cópia parece seguir de uma condição de eficiência mais geral que requer que computações fonológicas sejam minimizadas, mas pode levar a complicações significativas quanto ao uso da língua, complicações relacionadas ao processamento e à percepção, como discutido em Berwick e Chomsky (2011, 2016) e Chomsky (2013, 2015). O ponto aqui é, portanto, o seguinte: parece haver uma tensão entre eficiência computacional e eficiência interpretativa-comunicativa, e as línguas universalmente resolvem essa tensão em favor de eficiência computacional (BERWICK; CHOMSKY, 2011, p. 32). O fato de as línguas naturais serem otimizadas para operarem com eficiência 16 Trecho original: “[…] the language faculty recruits a general principle of computational efficiency for the process of externalization”. Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1555 computacional em detrimento de eficiência comunicativa sugere, segundo Berwick e Chomsky (2011), que a FL evoluiu como um sistema de pensamento, portanto um sistema interno à mente, com a externalização sendo um processo secundário. 3.2.2 A primazia da ordem hierárquica sobre a ordem linear Sabe-se que, para ser externalizada, uma estrutura hierárquica qualquer, gerada por Merge, deve passar por algum processo de linearização, já que o sistema S-M é sensível à ordem linear. Sabemos, por outro lado, que apenas a ordem estrutural/hierárquica – i.e., aquela a partir da qual é gerada a ordem linear – é o que de fato está acessível e interessa ao sistema C-I. Um aparente contraexemplo a essa afirmação poderia surgir a partir da frase a seguir, em que a modificação feita pelo advérbio “instintivamente” é ambígua17. (14) Aves que voam instintivamente nadam. Como discute Berwick (2017, p. 93), poderíamos erroneamente concluir, a partir de uma frase como em (14), que o impacto interpretativo que uma modificação adverbial tem no sistema C-I é um fato que se baseia na distância linear do advérbio em relação ao verbo. Nesse sentido, a frase acima seria ambígua em função de o advérbio “instintivamente” estar linearmente tão distante do verbo “voar” quanto está do verbo “nadar”, podendo, assim, modificar qualquer um dos dois verbos. Entretanto, a sentença a seguir mostra que esse não é bem o caso. (15) Instintivamente, aves que voam nadam. Na sentença não ambígua (15), o advérbio “instintivamente” pode modificar apenas o verbo que está linearmente mais distante, “nadar”. O fato aqui curioso é que, desta vez, o impacto interpretativo que a modificação adverbial tem no sistema C-I se baseia em uma associação linearmente remota, mas não em uma associação linearmente proximal, entre o advérbio e o verbo. Em hipótese alguma, na frase em (15), o Os exemplos em (14) e (15) são a versão, em português, dos mesmos exemplos explorados em Berwick e Chomsky (2016) e em Berwick (2017). 17 1556 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 advérbio “instintivamente” poderia exercer qualquer efeito interpretativo sobre o verbo “voar”, do qual está linearmente mais próximo. Na sentença em (15), o advérbio está hierarquicamente – mas não linearmente – mais próximo de verbo que ele modifica, como vemos a seguir, na representação sintática dessa sentença, crucialmente gerada por Merge, assim como essa operação foi descrita ao final da seção 3.1. FIGURA 2 – Representação sintática da sentença em (15), gerada por Merge, em que os itens nos nós terminais, destacados em negrito, representam aqueles que serão externalizados, e os itens em cinza são simples rótulos da concatenação de objetos sintáticos (ver CHOMSKY, 2013, 2015). Detalhes sintáticos irrelevantes foram omitidos. Como vemos na figura 2, se podemos explicar a modificação adverbial em termos de uma operação computacional de busca mínima (minimal search) que atua com Merge –presumivelmente um princípio do Terceiro Fator, como proposto no modelo de Três Fatores de Chomsky (2005) –, então esse mecanismo de busca mínima deve fazer uso de distância estrutural em detrimento da distância linear, apesar do fato de a distância linear ser um mecanismo computacionalmente mais simples. Esses fatos sugerem, mais uma vez, que a FL – compreendida como um sistema biológico que permite a geração de arranjos estruturados hierarquicamente, a serem interpretados pelos componentes periféricos S-M e C-I – é, de fato, um sistema assimétrico. Em relação ao contraste aqui observado entre ordem estrutural vs ordem linear, nas palavras de Huybregts (2017), tal assimetria é entendida nos seguintes termos: Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1557 [...] o mapeamento da sintaxe para o sistema conceitual-intencional é cego à ordem linear e depende apenas das propriedades estruturais, enquanto o mapeamento para o sistema sensório-motor também é sensível às propriedades lineares. A externalização é, portanto, secundária, tanto em relação à função linguística quanto em termos de evolução. (HUYBREGTS, 2017, p. 282, tradução nossa)18 A seguir, apresentamos mais algumas evidências para essa assimetria. 3.2.3 Assimetria ainda mais transparente: casos de elipse e de ambiguidade estrutural Em 3.2.1, vimos que a redução/apagamento de cópias constitui um mecanismo que atende a um suposto requerimento obrigatório de eficiência computacional – ao que tudo indica, um princípio do Terceiro Fator. Entretanto, as línguas naturais também exibem instâncias de apagamento de material linguístico que não parecem envolver cadeias de constituintes copiados por meio de Merge interno. Esses são, portanto, casos em que o apagamento não é obrigatório, e envolvem o que a literatura denomina como elipse. O exemplo em (16a) ilustra um tipo de elipse que envolve apagamento de um único verbo, na segunda frase de um período composto por coordenação. A elipse em questão recebe, na literatura, o nome de gapping (ROSS, 1970; JACKENDOFF, 1971; COPPOCK, 2001). (16) a. Maria chegou ontem e João ____ antes de ontem. b. Maria chegou ontem e João chegou antes de ontem. Como evidenciado por meio de (16), em casos de gapping, temos um mesmo conteúdo conceitual, servindo à interpretação da sentença no sistema C-I, associado a duas formas fonológicas passíveis de serem externalizadas por meio do sistema S-M – tecnicamente, uma mesma representação em LF para duas representações possíveis em PF. A 18 Trecho original: “[...] the narrow syntax mapping to CI is blind to linear order and relies on structural properties only while the mapping to SM is also sensitive to linear properties. Externalization is therefore secondary both in linguistic function and in evolutionary time”. 1558 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 despeito de não ser pronunciado na segunda frase da sentença em (16a), é o verbo “chegar” que é interpretado como o verbo dessa frase, exatamente como no caso em (16b), em que esse verbo é realizado. Assim, casos de elipse manifestam, claramente, o tipo de assimetria sob discussão, na medida em que, como vemos, uma mesma representação de sentido – e em uma mesma língua particular – pode se associar a diferentes formas de representação de sua externalização. Uma assimetria com ordem inversa dos fatores também pode ser observada a partir de fenômenos comuns de ambiguidade estrutural. Tais são os casos em que temos duas diferentes representações em LF, a serem interpretadas pelo sistema C-I, associadas a uma mesma representação fonológica –i.e., uma mesma representação PF, a ser externalizada. A estrutura ambígua explorada previamente em (14), repetido adiante como (17), pode receber as seguintes duas interpretações, expressas por meio das paráfrases que seguem. Tais interpretações estão, evidentemente, relacionadas a diferentes representações estruturais dessa sentença. (17) Aves que voam instintivamente nadam. Paráfrase A: As aves que voam instintivamente são aqueles que nadam. Paráfrase B: As aves que nadam instintivamente são aqueles que voam. Mais uma vez, a assimetria aqui discutida pode ser observada. Nos casos em que temos ambiguidade estrutural, um fato interessante deve ser destacado. Ambiguidades representam uso ineficiente da linguagem, na medida em que elas podem ser consideradas um problema para comunicação. Se é assim, temos mais um caso em que eficiência computacional prevalece sobre eficiência comunicativa. Não apenas os fatos mencionados até aqui, mas também muitas outras constatações empíricas manifestam uma assimetria entre os sistemas que compõem a FL, ao mesmo tempo em que sugerem fortemente a sua evolução como um sistema de pensamento, a ser posteriormente utilizado para fins comunicativos. Evidências em favor desse entendimento não se circunscrevem apenas à área da linguística, Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1559 mas podem ser levantados a partir de outros campos do conhecimento, tais como a paleontologia, a arqueologia e a biologia molecular.19 3.3 Resumindo a seção Nesta seção, apresentamos um pouco de como a FL pode ser vista de uma perspectiva que podemos denominar Biolinguística. A partir de tal olhar para a linguagem, nos detivemos a uma proposta conhecida como Tese Minimalista Forte, que persegue a hipótese de que o caráter supostamente autapomórfico da FL pode ser explicado de uma maneira ótima e econômica, recorrendo-se a uma única operação gerativocomputacional denominada Merge, que, em atuação com princípios elementares de eficiência computacional, é capaz de derivar expressões estruturadas hierarquicamente, sob a forma do que se entende ser uma linguagem de pensamento. Conforme sustentam Bolhuis et al. (2014), se considerarmos como fato que Merge é uniforme na população humana contemporânea tanto quanto em registros históricos, tal uniformidade e estabilidade certamente apontam para a ausência de mudança evolutiva desde o surgimento da FL. Esses autores acrescentam ainda que, tomados em conjunto, esses e alguns outros fatos fornecem boas evidências de que Merge foi realmente a inovação evolutiva para o surgimento de uma FL (BOLHUIS et al., 2014, p. 2). Por fim, apesar de FL e comunicação serem, não muito raro, consideradas equivalentes, apresentamos, nas últimas subseções, algumas evidências que endossam a tese de que a externalização de pensamento – e, portanto, a comunicação – merece ser entendida como um processo secundário, não direta ou inicialmente envolvido na evolução da FL. A razão para tal entendimento decorre do fato de que, sendo a FL uma capacidade cognitiva humana que se constitui de três componentes elementares – notadamente, um sistema S-M, um sistema C-I, e um sistema computacional combinatorial –, uma vez que assimetrias entre os sistema S-M e C-I são encontradas, e o sistema C-I é favorecido, é natural entendermos que comunicação, que fica a cargo do sistema S-M, é uma característica secundária, tanto do ponto de vista de sua função interna à FL, quanto do ponto de vista de sua evolução. Um trabalho recente, e que reúne argumentos de várias áreas, é o trabalho de Huybregts (2017) a respeito de cliques fonêmicos usados por povos khoisan no sudoeste da África. 19 1560 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Tendo em vista a proposta que acabamos de resumir sobre a natureza evolutiva da FL, vejamos que explicação funcional podemos oferecer para essa faculdade cognitiva, no contexto da formulação de função proposta por Wright, apresentada na seção 2.1. 4. Discutindo a função biológica da FL à luz de contribuições de Wright e de Chomsky Antes de verificarmos como a hipótese internalista acerca da emergência da FL pode ser acomodada à abordagem etiológica de Wright, vejamos uma aparente desarmonia entre as propostas desses dois autores, e de que maneira essa desarmonia pode ser resolvida. 4.1 Pode uma abordagem etiológica lidar com exaptações? Como mencionamos na seção 2, à época em que foi formulada, a proposta de Wright só podia se valer da concepção darwinista de seleção natural como meio de construir uma narrativa evolutiva. Não poderia ser diferente, pois “a importância de considerar-se um pluralismo de processos na biologia evolutiva começou a tornar-se clara muito depois da publicação do artigo de Wright, em 1973” (NUNES-NETO; EL-HANI, p. 359). O termo exaptação, por exemplo, bem como um conhecimento mais sistemático desse mecanismo na biologia evolutiva, só foi introduzido por Gould e Vrba em 1982, quase 10 anos após a primeira publicação do artigo de Wright. Por causa disso, operar com um conceito etiológico de função significa operar, implicitamente, com o entendimento de que toda e qualquer caracterização funcional etiológica envolve adaptação. Selecionismo estrito é, portanto, uma das críticas que abordagens etiológicas têm sofrido (Cf. CUMMINS, 1998). A proposta etiológica de Wright, da maneira como foi formulada, perde o seu poder explicativo sempre que se depara com casos em que o item biológico sob investigação é fruto de processos não seletivos, como é o caso da FL, assumida aqui, seguindo a abordagem gerativista, ser fruto de uma exaptação. Para resolver esse tipo de dificuldade, recorremos à proposta de Godfrey-Smith (1998). Nas palavras de Nunes-Neto e El-Hani (2009, p. 371), Godfrey-Smith, em sua teoria da origem moderna das funções, reconhece a limitação da proposta de Wright em não indicar o “quão longe temos de voltar no passado para reconstruir a etiologia de um traço atual Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1561 de um organismo”, e propõe que limitemos a busca da etiologia à história recente do caractere cuja função desejamos explicar etiologicamente. Seguindo o entendimento de Godfrey-Smith (1998), propomos que, de maneira a manter a importante distinção entre função e acidente proposto por Wright, uma explicação funcional etiológica para a FL deve dispensar sua narrativa histórica mais antiga, e partir da sua história evolutiva mais recente. Assim, é dispensada da nossa explicação funcional etiológica uma explicação evolutiva sobre como sistemas preexistentes e periféricos ao que se entende ser a FL em sentido estrito (os componentes C-I e S-M) foram adaptados para a espécie humana. Assim, se queremos definir apropriadamente a função da FL a partir de uma perspectiva evolutiva, devemos olhar para essa estrutura apenas a partir do momento em que um evento biológico – possivelmente uma mutação – incluiu, na cognição humana, um componente combinatorial recursivo, dando origem à FL em um sentido amplo. Assumimos, seguindo Chomsky e colaboradores, que a inclusão de um componente combinatorial recursivo encontrou a condição adequada para a criação de um sistema único de pensamento, a saber a preexistência de um componente C-I. Esses dois componentes, o componente combinatorial recursivo e o componente C-I, certamente constituem o mínimo necessário à existência de um sistema diferencial de pensamento. Vejamos, a seguir, como a proposta etiológica de Wright pode usada de modo a endossar a tese de que a FL vincula-se mais intimamente a um sistema do pensamento. 4.2 A FL tem uma função primária interna à mente Qual deve ser exatamente a função da FL? Como já mencionamos, uma resposta bastante convencional é aquela segundo a qual a sua função é a comunicação. Essa é uma visão sustentada mesmo no âmbito da biologia, por abordagens selecionistas que partem dessa interpretação. Entretanto, existem razões para considerar que essa é uma visão incorreta. Consideremos inicialmente a distinção fundamental que Wright faz entre função e acidente. Se Chomsky está correto em sua argumentação de que a FL evoluiu como um sistema de pensamento, com a externalização de pensamento sendo um processo secundário que só emergiu posteriormente ao “grande salto para a frente”[great 1562 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 leap forward] (CHOMSKY, 2012b, p. 30), então temos razões para argumentar que a comunicação é um subproduto, isto é, uma atividade/ comportamento acidental relacionado à nossa FL, mas não sua função natural propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2011; BOLHUIS et al., 2014, entre outros). Seguindo o raciocínio empregado por Wright, entendemos que a obtenção de uma habilidade adquirida posteriormente ao surgimento da FL, a saber, a externalização de pensamentos, não deve estar envolvida em sua etiologia funcional. Assim, comunicação não pode ser a função natural da FL, na medida em que um evento no futuro não pode ter eficácia causal sobre um evento que o precede. Evidências de que a externalização de pensamento, e, portanto, a comunicação não pode ser aquilo para o qual a FL foi inicialmente otimizada foram apresentadas na seção 3.2. Naquela seção, mencionamos alguns, entre diversos fatos empíricos, que mostram que um sistema combinatorial recursivo gera, por meio de Merge, objetos sintáticos que satisfazem, primeiramente, exigências impostas pelo sistema C-I. Ou seja, há de fato uma relação muito mais estreita entre os componentes da FL exigidos para compor um sistema de uso interno da linguagem, e essa relação mais estreita se torna transparente quando observamos casos de assimetria entre os sistemas S-M e C-I, sendo este favorecido em detrimento daquele. Adaptando as palavras de Nunes-Neto e El-Hani (2009, p. 364) ao nosso contexto de discussão, não há, em relação à FL, qualquer “inversão misteriosa de causalidade”. Evidentemente, humanos podem fazer uso de sua FL e ainda assim não estarem se comunicando efetivamente – qualquer que seja a definição de comunicação com a qual decidamos operar. Se por comunicação entendemos qualquer forma de interação com outros indivíduos, devemos considerar, como lembra Chomsky (2012b), que uma parte muito pequena da linguagem é externalizada, sendo o seu uso característico majoritariamente interno à mente. Se somos mais rigorosos a ponto de operar com uma noção mais restritiva de comunicação, em que comunicação signifique, por exemplo, “veiculação de informação”, então deveremos considerar que, na verdade, uma parte ainda menor do que é externalizado é o que serve à comunicação. Partindo dessa perspectiva, sustentamos, seguindo Chomsky ao longo de seus trabalhos, que foi a retenção evolutiva de capacidades internas à mente – tais como “pensar, planejar, interpretar, de maneira Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1563 como nenhuma outra espécie podia até então, além de uma gama de opões criativas disponíveis para os seres humanos no âmbito de uma teoria da mente” (BERWICK; CHOMSKY, 2011, p. 30) – que trouxe vantagens adaptativas, e, portanto, são esses elementos que prioritariamente devem estar envolvidos em uma explicação funcional da nossa FL. Essa é, por consequência, a razão pela qual continuamos a usá-la primariamente para pensar (uso interno), isto é, seu principal uso continua sendo aquele associado à sua etiologia. Dada a fórmula em (18) a seguir, seja X a nossa FL e seja Y a sua função, podemos adequadamente afirmar que Y = tornar possível a construção de uma infinitude de expressões organizadas hierarquicamente, de modo a viabilizar um sistema sofisticado de pensamento. (18) a. X existe porque faz Y b. Y é uma consequência (ou resultado) de X existir. Portanto, sendo Y a consequência da presença prévia de X, o entendimento mais razoável, seguindo a formulação de Wright, seria aquele segundo o qual Y é o responsável por manter X, a FL, na nossa espécie. Assim, se considerarmos, com Chomsky, que uma pequena mutação ocorrida num único indivíduo dominou um grupo em um período de tempo aparentemente muito curto, então somos levados a supor que esse grupo modificado certamente passou a contar com alguma vantagem seletiva. A vantagem de pensar, planejar, interpretar, de uma maneira única, não disponível para nenhuma outra espécie até então, certamente aumentou as chances de sobrevivência e reprodução de certos indivíduos da espécie no passado, e isso manteve X na espécie, sendo X instanciado hoje de diversas maneiras, mas sobretudo em sua forma primária, isto é, aquela interna à mente. Assim, ao abordarmos, sob uma perspectiva da biologia, a função de uma faculdade cognitiva como é o caso da FL, devemos considerar aquilo que é o seu uso característico, sob pena de, se não o fizer, estarmos operando com considerações funcionais de um certo tipo anêmico. Embora a FL possa ser útil à comunicação – e o fato é que ela não é útil apenas à comunicação –, é a sua utilidade mais imediata, ou seja, aquela que se supõe estar envolvida em seu surgimento, que deverá constituir um tipo importante de explicação funcional. Não é coincidência que o uso supostamente envolvido na emergência da FL em nossa espécie seja aquele que, ainda hoje, constitui o seu uso característico. 1564 Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 Evocando as perguntas apresentadas em (3), no início deste artigo, dessa vez entendendo X como sendo a FL, Cs como sendo seres humanos e Y como sendo a comunicação humana, temos as seguintes perguntas, cujas respostas devem representar, na perspectiva de Wright, a função de X, isto é, a função da FL. (19) a. Qual é a função da FL? (equivalente a Qual é a função de X?) b. Por que humanos têm um FL? (equivalente a Por que Cs têm X?) c. Por que a FL possibilita um sistema de comunicação qualitativamente diferente daqueles encontrados em espécies não humanas? (equilavente a: Por que Xs fazem Y?) As respostas a todas as três questões redundam em afirmações com um mesmo substrato: (a) a função da FL é servir a um sistema diferenciado de pensamento (uso interno); (b) essa é a razão porque humanos a têm; e (c) essa também é a razão porque humanos fazem uso de um sistema de comunicação qualitativamente superior ao de outras espécies. Ou seja, apesar de ser um dos efeitos de se ter uma FL, a comunicação não é a sua explicação causal. 5. Considerações finais Para concluir a nossa argumentação, trazemos a seguinte consideração. Qualquer abordagem evolutiva de caráter gradualista, portanto firmada no pressuposto de um longo e denso processo de seleção natural, poderá utilizar-se da formulação de Wright apresentada em (18) para sustentar uma explicação funcional da FL, já que, a propósito, uma das razões para Wright recomendar fortemente a sua análise é o fato de ela elucidar o conceito de seleção natural – apesar de não se restringir a esse tipo particular de seleção (NUNES-NETO; EL-HANI, 2009, p. 364). Entretanto, se tal abordagem gradualista partir da visão bastante comum de que FL e comunicação se equivalem, então essa abordagem certamente estará paradoxalmente muito distante da proposta de Wright, na medida em que ainda é incapaz de operar com uma distinção elementar, a saber, a distinção entre aquilo que é função e aquilo que é acidente. Uma visão baseada nesses termos certamente ainda não reconhece que o uso característico da FL está longe de ser a comunicação. Além disso, uma abordagem externalista sobre a evolução da FL é, no nosso Rev. Est. Ling., Belo Horizonte, v. 27, n. 3, p. 1531-1570, jul./set. 2019 1565 entendimento, incapaz de apresentar uma justificativa convincente, em termos de evolução, para a assimetria encontrada entre os sistemas que compõe a FL. Agradecimentos Por suas valiosas orientações e sugestões, agradeço imensamente a Thiago Sampaio, Vitor Nóbrega e Fábio Mesquita, especialistas no assunto de que trata este artigo. Todos eles me orientaram na produção deste texto, o qual é fruto de uma das etapas (qualificação de área) que compõem o meu percurso acadêmico na Unicamp, onde desenvolvo minha pesquisa de doutorado, financiada pelo CNPq (processo n° 141487/2017-8). Também sou grato aos dois pareceristas anônimos da revista pelas sugestões e críticas indispensáveis. Referências BECKNER, M. Function and Teleology. Journal of the History of Biology, [S.l.], v. 2, n.1, p. 151-164, 1969. 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